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Jung & Corpo

ISSN 1676-0387

JUNG & CORPO

“Em princípio, não há diferença entre


formações orgânicas e psíquicas. Como uma
planta produz suas flores, assim a psique cria
seus símbolos.”
(C. G. Jung, 1964, CW 18, par. 64)

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Jung & Corpo

EDITORAS RESPONSÁVEIS
Maria Helena R. Mandacarú Guerra
Neusa Maria Lopes Sauaia

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


Wellington Leardini - Secretaria - Instituto Sedes Sapientiae

Revista JUNG & CORPO


ISSN 1676-0387

Site: http://www.sedes.org.br
E-mail: sedes@sedes.org.br

Fotolito e Impressão: JK Gráfica e Editora

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Jung & Corpo

EDITORIAL
Com muita tristeza, às vésperas de enviar nossa revista à gráfica, fomos surpreendidos
pela perda da querida Elizabeth de Cassia Sandin, a Beth. Prestamos a ela nossa homenagem,
dedicando este número à sua memória.
Neste 11º. número da Jung & Corpo teremos a oportunidade de transitar por uma gama
bastante diversificada de temas. Abre a revista o artigo de Ana Paula Chaplin, sobre O
Palhaço e a Brincadeira Simbólica. Em consonância com o símbolo do palhaço, personagem
arquetípico e multifacetado em suas emoções, a autora tece reflexões aprofundadas, veiculadas
de forma leve e atraente, prendendo a atenção do leitor e estimulando o olhar atento para
uma das figuras mais importantes da infância de todos nós.
Em um mundo cada vez mais estressante e competitivo, as doenças cardíacas atingem
paulatinamente um maior número de pessoas. Graças ao desenvolvimento tecnológico, os
transplantes cardíacos veem tornando-se mais habituais e constituem, para quem a eles se
submete, um momento de crise. Em seu artigo O Transplante Cardíaco Vivenciado como um
Rito de Passagem, Ariane Tescaro Garcia estuda esta questão, enfocando-a como uma
oportunidade para o desenvolvimento da personalidade. A autora destaca ainda a importância
da participação do psicólogo em uma equipe multidisciplinar, para ajudar a pessoa a enfrentar
uma doença que afeta um órgão vital de tamanho significado simbólico.
Com grande sensibilidade e coragem, Eduardo Cunha Farias traça um paralelo entre sua
contundente história de vida e a de um deus grego. A Mitologia de Hefesto - o Deus Mutilado
como um Modelo Pessoal de Individuação, prova de persistência e força de um processo de
individuação, demonstra como os símbolos universais expressam-se em nossa vida individual
e como sua compreensão pode auxiliar o desenvolvimento de nossa personalidade.
Em Jung, Corpo e Resiliência: Uma Integração possível na Prevenção da Violência, Amana
Toledo Machado, Davi Costa da Silva e Luísa Aranha Fondello apresentam um método de
trabalho de inestimável valor e alcance social no cuidado de crianças e adolescentes vítimas
de violência. Em uma época na qual a violência mostra índices alarmantes, este trabalho
nos traz esperança de prevenção, ao apresentar uma metodologia capaz de harmoniza,r
numa perspectiva simbólica, corpo e resiliência.
Adriana Bosco aponta, em Corpo-em-Habitação e Trabalho Terapêutico, a necessidade de o
corpo ser situado em uma moldura simbólica, para que possa ser reconhecido como

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inseparável do todo. Recupera, em suas reflexões, o lugar de importância do corpo, relegado


por nossa sociedade a objeto de consumo ou à desconsideração quase total.
Em Eros, Poder, Liberdade e Ética, Maria Helena R. Mandacarú Guerra recorre a três
diferentes mitos para, por meio deles, fazer uma amplificação sobre o amor e relacioná-lo
com as funções da ética, do poder e da liberdade, as quais, quando devidamente amadurecidas,
contribuem para a vivência criativa do amor.
No artigo Medicina Tradicional Chinesa e Psicologia Analítica, Sheila Rafaini Lopes e Márcia
Rodrigues Sapata, utilizando-se de pesquisa bibliográfica, aproximam estas duas teorias,
apontando elementos comuns a ambas.
O artigo A Coluna Vertebral e o Simbolismo Ascensional, de Paulo Toledo Machado Filho, é
um texto bastante erudito, no qual o autor estabelece analogias entre a coluna vertebral
humana e elementos provenientes de diferentes tradições culturais, como a Cabalah e a
Kundalini Yoga.
Desejamos que o leitor usufrua destes artigos do mesmo modo como nós o fizemos.
Boa leitura!

AS EDITORAS

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BETH
Difícil imaginar o Sedes sem a Beth. Ao longo dos anos em que trabalhou conosco, e não
foram poucos, ela nos acostumou a vê-la sempre disposta, alegre, dedicada, lembrando a
cada um de nós detalhes que, muitas vezes, esquecíamos. Sabia tudo o que precisava saber
para nos auxiliar, antecipando-se às nossas falhas e sanando-as antes mesmo que elas
acontecessem. Qualquer coisa que precisássemos, corríamos a pedir ou a perguntar para a
Beth.
De nossa parte, não tínhamos dúvidas de que podíamos contar com ela: era eficiente e
polivalente. Mas mais que isso: fazia dela o nosso compromisso, engajava-se em nossos
projetos, colaborava, participava e vibrava conosco quando finalizávamos um evento bem-
sucedido ou quando publicávamos mais um número da nossa revista, pela qual, sentíamos,
tinha um carinho especial. Não é exagero dizer que a infra-estrutura do nosso curso e da
revista Jung & Corpo passava pela Beth.
Jovem, com imenso amor à vida, sua partida prematura impactou e entristeceu a todos
nós.
Por tudo o que ela fez por nós, por sua dedicação, seu cuidado, sua disponibilidade em
ajudar, agradecemos de coração e enviamos a ela nosso carinho e gratidão.
Que seu caminho seja pleno de Luz!

Professores, Alunos e Ex-alunos do Curso Jung e Corpo

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SUMÁRIO

O PALHAÇO E A BRINCADEIRA SIMBÓLICA......................................................... 09


Ana Paula Chaplin Andrade

O TRANSPLANTE CARDÍACO VIVENCIADO COMO


UM RITUAL DE PASSAGEM - Uma Abordagem Analítica........................................... 19
Ariane Tescaro Garcia

A MITOLOGIA DE HEFESTO
O Deus mutilado como um modelo pessoal de individuação........................................... 29
Eduardo Cunha Farias

JUNG, CORPO E RESILIÊNCIA:


UMA INTEGRAÇÃO POSSÍVEL NA PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA....................... 35
Amana Perrucci Toledo Machado
Davi Costa da Silva
Luísa Aranha Fondello

CORPO-EM-HABITAÇÃO E TRABALHO TERAPÊUTICO


Notas para a afirmação de um organismo sistêmico simbólico........................................ 49
Adriana Bosco

EROS, PODER, LIBERDADE E ÉTICA........................................................................ 63


Maria Helena R. Mandacarú Guerra

MEDICINA TRADICIONAL
CHINESA E PSICOLOGIA ANALÍTICA:
UMA APROXIMAÇÃO ENTRE AS TEORIAS.............................................................. 73
Sheila Rafaini Lopes
Márcia Rodrigues Sapata

A COLUNA VERTEBRAL E O SIMBOLISMO ASCENSIONAL................................ 83


Paulo Toledo Machado Filho

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O PALHAÇO E A
BRINCADEIRA SIMBÓLICA

Ana Paula Chaplin Andrade1

A intenção deste artigo surgiu da feliz observação que fiz de um artista palhaço tão
gracioso que me tocou. Ao contrário de alguns palhaços que eu havia visto na infância, e
que me punham medo, aquele parecia falar com um corpo poético, amoroso, harmônico,
mas curiosamente, eis que isso era engraçado. Sem dizer uma única palavra, exercendo
somente a arte da pantomima, ele se deslocava pela sala tal como um espírito liberto -
parecia que seu corpo havia dominado todo o ambiente com delicadeza e graça. E os
espectadores viveram um momento mágico, com um olhar expectante, e um riso estampado
no rosto, atentos àquele ser que havia se desprendido da garrafa hermética. Quem era ele?
Ele era... engraçado!
No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001), temos engraçado como "o que se
engraçou, que demonstra gentileza, agradável, que visa divertir, fazer rir, reconciliado,
dotado de formosura, bonito, gracioso". Se entusiasmo é sentir o próprio deus dentro de
si, por analogia, engraçado é receber as graças dentro de si, estar em estado de elevação,
cheio de ar.
A cultura circense é seguidora dos ideais românticos do corpo belo, que podem ainda
hoje ser vistos também em cabarés e shows, e que expressam por meio da ludicidade a alegria
da libertação do corpo e da alma. Dentro deste contexto circense a figura do palhaço aparece
como um espetáculo do corpo grotesco que demonstra a todos a imbecilidade e ignorância
humana, em contraste com o corpo sublime dos equilibristas, trapezistas, que desafiam leis
da gravidade; da coragem dos domadores de leões, que desafiam o medo; e outros números
que se alternam durante o show, provocando ora espanto nos espectadores, ora descontração

1
Psicóloga, especialista em psicoterapia junguiana com abordagem corporal pelo Instituto Sedes Sapientiae,
São Paulo. E-mail: paulachaplin@gmail.com

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e risos (Bolognesi, 2001). No entanto, este outro clown citado acima é um híbrido entre a
liberdade e a licenciosidade do corpo cômico e a beleza e domínio das formas, e por isso um
símbolo, porque de início ele congrega esta e outras ideias opostas.
Por outras felizes coincidências me deparei durante o meu trabalho clínico com sonhos
em que este personagem aparecia, e em um deles, um arlequim dava piruetas pelo espaço
amplo, desenhando nele uma dança mandálica, indo então em direção a uma jovem que era
a própria paciente, e que se encontrava no centro, sentada no chão. Quando ele chegou
perto da moça, retirou de trás de si uma flor e ofereceu para ela, que se abriu em um sorriso
para o arlequim. Aquele sonho marcou o surgimento de um novo animus bastante positivo
para a paciente, e com o tempo passei a sentir uma vontade maior de investigar o sentido
que se podia vislumbrar por trás desta e de outras imagens relacionadas.
Esta pesquisa, portanto, possui uma ênfase na psicologia do imaginal, pois seguiu as
pistas que foram surgindo através dos símbolos que se referiam direta ou indiretamente às
situações arquetípicas em que esta figura estava em questão; dou exemplos de alguns filmes
no decorrer do texto, e histórias típicas, mitos e ritos associados. Citando Kluger:

Embora o significado da imagem não possa ser definido com precisão,


ela, no entanto, induz a consciência a pensar além de si mesma, não por
meio de um apelo a divindades ou a história, mas a um conhecer que não
deve ser determinado a priori. Talvez a função mais importante que as
imagens psíquicas desempenham é a de auxiliar o indivíduo a transcender
o conhecimento consciente. (2002, p. 95)

Um pouco do símbolo e da história do palhaço

A arte Clownesca é muito rica e antiga. Desde que o homem se fez homem há o papel
arquetípico do palhaço, que é naturalmente encenado por todas as pessoas comuns, desde a
mais tenra idade, quando querem alegrar aos outros, seja um pai ou mãe fazendo carinhas,
vozes e trejeitos ridendes para o seu pequeno bebê, seja entre grupos de amigos, em situação
de entretenimento de hóspedes, entre amantes, namorados e suas brincadeiras, e nós com
nós mesmos quando nos descobrimos brincando. Esse papel é uma atitude prazerosa com
um fim em si mesmo, pois rir e se descontrair é natural e espontâneo, per ludum, per jocum,
que significa, por brincadeira, por prazer (Castro, 2005).
Castro (2005), ao recontar o desenvolvimento do palhaço na história de nossa civilização,
cita seus outros nomes, como bufão, saltimbanco, clown, augusto, jester, arlequim, entre
outros. Na Grécia eram chamados gelotopoios, e podiam divertir o público com suas
brincadeiras e imitações em espaços públicos, juntamente com sua trupe formada por

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equilibristas, dançarinos e malabaristas, todos artistas itinerantes que podem ser encontrados
com o mesmo protótipo nos dias atuais nas ruas da cidade. Em qualquer organização humana,
essa figura aparece aqui e ali com seu papel social a desenvolver - claro que em uns estes
traços cômicos se sobressaem mais que em outros - e os que se destacam viram notáveis,
como por exemplo, o Hotxuá, um palhaço sagrado, sacerdote do riso da tribo Krahô, localizada
no estado de Tocantins; ou então os bobos da corte, que sempre estavam à espreita em
qualquer castelo na Idade Média, e eram bastante valorizados enquanto piadistas, já que
podiam dizer verdades ao rei e nada lhes acontecia enquanto se mantivessem na posição de
imbecis e, portanto, fracos, sem autoridade (Castro, 2005). Sendo assim, uma característica
encontrada neste símbolo não seria o desembaraço em se dizer as verdades espontaneamente?
O Bobo é transparente, trazendo à tona os não ditos culturais, o que foge do convencional,
e se observarmos, isso provoca sempre um gozo, expresso no riso, por afirmar uma liberdade
de pensamento e de criação em relação a esses mesmos valores cristalizados. O riso é
iconoclasta - um gracejo pode derrubar idéias estagnadas, pondo em circulação outros pontos
de vista, e essa era exatamente uma das funções do Bobo, que com seu modo despretensioso
fazia o Rei refletir e reconsiderar suas sentenças e decisões.
Na compreensão do Louco, no Tarô, - mesma imagística do palhaço - tem-se o mesmo
como "número zero", podendo também ser indicado como a última carta, de número 22.
Não há importância na sua numeração, pois ele é o início e o fim, e tal como o coringa nos
jogos de carteados modernos, se aparecer junto a qualquer uma das outras cartas, muda o
curso do jogo, ou então, encaixa-se perfeitamente sendo bem aceito em toda e qualquer
situação (Nichols, 2005). Há um dito italiano que fala para "ser como um Louco", ou seja,
para ser bem recebido em toda a parte.
O Louco no início e fim do Tarô tem analogia com o círculo como princípio e fim da
jornada de individuação, porém se ele está rindo é para nos lembrar que, nessa jornada de
descobrimento, o bom humor, acasos e lapsos afortunados são graças e pistas que facilitam
o processo. A graça, no sentido teológico, é um dom transitório outorgado pelo alto como
um norte para a mente, um conjunto de comoções interiores divinas e passageiras que o
homem recebe quando age confiando na providência divina. Diz-se que o louco possui o
poder redentor da simplicidade acrescida da fé, e que são seres tocados pelas mãos de Deus,
ou seja, pela graça divina (Nichols, 2005).
Von Franz (1990) liga o Bobo à função inferior - termo que se refere à função pouco
desenvolvida da consciência - que com sua loucura e sandice sempre sai ganhando nos
jogos propostos entre irmãos nos contos de fadas. Se nos detivermos no que há por trás
dessa energia tricksteriana, percebemos uma força que impulsiona a ir aonde o ego
normalmente não iria. Isto não pode ser simplesmente aniquilado pela dinâmica da vontade,
pois quanto mais renegado, mais ele pode tomar de assalto o indivíduo.
Quanto a se descobrir sozinho por meio do brincar e divertir-se, tem-se também na tradição
hermética do Tarô pistas sobre essa situação, pois em várias imagens de cartas há a réplica

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da própria cabeça embarretada que o palhaço segura em sua mão, com a qual ele é visto
entretido a conversar. Em outros baralhos uma Louca é vista segurando um espelho cuja
imagem sorri ou mostra a língua. Este emblema aponta para a representação do seu alter ego,
a relação que se consegue ter consigo mesma ao longo do processo de individuação (Nichols,
2005).
O arquétipo trata "de constantes antropológicas do comportamento, do experienciar, do
retratar, e do processar" (Kast, p.110, 1994). Nesse sentido, é interessante notar que a
figura prazenteira do palhaço está comumente associada às situações de ódio, desgraças,
guerras, medo, morte, injustiça social e a ambientes que criam desforra em relação à rígida
hierarquia estabelecida, justamente porque sua mensagem serve para mudar a dinâmica em
questão. Os palhaços aparecem no hospital, por exemplo, instituição em que se estampa a
tragicidade humana frente à morte e às doenças; outro exemplo de que me lembro para
exemplificar essa idéia é a atitude clownesca e sábia do personagem Guido, o pai amoroso de
Giosuè, no filme de comédia-dramática A Vida é Bela, no qual ele faz seu filho acreditar
que ambos estão participando de uma brincadeira, ao invés de presos ao horror de um
campo de concentração.
A polícia e o palhaço são personagens tão opostos que sempre serviram para os artistas
do gênero forjar enredos e assim garantir entretenimento, pois não tem quem não expresse
um leve sorriso ao ver um policial ser enrolado e levar um pé na bunda. O antropólogo Da
Matta (1997) analisa em seu livro Carnavais, Malandros e Heróis os momentos de carnaval e
de parada militar como exemplos de polos opostos: um é altamente flexível, subversivo,
anárquico, o outro é temeroso, rígido, há hierarquia inflexível, com tolhimento dos movimentos
e da liberdade de expressão.
Conta-se em O Banquete, de Platão, que Sócrates persuadia os convivas a observarem o
fato de que é de um mesmo homem o saber fazer uma comédia e uma tragédia, e que aquele
que com arte é um poeta trágico é também um poeta cômico. Na peça teatral O Auto da
Compadecida, de Ariano Suassuna, é uma comédia cheia de simbolismos e que, como Auto,
trata de questões religiosas, morais e sociais, fazendo rir do início ao fim. De fato, "tudo que
dá pra rir dá pra chorar", como afirma um sábio dito popular.
O que causa a risada desde o início dos tempos até os nossos dias não difere muito: é o
jogo do deboche de personagens populares, as imitações, trocadilhos, o uso imprevisto do
corpo, a derrota, o erro, a ingenuidade, a brincadeira que traz acréscimos à vida (Bergson,
2001). É uma essência brincante que joga com as limitações e desfruta o gozo disso, uma
energia de vida com a coragem de assumir seu ser limitado, sua dor, a fim de transgredi-la,
como nos diz Cybele (2009) sobre o palhaço. Porque é uma figura que se expõe em sua
tolice e estupidez, que põe a mão no fogo e que dá a cara a tapa. Ele não conta uma piada
engraçada, ele próprio é a graça, o risível, mas ao mesmo tempo é considerado uma peça
importante da cultura e de nós mesmos (Op. Cit.,p.3).

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Para Bergson (2007), a comicidade humana é razoável a seu modo, até em seus maiores
desvios; é metódica em sua loucura, capaz de evocar insights que são facilmente
compreendidos pelo grupo no qual se manifesta, e justamente por isso pode nos dar
informações sobre o trabalho da imaginação humana. Interessante notar que, ao falar para
amigos sobre a intenção de escrever este artigo, a contribuição quase unânime deles para tal
assunto era lembrar-me sobre a máscara da alegria como um disfarce para a tristeza humana,
ideia muito evocada quando se fala em palhaço. No entanto, o ser ironicamente triste também
recupera a dignidade humana, por revelar um espírito que possui a capacidade de transcender
o sofrimento (Nichols, 2005). Os mestres da arte de palhaçaria ensinaram, nos dois pequenos
2
cursos dos quais participei com o fito de mergulhar um pouco mais neste universo, que este
personagem era muito tentador, havendo o risco de identificação do artista com ele, de
modo que, após "tirar o nariz de palhaço", o artista pode seguir desempenhando esse jogo
divertido e tragicômico. Sem descartar a possibilidade de que qualquer adulto ou criança
venha a usar os gracejos constantes como uma máscara engessada, ressalto que este
comportamento é bastante natural e salutar: é o nosso instinto lúdico, de expressão espontânea
de nossa essência. Somos em essência, na concepção filosófica de Huizinga (1980), homo
ludens, sendo um fator de sofrimento o bloqueio ou inibição, por algum motivo, de tal função
psíquica.
Jung ([1936] 2000, par. 240-245) escreve sobre o instinto que impulsiona a ação, tendo
incluído aí os impulsos a viajar, o amor à mudança, o desassossego e o instinto lúdico, sendo
que este leva à criação da cultura e à transcendência humana, categoria essencial também
presente em manifestações artísticas mais "elevadas".
Castro (2005) segue contando em seu livro, O Elogio da Bobagem, que a situação dos
comediantes e artistas da diversão ficou muito difícil na Idade Média, pois como em todo
período fundamentalista, o riso e o prazer são perseguidos, já que em sua aparente bobagem
os palhaços estão sempre subvertendo a ordem - é a voz dos "vagabundos" frente à elite
douta, a qual sempre se considera superior e não vê nos simples qualquer sabedoria (Da
Silva, 2006). O riso era considerado profano na Idade Média, pois era capaz de aniquilar o
temor a Deus e ao diabo, condição necessária para a manutenção da autoridade religiosa,
tornando mais maleáveis e passíveis de transformação o estado rígido estabelecido. As
sociedades e culturas que integram o riso nos seus rituais sagrados são mais equilibradas
socialmente e, por consequência, psiquicamente, pois há espaço para se dizer as outras
verdades que existem, pondo em circulação a função da alteridade.

2
Oficina de Clown ministrada pelo ator e mímico Fernando Vieira, em julho de 2009, e laboratório permanente
de Clown, ministrado pela atriz e diretora Silvia Leblon, em 2009/2010.

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A Idade Média, porém, é um período muito longo, e em alguns lugares e em determinadas


épocas houve o ressurgimento de um espaço para a festa, a alegria e o extravasamento.
Assim é que nasce a Festa do Asno, ou Festa dos Loucos, folia popular regada a vinho,
sátiras picantes e músicas, onde uma missa era rezada às avessas, sendo que um "sacerdote"
entre os loucos era eleito para a solenidade, ou mesmo se colocava um asno, símbolo da
libido desenfreada, para rezar a missa. Os homens do clero vestiam-se de mulheres, pobres
eram ricos, ricos serviam os pobres, toda a ordem era invertida, e quem se recusasse a
participar da brincadeira era vaiado, recebia farelos nos olhos e acabava participando mesmo
a contragosto (Castro, 2005). Podemos encontrar semelhanças com as festas carnavalescas
atuais e encontraremos sempre algo parecido em todas as épocas e culturas, já que este é um
comportamento arquetípico coletivo.
O corpo cômico, sempre utilizado pelos palhaços de todos os tempos para nos fazer rir,
remete-nos ao símbolo do macaco. No Dicionário dos Símbolos, de Chevalier & Gheerbrant
([1974], 2006), temos que este animal é conhecido por sua agilidade, dom de imitação e sua
comicidade, referindo-se aos instintos de base mais primitiva do ser humano. Entre maias e
egípcios, o macaco é príncipe e amigo das flores, associado aos artistas andarilhos, às festas,
ao artesanato, aos mágicos e, como psicopompo, também associado ao Deus da morte.
Quando o riso surge nos momentos mais dramáticos, serve como válvula de escape para
as tensões do grupo, algo próximo ao medo e fascinação que algumas crianças sentem diante
dos palhaços mais grotescos e estranhos. O fato de o riso e o terror caminharem tantas
vezes juntos é algo que desperta curiosidade. Afinal, rimos também para afugentar o medo
e assegurar a vida.
Uma leitura do motivo tricksteriano é que este inventa a contingência da morte necessária
para que haja o nascimento de nossa capacidade simbólica, sendo um mestre iniciático na
passagem entre o visível e o invisível. O súbito conhecimento da finitude humana, que
supomos não ocorrer com outros animais, acende uma luz onde até então só havia
inconsciência, e a risada é a expressão própria da superação do terror da morte e de afirmação
da vida e triunfo humano, história que é encenada em rituais de mascarados de diferentes
culturas. O riso serve tanto para afirmar como para subverter, apresentando-se na
encruzilhada do físico e do psíquico, do divino e do diabólico, como escreve Minois (2003).
Encontram-se paralelos ritualísticos sobre este tema entre os povos do oriente próximo,
onde o elemento sagrado da derrisão estava associado aos cultos de fertilidade dos ritos
agrários, que serviam, dentro do pensamento mágico, para afastar a morte e a doença (Macedo,
1997). Em todas as representações em honra ao deus Dioniso, o riso estava presente, e era
considerado um remédio para certos males que podiam afetar a sanidade do homem e da
natureza. Ria-se no ritual para que as plantas germinassem e crescessem fortes, e dentro do
pensamento mágico, para que as mulheres tivessem filhos, houvesse prosperidade, alegria,
vitalidade e saúde sexual. No ritual, os cantos alegres e ridículos tinham a propriedade de

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destruir o fascinum, ou seja, o mau olhado, sendo que a partir desses rituais nasceram
posteriormente os teatros de comédia e tragédia.
A eficácia psíquica proporcionada pelo riso ritualístico na Grécia possui em seu bojo a
mesma dinâmica que garante os bons resultados da atuação dos palhaços no ambiente
hospitalar. Com seu slogan "rir é o melhor remédio", estes profissionais revelam uma verdade
da alma.
Um palhaço no hospital está lá para combater a morte tanto quanto um médico e sua
equipe de saúde, só que através da energia lúdica que tentam movimentar no ambiente.
Masseti (1998), em relação às pesquisas realizadas sobre a atuação dos palhaços nos hospitais,
afirma que estes alteram num sentido bastante positivo o comportamento dos infantes:
crianças prostradas ficam mais ativas e começam a se comunicar melhor, favorecendo o
contato com a equipe médica; há melhora na disposição para alimentar-se, uma aceleração
do tempo de recuperação do doente e, claro, diminuição do medo da situação hospitalar.

