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A ALMA MASCULINA E A FUNÇÃO ESTRUTURANTE DA SENSIBILIDADE

- Um Estudo da Psicologia Simbólica Junguiana

Carlos Amadeu Botelho Byington1

A descrição de Jung, do Arquétipo da Anima no homem e do Arquétipo do Animus


na mulher, foi muito útil para chamar a atenção teórica e prática para a existência da
bipolaridade do gênero na personalidade.
Durante o processo de individuação, é importante para o Ego saber que existem, no
seu Self, símbolos do sexo oposto, que lhe orientam para a conjugalidade e a criatividade de
um modo geral.
Foi assim que se tornaram célebres muitas imagens culturais do “eterno feminino”,
que inspiram os homens para buscar a glória, como Dulcineia, de D. Quixote; Beatriz, de
Dante; Joana D’arc, dos soldados franceses, ou o abismo, como a feiticeira Circe e as
sereias que quase destruíram o grande Ulisses. Da mesma forma, registrou-se o fascínio
arquetípico das mulheres por figuras masculinas, como D. Juan e Casanova, cientistas,
artistas e líderes políticos e religiosos.
Autores pós-junguianos, como Hillman e Whitmont, sentiram a necessidade da
representação bipolar dos arquétipos do gênero na personalidade para neles enraizar não
só o contrapólo sexual do Ego, mas também o gênero do próprio Ego. Assim, postularam a
inclusão da Anima e do Animus tanto na personalidade do homem como na da mulher.
Concordo com a necessidade da concepção bipolar de todos os símbolos e
arquétipos, mas sou da opinião que devemos manter o Arquétipo da Anima exclusivo na
personalidade do homem e o Arquétipo do Animus na da mulher, para que identifiquemos
um arquétipo específico que represente a diferença genética do homem e da mulher,
exatamente como nos cromossomos do gênero.

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Médico Psiquiatra e Analista Junguiano. Membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da
Associação Internacional de Psicologia Analítica. Criador da Psicologia Simbólica Junguiana. Educador e Historiador.
E-mail: c.byington@uol.com.br Site: www.carlosbyington.com.br
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Médico Psiquiatra e Analista Junguiano. Membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da
Associação Internacional de Psicologia Analítica. Criador da Psicologia Simbólica Junguiana. Educador e Historiador.
Por isso, a Psicologia Simbólica Junguiana, por mim conceituada, propõe que o
Arquétipo da Anima e o Arquétipo do Animus sejam bipolares, inclusive quanto ao gênero, e
que façam parte do Arquétipo da Alteridade, que articula a relação dialética do Ego e do
Outro na Consciência (Byington, 2004). Com isso quero dizer que as imagens da Anima do
homem podem ser projetadas tanto numa mulher como com num homem, o mesmo
acontecendo com o Animus da mulher, independentemente de serem homo ou
heterossexuais.
Desta maneira, podemos compreender melhor a importantíssima diferença entre a
homoafetividade e a homossexualidade, posto que a homoafetividade inclui a amizade entre
as pessoas do mesmo sexo e não necessita ser sexualizada. Com essa conceituação, é
possível também percebermos a atração e mesmo o fascínio propiciados pelos Arquétipos
da Anima ou do Animus por pessoas do mesmo sexo, que podem até mesmo gerar uma
conduta homossexual defensiva e inautêntica, que fixa e limita o desenvolvimento. Assim
sendo, concebo uma heterossexualidade normal e outra defensiva, e igualmente uma
homossexualidade normal e outra defensiva, diferenças estas de grande importância no
trabalho clínico e na caracterização teórica da normalidade e da patologia (Byington, 2006).
A bipolaridade da Anima e do Animus é muito importante também para
compreendermos duas grandes fases na transição da infância para a adolescência.
Baseado em mitos de dominância matriarcal e patriarcal, assim catalogados pela
primeira vez por Bachofen (1861), Erich Neumann (1949) descreveu o desenvolvimento
histórico da Consciência Coletiva através dos mitos de dominância do Arquétipo Matriarcal,
seguidos dos mitos de dominância do Arquétipo Patriarcal. Ao invés de Arquétipo da Grande
Mãe, prefiro a denominação de Arquétipo Matriarcal, pelo fato de este arquétipo ser também
bipolar e englobar o masculino e o feminino. A evidência desta bipolaridade está na
exuberância dos deuses da natureza, como Uranos e Cronos, que atuam ao lado das
Deusas Mães, o que impede abrangê-los sob a denominação da “Grande Mãe”.
A conceituação do Arquétipo da Alteridade pela Psicologia Simbólica Junguiana
permitiu ver que sua expressão histórica sucede a dominância patriarcal e que os principais
mitos que o expressam são o Mito do Buddha, no Oriente, e o Mito Cristão, no Ocidente
(Byington, 1983). Seguindo o que Neumann fez com o Matriarcal e o Patriarcal, e buscando
o equivalente do Arquétipo da Alteridade na personalidade individual, percebemos que ele
se torna dominante pela primeira vez na adolescência e volta a ser dominante na metanóia.
É no estudo da adolescência que vamos usufruir da compreensão da bipolaridade
do Arquétipo da Alteridade e dos Arquétipos da Anima e do Animus, que dele fazem parte.
Como descreveu Neumann em seu livro A Criança (1960), na fase matriarcal, do
nascimento aos 2 anos de idade, forma-se a identidade de gênero da criança, e na fase
patriarcal, dos 3 aos 12 anos, ocorre a socialização e a formação moral. Na transição para a
alteridade da adolescência ocorre a separação da família e a abertura para a sociedade.
Nessa transição vemos claramente duas subfases: a primeira, de homoafetividade; e a
segunda, de heteroafetividade.
A fase de homoafetividade que marca o começo da adolescência e a formação da
“patota” cria os clubes do Bolinha e da Luluzinha, que fortalecem a identidade sexual. Nesta
fase têm lugar vivências iniciáticas da identidade do homem e da mulher, que variam de
cultura para cultura. Pelo fato de as identidades homo, hétero e bissexual se definirem nessa
época, suas disfunções podem trazer fixações que confundem a identidade sexual na vida
adulta e que serão outra vez elaboradas e redefinidas na metanóia. Compreende-se, assim,
porque em bissexuais é comum a formação da família heterossexual na primeira metade da
vida e a escolha da homossexualidade na metanóia.
A homoafetividade tem a função de reforçar a identidade antes de passar à
heteroafetividade, que porá à prova a identidade de maneira muito intensa. O
reconhecimento da força estruturante da Anima e do Animus na homoafetividade é
importante porque ela explica a intensidade da formação de relações simbióticas nessa fase
e até mesmo sua exacerbação extraordinária pela constelação dos Arquétipos do Herói e da
Heroína, que podem chegar às raias da paixão, com intenso fascínio e admiração. Estas
pessoas podem buscar orientação psicopedagógica e terapêutica, e é muito importante que
elas não sejam consideradas homossexuais, pois às vezes o são e às vezes não. Há
situações em que é difícil distinguir entre uma pessoa que é homossexual e outra que entra
na homossexualidade para não perder uma amizade.
Com o desenrolar da adolescência, a Anima, o Animus e a Alteridade se constelam
ainda mais, e a heteroafetividade se intensifica. Mesmo em adolescentes homossexuais,
vemos a busca de parceiros de tipologia complementar, o que comprova a bipolaridade da
Anima e do Animus.
Estas considerações são preparatórias para compreendermos o que quero dizer
com o título da palestra ser A Alma Masculina e a Função Estruturante da Sensibilidade.
A Psicologia Simbólica Junguiana considera todas as coisas símbolos estruturantes,
e todas as funções da vida como funções estruturantes. Todos os símbolos e funções
estruturantes são arquetípicos, e por isso podemos perceber os arquétipos pelas imagens
arquetípicas (símbolos estruturantes), como descreve Jung, como também pelas funções da
vida (funções estruturantes) (Byington, 2002).
Assim sendo, a sensibilidade é uma função estruturante arquetípica. Sua
caracterização é difícil, pois, afinal, toda a matéria viva é sensível. Ao invés de buscar defini-
la por sua presença na personalidade do homem, que é o título da palestra, vamos começar
pelo seu cerceamento, por sua ausência e pelo que ela foi impedida de ser.
Podemos dizer que durante o período de aproximadamente dez milênios em que se
formou e se desenvolveu a civilização, a sensibilidade do homem foi intensamente
reprimida. Ela foi reprimida em função do papel atribuído ao homem na família e na
organização social de dominância patriarcal. Sendo o papel do homem e o da mulher
codificado em função das atividades do lar e da sociedade, e sendo as funções do lar
atribuídas à mulher, o homem permaneceu com o poder social, a competição profissional
para prover a família, o exército e a guerra. Quando definimos e criticamos o machismo, o
despotismo, a rudeza, a promiscuidade e o cafajestismo do homem patriarcal, geralmente
nos referimos ao que ele tem e exerce de forma poderosa e distorcida, e quase nunca
percebemos o que ele não tem e que sofre por não ter e, o pior, o que ele não tem e nem
pode sentir que não tem, porque, se o fizer, estará depondo contra o seu papel de homem.
É surpreendente, porém, e isto eu só fui descobrir no meu próprio processo de individuação,
que estas características que o homem patriarcal está impedido de ter e de exercer,
constituem a sua sensibilidade. Ela é tão proibida que a insensibilidade passou a fazer parte
do papel do homem patriarcal, ou seja, por mais educado e refinado que seja, ele, no fundo,
é compelido a ser insensível e casca grossa em muitos aspectos de sua vida afetiva e
profissional.
Ainda não pude lhes transmitir fenomenologicamente o que é a função estruturante
da sensibilidade do homem, pois, como estamos vendo, ela foi reprimida durante milênios.
No entanto, sabemos que a repressão nunca é absoluta, e geralmente boa parte do material
reprimido é projetado. Normalmente, projetamos nosso inconsciente para depois introjetá-lo
e formar nossa Consciência, mas projetamos também o que reprimimos para aperfeiçoar a
repressão, negando ainda mais o que estamos proibidos de integrar. É como se
disséssemos: - “Vejam, isso não pode ser de forma alguma uma qualidade minha, pois ela é,
sem dúvida, uma característica do outro”. Nesse caso, quando analisamos as projeções,
descobrimos a identidade de quem as projetou. Mas isso não é tão fácil assim, pois as
projeções se misturam com as características do seu alvo, o que dificulta muito o seu
conhecimento. Assim, aconteceu que, ultimamente, ao começarmos a descobrir a
sensibilidade do homem, passamos a examinar cuidadosamente suas projeções para
chegarmos à sua verdadeira natureza. Por esse caminho tortuoso, mas produtivo,
descobrimos as depositárias das duas grandes projeções históricas associadas à repressão
da sensibilidade do homem: a mulher e a homossexualidade. Sabemos isso porque o
homem patriarcal podia ser tudo, menos mulherzinha e gay. Mas, o que haverá de comum
entre eles que explique a sensibilidade do homem?
As funções estruturantes que a mulher exerceu na família patriarcal foram o
aconchego e o carinho para com os filhos, o acolhimento da sua vulnerabilidade e do seu
sofrimento, sua dedicação e zelo, sua ternura e delicadeza, a cultura dos sentidos do
paladar para cozinhar, as prendas domésticas para costurar e decorar a casa, a paciência e
resignação diante de situações de impotência, seu espírito de sacrifício e tantas mais, que
todos bem conhecemos.
E os homossexuais? O que é que eles têm em comum com a mulher, que o homem
patriarcal é proibido de exercer? Eles cultivam tanto o afeto e a alegria, que na sociedade
americana foram intitulados gay. Vestem-se com vaidade e de forma cuidadosa, criativa e
até chocante e espalhafatosa. Basta vermos o terno e gravata do homem patriarcal, e sua
semelhança estereotipada com a farda militar, para vermos uma diferença marcante do
mundo gay. A distância da alegria também é marcante porque o homem patriarcal é sisudo,
emburrado, e vive com raiva e cansado pelo peso da responsabilidade, devido a todo o
poder que amealhou. Some-se a isso a frustração e a inveja defensiva da imensa
sensibilidade que está proibido de ter e que observa de longe na mulher e nos gays, e nos
damos conta de que ele é assim tão sério porque é infeliz. Nesse sentido, sua gravata é a
coleira que o estrangula com as suas obrigações. É curiosamente simbólico que o homem
patriarcal, quando se permite um momento de lazer e descontração, a primeira coisa que faz
é afrouxar o nó da gravata.
O desconhecimento do que é a sensibilidade do homem ainda é tão grande que
Jung, que enfatizou tanto a bipolaridade psicológica no homem e na mulher, referiu-se
freqüentemente à Anima como a parte feminina do homem. Mas, quando procuramos a
definição de feminino no dicionário e encontramos “algo pertencente à mulher”, ficamos
frustrados, pois achávamos que descobriríamos o que era a sensibilidade do homem e
acabamos de volta à mulher. Nesse sentido, é fácil falarmos da sensibilidade do homem
quando ele sonha com uma mulher ou se apaixona por ela. Mas, se ele se veste
criativamente, gosta de cozinhar e de escrever poesia, é humilde, delicado com as pessoas,
inclusive com outros homens, tem prazer em decorar a casa e de se perfumar, dizer que isto
é coisa de mulher evade a busca do conhecimento do que é a sua sensibilidade. Não é raro
que os gays também se percam nesse caminho, pois, na hora de “saírem do armário”, como
dizem, e de assumirem quem são, freqüentemente falam com trejeitos, desmunhecam e até
rebolam, tudo com jeito de mulher. Como se, na hora de se libertarem e realmente
mostrarem sua sensibilidade como homens que são, ainda não soubessem do que ela se
trata.
Sérgio Buarque de Hollanda foi quem mais se aproximou de uma definição da
sensibilidade, quando descreveu o brasileiro como o homem cordial, ou seja, com o jeito do
coração. Aí chegamos muito perto do homem sensível. Mas então vêm aqueles que
associam o homem cordial com o sedutor, o jeitinho brasileiro, o malandro, o golpista, o
cafajeste, o promíscuo, o vagabundo, o canalha, e desaparece outra vez a sensibilidade
como função estruturante da alma masculina.
Afinal, ainda não sabemos bem o que é a sensibilidade do homem, mas estamos
cada vez mais perto de concluir que é pelo fato de não poder exercer sua sensibilidade que
o homem patriarcal não sabe amar. Senhor de um imenso poder, ele engana bem.
Apresenta-se hoje cada vez mais politicamente correto, incorporando o que soa melhor,
venha da esquerda ou da direita. Aprendendo com as reivindicações femininas tudo o que
as mulheres desejam num homem, ele está se dirigindo para perceber o caminho da
descoberta e da expressão da sua sensibilidade.
No entanto, no meio da viagem, sempre que surge a grande prova do exercício da
sensibilidade, ele vê que o território em que se encontra é uma região imensa, promissora,
mas ainda desconhecida. Ao buscar sua sensibilidade, o homem começa a descobrir o amor
e percebe que essa é a terra prometida, a terra do leite e do mel, com a qual muitos de seus
antepassados sonharam, mas que somente alguns poucos foram eleitos para lá chegar.
Eu lhes disse que um dos problemas para conhecermos o conteúdo de nossas
projeções é porque elas se misturam com a natureza do alvo sobre a qual foram projetadas.
Assim, aconteceu que o nosso viajante, ao chegar perto de sua sensibilidade, descobriu que
ele só a conhecerá mesmo no território do amor, e que essa vivência depende do encontro
da mulher, da companheira de viagem. Surpreso, ele se dá conta também que a sua
descoberta depende do amor, porque, para conhecer a sua sensibilidade, necessita que ela
a mulher também o faça. E a surpresa seguinte é que tudo o que projetara nela e que era
proibido para ele, e que ele agora começa a integrar, não completa a sensibilidade dela, pois
o que faz falta a ela estava projetado nele. Iniciativa, criatividade, poder, conhecimento,
realização, independência, auto-suficiência, auto-estima, e até superioridade estavam
projetados nele, e ela necessita também de boa parte disso para saber quem é.
Nosso homem continua sem saber como é a alma masculina, mas pelo menos ele já
sabe que ela é feita de sua sensibilidade projetada desde tempos imemoriais nas mulheres e
nos gays. Mas agora ele já está mais animado em sua busca. Ele descobriu que ela se
realiza no amor e que, por isso, ele não pode lá chegar sozinho, pois necessita da mulher
para acompanhá-lo. Descobriu também, para consolo do seu complexo de inferioridade, que
a mulher e os gays em quem depositara tudo o que não tem, também não são completos,
pois ainda não encontraram nem realizaram plenamente a sua sensibilidade, mas também a
estão buscando e descobrindo.
Concluindo, quero lhes dizer que a alma masculina depende da função estruturante
da sensibilidade tanto quanto a alma feminina, mas que cada um tem que descobri-la e
realizá-la à sua maneira. A Sombra da humanidade é muito grande e chega atualmente a
ameaçar nossa sobrevivência, mas a possibilidade de as pessoas buscarem sua alma
seguindo os caminhos de sua sensibilidade dentro do amor nos enche de esperança.
O TRABALHO CORPORAL EM PSICOTERAPIA COM IDOSAS:
Algumas Experiências num Serviço Público de Saúde

