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ISSN 1676-0387
EDITORAS RESPONSÁVEIS
Maria Helena R. Mandacarú Guerra
Neusa Maria Lopes Sauaia
Site: http://www.sedes.org.br
E-mail: sedes@sedes.org.br
EDITORIAL
Com muita tristeza, às vésperas de enviar nossa revista à gráfica, fomos surpreendidos
pela perda da querida Elizabeth de Cassia Sandin, a Beth. Prestamos a ela nossa homenagem,
dedicando este número à sua memória.
Neste 11º. número da Jung & Corpo teremos a oportunidade de transitar por uma gama
bastante diversificada de temas. Abre a revista o artigo de Ana Paula Chaplin, sobre O
Palhaço e a Brincadeira Simbólica. Em consonância com o símbolo do palhaço, personagem
arquetípico e multifacetado em suas emoções, a autora tece reflexões aprofundadas, veiculadas
de forma leve e atraente, prendendo a atenção do leitor e estimulando o olhar atento para
uma das figuras mais importantes da infância de todos nós.
Em um mundo cada vez mais estressante e competitivo, as doenças cardíacas atingem
paulatinamente um maior número de pessoas. Graças ao desenvolvimento tecnológico, os
transplantes cardíacos veem tornando-se mais habituais e constituem, para quem a eles se
submete, um momento de crise. Em seu artigo O Transplante Cardíaco Vivenciado como um
Rito de Passagem, Ariane Tescaro Garcia estuda esta questão, enfocando-a como uma
oportunidade para o desenvolvimento da personalidade. A autora destaca ainda a importância
da participação do psicólogo em uma equipe multidisciplinar, para ajudar a pessoa a enfrentar
uma doença que afeta um órgão vital de tamanho significado simbólico.
Com grande sensibilidade e coragem, Eduardo Cunha Farias traça um paralelo entre sua
contundente história de vida e a de um deus grego. A Mitologia de Hefesto - o Deus Mutilado
como um Modelo Pessoal de Individuação, prova de persistência e força de um processo de
individuação, demonstra como os símbolos universais expressam-se em nossa vida individual
e como sua compreensão pode auxiliar o desenvolvimento de nossa personalidade.
Em Jung, Corpo e Resiliência: Uma Integração possível na Prevenção da Violência, Amana
Toledo Machado, Davi Costa da Silva e Luísa Aranha Fondello apresentam um método de
trabalho de inestimável valor e alcance social no cuidado de crianças e adolescentes vítimas
de violência. Em uma época na qual a violência mostra índices alarmantes, este trabalho
nos traz esperança de prevenção, ao apresentar uma metodologia capaz de harmoniza,r
numa perspectiva simbólica, corpo e resiliência.
Adriana Bosco aponta, em Corpo-em-Habitação e Trabalho Terapêutico, a necessidade de o
corpo ser situado em uma moldura simbólica, para que possa ser reconhecido como
AS EDITORAS
BETH
Difícil imaginar o Sedes sem a Beth. Ao longo dos anos em que trabalhou conosco, e não
foram poucos, ela nos acostumou a vê-la sempre disposta, alegre, dedicada, lembrando a
cada um de nós detalhes que, muitas vezes, esquecíamos. Sabia tudo o que precisava saber
para nos auxiliar, antecipando-se às nossas falhas e sanando-as antes mesmo que elas
acontecessem. Qualquer coisa que precisássemos, corríamos a pedir ou a perguntar para a
Beth.
De nossa parte, não tínhamos dúvidas de que podíamos contar com ela: era eficiente e
polivalente. Mas mais que isso: fazia dela o nosso compromisso, engajava-se em nossos
projetos, colaborava, participava e vibrava conosco quando finalizávamos um evento bem-
sucedido ou quando publicávamos mais um número da nossa revista, pela qual, sentíamos,
tinha um carinho especial. Não é exagero dizer que a infra-estrutura do nosso curso e da
revista Jung & Corpo passava pela Beth.
Jovem, com imenso amor à vida, sua partida prematura impactou e entristeceu a todos
nós.
Por tudo o que ela fez por nós, por sua dedicação, seu cuidado, sua disponibilidade em
ajudar, agradecemos de coração e enviamos a ela nosso carinho e gratidão.
Que seu caminho seja pleno de Luz!
SUMÁRIO
A MITOLOGIA DE HEFESTO
O Deus mutilado como um modelo pessoal de individuação........................................... 29
Eduardo Cunha Farias
MEDICINA TRADICIONAL
CHINESA E PSICOLOGIA ANALÍTICA:
UMA APROXIMAÇÃO ENTRE AS TEORIAS.............................................................. 73
Sheila Rafaini Lopes
Márcia Rodrigues Sapata
O PALHAÇO E A
BRINCADEIRA SIMBÓLICA
A intenção deste artigo surgiu da feliz observação que fiz de um artista palhaço tão
gracioso que me tocou. Ao contrário de alguns palhaços que eu havia visto na infância, e
que me punham medo, aquele parecia falar com um corpo poético, amoroso, harmônico,
mas curiosamente, eis que isso era engraçado. Sem dizer uma única palavra, exercendo
somente a arte da pantomima, ele se deslocava pela sala tal como um espírito liberto -
parecia que seu corpo havia dominado todo o ambiente com delicadeza e graça. E os
espectadores viveram um momento mágico, com um olhar expectante, e um riso estampado
no rosto, atentos àquele ser que havia se desprendido da garrafa hermética. Quem era ele?
Ele era... engraçado!
No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001), temos engraçado como "o que se
engraçou, que demonstra gentileza, agradável, que visa divertir, fazer rir, reconciliado,
dotado de formosura, bonito, gracioso". Se entusiasmo é sentir o próprio deus dentro de
si, por analogia, engraçado é receber as graças dentro de si, estar em estado de elevação,
cheio de ar.
A cultura circense é seguidora dos ideais românticos do corpo belo, que podem ainda
hoje ser vistos também em cabarés e shows, e que expressam por meio da ludicidade a alegria
da libertação do corpo e da alma. Dentro deste contexto circense a figura do palhaço aparece
como um espetáculo do corpo grotesco que demonstra a todos a imbecilidade e ignorância
humana, em contraste com o corpo sublime dos equilibristas, trapezistas, que desafiam leis
da gravidade; da coragem dos domadores de leões, que desafiam o medo; e outros números
que se alternam durante o show, provocando ora espanto nos espectadores, ora descontração
1
Psicóloga, especialista em psicoterapia junguiana com abordagem corporal pelo Instituto Sedes Sapientiae,
São Paulo. E-mail: paulachaplin@gmail.com
e risos (Bolognesi, 2001). No entanto, este outro clown citado acima é um híbrido entre a
liberdade e a licenciosidade do corpo cômico e a beleza e domínio das formas, e por isso um
símbolo, porque de início ele congrega esta e outras ideias opostas.
Por outras felizes coincidências me deparei durante o meu trabalho clínico com sonhos
em que este personagem aparecia, e em um deles, um arlequim dava piruetas pelo espaço
amplo, desenhando nele uma dança mandálica, indo então em direção a uma jovem que era
a própria paciente, e que se encontrava no centro, sentada no chão. Quando ele chegou
perto da moça, retirou de trás de si uma flor e ofereceu para ela, que se abriu em um sorriso
para o arlequim. Aquele sonho marcou o surgimento de um novo animus bastante positivo
para a paciente, e com o tempo passei a sentir uma vontade maior de investigar o sentido
que se podia vislumbrar por trás desta e de outras imagens relacionadas.
Esta pesquisa, portanto, possui uma ênfase na psicologia do imaginal, pois seguiu as
pistas que foram surgindo através dos símbolos que se referiam direta ou indiretamente às
situações arquetípicas em que esta figura estava em questão; dou exemplos de alguns filmes
no decorrer do texto, e histórias típicas, mitos e ritos associados. Citando Kluger:
A arte Clownesca é muito rica e antiga. Desde que o homem se fez homem há o papel
arquetípico do palhaço, que é naturalmente encenado por todas as pessoas comuns, desde a
mais tenra idade, quando querem alegrar aos outros, seja um pai ou mãe fazendo carinhas,
vozes e trejeitos ridendes para o seu pequeno bebê, seja entre grupos de amigos, em situação
de entretenimento de hóspedes, entre amantes, namorados e suas brincadeiras, e nós com
nós mesmos quando nos descobrimos brincando. Esse papel é uma atitude prazerosa com
um fim em si mesmo, pois rir e se descontrair é natural e espontâneo, per ludum, per jocum,
que significa, por brincadeira, por prazer (Castro, 2005).
Castro (2005), ao recontar o desenvolvimento do palhaço na história de nossa civilização,
cita seus outros nomes, como bufão, saltimbanco, clown, augusto, jester, arlequim, entre
outros. Na Grécia eram chamados gelotopoios, e podiam divertir o público com suas
brincadeiras e imitações em espaços públicos, juntamente com sua trupe formada por
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equilibristas, dançarinos e malabaristas, todos artistas itinerantes que podem ser encontrados
com o mesmo protótipo nos dias atuais nas ruas da cidade. Em qualquer organização humana,
essa figura aparece aqui e ali com seu papel social a desenvolver - claro que em uns estes
traços cômicos se sobressaem mais que em outros - e os que se destacam viram notáveis,
como por exemplo, o Hotxuá, um palhaço sagrado, sacerdote do riso da tribo Krahô, localizada
no estado de Tocantins; ou então os bobos da corte, que sempre estavam à espreita em
qualquer castelo na Idade Média, e eram bastante valorizados enquanto piadistas, já que
podiam dizer verdades ao rei e nada lhes acontecia enquanto se mantivessem na posição de
imbecis e, portanto, fracos, sem autoridade (Castro, 2005). Sendo assim, uma característica
encontrada neste símbolo não seria o desembaraço em se dizer as verdades espontaneamente?
O Bobo é transparente, trazendo à tona os não ditos culturais, o que foge do convencional,
e se observarmos, isso provoca sempre um gozo, expresso no riso, por afirmar uma liberdade
de pensamento e de criação em relação a esses mesmos valores cristalizados. O riso é
iconoclasta - um gracejo pode derrubar idéias estagnadas, pondo em circulação outros pontos
de vista, e essa era exatamente uma das funções do Bobo, que com seu modo despretensioso
fazia o Rei refletir e reconsiderar suas sentenças e decisões.
Na compreensão do Louco, no Tarô, - mesma imagística do palhaço - tem-se o mesmo
como "número zero", podendo também ser indicado como a última carta, de número 22.
Não há importância na sua numeração, pois ele é o início e o fim, e tal como o coringa nos
jogos de carteados modernos, se aparecer junto a qualquer uma das outras cartas, muda o
curso do jogo, ou então, encaixa-se perfeitamente sendo bem aceito em toda e qualquer
situação (Nichols, 2005). Há um dito italiano que fala para "ser como um Louco", ou seja,
para ser bem recebido em toda a parte.
O Louco no início e fim do Tarô tem analogia com o círculo como princípio e fim da
jornada de individuação, porém se ele está rindo é para nos lembrar que, nessa jornada de
descobrimento, o bom humor, acasos e lapsos afortunados são graças e pistas que facilitam
o processo. A graça, no sentido teológico, é um dom transitório outorgado pelo alto como
um norte para a mente, um conjunto de comoções interiores divinas e passageiras que o
homem recebe quando age confiando na providência divina. Diz-se que o louco possui o
poder redentor da simplicidade acrescida da fé, e que são seres tocados pelas mãos de Deus,
ou seja, pela graça divina (Nichols, 2005).