O elemento afetivo do Palhaço

Palavras de Charles Chaplin, que refletem a essência deste arquétipo integrador de emoções
e idéias opostas: "A beleza existe em tudo, tanto no bem como no mal. Mas somente os
artistas e poetas sabem encontrá-la." (Júnior apud Chaplin, p.69, 1989). "Creio que o pecado
é realmente um mistério tão grande como a virtude" (Op. cit. p.88). Passei a entender o
palhaço como um símbolo de um equilibrista das emoções, dos afetos e dos símbolos, que
anda no meio das situações trágicas e cômicas como uma força capaz de manter o ser
humano de pé quando as vicissitudes desfavoráveis o atingem, a melhor imagem para ele é
a da máscara em que metade ri e metade chora, pois ele não nega a tragédia da vida, e sim a
aceita e integra, além de possuir uma doçura e uma força que a supera.
A roupa colorida é símbolo por excelência da união de muitos opostos; suas cores variadas
e seus desenhos fortuitos indicam um espírito discordante, porém se distingue um modelo,
uma forma inconfundível (Nichols, 2005). A arte Clownesca é uma categoria peculiar no
gênero teatral, pois ela precisa que seu personagem principal seja construído em cima das
características do próprio ator. Carlitos era uma expressão do próprio Chaplin: de origem
humilde, era um vagabundo que, quando se transformou em ator, encenou a si mesmo de
forma caricata. Assim, cada ator terá que descobrir seu próprio clown, suas próprias verdades,
fraquezas, e transformá-las em graça e força do personagem.
Chaplin construiu uma obra inclassificável, pois tem drama, comédia, crítica social e
humanismo; dentro de sua arte ele era considerado um bailarino, devido ao alto domínio
corporal que tinha. Como exemplo do seu trabalho fabuloso tem-se o filme Garoto, que

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inicia com os seguintes dizeres: "Um filme com um sorriso e talvez uma lágrima", no qual é
contada a história de uma mãe que abandona seu filho logo após o nascimento, mas logo em
seguida ele é encontrado pelo personagem Vagabundo, que passa a criá-lo. Eles ganhavam a
vida anos mais tarde da seguinte forma: o menino ia à frente arremessando pedras e quebrando
os vidros das casas, enquanto Chaplin passava logo em seguida, vendendo vidraças; um
verdadeiro trapaceiro, mas o filme nos leva a compreender e a amar o trapaceiro. Um dia,
então, o garoto adoece e recebe a visita de um médico, que ao descobrir que ele não é filho
do Vagabundo chama o juizado de menores, que o leva embora à força, numa cena muito
dramática. No final, a mãe, agora uma atriz de sucesso, encontra seu filho, e supostamente
tudo acaba bem.
No filme O Grande Ditador, Chaplin trata do nazismo de maneira cômica, e passa sua
mensagem no "Último Discurso", um texto com teor humanista e político.
O método de amplificação é empregado numa tentativa de estender, mediante imagens
semelhantes, as idéias e associações possíveis àquele tema, e inseri-las assim num contexto
maior de sentido (Kast, 1994), como, por exemplo, mitos, contos, ritos e histórias típicas.
Os exemplos aludidos até aqui permitem fazer isto, pois ilustram, entre outras coisas, a
mesma situação pela ótica da tragédia, da comédia ou conjugando estas polaridades, vendo-
as pela perspectiva tragicômica, que é a que mais se aproxima da vida real. O palhaço serve
como imagem compensatória para pessoas que perdem sua naturalidade com facilidade,
que estão se defrontando com suas sombras, com a sua criança interna, que costumam ficar
constrangidas, deprimidas, desconcertadas, ou seja, sentem vergonha de si mesmas, ou então,
quando não se tem muita espirituosidade, se é muito sério, sisudo, rígido, autoritário, sem
vivacidade, sem a capacidade de brincar com as coisas simples.
Bergson (2001) traz um juízo acerca do corpo cômico, afirmando que se sentir engraçado
é muito diferente de se sentir ridículo. Esse último estado desarmônico provoca, no dia a
dia, comportamentos realizados de maneira automática, aos tropeços, sem que uma adequada
consciência de si esteja presente. É uma tendência viciosa do corpo e da alma, que se
cristalizou no decorrer do tempo sem que o sujeito se apercebesse, pronta para ganhar uma
significação inconsciente subjacente.

Conclusão

Finalizando este artigo, gostaria de apontar que a espontaneidade do clown faz lembrar a
criança. Segundo Jung ([1940] 2007, par. 276-277), o estado originário, inconsciente e
instintivo da infância não deve ser confundido com a criança concreta, pois é um órgão
psíquico com uma função a desempenhar durante toda a vida, e que pode ser ameaçado
devido à exacerbação da dinâmica da vontade. A consciência diferenciada, excessivamente

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racional, no entanto, é continuamente ameaçada de desenraizamento e afastamento do


mundo natural e espontâneo, razão pela qual necessita de uma compensação através do
estado original infantil (Jung, op. cit., p. 164).
A criança, por deixar-se afetar pelo novo com sua pureza e inocência, desarma os adultos
ao ver tão claramente o óbvio que eles não mais enxergam, e por vivenciar seus próprios
afetos com tanta naturalidade. Assim é que um pequeno normalmente se entrega à alegria
com a mesma intensidade que às lágrimas cinco minutos depois; expressa ódio pelo amiguinho,
mas faz as pazes com ele rapidamente. As crianças se autoconhecem e aprendem a controlar
seus impulsos, emoções e corpo, bem como lidam com frustrações e limitações, através do
brincar simbólico, e aprimoram assim a sua salutar volição e espontaneidade no decorrer do
desenvolvimento: brincar é fundamental para a criança. Mais que isso, também o adulto
continua crescendo através do prazer que a brincadeira simbólica, ou jogos, proporcionam.
Quando cresce, o adulto se curva para aprender com sua criança interna, e caso não faça
isso, corre o risco de estagnar a sua vida interior.

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O TRANSPLANTE CARDÍACO
VIVENCIADO COMO UM RITUAL DE
PASSAGEM - Uma Abordagem Analítica

Ariane Tescaro Garcia1

Apresentação

O presente artigo é parte da monografia: O Transplante Cardíaco Vivenciado como um Ritual


de Passagem - Uma Revisão de Literatura, apresentada para a conclusão do I Curso de
Especialização em Psicologia Hospitalar do Hospital do Coração.

Introdução

No último século, o transplante cardíaco vem se mostrando cada vez mais como uma
possibilidade viável e indicada nos casos em que os tratamentos clínicos, procedimentos
intervencionistas ou cirúrgicos não são mais suficientes para manutenção da vida e de sua
qualidade. No entanto, embora os avanços tecnológicos tenham favorecido muito os aspectos
médicos no campo dos transplantes, ainda há muito que estudar e avançar no que tange à
inclusão e compreensão da subjetividade dos indivíduos envolvidos em todo este processo.
O objetivo deste trabalho é ampliar a compreensão da vivência do transplante cardíaco
como um ritual de passagem, discutir as implicações psicológicas que decorrem da mesma e
a proposição de algumas diretrizes aos psicólogos que trabalham com esta população.

1
Psicóloga clínica formada pela PUC-SP, com aprimoramentos em Psicologia Clínica Junguiana na PUC-SP e
em Psicologia Simbólica Junguiana no Instituto Sedes Sapientiae, especialização em Psicologia Hospitalar no
Hospital do Coração e mestrado em Psicologia Clínica Junguiana na PUC-SP. E-mail: ariane_garcia@hotmail.com

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Método

Foi realizada uma revisão de literatura acerca do tema, abrangendo o período de 1990 a
2007 em função da escassez de material específico, em livros, teses de conclusão de curso
para graduação em Psicologia, dissertação de mestrado e tese de doutorado de Psicologia
Clínica e artigos científicos em revistas periódicas, articulando tais conteúdos com a
interpretação da abordagem analítica sobre o adoecer e o simbolismo do coração e dos ritos
de passagem.

Resultados

A partir do levantamento realizado e do embasamento na técnica de amplificação proposta


pela Psicologia Analítica, tentou-se entender que tipo de vivência poderia aproximar-se,
assemelhar-se ou ainda trazer a mesma simbologia implícita em "trocar" o coração. Nesta
exploração, houve um encontro com os ritos de passagem, expressões simbólicas de um
tempo de espera e preparação que marcam a vivência de uma transformação como um
verdadeiro renascimento. Foi a partir da compreensão desta simbologia que nos propusemos
a estudar a vivência do transplante cardíaco como um rito de passagem para os indivíduos
que adoecem do coração.
Para uma melhor compreensão das repercussões emocionais do adoecer do coração e
suas implicações a partir da Psicologia Analítica, faz-se necessário primeiramente entender
como a mesma concebe o processo de adoecimento e buscar compreender também a
simbologia do coração.

O Adoecer e a Psicologia Analítica

De acordo com Ramos (1994), a Psicologia Analítica possui uma visão finalista na qual
a doença e os sintomas podem ser considerados expressões simbólicas do inconsciente que,
ao se manifestarem, visam integrar à consciência determinados conteúdos desconhecidos
ou reprimidos.
Desta forma, para entender quais as repercussões emocionais que o adoecer do coração
pode gerar, é preciso saber quais os significados que o símbolo do coração adquiriu ao longo
do tempo em nossa sociedade e cultura.

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Simbolismo do coração

O coração é tema recorrente e central em inúmeros mitos e está presente em todas as


culturas, da pré-história até hoje. Ramos (1995), a partir do estudo de diversos mitos e da
etimologia da palavra coração em diversas línguas e culturas, conclui que o coração é
entendido como um centro vital e essencial, um lugar para os sentimentos. A autora pontua
ainda que o coração é considerado o lugar da experiência religiosa, da salvação, do
renascimento, da individualidade e da transformação. Destaca o coração como sede da
vida, e afirma que, por esta razão, qualquer problema que o afete é sentido como uma
grande ameaça à existência do ser humano. Ao mesmo tempo, o coração é também
considerado sede de sensibilidade moral, sentimentos, segredos e amores.

O coração simbólico, como vimos, é por excelência, em nossa cultura,


órgão de ligação, sede da emoção amorosa e expressão da totalidade.
Quando esquecido, manifesta-se sintomaticamente, doentiamente; quando
lembrado, mostra o nosso destino. Revela à humanidade que ciência e
logos não podem sobreviver sem consciência e Eros, e aí talvez esteja a
essência de seu mistério. (Ramos, 1995, p.132).

Adoecer do coração

Wahba (1990) afirma que, para entendermos o sentido do adoecimento na existência de


um indivíduo, precisamos olhar para o sintoma não apenas como a objetivação da doença,
mas sim como a expressão da dor e do sofrimento de determinado ser humano como um
todo, afetado em sua totalidade física e psíquica. Em concordância com esta colocação,
Ismael (2007) pontua que, ao considerarmos as representações simbólicas do coração,
ampliamos a complexidade do significado do adoecer, clarificando por que os problemas
cardíacos são vivenciados como extremamente ameaçadores e acompanhados por um
sentimento de angústia e de morte iminente. A autora ainda destaca que o acometimento da
doença cardíaca é revestido de medos, angústias, ansiedades, inseguranças, sentimento de
impotência e fantasias, já que pode acarretar limitações físicas e também mudanças no
comportamento emocional.
Quintas (2002) ampliou ainda mais esta vivência e menciona que o adoecimento cardíaco
envolve não só o doente, mas todo o seu círculo familiar e profissional, trazendo com isto
preocupações de ordem social para o paciente. O adoecer do coração mobiliza muitos

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conteúdos psíquicos e diversos aspectos da vida do doente, como: a aquisição da doença


em si, a necessidade de buscar tratamento, sentimentos de negação e culpa, além de
preocupações acerca do tema da morte e da existência. Desta forma, é muito comum que
estes pacientes, a partir do adoecimento, repensem os valores e padrões de vida.
A autora ainda ressalta que o adoecer do coração e a necessidade de ter que transplantá-
lo causam no indivíduo sentimentos de dúvida, frustração, desesperança, medo de morte,
angústia, culpa e muitas incertezas em relação ao futuro. Todos esses sentimentos mesclam-
se ao longo de todo o processo.
A partir destas colocações, fica evidente que o adoecimento gera mudanças e repercussões
em todas as áreas da vida do indivíduo, e é por esta razão que a pessoa que adoece deve ser
percebida, acolhida e atendida em sua totalidade; é necessário considerar os aspectos
biológicos, sociais e psíquicos do indivíduo, juntamente com suas repercussões no cotidiano
do paciente.

Ritos de passagem

Para Campell (1999), a função primária tanto dos mitos, quanto dos ritos, sempre foi
fornecer símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se às fantasias humanas
constantes que tendem a levá-lo para trás.
Alvarenga (2007), embasada na Psicologia Analítica, postulou que são os mitos que nos
fazem entender o viver e o morrer, assim como o sentido de cada coisa, pois considera que
estes são um modelo de atividades e realidades humanas significativas, que, ao serem
traduzidos para a consciência, fazem-no como expressões intensas e mobilizadoras, como
matéria simbólica e estruturante da psique.
Isto porque é através do estudo dos mitos que conhecemos os segredos do mundo,
apreendemos sobre o funcionamento humano, as reações, desejos e sentimentos próprios
de sua natureza. É através dos mitos que podemos compreender a dinâmica da transformação
da psique. Ou seja, são os ritos que trazem as possibilidades de entrarmos em contato com
os mitos e experienciá-los, perpetuando, desta maneira, conhecimentos e tradições de
sociedades, culturas e religiões.
Alvarenga (2007), fazendo referência à Psicologia Analítica, afirmou que essas vivências
de rito ocorrem no nosso cotidiano, bem como em uma sessão analítica "... quando estamos
em determinadas evocações, consideradas como pertencentes ao passado" (p.97). Isto
porque, na sessão analítica, podemos retomar o momento passado e revivê-lo com todas as
cargas afetivas.

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O rito torna o tempo reversível, libertando o homem do tempo morto, tempo da neurose
e da repetição. Com isto, o rito nos traz a capacidade de transformar o passado. Entramos,
desta maneira, na reversibilidade do tempo, tornando-se possível recriar o mundo
simbolicamente.

O rito faz a criatura sentir-se renascida e transformada. Todo rito é um


rito de passagem, o que significa morrer para um tempo, para valores e
referenciais, e nascer para o novo, dinâmica transformada, valores próprios
da nova realidade. E, após a descida ao reino da morte, dos ínferos, nunca
mais seremos os mesmos. (Alvarenga, 2007, p.98)

Todas as transformações pelas quais passamos na vida, do nascer ao morrer, dão-se


através dos ritos. "Tudo a ser vivido se faz pelos ritos. O nosso cotidiano é uma sequência
de ritos menores, e os grandes momentos são sinalizados pela gestualidade imperiosa dos
ritos de passagem." (Alvarenga, 2007, p.98).

Discussão

Os pacientes que precisam submeter-se ao procedimento do transplante cardíaco passam


por um longo percurso, que ocasiona diversas repercussões emocionais. O modo como cada
um deles irá vivenciar este processo e lidar com as emoções que emergirem em decorrência
do mesmo dependerá da história de vida e dos significados que cada um atribuirá a sua
doença e estão diretamente relacionados à recuperação no pós-operatório, à incorporação
do órgão e consequentemente, ao sucesso do transplante. Por esta razão, torna-se fundamental
aliar aos cuidados médicos o acompanhamento psicológico desde a avaliação do candidato
ao transplante até o pós-operatório tardio.
A Psicologia Analítica, como exposto acima, entende que o adoecimento e seus sintomas
trazem consigo um significado, um símbolo, que clama por ser integrado à consciência daquele
que adoece.
Desta forma, ao pensarmos em um paciente com um acometimento cardíaco grave, que
precisa transplantar o coração, é imprescindível, do ponto de vista analítico, que
compreendamos o significado que este tem para aquele determinado sujeito, além de toda a
simbologia cultural já implícita ao órgão, pois só assim poderemos entender o que o
inconsciente do sujeito está tentando transmitir e acompanhar como o paciente vivenciará
a necessidade de ter que "trocar" seu coração e quais as fantasias que poderão surgir diante
desta situação.

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O primeiro passo a ser dado pelo paciente, do ponto de vista psíquico, neste longo
processo do transplante, é a aceitação da doença, pois é só a partir deste momento que ele
poderá considerar a ideia de ter que transplantar o seu coração.
O adoecer, e principalmente o adoecer do coração, órgão que pulsa o sangue para todo o
corpo, traz uma grande ameaça à integridade e existência do ser humano. Por esta razão,
acaba por gerar nos indivíduos muitos conflitos, medos, angústias e incertezas.
Deparar-se com a necessidade de ter que retirar o órgão responsável pelo fluir da vida é
colocar-se frente à possibilidade da própria morte.

A morte concreta, literal, faz parte do elenco de nossos ritos, sendo


considerada como o último rito de passagem do processo vida. Entretanto,
antes de cumprirmos a concretude desse fenômeno, passamos por
incontáveis ritos de passagem de morte simbólica. (Alvarenga, 2007, p.98)

Ao encontrar-se diante de sua própria finitude, o paciente defronta-se com duas


possibilidades: ou se entrega, fica paralisado pelo medo, culpando-se pela própria doença,
acreditando que a mesma veio como uma punição a seus atos e seu estilo de vida, ou são
"chamados de volta à vida", enfrentando este processo de uma outra maneira.
Na primeira situação, o transplante tende a fracassar, isto se o paciente conseguir chegar
de fato à sua indicação e realização, pois o mesmo não é vivido como uma possibilidade
genuína de transformação, mas sim como uma salvação, como uma "intervenção milagrosa"
que solucionará todos os problemas do indivíduo. Desta maneira, não há integração de
nenhum aspecto novo à consciência e tanto a doença, como a necessidade da cirurgia,
podem acabar por não cumprir sua finalidade em termos psíquicos na vida do indivíduo.
Assim, mesmo que este consiga passar por parte do processo, terá maiores dificuldades para
ultrapassar a fase do pós-operatório, na qual as rejeições e as complicações podem ser bastante
frequentes e muito influenciadas, também, pelos conteúdos psíquicos, pois, como bem destaca
Lima Filho (1999):

Quando a transição de uma etapa do desenvolvimento a outra não é


demarcada, a consciência relativa à passagem se torna tênue, não se
sistematiza o suficiente e a pessoa não se prepara para o que tem a sua
frente. (p.174)

Já nos casos em que a doença e os sintomas (que surgem como expressões simbólicas e
possuem uma função compensatória e auto-reguladora), cumprem a sua finalidade, facilitando
que o paciente escute os gritos da sua alma que soam através deste coração doente, torna-

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se possível ao indivíduo integrar à consciência o simbolismo implícito ao órgão adoecido;


nestes casos, o transplante cardíaco pode surgir como uma nova oportunidade, um verdadeiro
renascimento, tal qual em um rito de passagem, e a doença pode ser enfrentada como parte
do processo da vida, como mais uma das mortes simbólicas que vivenciamos durante toda
a nossa existência.
Quando isto ocorre, o processo do transplante, embora doloroso e custoso, ganha um
sentido e, por esta razão, é mais bem aceito pelo paciente psicológica e fisicamente.
Assim como em alguns dos rituais iniciáticos das culturas primitivas os meninos eram
isolados a fim de se prepararem para a transformação que iriam vivenciar através do ritual,
o doente que se submete ao transplante cardíaco também passa por este processo, isola-se e
prepara-se para o rito da cirurgia.
Na preparação para o transplante cardíaco também existe o tempo de isolamento, as
restrições impostas pela doença, a avaliação através dos exames médicos, psíquicos e sociais,
o período de espera pelo órgão, até finalmente o momento da cirurgia, o ritual em si: o
transplante cardíaco.

A cirurgia cardíaca envolve um complicado ritual desde o preparo


anterior até a posterior recuperação do paciente operado. Este passa por
todas as etapas da iniciação; é imobilizado, anestesiado como um morto,
coberto de aparelhagens, ferido e dilacerado. O peito aberto e o sangue
derramado evocam a imolação de um deus que transmutará o órgão central
da vida. Opera-se no mais íntimo, no altar do corpo e, como resultado, o
coração destruído é substituído por um novo, permitindo o renascimento,
o despertar depois do profundo mergulho no ventre do monstro. (Wahba,
1990, p.68)

Durante a cirurgia, o paciente vive um confronto direto com a morte e com a paralisação
temporal. Esta vivência é bastante mobilizadora e transformadora em termos psíquicos, e
quando o paciente ultrapassa este momento é que podem surgir as fantasias em relação ao
órgão incorporado. O fato de ter dentro do peito o coração de outra pessoa, o órgão
considerado o mais sagrado do corpo humano, pode causar muitas perturbações, se o paciente
não tiver sido bem trabalhado e não tiver incorporado o sentido maior desta experiência.
O paciente, portanto, deve preparar-se para uma morte simbólica, elaborando o luto
daquele órgão que está sendo retirado de seu peito, para então poder incorporar o novo
coração que está recebendo.
Assim sendo, nota-se que quando o indivíduo vivencia o processo de transplante cardíaco
como um rito de passagem, ele consegue elaborar melhor a perda de seu órgão, vivenciando-
a como uma morte simbólica, conseguindo atribuir um sentido de renascimento e

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continuidade da vida ao enxerto. Deste modo, o paciente integra de forma mais concisa e
clara à consciência esta nova fase de sua vida.
Lima Filho (1997) ressalta que os ritos de passagem propiciam alguns elementos de
estruturação da consciência, pois:

Demarcam a passagem entre uma fase do desenvolvimento e a seguinte;


preparam e capacitam a pessoa para assimilar demandas, incumbências,
habilidades e responsabilidades distintas daquelas que caracterizavam sua
vida até então; fortalecem o ego e a personalidade que precisam se despedir
das modalidades antigas de comportamento e conduta; explicitam o sentido
de sua nova etapa de vida através de um comportamento exemplar;
preparam o espírito da pessoa para os embates e confrontos que ela deverá
encarar; oficializam a permissão para o acesso da pessoa a novas e mais
evoluídas instâncias de seu ambiente cultural; presentificam o senso de
pertencer ao grupo comunitário e a suas instâncias hierárquicas e evolutivas
gradativamente superiores; evidenciam o sentido social e espiritual da
inserção do indivíduo na coletividade a que pertence. (p.138)

É possível dizer, portanto, que o trabalho fundamental do analista neste processo é


construir com o paciente um entendimento mais amplo de seu adoecimento, analisando
junto ao indivíduo qual a finalidade de seus sintomas; o que aquele coração adoecido que
está quase morrendo e por isto necessita ser substituído está expressando. Neste ponto, é
essencial que o analista não se esqueça da simbologia que este órgão carrega, tentando
também buscar junto à história de vida do paciente o quanto Eros, expressão maior desta
simbologia, foi renegado ao inconsciente.
Pensando no mecanismo de compensação da psique, já explicitado anteriormente, fica
claro, que quanto mais a função de Eros estiver polarizada no inconsciente, mais ela aparecerá
enquanto sintomas na vida do indivíduo, de modo a tentar integrar-se ao consciente.
É essencial que o paciente possa ser ajudado a fazer esta "ponte" e a compreender que o
coração que está morrendo é expressão maior da necessidade de reintegração, ou, em certos
casos, até mesmo de inserção dos aspectos emocionais, esquecidos ou deixados de lado em
sua vida quotidiana.
Quando este insight é favorecido, não é raro que os pacientes entrem em um período de
recolhimento e reavaliação da própria existência, em um expressivo movimento de

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ressignificação de seus próprios valores. Desta forma, os mesmos podem vivenciar o


transplante cardíaco como um renascimento; como uma morte simbólica para aquele modo
de vida experienciado até o momento e que agora não cabe mais em sua existência, já que o
seu próprio corpo, através do adoecimento do coração, solicita mudanças.
É momento de deixar para trás certo modo de ser. Há aqui a demarcação de uma morte
simbólica, expressa pelo ato de retirada do órgão tido como centro da vida. É neste momento
que o rito de passagem se concretiza. Com a remoção do antigo coração, abre-se espaço
para o novo coração que será inserido, para o renascer, que traz possibilidades de
transformações físicas e psíquicas para o indivíduo. Acompanhar e promover este processo
é papel do psicólogo, que com isto facilita a elaboração do luto do órgão removido, abrindo
espaço para a assimilação e integração do enxerto, que por ter agora um sentido na vida do
indivíduo, pode ser aceito psíquica e fisicamente.