Cláudia Sampaio1

O trabalho que apresento é fruto das indagações e conseqüente experiência que


adquiri na tentativa de respondê-las, no período em que estive trabalhando como membro
de uma equipe multidisciplinar, num ambulatório de especialidades do SUS, voltado ao
atendimento integral da saúde do idoso.
Nessa ocasião preocupava-me enquanto profissional da saúde em reiterar um modelo
de atuação pouco pertinente às demandas daquela realidade para a qual prestava serviços.
Lembrava-me de alguns autores que discorreram com críticas análises sobre o
posicionamento de muitos profissionais de saúde mental nas instituições públicas,
mencionando, por exemplo, haver uma justificativa por parte destes, a respeito da ausência
ou pouco aproveitamento das abordagens psicológicas pelas camadas populares, que
quase invariavelmente, atribuíam a incapacidades orgânicas, intelectuais e culturais das
mesmas.
Outras observações convergiam para a consideração de que os métodos e técnicas
priorizados na formação do psicológo, em geral importados de outras realidades,
mantinham-se referendados em valores sociais completamente diversos dos das
populações que se apresentavam nas instituições públicas.
Verifiquei que a distância social existente entre o profissional e o usuário do serviço
público marca diferenças de perspectivas na apreensão dos fenômenos, que pode resultar
desde uma prática clínica inócua, ou com poucos desdobramentos dos processos
psicológicos, até o prejuízo deles, quando o profissional, identificado como o representante
da ciência e membro de uma classe social hierarquicamente superior, sobrepõe seu ponto
de vista, ilude a si próprio como o possuidor da verdade e estabelece, muitas vezes sem o
saber, relações de poder.
Meus questionamentos giravam em torno da maneira pela qual a prática clínica
poderia ser contextualizada no âmbito público, isto é, mais aproximada das reais

1
Psicóloga, aperfeiçoada em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde e especializada em Psicoterapia de Orientação
Junguiana Coligada a Técnicas Corporais pelo Instituto Sedes Sapientiae. E-mail: claudiamcsampaio@terra.com.br
necessidades que ali se apresentavam, ao mesmo tempo em que cuidada para não repetir
padrões de conduta opressivos, tão combatidos em sistemas mais amplos, mas também
presentes e escamoteados em pequenas redes, como aquela que se configura nas
instituições de saúde, no interior dos consultórios dos diversos especialistas, sejam eles de
assistência médica, paramédica ou social.
Guggenbühl-Craig (1978) já havia salientado a particularidade e risco da ocorrência
desse fenômeno no exercício das profissões de ajuda que ele denominou de ministério. No
que diz respeito ao exercício da psicoterapia, numa abordagem junguiana, isso ocorreria
quando o terapeuta deixasse de adotar uma atitude de abertura, tanto quanto o seu
paciente, para uma gradual assimilação dos conteúdos emergentes à consciência de ambos
que compõe a relação, o que levaria a uma estagnação nas posições polares ocupadas
inicialmente por eles, estando elas regidas pelo arquétipo curador-enfermo.
Nesses casos, o paciente permaneceria identificado com uma única polaridade do
arquétipo, com o doente, e aquele que é usuário público, possivelmente, com o portador das
deficiências, ou de todas as mazelas, eu acrescentaria.
O idoso, fazendo parte de um segmento populacional historicamente pouco
considerado e, portanto, marginalizado, torna-se ainda mais suscetível, numa relação
terapêutica, a imbricar-se nessa qualidade de relacionamento que tende a não gerar
movimento quando, consciente ou inconscientemente, o profissional mantém a assimetria.
Apenas mais recentemente essa faixa da população vem sendo alvo de
preocupações das políticas públicas, dado o crescente aumento do número de habitantes
idosos no país.
Esse fato refletiu-se no serviço onde eu trabalhava, logo na ocasião de sua
inauguração, quando uma extensa fila desses indivíduos, vindos das mais diferentes regiões
da cidade, formou-se na porta de entrada do ambulatório. Naturalmente, muitos foram
dispensados por não residirem nas imediações do serviço, previamente demarcadas para
assistência pelas políticas de saúde.
Fazia-se necessária para a equipe multidisciplinar a oferta de trabalhos que
atendessem o maior número de pacientes num período relativamente curto, sem que
evidentemente, houvesse a perda da qualidade do serviço.
No tocante às modalidades individuais de atendimento, presumi que os recursos do
método corporal, idealizados por Pethö Sándor, poderiam revelar-se como um instrumento
catalisador dos processos de psicoterapia, em virtude, principalmente, da posição
privilegiada que a relação terapêutica ocupa em seu método.
O caráter ritualístico de seus procedimentos técnicos, como a calatonia e suas
ampliações, mais conhecidas por toques sutis, somado à polaridade que se forma no
ambiente terapêutico pelo profissional da saúde mais o paciente, cria um campo de força
que propicia a constelação do arquétipo relacionado à cura. As condições originadas pela
presença desse campo leva o profissional, desde o início, a envolver-se de um modo
completamente diferente na relação; leva-o a voltar sua atenção para a emergência de
elementos que transcendem suas expectativas individuais e intenções conscientes, quer
dizer, o mantém mais sensível para a atuação de um terceiro ponto que orientaria os
processos, sendo este melhor compreendido em termos da totalidade de sua psique, ou da
de seu paciente ou, ainda, do encontro entre elas.
Qualquer trabalho terapêutico aprofundado, nessa perspectiva, tem lugar apenas
quando aquele que se propõe a “restabelecer a saúde” prontifica-se a contatar
continuadamente, e em proporções cada vez maiores, seus próprios aspectos doentios ou
desprezíveis, ao passo que, aquele que se encontra em “déficit”, se abra para recuperar
para si os elementos saudáveis, que em geral atribui à figura daquele que se propôs à
terapêutica.
A disposição interna daquele que assiste é, portanto, fundamental para que um
processo terapêutico deflagre, como também a retirada mútua de projeções, para que ele se
desenrole. No entanto, o tratamento só terá êxito se o profissional, apesar de todo o
conhecimento técnico que possui, decidir abdicar do suposto controle que intenciona ter
sobre o processo e conseqüentemente sobre o paciente e deixar-se influenciar mais pelo
conjunto de imagens, oriundas daquele ponto intermediário, que sempre agirá para os dois e
conterá a finalidade do encontro.
Numa instituição, o que se observa com mais frequência é que nem sempre o
profissional da saúde está disposto a assumir e lidar com suas vulnerabilidades no contexto
terapêutico, muito menos receptivo ou confiante na possibilidade de que aquele outro que
lhe solicita ajuda, proveniente às vezes de uma classe social desfavorecida, poderá também
transformá-lo, mediante o encontro que se dará. Nesses casos, torna-se mais conveniente
para ele atribuir o pouco aproveitamento da terapêutica pelo paciente às diferenças
socioculturais existentes entre eles ou, ainda, à fragil aderência daquele ao tratamento,
situações possíveis, porém alegadas em demasia nos serviços públicos.
Na experiência que obtive com os pacientes idosos, notei que muitos que chegavam
para ser atendidos pelo setor de psicologia já haviam passado por diversas especialidades
médicas, ou ainda iriam passar.
Além do geriatra, muitos ainda iriam consultar o cardiologista, o neurologista, o
otorrinolaringologista, o endocrinologista, o psiquiatra, para conhecerem a causa e o
tratamento de sintomas como palpitações no peito, oscilações freqüentes na pressão
arterial, dores de cabeça, falhas de memória, zumbidos no ouvido, queimação no estômago,
distúrbios do sono e tantos outros sintomas, inclusive os de labilidade vegetativa.
Dessa maneira, não raro, observava o longo percurso que faziam dentro do serviço
de saúde, obtendo de cada especialidade um veredicto sobre seu corpo e um medicamento
correspondente ao mesmo. Embora o serviço seguisse o preceito de integralidade nas
ações prestadas, mantinha o corpo do idoso “despedaçado”. O sentido das diversas
disfunções do corpo e do todo, para ele permanecia, apesar disso, desconhecido.
No âmbito das terapêuticas, várias pareciam ser as situações que não contribuíam
para a constelação daquilo que, em linguagem junguiana, também chamamos de imagem
arquetípica do médico ferido. O idoso parecia estar privado dessa qualidade de experiência,
ou pela grande especialização dos profissionais das diversas áreas pelas quais passava,
que conheciam muito uma pequena parte, mas muito pouco de sua totalidade, ou pelo ritmo
acelerado de atendimento, característico de toda a rede pública ou, ainda, – por que não
afirmar nesses termos? – pela própria vaidade dos “doutores”, que tentam permanecer
imunes à pobreza, à ignorância, à doença e à velhice.

Sobre o Caso Sra. Antônia (60 anos, 5 meses em psicoterapia)

Oito dias antes de comparecer à entrevista Sra. Antônia teve forte mal-estar. Sentiu
angústia acompanhada de tremores, tonturas e adormecimento dos lábios. Teve sensação
de que iria morrer. Desesperou-se e atravessou na frente de carros que passavam pela rua.
Dona A. começou a terapia dando ênfase à sintomatologia corporal. Mantinha-se
cabisbaixa e apresentava bastante ansiedade, enumerando diversos medos, alguns
inespecíficos. Havia presença de comportamentos fóbicos, esquecimentos freqüentes e
presença eventual de gagueira.
Desde o momento inicial, revelava o esforço que vinha fazendo a fim de manter-se
alheia a respeito de conteúdos da sombra que tentavam emergir.
Trazia queixas de dificuldades de relacionamento conjugal e se sentia impossibilitada
de tomar qualquer iniciativa. Devido ao fato de o marido estar com idade avançada e fazer
hemodiálise, percebia que necessitava de cuidados especiais, pelos quais só ela podia se
responsabilizar.
Estava inapetente e sem conseguir andar sozinha pelas ruas, solicitando
freqüentemente que a filha a acompanhasse.
Sempre fora frequentadora assídua dos cultos religiosos da igreja, mas não estava
conseguindo permanecer nos mesmos. Vinha observando, com perplexidade, que as
recomendações que os “irmãos” da igreja davam não eram compatíveis com suas atitudes.
Começou a revelar situações de humilhação às quais se submetia na relação com o
marido. Esta era marcada por ofensas contínuas e raramente Sra. A. procurava se defender.
Vinha tendo sonhos nos quais vivia uma espécie de perseguição. Nessas ocasiões acordava
assustada e permanecia agitada. Alguém parecia “bulir” em sua cabeça.
A esta altura introduzi o primeiro trabalho corporal: a compressão fracionada2.
Sra. Antônia expôs em atendimentos subseqüentes sua angústia. Não conseguia
resolver as tarefas às quais se propunha e se sentia em uma espécie de labirinto. Tinha
vontade de sair andando, de ir para um lugar aonde não tivesse perturbações. Expressou o
quanto sempre procurou manter as situações sob controle, fazendo tudo “certinho”.
Mencionou ter pensado em morrer para se livrar de tais tormentos.
Miranda (2000) refere que tanto as mandalas como o labirinto são objetos e temas
simbólicos para meditação. O labirinto, para ele, conduz ao interior de cada um, para uma
espécie de santuário sagrado, no qual toma assento a dimensão mais misteriosa da pessoa

2
Esta é uma forma de estimulação tátil suave, que consiste em uma aproximação rítmica e gradual em direção à pele. A
descrição detalhada da aplicação da técnica, bem como de outros procedimentos de intervenção corporal designados neste
texto como toque sutil, encontram-se ilustrados no trabalho de Suzana Delmanto (1997).
humana. Traz à lembrança o concentrar-se sobre si mesmo, através dos milhares de
caminhos das sensações, das emoções, das idéias. Tudo de que Sra. A. queria esquivar-se.
O labirinto no corpo, vinculado aos ouvidos, estaria relacionado à necessidade de
escuta. As dificuldades de verbalização, de emissão da palavra, como apresentada pela
paciente, estavam ligadas a uma dificuldade física de escuta e de receptividade, conforme
foi se evidenciando ao longo do processo.
Abordamos o movimento unilateral que realizava em seus relacionamentos, nos quais
procurava sempre ofertar e dar de si para outros. Ressentia-se por não obter
reciprocamente o que dava, mas também não se prontificava a receber.
De um modo mais explícito começou a aparecer as recriminações que a Sra. A. se
auto-impunha e que, anteriormente, considerava provenientes exclusivamente de terceiros.
Introduzi na sequência outra intervenção corporal: toque sutil no esterno.
Sra. A. obteve sensação de leveza corporal e trouxe conteúdos de qualidade
diametralmente opostas à vivência observada corporalmente, carregados de destrutividade.
Ocorreu-lhe pensamentos de morte. Sentiu medo de morrer e de ficar louca; por outro
lado, questionou por que deveria sobreviver. Fez referências sobre a presença de outros
pensamentos que surgiam e a denegriam.
O marido parecia-lhe bom quando questionava-a sobre seu estado de saúde, era
comum, porém, que em seguida a culpasse por seu adoecimento. Sra. A. nunca se sentira à
vontade em sua casa: era como se lá não houvesse criado raízes e o marido contribuía
negativamente para a exacerbação de sua autocrítica que, conforme descobrimos, era
bastante severa.
Realizamos pouco depois deste atendimento toques sutis que incluiram: toques na
clavícula, ombros, cabeça e o trabalho foi finalizado com um estiramento das pernas.
Dona A. obteve relaxamento por todo o corpo e sensação de cuidados maternos, que
lhe parecia nunca ter experimentado. Trouxe queixas relacionadas a um mal-estar que
sentia quando presenciava as repreensões que sua neta sofria de seus pais e lembranças
sobre uma cirurgia que havia realizado anos atrás e que resultou na retirada de seu útero.
Segundo dados que havia fornecido em entrevista, aos 4 anos foi dada por sua mãe
para ser criada por outra mulher, que por longo tempo na infância lhe bateu. Nesse
momento da terapia parecia que recuperava vivências de rejeição na infância e
experimentava novamente as dores da época através de um movimento de identificação
projetiva na neta.
A lembrança da cirurgia mostrou-se significativa, pois, do ponto de vista simbólico, o
útero vem a ser a matriz do ser. De acordo com Penna (1989), passamos 9 meses
embalados no líqüido amniótico e, por esse motivo, geralmente as pessoas projetam
conteúdos ligados às origens, aos instintos e aos aspectos mais inconscientes nesta região
do corpo.
O útero é o lugar onde o embrião é matriciado e desenvolvido. Miranda (2000) lembra
que desenvolver é o oposto de envolver e quem se des-envolve, livra-se de envolvimentos e
matrizes, contando com aqueles que em sua origem foram aprisionantes ou esterilizantes.
Para ele, o processo de individuação indica que cada um deve buscar seu verdadeiro lugar
na vida, rompendo com envolvimentos que limitam e confundem. As marcas da sujeição
parental podem ser terríveis e a saída está no centro, no centrar-se.
Dona A. manifestava-se negativista quanto à melhora de seu quadro. Apresentava
inquietação, dores de cabeça e tonturas. O marido permanecia fazendo reclamações
excessivas e mostrava-se muito intolerante com o fato de ela não melhorar. Ela traz um
sonho:

Sra. A. e mais algumas pessoas, dentre elas uma mulher vestida de noiva,
tentavam atravessar um rio. Sabia que teria que fazer a travessia antes que ele se
abrisse. Não houve tempo suficiente: o rio se abriu e a levou com sangue.