Von Franz (1990) liga o Bobo à função inferior - termo que se refere à função pouco
desenvolvida da consciência - que com sua loucura e sandice sempre sai ganhando nos
jogos propostos entre irmãos nos contos de fadas. Se nos detivermos no que há por trás
dessa energia tricksteriana, percebemos uma força que impulsiona a ir aonde o ego
normalmente não iria. Isto não pode ser simplesmente aniquilado pela dinâmica da vontade,
pois quanto mais renegado, mais ele pode tomar de assalto o indivíduo.
Quanto a se descobrir sozinho por meio do brincar e divertir-se, tem-se também na tradição
hermética do Tarô pistas sobre essa situação, pois em várias imagens de cartas há a réplica
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da própria cabeça embarretada que o palhaço segura em sua mão, com a qual ele é visto
entretido a conversar. Em outros baralhos uma Louca é vista segurando um espelho cuja
imagem sorri ou mostra a língua. Este emblema aponta para a representação do seu alter ego,
a relação que se consegue ter consigo mesma ao longo do processo de individuação (Nichols,
2005).
O arquétipo trata "de constantes antropológicas do comportamento, do experienciar, do
retratar, e do processar" (Kast, p.110, 1994). Nesse sentido, é interessante notar que a
figura prazenteira do palhaço está comumente associada às situações de ódio, desgraças,
guerras, medo, morte, injustiça social e a ambientes que criam desforra em relação à rígida
hierarquia estabelecida, justamente porque sua mensagem serve para mudar a dinâmica em
questão. Os palhaços aparecem no hospital, por exemplo, instituição em que se estampa a
tragicidade humana frente à morte e às doenças; outro exemplo de que me lembro para
exemplificar essa idéia é a atitude clownesca e sábia do personagem Guido, o pai amoroso de
Giosuè, no filme de comédia-dramática A Vida é Bela, no qual ele faz seu filho acreditar
que ambos estão participando de uma brincadeira, ao invés de presos ao horror de um
campo de concentração.
A polícia e o palhaço são personagens tão opostos que sempre serviram para os artistas
do gênero forjar enredos e assim garantir entretenimento, pois não tem quem não expresse
um leve sorriso ao ver um policial ser enrolado e levar um pé na bunda. O antropólogo Da
Matta (1997) analisa em seu livro Carnavais, Malandros e Heróis os momentos de carnaval e
de parada militar como exemplos de polos opostos: um é altamente flexível, subversivo,
anárquico, o outro é temeroso, rígido, há hierarquia inflexível, com tolhimento dos movimentos
e da liberdade de expressão.
Conta-se em O Banquete, de Platão, que Sócrates persuadia os convivas a observarem o
fato de que é de um mesmo homem o saber fazer uma comédia e uma tragédia, e que aquele
que com arte é um poeta trágico é também um poeta cômico. Na peça teatral O Auto da
Compadecida, de Ariano Suassuna, é uma comédia cheia de simbolismos e que, como Auto,
trata de questões religiosas, morais e sociais, fazendo rir do início ao fim. De fato, "tudo que
dá pra rir dá pra chorar", como afirma um sábio dito popular.
O que causa a risada desde o início dos tempos até os nossos dias não difere muito: é o
jogo do deboche de personagens populares, as imitações, trocadilhos, o uso imprevisto do
corpo, a derrota, o erro, a ingenuidade, a brincadeira que traz acréscimos à vida (Bergson,
2001). É uma essência brincante que joga com as limitações e desfruta o gozo disso, uma
energia de vida com a coragem de assumir seu ser limitado, sua dor, a fim de transgredi-la,
como nos diz Cybele (2009) sobre o palhaço. Porque é uma figura que se expõe em sua
tolice e estupidez, que põe a mão no fogo e que dá a cara a tapa. Ele não conta uma piada
engraçada, ele próprio é a graça, o risível, mas ao mesmo tempo é considerado uma peça
importante da cultura e de nós mesmos (Op. Cit.,p.3).
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Para Bergson (2007), a comicidade humana é razoável a seu modo, até em seus maiores
desvios; é metódica em sua loucura, capaz de evocar insights que são facilmente
compreendidos pelo grupo no qual se manifesta, e justamente por isso pode nos dar
informações sobre o trabalho da imaginação humana. Interessante notar que, ao falar para
amigos sobre a intenção de escrever este artigo, a contribuição quase unânime deles para tal
assunto era lembrar-me sobre a máscara da alegria como um disfarce para a tristeza humana,
ideia muito evocada quando se fala em palhaço. No entanto, o ser ironicamente triste também
recupera a dignidade humana, por revelar um espírito que possui a capacidade de transcender
o sofrimento (Nichols, 2005). Os mestres da arte de palhaçaria ensinaram, nos dois pequenos
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cursos dos quais participei com o fito de mergulhar um pouco mais neste universo, que este
personagem era muito tentador, havendo o risco de identificação do artista com ele, de
modo que, após "tirar o nariz de palhaço", o artista pode seguir desempenhando esse jogo
divertido e tragicômico. Sem descartar a possibilidade de que qualquer adulto ou criança
venha a usar os gracejos constantes como uma máscara engessada, ressalto que este
comportamento é bastante natural e salutar: é o nosso instinto lúdico, de expressão espontânea
de nossa essência. Somos em essência, na concepção filosófica de Huizinga (1980), homo
ludens, sendo um fator de sofrimento o bloqueio ou inibição, por algum motivo, de tal função
psíquica.
Jung ([1936] 2000, par. 240-245) escreve sobre o instinto que impulsiona a ação, tendo
incluído aí os impulsos a viajar, o amor à mudança, o desassossego e o instinto lúdico, sendo
que este leva à criação da cultura e à transcendência humana, categoria essencial também
presente em manifestações artísticas mais "elevadas".
Castro (2005) segue contando em seu livro, O Elogio da Bobagem, que a situação dos
comediantes e artistas da diversão ficou muito difícil na Idade Média, pois como em todo
período fundamentalista, o riso e o prazer são perseguidos, já que em sua aparente bobagem
os palhaços estão sempre subvertendo a ordem - é a voz dos "vagabundos" frente à elite
douta, a qual sempre se considera superior e não vê nos simples qualquer sabedoria (Da
Silva, 2006). O riso era considerado profano na Idade Média, pois era capaz de aniquilar o
temor a Deus e ao diabo, condição necessária para a manutenção da autoridade religiosa,
tornando mais maleáveis e passíveis de transformação o estado rígido estabelecido. As
sociedades e culturas que integram o riso nos seus rituais sagrados são mais equilibradas
socialmente e, por consequência, psiquicamente, pois há espaço para se dizer as outras
verdades que existem, pondo em circulação a função da alteridade.
2
Oficina de Clown ministrada pelo ator e mímico Fernando Vieira, em julho de 2009, e laboratório permanente
de Clown, ministrado pela atriz e diretora Silvia Leblon, em 2009/2010.
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destruir o fascinum, ou seja, o mau olhado, sendo que a partir desses rituais nasceram
posteriormente os teatros de comédia e tragédia.
A eficácia psíquica proporcionada pelo riso ritualístico na Grécia possui em seu bojo a
mesma dinâmica que garante os bons resultados da atuação dos palhaços no ambiente
hospitalar. Com seu slogan "rir é o melhor remédio", estes profissionais revelam uma verdade
da alma.
Um palhaço no hospital está lá para combater a morte tanto quanto um médico e sua
equipe de saúde, só que através da energia lúdica que tentam movimentar no ambiente.
Masseti (1998), em relação às pesquisas realizadas sobre a atuação dos palhaços nos hospitais,
afirma que estes alteram num sentido bastante positivo o comportamento dos infantes:
crianças prostradas ficam mais ativas e começam a se comunicar melhor, favorecendo o
contato com a equipe médica; há melhora na disposição para alimentar-se, uma aceleração
do tempo de recuperação do doente e, claro, diminuição do medo da situação hospitalar.
Palavras de Charles Chaplin, que refletem a essência deste arquétipo integrador de emoções
e idéias opostas: "A beleza existe em tudo, tanto no bem como no mal. Mas somente os
artistas e poetas sabem encontrá-la." (Júnior apud Chaplin, p.69, 1989). "Creio que o pecado
é realmente um mistério tão grande como a virtude" (Op. cit. p.88). Passei a entender o
palhaço como um símbolo de um equilibrista das emoções, dos afetos e dos símbolos, que
anda no meio das situações trágicas e cômicas como uma força capaz de manter o ser
humano de pé quando as vicissitudes desfavoráveis o atingem, a melhor imagem para ele é
a da máscara em que metade ri e metade chora, pois ele não nega a tragédia da vida, e sim a
aceita e integra, além de possuir uma doçura e uma força que a supera.
A roupa colorida é símbolo por excelência da união de muitos opostos; suas cores variadas
e seus desenhos fortuitos indicam um espírito discordante, porém se distingue um modelo,
uma forma inconfundível (Nichols, 2005). A arte Clownesca é uma categoria peculiar no
gênero teatral, pois ela precisa que seu personagem principal seja construído em cima das
características do próprio ator. Carlitos era uma expressão do próprio Chaplin: de origem
humilde, era um vagabundo que, quando se transformou em ator, encenou a si mesmo de
forma caricata. Assim, cada ator terá que descobrir seu próprio clown, suas próprias verdades,
fraquezas, e transformá-las em graça e força do personagem.
Chaplin construiu uma obra inclassificável, pois tem drama, comédia, crítica social e
humanismo; dentro de sua arte ele era considerado um bailarino, devido ao alto domínio
corporal que tinha. Como exemplo do seu trabalho fabuloso tem-se o filme Garoto, que
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inicia com os seguintes dizeres: "Um filme com um sorriso e talvez uma lágrima", no qual é
contada a história de uma mãe que abandona seu filho logo após o nascimento, mas logo em
seguida ele é encontrado pelo personagem Vagabundo, que passa a criá-lo. Eles ganhavam a
vida anos mais tarde da seguinte forma: o menino ia à frente arremessando pedras e quebrando
os vidros das casas, enquanto Chaplin passava logo em seguida, vendendo vidraças; um
verdadeiro trapaceiro, mas o filme nos leva a compreender e a amar o trapaceiro. Um dia,
então, o garoto adoece e recebe a visita de um médico, que ao descobrir que ele não é filho
do Vagabundo chama o juizado de menores, que o leva embora à força, numa cena muito
dramática. No final, a mãe, agora uma atriz de sucesso, encontra seu filho, e supostamente
tudo acaba bem.
No filme O Grande Ditador, Chaplin trata do nazismo de maneira cômica, e passa sua
mensagem no "Último Discurso", um texto com teor humanista e político.
O método de amplificação é empregado numa tentativa de estender, mediante imagens
semelhantes, as idéias e associações possíveis àquele tema, e inseri-las assim num contexto
maior de sentido (Kast, 1994), como, por exemplo, mitos, contos, ritos e histórias típicas.
Os exemplos aludidos até aqui permitem fazer isto, pois ilustram, entre outras coisas, a
mesma situação pela ótica da tragédia, da comédia ou conjugando estas polaridades, vendo-
as pela perspectiva tragicômica, que é a que mais se aproxima da vida real. O palhaço serve
como imagem compensatória para pessoas que perdem sua naturalidade com facilidade,
que estão se defrontando com suas sombras, com a sua criança interna, que costumam ficar
constrangidas, deprimidas, desconcertadas, ou seja, sentem vergonha de si mesmas, ou então,
quando não se tem muita espirituosidade, se é muito sério, sisudo, rígido, autoritário, sem
vivacidade, sem a capacidade de brincar com as coisas simples.