Considerações finais

O presente trabalho comprova a necessidade e a importância do papel do psicólogo


junto a uma equipe interdisciplinar envolvida no processo de transplante cardíaco,
demonstrando que este profissional deve ajudar o paciente a aceitar e entender a sua doença,
amplificando ao máximo o significado e a finalidade da mesma, de modo a facilitar a integração
dos aspectos psíquicos que seu corpo sofredor está tentando expressar através da concretude
física.
Somente desta maneira o transplante cardíaco poderá ser vivenciado como um ritual de
passagem, com todas as suas vicissitudes, o que, como vimos, facilita ao indivíduo a adaptação
e a integração dos conteúdos psíquicos e físicos, possibilitando assim uma visão integrada
de si mesmo e um real renascimento.
Apesar do presente estudo e das referencias aqui apresentadas, ainda há muito a se estudar
e a se desenvolver nesta área, já que os transplantes cardíacos vêm se mostrando, cada dia
mais, uma opção viável de tratamento.
Em estudos futuros seria interessante uma pesquisa de campo, que, por meio do relato
das vivências dos pacientes, certamente amplificaria e enriqueceria a teoria aqui esboçada.
Além disto, faltam também estudos relacionados à Bioética, à relação entre transplantes e o
surgimento de processos psicóticos e à política de saúde pública vigente no país.

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Jung & Corpo

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Jung & Corpo

A MITOLOGIA DE HEFESTO
O Deus mutilado como um
modelo pessoal de individuação

Eduardo Cunha Farias1

Introdução

Durante o Curso de Especialização Jung e Corpo, de 2007 a 2009, conscientizei-me de


quão trágica, do ponto de vista corporal, havia sido a minha biografia em sessenta anos de
existência.
Sincronicamente, a partir da caracterização do homem Hefesto, de Bolen (Bolen, J.S.,
2005), com o qual me identifiquei, decidi reunir a mitografia escassa, difusa e multiversa do
deus coxo. No decurso da pesquisa mitológica foram emergindo memórias biográficas de
impressionante similitude com os mitemas de Hefesto. "A vida imita o mito" e esta imitação
encanta e assusta.
Como o deus mutilado, minha individuação vem sendo pontuada por intermitentes e
graves injúrias físicas, redirecionando minha existência na alternância trágica da dor e do
gozo. Teimosa e heroicamente continuo driblando as crescentes limitações corporais e persisto
desenvolvendo minhas aptidões científicas, técnicas e artísticas.

1
Médico, Professor Associado, aposentado, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. Especialista em
Psicoterapia Junguiana coligada a Técnicas Corporais pelo Instituto Sedes Sapientiae. E-mail:
educfarias@gmail.com

29

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Jung & Corpo

Objetivo

Segundo Jung, "é assim a individuação, só podendo ocorrer se primeiro retornarmos ao


corpo, à nossa terra, só então ela se tornará verdadeira". Assim crendo, pretendo que este
trabalho seja um recurso ativo e consciente de individuação, correlacionando uma revisão
sobre a mitologia de Hefesto, o divino artesão, e o meu relato biográfico, sob o enfoque corporal.

Mitologia de Hefesto

Farias (2009) recolhe a mitografia de Hefesto e a ordena em epítetos, genealogia, duplo,


aparência, amores e prole, relações com Atená, façanhas e criações, ritos e mistérios (Brandão,
J.S.,1993; Burt, K.,1998; Graves, R.,2004; Greene, L. & Sharman-Burke, J.,1999; Grimal, P.,
1982; Guttman, A & Johnson, K, 1993; Homere, 1925 & 1967; Kerènyi, K. 1998; Salis, V.D.,
2003; Willis, R., 2007). No escopo do presente trabalho, entretanto, cabe apenas uma sinopse.
Hefesto foi arremessado duas vezes - uma pela mãe e outra pelo pai - desde o alto do
Monte Olimpo. As quedas causaram-lhe deformidades físicas e psíquicas permanentes.
Deusas "avós", Tetis e Eurínome, o adotaram durante a infância e propiciaram o
desenvolvimento da criatividade e engenhosidade. Através de seus trabalhos, aliviava as
dores do corpo e da alma e conquistava a admiração dos demais deuses com seus dotes
artísticos e técnicos.
Casa-se com Afrodite, a personificação de sua anima. O mais feio dos olímpicos desposa
a mais bela das deusas. Afrodite é a beleza extravertida e perecível. Hefesto é a beleza
intravertida e perene.

Característica do homem Hefesto

De acordo com Bolen (2002), o homem Hefesto caracteriza-se por ser rebelde, desafiador,
habilidoso, obstinado, solitário (mesmo acompanhado), crítico, seletivo, leal, interessado
apenas em mulheres especiais; é visceralmente paternal, cooperativo, não-competitivo, sempre
disposto a ensinar e a facilitar a vida dos outros. Além dessas características principais, há
outras tantas secundárias. Impactou-me, sobremaneira, reconhecê-las todas em minha
personalidade.

30

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Jung & Corpo

Simbologia do coxo

Gerado sem amor, por disputa de poder, rejeitado ao nascimento, agredido e mutilado
por mãe e pai, Hefesto é marcado pela claudicação. Em múltiplas culturas, a condição de
coxear apresenta rica simbologia, quer luminosa, quer sombria. O coxo, assim como o trickster
e o herói, simboliza o transgressor. Os três personagens arquetípicos caracterizam-se pela
dupla natureza, humana e divina.
Os deuses têm ciúmes dos herois e dos delinquentes, mas regozijam-se com eles. Os que
são singulares pagam com a perda de sua integridade física o desfrute do conhecimento e do
poder. As incapacitações são um aviso contra a hybris. Os deuses advertem que os mortais
devem ser sempre submissos, e que quaisquer rebeldias serão punidas. Aqueles que afrontam
os deuses serão definitivamente marcados com a imparidade, a assimetria, o desequilíbrio, a
disfunção.
Hefesto tentou proteger Hera da fúria de Zeus e este o arremeteu desde o alto do Olimpo.
Depois de um dia inteiro de queda, tombou sobre a ilha de Lemnos, quebrando ambas as
pernas. Retornou aleijado à morada dos deuses, apoiado em muletas de ouro.
Jacó viu Javé face a face e o Senhor enviou o anjo Peniel (a face de Deus) para feri-lo
na coxa. Ao amanhecer, Jacó manquejava e seu nome havia sido trocado para Israel (a
luta de Deus).
Cambalear é alternar as condições celestes e terrenas. Apoiar-se sobre uma das pernas ou
retirar o calcanhar do solo é acumular poderes, concentrar energia física e psíquica. As
amazonas fraturavam as pernas dos homens capturados para inseminá-las, tornando-os,
assim, mais férteis, potentes, coléricos e agressivos.
A mutilação pode ser iniciática, conferindo dons, ou contra-iniciática, cassando
poderes. Toda a deformidade é sinal de mistério, conferindo poderes, quer benéficos,
quer maléficos.
Os deuses criam o mundo, os demiurgos o ordenam, modelando a terra. Mas pagam o
preço por suas habilidades extraordinárias. Os deuses são invejosos e cruéis. Em quase
todas as mitologias, os mestres da forja e das artes do fogo são coxos, pernetas, manetas,
zarolhos ou estropiados de alguma forma. Os artesãos são castigados com as deformidades
porque teimam em melhorar o mundo imperfeito criado pelos deuses. Os deuses não dividem
os poderes impunemente com os mortais. Tampouco toleram desobediência. A rebeldia do
anjo Lúcifer, o portador da luz, o derrubou do céu, deixando-o manco, tornando-o "le diable
boiteux" (o diabo coxo).

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Jung & Corpo

Autobiografia sob o enfoque corporal

Nasci em uma madrugada de domingo, a 31 de agosto de 1947, em pé (parto podálico),


inicialmente desassistido. Bastante machucado, além de indesejado pelos meus pais, fui
amamentado por uma ama e informalmente adotado por meus avôs paternos.
Meu primeiro setênio foi pleno de amor, apoio e estímulos determinantes para o meu
futuro. Porém, a presença ocasional e inevitável de meus pais, seus descuidos e agressões,
valeram-me os primeiros traumas corporais. Aos três anos, em casa deles, um portão de
ferro fraturou-me o fêmur direito. A lesão exposta resultou em osteomielite e meses de
hospitalização. Um ano depois, já recuperado, fiquei aparentemente resfriado. Minha mãe
imobilizou-me com violência e aplicou-me uma injeção. Sua irresponsabilidade desencadeou
uma poliomielite que encurtou, definitivamente, minha perna esquerda. Aos dois anos aprendi
a andar, nos três seguintes tive de reaprender mais duas vezes.
Aos sete anos, a morte súbita de meu avô-pai obrigou-me a morar com meus pais. A
adolescência transcorreu no inferno doméstico. Aos dezessete anos, após inúmeros
confrontos, decidi trabalhar e me independizar financeiramente. No ano seguinte, 1966,
passei no vestibular para Medicina e iniciou um novo período feliz. No penúltimo ano de
graduação, novamente, sofro uma fratura no calcâneo direito, perigosa pelo risco de necrose
asséptica. Novo e penoso aprendizado a andar.
Em 1997, casado, pai, doutorado e docente da USP, em um momento muito produtivo,
fraturei o fêmur esquerdo, o que exigiu intervenção cirúrgica e lenta recuperação. Foi o
quarto reaprendizado à marcha.
Em 1998, descobri-me com um tumor intracraniano. A cirurgia, complexa e arriscada,
foi bem sucedida, mas as sequelas foram terríveis. A recuperação incluía reaprendizado da
fala, deglutição e, pela quinta vez, deambulação. A diferença foi que tive de recuperar o
andar com referência visual, já que fiquei com parestesia bilateral e sem tato dos joelhos
para baixo. Alguns meses após, quando já conseguia andar apenas com o apoio de uma
bengala, caio novamente e refraturo o fêmur esquerdo. Mais alguns meses de imobilização
e, depois, o sexto reaprendizado em seis décadas de vida.
Hoje, com sessenta e três anos, ando com o auxílio de uma bengala e tenho dores crônicas
principalmente nos metacarpos. "Deus quando não mata, aleija": eu sou a prova viva deste
provérbio. Ando o mínimo possível e não dispenso analgésicos. Mas, pelo menos, tenho
suficiente autonomia para me manter produtivo.

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Jung & Corpo

Considerações finais

Bendigo a inspiração para desenvolver este modelo de trabalho de auto (re)descoberta


do autor-personagem-heroi interior, recompensando-me com significados numinosos para
assimilar as minhas tragédias pessoais e persistir vivendo.

Referências Bibliográficas

BOLEN, J.S. (2005). Os deuses e o homem - Uma nova psicologia da vida e dos amores masculinos. São
Paulo: Paulus.
BURT, K (1998). Arquétipos do zodíaco. São Paulo: Pensamento.
FARIAS, E.C. (2009). A Mitologia de Hefesto, o deus mutilado, como modelo pessoal de individuação.
Monografia apresentada ao Curso de Especialização em Psicologia Analítica e Abordagem Cor-
poral do Instituto Sedes Sapientiae.
GRAVES, R. (2004). Mitos Gregos. Madras.
GREENE, L. & SHARMAN-BURK, J. (1999). Uma viagem através dos mitos - O significado dos
mitos como um guia para a vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores.
GRIMAL, P. (1982). A mitologia grega. Coleção Saber. Publicações Europa-América.
GUTTMAN, A. & JOHNSON, K. (1993). Mythic Astrology - Archetypal Powers in the Horoscope.
Lewellyn Publications.
HOMERE (1967). L´Iliade. Paul Mazon. Paris.
HOMERE (1925). L´Odisée. Victor Bérard. Paris.
KERÈNYI, K. (1958). Os deuses gregos. São Paulo: Cultrix.
SALIS, V.D. (2003). Mitologia viva. São Paulo: Nova Alexandria.
WILLIS, R. (2007). Mitologias: deuses, herois e xamãs nas tradições e lendas de todo o mundo. Publifolha.

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JUNG, CORPO E RESILIÊNCIA:


UMA INTEGRAÇÃO POSSÍVEL NA
PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA
1
Amana Perrucci Toledo Machado2
Davi Costa da Silva3
Luísa Aranha Fondello

Introdução

O tema da violência como um problema social tem, atualmente, chamado cada vez mais
a atenção da mídia, que bombardeia o público por meio da televisão, da internet ou ainda de
jornais e revistas impressas com notícias chocantes e alarmantes. O uso da repressão na luta
contra a violência traz elevados índices de audiência a filmes e seriados, nos quais é
reproduzido o antigo tema da luta entre o Bem e o Mal. Não se deve esquecer que este tema
é um fenômeno que sempre existiu e, provavelmente, sempre existirá na humanidade. O
desejo de eliminá-la, portanto, mostra-se uma ilusão. Porém, quando a violência atinge um
ser em desenvolvimento, como nossas crianças e nossos jovens, os prejuízos podem ser
incalculáveis.

1
Psicóloga formada pela Universidade de São Paulo, Arteterapeuta, especialista em Psicologia Junguiana
com abordagem corporal pelo Instituto Sedes Sapientiae e coordenadora do Programa de Estudos da Violên-
cia do Núcleo Espiral. Email: amanaperrucci@gmail.com
2
Estudante de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e voluntário no Programa de
Estudos da Violência do Núcleo Espiral. Email: davi.costas@gmail.com
3
Estudante de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e voluntária no
Programa de Estudos da Violência do Núcleo Espiral.

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Jung & Corpo

Segundo a Organização Mundial de Saúde, a violência contra crianças é definida como:

Abuso ou maus tratos em relação à criança constitui todas as formas


de tratamento doentio, físico e/ou emocional, abuso sexual, negligência,
exploração comercial, resultando em danos reais ou potenciais para a saúde,
sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade da criança no contexto de
uma relação de responsabilidade, confiança ou poder. (OMS, 1999)

Em pesquisa realizada pela OMS (2002), calcula-se que 57 mil crianças e adolescentes
de até 15 anos foram mortos por homicídio. Entre 1996 e 2004, a negligência aparece como
a violência mais notificada. Somando todas as modalidades de violência doméstica (física,
psicológica, sexual, fatal e negligência), durante esse período o número total de casos de
vítimas desse tipo de violência notificados no Brasil subiu de 1.192 para 19.552. Quanto à
violência psicológica, cerca de metade dos adolescentes convive com ela direta ou
indiretamente (http://www.unicef.org/brazil/pt/Cap_01.pdf).
Segundo o Instituto São Paulo Contra a Violência, o relatório do Disque Denúncia do
primeiro semestre de 2010 aponta que as denúncias de Maus Tratos Contra Criança é a
terceira mais frequente dentre aquelas realizadas no Estado de São Paulo, representando
5,5% do total das denúncias realizadas nessa localidade (http://www.ispcv.org.br/proj/
dd/dados_dd.php).
Conforme a abordagem da Psicologia Analítica, o trauma seria uma fonte de sintomas e
dos chamados complexos. Quando a violência ocorre no período da infância, a chance de
sequelas fixarem-se no terreno físico é maior, pois nessa fase há o predomínio de vivências
corporais. Procurando sanar essa ferida que se forma na sociedade, algumas organizações
sociais direcionam o seu trabalho na busca de formas para prevenir a violência, para oferecer
assistência ao amplo público atingido, e para compreender o fenômeno, ainda em ascensão.
O que se observa, porém, nas intervenções voltadas a esse público é a ideia de que o corpo
é um enorme "vespeiro", que não deve ser tocado. Vítimas e cuidadores carregam o medo:
os primeiros, não se deixam amar, pois se defendem de um possível próximo ataque; os
últimos, não podem tocá-las, pois têm medo de retraumatizá-las. Cria-se, assim, um tabu.
No entanto, é na compreensão do corpo enquanto símbolo e em sua riqueza como potencial
de transformação que se atinge o lado saudável, que se exploram recursos e que se promove
a resiliência de futuros cidadãos. É a partir de tal perspectiva que foi criado o Método
Espiral, a ser apresentado adiante.

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Jung & Corpo

Violência como problema social: das análises psicológicas e sociológicas à superação


da violência

Notamos o modo como a violência está enraizada em nossa sociedade. Partindo do ponto
de vista da sociologia, é possível encontrar maneiras de compreender o fenômeno da violência,
de modo a visualizar meios de superá-la. Propõe-se, assim, a verificação do mecanismo de
funcionamento da violência em duas dimensões: sintéticas e didáticas. Na primeira, dimensão
estrutural da sociedade, constata-se que a violência exerce uma relação vital com a sociedade,
4
já que é uma das principais e mais características instituições sociais existentes. O ato
violento é meio de frequente utilização, para que as instituições consigam sua legitimação
perante os indivíduos. A instituição familiar, de forma simbólica e expressa nos papeis de
pais e filhos, é um microcosmo que representa as relações existentes externamente a ela
mesma. São percebidos esforços para garantir a perpetuação da família: a educação dos
filhos visa a desenvolver neles a capacidade de administrar os bens familiares. Aqui
encontramos a violência como sendo, historicamente, a principal ferramenta educativa
utilizada para esse fim. Já na segunda dimensão, das interações entre indivíduos, sob uma
perspectiva paralela, verifica-se um anseio dos indivíduos em ver sua linhagem continuar
atuante na sociedade. Aqui a educação violenta é mais uma vez a mais frequente ferramenta
utilizada para esse fim.
Considerando o indivíduo singular, verificamos a violência acidentando seu processo de
desenvolvimento. De acordo com Neumann ([1950], 1995), as experiências adversas são
responsáveis pela emergência do chamado ego ferido. Diz ele:

O predomínio de uma experiência negativa inunda o núcleo do ego,


dissolve-o, ou lhe confere uma carga negativa. Ao ego de uma criança
assim marcado por uma relação primal negativa chamamos de um ego
ferido, porque suas experiências do mundo, do 'tu' e do Self trazem as
marcas de ferimentos ou adversidades. (Neumann, [1950], 1995, p.62)

Ainda de acordo com o autor, as experiências negativas vividas pela criança são capazes
de gerar agressividade, a qual funciona como mecanismo de defesa, caso a criança não
tenha aprendido limites ou a direcionar suas atitudes agressivas. Servem também como
meio de compensação do ego ferido, fundamentando personalidades egoístas, egocêntricas
e narcisistas.

4
Baseado na definição de Peter L. Berger e Brigitte Berger em: Berger, P.L. & Berger, B. O que é uma instituição
social? [orig. ingl. 1975]. Trad. R. Paul Neto. In: Foracchi, M.M. & Martins, J.S. (Ed.). Sociologia e sociedade.
Rio de Janeiro: LTC, 1977, pp. 193-199.

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Jung & Corpo

É possível verificar que o ato violento está enraizado em nossa sociedade, já que ele
pode, inclusive, ser encontrado na composição das personalidades. No entanto, não é
impossível transformá-lo. A sociedade precisa educar seus integrantes para garantir a própria
continuidade. Assim, através do incentivo a formas de educação não-violentas e da promoção
da resiliência em crianças e adolescentes, esse problema poderá ser amenizado.

Abrigos, ONGs e instituições: formas operacionais

Os direitos da criança e do adolescente são regulamentados pelo Estatuto da Criança e


do Adolescente (ECA), o qual consiste num conjunto de normas do ordenamento jurídico
brasileiro que tem, como objetivo, a proteção integral da criança e do adolescente, aplicando
medidas e expedindo encaminhamentos, de maneira a dispor sobre a proteção integral da
criança e do adolescente.
De acordo com o ECA, considera-se criança a pessoa até doze anos de idade incompletos,
e adolescente, aquela entre doze e dezoito anos de idade. Partindo do pressuposto de que a
eles devam ser atribuídos todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, o
ECA estabelece que a família, a comunidade, a sociedade em geral e o poder público devem
assegurar a efetivação dos direitos referentes à vida, em geral, e ainda que

nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de


negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão,
punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus
direitos fundamentais (Art. 5º).

Nesse sentido, as diversas instituições que funcionam justamente em prol da manutenção


dos direitos acima referidos surgem com intenção de criar melhores condições de vida para
crianças e adolescentes que não puderam delas desfrutar na convivência familiar ou
comunitária. Para isso, são primordiais a organização e a manutenção de uma rede de ações
interligadas que seja suficientemente eficaz. O envolvimento de organizações governamentais
e não governamentais, instituições acadêmicas e quaisquer demais instituições da sociedade
civil, em prol do estabelecimento de estratégias de enfrentamento e de prevenção da violência,
é o suporte para a resiliência das pessoas que vivem situações de violência.
Na medida em que o trabalho dessas instituições é encarado como uma resposta aos atos
violentos que vitimizam o público em questão, percebe-se que a aplicação de um método
suficientemente coerente e eficiente visaria ao aprimoramento do trabalho prestado dentro
das instituições e ao desenvolvimento de ambientes saudáveis e compatíveis com a educação
das crianças e dos jovens.