Dona A. associou a imagem do sonho à idéia de casamento, sofrimento e


arrependimento. Lembrou que seu primeiro marido saía com várias mulheres e deixou uma
de suas filhas, que tivera com outra mulher, morrer de fome.
Sobre a simbologia do matrimônio nos sonhos, Mindell (1989) considera que a nível
psicológico este aparece não só como um compromisso com um parceiro externo, mas,
como um vínculo consigo mesmo, com a própria realidade... Parceiros externos, em certo
sentido, são mais fáceis de se divorciar. Mas, não elaborar problemas com um parceiro
externo, também reflete a tendência de se divorciar dos conflitos internos; assim o
compromisso perante um parceiro torna necessário que se elaborem os conflitos. Nesse
ponto de vista, o aparecimento da imagem ou idéia do casamento significaria a tentativa da
psique de superar o conflito mediante a integração dos opostos, quer dizer, da assimilação,
por parte da paciente, daquilo que conscientemente lhe é contrário ou adverso.
Encontramos também na imagem de seu sonho um paralelo simbólico num episódio
narrado no texto bíblico. Miranda (2000) o retoma fazendo a seguinte menção:

No Egito, num clima de violência e escravidão, um dos gestos proféticos de


Moisés foi transformar água em sangue. Um gesto terrível para um povo do deserto,
que tinha no Nilo sua fonte de vida. Talvez seja difícil encontrar em toda a Bíblia um
episódio com maior violência simbólica do que a transformação da água em sangue.
(id., p.119)

Seu sonho parecia revelar que não estava conseguindo, através de seus sucessivos
casamentos, que adquiriram qualidades emocionais violentas, efetuar as transformações
que necessitava em si mesma. No sonho recuava diante da travessia, e na vida diante dos
desafios – de modo muito parecido com aquele recuo do herói mitológico diante da ponte
de espada afiada – que percebe não ter havido tempo suficiente para se preparar e
alcançar o seu intento.
As uniões da Sra. A. eram repetições das histórias de negligência e maus tratos
vividas na infância. Seus casamentos foram tentativas de fuga de uma situação que
inconscientemente reiterava. No primeiro casamento uniu-se a um homem negligente para
livrar-se dos maus tratos físicos que sofria da mãe de criação e, no segundo, uniu-se a um
homem que lhe causava maus tratos morais para evitar uma suposta dependência
financeira que poderia vir a ter da mãe biológica que a negligenciou quando a deu para
adoção.
Sra. A. passou a expor de um modo mais explícito a rejeição que sofreu da mãe.
Apenas neste momento pode entrar em contato com toda a dor do abandono.
Lembrou-se de que o pai havia se manifestado contra a adoção, mas essa memória,
como a referente ao convívio harmonioso com o padrasto, que havia mencionado na
entrevista, parecia estar dissociada do afeto correspondente, pois ambas não lhe serviam de
alento. Quando, por exemplo, falei sobre a participação positiva das figuras paternas em sua
vida, mais uma vez foi a polaridade negativa da experiência que se sobrepôs e Sra. A. se
sentiu punida, pois cedo o pai biológico e o de criação haviam morrido.
De modo surpreendente para dona A., na sessão subseqüente trouxe mais um
sonho, que causou-lhe forte impacto e deu nova direção ao processo:
O pai (biológico) dizia para parar de sofrer e perdoar a mãe. Ele também lhe
transmitia o quanto lhe queria bem.

Parecia que seu curador interno havia sido finalmente constelado.


Nos encontros posteriores Sra. A. voltou a trazer queixas corporais sobre alterações
neurofisiológicas relacionadas com o sistema simpático – dava ênfase à aceleração
cardíaca e aos tremores. Pedia ajuda a Deus, para que melhorasse desse mal e cultivava
grande culpa, questionando qual mal terrível haveria cometido para passar por referida
situação.
Considerei oportuno nesse momento introduzir um exercício de imaginação ativa,
para obter elementos para melhor direcioná-la. Para a realização desse trabalho segui as
orientações contidas no exercício intitulado “o aliado interior”, de autoria de Murdock (1987).
Após o exercício, Sra. A. manteve-se cabisbaixa, expressou comovida que havia
visualizado alguém com um manto branco que lhe disse que “onde fincasse os pés estaria
com o Senhor”.
A manifestação de seu inconsciente por intermédio do exercício pareceu ter aludido à
necessidade de criar raízes.
Os pés relacionam-se, entre outros significados simbólicos, com a capacidade que se
tem de sentir prazer. Estar com os pés plantados, fincados na Terra, significa perceber que
se pertence à Terra e por isso ter prazer pela própria existência.
No caso da Sra. Antônia era notável que havia ocorrido um dano à imagem materna
que provocou um dano à sua relação com a imagem arquetípica da mãe terra. Era como se
ela não achasse seu lugar no mundo e não fosse pela vida recebida.
A imagem do marido como uma pessoa debilitada começou a ser substituída pela de
um homem perverso. Aos poucos discriminava que não apenas ela era objeto de
condenações advindas do cônjuge, mas grande parte das pessoas do convívio dele.
Antes de tomar a decisão de efetivar a separação conjugal Sra. A. teve outra iniciativa
importante e que a impressionou. Tendo sentido seu coração pulsar com vigor,
impetuosamente, procurou sua mãe legítima e pediu-lhe perdão. Nesta ocasião
conversaram abertamente sobre o que sentiam e haviam vivido com o episódio da
separação na infância.
Possivelmente grande parte das inquietações e culpa que carregava vinculava-se à
raiva inconsciente que tinha da mãe pelo abandono na infância. A orientação que obteve em
sonho para perdoá-la permitiu-lhe contatar o sentimento de raiva que havia reprimido. Mais
tarde, quando, contrariamente ao sonho, pediu perdão à mãe, pôde conscientizar-se sobre o
quanto era rigorosa consigo mesma, sendo ela própria, Sra. A., quem se autocondenava.
Após esse episódio Sra. Antônia referiu melhora no padrão de sono e de alimentação.
Percebeu que estava mais flexível, pois “estava deixando o barco rolar”. Pouco depois se
separou. Ao final da terapia começou a cogitar a possibilidade de ir morar com uma das
irmãs legítimas, possivelmente como forma de estreitar vínculos de confiança e de alastrar
suas “raízes”.

Sobre o Caso Sra. Emília (66 anos, 6 meses em psicoterapia)

Sra. Emília veio para o setor de psicologia porque se sentia facilmente irritável.
Estava em acompanhamento farmacológico de epilepsia e buscava alívio para alguns
sintomas que, acompanhados ou não dos ataques, causavam-lhe importante mal-estar,
como era o caso das parestesias. Segundo seus relatos, a manifestação dos formigamentos
de mãos e pés e a sensação de intumescimento da região da boca vinham causando-lhe
angústia e por vezes tinha a impressão de que estava prestes a morrer.
Sra. E., quando falava sobre seu padecimento, descrevia com detalhes os sintomas
corporais, e quando falava sobre sua vida emocional usava termos vagos ou mantinha-se
lacônica, como se esta não tivesse importância.
Queixava-se de cansaço, falta de atenção e esquecimentos freqüentes. Sentia ainda
“peso” na cabeça. Fizemos nos primeiros atendimentos trabalhos de conscientização
corporal3. Introduzi também, nos momentos iniciais, uma sequência de toques na cabeça4 .
Mencionou conflitos com as filhas, lembrou ter sofrido agressão de um de seus
genros e concluiu que sempre havia trabalhado para os outros, como se tivesse anulado a si

3
Para a realização destes adotei os procedimentos descritos no trabalho de Rosa M. Farah (1995), denominado de “o
carimbo” - exercício de relaxamento.
4
Este tipo de estimulação tátil suave consta em Suzana Delmanto (1997) sob a designação de pontuação no couro cabeludo
acompanhada de imagem mental.

couro cabeludo acompanhada de imagem mental.


própria. Ao trazer tais relatos usava expressões do gênero “não tô nem aí com isso”, “isso
não me abalou”, “as coisas são assim mesmo”.
Supus que havia um modo característico de se relacionar com os episódios mais
difíceis da vida, modo este marcado por uma certa “anestesia”, que fazia parecer que estes
não a afetavam, mas o mais provável é que fossem, em grande medida, reprimidos.
Os esquecimentos e a diminuição da atenção vinham prejudicando-a nos afazeres
domésticos e na administração de seu pequeno comércio, uma bomboniere.
Conforme passei a solicitar, começou a trazer mais detalhes de sua história de vida,
revelando ter vivido situações de grande sofrimento psíquico que, possivelmente, não lhe
deixaram outra saída que não fosse “anestesiar-se”. Era interessante observar que as
parestesias estão relacionadas justamente a perturbações na sensibilidade.
Estava divorciada há quatro anos, o que havia conseguido com muito custo. Tendo
perdido os pais em acidente aos nove anos, foi criada por um irmão pouco mais velho.
Casou-se jovem para fazer “birra”, porque ele a restringia.
Desde o início do casamento sentia o desprezo do marido. Ele fazia uso abusivo de
bebidas alcoólicas e pouco depois descobriu que tinha outra família. Mantinha com ele
relações sexuais forçadas e nas ocasiões em que tentou deixar a casa onde residiam foi
trazida de volta “arrastada” por ele e julgada como indecente por seus familiares.
Assim, pouco a pouco, foi entrando em contato com as reminiscências sombrias e
com os sentimentos correspondentes sobre as dificuldades enfrentadas para lidar com o
controle do marido e o machismo autoritário da comunidade do interior do nordeste. Nesse
momento, emocionou-se e chorou, referindo que atribuía seus enganos à falta de orientação
na vida iniciada com a perda precoce dos pais.
Os esquecimentos que são observados como um fenômeno natural do processo de
envelhecimento adquiria, no caso da Sra. E., características próprias. A enfermidade
neurológica começou a manifestar-se por volta dos sessenta anos, mas as falhas de
memória datavam de época bem anterior na vida adulta, cuja ocorrência indicava relação
com mecanismos defensivos, como na ocasião do nascimento da primeira filha, quando foi
tomada por grande sentimento de insegurança, dada a própria instabilidade vivida no
casamento.
Baseada no material que a paciente estava trazendo durante três encontros
consecutivos procurei trabalhar o grouding5 . Nesses três encontros solicitei que caminhasse
descalça pela sala, antes e depois do trabalho aplicado em seu corpo 6. Nos dois primeiros
foram realizados toques nos pés e pernas e, no terceiro, o trabalho consistiu na técnica de
relaxamento de Michaux, que em seus aspectos mais gerais, pode ser compreendida como,
uma forma de estimulação mais vigorosa em vários segmentos do corpo, por meio da
manipulação direta do terapeuta, que executa diversificadas qualidades de movimentação.
Com a proposição do caminhar, Sra. E. observou que não andava descalça desde
criança e, ao andar dessa maneira pela sala, mostrou grande desequilíbrio. Afirmou que
“vivia dormindo” e que achava que precisava de alguém para “acordá-la para a vida”.
Trouxe um sonho no atendimento posterior:

Via pessoas tomando banho num tanque com água suja. Havia crianças,
adolescentes e senhoras. Elas também brincavam.

Mencionou, ainda surpresa com a ocorrência do sonho, que “estava tudo preto em
sua mente” e sentia que começava a melhorar.
Parecia haver uma analogia entre a água suja do sonho e sua percepção de ter
estado com a mente escura, esquecida, alheia. As diversas etapas de sua vida simbolizadas
pelas três gerações no sonho estavam sendo regeneradas pela água, talvez re-significadas
mediante a terapia, que trazia como conseqüência um estado de soltura e alegria,
sensações associadas por ela à imagem do sonho.
Começou a andar sem calçados dentro de casa e percebia uma melhora no equilíbrio
do corpo. Comentou também que começava a sentir os pés.
Em seqüência trouxe conteúdos relativos a conflitos familiares, nos quais voltava a
adotar a familiar posição do “tô nem aí com isso”, seu já conhecido mecanismo defensivo.
Sobre isso conversamos, e também demos continuidade ao trabalho com pés e pernas.

5
Dychtwald (1984) define esse termo como sendo a qualidade do contato que a pessoa estabelece com a terra e com sua
força gravitacional através das pernas e dos pés e que resultam em graus diversos de obtenção de apoio e estabilidade a
partir da mesma. Haveria, para ele, uma correspondência do modo como o corpo da pessoa se relaciona com essa força e
com seu próprio senso de estabilidade psicológica.
5
A descrição pormenorizada da execução desses trabalhos constam na apostila de Técnicas de Abordagem Corporal
elaborada por Marilena Dreyfuss Armando e Luísa de Oliveira.
Dona Emília passou a comentar que se sentia menos irritada e impulsiva. Meses
atrás, quando as defesas falhavam, atirava o que tinha em mãos. Isso ocorria especialmente
quando não compreendia algo. Chegou a afirmar metaforicamente que estava colocando os
pés no chão com as orientações que vinha obtendo.
Ocorreu-me que poderia propor toques em outra região, num local onde houvesse
correspondências simbólicas com o que emergia em sua consciência. Propus então um
trabalho com toques sutis na coluna. Para Leloup (1998), a coluna vertebral relaciona-se
com o arquétipo do pai, com a autoridade, a estrutura, a orientação, o eixo.
Com essa intervenção surgiram memórias de ter sofrido pancadas acidentais em
suas costas, o que deu margem a dúvidas se tais episódios não constituíam situações de
violência doméstica, pois não foi possível explorá-los.
Como Sra. E. vinha oscilando entre momentos de tomada de pequenas iniciativas e
outros de desmotivação, realizamos um trabalho mais ativo e revigorante, como a
movimentação com todas as articulações do corpo. Observou a partir dele ter tirado grande
“peso” das costas e trouxe comentários de que à noite sua cabeça dormia, mas o corpo não.
Um sonho emerge e mostra a permanência de seu movimento de esquiva:

O rosto do marido olhava-a fixamente. Este era muito grande, parecia com a lua.
Ela (Emília) se escondia e ele continuava a olhá-la atentamente.

Da mesma forma como se sentia perseguida com a presença próxima do ex-marido


e, anos atrás, com a do irmão, tendo até se casado para livrar-se dele, também se sentia
perseguida pela lua. Simbolizando, para ela, os aspectos sombrios do inconsciente, a lua a
ameaçava com sua aproximação. Talvez, por esse motivo, percebia que à noite sua cabeça,
em contraposição ao resto do corpo, se desligava completamente e dormia. Ainda era
grande o medo de adquirir mais consciência.
Ainda era grande o medo de adquirir mais consciência e de se apropriar de suas
capacidades. Propus então um toque na região da supra-renal, devido à associação dos rins
à força e seus contrários, como o pânico e o medo.
Novo sonho surge no encontro imediatamente posterior

Estava andando a cavalo e perdia-se com frequência. A filha estava em outro cavalo e
a ajudava a se encontrar.
Ao fazer associações com as imagens lembrou-se de que a única vez em que andou
a cavalo, sofreu uma queda. Isso ocorreu na ocasião do casamento do irmão, quando foi
responsável por assinar documentos referentes ao mesmo, pois as pessoas presentes não
sabiam ler nem escrever. A partir disso ficou com medo de andar novamente a cavalo.
Para Mindell (1989), sonhos sobre cavalos, veículos de locomoção, referem-se à
máquina na qual estamos inseridos. É um símbolo do corpo em geral, do portador não
consciente do espírito e do corpo sutil.
Seu sonho parecia revelar que vinha alcançando um equilíbrio maior, um governo
maior dos instintos, pois permanecia em cima do cavalo no sonho; no entanto, ainda
precisava de ajuda para encontrar a direção certa. O medo, possivelmente de guiar a própria
vida, aparecia mais uma vez. Agora, porém, não podia se eximir da responsabilidade de
suas escolhas, pois, embora estivesse sendo ajudada a encontrar a direção, a realizar a
leitura de seu corpo-inconsciente, apenas ela podia escrever ou assinar, ou seja, ser a
autora de suas ações.
Nos encontros que se seguiram começou a expressar mais suas vontades, já como
resultado da consciência da vida que lhe faltava.
Tivemos mais dois encontros não consecutivos, nos quais voltamos a trabalhar o
grouding. Observou uma melhora importante no caminhar e estava andando descalça pela
casa. Mostrou-se muito satisfeita por ter voltado a fazer compras para abastecer seu
comércio.
Até finalizarmos a terapia a Sra. E. realizou três viagens, sendo que em uma delas
esteve na companhia de vizinhos, com os quais tinha pouco contato anteriormente. As dores
de cabeça estavam menos freqüentes, estava mais atenta e menos esquecida.
Assim que começamos a nos preparar para o desligamento trouxe seu último sonho:
“Sonhei que estava em meio a água limpa”. Havia nítidos paralelos entre a água suja do
primeiro sonho e a sua visão turva, sombria, desacordada, esquecida. A Sra. E. afirmou que
estava mais tolerante consigo quando não entendia algo; por outro lado, sua compreensão
sobre as coisas de um modo geral havia melhorado. Considerou que estivera cega e sua
mente começava a voltar. Mindell (1989) observa o aparecimento do simbolismo da água
nos processos de psicoterapia como a expressão da fluidez. Para ele, a água é
medicamento contra o enrijecimento da intuição, da mobilidade física e do sentimento.
Considerações Finais