Bergson (2001) traz um juízo acerca do corpo cômico, afirmando que se sentir engraçado
é muito diferente de se sentir ridículo. Esse último estado desarmônico provoca, no dia a
dia, comportamentos realizados de maneira automática, aos tropeços, sem que uma adequada
consciência de si esteja presente. É uma tendência viciosa do corpo e da alma, que se
cristalizou no decorrer do tempo sem que o sujeito se apercebesse, pronta para ganhar uma
significação inconsciente subjacente.
Conclusão
Finalizando este artigo, gostaria de apontar que a espontaneidade do clown faz lembrar a
criança. Segundo Jung ([1940] 2007, par. 276-277), o estado originário, inconsciente e
instintivo da infância não deve ser confundido com a criança concreta, pois é um órgão
psíquico com uma função a desempenhar durante toda a vida, e que pode ser ameaçado
devido à exacerbação da dinâmica da vontade. A consciência diferenciada, excessivamente
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Referências Bibliográficas
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O TRANSPLANTE CARDÍACO
VIVENCIADO COMO UM RITUAL DE
PASSAGEM - Uma Abordagem Analítica
Apresentação
Introdução
No último século, o transplante cardíaco vem se mostrando cada vez mais como uma
possibilidade viável e indicada nos casos em que os tratamentos clínicos, procedimentos
intervencionistas ou cirúrgicos não são mais suficientes para manutenção da vida e de sua
qualidade. No entanto, embora os avanços tecnológicos tenham favorecido muito os aspectos
médicos no campo dos transplantes, ainda há muito que estudar e avançar no que tange à
inclusão e compreensão da subjetividade dos indivíduos envolvidos em todo este processo.
O objetivo deste trabalho é ampliar a compreensão da vivência do transplante cardíaco
como um ritual de passagem, discutir as implicações psicológicas que decorrem da mesma e
a proposição de algumas diretrizes aos psicólogos que trabalham com esta população.
1
Psicóloga clínica formada pela PUC-SP, com aprimoramentos em Psicologia Clínica Junguiana na PUC-SP e
em Psicologia Simbólica Junguiana no Instituto Sedes Sapientiae, especialização em Psicologia Hospitalar no
Hospital do Coração e mestrado em Psicologia Clínica Junguiana na PUC-SP. E-mail: ariane_garcia@hotmail.com
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Método
Foi realizada uma revisão de literatura acerca do tema, abrangendo o período de 1990 a
2007 em função da escassez de material específico, em livros, teses de conclusão de curso
para graduação em Psicologia, dissertação de mestrado e tese de doutorado de Psicologia
Clínica e artigos científicos em revistas periódicas, articulando tais conteúdos com a
interpretação da abordagem analítica sobre o adoecer e o simbolismo do coração e dos ritos
de passagem.
Resultados
De acordo com Ramos (1994), a Psicologia Analítica possui uma visão finalista na qual
a doença e os sintomas podem ser considerados expressões simbólicas do inconsciente que,
ao se manifestarem, visam integrar à consciência determinados conteúdos desconhecidos
ou reprimidos.
Desta forma, para entender quais as repercussões emocionais que o adoecer do coração
pode gerar, é preciso saber quais os significados que o símbolo do coração adquiriu ao longo
do tempo em nossa sociedade e cultura.
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Simbolismo do coração
Adoecer do coração
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Ritos de passagem
Para Campell (1999), a função primária tanto dos mitos, quanto dos ritos, sempre foi
fornecer símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se às fantasias humanas
constantes que tendem a levá-lo para trás.
Alvarenga (2007), embasada na Psicologia Analítica, postulou que são os mitos que nos
fazem entender o viver e o morrer, assim como o sentido de cada coisa, pois considera que
estes são um modelo de atividades e realidades humanas significativas, que, ao serem
traduzidos para a consciência, fazem-no como expressões intensas e mobilizadoras, como
matéria simbólica e estruturante da psique.
Isto porque é através do estudo dos mitos que conhecemos os segredos do mundo,
apreendemos sobre o funcionamento humano, as reações, desejos e sentimentos próprios
de sua natureza. É através dos mitos que podemos compreender a dinâmica da transformação
da psique. Ou seja, são os ritos que trazem as possibilidades de entrarmos em contato com
os mitos e experienciá-los, perpetuando, desta maneira, conhecimentos e tradições de
sociedades, culturas e religiões.
Alvarenga (2007), fazendo referência à Psicologia Analítica, afirmou que essas vivências
de rito ocorrem no nosso cotidiano, bem como em uma sessão analítica "... quando estamos
em determinadas evocações, consideradas como pertencentes ao passado" (p.97). Isto
porque, na sessão analítica, podemos retomar o momento passado e revivê-lo com todas as
cargas afetivas.
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O rito torna o tempo reversível, libertando o homem do tempo morto, tempo da neurose
e da repetição. Com isto, o rito nos traz a capacidade de transformar o passado. Entramos,
desta maneira, na reversibilidade do tempo, tornando-se possível recriar o mundo
simbolicamente.
Discussão
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O primeiro passo a ser dado pelo paciente, do ponto de vista psíquico, neste longo
processo do transplante, é a aceitação da doença, pois é só a partir deste momento que ele
poderá considerar a ideia de ter que transplantar o seu coração.
O adoecer, e principalmente o adoecer do coração, órgão que pulsa o sangue para todo o
corpo, traz uma grande ameaça à integridade e existência do ser humano. Por esta razão,
acaba por gerar nos indivíduos muitos conflitos, medos, angústias e incertezas.
Deparar-se com a necessidade de ter que retirar o órgão responsável pelo fluir da vida é
colocar-se frente à possibilidade da própria morte.
Já nos casos em que a doença e os sintomas (que surgem como expressões simbólicas e
possuem uma função compensatória e auto-reguladora), cumprem a sua finalidade, facilitando
que o paciente escute os gritos da sua alma que soam através deste coração doente, torna-
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Durante a cirurgia, o paciente vive um confronto direto com a morte e com a paralisação
temporal. Esta vivência é bastante mobilizadora e transformadora em termos psíquicos, e
quando o paciente ultrapassa este momento é que podem surgir as fantasias em relação ao
órgão incorporado. O fato de ter dentro do peito o coração de outra pessoa, o órgão
considerado o mais sagrado do corpo humano, pode causar muitas perturbações, se o paciente
não tiver sido bem trabalhado e não tiver incorporado o sentido maior desta experiência.
O paciente, portanto, deve preparar-se para uma morte simbólica, elaborando o luto
daquele órgão que está sendo retirado de seu peito, para então poder incorporar o novo
coração que está recebendo.
Assim sendo, nota-se que quando o indivíduo vivencia o processo de transplante cardíaco
como um rito de passagem, ele consegue elaborar melhor a perda de seu órgão, vivenciando-
a como uma morte simbólica, conseguindo atribuir um sentido de renascimento e
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continuidade da vida ao enxerto. Deste modo, o paciente integra de forma mais concisa e
clara à consciência esta nova fase de sua vida.
Lima Filho (1997) ressalta que os ritos de passagem propiciam alguns elementos de
estruturação da consciência, pois:
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Considerações finais
27
Referências Bibliográficas
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A MITOLOGIA DE HEFESTO
O Deus mutilado como um
modelo pessoal de individuação
Introdução
1
Médico, Professor Associado, aposentado, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. Especialista em
Psicoterapia Junguiana coligada a Técnicas Corporais pelo Instituto Sedes Sapientiae. E-mail:
educfarias@gmail.com
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Objetivo
Mitologia de Hefesto
De acordo com Bolen (2002), o homem Hefesto caracteriza-se por ser rebelde, desafiador,
habilidoso, obstinado, solitário (mesmo acompanhado), crítico, seletivo, leal, interessado
apenas em mulheres especiais; é visceralmente paternal, cooperativo, não-competitivo, sempre
disposto a ensinar e a facilitar a vida dos outros. Além dessas características principais, há
outras tantas secundárias. Impactou-me, sobremaneira, reconhecê-las todas em minha
personalidade.
30
Simbologia do coxo
Gerado sem amor, por disputa de poder, rejeitado ao nascimento, agredido e mutilado
por mãe e pai, Hefesto é marcado pela claudicação. Em múltiplas culturas, a condição de
coxear apresenta rica simbologia, quer luminosa, quer sombria. O coxo, assim como o trickster
e o herói, simboliza o transgressor. Os três personagens arquetípicos caracterizam-se pela
dupla natureza, humana e divina.
Os deuses têm ciúmes dos herois e dos delinquentes, mas regozijam-se com eles. Os que
são singulares pagam com a perda de sua integridade física o desfrute do conhecimento e do
poder. As incapacitações são um aviso contra a hybris. Os deuses advertem que os mortais
devem ser sempre submissos, e que quaisquer rebeldias serão punidas. Aqueles que afrontam
os deuses serão definitivamente marcados com a imparidade, a assimetria, o desequilíbrio, a
disfunção.
Hefesto tentou proteger Hera da fúria de Zeus e este o arremeteu desde o alto do Olimpo.
Depois de um dia inteiro de queda, tombou sobre a ilha de Lemnos, quebrando ambas as
pernas. Retornou aleijado à morada dos deuses, apoiado em muletas de ouro.
Jacó viu Javé face a face e o Senhor enviou o anjo Peniel (a face de Deus) para feri-lo
na coxa. Ao amanhecer, Jacó manquejava e seu nome havia sido trocado para Israel (a
luta de Deus).
Cambalear é alternar as condições celestes e terrenas. Apoiar-se sobre uma das pernas ou
retirar o calcanhar do solo é acumular poderes, concentrar energia física e psíquica. As
amazonas fraturavam as pernas dos homens capturados para inseminá-las, tornando-os,
assim, mais férteis, potentes, coléricos e agressivos.
A mutilação pode ser iniciática, conferindo dons, ou contra-iniciática, cassando
poderes. Toda a deformidade é sinal de mistério, conferindo poderes, quer benéficos,
quer maléficos.
Os deuses criam o mundo, os demiurgos o ordenam, modelando a terra. Mas pagam o
preço por suas habilidades extraordinárias. Os deuses são invejosos e cruéis. Em quase
todas as mitologias, os mestres da forja e das artes do fogo são coxos, pernetas, manetas,
zarolhos ou estropiados de alguma forma. Os artesãos são castigados com as deformidades
porque teimam em melhorar o mundo imperfeito criado pelos deuses. Os deuses não dividem
os poderes impunemente com os mortais. Tampouco toleram desobediência. A rebeldia do
anjo Lúcifer, o portador da luz, o derrubou do céu, deixando-o manco, tornando-o "le diable
boiteux" (o diabo coxo).
31
32
Considerações finais
Referências Bibliográficas
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Paulo: Paulus.
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WILLIS, R. (2007). Mitologias: deuses, herois e xamãs nas tradições e lendas de todo o mundo. Publifolha.
33
34
Introdução
O tema da violência como um problema social tem, atualmente, chamado cada vez mais
a atenção da mídia, que bombardeia o público por meio da televisão, da internet ou ainda de
jornais e revistas impressas com notícias chocantes e alarmantes. O uso da repressão na luta
contra a violência traz elevados índices de audiência a filmes e seriados, nos quais é
reproduzido o antigo tema da luta entre o Bem e o Mal. Não se deve esquecer que este tema
é um fenômeno que sempre existiu e, provavelmente, sempre existirá na humanidade. O
desejo de eliminá-la, portanto, mostra-se uma ilusão. Porém, quando a violência atinge um
ser em desenvolvimento, como nossas crianças e nossos jovens, os prejuízos podem ser
incalculáveis.