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Jung & Corpo

A perspectiva simbólica junguiana

A Psicologia Analítica define que a origem dos conteúdos inconscientes não seria apenas
do campo pessoal, reprimido; para Carl Gustav Jung, esses conteúdos seriam originários de
um campo coletivo, de difícil acesso e expressão através da linguagem verbal. Para melhor
compreendê-los, Jung buscou os mitos, as lendas e a alquimia, procurando fazer relações
com as antigas tradições e aquilo que se mostrava difícil de acessar. Esta perspectiva propõe
a busca pelo novo e desconhecido emergente no indivíduo, de modo a olhar para o presente
e o futuro. Jung ([1907], 1986) diz que

a psique humana é somente em parte algo passado e como tal sujeita ao


ponto de vista causal. Por outro lado, porém, a psique é um devir que
apenas pode ser compreendida de modo sintético ou construtivo. (p. 166)

A compreensão simbólica, nesta abordagem, mostra-se uma ferramenta formidável, na


medida em que vê o símbolo como um importante canal para a abertura de novos significados.
Nas palavras de Jung ([1964], 2008), "Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a
ideias que estão fora do alcance da nossa razão." (p. 19). Ainda, conforme Jung, os termos
simbólicos são muitas vezes utilizados como representação de conceitos daquilo que não se
pode definir integralmente.
Whitmont ([1969], 2006) diz que "A abordagem simbólica por definição aponta para
além de si própria e para além daquilo que pode se tornar imediatamente acessível à nossa
observação." (p. 19). Segundo ele, a novidade proposta por Jung facilitaria a vivência
adequada da psique, na medida em que poderia integrar a já conhecida abordagem concreta
ao acesso às faculdades intuitivas e emocionais, explorando todos os seus elementos.

O corpo como terreno de transformação

Byington (1988) afirma que o corpo tem participação fundamental na formação de


símbolos. Segundo ele, o corpo é responsável por estruturar simbolicamente a consciência,
incluindo suas características e limitações; é ele que determina o início e o fim da vida, o
que dá "à dimensão do corpo importância central na delimitação da consciência" (p. 29).
Complementando essa idéia, Vargas (2002) aponta que o processo simbólico ocorre em
nós quando exercemos qualquer uma das faculdades - intuição, pensamento, sensação ou
sentimento. Sendo assim, ele define que o corpo é simbólico, constituindo-se um dos "canais
naturais de simbolização". (p. 31). O mesmo autor define que o primeiro arquétipo

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Jung & Corpo

estruturante a produzir símbolos em nosso eixo ego-Self é o arquétipo da grande mãe,


responsável pela nutrição e fertilidade. O aconchego, o carinho e o afeto proporcionados
por uma relação saudável entre a mãe e seu filho caracterizam esta efetiva simbólica
matriarcal. Da mesma forma ocorre com o arquétipo do pai, segundo arquétipo estruturante
a produzir símbolos em nosso eixo ego-Self; é através dele que se dá a compreensão da lei e
da ordem patriarcais, que favorecem o controle dos esfíncteres, o respeito às hierarquias e
limites.
A reação do bebê às sensações de abandono ou medo, conforme afirma Ramos (1994),
dá-se corporalmente, considerando que a base das estruturas psíquicas está nas reações
psicofisiológicas. Por meio de uma relação saudável com a mãe,

a comunicação simbólica verbal vai se desenvolvendo em harmonia com


a corporal, complementando-a. A diferenciação psique-corpo vai se
firmando e a relação mãe-criança dá a base para a formação da função
transcendente. (p. 45)

Ainda de acordo com Ramos (1994), o símbolo surge como "a expressão da percepção
do fenômeno psique-corpo, feita através da percepção das alterações fisiológicas e das
imagens referentes, sincronicamente." (p. 51). Partindo dessa concepção, observa-se que as
crianças que foram privadas deste tipo de relação, independentemente da causa, ficam
prejudicadas quanto a essa formação, uma vez que a construção da sua identidade se dará a
partir de um processo contínuo de integração simbólica de partes fragmentadas do ego, que
se agrupam e formam o complexo do ego, tendo como base experiências predominantemente
negativas (Sauaia, 2003).

A visão prospectiva da resiliência

No curso dos enfrentamentos diários, é desenvolvida, nos indivíduos, a capacidade de


superação das adversidades. Tal competência fomenta a elaboração dos acontecimentos
encarados como desfavoráveis, permitindo, assim, que a vida possa prosseguir, apesar dos
infortúnios. A essa habilidade, chamamos de resiliência. Constructo de importância científica
muito recentemente aplicado à psicologia, a resiliência vem sendo aí abordada de diferentes
formas nos últimos vinte anos. Para Assis, Pesce & Avanci (2006), a resiliência está

ancorada em dois grande polos: o da adversidade, representado pelos


eventos desfavoráveis, e o da proteção, voltado para a compreensão de
fatores internos e externos ao indivíduo, mas que o levam necessariamente

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Jung & Corpo

a uma reconstrução singular diante do sofrimento causado por uma


adversidade. (p 19. Grifo original)

Também para esses autores, a resiliência é um processo dinâmico que envolve tanto as
interações, quanto os fatores intrapsiquicos. Portanto, apesar de ser característica individual,
o processo resiliente envolve a dimensão externa, apoiado nas relações entre indivíduos,
podendo, assim, ser abordado e incentivado também a partir do exterior. Dessa forma, o
trabalho com grupo de crianças pode também incentivar a socialização e o bem estar
fisiopsíquico, promovendo, dessa forma, a resiliência.
Apesar de o conceito ser abordado de maneiras divergentes por diversos autores, Sauaia
(2003) aponta que há concordância quanto à ideia principal, que é "a capacidade de o
indivíduo manter um funcionamento considerado adaptado, mesmo diante de adversidades,
ou sérias ameaças ao desenvolvimento." (p. 8).

O Método Espiral: possibilidades de intervenção

Diante da prática da violência que caracteriza o cenário do crescimento de diversas crianças


da cidade de São Paulo, o Núcleo Espiral, localizado na região Oeste, é uma associação que
surgiu a partir da experiência de um projeto piloto de atendimento psicológico a crianças
vítimas de violência com alguns alunos do curso de especialização Jung e Corpo do Instituto
Sedes Sapientiae, na cidade de São Paulo, em 1998. Anos depois, em 2002, Sauaia replicou
e aprimorou essa iniciativa, realizando a sua dissertação de mestrado sob o título de
"Psicoterapia de Orientação Junguiana com foco corporal para grupos de crianças vítimas
de violência: promovendo habilidades de resiliência". Já em 2004, o Movimento em Defesa
da Criança e do Adolescente convidou o, até então, projeto Espiral para estabelecer uma
parceria na luta pela defesa e proteção dos direitos da criança e do adolescente, o que
perdurou até 2009, um ano após o projeto, agora maior, transformar-se em uma Associação,
sem fins lucrativos, chamada Núcleo Espiral - Pesquisa, Assistência e Prevenção da Violência
contra Crianças e Adolescentes.
Observando a lacuna encontrada nas mais variadas intervenções realizadas nas diversas
instituições voltadas para o trabalho com as vítimas de violência e traumas, buscou-se,
inicialmente, adaptar e aplicar técnicas corporais, utilizadas de acordo com a visão simbólica
da perspectiva analítica, como forma de resgatar elos perdidos durante os períodos de
adversidades vividos (Sauaia, 2003). A proposta encontra-se na promoção de melhoras no
processo de transformação interno deste público através de trabalhos que considerem o
corpo como terreno de manifestação da psique, que favoreçam a ressignificação da vivência
traumática, da relação com o outro e da autoestima, evidenciando recursos próprios.

41

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Jung & Corpo

Atualmente, o Núcleo constitui-se de quatro programas, todos sustentados por cinco


pilares conceituais: abordagem simbólica junguiana; linguagem corporal; grupo;
atividades vivenciais e resiliência. Essa integração de abordagens constitui-se no Método
Espiral.
As técnicas de trabalho corporal são utilizadas de forma a permitir que os participantes
vivenciem uma situação de segurança e conforto, ampliando seu domínio corporal e suas
habilidades. Assim, de maneira simbólica, constrói-se uma ponte entre a mente e o corpo na
busca pela autorregulação, favorecendo a estruturação da personalidade. Os recursos internos
de cada um dos participantes são desenvolvidos, de forma a promover a resiliência e facilitar
o enfrentamento da violência por meio da ativação de fatores de proteção e construção de
redes de apoio.
No contexto do combate à violência e de sua prevenção, e a partir do método referido, as
atividades vivenciais apresentam uma enorme importância, na medida em que promovem a
sintonia da criança com o outro, com o ambiente, consigo mesma e com o mundo. A
aprendizagem das próprias potencialidades, a consciência corporal e a exploração de
habilidades são instigadas pelo "brincar", atividade que colabora com o desenvolvimento
da criatividade, da imaginação, da motivação, da transformação, da resiliência, do bom-
humor, da coletividade, da integração, da curiosidade, entre outras qualidades. A
conscientização das noções de liderança, de força e de limite, adquiridas no brincar, revela
a pertinência do lúdico no dia a dia do crescimento da criança, sendo de extrema relevância
para seu desenvolvimento saudável, beneficiando a transformação de possíveis complexos.
Da mesma forma, os adultos que vivenciam as atividades experienciam concretamente aquilo
que, apenas verbalmente, não pode ser assimilado.
As atividades, grupais, mostram-se ferramentas no favorecimento da socialização e do
bem-estar físico dos participantes, em qualquer um dos contextos utilizados. Servem como
um espaço de compartilhamento de conflitos e tensões, além de proporcionar a ressignificação
do afeto e incentivar a criatividade. Farah (2008) justifica a proposta grupal na medida em
que, para ela,

a interação dos membros do grupo parece já produzir uma espécie de


força diretiva, algo semelhante a um vetor, resultante da interação das
forças psicodinâmicas individuais presentes na situação. (p. 30)

A mesma autora diz que esse vetor influencia a direção a ser tomada pela unidade grupal
e afirma ainda que a força resultante da dinâmica grupal influencia no desenvolvimento de
cada um dos participantes.

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Jung & Corpo

O programa Retocare, semente dos demais programas que têm como base o Método
Espiral, é responsável pela realização de encontros socioeducativos a crianças e adolescentes.
Através do modelo de cuidado preventivo, procura-se fortalecer os participantes do grupo e
criar condições favoráveis para que este público não se torne novamente vítima e tampouco
autor de situações de violência. Nos encontros, leva-se em consideração a noção da Psicologia
Analítica de que há uma tendência natural do organismo em direção à integração e equilíbrio
das polaridades psíquicas; assim, "onde há feridas e sofrimentos, há também um potencial
para superá-los que pode ser acessado." (Silva e Martins, 2008, p. 58).
Em um dos grupos atendidos, no ano de 2009, participaram 7 crianças de 7 a 11 anos.
Os encontros, realizados em um núcleo socioeducativo, estabeleciam um ritual de entrada
e saída caracterizado pela escolha de personagens dentro de algum tema selecionado por
eles. Neste grupo, foi escolhido o tema X-Men e, entre eles, estava L.G. um garoto de 7 anos
cuja mãe, usuária de drogas, agredia física e moralmente o garoto e seus quatro irmãos, além
de manter relações sexuais com diversos parceiros na frente das crianças. Um destes parceiros
tentou abusar sexualmente de uma das irmãs de L.G., que presenciou a cena. Após esse
fato, a guarda das crianças foi cedida ao pai, que morava com uma segunda mulher e outras
três crianças.
Neste novo contexto, as condições de higiene a que foram apresentados mostrou-se precária
e era comum L.G. chegar ao núcleo socioeducativo com um forte odor no corpo -
especialmente nos pés -, sujo e com roupas furadas. Por esses motivos, era alvo de piadas
dos colegas e interagia muito pouco com todos. Tinha muita dificuldade em expressar-se,
sendo acompanhado inclusive por uma fonoaudióloga.
O personagem escolhido por ele era o Homem Gelo. Inicialmente, mantinha-se afastado de
todos no grupo; era muito desconfiado, assustado e retraído. Não só não aceitava forma alguma
de toque - nem das educadoras, nem dos colegas - como criava uma barreira com colchonetes
ao seu redor, evitando que os outros se aproximassem e que ele participasse das atividades. A
partir do 8º encontro, porém, o garoto começou a "abrir" a barreira, deixando uma porta para
que as educadoras entrassem e até mesmo o tocassem. Depois desta abertura, L.G. passou a
participar ativamente das atividades e interagir com os demais, demonstrando aproveitá-las e
divertir-se. O toque passou a significar algo positivo e não ameaçador.
O grupo, que antes apresentava grandes dificuldades em respeitar limites, apresentou, ao
término do trabalho, uma maior compreensão da importância das regras, de horário, de
respeito ao outro e noção de espaço. Souzenelle (1987) fala que, durante a infância, primeira
etapa de desenvolvimento da vida do homem, a criança adquire as principais noções do
mundo que a rodeia, tais como tempo, espaço, leis. O contato das crianças do grupo, até
então defasado com figuras que representassem o papel da moral, foi favorecido pelas figuras
das educadoras, que possibilitaram a ressignificação desses valores.

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Jung & Corpo

Percebendo a importância do papel do cuidador no contato com essas crianças e


adolescentes, nasceu o programa APOIAR, que procura fornecer a atenção, teoricamente
necessária, a esses profissionais que se dedicam ao desenvolvimento psicológico das crianças
e dos jovens em situação de risco através de cursos para cuidadores, palestras e oficinas
temáticas fundamentadas na teoria Junguiana e nas visões simbólica e corporal. Funcionários
e voluntários de lares, casas de abrigo, creches, hospitais, entre outros, devem estar
apropriadamente preparados para compreender a realidade característica dessa população,
justamente para que ela possa se tornar promotora da resiliência, ao invés de perpetuar a
violência, como muitas vezes fazem, ingênua e inevitavelmente, as vítimas de negligência e
abuso. Até mesmo pagens, berçaristas, lactaristas, monitores, educadores, auxiliares de
administração, secretárias, cozinheiras, enfermeiras, serventes, seguranças, motoristas e
conselheiros tutelares podem ser colocados como público-alvo para o programa.
Em um dos grupos atendidos, por exemplo, um motorista, ao final dos encontros, relatou,
perplexo, que não tinha dimensão da importância de seu papel diante das crianças. Outra
cuidadora, também no término dos trabalhos, manifestou a gratidão por ter aprendido o
valor de cuidar de si própria a partir da intervenção de uma das psicólogas, que, durante
uma aula, percebeu seu cansaço e interrompeu a atividade para dar-lhe atenção. Essa
cuidadora havia passado a noite em claro por conta de uma ocorrência na instituição e
estava exausta, mas queria participar da aula; porém, a psicóloga interrompeu e mostrou a
importância de, em primeiro lugar, cuidar dela própria para poder cuidar dos outros. A
relação dela consigo mesma e com as crianças institucionalizadas mudou, significativamente,
a partir de então.
Depreende-se desses relatos que, ao adquirir conhecimento a respeito de certos temas,
como desenvolvimento infantil, violência, resiliência, agressividade, disciplina e trauma, os
cuidadores referidos podem, inclusive, aprender a manejar as próprias ansiedades e tensões
geradas pelo trabalho em questão. Nesse sentido, observa-se que os cursos funcionam como
criadores de novas perspectivas para o funcionamento e a eficiência das instituições que
atendem crianças e jovens.
A fim de aprimorar a rede de instituições criadas para manutenção de melhores condições
de vida de crianças e adolescentes, também foi desenvolvido o programa APROVE,
responsável pela atuação nas escolas. A oferta de capacitação para professores e o suporte
aos pais e alunos, realizados pelo APROVE, difundem a prática da resiliência e tornam o
público-alvo mais um agente transformador da realidade escolar e da comunidade.
Mais uma vez, é ressaltada a fundamental importância de capacitar os profissionais que
têm contato direto ou indireto com os alunos e de oferecer suporte aos pais na discussão da
problemática da violência, de maneira a promover a resiliência e a minimizar a perpetuação
da violência. Por isso, o condicionamento de vivências e a discussão, dedicados às próprias
crianças e aos adolescentes, sobre temas diversificados e capazes de ajudá-los no seu
autoconhecimento, no incremento da resiliência e na construção de sua personalidade, são

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iniciativas de extrema pertinência para o contexto do crescimento e do desenvolvimento


dessa população. As palestras e os encontros vivenciais promovidos tratam, assim, além das
temáticas da violência, resiliência e prevenção, da percepção de si mesmo e do outro, dos
pontos negativos e positivos da agressividade, dos recursos no enfrentamento da violência
e do senso de objetivo e de futuro, utilizando aulas teóricas, vivências, encontros em grupos
e discussões para atingir seus objetivos.
Toda essa estrutura fundamenta-se na renovação do conhecimento, promovida pelo
PROEV (Programa de Estudos da Violência), que tem como responsabilidade fomentar a
pesquisa sobre violência, a qual, por sua vez, tem como função, aqui, prevenir as
consequências negativas de práticas que violem a dignidade humana ou que, de alguma
forma, firam os direitos da criança e do adolescente.
Assim, o PROEV busca realizar eventos que disseminem o conhecimento, as informações,
os dados e os relatos de casos estudados ou produzidos pela Equipe Espiral, por meio de
palestras, cursos de formação, seminários, participação em congressos, redação e publicação
de artigos e construção e desenvolvimento de projetos de pesquisa, baseando-se na bagagem
produzida pelos próprios programas do Núcleo e procurando aprimorá-los, ao ceder novas
fontes de conhecimento e evitar que o desconhecimento atrapalhe a implementação de
políticas públicas e de intervenção adequadas.

Discussão de resultados

A assimilação de que a violência deva ser interpretada como um problema social remete,
automaticamente, à necessária tomada de consciência da pertinência de uma responsabilidade
coletiva. Partir da premissa de que a prática da violência exige um cenário e, portanto, um
âmbito social e a sua vivência, significa pressupor que a sociedade civil precisa ser
sensibilizada, que a família que violenta precisa ser cuidada e que os profissionais que lidam
com tal contexto precisam ser capacitados, a fim de que as intervenções baseiem-se na
vontade política, no compromisso, na dedicação e no abandono do comportamento
indiferente e negligente.
A responsabilização, o envolvimento afetivo com o outro, o zelo e a ocupação, ao
substituírem o descaso, concretizam a ideia de que

cada criança ou cada adolescente é um ser particular, com uma história


própria, carências e problemas peculiares, mas, principalmente, com
potencialidades e talentos que precisam ser desenvolvidos. A criança,
sobretudo, deve viver com dignidade, o que significa que devemos evitar
com energia qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante,
vexatório ou constrangedor. (art. 18 do ECA)

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O método referido procura atuar, portanto, com a intenção de minimizar as condições


precárias ou inadequadas que caracterizam os lares e comunidades desses jovens, e de
capacitar, tanto os profissionais das instituições (abrigos, creches, escolas etc.) como os
pais das crianças ou os responsáveis por elas e todos aqueles envolvidos em seu cotidiano,
a fim de que não perpetuem o ciclo da violência. Dessa forma, todas as atividades criadas,
desenvolvidas e aprimoradas, conforme citado ao longo deste texto, trazem a possibilidade
de transformação dos participantes, de maneira a constituir um método que deixa de ser
meramente paliativo e assistencialista e passa a destacar-se pela sua dedicação, pelo seu
profissionalismo e pelo seu envolvimento com vários, senão todos, aspectos do contexto de
crescimento da criança e do jovem.
Evidentemente, observa-se, a partir dos trabalhos já realizados até o momento, que ainda
há muito a ser feito. A fim de criar um elo que fortaleça os beneficiados pelos trabalhos e
que facilite a comunicação entre os diversos profissionais que atuam na área, propõe-se a
formação de uma rede de apoio entre as instituições relacionadas à temática, favorecendo a
troca de experiências entre os interessados e prevenindo, cada vez mais, a violência.

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CORPO-EM-HABITAÇÃO E
TRABALHO TERAPÊUTICO
Notas para a afirmação de um
organismo sistêmico simbólico

Adriana Bosco1

Nossa sociedade hoje se caracteriza como uma sociedade pós-industrial, em que a produção
de riquezas se dá num nível abstrato de transações financeiras por meio do capital
especulativo e na qual um sistema de governo baseado na democracia liberal parece ser o
ideal de organização política. O consumo é massificado e a ideia de progresso está associada
à acumulação material e à exploração cada vez maior dos recursos naturais do planeta, em
conformidade com um modelo em que crescer significa expandir pela superfície.
Se levarmos em conta, como coloca Breton (2011, p.19), que o tipo de sociedade em que
vivemos produz uma ideia de pessoa e uma ideia de corpo particulares, perceberemos que,
em nosso tipo de sociedade, as representações sociais acerca do corpo atribuem-lhe uma
posição simbólica como matéria que se possui, e neste modelo a matéria é manipulável.
Tira-se minério da natureza, submete-se o minério a um processo industrial, fabrica-se liga
metálica, esta é moldada e tem-se um carro. Da mesma forma, as intervenções corporais,
como dietas, tratamentos estéticos, a "malhação" e as cirurgias plásticas estão intimamente
ligadas à palavra "corpo". Segundo Wolf (1992, p.18), as indústrias da estética e da dietética

1
Psicoterapeuta Junguiana, trabalha com Abordagens Corporais e estuda sistemas de Educação Somática e
Antropologia do Corpo. É mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo e Especialista em Psicologia
Junguiana coligada a Abordagens Corporais pelo Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo. Atualmente leciona na
Universidade Bandeirante de São Paulo. E-mail: adrianabosco@ig.com.br

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Jung & Corpo

são das que mais crescem em todo o mundo, e os números que comprovam tal crescimento,
a partir do pós-segunda guerra mundial, são surpreendentes. Outras formas de manipulação
corporal, poucas vezes acompanhadas de um olhar atento para as consequências que trazem
no nível da subjetividade e da organização social, têm-se tornado comuns. Segundo Araiza
& Gisbert,

O recente desenvolvimento de inumeráveis tecnologias biomédicas nos


oferece a possibilidade de transformar o corpo até o impensável. É o
caso das cirurgias cosméticas, dos transplantes de órgãos, das tecnologias
transexuais, da psicofarmacologia, da manipulação genética, entre muitas
outras. Estas tecnologias acentuaram a ideia de "multiple choice", liberdade
de possibilidades de mudar não apenas nossa imagem, mas também nossas
formas de vida, nosso projeto de quem somos. (2007, p.111)

Além disso, o corpo se apresenta como lugar da doença ou do desvio passível de correção
e é objeto de uma prática médica que se desenvolve segundo o paradigma de separação
corpo-mente. O corpo é matéria indisciplinada, caótica e infectada, pulsos elétricos e
químicos que devem ser ordenados pelos saberes disciplinares, enquanto a psique é entendida
como epifenômeno desta desordem. Ainda segundo Araiza & Gisbert,

Nossa vida física e psíquica parece - talvez agora mais do que nunca -
guiada por esta complexa rede de biotecnologias e sabedorias do corpo:
bioquímica da regulação das emoções, body building, dietética, cirurgia
estética, marketing e o circo de culto à imagem do corpo, para mencionar
apenas alguns temas. (2007, p.111)

Discursos dominantes sobre o corpo no Ocidente

O conhecimento sobre o corpo legitimado discursivamente em nossa sociedade organiza-


se em torno de práticas corporais normativas. O sentido do adoecimento de um corpo
subjetivado não costuma se apresentar, no campo médico, como uma indagação. O Ocidente,
mais fortemente a partir da modernidade, tem operado com a ideia de uma oposição entre
natureza e cultura, segundo a qual a afirmação do domínio da última sobre a primeira é
fundamental para o desenvolvimento da ciência. O corpo, aparecendo no discurso científico
como parte da natureza, não tem nenhum outro sentido que o de suporte da mente, podendo
assim ser modificado mais ou menos impunemente. Um ideal de corpo é criado, e todos os
outros corpos vivos habitantes do mundo devem se submeter para que se normalizem. É

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Jung & Corpo

rara a preocupação, nos discursos dominantes, de tratar de uma singularidade corporal no


sentindo de uma maior consciência de estar no mundo.
A tradição do pensamento ocidental dá origem a uma ciência do corpo que não o percebe
como fenômeno total, mas como superfície, com funções e estruturas observadas cada uma
em sua especificidade e não de maneira radicalmente sistêmica. Trata-se de um paradigma
no qual as estruturas e funções não são tomadas em conjunto, como parte de um todo que
é mais do que a soma das partes. Não se trata, obviamente, de um corpo em movimento,
superfície e profundidade simbólicas, significado deslizante, mas de um pedaço de carne
artificialmente dessimbolizado pela racionalização.
No entanto, na história da concepção ocidental sobre a relação entre a mente e a matéria,
até mesmo Descartes chega à conclusão lógica de que a separação entre corpo e mente não
poderia ser total, dado que havia alguns estados confusos em que era difícil determinar o
que era do reino da realidade mental (pensamento, vontade, virtude) e o que era do reino
dos corpos (respostas fisiológicas, atos reflexos). Ter fome, por exemplo, era algo que estava
conectado à vontade, mas também às necessidades fisiológicas. Assim, deveria haver algum
ponto concreto em que corpo e mente se tocavam. Para o filósofo, este ponto de contato
deveria estar na glândula pineal. Esta afirmação originou toda uma corrente de pensamento
acerca da relação mente corpo que tinha como conceito central o paralelismo psicofísico.
Segundo Araiza & Gisbert,

O paralelismo psicofísico - o marco sobre o qual se fundamentaram


os primeiros mapeamentos científicos da Psicologia Experimental - tem
seu ponto de apoio nos desenvolvimentos sobre a relação e a interação
entre o mundo físico e o mundo psíquico: ao terreno da realidade mental
devia corresponder sua devida equivalência na realidade "objetiva" dos
corpos. Este corpo objetivado em que se inscrevem processos psíquicos
paralelos é, sem dúvida, o sustentáculo do positivismo lógico e da psicologia
moderna. (2007, p.113)

A forma como o corpo é visto historicamente no campo da psicologia mantém íntima


ligação com esta tradição. A psicologia científica basear-se-á, em grande parte, na idéia de
causas biológicas subjacentes aos fenômenos e mais tarde na metáfora do corpo-computador,
na medida em que se considera que um estímulo é processado pelo organismo, para a obtenção
de uma resposta, de maneira linear. Neste tipo de arrazoado, o organismo, apesar de estar
presente como suposição, adquire uma transparência: pouco se sabe de seu funcionamento
em ação, mas muito se infere a partir do estímulo e da resposta. O corpo/organismo como
um sistema integrado desaparece, prevalecendo o determinismo das relações causais diretas
entre o estímulo e a resposta.