Dona Antônia e Dona Emília foram duas entre muitas outras senhoras que
acompanhei intimamente em psicoterapia. Em muitas delas observei um elemento comum,
que caracterizava a base do sofrimento psicofísico pelo qual passavam. Elas apresentavam
profundas feridas em suas relações primárias, tendo sido muito pouco acolhidas pelas
figuras parentais ou por quem as substituiu. Haviam chegado numa idade mais avançada e
desenvolvido, de modo insuficiente, suas potencialidades, tendo permanecido presas nos
complexos materno e paterno.
Nos momentos iniciais, a postura cabisbaixa da Sra. Antônia e a aparente indiferença
da Sra. Emília quanto ao desenvolvimento da psicoterapia revelaram, mais tarde, o medo
que tinham de confiar, de se entregar e de receber.
Muitas tiveram dificuldades de sobrevivência em tenra infância, outras sofreram maus
tratos e, cada uma a seu modo, com os recursos que contavam na época, procurou uma
maneira de lidar com elas. Na velhice, em consequência dos conflitos arrastados por toda a
vida adulta, elas adormeciam, se esqueciam, fugiam ou não enxergavam, a fim de
manterem o parco equilíbrio diante das maiores adversidades.
Por esse motivo, muitos de seus desejos e vontades estavam encobertos e inaudíveis
quando iniciaram o processo terapêutico. Baseadas em suas origens, cultivavam a crença
de que estes não encontrariam possibilidades de serem atendidos.
Ao iniciarem a psicoterapia os sintomas que essas idosas apresentavam davam-lhes
a sensação de proximidade de morte. Na realidade, esta relacionava-se a seu aspecto
simbólico, isto é, ao potencial transformador que eles engendravam. Elas temiam, em última
análise, o novo, pois haviam sido muito pouco incentivadas e apoiadas a realizar mudanças
e conquistas.
Havia certa homogeneidade quanto à manifestação de seus comportamentos: estes
se apresentavam rígidos. Talvez até por esse motivo o símbolo mais presente no processo
terapêutico de algumas delas tenha sido a água.
A esse respeito Mindell (1989) já havia feito algumas considerações. Disse que a
água, sendo um agente curador, “cura doenças” caracterizadas pela rigidez. A existência do
complexo enrijece a consciência e este enrijecimento rodeia as fortes emoções relacionadas
com o âmago do complexo.
Isso confirmou-se na medida em que custaram para entrar em contato com as
emoções mais intensas relacionadas com a dor do abandono e da rejeição que haviam
vivido. Possivelmente, em virtude disso, mantinham-se defendidas frente à dependência e à
necessidade do outro e se identificavam unilateralmente com as doadoras.
A introdução dos toques sutis favoreceu a emergência de sentimentos de raiva e de
culpa, que as impossibilitavam de julgar a si mesmas dignas de oportunidades e de efetuar
escolhas, e que as privavam de se tornar menos suscetíveis às opiniões da coletividade,
como também menos conduzidas por ela.
A eclosão de tais sentimentos permitiu a elas que não apenas iniciassem a
elaboração dos mesmos, mas também que isso as levasse a se reconciliar com suas
origens, quer dizer, que adquirissem um pouco mais de consciência quanto a seus reais
propósitos, independentemente dos desígnios parentais, pois tiveram alguns interesses e
desejos despertados.
O trabalho corporal também facilitou a introspecção e a lembrança de sonhos. Elas
rememoraram, mediante sonhos e imagens hipnagógicas, experiências positivas nas
relações paternas. Houve ocasiões nas quais emergiu não propriamente a lembrança do pai,
mas figuras ou imagens que representavam uma autoridade interna que não fora
meramente introjetada, mas que dizia respeito às suas motivações genuínas.
Estas conferiram às idosas a sensação de encorajamento e de incentivo, sendo que
se sentiram mais capacitadas a tomar decisões e a estabelecer limites.
Durante o período em que estive atendendo essas senhoras minhas feridas também
foram tocadas por elas e tive sonhos nos quais surgiram imagens, cujos símbolos revelaram
similaridades com os dela.
Sonhos com carros que não conseguia guiar apareceram em várias ocasiões e
indicaram que eu não estava conseguindo manter o antigo controle rígido sobre as coisas.
Uma mudança fazia-se necessária, o que sugeriu a imagem de um outro sonho muito
significativo.
Neste eu preparava arroz e me desesperava quando via excrementos brotando do
fundo da panela. Eu tentava afundá-los quando vinham para a superfície, com a intenção de
suprimi-los, mas eles retornavam. Em seguida, começaram a compor, na forma de
pequenos pontos negros, variadas e belas imagens simétricas com os pontos brancos,
grãos do arroz. A imagem adquiria movimento e lembrava um caleidoscópio, que, por sua
vez, me remeteu, em vigília, à idéia da mandala e do labirinto, como apresentada por Dona
Antônia.
Entendi, a partir desses sonhos, que a vida estava exigindo que eu agisse com
inteireza, quer dizer, com maior autenticidade, o que seria possível se de fato incorporasse
tudo aquilo que estava relutando em aceitar e abominando em mim mesma; só assim
poderia readquirir o controle sobre minha vida sem tanta rigidez e com mais criatividade.
Com todas as faltas e carências que essas mulheres apresentavam elas também me
transformaram. Após o término da psicoterapia e de meu desligamento da instituição, o
simbolismo das águas também veio rondar meus sonhos das mais diferentes maneiras.
Simbolizando o reservatório de todas as possibilidades de existência, o contato com as
águas comporta sempre uma regeneração. Tudo indica que essa foi possível para todas
nós, mas antes pelo contato que estabelecemos, não com as águas, mas, de um modo
significativo, entre nós mesmas.
Referências Bibliográficas

DELMANTO, S. – Toques Sutis. São Paulo: Summus, 1997.

DYCHTWALD, K. – Corpomente – Uma síntese dos caminhos do oriente e do ocidente para


a autoconsciência, saúde e crescimento pessoal. São Paulo: Summus Editorial, 1984.

FARAH, R. M. – Integração Psicofísica. São Paulo, Robe Editorial, 1995.

GUGGENBÜHL-CRAIG, A. – O abuso do poder na psicoterapia e na medicina, serviço


social, sacerdócio e magistério. Rio de Janeiro: Achiamé, 1978.

LELOUP, J. Y. – O Corpo e seus Símbolos: uma antropologia essencial. 10 ed. Rio de


Janeiro: Vozes, 1998.

MINDELL, A. – O Corpo Onírico: o papel do corpo no revelar do Si-Mesmo. São Paulo:


Summus, 1982.

MIRANDA, E. E. – Corpo: Território do Sagrado. 3 ed. São Paulo: Loyola, 2000.

MURDOCK, M. – Giro Interior. São Paulo: Cultrix, 1987.

PENNA, L. - O Corpo Sofrido e Mal Amado - As Experiências da Mulher com o Próprio


Corpo. São Paulo: Summus, 1989.
REFLETINDO SOBRE A FERIDA DO FEMININO
Maria Ângela Mestriner Marques Ferreira1

A proposta do presente trabalho é abordar e relacionar alguns assuntos


importantes: feminino, Animus, trauma e a história do patriarcado, tentando entender
por que o processo de desenvolvimento do feminino tornou-se um caminho árduo
diante do massacre que sofreu durantes anos de predominância de uma visão do
patriarcado.

A “Castração” da Mulher pelo Patriarcado

Quero pensar em como se dá o desenvolvimento da mulher, quando ela


carrega em sua história uma marca de desvalorização e opressão do patriarcado e
de que maneira a integração do Animus em sua consciência fica prejudicada.
Cavalcanti (1993) descreve, brilhantemente, a história da mulher do ponto de
vista patriarcal. Sua pesquisa se inicia no mito de Adão e Eva e atravessa os
séculos, até chegar aos dias de hoje, sempre mostrando como as religiões, outros
mitos e até mesmo Freud, com sua teoria sobre a inveja do pênis, têm uma forma
patriarcal de pensar.
A autora considera a autonomia, a liberdade, o desejo de expressão e a
capacidade de acolhimento como essência do feminino. Evidentemente, a
capacidade da mulher de cuidar, acolher e nutrir o desenvolvimento, sem apressar o
curso das coisas, faz parte de seu mundo interno. Mas, quando essas características
são mal interpretadas, como de fato foram, podem ser usadas contra a própria
mulher, fazendo dela um ser fraco, submisso e incapaz. Essa submissão foi uma
imposição do patriarcado e a mulher acabou incorporando essa característica que
deixou marcas profundas na sua personalidade.
Autores, como Whitmont (1995) e Jung, E. (1931), levam em conta que a
questão do desenvolvimento e o processo de individuação da mulher ficaram
prejudicados uma vez que, após séculos submetida ao patriarcado, tem dificuldade
em lidar, também, com seu masculino interno.

1
Psicóloga Clínica, especialista em Psicoterapia Junguiana Coligada a Técnicas Corporais, pelo Instituto Sedes
Sapientiae. Especialista em Experiência Somática. E-mail: angelammf@ajato.com.br
Jung, E. (1931) descreve que o homem, que sempre foi valorizado pela
sociedade e viveu um papel de dominância sobre a mulher, ao ter que se confrontar
com sua Anima, terá que descer de seu pedestal, superar seu orgulho e,
humildemente, olhar para ela e com ela e se relacionar. A mulher, que sempre
esteve numa posição de obediência em relação ao homem e ao Animus, terá que
superar sua falta de confiança para conseguir "olhar" para o Animus com igualdade,
caso contrário só aumentará o poder dele sobre ela.
De acordo com Jung, C.G. (1987 [1916]), as funções da Anima e do Animus,
quando não são conscientizadas, funcionam como complexos autônomos,
comportando-se como personalidades independentes; porém, quando integradas à
consciência, podem ser convertidas em pontes para o inconsciente (psicopompo).
Sendo assim, a mulher, que esteve tanto tempo submetida a essa enorme
força do patriarcado, terá a árdua tarefa de travar uma luta interna diária em busca
do desenvolvimento de sua personalidade. Como o homem passou séculos
massacrando o feminino, ela foi internalizando um masculino destrutivo, opressor e
castrador e, uma vez internalizados esses conceitos, ela mesma assume a tarefa de
se autodesvalorizar.
Na opinião de Emma Jung (1931), se a mulher vive sob uma grande influência
do Animus, seu feminino pode estar sendo negligenciado, e um importante passo
para interromper essa dinâmica é retirar a projeção do outro e lidar com ela
internamente, reconhecendo e depois diferenciando-a de si mesma.
Cavenaghi (1999), em sua pesquisa sobre os séculos de opressão do
feminino, fornece dados que mostram que, desde 1790, a mulher vem percorrendo
um longo caminho para conquistar seu direito a voto, instrução, práticas
anticoncepcionais, trabalho, divórcio, aborto (em alguns países) e igualdade de
todos os direitos.
Essa autora aponta para o fato de o direito à cultura e instrução só ter sido
concedido às brasileiras em 1879, mas, ainda, com discriminação e desaprovação, e
somente em 1932 receberam o direito de voto.
Por isso, quando, muito tempo depois, foi autorizado o acesso da mulher ao
conhecimento, a vontade já se encontrava atrofiada e o sentimento de fraqueza e de
incapacidade já haviam sido incorporados.
Além disso, podemos considerar que, quando não desenvolvemos nosso
potencial, ficamos em dívida com nós mesmos, o que pode resultar em problemas
psicossomáticos, alteração de humor, depressões ou problemas de relacionamento.
Cavalcanti (1993) nos conta que o mito que melhor representa o jeito
patriarcal de pensar é o de Adão e Eva, onde Adão é considerado a imagem de
Deus e Eva nasce depois, num segundo momento, de sua costela, sem qualquer
ligação com o divino.
Evidentemente, esse tipo de interpretação do mito teve a clara intenção de
colocar a mulher em segundo plano, mostrando sua suposta inferioridade, com o
objetivo de garantir sua submissão, pois, segundo Sicuteri (1985), o primeiro capítulo
do Gênesis fala de como homem e mulher foram criados, juntos, à semelhança de
Deus, estando ambos ligados à divindade e, segundo ele, a primeira mulher a ser
criada foi Lilith. Só no segundo capítulo é que será encontrada a outra versão da
história, na qual Eva nasce da costela de Adão.
O autor acrescenta que Lilith não aceitava as coisas de uma forma passiva,
questionando Adão sobre a preferência dele, durante o ato sexual, pela posição
tradicional, na qual o homem fica por cima e a mulher por baixo. Ela pede para
inverter as posições e, diante da recusa e imposição de seu parceiro, Lilith
abandona Adão. Após esse episódio é que Eva é criada, numa versão que se
“encaixa” melhor dentro dos padrões religiosos e sociais.
Segundo Cavalcanti (1993), não sendo divina, a mulher, considerada
imperfeita, está mais suscetível ao pecado e perde o paraíso, sucumbindo à
tentação da serpente, ficando clara a necessidade de ser controlada por sua
fraqueza.
Considerada fraca e pecadora fica difícil reconhecer que, na verdade, Eva
teve grande importância para o desenvolvimento da humanidade.
A transgressão de comer o fruto proibido leva a humanidade à tomada de
consciência entre as diferenças do masculino e do feminino e, portanto, à
transformação, ao verdadeiro reconhecimento entre homem e mulher.
Com o feminino tão oprimido, o masculino passa a ser supervalorizado
também pelas mulheres e muitas projeções acabam acontecendo de forma
deturpada.
Segundo Whitmont (1995), a projeção faz com que se enxergue no outro
aquilo que está no inconsciente. O outro passa a ser possuidor dos defeitos,
dificuldades, maldades e, também, das virtudes, seguranças e sabedorias de quem
projeta. É muito comum que uma pessoa sem noção de seu potencial considere
outras como detentoras de desenvolvimento, conhecimento, confiança etc e, se a
força está toda no outro, a pessoa deixa de reconhecê-la em si mesma e fica
suscetível tanto às críticas externas como internas.
Segundo Wehr (1998), é de grande importância que a mulher reconheça que
a voz interior que lhe diz que não é capaz, que não consegue, que não sabe, é uma
internalização da visão que a sociedade patriarcal tem sobre ela, e não uma
realidade ou algo que pertence à sua essência. De tanto ser desvalorizada, a mulher
acabou por incorporar aspectos negativos em sua psique que, por sua vez, ao não
serem elaborados, ajudaram na formação de um Animus negativo.
A autora propõe, inclusive, mudar a nomenclatura desse aspecto do Animus
transformado em negativo (autodesvalorização) para opressão internalizada.
A religião judaica, por exemplo, deixa claro que seu Deus e seus profetas são
homens e o feminino, mais uma vez, é relegado à sombra, ao inferior,
completamente sem poder. Além disso, costuma considerar que a mulher está
impura quando menstruada, e, por isso, não pode ser tocada antes de passar por
um ritual de purificação.
Segundo Cavalcanti (1993), esse jeito de pensar faz com que a sexualidade
da mulher também seja vista como perigosa e a única qualidade aceita é a de
mulher casta, que não seja capaz de despertar desejos nos homens.
O feminino ficou inferiorizado e a mulher foi proibida de estudar, participar da
política e vida religiosa, ficando, assim, afastada do conhecimento, que lhe garantiria
algum poder e também a possibilidade de se desenvolver intelectual, cultural e
socialmente.
“O estado de indiferenciação psíquica facilita o exercício do poder. Essa é a
técnica mais antiga de dominação conhecida. O uso do poder pela proibição do
conhecimento impede a reflexão e a contestação do que está estabelecido.”
(Cavalcanti, 1993, p. 100)
Sendo assim, a mulher, tão cerceada de participar daquilo que estava
acontecendo em sua volta, acaba ficando imobilizada, paralisada, sem ter como
reagir, precisando cada vez mais do homem para guiá-la em seus caminhos,
aumentando a relação de desigualdade com ele.
Mas, assim como existe uma força que impulsiona para a paralisação e a
estagnação, existe também uma outra que impulsiona para o desenvolvimento, para
a individuação e, quando essas forças se contrapõem, a pessoa pode entrar em
colapso.
É importante considerar que o imenso conflito de querer desenvolver-se e ser
impedido disso pode gerar a mesma constrição que acontece quando a pessoa é
traumatizada. O impasse de querer desesperadamente ir em frente e ter que
incondicionalmente ficar, cria uma situação tão impactante que a pessoa pode ficar
num estado de imobilidade que gerará um trauma.
A mulher que viveu isso intensamente tem que conviver com marcas muito
profundas que vêm sendo carregadas há séculos, até os dias de hoje.