1
Psicóloga formada pela Universidade de São Paulo, Arteterapeuta, especialista em Psicologia Junguiana
com abordagem corporal pelo Instituto Sedes Sapientiae e coordenadora do Programa de Estudos da Violên-
cia do Núcleo Espiral. Email: amanaperrucci@gmail.com
2
Estudante de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e voluntário no Programa de
Estudos da Violência do Núcleo Espiral. Email: davi.costas@gmail.com
3
Estudante de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e voluntária no
Programa de Estudos da Violência do Núcleo Espiral.
35
Em pesquisa realizada pela OMS (2002), calcula-se que 57 mil crianças e adolescentes
de até 15 anos foram mortos por homicídio. Entre 1996 e 2004, a negligência aparece como
a violência mais notificada. Somando todas as modalidades de violência doméstica (física,
psicológica, sexual, fatal e negligência), durante esse período o número total de casos de
vítimas desse tipo de violência notificados no Brasil subiu de 1.192 para 19.552. Quanto à
violência psicológica, cerca de metade dos adolescentes convive com ela direta ou
indiretamente (http://www.unicef.org/brazil/pt/Cap_01.pdf).
Segundo o Instituto São Paulo Contra a Violência, o relatório do Disque Denúncia do
primeiro semestre de 2010 aponta que as denúncias de Maus Tratos Contra Criança é a
terceira mais frequente dentre aquelas realizadas no Estado de São Paulo, representando
5,5% do total das denúncias realizadas nessa localidade (http://www.ispcv.org.br/proj/
dd/dados_dd.php).
Conforme a abordagem da Psicologia Analítica, o trauma seria uma fonte de sintomas e
dos chamados complexos. Quando a violência ocorre no período da infância, a chance de
sequelas fixarem-se no terreno físico é maior, pois nessa fase há o predomínio de vivências
corporais. Procurando sanar essa ferida que se forma na sociedade, algumas organizações
sociais direcionam o seu trabalho na busca de formas para prevenir a violência, para oferecer
assistência ao amplo público atingido, e para compreender o fenômeno, ainda em ascensão.
O que se observa, porém, nas intervenções voltadas a esse público é a ideia de que o corpo
é um enorme "vespeiro", que não deve ser tocado. Vítimas e cuidadores carregam o medo:
os primeiros, não se deixam amar, pois se defendem de um possível próximo ataque; os
últimos, não podem tocá-las, pois têm medo de retraumatizá-las. Cria-se, assim, um tabu.
No entanto, é na compreensão do corpo enquanto símbolo e em sua riqueza como potencial
de transformação que se atinge o lado saudável, que se exploram recursos e que se promove
a resiliência de futuros cidadãos. É a partir de tal perspectiva que foi criado o Método
Espiral, a ser apresentado adiante.
36
Notamos o modo como a violência está enraizada em nossa sociedade. Partindo do ponto
de vista da sociologia, é possível encontrar maneiras de compreender o fenômeno da violência,
de modo a visualizar meios de superá-la. Propõe-se, assim, a verificação do mecanismo de
funcionamento da violência em duas dimensões: sintéticas e didáticas. Na primeira, dimensão
estrutural da sociedade, constata-se que a violência exerce uma relação vital com a sociedade,
4
já que é uma das principais e mais características instituições sociais existentes. O ato
violento é meio de frequente utilização, para que as instituições consigam sua legitimação
perante os indivíduos. A instituição familiar, de forma simbólica e expressa nos papeis de
pais e filhos, é um microcosmo que representa as relações existentes externamente a ela
mesma. São percebidos esforços para garantir a perpetuação da família: a educação dos
filhos visa a desenvolver neles a capacidade de administrar os bens familiares. Aqui
encontramos a violência como sendo, historicamente, a principal ferramenta educativa
utilizada para esse fim. Já na segunda dimensão, das interações entre indivíduos, sob uma
perspectiva paralela, verifica-se um anseio dos indivíduos em ver sua linhagem continuar
atuante na sociedade. Aqui a educação violenta é mais uma vez a mais frequente ferramenta
utilizada para esse fim.
Considerando o indivíduo singular, verificamos a violência acidentando seu processo de
desenvolvimento. De acordo com Neumann ([1950], 1995), as experiências adversas são
responsáveis pela emergência do chamado ego ferido. Diz ele:
Ainda de acordo com o autor, as experiências negativas vividas pela criança são capazes
de gerar agressividade, a qual funciona como mecanismo de defesa, caso a criança não
tenha aprendido limites ou a direcionar suas atitudes agressivas. Servem também como
meio de compensação do ego ferido, fundamentando personalidades egoístas, egocêntricas
e narcisistas.
4
Baseado na definição de Peter L. Berger e Brigitte Berger em: Berger, P.L. & Berger, B. O que é uma instituição
social? [orig. ingl. 1975]. Trad. R. Paul Neto. In: Foracchi, M.M. & Martins, J.S. (Ed.). Sociologia e sociedade.
Rio de Janeiro: LTC, 1977, pp. 193-199.
37
É possível verificar que o ato violento está enraizado em nossa sociedade, já que ele
pode, inclusive, ser encontrado na composição das personalidades. No entanto, não é
impossível transformá-lo. A sociedade precisa educar seus integrantes para garantir a própria
continuidade. Assim, através do incentivo a formas de educação não-violentas e da promoção
da resiliência em crianças e adolescentes, esse problema poderá ser amenizado.
38
A Psicologia Analítica define que a origem dos conteúdos inconscientes não seria apenas
do campo pessoal, reprimido; para Carl Gustav Jung, esses conteúdos seriam originários de
um campo coletivo, de difícil acesso e expressão através da linguagem verbal. Para melhor
compreendê-los, Jung buscou os mitos, as lendas e a alquimia, procurando fazer relações
com as antigas tradições e aquilo que se mostrava difícil de acessar. Esta perspectiva propõe
a busca pelo novo e desconhecido emergente no indivíduo, de modo a olhar para o presente
e o futuro. Jung ([1907], 1986) diz que
39
Ainda de acordo com Ramos (1994), o símbolo surge como "a expressão da percepção
do fenômeno psique-corpo, feita através da percepção das alterações fisiológicas e das
imagens referentes, sincronicamente." (p. 51). Partindo dessa concepção, observa-se que as
crianças que foram privadas deste tipo de relação, independentemente da causa, ficam
prejudicadas quanto a essa formação, uma vez que a construção da sua identidade se dará a
partir de um processo contínuo de integração simbólica de partes fragmentadas do ego, que
se agrupam e formam o complexo do ego, tendo como base experiências predominantemente
negativas (Sauaia, 2003).
40
Também para esses autores, a resiliência é um processo dinâmico que envolve tanto as
interações, quanto os fatores intrapsiquicos. Portanto, apesar de ser característica individual,
o processo resiliente envolve a dimensão externa, apoiado nas relações entre indivíduos,
podendo, assim, ser abordado e incentivado também a partir do exterior. Dessa forma, o
trabalho com grupo de crianças pode também incentivar a socialização e o bem estar
fisiopsíquico, promovendo, dessa forma, a resiliência.
Apesar de o conceito ser abordado de maneiras divergentes por diversos autores, Sauaia
(2003) aponta que há concordância quanto à ideia principal, que é "a capacidade de o
indivíduo manter um funcionamento considerado adaptado, mesmo diante de adversidades,
ou sérias ameaças ao desenvolvimento." (p. 8).
41
A mesma autora diz que esse vetor influencia a direção a ser tomada pela unidade grupal
e afirma ainda que a força resultante da dinâmica grupal influencia no desenvolvimento de
cada um dos participantes.
42
O programa Retocare, semente dos demais programas que têm como base o Método
Espiral, é responsável pela realização de encontros socioeducativos a crianças e adolescentes.
Através do modelo de cuidado preventivo, procura-se fortalecer os participantes do grupo e
criar condições favoráveis para que este público não se torne novamente vítima e tampouco
autor de situações de violência. Nos encontros, leva-se em consideração a noção da Psicologia
Analítica de que há uma tendência natural do organismo em direção à integração e equilíbrio
das polaridades psíquicas; assim, "onde há feridas e sofrimentos, há também um potencial
para superá-los que pode ser acessado." (Silva e Martins, 2008, p. 58).
Em um dos grupos atendidos, no ano de 2009, participaram 7 crianças de 7 a 11 anos.
Os encontros, realizados em um núcleo socioeducativo, estabeleciam um ritual de entrada
e saída caracterizado pela escolha de personagens dentro de algum tema selecionado por
eles. Neste grupo, foi escolhido o tema X-Men e, entre eles, estava L.G. um garoto de 7 anos
cuja mãe, usuária de drogas, agredia física e moralmente o garoto e seus quatro irmãos, além
de manter relações sexuais com diversos parceiros na frente das crianças. Um destes parceiros
tentou abusar sexualmente de uma das irmãs de L.G., que presenciou a cena. Após esse
fato, a guarda das crianças foi cedida ao pai, que morava com uma segunda mulher e outras
três crianças.
Neste novo contexto, as condições de higiene a que foram apresentados mostrou-se precária
e era comum L.G. chegar ao núcleo socioeducativo com um forte odor no corpo -
especialmente nos pés -, sujo e com roupas furadas. Por esses motivos, era alvo de piadas
dos colegas e interagia muito pouco com todos. Tinha muita dificuldade em expressar-se,
sendo acompanhado inclusive por uma fonoaudióloga.
O personagem escolhido por ele era o Homem Gelo. Inicialmente, mantinha-se afastado de
todos no grupo; era muito desconfiado, assustado e retraído. Não só não aceitava forma alguma
de toque - nem das educadoras, nem dos colegas - como criava uma barreira com colchonetes
ao seu redor, evitando que os outros se aproximassem e que ele participasse das atividades. A
partir do 8º encontro, porém, o garoto começou a "abrir" a barreira, deixando uma porta para
que as educadoras entrassem e até mesmo o tocassem. Depois desta abertura, L.G. passou a
participar ativamente das atividades e interagir com os demais, demonstrando aproveitá-las e
divertir-se. O toque passou a significar algo positivo e não ameaçador.
O grupo, que antes apresentava grandes dificuldades em respeitar limites, apresentou, ao
término do trabalho, uma maior compreensão da importância das regras, de horário, de
respeito ao outro e noção de espaço. Souzenelle (1987) fala que, durante a infância, primeira
etapa de desenvolvimento da vida do homem, a criança adquire as principais noções do
mundo que a rodeia, tais como tempo, espaço, leis. O contato das crianças do grupo, até
então defasado com figuras que representassem o papel da moral, foi favorecido pelas figuras
das educadoras, que possibilitaram a ressignificação desses valores.
43
44
Discussão de resultados
A assimilação de que a violência deva ser interpretada como um problema social remete,
automaticamente, à necessária tomada de consciência da pertinência de uma responsabilidade
coletiva. Partir da premissa de que a prática da violência exige um cenário e, portanto, um
âmbito social e a sua vivência, significa pressupor que a sociedade civil precisa ser
sensibilizada, que a família que violenta precisa ser cuidada e que os profissionais que lidam
com tal contexto precisam ser capacitados, a fim de que as intervenções baseiem-se na
vontade política, no compromisso, na dedicação e no abandono do comportamento
indiferente e negligente.
A responsabilização, o envolvimento afetivo com o outro, o zelo e a ocupação, ao
substituírem o descaso, concretizam a ideia de que
45
Referências Bibliográficas
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RAMOS, D. A psique do corpo: uma compreensão simbólica da doença. São Paulo: Summus,
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46
47
48
CORPO-EM-HABITAÇÃO E
TRABALHO TERAPÊUTICO
Notas para a afirmação de um
organismo sistêmico simbólico
Adriana Bosco1
Nossa sociedade hoje se caracteriza como uma sociedade pós-industrial, em que a produção
de riquezas se dá num nível abstrato de transações financeiras por meio do capital
especulativo e na qual um sistema de governo baseado na democracia liberal parece ser o
ideal de organização política. O consumo é massificado e a ideia de progresso está associada
à acumulação material e à exploração cada vez maior dos recursos naturais do planeta, em
conformidade com um modelo em que crescer significa expandir pela superfície.