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Psicanálise e Psicologia Analítica: um outro corpo possível

No fim do século XIX a concepção dualista do paralelismo psicofísico estava em seu


auge. No entanto, sobretudo nos estudos de psiquiatria, percebia-se uma dificuldade de
afirmá-lo, já que este paradigma oferecia poucas respostas práticas em relação ao fenômeno
das afecções mentais. O corpo como causa dos males psicológicos foi posto em suspenso na
medida em que as teorias psicológicas se desenvolviam no campo. É neste contexto histórico
e científico que surge a Psicanálise.
Ao propor um corpo que é local da sexualidade, a teoria psicanalítica reintroduz o conceito
de corpo em relação à psique numa nova posição. A teoria falará de uma psique que é em
sua essência estruturada a partir de experiências corporais determinadas, em que não há o
paralelismo psicofísico descrito anteriormente, mas uma série de deslocamentos de sentidos.
O corpo passa a ser algo que se relaciona intimamente com a psique. O sujeito racionalista
e reflexivo é substituído pelo que podemos chamar de sujeito hermenêutico, ou seja, aquele
que se produz através de uma determinada relação entre o corpo e a linguagem. A tradição
psicanalítica daria conta do corpo a partir da significação da palavra, sendo o corpo o local
de uma libido identificada como energia sexual.
Por sua parte, C.G.Jung propõe um conceito de libido que não se identifica somente
com a energia sexual, compreendendo-a como energia psíquica e rejeitando a hipótese
repressiva que sustenta o campo psicanalítico. Para Jung, a libido caracteriza-se como
energia psíquica, que é o que nos move em nossas trocas com o mundo no caminho da
individuação. A regulação da energia psíquica se dá por meio das relações entre as diversas
instâncias da psique. Jung propõe que Ego e Consciência seriam formados por um Arquétipo
Central, ou Self, que seria "o coordenador das representações psíquicas a partir de todas
as experiências de vida" (Byington, 2008, p.55). O Arquétipo Central e outros arquétipos
se expressariam na vivência do sujeito através de símbolos. A relação sujeito-linguagem,
que vimos ser central na tradição psicanalítica, pode ser colocada como análoga à relação
sujeito-símbolo, usando o conceito de símbolo de C.G. Jung de acordo com as ampliações
propostas por Byington (2008). Examinaremos o símbolo como a manifestação do arquétipo
que, segundo o autor, se define como potencial virtual (Byington, 2008, p.50) inerente a
todos os seres humanos, por conta do próprio aparato corporal que portamos enquanto
espécie. Diz Jung:

Sempre deparo de novo com o mal-entendido de que os arquétipos


são determinados quanto ao seu conteúdo, ou melhor, são uma espécie de
"ideias" inconscientes. Por isso devemos ressaltar mais uma vez que os
arquétipos são determinados apenas quanto à forma e não quanto ao
conteúdo, e, no primeiro caso, de modo muito limitado. Uma imagem
primordial só pode ser determinada quanto ao seu conteúdo no caso de

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Jung & Corpo

tornar-se consciente e, portanto, preenchida com o material da experiência


consciente. ([1934] 2003, p.91)

Quando deste preenchimento de uma imagem primordial por aspectos da experiência


consciente, temos a emergência do símbolo, manifestação do arquétipo. Continuando com
Jung, o arquétipo configuraria uma pré-forma:

O arquétipo é um elemento vazio e formal em si, nada mais sendo do


que uma facultas praeformandi, uma possibilidade dada a priori da forma
de sua representação. O que é herdado não são as ideias, mas as formas, as
quais sob esse aspecto particular correspondem aos instintos igualmente
determinados por sua forma. ([1934] 2003, p.91)

O fato de o arquétipo ser estruturante para a experiência humana nos chama a atenção
para outro fato: esta experiência é, sem dúvida, uma experiência incorporada, que depende
da percepção organísmica da espécie. Humanos podem ter milhares de maneiras de perceber
o mundo, todas elas humanas, dependentes de um aparelho perceptivo que respeita uma
estrutura mais ou menos básica, arquetípica: partilhamos de um sistema nervoso, de uma
organização postural ereta, temos polegares opositores, desenvolvemos linguagem e cultura
porque assim nos permite nossa conformação filogenética. Nosso próprio corpo teria então
uma conformação arquetípica da espécie, já que nos é impossível perceber o mundo a partir
de outra estrutura filogenética que não a nossa. Desta maneira, a separação tradicional
entre psique e corpo parece-nos um tanto quanto artificial, e a polarização da psicologia
numa relação somente com um conceito de psique e símbolo desencarnados leva-nos a uma
prática científica incompleta, da mesma maneira que é incompleta a prática médica que não
leva em conta o corpo como aparato simbólico. Jung afirma que:

Como a psique e a matéria estão encerradas em um só e mesmo mundo,


e além disso se acham em contato entre si, e em última análise se assentam
em fatores transcendentes e irrepresentáveis, há não só a possibilidade, mas
até mesmo uma certa probabilidade de que a matéria e a psique sejam dois
aspectos diferentes de uma só e mesma coisa. ([1943] 1981, p 220)

Assim, o corpo humano pode ser pensado como arquetípico, na medida em que se comporta
como pré-forma que conforma profundidades e superfícies polissêmicas, jamais se exaurindo
em uma definição ou vivência única e estanque. Por mais que tentemos uma definição
específica que reduza o corpo à matéria manipulável, ele insistentemente nos escapa. Diz
Le Breton:

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Jung & Corpo

De uma sociedade a outra, as imagens que tentam reduzir culturalmente


o mistério do corpo se sucedem. Uma miríade de imagens insólitas delineia
a presença em pontilhado de um objeto fugaz, inapreensível e, no entanto,
aparentemente incontestável. (2011, p. 31)

Byington (2008, p.56) sustenta a visão de que o que chamamos de objetivo, concreto,
anatômico e denso, como a carne, o sangue e os processos fisiológicos humanos, podem e
devem ser entendidos como tão simbólicos quanto as representações, os signos e a linguagem,
pois eles só podem ser expressos através da linguagem simbólica. Não há, no âmbito humano,
a possibilidade de uma objetividade absoluta que dê sentido para a matéria orgânica por
intermédio de outra coisa que não a percepção e a linguagem, e toda percepção é percepção
de um sujeito. Byington propõe que se incluam as representações objetivas e as representações
subjetivas como dois aspectos que fazem parte do mesmo mundo. Desta maneira, o oxigênio
e o sangue são tão simbólicos quanto uma emoção ou experiência de vida, e a medicina é
tão simbólica quanto a arte. Le Breton (2011, p.18), por sua vez, coloca que "O corpo é
uma construção simbólica, não uma realidade em si", pois a ideia mesma de realidade em si
é filosoficamente insustentável quando assumimos que toda percepção possível da realidade
é realizada por um sujeito. Nada pode ser em si, tudo é no mundo e para alguém, e é,
portanto, atravessado pelo símbolo e pelo arquétipo necessariamente.
Considerando tais conceituações, podemos afirmar que psique e corpo não se colocam
em relação direta de causa e efeito, pois são parte e manifestação do mesmo tecido
organísmico simbólico em suas várias densidades, em um fluxo constante. Neste sentido
podemos falar de psique e corpo como um organismo, entendendo organismo como um
sistema complexo com elementos diferenciados em termos de texturas, concretudes e
abstrações, totalmente integrados. Carne e produção de sentido, coração batendo, sonhos,
sensações, emoções e pensamentos fazem parte do mesmo sistema simbólico. Pensarmos
em uma leitura simbólica do corpo é pensarmos em um corpo em movimento, o símbolo
parte e produção da carne-psique, carne-psique se produzindo a partir dos símbolos.
Este corpo, pleno de ires e vires através do tempo e do espaço, este corpo que escuta, vê
e performa os símbolos que produz, produz assim Consciência, ampliando os diálogos
possíveis entre Ego e Self. A esta ampliação dialógica, aprofundamento da superfície,
podemos chamar de habitação do corpo. Trata-se da busca de uma consciência percebida
como encarnada, que se produz a partir do organismo sistêmico corpo-mente-psique-espírito,
e que ao se produzir, produz a maturação deste mesmo organismo num movimento incessante
de individuação.

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Corpos-em-habitação e corpos desabitados

O processo de habitação deste corpo-psique em direção ao seu entendimento como


organismo complexo, subjetivado e subjetivante, é uma tarefa a cumprir, uma odisseia que
exige comprometimento. Bordo fala do "corpo como campo de batalha" (2003, p.263),
onde se encontram as forças de afirmação do sujeito em relação às forças sociais que
disciplinam o corpo. Numa perspectiva simbólica, podemos acrescentar às forças de afirmação
do sujeito e às forças sociais, as forças arquetípicas que regem o organismo/sistema e seu
relacionamento com o eu e com o mundo. Um corpo desabitado estaria identificado ao
corpo dos saberes disciplinares e ao projeto moderno de ciência que alija a mente e a psique
da carne que a produz, e aliena a carne de qualquer possibilidade de simbolização, enquanto
que o corpo-em-habitação pode ser definido como o processo contínuo de maturação
organísmica em direção à individuação, necessariamente performado pelo sujeito ativamente,
em sua constante produção e reorganização de tecidos e símbolos. A este respeito Keleman
e Campbell afirmam:

O que nossos corpos dizem? E o que eles estão nos contando? A


imaginação humana está enraizada nas energias do corpo. E os órgãos do
corpo são os determinantes dessas energias e dos conflitos entre os sistemas
de impulso dos órgãos e a harmonização desses conflitos. (2001, p. 30)

A escuta deste corpo que diz, e o diálogo que pode se estabelecer entre o sujeito e suas
sensações como estruturantes da relação entre Ego e Self, sujeito e mundo, é algo que deve
ser aprendido, exercitado, buscado. Está dado apenas como possibilidade a ser percorrida, e
indica um caminho de produção de Consciência que pode ser trilhado em direção à
individuação. Algumas técnicas corporais, sobretudo as que trabalham com o
desenvolvimento da sensopercepção, podem servir como instrumentos para o sujeito que
embarca na odisseia de se perceber como organismo produtor de símbolos.
À configuração de um corpo por meio da experiência corresponde a configuração de
sentimentos, emoções e sensações, organizados em determinados padrões de ação ou inação
no mundo. O ser humano destaca-se das outras espécies por, ao nascer, apresentar um
estado acentuado de imaturidade nervosa e corporal. Isto determina um longo período de
dependência do organismo em relação aos outros organismos mais maduros. Ao contrário
dos gatos ou cavalos, que pouco depois de seu nascimento já conseguem desempenhar uma

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série de atividades e reagir a estímulos do meio de maneira mais ou menos fixa, o ser humano
precisa, até uma idade bastante avançada, aprender pelo contato com o Outro. Cada sujeito
desenvolverá assim um padrão de reações corporais/psíquicas, em decorrência do ambiente
e do contato com os cuidadores. Passarei a chamar tais reações de organísmicas/sistêmicas,
no sentido de uma imbricação essencial entre psique e corpo, procurando evitar a cisão
entre estas duas instâncias também no nível do discurso.
Feldenkrais (1985, p.77) coloca que não existe mente, inconsciente e vontade sem matéria
- tais conceitos descrevem funções, não existem antes que a ação ocorra, descrevendo assim,
sobretudo, um modo de agir. O autor coloca que "com relação às funções humanas superiores,
o cérebro é um espaço vazio a ser preenchido por intermédio da experiência corporal sensorial
e motora." Ainda segundo o autor, a relação corpo-mente/psique pode ser compreendida
da seguinte maneira: ao nascer, o ser humano tem apenas o sistema nervoso vegetativo e a
parte do cérebro relacionada aos movimentos reflexos em atividade plena. Trajetos e padrões
das funções superiores serão formados - para isso será necessária a utilização dos músculos
e dos sentidos. Assim que as conexões e trajetos vão sendo formados, o invólucro material
do soma fica aparentemente menos essencial, na medida em que estes trajetos tendem a ser
automatizados, e um trilhamento é estabelecido pela repetição. Os trajetos e padrões, uma
vez trilhados, carregam a lembrança de todas as sensações, percepções e ações. O sujeito
passa a ser capaz de formar novos padrões por meio da reorganização dos padrões já
existentes, podendo assim pensar, imaginar e inventar. Assim, o organismo/sistema apresenta-
se com múltiplas potencialidades de produção simbólica, e a relação quântica entre órgãos,
pensamentos, emoções e sensações se estabelece. Vemos surgir um aparelho simbólico que
conta e reconta continuamente uma história, com zonas de luz e sombra. Escreve Keleman:

Nós somos parte de uma vida biológica. Ao sermos concebidos,


herdamos uma constituição de endomorfos viscerais, mesomorfos
musculares ou ectomorfos sensoriais. Nossa forma corporal é um
poderoso símbolo emocional do nosso self, como uma imagem mítica
que nos pode ajudar a compreender nossos papéis e a multiplicidade de
modos pelos quais nos identificamos com eles. (2001, p.31)

Educação Somática, corporificação e individuação

Os símbolos emergem de toda percepção desenvolvida sobre a sensação e o aprendizado


de senti-la e registrá-la em um mundo em que a rapidez do fluxo de informação e produção
de imagens descorporificadas é tal que tendemos a permanecer destreinados em relação aos
nossos próprios órgãos dos sentidos. Dizem Keleman & Campbell:

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O nosso corpo faz uma imagem de si mesmo no seu cérebro. Isso é


chamado de imagem corporal ou imagem somática. A maneira como a
expressão emocional do nosso corpo aparece para os outros também é
uma imagem somática. A mitologia apresenta imagens, como as do
acadêmico, do padre, do criado. Quando vivemos mediante essas imagens
descorporificadas ou posturas somáticas vazias - papéis que não são
enraizados nas emoções do nosso corpo - falta a elas a força emocional
para nos dar sustentação. Essas imagens são inautênticas por que mal
corporificadas. (2001, p.60)

O trabalho corporal da educação somática, que é verdadeiramente uma educação para o


processamento da sensação, é uma das possibilidades que nos auxilia neste processo de
emergência e integração simbólicas que gera a ampliação da consciência nos caminhos da
individuação. As vivências corporais (e com corporais aqui queremos dizer vivências que
colocam o organismo em ação ou recepção motora ampliadora de consciência) têm o
potencial de trazer a dimensão do sentido, do vivido e do intuído, gerando imagens que,
trabalhadas em um processo terapêutico, influem nas narrativas encarnadas de si que o
sujeito pode tecer. O trabalho corporal traz o sujeito para mais perto da percepção e da
integração dos mitos que dizem respeito ao seu corpo. Este corpo consciente se torna assim
um corpo-em-habitação, um corpo em processo de subjetivação, corpo-em-corporificação,
radicalmente diferente do corpo desabitado e manipulável da ciência. O corpo-em-habitação
passa a ser um organismo/sistema que se concretiza, que se coloca vivo e ciente de suas
dores, prazeres, alegrias e tristezas, um organismo que sustenta o próprio processo de
maturação.
Este corpo-em-habitação que retorna sobre si mesmo também está presente em um espaço
social determinado e em um momento histórico, implicando-se no sentido maior de pertencer
a uma sociedade na qual age como sujeito. O cuidado-de-si que se constela invoca também
um agir mais ético em relação aos outros seres e entes do mundo. A integração das zonas de
sombra e a ampliação da consciência de si trazem a perspectiva de uma habitação do mundo
não como lugar a ser dominado e dilapidado, mas como lugar de vida de um organismo/
sistema em relação. A natureza, a matéria, o corpo, podem ser propostos como sujeitos de
integração e não mais como objetos de dominação.
Os variados trabalhos corporais que podem servir a este projeto numa dimensão
terapêutica têm como característica comum o trabalho com a sensação. Podemos enumerar
entre estas técnicas a Calatonia, os Toques Sutis, as diversas técnicas de relaxamento e de
massagem acompanhadas de trabalho verbal, os variados métodos de Educação Somática
(o Método Feldenkrais, a Técnica Alexander, a Eutonia), a dança espontânea, a dança
terapia em suas várias vertentes, a Coordenação Motora de Mézières, a Técnica Klauss
Viana e o trabalho formativo de Stanley Keleman. Combinadas à psicoterapia verbal, que
se incumbe de integrar os símbolos vividos através destes métodos, tais técnicas podem

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nos ajudar a compreender todo o processo simbólico de maneira mais vívida, encarnada,
concreta. O corpo alienado de presença e afastado da consciência de seu processo de
corporificação tende a ser fonte de um excesso de excitação interna que pode causar
angústia. O que é a angústia além de uma sensação corpo-mental não integrada e que
foge de uma denominação através das palavras? Dialogar com estas sensações inomináveis
através da promoção de contato com as mesmas é o que buscam muitas abordagens
corporais. Re-aprender a perceber sensações e discriminá-las parece ser um caminho
interessante, que leva à mudança.
Para cuidar de si e alterar determinações e padrões construídos ao longo da vida, todo
um método de desenvolvimento da percepção das próprias ações deve ser desenvolvido.
Assim, percebendo sensorialmente a maneira usual pela qual fazemos as coisas, poderíamos
aventar a possibilidade de fazê-las diferentes, reconstruindo a nós mesmo e,
consequentemente, reconstruindo o espaço circundante. Se voltarmos à proposição do corpo
como fonte de produção de símbolos, cada deslocamento em direção a uma nova maneira
de fazer gera novos símbolos, que necessitam ser integrados. O que se abre em todas as
abordagens a que denominamos corporais é a possibilidade de a pessoa se perceber a si
mesma, através de algo que realiza, através de uma ação ou da recepção de uma ação (no
caso de toques e massagens). A maneira pela qual nos movimentamos, a maneira pela qual
portamos nosso corpo, recebendo estímulos sensoriais e os devolvendo ao mundo, é análoga
à maneira pela qual narramos a nós mesmo em diversos contextos, terapêuticos ou não.
Nosso corpo é nosso mito em ação.
Como lidar com os símbolos produzidos quando exercitamos nosso organismo/sistema?
As sensações produzidas num processo de trabalho corporal de educação somática precisam
ser processadas pelo organismo/sistema para que o estranhamento produzido pelas novas
percepções não cause dissonâncias não digeridas. Necessitamos de um trabalho simbólico
integrador das sensações.
Para lidar com este aspecto do trabalho sobre o corpo, a proposta da analista junguiana
Marion Woodman (2002) nos parece interessante. Iniciando sua obra centrada em distúrbios
alimentares como a Bulimia e a Anorexia, Woodman propõe o corpo como uma espécie de
inconsciente da cultura. Numa cultura patriarcal em que o corpo deve ser disciplinado,
manipulado e coisificado, os distúrbios alimentares apareceriam como exigência de integração
da sombra. A autora coloca que esta é uma sombra que diz respeito ao feminino, que seria
definido como todos aqueles conteúdos não-valorizados, marginalizados, referenciados numa
concepção que extrapola as definições patriarcais restritivas do ser-mulher, da cultura e do
progresso.
Para a autora, homens e mulheres se relacionariam com complexos simbólicos femininos
positivos/femininos negativos e masculinos positivos/masculinos negativos em sua
constituição, e todos estes elementos podem estar mais ou menos integrados tanto em homens

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quanto em mulheres. A autora reitera que é o corpo das sensações, como feminino não
integrado na cultura patriarcal ocidental, que deve ser trazido para o âmbito terapêutico,
não como suporte de uma mente reflexiva, não como enigma a ser decifrado a partir de uma
chave interpretativa racionalista, mas como sujeito participante, em movimento, continente
do sagrado.
O processo terapêutico pode ser visto como um ritual de integração do corpo-mente em
direção às experiências de transcendência, pois apesar de podermos conceber
conceitualmente um organismo/sistema integrado, na vivência diária da cultura ocidental
certas cisões permanecem. A terapia aparece como o lugar do casamento sagrado entre o
masculino positivo, realizador, e o feminino positivo, cuidador. Mas, para se chegar a este
casamento, matéria e espírito precisam dar-se conta de sua imbricação através dos símbolos,
e tanto o masculino negativo (mensageiro da rigidez, do progresso a qualquer preço) quanto
o feminino negativo (que envenena através da impotência e do medo do abandono) devem
ser reconhecidos e digeridos.
Este não é um processo fácil ou rápido, e passa pelo reconhecimento de comportamentos
compulsivos e padrões tão antigos que parecem eternos e imutáveis. O casamento só pode
acontecer se o corpo-vaso-feminino estiver pronto para receber a força do espírito-conteúdo-
masculino sem se quebrar. Por isso, Marion Woodman utiliza-se do trabalho simbólico com
o corpo, principalmente através de técnicas que envolvem o movimento livre e a dança.
Pôr os símbolos em movimento é uma maneira de integrá-los na carne, no saber fazer
não abstrato do corpo, criando novas cadeias de significado que permitem o reconhecimento
de uma narrativa sobre o vaso sagrado que poderá receber então seu conteúdo. Este
casamento, um casamento que repara o divórcio ocidental entre corpo e racionalidade, pode
proporcionar ao indivíduo uma orientação centrada no eixo Ego-Self, que busque não mais
proceder através do poder, mas sim através da integração consigo e com o coletivo.
Num primeiro momento, Woodman propõe que o objetivo do trabalho terapêutico é
buscar trazer a matéria à luz. Segundo a autora, a matéria-corpo pode estar identificada com
a sombra, muito em decorrência do feminino negativo experimentado no período de
dependência infantil. Como em nossa cultura o feminino positivo costuma ser mal integrado,
é comum que a função materna seja exercida por pessoas a quem também falta esta intimidade
com o próprio corpo, e que, portanto, estão mais identificadas com o poder do patriarcado
do que com o feminino positivo gerador. Diz a autora:

Quando a matriz maternal está comprometida, a criança não consegue


se enraizar em seu próprio corpo, e por mais que se esforce tentando
encontrar segurança na mente sempre será, em algum nível, dependente
dos outros e, portanto, sentindo o medo de ser abandonada. A psique
fará tudo o que estiver a seu alcance para oferecer bases seguras para a

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cura se dar, mas se as mensagens provenientes do corpo forem


experimentadas como contraditórias em relação às que os sonhos enviam,
então o processo de retificação não poderá ocorrer. A sombra está no
corpo, longe demais da consciência para aparecer nos sonhos, e não há
Sofia consciente o bastante para fazer a ligação entre corpo e psique. (...) A
sessão de análise ou o trabalho prático com o corpo podem servir de
espaço para que o amor comece a se incorporar e inverta o processo, da
matéria em Mater. (Woodman, 2002, p 120)

Assim, o trabalho corporal aparece como possibilidade de discriminação do feminino


negativo, ao mesmo tempo em que, através das sensações experimentadas, abre a
possibilidade de constituição tanto de um feminino quanto de um masculino positivos que
tornem o vaso sagrado forte o suficiente. Num segundo momento, a percepção da potência
positiva do herói pode se dar, na medida em que a matéria, fora da sombra, integrada, libera
a energia necessária para novos movimentos. Num terceiro momento, o feminino positivo
experimentado no primeiro momento e o masculino positivo podem se encontrar num
casamento sagrado que proporciona a reintegração do corpo-mente-espírito em direção à
individuação e à transcendência. Coloca a autora:

A consciência corporal dissipa aos poucos o mundo sedutor da fantasia.