O Trauma do Feminino Gerado pelo Patriarcado

Optou-se aqui por utilizar os conceitos adotados pela abordagem denominada


Somatic Experiencing (Experiência Somática), criada por Peter Levine (1999), doutor
em Física Médica, Biológica e Psicologia.
Esse autor baseou seu método na observação dos animais que, apesar de
viverem sob constantes ameaças de serem caçados diariamente, não se
traumatizam porque conseguem descarregar a carga de energia mobilizada após o
momento de tensão.
Então, diante de uma ameaça muito grande, répteis e mamíferos dispõem de
três respostas:
Luta: um animal diante de uma ameaça poderá lutar, se ele perceber que tem
chance de ganhar (por exemplo, diante de um animal do mesmo tamanho e porte
físico).
Fuga: o animal poderá fugir, se perceber que não consegue ganhar a luta
(caso esteja diante de um animal maior ou mais forte).
Congelamento: quando ele não pode lutar e não consegue fugir, existe, ainda,
o recurso da imobilidade, comum quando a morte parece iminente. Com ele, o
animal tem, ainda, chance de escapar, pois o predador pode achar que o animal
morreu antes de ser caçado e abandoná-lo, o que lhe dá a chance de despertar de
sua imobilidade e fugir. É uma possibilidade de estar seguro. Essa resposta é muito
eficiente porque, nesse estado, o animal não sente dor, poupando-lhe grande
sofrimento.
Esse mecanismo de imobilidade é involuntário e, por isso, não depende da
nossa consciência. O cérebro reptiliano, ligado ao instinto de autopreservação e
sobrevivência pessoal e da espécie, é o responsável por essa resposta.
Levine (1999) explica que o processo de congelamento, onde o corpo está
internamente ativado, pronto para fugir, e externamente imóvel, como se estivesse
morto, deixa o sistema nervoso desregulado. Isso cria uma turbulência que poderá
formar os sintomas de estresse traumático, caso não seja descarregada.
O animal irá fazer isso, instintivamente, quando voltar da imobilidade: irá se
chacoalhar e descarregar a intensa energia acumulada.
Com o ser humano é diferente, pois quem está no comando é o neocórtex
(cérebro racional que está ligado ao cognitivo, ao perceptual) e esse altera ou
controla o instinto e, por isso, nem sempre o corpo consegue reagir como deveria,
pois o racional vem primeiro, cheio de dúvidas, medos e necessidade de
entendimento.
Muitos danos ocorrem quando essas respostas não conseguem se completar.
Os traumas aparecem e os sintomas são enormes.
Vamos, agora, imaginar essa resposta de imobilidade na mulher dentro da
dinâmica do patriarcado.
Quando o conceito de que a mulher era um ser inferior foi instalado, já não
dava mais para fugir para nenhum lugar. A igreja, a sociedade, a cultura, a família,
passaram a enxergá-la dessa forma, ou talvez a não enxergá-la de nenhuma forma
e, por onde passasse, estava lá uma grande ameaça ao seu psiquismo.
É de uma ameaça psíquica que se está falando. Na situação desvalorizada
em que a mulher se encontrava não dava para lutar contra uma sociedade tão
poderosa. Fugir para onde? Lutar contra tantos? A única resposta disponível
naquele momento era congelar.
Na verdade, era realmente a melhor opção, pois, como já vimos, quando um
animal está no estado de congelamento, ele não sente dor, caso seja destroçado por
seu predador; portanto, mantendo-se num estado de imobilidade ou congelamento,
a mulher pôde evitar grande sofrimento psíquico, pois como poderia ela suportar
tantos pecados em suas costas?
Porém, isso provocou uma perda de contato com muitas de suas
capacidades.
Quando a capacidade de lutar é perdida, toda a energia agressiva que estava
pronta para esse ato, fica confinada. Como é fácil imaginar, se não é descarregada
para fora do corpo, então começa a destruir por dentro. E é assim que a vontade de
viver, a coragem de enfrentar as situações, vão dando lugar a ansiedade,
depressão, problemas psicossomáticos ou crises psíquicas.
Não deve ser por acaso que no início do século XX as mulheres tinham, com
freqüência, sintomas histéricos. A questão é: Por que só as mulheres? Por que não
se achava uma causa para os problemas?
Mulheres paravam de enxergar, outras não conseguiam andar, outras ainda
desmaiavam sem razão. Nada era encontrado e, então, considerava-se apenas que
elas tinham um “chilique” para chamar atenção. Poderia ser a energia do trauma
tentando sair pelos poros, pelos olhos, pelas pernas, por qualquer parte do corpo
que pudesse desesperadamente se expressar?
A mulher, ao internalizar os conceitos do patriarcado de ser frágil, incapaz,
submissa, dependente do homem, passou a se considerar fraca, necessitando de
controle e, por isso, foi ficando cada vez mais imobilizada e a falta de acesso ao seu
potencial foi minguando sua capacidade de reagir, de questionar, de avaliar.
Simplesmente passou a aceitar que ela deveria ser mesmo muito ruim, nada mais
tinha a fazer, a não ser congelar.
Essa imobilidade deixa-a tão paralisada que depois, mesmo tendo a opção de
sair desse papel a que se submeteu, já não encontra mais o caminho para a
liberdade.
Estudos realizados (Scaer, s/d) com choques em animais onde a
possibilidade de escapar era nula, mostraram como a resposta de congelamento
está associada com o alto risco para a criatura, quando não é permitida sua
dissipação espontânea.
Animais colocados em um ambiente sem possibilidade de escape
congelavam imediatamente, quando submetidos a choque. Num segundo momento,
quando foram introduzidas as rotas de escape, esses animais não conseguiam
reagir fugindo. Eles permaneceram dentro do ambiente, ainda respondendo com
congelamento.
Portanto, quando a mulher está presa numa fixação do trauma gerado pelo
patriarcado, ela permanece num estado de congelamento, de imobilidade, de
impossibilidade de reagir, de lutar ou, ainda, de fugir.

Trauma é uma camisa de força interna, quando um momento


devastador é congelado no tempo. Sufoca o desenvolvimento de nosso ser,
estrangulando nossas tentativas de ir em frente com nossas vidas.
Desconecta-nos de nós mesmos, dos outros, da natureza e do espírito.
Quando somos dominados por uma ameaça ficamos congelados de medo. É
como se nossas energias instintivas de sobrevivência estivessem ‘arrumadas’,
prontas, sem ter nenhum lugar para onde ir. (Levine, 1997, p.V).

Essa é a força devastadora do trauma: paralisa, afunila e deixa o curso do rio


tão estreito que torna a vida muito limitada, com poucas perspectivas de futuro.
Levine (1999) ainda explica que, quando as respostas de luta e fuga não
podem se completar, o corpo se contrai instintivamente ao congelar e essa energia
de luta e fuga, que deveria ser descarregada, fica amplificada no sistema nervoso.
Sendo assim, a resposta frustrada de luta, transforma-se em raiva e a de
fuga, em impotência. Nesse estado ansioso, o indivíduo pode reagir repentinamente
com uma resposta “desesperada de fuga ou com um contra-ataque furioso” (Levine,
1999, p.94).
Com essa análise, pode-se indagar se não terá sido isso que ocorreu na
época do feminismo, onde as mulheres foram para as ruas em protesto contra o
machismo e o patriarcado, queimaram seus sutiãs e, a partir daí, começaram a
“puxar suas espadas” contra os homens. Não teria sido essa uma tentativa de liberar
a resposta de luta que estava incompleta? Tamanha energia contida começou a sair
em forma de agressão e deu início a uma guerra entre o feminino e o masculino.
Quem tem mais poder? Quem está no controle? Quem ganha e quem perde?
De fato, aquela teria sido uma ótima ocasião para completar a resposta de
luta, pois a raiva toda parecia estar saindo, mas não foi o que aconteceu.
De acordo com a teoria da Experiência Somática, para descarregar a carga
de ativação retida no organismo, é necessário dar tempo para que o sistema
nervoso alcance um novo equilíbrio. É conveniente que a pessoa entre em contato
com a ativação aos poucos, acessando e integrando as sensações e emoções. Se a
tentativa de desativação ocorrer rápido demais, poderá acontecer uma re-
traumatização e a pessoa volta para a “correnteza” do trauma.
Além disso, a mulher, apesar de mais corajosa, continuou sendo
discriminada, só que de forma mais sutil, com salários mais baixos, posições
empresariais inferiores e olhares discriminadores.
Exatamente como acontece com os animais, quando há uma nova ameaça
no momento do descongelamento, o animal congela novamente e pode-se pensar
que isso também ocorreu com as mulheres.
Importante reforçar que o foco aqui é o congelamento psíquico.
Embora a mulher tenha conquistado muitas coisas a partir do feminismo,
ainda restam algumas questões. Como está a conexão com sua essência? Será que
as atitudes, a dinâmica de se relacionar, o jeito de encarar o mundo, é feita de uma
maneira feminina? Ou será que ela reproduz um jeito masculino de ser, aprendido e
imposto pelo patriarcado, um jeito que ela foi incorporando por ser o único modelo
disponível?
Evidentemente são visíveis as conquistas que ela galgou até os dias de hoje:
assumiu posições melhores nas empresas; concilia sua atenção para a casa, filhos,
marido, empregadas, babás, escola das crianças, supermercado, decide junto com o
marido compras de imóveis ou qualquer tipo de bens e investimentos. Mas, junto
com essas conquistas, também vieram outras como: o enfarte e o stress (doenças
até então tipicamente masculinas) ou, ainda, dificuldade para engravidar.
Segundo Estés (1997), a mulher perdeu a conexão com sua “mulher
selvagem”, ou seja, com a alma feminina; com a intuição e o mundo instintivo; o
contato com a natureza, com os sonhos, as paixões, a arte, a poesia, a criatividade,
o sentimento, entre outros contatos fundamentais.
Deparar-se com o que acontece com a mulher, quando ela perde o contato
consigo mesma, pode, muitas vezes, ser muito impactante. Mas essa consciência é
de fundamental importância para que a transformação possa começar a ocorrer.
Essa questão requer certo cuidado porque, após tantos anos de massacre e
congelamento, a mulher pode acabar achando que a vida é mesmo assim, que
todos esses sentimentos de impotência e incapacidade são muito normais e fazem
parte de sua natureza.
É importante entender que essa violência psíquica veio de fora dela, mas que
agora não é mais necessário ficar internalizada; a mulher já pode parar de violentar
a si mesma.
Voltemos ainda a uma outra reação do organismo quando está diante de uma
ameaça: é a chamada “resposta de orientação”. Quando acontece alguma alteração
no meio ambiente, o animal procura identificar o que está acontecendo: um perigo
se aproximando, ou apenas um galho de árvore que caiu? Dependendo da situação,
ele fica com o corpo todo tenso, seus olhos aguçados, esperando um movimento,
seus ouvidos alertas. Seu corpo está todo preparado, “ligado” e orientado para
“entender” que alteração foi essa em seu ambiente. A reação seguinte será, como já
vimos anteriormente, lutar, fugir ou congelar ou, se não houver perigo, descarregar
toda a energia contida para fora do corpo.
Muitas mulheres têm esse recurso de orientação extremamente diminuído,
talvez porque, de tanto congeladas, já não sabem mais diferenciar o perigo. Temos o
exemplo daquelas mulheres (por volta do ano de 1997) que “caíam na conversa” do
“Maníaco do Parque”, motoqueiro desconhecido que prometia transformá-las em
modelos e as levava para o Parque do Estado, no meio do mato, onde as
espancava, mordia, estuprava e assassinava. Oito foram mortas e nove
conseguiram escapar com vida. Mulheres jovens, na faixa dos 18 aos 25 anos. A
principal pergunta é: por que essas mulheres subiam na moto de um estranho? Por
que não enxergavam o perigo? Por que não viam que ali tinha algo muito estranho?
A mente, que “deveria ser capaz de ver” o perigo, não o faz e, além disso,
passa a justificá-lo com fantasias de que tudo vai ficar bem, que o perigo apenas faz
parte de sua imaginação.
No livro Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa Pinkola Estés, é
narrado um conto que ilustra bem essa dinâmica da mulher. É o conto O Barba-azul.
Nesse conto, a mulher que, a princípio sente medo da barba azul de um homem e
de seus modos grosseiros, acha que pode estar enganada sobre suas sensações e
se encanta com a possibilidade de uma vida farta e luxuosa que pode ter casando-
se com ele. Não percebe que ele é um assassino de esposas. Essa “cegueira”
quase lhe custou a vida. É evidente que, se ela tivesse dado ouvidos a sua primeira
percepção (medo de um homem tão estranho e assustador), não teria nem chegado
perto dele.
Não percebeu que estava diante de uma pessoa perigosa e se distraiu com
questões do tipo: será que um homem tão gentil pode ser tão ruim? Será que se ele
fosse tão perigoso poderia ser tão divertido? Será... Será... Será... e, pronto, o
neocórtex é quem está no comando e a intuição e o instinto já foram para o cárcere
e agora já está preparado um terreno muito fértil para novos traumas e mais
congelamento e mais traumas, num ciclo interminável.
Segundo Levine (1999), um dos sintomas mais sutis e clássicos do trauma é
a dissociação.

No trauma, a dissociação parece ser o meio predileto de capacitar uma


pessoa a suportar experiências que estão além da possibilidade de serem
suportadas no momento em que acontecem. (Levine, 1999, p.124)

Sendo assim, pode ser adequado atribuir a perda do contato da mulher com
sua essência ao mecanismo de dissociação.
É fácil imaginar o quanto é preciso afastar-se de si mesma para conseguir
suportar tamanha repressão e massacre, sofridos durante tantos anos. Como é difícil
sentir que o impulso para o desenvolvimento não tem permissão para seguir adiante.
Como pode ser insuportável ter que se afastar de sua natureza porque esta foi
considerada inadequada, inútil e perigosa.
Na dissociação a pessoa se distancia de sua sensopercepção, é como estar
fora de seu corpo. E, estando fora dele, como a pessoa pode saber quem realmente
é?
Para lidar com o trauma e ter acesso ao processo de cura, Levine (1999)
propõe trabalhar com as sensações corporais internas através da “sensopercepção”.
A sensopercepção não é somente prestar atenção no corpo, mas prestar
atenção com consciência. Apoderar-se e estar presente ao que está acontecendo
com o corpo.
As sensações corporais são como um guia que nos mostra onde está o
trauma e como acessar nossos recursos internos.
Nem sempre é fácil estar atento a essas sensações, pois vivemos numa
sociedade pensante. São computadores, botões, tecnologia, video-games, televisão.
Tudo funcionando como um grande incentivo a um afastamento do corpo.
Aos poucos começamos a ouvir falar dos trabalhos corporais e os resultados
benéficos que o contato com o corpo pode trazer e, sem tantos preconceitos
começamos e aceitá-los. Hoje em dia já podemos ouvir alguns médicos dizendo:
“Parece que esse negócio de trabalhar com o corpo funciona”.
Segundo Levine (1997): “O trauma está no sistema nervoso, não no evento”.
Por isso, os registros de uma situação traumática ficam todos no corpo e é através
dele que pode ser liberado.
A mulher passou anos aprisionada nessa energia traumática. Chegou o
momento de entrar em contato com essa força, olhá-la, senti-la, descarregá-la.
Afinal, a intuição, os instintos, o afeto, o acolhimento, a intimidade com o
outro, são características ou dons femininos que vêm através do corpo e somente
através dele poderão ser resgatados. Essa é a verdadeira natureza da mulher e está
na hora de ela apropriar-se novamente do que é seu, com todo o direito.