Se levarmos em conta, como coloca Breton (2011, p.19), que o tipo de sociedade em que
vivemos produz uma ideia de pessoa e uma ideia de corpo particulares, perceberemos que,
em nosso tipo de sociedade, as representações sociais acerca do corpo atribuem-lhe uma
posição simbólica como matéria que se possui, e neste modelo a matéria é manipulável.
Tira-se minério da natureza, submete-se o minério a um processo industrial, fabrica-se liga
metálica, esta é moldada e tem-se um carro. Da mesma forma, as intervenções corporais,
como dietas, tratamentos estéticos, a "malhação" e as cirurgias plásticas estão intimamente
ligadas à palavra "corpo". Segundo Wolf (1992, p.18), as indústrias da estética e da dietética
1
Psicoterapeuta Junguiana, trabalha com Abordagens Corporais e estuda sistemas de Educação Somática e
Antropologia do Corpo. É mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo e Especialista em Psicologia
Junguiana coligada a Abordagens Corporais pelo Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo. Atualmente leciona na
Universidade Bandeirante de São Paulo. E-mail: adrianabosco@ig.com.br
49
são das que mais crescem em todo o mundo, e os números que comprovam tal crescimento,
a partir do pós-segunda guerra mundial, são surpreendentes. Outras formas de manipulação
corporal, poucas vezes acompanhadas de um olhar atento para as consequências que trazem
no nível da subjetividade e da organização social, têm-se tornado comuns. Segundo Araiza
& Gisbert,
Além disso, o corpo se apresenta como lugar da doença ou do desvio passível de correção
e é objeto de uma prática médica que se desenvolve segundo o paradigma de separação
corpo-mente. O corpo é matéria indisciplinada, caótica e infectada, pulsos elétricos e
químicos que devem ser ordenados pelos saberes disciplinares, enquanto a psique é entendida
como epifenômeno desta desordem. Ainda segundo Araiza & Gisbert,
Nossa vida física e psíquica parece - talvez agora mais do que nunca -
guiada por esta complexa rede de biotecnologias e sabedorias do corpo:
bioquímica da regulação das emoções, body building, dietética, cirurgia
estética, marketing e o circo de culto à imagem do corpo, para mencionar
apenas alguns temas. (2007, p.111)
50
51
52
O fato de o arquétipo ser estruturante para a experiência humana nos chama a atenção
para outro fato: esta experiência é, sem dúvida, uma experiência incorporada, que depende
da percepção organísmica da espécie. Humanos podem ter milhares de maneiras de perceber
o mundo, todas elas humanas, dependentes de um aparelho perceptivo que respeita uma
estrutura mais ou menos básica, arquetípica: partilhamos de um sistema nervoso, de uma
organização postural ereta, temos polegares opositores, desenvolvemos linguagem e cultura
porque assim nos permite nossa conformação filogenética. Nosso próprio corpo teria então
uma conformação arquetípica da espécie, já que nos é impossível perceber o mundo a partir
de outra estrutura filogenética que não a nossa. Desta maneira, a separação tradicional
entre psique e corpo parece-nos um tanto quanto artificial, e a polarização da psicologia
numa relação somente com um conceito de psique e símbolo desencarnados leva-nos a uma
prática científica incompleta, da mesma maneira que é incompleta a prática médica que não
leva em conta o corpo como aparato simbólico. Jung afirma que:
Assim, o corpo humano pode ser pensado como arquetípico, na medida em que se comporta
como pré-forma que conforma profundidades e superfícies polissêmicas, jamais se exaurindo
em uma definição ou vivência única e estanque. Por mais que tentemos uma definição
específica que reduza o corpo à matéria manipulável, ele insistentemente nos escapa. Diz
Le Breton:
53
Byington (2008, p.56) sustenta a visão de que o que chamamos de objetivo, concreto,
anatômico e denso, como a carne, o sangue e os processos fisiológicos humanos, podem e
devem ser entendidos como tão simbólicos quanto as representações, os signos e a linguagem,
pois eles só podem ser expressos através da linguagem simbólica. Não há, no âmbito humano,
a possibilidade de uma objetividade absoluta que dê sentido para a matéria orgânica por
intermédio de outra coisa que não a percepção e a linguagem, e toda percepção é percepção
de um sujeito. Byington propõe que se incluam as representações objetivas e as representações
subjetivas como dois aspectos que fazem parte do mesmo mundo. Desta maneira, o oxigênio
e o sangue são tão simbólicos quanto uma emoção ou experiência de vida, e a medicina é
tão simbólica quanto a arte. Le Breton (2011, p.18), por sua vez, coloca que "O corpo é
uma construção simbólica, não uma realidade em si", pois a ideia mesma de realidade em si
é filosoficamente insustentável quando assumimos que toda percepção possível da realidade
é realizada por um sujeito. Nada pode ser em si, tudo é no mundo e para alguém, e é,
portanto, atravessado pelo símbolo e pelo arquétipo necessariamente.
Considerando tais conceituações, podemos afirmar que psique e corpo não se colocam
em relação direta de causa e efeito, pois são parte e manifestação do mesmo tecido
organísmico simbólico em suas várias densidades, em um fluxo constante. Neste sentido
podemos falar de psique e corpo como um organismo, entendendo organismo como um
sistema complexo com elementos diferenciados em termos de texturas, concretudes e
abstrações, totalmente integrados. Carne e produção de sentido, coração batendo, sonhos,
sensações, emoções e pensamentos fazem parte do mesmo sistema simbólico. Pensarmos
em uma leitura simbólica do corpo é pensarmos em um corpo em movimento, o símbolo
parte e produção da carne-psique, carne-psique se produzindo a partir dos símbolos.
Este corpo, pleno de ires e vires através do tempo e do espaço, este corpo que escuta, vê
e performa os símbolos que produz, produz assim Consciência, ampliando os diálogos
possíveis entre Ego e Self. A esta ampliação dialógica, aprofundamento da superfície,
podemos chamar de habitação do corpo. Trata-se da busca de uma consciência percebida
como encarnada, que se produz a partir do organismo sistêmico corpo-mente-psique-espírito,
e que ao se produzir, produz a maturação deste mesmo organismo num movimento incessante
de individuação.
54
A escuta deste corpo que diz, e o diálogo que pode se estabelecer entre o sujeito e suas
sensações como estruturantes da relação entre Ego e Self, sujeito e mundo, é algo que deve
ser aprendido, exercitado, buscado. Está dado apenas como possibilidade a ser percorrida, e
indica um caminho de produção de Consciência que pode ser trilhado em direção à
individuação. Algumas técnicas corporais, sobretudo as que trabalham com o
desenvolvimento da sensopercepção, podem servir como instrumentos para o sujeito que
embarca na odisseia de se perceber como organismo produtor de símbolos.
À configuração de um corpo por meio da experiência corresponde a configuração de
sentimentos, emoções e sensações, organizados em determinados padrões de ação ou inação
no mundo. O ser humano destaca-se das outras espécies por, ao nascer, apresentar um
estado acentuado de imaturidade nervosa e corporal. Isto determina um longo período de
dependência do organismo em relação aos outros organismos mais maduros. Ao contrário
dos gatos ou cavalos, que pouco depois de seu nascimento já conseguem desempenhar uma
55
série de atividades e reagir a estímulos do meio de maneira mais ou menos fixa, o ser humano
precisa, até uma idade bastante avançada, aprender pelo contato com o Outro. Cada sujeito
desenvolverá assim um padrão de reações corporais/psíquicas, em decorrência do ambiente
e do contato com os cuidadores. Passarei a chamar tais reações de organísmicas/sistêmicas,
no sentido de uma imbricação essencial entre psique e corpo, procurando evitar a cisão
entre estas duas instâncias também no nível do discurso.
Feldenkrais (1985, p.77) coloca que não existe mente, inconsciente e vontade sem matéria
- tais conceitos descrevem funções, não existem antes que a ação ocorra, descrevendo assim,
sobretudo, um modo de agir. O autor coloca que "com relação às funções humanas superiores,
o cérebro é um espaço vazio a ser preenchido por intermédio da experiência corporal sensorial
e motora." Ainda segundo o autor, a relação corpo-mente/psique pode ser compreendida
da seguinte maneira: ao nascer, o ser humano tem apenas o sistema nervoso vegetativo e a
parte do cérebro relacionada aos movimentos reflexos em atividade plena. Trajetos e padrões
das funções superiores serão formados - para isso será necessária a utilização dos músculos
e dos sentidos. Assim que as conexões e trajetos vão sendo formados, o invólucro material
do soma fica aparentemente menos essencial, na medida em que estes trajetos tendem a ser
automatizados, e um trilhamento é estabelecido pela repetição. Os trajetos e padrões, uma
vez trilhados, carregam a lembrança de todas as sensações, percepções e ações. O sujeito
passa a ser capaz de formar novos padrões por meio da reorganização dos padrões já
existentes, podendo assim pensar, imaginar e inventar. Assim, o organismo/sistema apresenta-
se com múltiplas potencialidades de produção simbólica, e a relação quântica entre órgãos,
pensamentos, emoções e sensações se estabelece. Vemos surgir um aparelho simbólico que
conta e reconta continuamente uma história, com zonas de luz e sombra. Escreve Keleman:
56
57
nos ajudar a compreender todo o processo simbólico de maneira mais vívida, encarnada,
concreta. O corpo alienado de presença e afastado da consciência de seu processo de
corporificação tende a ser fonte de um excesso de excitação interna que pode causar
angústia. O que é a angústia além de uma sensação corpo-mental não integrada e que
foge de uma denominação através das palavras? Dialogar com estas sensações inomináveis
através da promoção de contato com as mesmas é o que buscam muitas abordagens
corporais. Re-aprender a perceber sensações e discriminá-las parece ser um caminho
interessante, que leva à mudança.
Para cuidar de si e alterar determinações e padrões construídos ao longo da vida, todo
um método de desenvolvimento da percepção das próprias ações deve ser desenvolvido.
Assim, percebendo sensorialmente a maneira usual pela qual fazemos as coisas, poderíamos
aventar a possibilidade de fazê-las diferentes, reconstruindo a nós mesmo e,
consequentemente, reconstruindo o espaço circundante. Se voltarmos à proposição do corpo
como fonte de produção de símbolos, cada deslocamento em direção a uma nova maneira
de fazer gera novos símbolos, que necessitam ser integrados. O que se abre em todas as
abordagens a que denominamos corporais é a possibilidade de a pessoa se perceber a si
mesma, através de algo que realiza, através de uma ação ou da recepção de uma ação (no
caso de toques e massagens). A maneira pela qual nos movimentamos, a maneira pela qual
portamos nosso corpo, recebendo estímulos sensoriais e os devolvendo ao mundo, é análoga
à maneira pela qual narramos a nós mesmo em diversos contextos, terapêuticos ou não.
Nosso corpo é nosso mito em ação.
Como lidar com os símbolos produzidos quando exercitamos nosso organismo/sistema?
As sensações produzidas num processo de trabalho corporal de educação somática precisam
ser processadas pelo organismo/sistema para que o estranhamento produzido pelas novas
percepções não cause dissonâncias não digeridas. Necessitamos de um trabalho simbólico
integrador das sensações.