Enquanto a mulher permite livre curso à fantasia, ela é como Andrômeda
no mito de Perseu, acorrentada à rocha da mãe, esperando para ser sacrificada
ao mostro demoníaco, o amante. Longe de fazer qualquer coisa para salvá-
la, este exige a vida dela em sacrifício. A massa inerte da rocha é o outro lado
do demônio no mar - ambos estão contaminados pela arrogância e pelo
superdimensionamento. Ao se recusar a ser apanhada numa teia de fantasias
infrutíferas, a mulher se abre à sua própria humanidade; tendo se localizado
no Agora, ela se abre ao mesmo tempo ao divino. Armada com a espada
do discernimento, ela agora sabe o que o momento exige e se solta para
viver sua própria vida. (Woodman, 2002, p. 223)

A analista refere-se à mulher, mas devemos perceber que este não é um processo exclusivo
do sexo feminino, mas algo que diz respeito a femininos e masculinos simbólicos.

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Corporificando, progredindo, cuidando

Discriminando padrões e maneiras de agir através do trabalho corporal, trazendo assim a


possibilidade de mudança e integrando-as numa narrativa mítica do si mesmo, chegamos à
ideia da reintegração do corpo no processo de individuação. Tal reintegração gera uma
percepção mais acertada sobre o organismo/sistema e pode promover um habitar o mundo
pleno, que leve em consideração as múltiplas dimensões da experiência humana.
Ao propormos uma abordagem simbólica do movimento em relação ao corpo, tornando-o
inseparável da mente e do espírito e denunciando o divórcio racionalista que tem nos trazido
uma série de problemas tanto na perspectiva do indivíduo como na perspectiva social, não
podemos esquecer que buscamos mudanças em um mundo de discursos de poder que é
predominantemente adepto de tal divórcio. Nossa medicina, nossa maneira de pensar a ciência
e muitas vezes a própria psicoterapia baseiam-se em premissas cartesianas - e acabamos, no
mais das vezes, refutando algumas respostas possíveis, pois continuamos a fazer as perguntas
erradas. Cada pergunta que fazemos e cada resposta que obtemos são também determinadas
pelo entorno em que vivemos, e pelos jogos de poder que ocorrem neste entorno.
A proposta de inclusão do organismo/sistema na relação terapêutica como algo que
deveria sempre ter estado lá, já que corpo-mente-espírito são partes indivisíveis e em
movimento do fenômeno organísmico/sistêmico humano, aparece como resistência a uma
maneira cada vez mais especializada e tecnológica de ver no corpo e na mente objetos de
estudo passíveis de classificações estanques, e nas emoções, angústias e aflições,
epifenômenos de reações químicas cerebrais que podem ser corrigidos ou eliminados a partir
de outras reações químicas promovidas através da ingestão de drogas sintéticas.
Aqui não negamos a utilidade dos saberes médicos, ou da farmacologia, ou do que a
racionalidade pode nos proporcionar em termos de conhecimento científico. Mas gostaríamos
de apontar que não basta ver a estrutura ou a função fora de um sistema integrado a outros,
e que o conhecimento científico e o progresso que pudemos atingir só poderá se realizar
plenamente se puder incorporar uma visão de todo, promovendo, no coletivo, o casamento
sagrado entre progresso e cuidado. Só assim conhecimento se tornará saber e saber, sabedoria.
Só assim a ciência, a terapia e a medicina poderão sair do âmbito do poder e ir em direção à
promoção do saber e do cuidar de si.

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Referências Bibliográficas

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In Psicologia: Teoria e Pesquisa, Jan-mar 2007, vol 23, n.1, p. 111-118.
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University of California Press, 2003.
BYINGTON, C.A.B. (2008). Psicologia simbólica junguiana: A viagem de humanização do cos-
mos em busca de iluminação. São Paulo: Linear B, 2008.
FELDENKRAIS, M. (1985). O poder da autotransformação. São Paulo: Summus Editorial.
LE BRETON, D. (2011). Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Ed. Vozes, 2011.
JUNG, C.G. (1934). Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.
_________ (1943). Psicologia do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1981.
KELEMAN, S & CAMPBELL, J. (2001). Mito e corpo. São Paulo: Summus Editorial, 2001.
WOLF, N. (1992). O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contras as mulheres.
Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
WOODMAN, M. (2002). O vício da perfeição. São Paulo: Summus Editorial, 2002.

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EROS, PODER, LIBERDADE E ÉTICA1

Maria Helena R. Mandacarú Guerra2

Resumo

O amor, função estruturante fundamental para o desenvolvimento do indivíduo e da


cultura, ocupa lugar de destaque em diversos mitos. Aqui são abordados três deles, nos
quais o amor vem junto com a necessidade de liberdade e também com o poder e a ética.
O primeiro mito vem da Grécia. O nascimento da deusa do amor, Afrodite, ocorre graças
ao desejo libertário de Cronos, que castra Urano. Vindo da Índia, o mito de Radha traz a
vivência de um amor extático e pleno pela divindade. O mito de Cristo transforma o deus
do Antigo Testamento, marcado pelo poder defensivo, em um deus de amor e compaixão,
que traz a grande libertação por meio do nascimento de uma nova consciência.
Pela amplificação destes três mitos é discutida a importância do poder, da liberdade e da
ética como funções estruturantes que contribuem para que o amor seja vivido criativamente
dentro da alteridade.

.-.-.-.-.-.-.-.-

1
Trabalho apresentado no V Congresso Latino Americano de Psicologia Junguiana. Santiago, Chile,
setembro de 2009.
2
Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, Psicoterapeuta junguiana,
Professora de Psicologia Analítica no curso Jung e Corpo, especialização em Psicoterapia Analítica e
Abordagem Corporal, do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo.
e-mail: mariahelenarmguerra@hotmail.com

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Jung & Corpo

Eros, diz Jung, "não é a totalidade de nossa natureza interior, embora seja, pelo menos,
um de seus aspectos essenciais" (Jung, [1916] 1953, par. 33).
Profundamente associado a Eros, o amor, como uma função estruturante de grande
importância para a vida do indivíduo e da coletividade, é tema de diferentes mitologias,
ponto central de várias religiões, inspiração de muitos poetas. É ele o responsável por grande
parte dos dramas e sofrimentos humanos, e também por vivências de bem-estar, plenitude
e bem-aventurança.
Componente fundamental para o desenvolvimento e a estruturação da personalidade
desde o nascimento, o amor, realizado ou frustrado, nos acompanhará por toda a vida.
Sendo o amor um tema de extrema abrangência, estas reflexões ficarão circunscritas ao
amor de alteridade, àquele vivido dialeticamente em sua interação com o poder, a liberdade
e a ética. Para articular estas quatro funções estruturantes, lançarei mão de algumas passagens
mitológicas.
Antes, porém, de iniciarmos esta caminhada, é preciso situá-la dentro da moldura teórica
da Psicologia Simbólica Junguiana, que propõe que todo símbolo e também qualquer função
da vida podem estruturar a consciência ou então formar a sombra. Se os conteúdos do
símbolo, assim como os da função estruturante, forem elaborados de maneira a contribuir
para o desenvolvimento da personalidade e para o autoconhecimento, formarão a consciência.
No entanto, se ficarem fixados, presos num complexo patológico, originarão a sombra
(Byington, 2008). Assim, em princípio, o amor, o poder, a agressividade, a esperança e
todas as demais funções estruturantes poderão conduzir à luz ou à sombra.
Isto posto, passemos ao nascimento de Afrodite.

Afrodite

Considerada a Deusa do Amor, Afrodite teve seu aparecimento ligado intimamente à


relação pai-filho. No caso, uma relação disfuncional, na qual o pai (Urano) assume o total
poder e controle sobre a vida dos filhos, condenando-os sistematicamente a voltar para
dentro da Terra Mãe (Geia), de onde haviam saído. Este comportamento filicida ensejou
um ato de violência imensa, perpetrado por seu filho caçula - Cronos. Sendo esta a maneira
de se libertar e a seus irmãos, Cronos castra o pai, tirando-lhe a um só tempo a fertilidade
e o poder de mando. No entanto, o sangue de Urano conservou ainda seu poder gerador.
Parte dele cai no mar, e da espuma surge Afrodite. Do sangue vertido sobre a terra
originaram-se as Fúrias.

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Esta passagem mitológica, resumida tão brevemente, envolve inúmeros símbolos e funções
estruturantes que podem nos auxiliar em nossa circumambulatio, nossa caminhada ao redor
do tema do amor.
O fato de o nascimento de Afrodite estar diretamente associado à castração de Urano dá
ao gesto de Cronos um significado paradoxal, pois, ao mesmo tempo em que castra o pai,
leva avante sua fertilidade. Cronos busca se livrar, e aos irmãos, da arbitrariedade do pai e
da morte que ele impingia à própria prole, na tentativa de perpetuar a relação puramente
instintiva e dominadora que possuia com Geia. O relacionamento entre Geia e Urano foi
marcado por um exercício de poder defensivo. Vejamos por quê.
Urano representa a força ativa, poderosa, fecundadora e penetradora, enquanto Geia é o
princípio receptivo, passivo, fertilizado e submetido. Embora estes deuses sejam expressões
de arquétipos presentes na psique tanto do homem como da mulher, culturalmente, muitas
relações conjugais se pautaram - e ainda se pautam - pelo domínio e até mesmo tirania e
violência por parte do homem e a resignação, conformismo e masoquismo por parte da
mulher, pois a consciência coletiva de dominância patriarcal identificou o poder e o mando
com o primeiro, que passou a exercê-los muito mais do que a mulher, tradicionalmente mais
passiva e submissa.
Ao se insurgir contra Urano, Cronos reproduz este mesmo padrão de consciência, expresso
defensivamente pela violência com que impõe sua força. Nisso não difere do pai - e, de fato,
Cronos fará com seus filhos o mesmo que Urano. Há, porém, algo de novo, que emerge do
ato libertário: do pai castrado, ferido, de sua dor, de seu sangue, nasce o amor na forma de
uma deusa. O amor surge, portanto, com a dor, a ruptura, e, especialmente, com a busca de
liberdade.
No amor, a separação, seja pelo distanciamento entre amante e amado, pela impossibilidade
da união contínua, pela ruptura definitiva e fatal, ou mesmo pela diferenciação entre o ego
e o outro, é tida como um elemento que exacerba o sentimento amoroso, em função da falta.
A ausência aumenta a ânsia pelo ser amado e, ao buscá-lo constantemente, às vezes
obsessivamente, o amante se torna possuído pelo amor.
Mas, para que Afrodite viesse ao mundo, foi preciso que o sangue de Urano caísse no
mar. Temos assim, para o nascimento de Afrodite, a contribuição de três forças: Urano,
Cronos e Poseidon, deuses do céu, da terra e do mar. A Deusa do Amor é, assim, formada
pela contribuição de todos eles, o que indica sua abrangência.
Como o céu, abóboda infinita que paira constantemente sobre a Terra, o amor nos dá a
visão do incomensurável. Ao olharmos para o céu, quando vivemos um grande amor,
alcançamos emocionalmente as estrelas. O céu e o amor despertam nossa fantasia, intuição,

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imaginação e abstração infinita. Por sua distância, o céu foi também associado à morada dos
deuses, à outra vida, ao mundo do além, à espiritualidade. De fato, quando somos tocados
pelo amor, o mundo inteiro se transforma e se amplia. O céu e as estrelas acompanham os
amantes, enlevando-os e deixando-os, muitas vezes, "com a cabeça nas nuvens", o que nos
lembra que a espuma é considerada a "nuvem do mar".
O mar, outro elemento presente no nascimento de Afrodite, representa as grandes águas
em movimento. Segundo a antiga tradição indiana, a criação surge de um corpo infinito de
água primordial. Em seu estado não refinado, este mundo é caótico ou, ao menos, sem
forma. A existência ordenada ocorre apenas quando essa massa aquosa é de algum modo
agitada, processada ou refinada de tal maneira que forma e crescimento ocorrem (Kinsley,
1986). Por ser capaz de dissolver, misturar, envolver, submergir, a água associa-se às emoções
do amor, o qual pode provocar o perder-se no outro, a sensação de fusão, de aniquilamento,
de mistura, mas também de empatia, de capacidade de sentir com o outro, de ter compaixão.
Representando o ar na água, a espuma é ainda mais difícil de ser retida do que a água. A
espuma surge do movimento da água do mar: quando a onda alcança seu auge e se quebra,
o movimento começa a diminuir e o mar a se tranquilizar, aí surge a espuma. Como a
espuma, o amor não aparece na estagnação. Surge com o poder do movimento, da ousadia,
da transformação. Como a espuma, ele também não pode ser aprisionado, e por isso, em sua
expressão criativa, é, mais uma vez, associado à liberdade e à vida espiritual.
O sangue, elemento ígneo, associado à força vital, traz, em seu aspecto criativo, a vibração,
o calor e a dimensão passional do amor. Mas o sangue de Urano originou também as Fúrias,
mostrando como o mesmo elemento é capaz de gerar símbolos tão diferentes, como a
afetividade e a agressividade.
De Cronos, o amor herdou o desejo libertário. É verdade que o gesto de Cronos pode ser
considerado defensivo - como o é o amor castrador. No entanto, a castração de Urano foi
feita por Cronos com a foice que lhe foi dada por sua mãe, Geia, e que é símbolo da morte,
mas também da colheita e, por isso, do renascimento. O cortar traz a possibilidade de
discriminar entre repressão e fertilidade, de distinguir entre a morte como estagnação e
paralisia, daquela que abre caminho para a transformação e o renascimento - a vida que
surge da espuma do mar.
Este mesmo simbolismo é encontrado no hinduísmo, no mito da batedura do oceano de
leite, feito que uniu deuses e demônios num mesmo objetivo: conseguir o elixir da imortalidade
(soma). Das ondas deste oceano emergiu Lakshmi, esposa de Vishnu e deusa da prosperidade,
representando a transformação milagrosa das águas sem forma em vida orgânica (Kinsley,
1986).

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Radha

Uma das correntes de yoga, na Índia, é a bhakti yoga. Esta é uma yoga de devoção mística,
cujo caminho é o do amor, via considerada ideal para aqueles que cultivam a busca de
transcendência e de totalidade através de suas emoções. O centro da devoção é representado
por Krishna, o deus do amor. Em sua história mítica, esse deus é amado por várias pessoas:
seu irmão, seus amigos, seus pais, seus discípulos, as gopis (pastoras), o que enseja a descrição
de vários tipos de amor. Dentre todos, no entanto, o amor considerado mais sublime e
sagrado é o amor que Radha tem por ele.
Radha é a pastora mítica que, nas florestas de Vrindavan e às margens do rio Jamuna,
participava dos jogos de amor de Krishna. Símbolo pertencente a uma cultura na qual as
mulheres existem socialmente em função de seu vínculo com os homens, ou seja, como
filhas, esposas ou mães, Radha é a expressão máxima do amor, por ser capaz de transgredir
todas as regras e ultrapassar barreiras morais e sociais convencionais, deixando em segundo
plano todos os costumes, afazeres e deveres para se dedicar a amar Krishna. Esta pastora,
que por sua relação com o deus é também divinizada, não expressa mitologicamente
características da Grande Mãe, nem é tida como uma deusa terrível, ou da vegetação, ou
associada à morte e renascimento; tampouco auxilia a vencer obstáculos, propicia saúde
ou qualquer tipo de benesse. Ela não possui nenhum atributo que não seja associado à
sua capacidade de amar, de viver um amor conjugal extático e de devoção, que lhe impele
a colocar o amor pela transcendência acima de tudo. Seu símbolo nos mostra um amor
que não se deixa aprisionar por nenhuma regra ou tradição: Radha é completamente livre,
e sua única função é amar Krishna devotada e plenamente. Por isso, em sua expressão
mais transcendente, sagrada e profundamente humana, Radha é retratada como amante
de Krishna, tendo com ele um relacionamento íntimo, direto, aberto, não hierárquico, e
sendo amada por ele da mesma maneira. A liberdade que ambos possuem para amar e ser
amado reflete-se em seus jogos amorosos, suas brincadeiras e danças. O Krishna pastor
não tem nenhuma missão, nenhum dever, que não seja amar e ser amado, e ser livre,
alegre e espontâneo. A angústia gerada pelos momentos de separação, pelos
desentendimentos, brigas e ciúmes, só faz aumentar ainda mais o amor e o desejo que
sentem um pelo outro.
Há alguns séculos, teólogos hindus discutiram para saber se Radha era solteira ou casada.
Venceram aqueles que a consideravam esposa de outro. Assim, seu amor por Krishna seria
maior, pois ela teria que transgredir todas as barreiras, e arriscar-se mesmo a ser proscrita
socialmente, para se transformar em sua amante. Ao fazê-lo, foi livre para colocar o amor
pela transcendência acima de tudo.

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Jung & Corpo

O Mito de Cristo

Outro mito, mais próximo de nós, é o Mito de Cristo, que introduz no Ocidente a
possibilidade de se aproximar de Deus através do amor. O deus do Antigo Testamento, deus
patriarcal conhecido por seu poder e capacidade de punir e infligir medo à humanidade, dá
lugar a um deus de alteridade, e o caminho para se chegar a ele é o do amor, da verdade e da
compaixão (Byington, 1983). É Cristo que ensina a dar a outra face, a amar ao próximo
como a si mesmo, ensinamento tão antigo, tão conhecido e tão difícil de ser posto em
prática, e que, por isso, exige um exercício constante dentro da alteridade.
Com Cristo, o amor de alteridade se estende para a vida, para o outro em seu sentido
mais amplo, abarcando o diferente, o pobre, o doente, o desvalido, a prostituta, o pequeno,
o excluído, as crianças, a natureza, os animais. É a proposta de um amor pleno e de compaixão,
que inclui os marginalizados, os banidos, os sofredores, tão bem expresso no Sermão da
Montanha. É um amor que ultrapassa convenções, formalidades, hierarquia, almejando a
grande libertação, que é o nascimento para uma nova consciência, capaz de morrer e renascer
a cada dia. Temos, na Teologia da Libertação, um exemplo deste amor libertário.

Considerações Finais

Nos mitos, assim como em situações importantes da vida, inúmeras funções estruturantes
estão envolvidas: poder, liberdade, transgressão, dor, sofrimento, perda, nascimento, amor,
união, separação, vida, morte etc.
Ao nos aproximarmos dos significados simbólicos trazidos por elas - e aqui nos limitaremos
àquelas funções estruturantes que são o tema deste trabalho: amor, poder, liberdade e ética
- é importante distinguirmos entre seus aspectos criativos e defensivos.
Os mitos abordados ilustram diferentes possibilidades de se lidar com estas funções. No
entanto, em todos eles, o amor é associado à liberdade. Foi o desejo de se libertar e a seus
irmãos que fez com que Cronos castrasse Urano, e daí surgir Afrodite. Radha, por sua vez,
exerce plenamente sua liberdade ao transgredir as regras sociais convencionais e se entregar
totalmente ao amor pela divindade. Cristo se insurge contra a moral coletiva, simbolizando
o amor libertário, capaz de, através do sacrifício e da compaixão, viver e ultrapassar até
mesmo a morte para libertar a humanidade e conduzi-la a um novo padrão de consciência.
Outra função estruturante que aparece nestes mitos, ao lado do amor, é o poder. Quando
falamos sobre amor e poder, nós, junguianos, logo pensamos em Jung, quando ele escreve:
"onde o amor reina, não há desejo de poder; e onde o desejo de poder é predominante, falta

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Jung & Corpo

o amor. Um é a sombra do outro (...)" (Jung, 1953, par. 78). Esta frase estabelece uma
relação de exclusão entre poder e amor. Embora esta afirmação, a meu ver, só se aplique a
situações em que o poder é usado defensivamente para cercear e oprimir, a colocação de
Jung, e o número de vezes em que ela é citada e referendada, faz parecer que ela possui
validade universal. Mas nem sempre é assim, pois no caso de o poder ser exercido com
amor, pode se expressar criativamente através do cuidado e da proteção, por exemplo. Há,
em Eros (aqui usado como sinônimo de amor) e poder, características que os fazem diferir
bastante, e que talvez por isso transmitam a impressão errônea de que eles sempre se excluem.
Eros é um elemento de ligação. O amor busca a união, a proximidade, a intimidade. O
poder, por outro lado, para que possa ser exercido, precisa criar um distanciamento, uma
diferenciação, uma hierarquia.
Para estabelecermos uma relação entre eros e poder é fundamental considerarmos qual
o padrão de consciência dominante no qual eles estão sendo vividos. Em situações onde
a hierarquia deve prevalecer, como entre pais e filhos, ou no caso de profissões em que a
relação entre comandante e comandado seja imprescindível, a preponderância do poder
está implícita. Trata-se de relações onde comumente predomina o arquétipo patriarcal.
Para que o poder seja exercido, é preciso que haja um domínio entre um polo e outro, e
por isso, ele é mais facilmente identificado no padrão patriarcal, no qual os polos funcionam
de maneira polarizada. No caso de um uso criativo do poder, ele está conjugado ao amor,
e é empregado para proteger e zelar, guiar, organizar, colocar limites, decidir ou liderar. É
a função do comandante, do líder, que tem poder para conduzir e o faz amorosamente,
cuidando de seus subordinados. Quando Eros se ausenta, o uso do poder passa a ser
defensivo e exercido disssociadamente, podendo se revelar pela tirania, crueldade,
desumanidade, frieza e sadismo.
Num relacionamento amoroso de dominância de alteridade, em que as relações se dão
majoritariamente de forma simétrica, fraterna, dialética e não hierárquica, o poder é exercido
ao lado do amor, e manifesta-se como autoafirmação, busca da verdade e da justiça, e até
mesmo como transgressão. O poder é então experimentado junto com o outro, e não contra
ele; ao invés de antagonismo, cooperação; em lugar de apenas eu, nós.
No amor de alteridade, ilustrado pelos mitos de Krishna e Radha e pelo mito de Cristo, a
liberdade vem acompanhada do poder que permite ser fiel a si mesmo e, através dele, abrir-
se para o amor. Assim, podemos dizer que, na alteridade, o amor não existe onde o poder
para afirmar a liberdade não chega. Se a liberdade for vivida defensivamente, poderá dar
lugar à promiscuidade ou, se houver ausência de liberdade, com cerceamento, controle ou
aprisionamento, a relação já não estará dentro da alteridade, mas terá, por exemplo, se
patriarcalizado defensivamente pelo abuso de poder ou se matriarcalizado defensivamente
pela possessividade, ciúme e controle. Se o amor pelo outro nos dá a liberdade de nos
aprofundar em nós mesmos, a sombra do amor aprisiona e limita.