Pensando sobre Novos Caminhos

Para que a mulher possa realmente apropriar-se de sua verdadeira natureza,


é necessário que tenha consciência do que aconteceu com ela, de qual é o seu
papel, qual a sua importância na sociedade, quais suas reais necessidades, seus
sonhos, seus desejos na vida, para que consiga se modificar. Se ela não se
modificar, provavelmente não conseguirá mudar a visão que a sociedade tem dela.
Porém, será que a mulher tem consciência de que perdeu o contato com sua
essência? Ou será que vive apenas sentindo um buraco dentro de si, um vazio que,
por mais que ela faça, não consegue completar?
Segundo Levine (1999), quando a pessoa é traumatizada, ela fica presa no
medo, perdendo a capacidade de sentir-se bem com ela mesma e com o mundo e
isso pode interferir profundamente nas relações com os outros, mas, principalmente
com ela mesma.
Por isso a consciência da sensopercepção é um passo bastante importante
no processo de transformação. Estar dissociada de si mesma e distante das
sensações corporais tornou-se, por muitos anos, um recurso de proteção contra o
sofrimento. Mas, e agora? Será que ela ainda precisa utilizar-se desse mecanismo?
A dissociação faz com que a pessoa se afaste de si mesma e os contatos que a
mulher tem feito, por enquanto, são externos, o que não a ajuda a descarregar a
energia do trauma.
Ela fez vários avanços no que se refere à liberdade, vida profissional,
independência financeira, cultura, participação social. Hoje em dia não precisa mais
se submeter ao homem, se ela não quiser. Em contrapartida, encontra-se escrava
de algo que a mídia e ela mesma se impôs, que é o desejo desmedido do corpo
perfeito, do silicone, do cabelo alisado, do botox. Tudo em nome de uma vaidade
descontrolada e uma imensa necessidade de sedução.
Durante muito tempo o patriarcado adotou uma visão polarizada de mulher
casta e reclusa, onde sua sexualidade era vista como perigosa e pecadora. Proibida
de despertar desejos, tinha que ficar escondida da sociedade, mas, principalmente
dos homens. Porém, a busca da transformação leva a um mecanismo muito comum
de passar para a polaridade oposta e tudo aquilo que lhe foi negado, agora é objeto
de admiração, tanto das mulheres quanto dos homens.
Mas o que ela ainda não se deu conta é que o encontro com sua essência
não acontecerá com o olhar voltado para fora e, sim, para dentro de si mesma, para
as mensagens que seu corpo percebe, recebe, sente.
O olhar para o exterior apenas a distancia de seu caminho, da sua essência,
buscando uma perfeição externa que existe apenas nas revistas que retocam as
fotos, enganando o olhar dos admiradores. Olhando para fora não conseguirá
assumir o controle de seu corpo são, eliminando o trauma. Não o eliminando, a
energia continua presa na imobilidade.
Porém, essa consciência não é simples e aquela pessoa que perde sua
capacidade de lutar pode entrar numa grande depressão. Lutar e brigar por um
sonho, um ideal, um desejo traz à tona o poder, a força, a presença, o impulso de
seguir em frente. Mas essa luta deve ser primeiramente interna, para que a
desesperança e o sentimento de incapacidade não aniquilem essa coragem, logo no
início.
É importante que a mulher volte a reconhecer seu valor. Se voltarmos na
história, poderemos encontrar agressividade, positividade e raciocínio independente
no ato de Eva, quando esta abriu mão do Paraíso e transgrediu as regras para
experimentar o fruto proibido.
Segundo Cavalcanti (1993), se buscarmos a verdadeira Eva, poderemos
encontrar seu papel transformador, e é através da consciência das diferenças e das
polaridades que é possível o verdadeiro encontro do masculino e do feminino e,
assim, se dá a criação. É através das diferenças que se pode perceber a si e ao
outro.
Portanto, quando Eva comeu a maçã, deixou o paraíso e a inconsciência,
dando espaço para a humanidade se desenvolver e as diferenças aparecerem.
Sendo assim, a mulher teve um papel muito importante desde o início da história
humana, mas que foi completamente desconsiderado para a manutenção do poder
patriarcal.
Do ponto de vista simbólico do desenvolvimento da criação da consciência,
essa ação foi de extrema importância, podendo ser considerado um marco. Muitos
mitos de criação envolvem atos de transgressão.
No século XX, algumas mulheres como: Indira Gandhi, Simone de Beauvoir,
Chiquinha Gonzaga e Leila Diniz também contrariaram as normas e trouxeram
contribuições importantes e maior abertura para a vida de outras mulheres.
Essas mulheres tornaram-se famosas por suas ousadias e coragem.
Desafiaram todo o sistema patriarcal que as proibia de cumprir seus destinos.
Deixaram marcas e exemplos na vida de tantas outras que apenas espiavam, com
medo de também seguir em frente. Foram pioneiras e desbravaram novos caminhos
para que muitas pudessem passar em seguida. Tiveram a força que a mulher deve
ter a cada dia para transformar sua vida e seu papel na sociedade.
Quanto maior o número de mulheres conscientes, mais o feminino terá
espaço para se desenvolver de forma verdadeira, com características que são do
próprio feminino. E, assim, a mulher poderá recuperar um lugar de importância que
lhe foi tirado, mas que é dela por merecimento, um lugar ao lado do homem, com
direitos e valores próprios.
Esse caminho é árduo, requer coragem, força, consciência, transgressão,
mas, principalmente, amorosidade, dedicação e compaixão consigo mesma. A
mulher deverá respeitar, acolher e se entregar para seu processo. Olhar para si
mesma com essas características já é um grande passo no caminho da
transformação.
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ARTE E TRANSCENDÊNCIA
Maria Helena R. Mandacarú Guerra1

A Índia possui dois grandes épicos: o Ramāyana e o Māhabhārata. O segundo é


mais conhecido devido à peça, que depois deu origem ao filme, de Peter Brook. É
também conhecida a passagem referente ao Bhagavad Gita, o livro sagrado do
Hinduismo. Pois bem, logo no início do Māhabhārata é contada a história do rei
Uparicara, que, pensando em sua mulher, ejacula. Por estar longe de seu palácio, e
desejar muito ter descendentes, envia seu esperma à rainha por intermédio de um
falcão. Só que este pássaro é interceptado no meio do caminho por um outro falcão,
com quem trava uma luta e o esperma acaba caindo num rio e fecundando um peixe.
Nasce daí Satyavati, uma mulher muito bonita, mas com um cheiro tão forte de peixe,
que os homens não conseguem se aproximar dela. Satyavati passa a ser a condutora
de uma balsa que fazia a ligação entre as duas margens de um rio. Um dia chega até
ela um homem chamado Parâçara, um bardo, eremita andarilho e artista. Ele não
apenas se casa com Satyavati, mas transforma o seu cheiro ruim de peixe em um
perfume delicioso e inebriante. Além disso, a ela seria restaurada a virgindade quando
desse à luz. O filho deste casal é Vyâsa, o poeta que conta a história do Māhabhārata.
Temos aqui alguns aspectos bastante interessantes para o tema que iremos
desenvolver. Esta história começa com o devaneio de Uparicara, que produziu o
esperma, e portanto, a fertilidade. Vemos, na imaginação, na fantasia, a manifestação
espontânea da Psique, um produto natural, que emerge graças à coordenação daquele
arquétipo que Jung denominou Self, e que Byington chama de Arquétipo Central. É a
partir deste centro organizador que somos impulsionados a realizar nosso potencial
como seres humanos ao estruturarmos e ampliarmos nossa Consciência através da
elaboração dos símbolos que chegam até nós.
A criação de Satyavati aponta para a união entre um rei (representante do poder
e da autoridade constituída, da civilização, da hierarquia, da ordem) e a Mãe Peixe
(representante da força instintiva da natureza, do irracional, das profundezas, da não

1
Psicóloga, psicoterapeuta junguiana. Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, professora
no curso Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Abordagem Corporal, no Instituto Sedes Sapientiae.
E-mail: mariahelenarmguerra@hotmail.com
civilidade – diz o I Ching, o milenar livro chinês, que os porcos e os peixes são os
animais mais difíceis de serem comandados). Neste par estão contidas inúmeras
polaridades: masculino-feminino, humano-animal, cultura-natureza. Satyavati, a mulher
com cheiro de peixe, é fruto desta junção. Simboliza a dificuldade de uma cultura que
prioriza a ordem, a organização, a lei, a hierarquia, isto é, patriarcal, aceitar elementos
provenientes do universo matriarcal (o apego, a natureza instintiva, sensual, concreta).
No entanto, este lado da natureza humana é tão importante quanto o outro; somos tão
racionais quanto irracionais, capazes de construir uma civilização, mas profundamente
atrelados às nossas necessidades básicas, físicas, fisiológicas. Não podemos
prescindir nem de um aspecto nem de outro. O que, então, é capaz de conjugar
mundos tão diversos? O símbolo é a célula psíquica capaz de unir opostos, de juntar o
que conhecemos com aquilo que ainda não sabemos, e por isso sempre traz o novo .
No caminho do desenvolvimento da Consciência, os símbolos são aliados
importantes. São eles os portadores da energia psíquica transformada em algo
acessível. O símbolo pode vir de uma imagem interna – um sonho ou uma inspiração,
por exemplo, ou de uma experiência corporal – ou através de uma pessoa, ou de um
fato. Na verdade, tudo o que chega até nós tem seu caráter simbólico, porque tudo é
mais do que parece ser. O símbolo é esse veículo extraordinário que nos conduz para
além da obviedade, apontando sempre para o que ainda desconhecemos. É por meio
dele, portanto, que estruturamos e desenvolvemos nossa Consciência, e por isso
Byington considera que os símbolos são sempre estruturantes. São os símbolos,
portanto, os elementos que nos conduzem rumo a uma ampliação dos nossos
horizontes, da nossa visão de mundo, desde que possamos elaborar seus significados
e integrá-los à nossa Consciência. E como eles se expressam na Cultura? Através da
Mitologia, dos Contos de Fadas, das Religiões, da História, da Alquimia, do Folclore
etc. E da Arte. Através da Arte o indivíduo abre espaços para que a Cultura vá se
transformando. Porque a Arte é símbolo vivo. É através do artista que muitos dos
paradigmas são ultrapassados: a Arte é transgressão, é criação, inovação, revolução.
Na nossa história, é o artista Paraçara quem transforma o mau cheiro em
perfume, quem faz com que o odor natural, forte e insuportável de Satyavati possa não
apenas ser tolerado, como transformado em função de sua aceitação. E aqui podemos
lembrar a estruturação das nossas defesas, como sendo muitas vezes fruto da
rejeição, do desamparo, da não acolhida, da não aceitação – tudo o que só faz piorar o
mau cheiro.
Enraizados na mesma matriz, a Psique, o que o sonho traz para o indivíduo, a
Arte traz para a Cultura. O sonho, afirma Jung, quase nunca dirá ao sonhador o que ele
já sabe. Por isso é tão difícil interpretar os próprios sonhos – tendemos a ver aquilo que
já sabemos. Também a Arte exige criatividade e renovação. Assisti a uma entrevista
com o arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer, na qual ele citava Flaubert, que dizia que a
Arte tem que surpreender. A Arte é a surpresa, o inesperado, o novo, o inusitado.
Mas, o que mais pode caracterizar a Arte? Rilke, em seu livro Cartas a um Jovem
Poeta, diz:

As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos
pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre
num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de
expressão do qualquer outra coisa são as obras de arte, – seres misteriosos cuja
vida perdura, ao lado da nossa, efêmera. (p. 21)

E mais adiante:

Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes


pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe
fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais
tranqüila de sua noite: “Sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma
resposta profunda. Se for afirmativa se puder contestar àquela pergunta severa por
um forte e simples “sou”, então construa sua vida de acordo com esta necessidade.
(pp. 22-23)

Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem versos,


não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. (...) Uma obra de arte
é boa quando nasceu por necessidade. (p.24)

Este é o chamado, a vocação, no sentido próprio do termo (vocare = chamar). É o


fazer pela necessidade, pela urgência do chamado. Assim como é o ato de brincar,
para a criança.
Jung (1922), por sua vez, nos diz que:

A obra (de arte) traz em si a sua própria forma; tudo aquilo que o autor
gostaria de acrescentar, será recusado; e tudo aquilo que ele não gostaria de
aceitar, lhe será imposto. Enquanto seu consciente está perplexo e vazio diante do
fenômeno, ele é inundado por uma torrente de pensamentos e imagens que jamais
pensou em criar e que sua própria vontade jamais quis trazer à tona. Mesmo contra
sua vontade tem que reconhecer que nisso tudo é sempre o seu Self que fala, que
é a sua natureza mais íntima que se revela por si mesma anunciando abertamente
aquilo que ele nunca teria coragem de falar. Ele apenas pode obedecer e seguir
esse impulso aparentemente estranho; sente que a sua obra é maior do que ele e
exerce um domínio tal que ele nada lhe pode impor. Ele não se identifica com a
realização criadora; ele tem Consciência de estar submetido à sua obra ou, pelo
menos, ao lado, como uma segunda pessoa que tivesse entrado na esfera de um
querer estranho. (par.110)

A Arte surge não do Ego, mas da natureza total. O artista se abre para o
inesperado, e quantas vezes não se surpreende com o que sai dele! Como a mãe que
gesta um filho, cabe ao verdadeiro artista dar passagem àquilo que agora emerge de
dentro dele, mas que reconhecerá não ser ele e que, sabe, só surge Deo concedente.
Por isso, diz von Franz (1990), a atividade criativa deve ser feita de forma
religiosa, no sentido de observação cuidadosa do numinoso. Um belo exemplo disso é
a história de “Seu” Gabriel, contada por Byington (1994) em seu artigo “A Missão de
Seu Gabriel e o Arquétipo do Chamado”, baseado, por sua vez, no livro da antropóloga
Amélia Zaluar sobre a vida e a obra de Gabriel dos Santos.
Seu Gabriel nasceu em 1892. Seu pai era um negro mestiço, escravo e feitor
de outros negros e sua mãe era filha de uma índia. Era o quarto filho, de uma família
de doze irmãos. Desde cedo, manifestou uma acentuada queda para as artes.
Cantava, fazia flores de papel crepom para vender, desenhava muito bem riscos para
tecidos bordados. Pintava em cartolina sereias e santos, de encomenda, dedicando
versos, de sua autoria, à pessoa que o contratava. Muito religioso, chegou a construir
uma capelinha dedicada a Santo Antônio, onde ele organizava festas nas datas
tradicionais da Igreja Católica. No altar, santos de barro, que ele mesmo esculpia e
pintava. Mas quando percebeu que a religião católica não o satisfazia plenamente,
passou para a Igreja Batista, à qual pertenceu até morrer. Nessa ocasião desfez-se dos
santos e derrubou a capelinha.
Desde pequeno, Gabriel intuiu que teria que viver sozinho, "fora da família",
para fazer, com tranqüilidade os "trabalhinhos" de que tanto gostava, para ter seu
espaço e liberdade de criar. Aos vinte anos, uma "revelação", um sonho lhe mostrou
que devia construir uma casa "só para si".
Começou a construí-la pouco a pouco, e levou quase dez anos para concluir a
obra. Dispunha de poucos recursos para comprar o material e trabalhava sozinho, em
seus momentos de folga. Semi-analfabeto e utilizando como recurso principal a
intuição, aprendeu sozinho a executar uma série de tarefas. Fez de tudo: foi pedreiro e
carpinteiro, arquiteto e construtor, operário e artista. Mas não construiu uma cozinha,
pois sentiu que naquela casa não se devia fazer refeições.
Depois de a casa terminada, um novo sonho lhe traz a idéia de enfeitá-la. Mas
como? Com quê? "Matutando" muito, resolveu embelezar seu rancho com o refugo das
construções locais, "restos de obras grandes da cidade", com objetos e materiais
quebrados encontrados no lixo, com coisas jogadas fora porque consideradas
imprestáveis para o uso. - "Pensei em fazer do nada."
Assim, não havia materiais "nobres" para Gabriel. Utilizava cacos, sobras,
restos. Via neles, nos materiais mais humildes, possibilidades que os outros não viam.
Tudo servia para compor sua casa/escultura, para dar vazão a uma prodigiosa
criatividade. O "imprestável", o "lixo", o "inútil", transformavam-se, através de seus
olhos visionários, em matéria preciosa para a produção de beleza não percebida pelas
pessoas comuns. Surge a Casa da Flor.
Em seu discurso, percebe-se que acreditava criar guiado por inspiração divina,
associando sua capacidade inventiva com a força e a criatividade de um espírito
superior: - "Eu mesmo fazendo, eu mesmo me espantando, isso pode ser só de mim?...
Isso não é da gente, não. É o espírito de Deus que concede!"
Gabriel nunca se casou, nem teve filhos. Sempre morou sozinho na Casa da
Flor. Dizia mesmo que não conseguia dormir com a presença de outra pessoa em sua
casa, mesmo que fosse uma criança. Isso o perturbava muito. Teve como companhia,
durante muitos anos, alguns cachorros, dentre eles, Diamante. Quando este morreu,
anotou seu pesar em um caderno e construiu para ele um túmulo. Fez o mesmo para
uma galinha, à qual havia se afeiçoado.
Seu Gabriel foi gradativamente perdendo a visão, e, no final, via somente
sombras. Mas isso lhe bastava para que continuasse trabalhando no embelezamento
do seu lar, o que fez até os 92 anos, quando faleceu sem deixar sua casa. Cinco dias
antes de sua morte, pediu ao sobrinho Wilson para zelar por sua casa, para ser "sua
pessoa", justificando: - "Isto é um enredo, uma história"...
Segundo Byington,

O Arquétipo do Missionário se constelou na personalidade de Seu


Gabriel dentro do dinamismo de alteridade. A casa como Outro fascinou o Ego
para uma vivência dialética e criativa, que o atraiu em função de um todo
incomensurável vivenciado por Seu Gabriel como a vontade de Deus, a ele
revelada paulatinamente durante o desenvolvimento da obra. A imaginação e o
sonho interligaram o Eu, o Outro e o Todo através de uma vivência afetiva e
intuitiva de origem racionalmente inexplicável e revelada por símbolos. A
construção da casa tornou-se, assim, uma ocupação criativa inerente a uma
vocação existencial inseparável do significado da vida. É a vivência da arte
subordinada à totalidade. (1994, p.118)

Outro exemplo da ligação entre a arte e a religiosidade foi presenciado por mim
ao assistir a uma apresentação de uma bailarina indiana. A Índia possui
tradicionalmente uma cultura na qual a sacralidade não ficou tão separada das
atividades seculares, ou melhor, nesse país, muitas das atividades permanecem, ainda
com uma certa freqüência, inseparáveis de seu caráter sagrado. Assim, antes de
determinadas atividades cotidianas, alguns ritos são realizados. Isso ocorre também
antes de uma performance de música clássica, ou uma apresentação teatral. Na
apresentação à qual me refiro, a dançarina, ao iniciar o espetáculo, havia feito um rito
de entrada – uma homenagem a um deus, possivelmente Ganesha, considerado o
patrono das Artes e, não por acaso, aquele que abre caminhos; ou então, a Shiva
Nataraja, o deus que criou o mundo dançando [segundo uma dançarina, “qualquer
Deus pode estar lá: Nataraja, Ganesha. (...) Para uma estudante cristã, tínhamos um
Nataraja e um Jesus no palco.” (Gaston, p.163)]. Ao final da apresentação, foi muito
aplaudida e a platéia pediu bis. Ela então, de modo absolutamente natural, pediu
desculpas de antemão, dizendo que ela já havia feito o rito de saída (evidentemente
não usou esta terminologia), e que, portanto, quem iria se apresentar agora seria
somente ela, e por isso a dança não seria mais a mesma coisa. Isto revela a enorme
diferença que existe entre a Arte como expressão de algo maior, expressão da
totalidade, e a expressão puramente egóica. Não sei se nós, da platéia, teríamos
sintonia e sensibilidade suficientes para perceber isso, mas, para ela, era algo que
fazia toda a diferença. A esse respeito, comenta Indira Rajan, dançarina de uma família
tradicional de dançarinas: “Porque os componentes da dança são baseados em Deus,
o palco deve ser como um templo” (idem, ibidem).
Em seu livro O Sagrado, Rudolf Otto estuda a experiência religiosa buscando
esclarecer seu caráter específico e sua fenomenologia. Procura descrever o “Deus
vivo”, e não uma idéia ou noção abstrata de Deus, mas sua vivência. Encontra, então,
o sentimento de pavor diante do sagrado, do mysterium a um só tempo tremendum e
fascinans, que exala uma superioridade esmagadora de poder e no qual se expande a
plenitude do Ser. Essas experiências foram chamadas por Otto de numinosas
(numen=deus), porque são provocadas pela revelação de um poder divino.