Para lidar com este aspecto do trabalho sobre o corpo, a proposta da analista junguiana
Marion Woodman (2002) nos parece interessante. Iniciando sua obra centrada em distúrbios
alimentares como a Bulimia e a Anorexia, Woodman propõe o corpo como uma espécie de
inconsciente da cultura. Numa cultura patriarcal em que o corpo deve ser disciplinado,
manipulado e coisificado, os distúrbios alimentares apareceriam como exigência de integração
da sombra. A autora coloca que esta é uma sombra que diz respeito ao feminino, que seria
definido como todos aqueles conteúdos não-valorizados, marginalizados, referenciados numa
concepção que extrapola as definições patriarcais restritivas do ser-mulher, da cultura e do
progresso.
Para a autora, homens e mulheres se relacionariam com complexos simbólicos femininos
positivos/femininos negativos e masculinos positivos/masculinos negativos em sua
constituição, e todos estes elementos podem estar mais ou menos integrados tanto em homens
58
quanto em mulheres. A autora reitera que é o corpo das sensações, como feminino não
integrado na cultura patriarcal ocidental, que deve ser trazido para o âmbito terapêutico,
não como suporte de uma mente reflexiva, não como enigma a ser decifrado a partir de uma
chave interpretativa racionalista, mas como sujeito participante, em movimento, continente
do sagrado.
O processo terapêutico pode ser visto como um ritual de integração do corpo-mente em
direção às experiências de transcendência, pois apesar de podermos conceber
conceitualmente um organismo/sistema integrado, na vivência diária da cultura ocidental
certas cisões permanecem. A terapia aparece como o lugar do casamento sagrado entre o
masculino positivo, realizador, e o feminino positivo, cuidador. Mas, para se chegar a este
casamento, matéria e espírito precisam dar-se conta de sua imbricação através dos símbolos,
e tanto o masculino negativo (mensageiro da rigidez, do progresso a qualquer preço) quanto
o feminino negativo (que envenena através da impotência e do medo do abandono) devem
ser reconhecidos e digeridos.
Este não é um processo fácil ou rápido, e passa pelo reconhecimento de comportamentos
compulsivos e padrões tão antigos que parecem eternos e imutáveis. O casamento só pode
acontecer se o corpo-vaso-feminino estiver pronto para receber a força do espírito-conteúdo-
masculino sem se quebrar. Por isso, Marion Woodman utiliza-se do trabalho simbólico com
o corpo, principalmente através de técnicas que envolvem o movimento livre e a dança.
Pôr os símbolos em movimento é uma maneira de integrá-los na carne, no saber fazer
não abstrato do corpo, criando novas cadeias de significado que permitem o reconhecimento
de uma narrativa sobre o vaso sagrado que poderá receber então seu conteúdo. Este
casamento, um casamento que repara o divórcio ocidental entre corpo e racionalidade, pode
proporcionar ao indivíduo uma orientação centrada no eixo Ego-Self, que busque não mais
proceder através do poder, mas sim através da integração consigo e com o coletivo.
Num primeiro momento, Woodman propõe que o objetivo do trabalho terapêutico é
buscar trazer a matéria à luz. Segundo a autora, a matéria-corpo pode estar identificada com
a sombra, muito em decorrência do feminino negativo experimentado no período de
dependência infantil. Como em nossa cultura o feminino positivo costuma ser mal integrado,
é comum que a função materna seja exercida por pessoas a quem também falta esta intimidade
com o próprio corpo, e que, portanto, estão mais identificadas com o poder do patriarcado
do que com o feminino positivo gerador. Diz a autora:
59
A analista refere-se à mulher, mas devemos perceber que este não é um processo exclusivo
do sexo feminino, mas algo que diz respeito a femininos e masculinos simbólicos.
60
61
Referências Bibliográficas
62
Resumo
.-.-.-.-.-.-.-.-
1
Trabalho apresentado no V Congresso Latino Americano de Psicologia Junguiana. Santiago, Chile,
setembro de 2009.
2
Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, Psicoterapeuta junguiana,
Professora de Psicologia Analítica no curso Jung e Corpo, especialização em Psicoterapia Analítica e
Abordagem Corporal, do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo.
e-mail: mariahelenarmguerra@hotmail.com
63
Eros, diz Jung, "não é a totalidade de nossa natureza interior, embora seja, pelo menos,
um de seus aspectos essenciais" (Jung, [1916] 1953, par. 33).
Profundamente associado a Eros, o amor, como uma função estruturante de grande
importância para a vida do indivíduo e da coletividade, é tema de diferentes mitologias,
ponto central de várias religiões, inspiração de muitos poetas. É ele o responsável por grande
parte dos dramas e sofrimentos humanos, e também por vivências de bem-estar, plenitude
e bem-aventurança.
Componente fundamental para o desenvolvimento e a estruturação da personalidade
desde o nascimento, o amor, realizado ou frustrado, nos acompanhará por toda a vida.
Sendo o amor um tema de extrema abrangência, estas reflexões ficarão circunscritas ao
amor de alteridade, àquele vivido dialeticamente em sua interação com o poder, a liberdade
e a ética. Para articular estas quatro funções estruturantes, lançarei mão de algumas passagens
mitológicas.
Antes, porém, de iniciarmos esta caminhada, é preciso situá-la dentro da moldura teórica
da Psicologia Simbólica Junguiana, que propõe que todo símbolo e também qualquer função
da vida podem estruturar a consciência ou então formar a sombra. Se os conteúdos do
símbolo, assim como os da função estruturante, forem elaborados de maneira a contribuir
para o desenvolvimento da personalidade e para o autoconhecimento, formarão a consciência.
No entanto, se ficarem fixados, presos num complexo patológico, originarão a sombra
(Byington, 2008). Assim, em princípio, o amor, o poder, a agressividade, a esperança e
todas as demais funções estruturantes poderão conduzir à luz ou à sombra.
Isto posto, passemos ao nascimento de Afrodite.
Afrodite
64
Esta passagem mitológica, resumida tão brevemente, envolve inúmeros símbolos e funções
estruturantes que podem nos auxiliar em nossa circumambulatio, nossa caminhada ao redor
do tema do amor.
O fato de o nascimento de Afrodite estar diretamente associado à castração de Urano dá
ao gesto de Cronos um significado paradoxal, pois, ao mesmo tempo em que castra o pai,
leva avante sua fertilidade. Cronos busca se livrar, e aos irmãos, da arbitrariedade do pai e
da morte que ele impingia à própria prole, na tentativa de perpetuar a relação puramente
instintiva e dominadora que possuia com Geia. O relacionamento entre Geia e Urano foi
marcado por um exercício de poder defensivo. Vejamos por quê.
Urano representa a força ativa, poderosa, fecundadora e penetradora, enquanto Geia é o
princípio receptivo, passivo, fertilizado e submetido. Embora estes deuses sejam expressões
de arquétipos presentes na psique tanto do homem como da mulher, culturalmente, muitas
relações conjugais se pautaram - e ainda se pautam - pelo domínio e até mesmo tirania e
violência por parte do homem e a resignação, conformismo e masoquismo por parte da
mulher, pois a consciência coletiva de dominância patriarcal identificou o poder e o mando
com o primeiro, que passou a exercê-los muito mais do que a mulher, tradicionalmente mais
passiva e submissa.
Ao se insurgir contra Urano, Cronos reproduz este mesmo padrão de consciência, expresso
defensivamente pela violência com que impõe sua força. Nisso não difere do pai - e, de fato,
Cronos fará com seus filhos o mesmo que Urano. Há, porém, algo de novo, que emerge do
ato libertário: do pai castrado, ferido, de sua dor, de seu sangue, nasce o amor na forma de
uma deusa. O amor surge, portanto, com a dor, a ruptura, e, especialmente, com a busca de
liberdade.
No amor, a separação, seja pelo distanciamento entre amante e amado, pela impossibilidade
da união contínua, pela ruptura definitiva e fatal, ou mesmo pela diferenciação entre o ego
e o outro, é tida como um elemento que exacerba o sentimento amoroso, em função da falta.
A ausência aumenta a ânsia pelo ser amado e, ao buscá-lo constantemente, às vezes
obsessivamente, o amante se torna possuído pelo amor.
Mas, para que Afrodite viesse ao mundo, foi preciso que o sangue de Urano caísse no
mar. Temos assim, para o nascimento de Afrodite, a contribuição de três forças: Urano,
Cronos e Poseidon, deuses do céu, da terra e do mar. A Deusa do Amor é, assim, formada
pela contribuição de todos eles, o que indica sua abrangência.
Como o céu, abóboda infinita que paira constantemente sobre a Terra, o amor nos dá a
visão do incomensurável. Ao olharmos para o céu, quando vivemos um grande amor,
alcançamos emocionalmente as estrelas. O céu e o amor despertam nossa fantasia, intuição,
65
imaginação e abstração infinita. Por sua distância, o céu foi também associado à morada dos
deuses, à outra vida, ao mundo do além, à espiritualidade. De fato, quando somos tocados
pelo amor, o mundo inteiro se transforma e se amplia. O céu e as estrelas acompanham os
amantes, enlevando-os e deixando-os, muitas vezes, "com a cabeça nas nuvens", o que nos
lembra que a espuma é considerada a "nuvem do mar".
O mar, outro elemento presente no nascimento de Afrodite, representa as grandes águas
em movimento. Segundo a antiga tradição indiana, a criação surge de um corpo infinito de
água primordial. Em seu estado não refinado, este mundo é caótico ou, ao menos, sem
forma. A existência ordenada ocorre apenas quando essa massa aquosa é de algum modo
agitada, processada ou refinada de tal maneira que forma e crescimento ocorrem (Kinsley,
1986). Por ser capaz de dissolver, misturar, envolver, submergir, a água associa-se às emoções
do amor, o qual pode provocar o perder-se no outro, a sensação de fusão, de aniquilamento,
de mistura, mas também de empatia, de capacidade de sentir com o outro, de ter compaixão.
Representando o ar na água, a espuma é ainda mais difícil de ser retida do que a água. A
espuma surge do movimento da água do mar: quando a onda alcança seu auge e se quebra,
o movimento começa a diminuir e o mar a se tranquilizar, aí surge a espuma. Como a
espuma, o amor não aparece na estagnação. Surge com o poder do movimento, da ousadia,
da transformação. Como a espuma, ele também não pode ser aprisionado, e por isso, em sua
expressão criativa, é, mais uma vez, associado à liberdade e à vida espiritual.
O sangue, elemento ígneo, associado à força vital, traz, em seu aspecto criativo, a vibração,
o calor e a dimensão passional do amor. Mas o sangue de Urano originou também as Fúrias,
mostrando como o mesmo elemento é capaz de gerar símbolos tão diferentes, como a
afetividade e a agressividade.
De Cronos, o amor herdou o desejo libertário. É verdade que o gesto de Cronos pode ser
considerado defensivo - como o é o amor castrador. No entanto, a castração de Urano foi
feita por Cronos com a foice que lhe foi dada por sua mãe, Geia, e que é símbolo da morte,
mas também da colheita e, por isso, do renascimento. O cortar traz a possibilidade de
discriminar entre repressão e fertilidade, de distinguir entre a morte como estagnação e
paralisia, daquela que abre caminho para a transformação e o renascimento - a vida que
surge da espuma do mar.
Este mesmo simbolismo é encontrado no hinduísmo, no mito da batedura do oceano de
leite, feito que uniu deuses e demônios num mesmo objetivo: conseguir o elixir da imortalidade
(soma). Das ondas deste oceano emergiu Lakshmi, esposa de Vishnu e deusa da prosperidade,
representando a transformação milagrosa das águas sem forma em vida orgânica (Kinsley,
1986).