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Quando, no caso de uma patriarcalização defensiva, há uma polarização entre as funções


estruturantes do poder e da liberdade, e o poder busca cerceá-la, esta pode se transformar
em rebeldia e o amor, em ódio. É o que ocorreu entre Urano e Cronos. E por isso o amor só
pôde surgir quando o poder defensivo foi restringido pelo anseio de liberdade.
A liberdade defensiva, porém, também pode ser vivida através da falta de limite. Na
alteridade temos, então, a inclusão natural da função ética, pois é ela que articula a relação
entre liberdade, poder e amor. A ética é responsável pelo julgamento de valor, e, quando
funciona criativamente dentro da alteridade, é ela que permite "amar ao próximo como a si
mesmo" e atribuir direitos iguais para expressar as diferenças. Sem a ética de alteridade, o
respeito e o amor ao outro não são professados junto com o respeito e o amor a si próprio.
Sem ela, é fácil haver o abuso de poder.
Como todas as outras funções estruturantes, a ética também poderá ser vivida em qualquer
um dos quatro padrões de consciência. É, porém, na alteridade, que a ética encontra seu
desenvolvimento pleno, pois deixa de operar apenas em função do costume (padrão matriarcal)
ou de regras e normas externas, conforme a moral coletiva (padrão patriarcal), e passa a ser
fundamentada naquilo que a pessoa sente que vai de encontro ao seu crescimento. É à ética
de alteridade a que Neumann ([1948] 1991) se refere ao falar sobre a nova ética como a
ética de individuação, pois esta envolve considerar bom aquilo que impulsiona o
desenvolvimento e a ampliação da consciência. Ela é regida por valores que, por estarem
fundamentados na essência do ser, possuem a força e a firmeza da verdade profunda. Ela é
inseparável da verdade interior, do respeito e da consideração por si próprio e pelo outro, da
compaixão. Por isso, é capaz de levar ao sacrifício até mesmo o ego em prol do Arquétipo
Central, como vemos no mito de Cristo.
A ética de alteridade torna o indivíduo coerente com seus valores, ainda que isso possa
significar transgredir os valores coletivos vigentes. Diz Neumann que "toda personalidade
ética fundadora é herética" ([1948] 1991, p.48), pois o chamado interior pode se dar contra
a ética tradicional. Sob esta perspectiva, ética e liberdade se interpenetram, necessitando-se
mutuamente para seu pleno exercício criativo.
A presença da ética de alteridade, portanto, é fundamental para que o amor possa se
afirmar e ser vivido livremente, e para que seja libertário, e não libertino. É esse o amor
proposto por Cristo e vivido por Radha e Krishna. Um amor que conduz à maior liberdade
possível: poder ser plenamente com o outro.

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Referências Bibliográficas

BYINGTON, C. A. B. (1983). Uma Teoria Mitológica da História. O Mito Cristão como o


Principal Símbolo Estruturante do Padrão de Alteridade na Cultura Ocidental. Junguiana,
Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, n.1, p.120-177.
__________ (2008). Psicologia simbólica junguiana - Viagem de humanização do cosmos em
busca da iluminação. São Paulo: Linear B.
JUNG, C. G. (1916). The Psychology of the Unconscious. CW 7. London: Routledge & Kegan
Paul, 1953.
KINSLEY, D. (1986). Hindu Goddesses - Vision of the Divine Feminine in the Hindu Religious
Tradition. Delhi: Motilal Banarsidass.
NEUMANN, E. (1948). Psicologia Profunda e a Nova Ética. São Paulo: Edições Paulinas,
1991.

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MEDICINA TRADICIONAL CHINESA


E PSICOLOGIA ANALÍTICA:
UMA APROXIMAÇÃO
ENTRE AS TEORIAS1

Sheila Rafaini Lopes2


Márcia Rodrigues Sapata3

Introdução

Diante dos estudos técnicos adquiridos ao longo da formação em Acupuntura e do


conhecimento absorvido durante a graduação em Psicologia, surge o questionamento sobre
a possibilidade de se pensar uma ponte entre psique e corpo. O ponto central desta articulação
baseia-se no mecanismo de auto-regulação, princípio geral analítico de equilíbrio, o qual é
compreendido tanto nos aspectos fisiológicos quanto no plano psicológico. A limitada
bibliografia sobre essa intersecção mostrou a relevante necessidade de exploração e
aprofundamento desta questão.

1
Artigo baseado no trabalho de conclusão de curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie,
em Dez/2008.
2
Psicóloga, Especializanda em Psicoterapia Junguiana e Abordagens Corporais, Doutora em Acupuntura
pela World Federation of Acupuncture-Moxibustion Societies (WFAS) e Massoterapeuta de Tui Na. E-mail:
sheilarl@uol.com.br
3
Psicóloga Clínica, Especialista em Psicologia Junguiana, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, foi
Professora - Supervisora do Curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail:
mrsapata@gmail.com

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Assim, a atual proposta é estudar a existência e as possíveis equivalências entre o conceito


de autorregulação psíquica de Jung e o princípio de Yin-Yang da Medicina Tradicional
Chinesa. Acredita-se que a relevância da pesquisa está na contribuição à escassa literatura
sobre a interface entre a Teoria Analítica e a Medicina Tradicional Chinesa.
Para tanto, foi utilizada uma pesquisa bibliográfica objetivando aprofundar o problema a
partir de referências teóricas publicadas. Após realizar o levantamento bibliográfico,
aproximações entre os conceitos teóricos de ambas as áreas foram estabelecidas, pelo princípio
de similaridade.

Medicina Tradicional Chinesa

A Medicina Tradicional Chinesa (MTC) é uma ciência milenar baseada no Confucionismo,


no Taoísmo e no Budismo, que busca a harmonia do ser humano por meio de meditação e
práticas físicas, alimentação correta, uso de ervas medicinais e pela acupuntura (Jia, 2004).
Os primeiros registros da prática da Medicina Chinesa foram encontrados cerca de 23.000
a.C; contudo, somente a partir da Dinastia Shang (2.000 a.C) surgem evidências culturais,
tais como o I Ching e o livro Princípios da Medicina Interna do Imperador Amarelo, que por meio
de um diálogo relata os princípios da MTC (Jia, 2004).
Atualmente, o Brasil situa-se entre os países que vêm valorizando a prática médica chinesa.
Desde 1995, o Conselho Federal de Medicina (CFM) reconhece a prática de Acupuntura; a
partir de 2006 o Ministério da Saúde aprova a "Política Nacional de Práticas Integrativas e
Complementares" no Sistema Único de Saúde (SUS) e, por fim, em 2008 é publicada a
inclusão do psicólogo acupunturista nas equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família
(NASF).
Frente ao atual trabalho de pesquisa, faz-se necessária a ampliação de conceitos da Teoria
Yin-Yang, para que melhor se estabeleçam as correlações entre psique e corpo, elucidadas a
seguir.

Teoria Yin-Yang

A primeira evidência escrita sobre a Teoria Yin-Yang encontra-se no I Ching, surgido


antes da Dinastia Chou (1150-249 a.C). Nele, os dois conceitos aparecem na forma de
símbolos, como linhas inteiras: ------ (Yang) e linhas partidas: --- --- (Yin).
Para Chonghuo (1993), Yin-Yang é fruto da dialética da China Antiga, já que institui que
um mesmo fenômeno possui partes opostas e complementares da natureza em dinâmico

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equilíbrio. A partir da mais antiga observação de uma mudança cíclica - a noite e o dia - e de
sua respectiva correlação com as energias Yin e Yang, foi facilitada a extensão desse tipo de
observação para outros fenômenos, como as funções fisiológicas do corpo humano, as
patologias, as relações internas dos órgãos, as leis gerais do diagnóstico e do tratamento (Jia,
2004).
O Yin e o Yang juntos formam o símbolo Tao, que significa caminho:

Tao

Os quatro princípios que permeiam seu entendimento - oposição, interdependência,


crescimento-decrescimento e transmutação - serão discutidos abaixo.

Oposição entre Yin e Yang

Este princípio presume que todo fenômeno ou fato da natureza é constituído


simultaneamente de duas partes opostas: Yin e Yang, sendo que cada parte também contempla
seu oposto. A tabela abaixo, com aspectos da natureza, do corpo humano e de características
das doenças, possui a finalidade de exemplificar suas características opostas (Wen, 1987).

NATUREZA CORPO HUMANO CARACTERISTÍCAS


DAS DOENÇAS
Externo, Superfície, Agitada, Forte, Quente,
Sol, Céu, Dia, Homem
YANG Região de cima, Seca, Hiperfuncionamento,
Verão, Calor, Sul, Norte
Vísceras (ocos) Aguda
Lua, Terra, Noite, Interno, Profundo, Calma, Fraca, Fria, Úmida,
YIN Mulher, Inverno, Frio, Região de baixo, Órgãos Hipofuncionamento,
Leste, Oeste (sólidos) Crônica

Características do Yin e Yang

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Jung & Corpo

Interdependência entre Yin e Yang

Embora sejam representações de polaridades, há uma relação de dependência entre Yin


e Yang (Jia, 2004). Para Chonghuo (1993) a condição de existência destes aspectos é que
um não pode existir sem o outro. Como conceitos em oposição, não existe frio sem calor, dia
sem noite, interior sem exterior, sendo que não é possível produzir Yin isolado, e muito
menos aparecer Yang sozinho. Tendo em vista o corpo humano, a energia e a matéria também
coexistem de maneira que o equilíbrio relativo seja mantido: sem matéria nutritiva (Yin),
por exemplo, as atividades fisiológicas (Yang) não podem ser produzidas.

Relação de Crescimento e Decrescimento

A fim de manter o desenvolvimento e as mudanças normais dos fatos ou fenômenos,


tanto Yin quanto Yang tendem ao equilíbrio dinâmico. Dessa maneira, se uma das partes
crescer, a outra diminuirá; se uma avançar, a outra vai retroceder (Chonghuo,1993). Nas
estações do ano, por exemplo, nota-se que na mudança do verão para o outono há uma
constante diminuição do calor, enquanto há um aumento gradual de frio.
Quando este equilíbrio é rompido, desencadeia-se um processo patológico, ou seja, a
tensão entre essas forças gera predomínio transitório em suas formas e funções, manifestando-
se, por exemplo, por meio de sintomas psicossomáticos, visto que mente e corpo coexistem
e se influenciam. Quando há excesso de Yang, ocorrem manifestações clínicas de agitação,
nervosismo, insônia, e quando há excesso de Yin, o indivíduo apresenta, por exemplo,
sonolência e quietude (Chonghuo, 1993; Jia, 2004).

Transmutação

Para Chonghuo (1993), além de uma mudança qualitativa de crescimento e decréscimo,


a transmutação ocorre de maneira quantitativa, na medida em que, sob condições extremas,
essas forças vão se desenvolver em direções opostas: "Todas as coisas que atingiram seu
apogeu tornam-se seu oposto, frio extremo trará calor e calor extremo trará frio" (Wang,
2001, p. 50). Para ilustrar, Chonghuo (1993) relata que em relação às patologias, os pacientes
com meningite cérebro-espinhal epidêmica apresentam sintomas de febre elevada,
irritabilidade, pulsação rápida e rosto avermelhado; características qualificadas na MTC
como Calor (Yang). Contudo, quando a doença evolui para o estado mais grave, levando ao
choque tóxico, o paciente passa a apresentar hipotensão, membros frios, rosto pálido, pulso
lento; sintomatologia característica de Frio (Yin).

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Após discorrer sobre alguns aspectos da MTC, serão discutidos conceitos específicos da
energia psíquica para a Psicologia Analítica, relacionados ao tema: as polaridades da psique,
seu processo compensatório e as propriedades da autorregulação.

Autorregulação Psíquica

Jung concebe a psique como uma unidade original não-diferenciada, na qual interagem
fenômenos intrapsíquicos, somáticos e interpessoais. Essa totalidade é constituída pela
relação complementar e construtiva de polaridades, gerando tensões que rumam para a
autorrealização de seu potencial, movimento este chamado de individuação (Dawson &
Eisendrath, 2002). Na psique humana, consciência e inconsciente situam-se em lados opostos,
mas fazem parte de uma mesma unidade. Estes dois aspectos complementam-se de maneira
que a condição básica de existência de um é a presença do outro.
Como enfatiza Jung (1971, par. 48), entre as polaridades consciente/inconsciente e
matéria/psique existe uma carga energética que leva a mudanças tanto de natureza psíquica
quanto física. Esta energia obedece ao princípio da física conhecido como equivalência,
pelo qual as transformações somente são possíveis porque há diferenças de intensidade
dentro de um mesmo sistema e que, paulatinamente, tendem a se amenizar. Este princípio
indica que "para qualquer quantidade de energia utilizada em um ponto qualquer [do sistema]
(...) surge em outro ponto igual quantidade dessa mesma ou de outra forma de energia"
(Jung, 1971, par. 34).
É importante ressaltar que a energia psíquica se movimenta entre polaridades de
progressão, quando a psique vai em direção a uma adaptação ao mundo externo, e de regressão,
quando ocorre uma busca de adaptação ao mundo interno. Assim, quando o indivíduo se
aproxima unicamente de uma dimensão psíquica, seu polo oposto também se intensifica na
mesma proporção, mas na direção contrária (Dahlke, 1995).
Para corrigir um desequilíbrio entre conteúdos da consciência e do inconsciente é necessária
a atuação de um sistema autorregulador organizado pela função de compensação (Stevens,
1993). Sendo assim, o inconsciente atua equilibrando as atitudes parciais ou unilaterais do
ego, bem como buscando ativamente o seu próprio equilíbrio dinâmico.
Mediante o desequilíbrio psíquico, o ego pode se desenvolver unilateralmente na direção
de um dos polos, na medida em que os conteúdos inconscientes com insuficiente carga
energética não conseguem emergir à consciência (von Franz, 1992). Os sonhos, dessa maneira,
são recursos de compensação da psique, uma vez que agem de maneira a equilibrar a atitude
unilateral do ego, tornando possível o diálogo entre conteúdos conscientes e inconscientes.
Os símbolos, linguagem pela qual o inconsciente se expressa, emergem com a finalidade de
retificar esse desequilíbrio, expressando conteúdos da psique ainda não acessíveis ao ego.

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Jung sintetiza o exposto acima:

A psique é um sistema autorregulador que mantém o seu equilíbrio da


mesma forma como faz o corpo. Todo processo que vai muito longe
imediata e inevitavelmente apela para compensações, e sem estas, não haveria
nem um metabolismo normal e nem uma psique normal. Neste sentido,
podemos tomar a teoria da compensação como uma lei básica de
comportamento psíquico. Muito pouco de um lado resulta em excesso
do outro lado. Da mesma forma, a relação entre o consciente e o
inconsciente é compensatória. Esta é uma das regras mais conhecidas da
interpretação dos sonhos. Quando nos dispomos a interpretar um sonho,
é sempre útil perguntar: que atitude consciente é que ele está compensando?
(CW 7, par. 330)

Uma Aproximação entre as Teorias

Na revisão de pesquisa baseada nos periódicos brasileiros indexados Dedalus, Pubmed,


Lilacs e Bireme, foram utilizadas as palavras-chave: psicologia e acupuntura; Yin-Yang e
autorregulação; acupuntura e autorregulação; Jung e Medicina Tradicional Chinesa; Yin-
Yang e psicologia. Destas palavras, somente quatro títulos abordavam o tema Psicologia e
Acupuntura, mas nenhum se propunha a estudar a correlação entre os conceitos de auto-
regulação psíquica da Psicologia Analítica com o de Yin-Yang da MTC. Sendo assim, as
aproximações do atual estudo serão realizadas a partir das semelhanças entre os achados
teóricos.
As semelhanças da visão de homem e de mundo para a MTC e para a Psicologia Analítica
estão basicamente assentadas na noção de que ambas consideram corpo e psique como
totalidades resultantes de fatores biológicos, psicológicos e sociais e postulam que tais
totalidades são constituídas de aspectos opostos e complementares. A energia psíquica é
compreendida por meio de polaridades, como inconsciente e consciente, e aspectos
fisiológicos do corpo, como Yin e Yang.
A primeira relação observada refere-se às qualidades de cada energia: o Yin, que possui
características encobertas, escuras e profundas, pode ser relacionado à instância inconsciente,
bem como a energia Yang, superficial, visível e claro, à consciência.
Nas teorias, tanto a libido quanto o fluxo de energia variam continuamente entre suas
polaridades, com a finalidade de atingir equilíbrio dinâmico. Dessa forma, psique e corpo
possuem capacidade inata de se autorregularem frente a desequilíbrios ou descompensações
desencadeadas por múltiplos fatores.

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Uma vez que ambos possuem movimentos autorregulatórios, nota-se a possibilidade de


correlacionar as propriedades de cada processo. Os conceitos de oposição, interdependência,
crescimento e decrescimento e transmutação, descritos na introdução como pertencentes
ao pensamento oriental, também puderam ser aplicados à Psicologia Analítica.
Assim como todo fenômeno da natureza é constituído de duas partes opostas para a
MTC (oposição), observa-se que muitos aspectos da psique também foram considerados
da mesma maneira por Jung, como consciente/inconsciente, progressão/regressão e
extroversão/introversão. Por serem partes complementares e pertencentes a uma mesma
unidade, a condição básica da existência de uma é a presença da outra, propriedade esta que
também pode ser comparada com a relação de interdependência de Yin-Yang. Não há
cura se não existir desequilíbrio, não há consciência sem inconsciente. Portanto, saúde e
doença, assim como inconsciente e consciente, são partes de um todo indissociável.
Quanto ao princípio de crescimento e decrescimento, sabe-se que as polaridades Yin-
Yang expressas no corpo e na psique oscilam continuamente buscando o equilíbrio dinâmico
por meio dessas variações. Por exemplo, caso a energia psíquica esteja concentrada no exterior,
haverá menor investimento no mundo interno do indivíduo ou, durante a noite nota-se o
predomínio da energia Yin sobre Yang, possibilitando o repouso e o descanso.
Contudo, quando essas alterações extrapolam a mínima ou a máxima variação possível,
desencadeia-se um processo patológico, resultando em excesso ou deficiência de energia
em um dos aspectos. Para a Psicologia Analítica, o ego tende a se desenvolver unilateralmente
na direção de um dos polos, o que dificulta o diálogo entre as instâncias consciente e
inconsciente, e pode prejudicar uma condição psíquica saudável. A noção de transmutação
da MTC também pode ser observada neste processo, pois quando a unilateralidade atinge
seu extremo, há uma mudança quantitativa para seu oposto, forçando o encontro de novos
caminhos para se atingir o equilíbrio. Como ilustração, há os casos clínicos de indivíduos
que oscilam entre estados cíclicos de depressão seguida de mania e aqueles que, prestes a
morrer, apresentam uma melhora súbita na sintomatologia: o ápice do Yin (morte) gerando
Yang (vida), como também é ilustrado na metáfora do símbolo Tao.
Na medida em que as teorias foram estudadas, novas ponderações surgiram a respeito do
manejo terapêutico de ambas as abordagens. Assim, estende-se o presente trabalho para
além das comparações inicialmente feitas, na busca de novas configurações e novas reflexões
sobre a prática do psicólogo e do acupunturista.
Na prática terapêutica da Acupuntura, nota-se que o profissional realiza profunda
anamnese da sintomatologia do paciente a fim de cruzar informações e inferir o diagnóstico.
Para tanto, os chineses desenvolveram complexos métodos de análise, como a observação
da língua e a pulsologia, que, por meio da quantificação e qualificação da pulsação do
paciente, mensura seu fluxo de energia. Além da parte sintomática, há uma investigação

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emocional e hábitos do indivíduo, objetivando uma visão cada vez mais integrada da sua
psique e do seu corpo. Assim, na perspectiva chinesa, se não há mudança nos hábitos de
vida ou mudança de atitudes, o tratamento com agulhas possuirá efeito efêmero e puramente
sintomático, ao invés de oferecer prolongado equilíbrio energético.
Vale ressaltar que para ambas as abordagens, o papel do terapeuta/cuidador consiste na
criação de condições mais favoráveis para que o próprio indivíduo se cure. Na Psicologia
Analítica, sugere-se que quando o indivíduo procura análise, o arquétipo "médico/paciente"
pode ser constelado. Assim, o paciente percebe o aspecto ferido no nível consciente e, pelo
conceito de oposição, o aspecto curador pode ser ativado no inconsciente por meio da
transferência com o terapeuta. Dessa maneira, cabe ao terapeuta sair do lugar onipotente de
curador para auxiliar o diálogo interno entre as polaridades do indivíduo, facilitando ao paciente
o contato com seu próprio curador interno (Guggenbühl-Craig, 1987). O psicólogo, portanto,
atua como auxiliador na integração dos aspectos conscientes e inconscientes, favorecendo o
reconhecimento por parte do paciente do seu processo compensatório de cura.
Já na Acupuntura, a cura é obtida por um conjunto de princípios para os quais o terapeuta
deve atentar: a localização dos pontos e manipulação das agulhas, estimulando-os ou inibindo-
os, auxiliando o corpo a regular seu fluxo de energia; a respiração do paciente que deve
entrar em ressonância com a manipulação referida, a intenção de ajudar o paciente e as
recomendações do terapeuta quanto às atitudes do paciente.
Baseado na concepção de cura da Psicologia Analítica e da inter-relação entre mente e
corpo, levanta-se uma questão para reflexão: como realizar uma terapêutica pela MTC, com
a finalidade de interferir na psique, sendo que, muitas vezes, o próprio paciente não tem
conhecimento da simbologia envolvida nos seus sintomas?
Como Jung afirma, cura não é a remissão dos sintomas, mas sim a capacidade de reconhecer
e assimilar o processo de desenvolvimento psíquico. Meier (1989) considera que a cura
junguiana está no encontro de um significado para a doença, integrando-a em uma totalidade
significativa. Dessa maneira, o terapeuta na prática da MTC também deve esclarecer a
simbologia das manifestações físicas e psicológicas do paciente nas sessões.
Como forma de ilustração, incito o leitor a imaginar a seguinte situação hipotética: um
jovem chega à clinica de acupuntura com queixa de dores constantes na parte frontal da
cabeça e no fundo dos olhos. Esportista, tem um de seus joelhos lesionados e com sensação
de fraqueza. Trabalha meio período, treina todas as tardes e faz faculdade à noite,
alimentando-se, portanto, de lanches e salgados para chegar a tempo em aula. Volta para
casa tarde, dorme por volta da meia-noite e relata que seus familiares e amigos reclamam do
seu comportamento explosivo e estressado.
Em um procedimento superficial, o terapeuta realizaria uma anamnese aprofundando
questões do paciente, suporia para si um diagnóstico e faria a sessão de acupuntura,
realizando, assim, um atendimento tipicamente ocidentalizado.