O mundo numinoso caracteriza-se como qualquer coisa de ganz andere


(totalmente outro) de radical e totalmente diferente; em relação ao ganz andere, o
homem tem o sentimento de profunda nulidade, o sentimento de não ser mais do
que uma criatura. (Eliade, p.24)

Voltemos aqui ao Mahabharata, mais especificamente aos ensinamentos do Gita,


que propõe que as ações não visem seus frutos, e que sejam movidas pelo sentido
profundo contido nelas mesmas. Esta é a ação que expressa a conexão consciente
com o centro, com o Arquétipo Central, com o Todo, e por isso, basta a si mesma. A
plenitude se revela àquele que cria porque, ao criar, ele obedece ao chamado para que
realize sua natureza profunda. Ao acolhê-lo, o ser humano exercita e é tomado por sua
capacidade imaginativa; através dele, o mundo é criado e, ao criar, o ser humano é.
Por isso, o ato de criar basta a si mesmo e não busca finalidade outra que ele próprio,
pois seu sentido lhe é inerente.
Essa concepção aproxima-se da idéia indiana da criação através do lilā, o jogo
divino que acontece num estado de arrebatamento muito semelhante ao do artista
imerso no processo criativo. Os deuses são tão plenos e completos que sua atividade
só pode ser vista como livre dos domínios da lei de causa e efeito, e para além da
natureza pragmática e utilitária que governa os seres humanos. Ao contrário, sua ação
volta-se para o reino da liberdade. Sob esta perspectiva, a liberdade criativa é um ato
divino.
Podemos, assim, pensar no ato criativo como a vivência de uma hierofania, termo
proposto por Eliade e que significa a manifestação do sagrado.
De acordo com von Franz (1990),

A arte como fenômeno psíquico primordial cumpre uma tarefa religiosa e


representa um aspecto do “levar cuidadosamente em conta as forças
transcendentais” que correspondem aos cantos, preces e rituais dos sacerdotes.
Dar forma aos espíritos é tarefa “sagrada” e as obras devem ser formadas em
atenção a si mesmas (ao espírito), e não de acordo com o gosto ou a disposição de
ânimo do artista. (p. 246)
Em termos psicológicos, podemos dizer que o sagrado é tudo aquilo que nos faz
ultrapassar a literalidade, abrindo nosso horizonte para o ganz andere, para o mais
além. Em outras palavras, a transcendência nos é dada pela dimensão simbólica.
Lembremos que a transcendência é aqui compreendida como a percepção da relação
entre o Ego e algo que ele vivencia como maior que ele. Por isso nos diz Eliade (1956)
que, para aqueles que têm uma experiência religiosa (para nós, uma vida simbólica),
toda a Natureza é susceptível de revelar-se como sacralidade cósmica (p. 26). O
homem religioso (o homo simbolicus) se esforça por permanecer o maior tempo
possível ligado a um universo sagrado (ou seja, à totalidade). No ato de criar, o artista
busca aquele momento mágico, sagrado, no qual a obra lhe diz que está completa.
Ainda de acordo com Eliade, o espaço sagrado é uma ruptura dentro do espaço
profano. Este temenos é a terra consagrada, a nossa pátria, a nossa casa, o templo, o
espaço analítico, mas também o palco, a tela, o papel que receberá um poema, o chão
onde a criação do arquiteto tomará forma. No recinto sagrado, é possível a
comunicação com os deuses. Quanto ao tempo, Eliade também considera o tempo
sagrado aquele que se abre para a eternidade, para a permanência. O tempo sagrado
é o tempo dos mitos, da essência, da Arte, que se sobrepõe à vida. “Para além da vida
está a morte; para além da Arte, a eternidade”, disse o poeta.
A ligação profunda entre a Arte e transcendência faz com que muitas vezes elas
se unam e se mesclem a tal ponto que se tornam indistintas. Alguns exemplos são as
pinturas realizadas nos corpos de povos tribais em momentos importantes; ainda hoje,
em cerimônias de casamento, muitas indianas pintam as mãos e os pés; as danças
sagradas, realizadas inclusive em templos, como é o caso das devadasis, as
dançarinas hindus “dedicadas a um marido divino que nunca morre”, que em rituais
festivos dançam o drama para recriar a história divina. Temos também poemas
místicos, como A Noite Escura da Alma, de San Juan de la Cruz, e o Gitagovinda, de
Jayadeva; músicas e cânticos sagrados, entoados em templos; a arte sacra, espalhada
pelo Ocidente e Oriente; a arquitetura, expressando ela própria a sacralidade do
espaço, e tantas outras manifestações. Quero ressaltar, entretanto, aquela arte cuja
expressão é inseparável do sagrado: a Mandala.
As mandalas são círculos sagrados, formas concêntricas criadas
tradicionalmente com a finalidade de “colocar um fim no sofrimento, um desejo
intenso de buscar a iluminação em prol dos outros e uma visão correta da
realidade” (Dalai Lama, in Brauen, 1992). Fundamentalmente, são secretas. São
representações pictóricas utilizadas, por exemplo, no Budismo Tibetano para
expressar as verdades religiosas mais profundas. São aspectos do Absoluto, mas
não ele próprio em todo seu esplendor e bem-aventurança. O objetivo de cada
visualização é descobrir e realizar a divindade radiante. Assim, essas
representações são auxílios para a meditação, para buscar e encontrar um
centro, onde, tradicional e universalmente, considera-se o lugar da divindade
(Brauen, 1992).
As mandalas podem ser pintadas, mas também desenhadas e dançadas, como é
feito em muitas tradições, com as danças circulares. Para Jung,

desde tempos imemoriais, o círculo e o centro têm sido considerados símbolos do


divino, ilustrando a unidade do deus encarnado: o único ponto no centro e muitos na
circunferência. (1950, par. 327)

É importante lembrarmos também que a criatividade do artista está inserida tanto


no Self Cultural como no processo de desenvolvimento de sua personalidade, pois
indivíduo e cultura são polaridades inseparáveis. Alguns artistas, inclusive, escancaram
seu processo pessoal para a Cultura, expondo em sua Arte vivências extremamente
íntimas, mas que, ao se fundirem às experiências profundamente humanas,
transcendem a individualidade e mostram seu caráter universal. Penso que a obra de
Frida Kahlo exemplifica isto de uma maneira extraordinariamente exuberante.
A criatividade do Self não se restringe à criatividade pela Arte, embora ela possa
estar presente de forma explícita, sobretudo quando o caminho da realização do Ser, o
Processo de Individuação, passa pela sensibilidade artística e pela necessidade de a
pessoa elaborar essas vivências na dimensão estética.
Byington (1996) afirma que a dimensão onírica, por exemplo, tem tudo a ver com
a dimensão da poesia. Diz ele:

Sua expressão em imagens metafóricas capazes de evocar as mais variadas


emoções e nuances da sensibilidade da alma sem a obrigação de se explicar coisa
alguma tornam os sonhos a poesia noturna do Self. (p. 135)

Abrir-se para a vida simbólica é abrir-se para o mistério. E a vida é um grande


mistério. Quanto mais importante for a experiência, mais misteriosa ela será. Experiências
fundamentais, como o amor, a morte, a transcendência, são vivências profundas e
impossíveis de serem circunscritas pela nossa razão. Necessitamos, assim, uma
linguagem metafórica para tentar expressar de modo mais completo o que vivemos. Nesse
contexto, a Arte é fundamental. Sua linguagem simbólica, metafórica, seja ela poética,
dramática, através da expressão corporal, da música, das cores e das formas, estende-se
sobre todas as culturas, mantendo nossa identidade ao mesmo tempo em que é
profundamente transgressora.
Ao não precisar explicar coisa alguma, a Arte é inseparável da liberdade. A Arte
não pode ser presa, nem restrita, limitada ou confinada pelo que quer que seja. A Arte,
assim como os sonhos, é livre e libertária. Como nossos sonhos apontam o caminho da
criatividade profunda, a liberdade intrínseca à Arte faz dos artistas seres precursores
de mudanças culturais.
Citando Fernando Pessoa, toda arte é uma confissão de que a vida não basta.
Referências Bibliográficas

Brauen, Martin (1992). The Mandala – Sacred Circle in Tibetan Buddhism. London:
Serindia Publications, 1992.

Byington, Carlos A. B. “A Missão de Seu Gabriel e o Arquétipo do Chamado”.


Junguiana, Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, no.12, 1994, pp.
110-133.

___________ (1996). Pedagogia Simbólica. Edição revisada e atualizada: A


Construção Amorosa do Saber. São Paulo: W11 Editores, 2004.

Carrière, Jean-Claude. Māhabhārata (Guia do espectador para o filme de Peter Brook).


Tradução: Carlos Alberto da Fonseca, USP, 1992.

Eliade, Mircea. (1956). O Sagrado e o Profano – A Essência das Religiões. Lisboa: Ed.
Livros do Brasil, s/d.

Gaston, Anne-Marie “Dance and the Hindu Woman – Bharatanatyam Re-ritualized”, in


Leslie, Julia, ed. Role and Rituals for Hindu Women. Cambury: Assoc. UP, 1991.

Jung, Carl Gustav (1922). Relação da Psicologia Analítica com a Obra de Arte Poética.
CW15. Petrópolis: Ed.Vozes, 1987, par. 110.

___________ (1950). Concerning Mandala Symbolism. CW9 Part I. London: Routledge


& Kegan Paul, 1959.

Kinsley, David (1979). The Divine Player – A Study of Krishna Lilā. Delhi: Motilal
Banarsidass, 1979.

Rilke, Rainer Maria (1953). Cartas a um Jovem Poeta. Porto Alegre: Editora Globo,
1983.

von Franz, Marie-Louise (1990). Psicoterapia. São Paulo: Paulus, 1999.


A FÉ EM IEMANJÁ DO PONTO DE VISTA PSICOLÓGICO
O Resgate dos Valores Femininos na Religiosidade Brasileira1

Estela Noronha2

Introdução

Meu interesse em pesquisa sobre Iemanjá começou com as minhas idas à praia
durante o Reveillon. O primeiro fato que chamou a minha atenção foi o número de
pessoas que de alguma forma, reverenciavam a Rainha do Mar. Tinha ciência da
impossibilidade de que todas aquelas pessoas, presentes na praia, pertencerem às
religiões afro-brasileiras. Sabia também, antes mesmo de aprofundar-me no assunto
que, apesar de o Brasil ser um país muito sincrético e haver uma tolerância religiosa
maior do que em muitos países, este é um país católico. A grande pergunta que ficou,
a partir destas observações foi: o que estaria levando todos aqueles indivíduos, mesmo
não sendo umbandistas ou candomblecistas ou de qualquer outra religião de raiz
africana, a cultuarem Iemanjá.
Revolvi investigar com mais profundidade o que observara naquele momento e a
pensar com mais acuidade em qual seria o objeto das inquietações em mim
despertado.
O objetivo deste trabalho foi demonstrar as causas sócio-antropológicas e
psicológicas que levam os indivíduos não pertencentes às religiões afro-brasileiras a
cultuarem Iemanjá.

Quem é Iemanjá?

Iemanjá é o orixá dos Ebás, na África, uma nação iorubá que, a princípio, estava
estabelecida na região entre Ifé e Ibadan, onde existia ainda o rio Yemonjá. Devido às
constantes guerras entre nações, os Ebás, no início do século XIX, imigraram para o

1
Este artigo é uma síntese do quarto capítulo da dissertação de mestrado em Ciência da Religião, da
PUC-SP, intitulado Tenha fé, tenha confiança, Iemanjá é uma esperança, de autoria de Estela
NORONHA.
2
Formada em letras e psicologia. Especialização em Psicoterapia Junguiana Coligada a Técnicas
Corporais pelo Instituto Sedes Sapientiae e Terapia de Casal e Família pela SBPA (em andamento).
Mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP. E-mail: estelapsico@terra.com.br
oeste, mais precisamente para Abeokutá e demais povoações ao longo do rio Ogum,
que passou a ser sua nova morada.
Segundo Unterste, ela é filha da união de Obatalá, o céu, e Odudua, a terra, do
qual nasceram o Aganju, o firmamento, e Iemanjá, as águas. Os pais de Iemanjá
representam o uroboros original, símbolo da totalidade globalizante do inconsciente.
Portanto, ela é considerada uma das mães primordiais, presentes em muitos mitos que
falam da criação do mundo, como senhora das grandes águas, doces na África ou
salgadas, como no Brasil e em Cuba. Divindade muito antiga, deusa das águas
primevas que são, conforme explicou Mircea Eliade, matrizes de todas as
possibilidades da existência. Mãe dos orixás e dos homens é a senhora das origens,
mãe de todas as potencialidades. Iemanjá também é considerada aquela que governa
as cabeças humanas. É dela a responsabilidade de trazer a consciência, o equilíbrio
emocional e a personalidade aos humanos.
Ao ser trazida para o Brasil durante o período da escravidão Iemanjá é relida e
re-interpretada na diáspora. Aqui se tornou um importante símbolo religioso e o mais
importante orixá feminino. Além de ser amplamente cultuada, é também sincretizada,
principalmente, com as Nossas Senhoras Aparecida e Conceição. Hoje em dia, a
admiração por Iemanjá ultrapassa os limites dos centros e terreiros e ganha
admiradores por todo o Brasil. Dentre aqueles que não pertencem às religiões afro-
brasileiras, apontado pela pesquisa, 93,33% professaram ser católico. Entrevistados
estes, de devoção popular e que projetam em Iemanjá a figura de “quase” uma Santa,
colocando-a, paulatinamente, dentro do panteão dos Santos Católicos.
Mas, por que Iemanjá estaria ganhando tamanha projeção entre aqueles que
não pertencem às religiões afro-brasileiras? Do ponto de vista psicológico, a pesquisa
de campo apontou três horizontes.

 A importância da retomada dos valores femininos e da fé coligada e


respaldada pelos sentimentos, suprimidos pela religiosidade patriarcal.

 Iemanjá com exemplo importante de anima positiva para o homem.

 Iemanjá como exemplo de feminino forte e atualizado para as mulheres.