66
Radha
Uma das correntes de yoga, na Índia, é a bhakti yoga. Esta é uma yoga de devoção mística,
cujo caminho é o do amor, via considerada ideal para aqueles que cultivam a busca de
transcendência e de totalidade através de suas emoções. O centro da devoção é representado
por Krishna, o deus do amor. Em sua história mítica, esse deus é amado por várias pessoas:
seu irmão, seus amigos, seus pais, seus discípulos, as gopis (pastoras), o que enseja a descrição
de vários tipos de amor. Dentre todos, no entanto, o amor considerado mais sublime e
sagrado é o amor que Radha tem por ele.
Radha é a pastora mítica que, nas florestas de Vrindavan e às margens do rio Jamuna,
participava dos jogos de amor de Krishna. Símbolo pertencente a uma cultura na qual as
mulheres existem socialmente em função de seu vínculo com os homens, ou seja, como
filhas, esposas ou mães, Radha é a expressão máxima do amor, por ser capaz de transgredir
todas as regras e ultrapassar barreiras morais e sociais convencionais, deixando em segundo
plano todos os costumes, afazeres e deveres para se dedicar a amar Krishna. Esta pastora,
que por sua relação com o deus é também divinizada, não expressa mitologicamente
características da Grande Mãe, nem é tida como uma deusa terrível, ou da vegetação, ou
associada à morte e renascimento; tampouco auxilia a vencer obstáculos, propicia saúde
ou qualquer tipo de benesse. Ela não possui nenhum atributo que não seja associado à
sua capacidade de amar, de viver um amor conjugal extático e de devoção, que lhe impele
a colocar o amor pela transcendência acima de tudo. Seu símbolo nos mostra um amor
que não se deixa aprisionar por nenhuma regra ou tradição: Radha é completamente livre,
e sua única função é amar Krishna devotada e plenamente. Por isso, em sua expressão
mais transcendente, sagrada e profundamente humana, Radha é retratada como amante
de Krishna, tendo com ele um relacionamento íntimo, direto, aberto, não hierárquico, e
sendo amada por ele da mesma maneira. A liberdade que ambos possuem para amar e ser
amado reflete-se em seus jogos amorosos, suas brincadeiras e danças. O Krishna pastor
não tem nenhuma missão, nenhum dever, que não seja amar e ser amado, e ser livre,
alegre e espontâneo. A angústia gerada pelos momentos de separação, pelos
desentendimentos, brigas e ciúmes, só faz aumentar ainda mais o amor e o desejo que
sentem um pelo outro.
Há alguns séculos, teólogos hindus discutiram para saber se Radha era solteira ou casada.
Venceram aqueles que a consideravam esposa de outro. Assim, seu amor por Krishna seria
maior, pois ela teria que transgredir todas as barreiras, e arriscar-se mesmo a ser proscrita
socialmente, para se transformar em sua amante. Ao fazê-lo, foi livre para colocar o amor
pela transcendência acima de tudo.
67
O Mito de Cristo
Outro mito, mais próximo de nós, é o Mito de Cristo, que introduz no Ocidente a
possibilidade de se aproximar de Deus através do amor. O deus do Antigo Testamento, deus
patriarcal conhecido por seu poder e capacidade de punir e infligir medo à humanidade, dá
lugar a um deus de alteridade, e o caminho para se chegar a ele é o do amor, da verdade e da
compaixão (Byington, 1983). É Cristo que ensina a dar a outra face, a amar ao próximo
como a si mesmo, ensinamento tão antigo, tão conhecido e tão difícil de ser posto em
prática, e que, por isso, exige um exercício constante dentro da alteridade.
Com Cristo, o amor de alteridade se estende para a vida, para o outro em seu sentido
mais amplo, abarcando o diferente, o pobre, o doente, o desvalido, a prostituta, o pequeno,
o excluído, as crianças, a natureza, os animais. É a proposta de um amor pleno e de compaixão,
que inclui os marginalizados, os banidos, os sofredores, tão bem expresso no Sermão da
Montanha. É um amor que ultrapassa convenções, formalidades, hierarquia, almejando a
grande libertação, que é o nascimento para uma nova consciência, capaz de morrer e renascer
a cada dia. Temos, na Teologia da Libertação, um exemplo deste amor libertário.
Considerações Finais
Nos mitos, assim como em situações importantes da vida, inúmeras funções estruturantes
estão envolvidas: poder, liberdade, transgressão, dor, sofrimento, perda, nascimento, amor,
união, separação, vida, morte etc.
Ao nos aproximarmos dos significados simbólicos trazidos por elas - e aqui nos limitaremos
àquelas funções estruturantes que são o tema deste trabalho: amor, poder, liberdade e ética
- é importante distinguirmos entre seus aspectos criativos e defensivos.
Os mitos abordados ilustram diferentes possibilidades de se lidar com estas funções. No
entanto, em todos eles, o amor é associado à liberdade. Foi o desejo de se libertar e a seus
irmãos que fez com que Cronos castrasse Urano, e daí surgir Afrodite. Radha, por sua vez,
exerce plenamente sua liberdade ao transgredir as regras sociais convencionais e se entregar
totalmente ao amor pela divindade. Cristo se insurge contra a moral coletiva, simbolizando
o amor libertário, capaz de, através do sacrifício e da compaixão, viver e ultrapassar até
mesmo a morte para libertar a humanidade e conduzi-la a um novo padrão de consciência.
Outra função estruturante que aparece nestes mitos, ao lado do amor, é o poder. Quando
falamos sobre amor e poder, nós, junguianos, logo pensamos em Jung, quando ele escreve:
"onde o amor reina, não há desejo de poder; e onde o desejo de poder é predominante, falta
68
o amor. Um é a sombra do outro (...)" (Jung, 1953, par. 78). Esta frase estabelece uma
relação de exclusão entre poder e amor. Embora esta afirmação, a meu ver, só se aplique a
situações em que o poder é usado defensivamente para cercear e oprimir, a colocação de
Jung, e o número de vezes em que ela é citada e referendada, faz parecer que ela possui
validade universal. Mas nem sempre é assim, pois no caso de o poder ser exercido com
amor, pode se expressar criativamente através do cuidado e da proteção, por exemplo. Há,
em Eros (aqui usado como sinônimo de amor) e poder, características que os fazem diferir
bastante, e que talvez por isso transmitam a impressão errônea de que eles sempre se excluem.
Eros é um elemento de ligação. O amor busca a união, a proximidade, a intimidade. O
poder, por outro lado, para que possa ser exercido, precisa criar um distanciamento, uma
diferenciação, uma hierarquia.
Para estabelecermos uma relação entre eros e poder é fundamental considerarmos qual
o padrão de consciência dominante no qual eles estão sendo vividos. Em situações onde
a hierarquia deve prevalecer, como entre pais e filhos, ou no caso de profissões em que a
relação entre comandante e comandado seja imprescindível, a preponderância do poder
está implícita. Trata-se de relações onde comumente predomina o arquétipo patriarcal.
Para que o poder seja exercido, é preciso que haja um domínio entre um polo e outro, e
por isso, ele é mais facilmente identificado no padrão patriarcal, no qual os polos funcionam
de maneira polarizada. No caso de um uso criativo do poder, ele está conjugado ao amor,
e é empregado para proteger e zelar, guiar, organizar, colocar limites, decidir ou liderar. É
a função do comandante, do líder, que tem poder para conduzir e o faz amorosamente,
cuidando de seus subordinados. Quando Eros se ausenta, o uso do poder passa a ser
defensivo e exercido disssociadamente, podendo se revelar pela tirania, crueldade,
desumanidade, frieza e sadismo.
Num relacionamento amoroso de dominância de alteridade, em que as relações se dão
majoritariamente de forma simétrica, fraterna, dialética e não hierárquica, o poder é exercido
ao lado do amor, e manifesta-se como autoafirmação, busca da verdade e da justiça, e até
mesmo como transgressão. O poder é então experimentado junto com o outro, e não contra
ele; ao invés de antagonismo, cooperação; em lugar de apenas eu, nós.
No amor de alteridade, ilustrado pelos mitos de Krishna e Radha e pelo mito de Cristo, a
liberdade vem acompanhada do poder que permite ser fiel a si mesmo e, através dele, abrir-
se para o amor. Assim, podemos dizer que, na alteridade, o amor não existe onde o poder
para afirmar a liberdade não chega. Se a liberdade for vivida defensivamente, poderá dar
lugar à promiscuidade ou, se houver ausência de liberdade, com cerceamento, controle ou
aprisionamento, a relação já não estará dentro da alteridade, mas terá, por exemplo, se
patriarcalizado defensivamente pelo abuso de poder ou se matriarcalizado defensivamente
pela possessividade, ciúme e controle. Se o amor pelo outro nos dá a liberdade de nos
aprofundar em nós mesmos, a sombra do amor aprisiona e limita.
69
70
Referências Bibliográficas
71
72
Introdução
1
Artigo baseado no trabalho de conclusão de curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie,
em Dez/2008.
2
Psicóloga, Especializanda em Psicoterapia Junguiana e Abordagens Corporais, Doutora em Acupuntura
pela World Federation of Acupuncture-Moxibustion Societies (WFAS) e Massoterapeuta de Tui Na. E-mail:
sheilarl@uol.com.br
3
Psicóloga Clínica, Especialista em Psicologia Junguiana, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, foi
Professora - Supervisora do Curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail:
mrsapata@gmail.com
73
Teoria Yin-Yang
74
equilíbrio. A partir da mais antiga observação de uma mudança cíclica - a noite e o dia - e de
sua respectiva correlação com as energias Yin e Yang, foi facilitada a extensão desse tipo de
observação para outros fenômenos, como as funções fisiológicas do corpo humano, as
patologias, as relações internas dos órgãos, as leis gerais do diagnóstico e do tratamento (Jia,
2004).
O Yin e o Yang juntos formam o símbolo Tao, que significa caminho:
Tao
75
Transmutação
76
Após discorrer sobre alguns aspectos da MTC, serão discutidos conceitos específicos da
energia psíquica para a Psicologia Analítica, relacionados ao tema: as polaridades da psique,
seu processo compensatório e as propriedades da autorregulação.
Autorregulação Psíquica
Jung concebe a psique como uma unidade original não-diferenciada, na qual interagem
fenômenos intrapsíquicos, somáticos e interpessoais. Essa totalidade é constituída pela
relação complementar e construtiva de polaridades, gerando tensões que rumam para a
autorrealização de seu potencial, movimento este chamado de individuação (Dawson &
Eisendrath, 2002). Na psique humana, consciência e inconsciente situam-se em lados opostos,
mas fazem parte de uma mesma unidade. Estes dois aspectos complementam-se de maneira
que a condição básica de existência de um é a presença do outro.
Como enfatiza Jung (1971, par. 48), entre as polaridades consciente/inconsciente e
matéria/psique existe uma carga energética que leva a mudanças tanto de natureza psíquica
quanto física. Esta energia obedece ao princípio da física conhecido como equivalência,
pelo qual as transformações somente são possíveis porque há diferenças de intensidade
dentro de um mesmo sistema e que, paulatinamente, tendem a se amenizar. Este princípio
indica que "para qualquer quantidade de energia utilizada em um ponto qualquer [do sistema]
(...) surge em outro ponto igual quantidade dessa mesma ou de outra forma de energia"
(Jung, 1971, par. 34).
É importante ressaltar que a energia psíquica se movimenta entre polaridades de
progressão, quando a psique vai em direção a uma adaptação ao mundo externo, e de regressão,
quando ocorre uma busca de adaptação ao mundo interno. Assim, quando o indivíduo se
aproxima unicamente de uma dimensão psíquica, seu polo oposto também se intensifica na
mesma proporção, mas na direção contrária (Dahlke, 1995).