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Jung & Corpo

É importante, então, reforçar a atuação do terapeuta de modo a auxiliar o paciente a


entender e a elaborar o dinamismo dos seus sintomas: a frontalidade da dor de cabeça
relaciona-se com o meridiano do estômago e, portanto, com sua alimentação inadequada
nas refeições noturnas. Além disso, esse meridiano percorre toda a região da perna, passando
pelo joelho que, enfraquecido pelos hábitos, se apresenta lesionado. Somadas à alimentação,
as noites com poucas horas de sono relacionam-se com a dor no fundo dos olhos, já que,
segundo o pensamento chinês, a troca de energia do meridiano do fígado ocorre no período
das 23h à 1h, momento em que se deve estar dormindo. Além disso, o fígado está relacionado
com o sentimento de raiva, favorecendo seus comportamentos agressivos.
Dessa maneira, para que o indivíduo seja capaz de restabelecer seu equilíbrio, nota-se
a importância do seu reconhecimento na participação, consciente ou inconsciente, na
origem e no desenvolvimento da doença (Capra, 1982). Ao torná-la consciente, o sujeito
passa a ter papel ativo no processo de cura, responsabilizando-se por fazer as mudanças
necessárias nos hábitos de vida e na visão de mundo, a fim de retomar o equilíbrio. Contudo,
essa conscientização só ocorrerá se o terapeuta ocupar a posição de tradutor e integrador
de fenômenos, e a motivação para cura e confiança no processo forem despertadas no
paciente.
No entanto, embora a Medicina Chinesa discuta teoricamente a inter-relação dos fatores
internos e externos, há pouca tentativa de integração dos aspectos emocionais e sociais da
doença na prática terapêutica. Suas extensas anamneses sobre os diversos aspectos do
paciente são reduzidas, na prática, a conselhos nutricionais, fitoterapias e acupuntura,
excluindo os fatores psíquicos.
É neste contexto que o psicólogo pode descobrir extenso campo de atuação,
complementando a visão chinesa com seus recursos técnicos focados nos aspectos
psicológicos. Se fosse considerado que somente a psicoterapia bastasse, ou o mesmo em
relação ao tratamento com acupuntura, isto seria tão reducionista quanto o paradigma
positivista. É importante ressaltar que uma técnica terapêutica não exclui a outra, mas sim
se complementam: não é possível cuidar da mente sem cuidar do corpo, bem como é inviável
intervir somente no campo orgânico, na medida em que integrar os símbolos provenientes
do corpo à consciência é fator fundamental para estabelecer o equilíbrio dinâmico.
Em 2002, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) reconheceu o uso da Acupuntura
como recurso complementar no trabalho do psicólogo. Além disso, em consulta ao Ministério
da Saúde, até março de 2011, dos 40.585 psicólogos clínicos inscritos no Cadastro Nacional
de Estabelecimentos de Saúde (CNES), apenas 48 profissionais estavam cadastrados como
tendo especialização em acupuntura. Tais dados reforçam a urgência de que esses profissionais
se apropriem dessa nova atuação, realizando mais estudos de interface entre as áreas,
aprofundando e discutindo as diferenças metodológicas e aproximação das práticas em
benefício do paciente.

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Jung & Corpo

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A COLUNA VERTEBRAL E O
SIMBOLISMO ASCENSIONAL

Paulo Toledo Machado Filho1

A estrutura da coluna vertebral humana sugere o sentido ascensional, como o de qualquer


outro tipo de coluna, que se ergue de baixo para cima, ou como ocorre com a árvore, que
também cresce verticalmente das raízes para a copa. Por isso, todo simbolismo correspondente
à coluna ou à árvore indica o sentido ascensional e a correspondência antigravitacional, do
mais denso para o mais leve e da terra para o céu.
Organizada através da sobreposição das vértebras, a coluna forma, no ser humano, o
esqueleto axial, que corresponde a dois quintos de seu peso corporal. Sua estrutura vertical
em relação ao solo a diferencia da coluna de todas as outras espécies - as quais se desenvolvem
no sentido horizontal - que é paralela ao chão. É delimitada, em sua base, pelo cóccix, e
ascende através do sacro, das cinco vértebras lombares, que formam uma lordose, das doze
vértebras torácicas, que formam uma cifose, e das sete vértebras cervicais, que formam
uma outra lordose e sustentando, através de sua última vértebra, a cabeça. As sucessivas
curvaturas para dentro e para fora através de suas lordoses e cifose indicam sua flexibilidade
e mobilidade, como também sua capacidade de amortecer impactos sobre o corpo durante
o movimento. E contém, em sua luz, a medula ("miolo"), envolta e protegida pelas meninges
e pelo líquor, e distribui, entre os espaços intervertebrais, os nervos espinhais, projetando
ainda para o corpo o sistema nervoso autônomo.

1
Médico Psiquiatra, Psicoterapeuta Junguiano especializado em técnicas de abordagem corporal, Mestre em
Antropologia Social pela USP e Professor dos Cursos de Cinesiologia e de Jung & Corpo - Formação em
Psicologia Analítica e Abordagem Corporal no Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo.
E-mail: ptmachadof@uol.com.br

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A primeira ideia sugerida pela verticalidade da coluna humana, visualizada estruturando


o corpo, é a de um grande eixo de conexão entre todas as suas partes. Esta estrutura assimila
o simbolismo da árvore ou de todas as outras colunas que juntam a terra ao céu e que
aparecem nas mitologias, quer seja formando um pilar cósmico ou constituindo um axis
mundi e assinalando a noção de centro ou origem ( arché ). Verificamos também
correspondências com o simbolismo da escada, da serpente e da espada, e em quase todas
as associações, a noção da ascese ou a simbólica ascensional.
Ao referir-se à Coluna sem Fim, obra de trinta metros de altura esculpida por seu
2
conterrâneo, o escultor romeno Constantin Brancusi , Mircea Eliade (1938) afirma parecer
uma obra infinita, "ao lançar-se para um espaço que não pode mais ter limites". É como a
realização da "ascensão para o céu de todas as cosmologias arcaicas". Na peça homônima
que escreveu e que tem como personagem principal a própria Coluna, Eliade expressa sua
ascensionalidade, afirmando que "A Coluna não cai de cima mas vem das profundezas da
terra e eleva-se para um simbolismo cósmico e epistêmico, humano e divino". Como na
coluna corporal, onde as vértebras apoiam-se sobre vértebras até a sustentação da cabeça,
as colunas construídas pela criatividade humana não veem de cima, mas sobem para o céu,
como se sustentando a abóbada celeste e unindo a densidade da matéria na Terra com a
sutileza do espírito no Céu. A imaginação humana também constrói colunas sutis, que
sustentam o céu inteiro apoiadas na Estrela Polar.

A Escada

Leloup (1998) menciona a etimologia correspondente entre skeleton, skola e skada e a


coluna, afirmando que "a finalidade da escola é devolver a alguém sua coluna vertebral"
(p.108). Deste modo, destaca a ascensionalidade da coluna como "uma escada a subir", e a
compara ainda com o pai, enquanto estrutura que nos constitui. Mas o simbolismo da escada
já aparece na Bíblia, através do sonho de Jacó: "Eis que uma escada se erguia sobre a terra
e o seu topo atingia o céu, e anjos de Deus subiam e desciam por ela" (Gn 28, 12). Leloup
(1998) compara o movimento dos anjos através da escada com a energia da vida: "este
movimento que sobe e desce e que (...) nos enraíza na matéria e sobe para a luz" (p.111).
Miranda (2000), também referindo-se à escada por onde os anjos sobem e descem e
comparando-a com a coluna, escreve que "eles são todas as energias ascendentes e

2
A Coluna sem Fim foi erigida por Constantin Brancusi em Targû-Jiu, na Romênia, dentro do projeto do
Templo da Contemplação e Libertação, construído em homenagem aos mortos da Primeira Guerra Mundial e
foi celebrizada por uma peça de teatro homônima escrita por Mircea Eliade.

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descendentes transitando pela coluna vertebral" (p.169). Um pouco antes, o teólogo compara
a situação do homem com a escada, situada entre dois polos formados pela terra e pelo céu,
que representam dois polos de um ímã aos quais, para manter-se na corrente da vida e
representando a energia vibracional, o homem precisa estar ligado. Souzenelle (1984) compara
o mesmo motivo com a força de Eros, que une a primeira sephirat da árvore cósmica da
mística cabalista, Kether (esposo, céu, a Coroa), com a última, Malkhut (esposa, a terra, o
Reino) (p.98).
Assinalamos que na iniciação mitraica encontramos os sete degraus da ascensão mística,
que se inicia pelo chumbo, relacionado com Saturno; pelo estanho, relacionado com Vênus;
bronze, com Júpiter; mercúrio, com Mercúrio; ferro ou cobre com Marte; prata com a Lua e
ouro com o Sol. Podia aparecer ainda um oitavo degrau, que era relacionado com o
firmamento.

A Árvore

A árvore é um outro motivo recorrente frequentemente comparado à coluna e que


evidencia seu aspecto ascensional. Bachelard (1943), destacando igualmente o aspecto
ascensional da imaginação, refere que "a árvore é uma força evidente que leva uma vida
terrestre ao céu azul" (p.252). Considerando o aspecto estático da árvore e a leveza associada
a toda ascensionalidade, escreve um pouco mais adiante: "a árvore, ser estático por excelência,
recebe de nossa imaginação uma vida dinâmica maravilhosa" (id., p.252). Mas a árvore
pode também ser cósmica, pode ser Árvore da vida ou do conhecimento, pode crescer no
paraíso ou no centro do mundo ou do universo.
A Árvore de Iggdrasill, gigantesco freixo cósmico, é o centro do universo dos deuses
nórdicos que habitam Asgard. Ela forma o próprio universo, e suas raízes possuem três
regiões: dos mortos, dos gigantes e dos deuses. A simbólica ascensional desta Árvore
evidencia-se pela presença em seu topo de uma águia, representando a luz ou a energia da
consciência, em luta constante contra uma serpente, habitante de suas raízes, simbolizando
os aspectos sombrios e ctônicos das profundezas. Os povos xamânicos que habitavam as
geladas regiões nórdicas costumavam representá-la por um poste com degraus escavados
(associação da árvore com a escada), através dos quais, em êxtase, ascendiam atravessando
os diversos céus e comunicando-se com os deuses. Esta Árvore é a coluna central (axis
mundi) da comunidade dos deuses nórdicos, poeticamente decantados nas coletâneas dos
3
Eddas.

3
Coletânea de poemas conservados no Codex Regius, também conhecidos como Elder Edda, e que descre-
vem temas da mitologia nórdica.

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Leloup também chama de eixo do mundo a Árvore da Vida plantada no meio do jardim
do Éden, que compara com a coluna vertebral. Afirma que "reencontrar a coluna vertebral
é reencontrar seu eixo e o eixo do mundo. É reencontrar, de novo, seu lugar no paraíso" (op.
cit., p.109). Também bastante enfático sobre o simbolismo ascensional da árvore foi Miranda,
no início de suas reflexões sobre a Árvore sephirótica dos cabalistas. Conforme seu próprio
texto (sobre a árvore): "Ela representa a vida em perpétua evolução e em ascensão rumo
aos céus. A árvore evoca a comunicação entre, de um lado, as realidades cósmicas,
subterrâneas e terrestres e, de outro, as celestes ou aéreas. A árvore é um símbolo do caminho
ascensional entre o visível e o invisível, um lugar das manifestações do divino".(op. cit.
p.36). Mais adiante, assinala a relação entre a árvore e o corpo humano na tradição hebraico-
cristã: "(...) a Árvore plantada no centro do jardim do Éden reúne toda a iluminação necessária
à compreensão do corpo e sua imperiosa verticalização e ascensão para Deus" (id. Ib.). A
Árvore de Sephirot foi o tema central das reflexões de Miranda e de Souzenelle sobre o
corpo humano.
A Árvore da vida ou Árvore de Sephirot foi, na realidade, a temática principal do pensamento
da mística cabalista e da antropomorfização divina do homem. Tendo se disseminado
principalmente na Espanha, entre os judeus que lá habitavam durante a Idade Média, Idel
(1998) informa-nos que a Cabalah possui como principais fontes o Sefer Yetzirá (Livro da
Criação, antigo clássico de especulações místicas cosmológicas e cosmogônicas atribuído a
Abraão) e o Zohar (Livro do Esplendor), o mais importante corpus do misticismo judaico.
A Árvore de Sephirot é uma Árvore de luz, invertida, com as raízes projetando-se para
o céu e a copa para a terra, constituída de dez sephirah (singular de sephirot, que corresponde
a recipiente; sepher é livro). Souzenelle (1984) descreve a Árvore e a passagem desta ao
esquema corporal, conforme as referências tradicionais, em seu livro sobre o simbolismo
corporal (pp. 32-45). A autora aponta a existência de um primeiro momento cosmogônico
descrito como Aïn (nada, vazio) e um segundo momento referido como Aïm Soph (infinito
ou sem-fim). É desta dimensão que ocorrerá a emanação da Luz divina4 (Aïm Soph Aor),
que "Se fará conhecer e Se deixará nominar através das dez Sephirot" . A luz emanará
através de Kether (Coroa), a primeira sephirah, até a décima, Malkuth (o Reino), percorrendo
as tríades da transcendência divina, Kether, Hokhmah e Binah (respectivamente Coroa,
Sabedoria e Inteligência); dos Princípios da Criação ou plano das Leis, Hesed, Din e Tipheret
(Misericórdia, Justiça e Beleza); e da Realização da Criação, Netsah, Hod e Yesod (Vitória,
Glória e Fundamento), prosseguindo posteriormente até Malkhut , onde realiza-se a
hierosgamia entre a Terra e o Céu. Posteriormente, ocorre uma reversão da energia divina
dos arquétipos e a sua ascensão através das mesmas sephirot , configurando-se a
antropomorfização da Árvore, que espelha a imagem divina. A Luz emanada, que se

4
Souzenelle, op. cit., p. 33.

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materializou no corpo humano de modo semelhante ao processo da fotossíntese, que


corporifica a luz na materialidade da árvore, ascenderá através do corpo, no sentido inverso,
dos pés (Malkhut) à cabeça (Kether) e será devolvida, sutilizada, ao receptáculo cósmico
de energia.
A árvore antropomórfica organiza-se a partir de Malkhut (Reino, onde estão os pés),
constituindo em seguida um primeiro triângulo, com o vértice voltado para baixo, através de
Yesod, Netsah e Hod, e que Miranda chama de matriz urogenital. Posteriormente, forma-se
um segundo triângulo, com o vértice igualmente voltado para baixo, através de Tipheret,
Hesed e Din, referido por ele como matriz peitoral, e sobre os ombros, um último triângulo,
com a base formada por Hokhmah e Binah e a ponta do vértice, agora voltado para cima,
ocupado por Kether e coroando a cabeça. Esta estrutura possui dois pilares laterais e um
eixo central, correspondente à coluna vertebral, formado por Malkhut (Reino), Yesod
(Fundamento) e Tipheret (Beleza), que sustenta a cabeça em Kether (Coroa). Miranda (op.
cit.) assinala, em suas reflexões, que a coluna vertebral "é o eixo do corpo, (...) é a escada de
Jacó para atingir o topo, o teto do templo corporal, a matriz vibratória do crânio" (p.165).
Mais adiante, temos a ênfase na noção da verticalidade, "que preside à orientação desse
símbolo e aplica-se à coluna vertebral do humano como símbolo da afirmação de si mesmo,
na postura ascensional e geocêntrica. A imagem da coluna, como símbolo do eixo da pessoa
e de suas simetrias e dualidades, também é próxima à da Árvore das vidas e da lâmina da
espada" (id. Ib.).

A Serpente

Encontramos a correspondência simbólica serpentina à coluna na Yoga Tântrica. A


serpente, denominada Kundalini, apresenta-se enrolada, na base da coluna, mergulhada nas
águas profundas de Swadhisthana, e quando desperta, ascende na forma de energia. Embora
pertencente a uma outra matriz cultural, verificamos correlações entre este aspecto da filosofia
indiana e a mística hebraica. Como nesta segunda, a energia serpentina ascende da base do
corpo ou da coluna para a cabeça, existindo um fluxo ou corrente de energia que toma a
coluna vertebral como referência.
Jung fez diversas menções a este símbolo em suas obras, mas encontramos referências
mais completas nas anotações compiladas por Mary Foote, nos seminários por ele conduzidos
a partir de 1930 (Seminários das Visões ) e nas quatro conferências referidas como Comentários
5
Psicológicos sobre a Yoga Kundalini.

5
Ambos os seminários foram traduzidos para a língua portuguesa por Pethö Sándor e editados em apostilas
para uso em grupos de estudos.

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A filosofia tântrica descreve o esquema corporal constituído por canais de energia


semelhantes aos meridianos da medicina tradicional chinesa, que são chamados nadis. Existem
dois nadis principais, que serpenteiam em torno da coluna, denominados Ida e Pingala. O
primeiro é descendente, passivo, feminino e lunar; o segundo é ascendente, ativo, masculino e
solar. Estes canais conduzem a energia sutil, que é coletada, transmutada e redistribuída através
dos centros de energia, denominados chakras, que se distribuem ao longo do corpo em número
de sete. Ida e Pingala entrecruzam-se ao longo dos cinco primeiros chakras localizados no
corpo, da base da coluna até o pescoço, sendo que os dois últimos chakras, localizados na
cabeça, somente são alcançados por um terceiro nadi, não polarizado, chamado Sushumna.
O primeiro chakra localiza-se um pouco abaixo da pelve e denomina-se Muladhara (chakra
raiz), relacionando-se com a vontade de viver, com a vida na forma ou na matéria e com a
energia da gravidade; possui como expressão densa no corpo físico as glândulas adrenais
(ou supra-renais) e como elemento, a terra. O segundo centro de energia sutil, que tem
como elemento a água, é chamado de Swadhisthana (morada de si mesmo); relaciona-se com
a consciência da dualidade, com a sexualidade e fecundidade e com a criatividade física.
Aparece no corpo físico através das gônadas sexuais, ovários e testículos, únicas glândulas
endócrinas que são diferentes no homem e na mulher. O terceiro chakra é ígneo, chamado
Manipura, que significa "lugar da pedra preciosa" e que, segundo Jung, faz referência ao ego,
que é fortalecido por este centro e relacionado com a vontade e o desejo. A glândula endócrina
correspondente é o pâncreas. O quarto chakra chama-se Anahata (som incessante) e situa-se
no meio do peito. É o primeiro localizado acima do diafragma, sendo, portanto, pneumático,
e recebe de baixo a energia do desejo transmutada em aspiração; é neste centro que desperta
também a consciência do tu, o pensamento solidário e a compaixão. A sua expressão densa
é o timo. O quinto chakra é Vishudha (purificador) e localiza-se na garganta, relacionando-se
com a comunicação em seus aspectos diversos (compreensão, entendimento dos arquétipos
e expressão) e com a criatividade estética, artística ou espiritual; seu elemento é o éter e a
glândula correspondente é a tireóide.
Os dois chakras da cabeça são chamados Ajna (comando, direção) e Sahashara (lótus de
mil pétalas); Jung comenta sobre a dificuldade de se falar acerca dos mesmos na perspectiva
da psicologia ocidental, que é orientada do pessoal para o geral ou cósmico, e o consequente
risco de inflação psíquica, quando pensa-se na abertura da consciência em Ajna. A consciência
em Ajna relaciona-se com a abolição das referências de tempo e de espaço e com a visão
clarividente, exigindo-se para a obtenção de tal estado um longo período de preparação e
iniciação por parte do yogue. Sahashara, o centro seguinte, corresponde ao estado de
consciência cósmica, conforme descrito por William James (1932, pp. 249-251) e acessível
somente a um avatar ou místico experimentado; a experiência em tal estado de consciência
poderia, segundo as referências, modificar a vida de toda a humanidade (Cristo, Buda). As
glândulas correspondentes a estes chakras são a hipófise ou pituitária e a pineal, ambas
localizadas na cabeça.

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A filosofia indiana concernente aos chakras integra a ascese através dos estados de
consciência associada a cada um destes centros e projetados às glândulas do sistema endócrino
à própria energia corporal, que ascende através da coluna, idealizando intuitivamente uma
verdadeira integração fisiopsíquica simbólica; o fluxo serpentino da Kundalini, do mesmo
modo que a Árvore da Vida, da mística cabalista, realiza a transformação da energia através
do corpo, que, purificada e sutilizada, ascende através do eixo da coluna de sua base ou da
terra para a cabeça ou para o céu e do mesmo modo é devolvida para o depositário cósmico
de energia.

Outros Símbolos

A cruz é referida igualmente como um símbolo da Árvore da Vida. A condição de Cristo


na cruz, no alto do Gólgota, com Maria e João postados a seus pés, configura simbolicamente
a abertura da consciência superior (dos chakras da cabeça) e a união dos opostos, conforme
a citação de Miranda (op. cit., p. 173) que utilizamos: "Já não há mais o homem e a mulher;
pois todos vós sois um só em Jesus Cristo" (Gl 3,28).
A anatomia da coluna sugere também correspondências com a numerologia e
arquetipologia mítica e sagrada. Percorrendo-a a partir do cóccix, que na mulher articula-se
para trás quando ela dá à luz, encontramos as vértebras sacrais ou o sacro, denominação que
possui a mesma raiz etimológica de sagrado, segredo e secreto. Este local já foi referido
como região sagrada, lugar secreto ou da intimidade, onde se guarda o segredo da vida.
Logo acima, encontramos as cinco vértebras lombares, associadas com os cinco elementos,
ou sejam, a terra, a água, o fogo, o ar e o éter, respectivamente orientados do mais denso ao
mais sutil, pois toda ascensão necessita de leveza. Posteriormente, as doze vértebras dorsais
repetem a numerologia simbólica da totalidade, expressa através das doze constelações
zodiacais e relacionadas com os doze trabalhos de Hércules, com os doze apóstolos ou com
os doze cavaleiros da Távola Redonda. Refere-se também à ritmologia sagrada, pois doze
vezes cinco é o número de segundos do minuto, de minutos da hora e doze são as horas do
dia ou da noite, como são doze os meses do ano. Parece que estas vértebras representam a
realização temporal da vida através do corpo. E finalmente as sete vértebras cervicais,
relacionadas com o simbolismo septenário das sete energias planetárias conhecidas no mundo
antigo, correspondentes a Mercúrio, Vênus, Lua, Sol, Marte, Júpiter e Saturno; aos sete dias
da semana, cuja correspondência planetária ainda é evocada em diversos idiomas; às sete
frequências luminosas que compõem o espectro luminoso que se forma no arco-íris; e às
sete frequências sonoras da escala musical. O sete também expressa a totalidade, quando
somamos o quatro, que simboliza a terra, e o três, que simboliza o céu, representando a
soma de ambos a união da terra com o céu.

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Cabe ainda assinalarmos que a sétima vértebra cervical é a protuberante, a terceira é


chamada de axis e a primeira, a que sustenta a cabeça, recebeu o nome do titã Atlas, irmão
de Menécio, Prometeu e Epimeteu e que após a titanomaquia foi condenado por Zeus a
sustentar eternamente sobre seus ombros a abóbada celeste.
Observamos, portanto, que a coluna vertebral humana participa do simbolismo
ascensional de todas as outras colunas que estabelecem a relação entre a terra e o céu.
Formando o esqueleto axial do corpo humano, a coluna é referência da verticalidade do
homem; e na posição ereta, a coluna protege a medula, mantém a postura, participa da
locomoção, suporta o peso do corpo e sustenta a cabeça. Conforme Miranda, "(...) é um
lugar privilegiado onde se inscrevem nossos freios e libertações, nossas realizações sucessivas,
nossa ascensão progressiva ao longo de cada vértebra e também nossa recusa de evoluir, de
esposar, de amar. (...) Nos problemas da coluna, nas dores de costas, existem sofrimentos
patológicos e sofrimentos iniciáticos. O dever do verdadeiro terapeuta é distingui-los" (op.
cit., p. 173).
O cuidado com a coluna exige, portanto, do terapeuta, igualmente a sua iniciação. O
verdadeiro conhecimento sobre a coluna torna-se também uma espécie de conhecimento
sacerdotal, quando perceptivo da quantidade de símbolos e informações que se imprimem
e inscrevem-se nesse eixo referencial. Eixo que se afirma através da verticalidade, que
identifica o ser humano e o processo de individuação; mas, concluímos que a condição da
verticalidade não associa-se somente à dignidade ou à afirmação do self, mas ao indicar a
ascensionalidade, sugere também e principalmente o processo de elevação e divinização do
homem.

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1995.

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Jung & Corpo 11.p65 91 12/09/2011, 14:08

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