Para corrigir um desequilíbrio entre conteúdos da consciência e do inconsciente é necessária
a atuação de um sistema autorregulador organizado pela função de compensação (Stevens,
1993). Sendo assim, o inconsciente atua equilibrando as atitudes parciais ou unilaterais do
ego, bem como buscando ativamente o seu próprio equilíbrio dinâmico.
Mediante o desequilíbrio psíquico, o ego pode se desenvolver unilateralmente na direção
de um dos polos, na medida em que os conteúdos inconscientes com insuficiente carga
energética não conseguem emergir à consciência (von Franz, 1992). Os sonhos, dessa maneira,
são recursos de compensação da psique, uma vez que agem de maneira a equilibrar a atitude
unilateral do ego, tornando possível o diálogo entre conteúdos conscientes e inconscientes.
Os símbolos, linguagem pela qual o inconsciente se expressa, emergem com a finalidade de
retificar esse desequilíbrio, expressando conteúdos da psique ainda não acessíveis ao ego.
77
78
79
emocional e hábitos do indivíduo, objetivando uma visão cada vez mais integrada da sua
psique e do seu corpo. Assim, na perspectiva chinesa, se não há mudança nos hábitos de
vida ou mudança de atitudes, o tratamento com agulhas possuirá efeito efêmero e puramente
sintomático, ao invés de oferecer prolongado equilíbrio energético.
Vale ressaltar que para ambas as abordagens, o papel do terapeuta/cuidador consiste na
criação de condições mais favoráveis para que o próprio indivíduo se cure. Na Psicologia
Analítica, sugere-se que quando o indivíduo procura análise, o arquétipo "médico/paciente"
pode ser constelado. Assim, o paciente percebe o aspecto ferido no nível consciente e, pelo
conceito de oposição, o aspecto curador pode ser ativado no inconsciente por meio da
transferência com o terapeuta. Dessa maneira, cabe ao terapeuta sair do lugar onipotente de
curador para auxiliar o diálogo interno entre as polaridades do indivíduo, facilitando ao paciente
o contato com seu próprio curador interno (Guggenbühl-Craig, 1987). O psicólogo, portanto,
atua como auxiliador na integração dos aspectos conscientes e inconscientes, favorecendo o
reconhecimento por parte do paciente do seu processo compensatório de cura.
Já na Acupuntura, a cura é obtida por um conjunto de princípios para os quais o terapeuta
deve atentar: a localização dos pontos e manipulação das agulhas, estimulando-os ou inibindo-
os, auxiliando o corpo a regular seu fluxo de energia; a respiração do paciente que deve
entrar em ressonância com a manipulação referida, a intenção de ajudar o paciente e as
recomendações do terapeuta quanto às atitudes do paciente.
Baseado na concepção de cura da Psicologia Analítica e da inter-relação entre mente e
corpo, levanta-se uma questão para reflexão: como realizar uma terapêutica pela MTC, com
a finalidade de interferir na psique, sendo que, muitas vezes, o próprio paciente não tem
conhecimento da simbologia envolvida nos seus sintomas?
Como Jung afirma, cura não é a remissão dos sintomas, mas sim a capacidade de reconhecer
e assimilar o processo de desenvolvimento psíquico. Meier (1989) considera que a cura
junguiana está no encontro de um significado para a doença, integrando-a em uma totalidade
significativa. Dessa maneira, o terapeuta na prática da MTC também deve esclarecer a
simbologia das manifestações físicas e psicológicas do paciente nas sessões.
Como forma de ilustração, incito o leitor a imaginar a seguinte situação hipotética: um
jovem chega à clinica de acupuntura com queixa de dores constantes na parte frontal da
cabeça e no fundo dos olhos. Esportista, tem um de seus joelhos lesionados e com sensação
de fraqueza. Trabalha meio período, treina todas as tardes e faz faculdade à noite,
alimentando-se, portanto, de lanches e salgados para chegar a tempo em aula. Volta para
casa tarde, dorme por volta da meia-noite e relata que seus familiares e amigos reclamam do
seu comportamento explosivo e estressado.
Em um procedimento superficial, o terapeuta realizaria uma anamnese aprofundando
questões do paciente, suporia para si um diagnóstico e faria a sessão de acupuntura,
realizando, assim, um atendimento tipicamente ocidentalizado.
80
81
Referências Bibliográficas
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1982.
CHONGHUO, T. in: YAMAMURA, I. Tratado de medicina chinesa. São Paulo: Roca, 1993.
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WEN, T. S. Acupuntura clássica chinesa. São Paulo: Cultrix, 1987.
82
A COLUNA VERTEBRAL E O
SIMBOLISMO ASCENSIONAL
1
Médico Psiquiatra, Psicoterapeuta Junguiano especializado em técnicas de abordagem corporal, Mestre em
Antropologia Social pela USP e Professor dos Cursos de Cinesiologia e de Jung & Corpo - Formação em
Psicologia Analítica e Abordagem Corporal no Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo.
E-mail: ptmachadof@uol.com.br
83
A Escada
2
A Coluna sem Fim foi erigida por Constantin Brancusi em Targû-Jiu, na Romênia, dentro do projeto do
Templo da Contemplação e Libertação, construído em homenagem aos mortos da Primeira Guerra Mundial e
foi celebrizada por uma peça de teatro homônima escrita por Mircea Eliade.
84
descendentes transitando pela coluna vertebral" (p.169). Um pouco antes, o teólogo compara
a situação do homem com a escada, situada entre dois polos formados pela terra e pelo céu,
que representam dois polos de um ímã aos quais, para manter-se na corrente da vida e
representando a energia vibracional, o homem precisa estar ligado. Souzenelle (1984) compara
o mesmo motivo com a força de Eros, que une a primeira sephirat da árvore cósmica da
mística cabalista, Kether (esposo, céu, a Coroa), com a última, Malkhut (esposa, a terra, o
Reino) (p.98).
Assinalamos que na iniciação mitraica encontramos os sete degraus da ascensão mística,
que se inicia pelo chumbo, relacionado com Saturno; pelo estanho, relacionado com Vênus;
bronze, com Júpiter; mercúrio, com Mercúrio; ferro ou cobre com Marte; prata com a Lua e
ouro com o Sol. Podia aparecer ainda um oitavo degrau, que era relacionado com o
firmamento.
A Árvore
3
Coletânea de poemas conservados no Codex Regius, também conhecidos como Elder Edda, e que descre-
vem temas da mitologia nórdica.
85
Leloup também chama de eixo do mundo a Árvore da Vida plantada no meio do jardim
do Éden, que compara com a coluna vertebral. Afirma que "reencontrar a coluna vertebral
é reencontrar seu eixo e o eixo do mundo. É reencontrar, de novo, seu lugar no paraíso" (op.
cit., p.109). Também bastante enfático sobre o simbolismo ascensional da árvore foi Miranda,
no início de suas reflexões sobre a Árvore sephirótica dos cabalistas. Conforme seu próprio
texto (sobre a árvore): "Ela representa a vida em perpétua evolução e em ascensão rumo
aos céus. A árvore evoca a comunicação entre, de um lado, as realidades cósmicas,
subterrâneas e terrestres e, de outro, as celestes ou aéreas. A árvore é um símbolo do caminho
ascensional entre o visível e o invisível, um lugar das manifestações do divino".(op. cit.
p.36). Mais adiante, assinala a relação entre a árvore e o corpo humano na tradição hebraico-
cristã: "(...) a Árvore plantada no centro do jardim do Éden reúne toda a iluminação necessária
à compreensão do corpo e sua imperiosa verticalização e ascensão para Deus" (id. Ib.). A
Árvore de Sephirot foi o tema central das reflexões de Miranda e de Souzenelle sobre o
corpo humano.
A Árvore da vida ou Árvore de Sephirot foi, na realidade, a temática principal do pensamento
da mística cabalista e da antropomorfização divina do homem. Tendo se disseminado
principalmente na Espanha, entre os judeus que lá habitavam durante a Idade Média, Idel
(1998) informa-nos que a Cabalah possui como principais fontes o Sefer Yetzirá (Livro da
Criação, antigo clássico de especulações místicas cosmológicas e cosmogônicas atribuído a
Abraão) e o Zohar (Livro do Esplendor), o mais importante corpus do misticismo judaico.
A Árvore de Sephirot é uma Árvore de luz, invertida, com as raízes projetando-se para
o céu e a copa para a terra, constituída de dez sephirah (singular de sephirot, que corresponde
a recipiente; sepher é livro). Souzenelle (1984) descreve a Árvore e a passagem desta ao
esquema corporal, conforme as referências tradicionais, em seu livro sobre o simbolismo
corporal (pp. 32-45). A autora aponta a existência de um primeiro momento cosmogônico
descrito como Aïn (nada, vazio) e um segundo momento referido como Aïm Soph (infinito
ou sem-fim). É desta dimensão que ocorrerá a emanação da Luz divina4 (Aïm Soph Aor),
que "Se fará conhecer e Se deixará nominar através das dez Sephirot" . A luz emanará
através de Kether (Coroa), a primeira sephirah, até a décima, Malkuth (o Reino), percorrendo
as tríades da transcendência divina, Kether, Hokhmah e Binah (respectivamente Coroa,
Sabedoria e Inteligência); dos Princípios da Criação ou plano das Leis, Hesed, Din e Tipheret
(Misericórdia, Justiça e Beleza); e da Realização da Criação, Netsah, Hod e Yesod (Vitória,
Glória e Fundamento), prosseguindo posteriormente até Malkhut , onde realiza-se a
hierosgamia entre a Terra e o Céu. Posteriormente, ocorre uma reversão da energia divina
dos arquétipos e a sua ascensão através das mesmas sephirot , configurando-se a
antropomorfização da Árvore, que espelha a imagem divina. A Luz emanada, que se
4
Souzenelle, op. cit., p. 33.
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A Serpente
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Ambos os seminários foram traduzidos para a língua portuguesa por Pethö Sándor e editados em apostilas
para uso em grupos de estudos.
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A filosofia indiana concernente aos chakras integra a ascese através dos estados de
consciência associada a cada um destes centros e projetados às glândulas do sistema endócrino
à própria energia corporal, que ascende através da coluna, idealizando intuitivamente uma
verdadeira integração fisiopsíquica simbólica; o fluxo serpentino da Kundalini, do mesmo
modo que a Árvore da Vida, da mística cabalista, realiza a transformação da energia através
do corpo, que, purificada e sutilizada, ascende através do eixo da coluna de sua base ou da
terra para a cabeça ou para o céu e do mesmo modo é devolvida para o depositário cósmico
de energia.
Outros Símbolos
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Referências
BACHELARD, Gaston (1943). El Aire y los Sueños. México: Fondo de Cultura Económica,
1993.
DAVIDSON, H. R. Ellis (1964). Deuses e mitos do norte da Europa. São Paulo: Madras, 2004.
ELIADE, Mircea (1938). A coluna sem fim. Apostila traduzida por Maria Luiza de Andrade
Simões.
IDEL, Moshe (1998). Cabala: novas perspectivas. São Paulo: Perspectiva, 2000.
JAMES, William (1902). As Variedades da Experiência Religiosa. São Paulo: Cultrix, 1995.
JUNG, Carl Gustav (1930 - 1934). Seminários das visões. Notas de Mary Foote. Zürich:
Spring Publ., 1976. Apostila traduzida por Pethö Sándor.
__________ (1932). Comentários Psicológicos sobre a Yoga Kundalini. Apostila traduzida por
Pethö Sándor.
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