O feminino anímico e o seu papel na religião

Na pós-modernidade, a vivência simbólica do desenvolvimento da consciência


passa necessariamente pelo resgate do princípio feminino nas religiões. Símbolos e
imagens simbólicas femininas estão cada vez mais presentes no imaginário religioso.
Como sabemos, o símbolo é por excelência um mecanismo transformador de energia,
sempre associado a algum tipo de emoção. Por exemplo, um fiel ao projetar um
conteúdo de sua psique sobre a “sua” Santa, ele está, através deste mecanismo
projetivo, canalizando energia para um novo dinamismo: força e estímulo para sobrepor
um obstáculo ou assimilar um novo valor. Um símbolo religioso novo, que possa surgir
na consciência humana, possui o papel de intermediar a vivência dos mistérios,
possibilitando a ligação e a integração de conteúdos inconscientes. Pelo mito de
origem, o indivíduo necessita “re-ligar-se” à sua matriz e re-significar a sua existência.
Por meio da vivência simbólica, o homem pode expandir a sua consciência e dar
continuidade à sua evolução (Ramos, 2000).
Nos dias atuais, percebemos que os modelos religiosos mais tradicionais
passam por rápidas transformações, impulsionados pela força de novas expressões
arquetípicas. Assim, a figura da Grande Mãe, reprimida por séculos durante o
patriarcado, reaparece nos cultos à Virgem Maria e a outras figuras religiosas
femininas, como Iemanjá, nos movimentos ecológicos. Hoje, observamos que a
revalorização de símbolos matriarcais na cultura ocidental aponta em direção a uma
nova consciência, que chamamos de alteridade, em que a relação Eu-Outro passa a
ocupar o seu centro. Observamos que quando uma nova manifestação arquetípica
emerge seu simbolismo geralmente entra em conflito com os objetos ou as idéias já
estabelecidas, que lutam para manter sua supremacia. Isso porque o processo de
transformação simbólica fornece um instrumental imprescindível para a compreensão
da evolução das imagens divinas e da consciência individual e coletiva (idem, ibidem).
Não podemos aprofundar a abordagem da experiência do inconsciente, nem a
conexão do mesmo com a religião, sem nos familiarizarmos com a feminilidade interior
(Hillman, 1984) esta portadora, entre outras coisas, do cultivo do Eros, do
aperfeiçoamento do amor e da relação de sentimento com o mundo interior. Função
esta, importante para a religiosidade atual, que através de suas figuras femininas e da
revalorização dos seus aspectos anímicos, oxigena uma fé enfraquecida e
desmistificada pela ciência racionalista e pelos valores exclusivamente masculinos. A
alma dos indivíduos, nesta era vindoura, necessita de acalento e novos
direcionamentos. Lembremos que as palavras que significam alma (psique e anima)
são femininas na conotação e na origem. Portanto, o que necessitamos é um Eros
entronizado ao lado do Logos, para possamos voltar a esperar um mundo em equilíbrio
e uma religião que nos ajude a nos conectar com nossas imagens interiores, que, por
sua vez, nos faz conectar com Deus, que para cada indivíduo tem uma forma e um
sentido particular.
Mas, como este processo ocorre para os homens e para as mulheres?

Iemanjá para a psique masculina

A Anima, como aspecto da Grande Mãe, possui o caráter de transformação para


Neumann e mutacional para Iwashita. Por sua vez, deriva da matriz do Grande
Feminino. A Anima, com características dinâmicas, provocantes e de movimento, vai se
contrapor à tendência conservadora do caráter elementar da Grande Mãe. Para um
menino, a mãe ou a mulher responsável pela sua criação é normalmente a primeira
portadora da figura de Anima, que tem a função de intermediar os conteúdos psíquicos
entre o Ego e o Self. Caso isso não seja possível e o EU sucumbir ao naufrágio e
retornar ao mar do inconsciente, psicologicamente não é a Anima a diretamente
responsável, “mas a Grande Mãe, que exerce sua dominância sobre ela. Com efeito,
atrás de Iemanjá, como Sereia do Mar, está sempre a Grande Mãe Iemanjá, com a
qual se encontra fundida” (Iwashita, 1991).
Os arquétipos da Grande Mãe e da Anima são duas realidades que estão
intimamente ligadas, e diferenciá-las nem sempre é uma tarefa fácil. Portanto,
determinar o aspecto em Iemanjá que pertença à dimensão maternal ou à dimensão da
figura da Anima, também não é tão fácil. No Brasil, o lado Anima deste orixá sofreu
influências de certos traços de sua filha Oxum, deusa do amor sensual, erótico e da
sedução, que deu a esta deusa de âmbito nacional, característica típicas da Anima,
que é o seu poder de atração ou de sedução. Salientamos, porém, que também
Iemanjá possuía essas qualidades antes, pois é natural que as qualidades da filha já se
encontrem, em certa medida, na mãe e apesar de serem ambas figuras diferentes, com
concepção do materno diferente, mãe e filha são mulheres vaidosas, cada uma à sua
maneira. A respeito do aspecto vaidoso e sedutor de Iemanjá, Iwashita descreve:

Um dos indícios da manifestação de Iemanjá como uma figura de Anima


está no fato de que os seus presentes preferidos são pentes, espelhos, perfumes,
sabonetes, fitas, cortes de tecidos e outros presentes agradáveis à mulher bonita
e vaidosa (...) Outro símbolo ou objeto que exprime a dimensão sensual e erótica
de Iemanjá, é o leque ou o abanador (...) objeto atrás do qual pode se esconder,
e aparecer sempre de novo para trocar olhares de amor. (...) Mas, é o espelho
que permite, antes de tudo, penetrar ou perceber a dimensão da Anima de
Iemanjá (...). O espelho é pois atributo da Anima (...) uma espécie de espelho
para o homem, refletindo seus pensamentos, desejos e emoções. A Anima como
espelho representa papel importante para o homem, enquanto configuração
interiorizada ou mulher real, ajudando-o a tomar consciência de fatos, dos quais
não é consciente. Mas, pode acontecer que esta função Anima, em vez de
conduzir o homem a maior consciência ou a melhor conhecimento de si mesmo,
não faça mais que devolver uma imagem lisonjeira e conduzi-lo algumas vezes
também a se apiedar do seu destino. Estas duas ações da Anima aumentam o
seu poder, o que não deixa de ser perigoso. (1991, p.312)

Apesar de Iemanjá trazer em si os aspectos positivos e negativos da Anima,


Iwashita afirma que o caráter mutacional positivo dela não prepondera nem no mito,
nem nos contos e nem nos ritos. Apóia-se no fato de que nos contos brasileiros sobre a
Deusa do Mar domina preponderantemente o aspecto negativo da sereia,
diferentemente do que acontece no mito original africano, onde o aspecto negativo é
pouco claro, pois há a predominância do aspecto maternal positivo de Iemanjá.
Discorre o autor, exemplificando, que a Iemanjá Sereia comporta em si as
mesmas características das Ninfas e Sereias, retratadas, por exemplo, na mitologia
grega. Ou seja, uma Anima ainda não diferenciada, pela sua forma física como sendo
metade humana, metade animal, caracterizando um feminino ainda semi-humano e
pouco consciente, que pode trazer à personalidade masculina traços vingativos,
rancorosos e ressentidos. Ao mesmo tempo em que o seu caráter imprevisível,
travesso e até maldoso representaria o outro lado de sua fascinante beleza e sedução,
traduzindo o outro aspecto da Anima. Assim, a Iemanjá Sereia, semi-humana, primitiva
e fatal, que se manifesta na psique brasileira, é aquela que psicologicamente é incapaz
de transmitir ao consciente a mensagem libertadora do Si-mesmo. Segundo Iwashita,
não é sabido, no Brasil, que Iemanjá exerce tal função e, portanto, o aspecto negativo
de Iemanjá, como Anima, parece preponderar sobre o positivo (ibid, pp. 314 e 316)
Clodovis Boff, baseado-se no livro de Iwashista, também acredita que Iemanjá é
uma representante sombria do feminino, ao afirmar:

Uma Iemanjá “marianizada” constituiria uma grandeza moral mais


elevada. A figura de Maria obrigaria Iemanjá a mudar e a evoluir, tanto do
ponto de vista analítico-psicológico, quando religioso. A luz de Maria
penetra nas sombras de Iemanjá. Esta perde em grande parte o seu caráter
mítico e cultural de mulher sensual e fascinante, para tornar-se, em contato
com Maria, ‘a grande purificadora das paixões terrestres’. Portanto, o ícone
de Maria exerce sobre o de Iemanjá um efeito de fermentação ética e
espiritual (1995, p.63).

Afirmações como estas podem incentivar pré-conceitos e vieses de


interpretação, quanto ao motivo que levam as pessoas a serem devotos de Iemanjá.
Mesmo porque, Iemanjá não necessita ser “purificada”, mas compreendida como ela é,
com valores próprios, advindos de suas raízes africanas e amalgamados com os
valores culturais deste país. Acreditamos que ela é um novo símbolo religioso e,
portanto, numinoso, que comporta em si valores anímicos “negligenciados” pela cultura
e religião patriarcal. É justamente este “algo novo” que a Rainha do Mar representa que
a torna “quase” uma Santa para os católicos que nela acreditam.
A pesquisa de campo, ao contrário das afirmações acima, aponta que tanto o
arquétipo da Grande Mãe, quanto o de Anima, em Iemanjá, têm seus aspectos
positivos preponderados substancialmente sobre os aspectos negativos destes
arquétipos. Palavras e expressões como: poderosa/com poder/forte/força,
Santa/Rainha/Deusa/Senhora dos Mares, protetora, espírito de luz, bonita/muito
bonita/linda/muito bela, sereia, mulher, angelical, uma delícia de pessoa e jovem,
parecem amplamente nas respostas masculinas, entre tantas outras.
Diante dos dados coletados, salvo melhor juízo, não é possível nos dias atuais,
da pós-modernidade, interpretar os aspectos anímicos representados por Iemanjá
como sendo preponderantemente negativos. Iemanjá, lembrada por aqueles que a
cultuam como a rainha, a deusa, a santa e ainda como sereia do mar traz, na verdade,
uma característica marcante da ambivalência do arquétipo da Anima. Tanto a Anima
positiva quanto a negativa igualmente impelem o homem ao empenho, à mudança e ao
desenvolvimento. Pois, a Anima negativa, apesar de todo o perigo que se encerra em
torno dela, devido à sua capacidade de contaminar a consciência masculina, pode
proporciona ao homem a chance de dar uma reviravolta neste aspecto, tornando-o
positivo. Quando isso acontece, a Anima torna-se capaz de enfrentar o lado
aprisionador da Grande Mãe e sua presença na psique ganha ares criativos, além de
inspirar e impulsionar o homem para as mais altas experiências místicas, espirituais e
de cunho integrativo para o caminho de sua alma (Iwashita, 1991, p.238).
Lembremos que são justamente as polaridades que mantêm o dinamismo e o
movimento do interior do arquétipo e que costumam manifestar-se em sonhos e nas
projeções gerais. São através delas e de suas ricas imagens que se desvenda a vida
interior de um homem, o relacionamento que ele tem consigo mesmo e com tudo aquilo
que está além dele.
Hillman, em seu livro Uma Busca Interior em Psicologia e Religião, descreve
pelo menos dez tipos de imagens conhecidas do feminino anímico, cada uma delas
representando um aspecto da Anima. No entanto, para o nosso entendimento neste
contexto, destacamos a décima descrição, que é perfeitamente adequada ao objeto de
nossa discussão:

Outra figura que surge com bastante freqüência, é a moça jovem e atraente,
às vezes nua, quase sempre dançando ou nadando, quer dizer, associada a
elementos como cor, música, corpo e água. O cabelo é um traço marcante (...)
Ela pode utilizar-se de provocação agressiva ou simplesmente exercer um
fascínio tranqüilo. Porém, consegue mobilizar a libido e sua aparição sempre se
constitui um apelo. Essa moça conhece os segredos do jogo e traz vínculos
pagãos ou ateus como outras religiões ou sistemas morais. (...) Ela pode estar
associada a animais, ou a sua figura ser meio animal. Quase sempre essa figura
tem um pai interessante (...). Ela se associa com a vida de animais e com a água,
ou seja, com os instintos, com o fluxo das emoções, de tudo que é líquido, com
ritmos, com a natureza e o próprio prazer físico. Seu fascínio e atração
irresistíveis indicam a importância desse elemento para a nossa plenitude física,
pois do mesmo modo que ser perseguido em sonho significa que se anda a fugir
de algo, ser atraído também significa que esse aspecto da psique necessita mais
atenção. (Hillman, 1984, pp. 107-108)

Esta imagem acima revelada é o que Jung denomina como sendo a figura típica
de Anima, perfeitamente compatível com a descrição de Iemanjá, filha do Deus Obatalá
(o céu), segundo Unterste; ou filha de Olokum (o oceano), segundo Verger e a grande
maioria dos autores. A Deusa do Mar encerra todos os valores acima revelados, já que
ao mesmo tempo ela pode ser uma perigosa e bela feiticeira jovem, uma sereia 3 que
vive nas águas cintilantes e profundas do oceano e que com seus encantos sedutores
e hipnóticos arrastam as suas vítimas para o fundo do mar, como também ela é aquela
que porta na mão um espelho, que auxilia o homem a ver a entrar em contato com a
sua sombra e com a sua própria alma, ou seja, com o seu interior. Neste sentido, o
aparecimento da sereia Iemanjá das águas profundas representaria a emersão de um
conteúdo do inconsciente à superfície, que poderia ser integrada à consciência, ou
seja, ao ego.
O pai importante, que aparece por trás dessa figura de Anima exemplificada por
Hillman, nos revela que o homem que a “escutar” pode chegar à sua própria condição
masculina. Em outras palavras:

O caminho para o masculino mais amplo, forte e firme se dá através da


associação íntima com nossa feminilidade interior. Ninguém pode se esquivar a
essa confrontação evitando a Anima, pois isso apenas a tornará mais
desordenada, sedutora e exigente. (Hillman, 1984, p.108).

Sem nos esquecermos do princípio da água como símbolo que caracteriza a


essência dos arquétipos da Grande Mãe e da Anima, também temos, respectivamente,
o vaso, símbolo do receptáculo do corpo feminino, e a lua, onde, analogamente, as
fases lunares são associadas as do ciclo feminino. A Iemanjá sereia e sedutora está
associada à lua, que é reconhecida como símbolo de transformação e de mutação,
assim como a mulher, que tudo transforma e que promove a renovação e o
renascimento (Iwashita, 1991).
Embora concordemos com Iwashita, que o EU (ego) não deva se deixar levar
nem pelo recalque, nem pela fascinação dos conteúdos fantásticos do inconsciente, e
que deva haver um empenho moral para diferenciação entre o conteúdo projetado e a
realidade da pessoa, no caso da projeção da Anima, da mulher sobre a qual a projeção
está se realizando não podemos considerar este aspecto sedutor de Iemanjá como
sendo apenas negativo. Hillman (1984) afirma que quando o inconsciente é
negligenciado, o mundo interior se vale da sedução para captar a atenção do ego e os
movimentos atraentes da sedutora captam a energia sexual do homem.
Segundo Neumann (2000), há toda uma ideologia do patriarcado que
fundamentalmente concebe o Feminino como “Feminino negativo”, o que significa que

3
Sereias e ninfas são consideradas como figuras de Anima, seres místicos e muito populares. São
temas de numerosos contos, lendas e canções folclóricas de todo mundo.
o inconsciente, o instinto, o sexo e a terra – enquanto “coisas deste mundo” pertencem
ao “feminino negativo”. Esta atitude defensiva de desvalorização, no entanto, deve ser
entendida como uma tentativa de superação do medo do Feminino e de seu aspecto
perigoso, como a Grande Mãe e como a Anima, inclusive, do caráter transformador
desta última. Para o masculino “superior”, ela se torna a feiticeira, a sedutora, a sereia,
a bruxa e é rejeitada em virtude do medo associado ao Feminino irracional.

Este mesmo tipo pode negar e cindir a mulher “terrena” a fim de ser
estimulado por figuras de femme inspiratrice. Em ambos os casos, a ideologia
patriarcal está baseada em se manter a anima inconsciente, e em um conflito no
qual o Feminino e a mulher são experienciados não como uma unidade, mas
como dois pólos opostos. Desta maneira, a mulher e o Feminino aparecem quer
como uma força negativa, que puxa para baixo, como mulher-pântano, ou duende
da água, quer como uma força positiva, que ergue, como anjo ou deusa.
(Neumann, 2000, p.253)

Iemanjá, reverenciada pelos indivíduos masculinos sujeitos de nossa pesquisa,


representa um símbolo religioso cultural contemporâneo amalgamado pelos valores
culturais deste país, além de ser um símbolo religioso que expressa “verdades
eternas”, ainda em uso nas várias religiões. É também uma représentation collective de
nossa sociedade, que sofreu várias transformações e alguns processos de
aprimoramento mais ou menos conscientes, tornando-se, assim, imagens coletivas
aceitas pelas sociedades ditas civilizadas. Portanto, podemos concluir que Iemanjá,
como imagem da anima sedutora, é necessária para a vivência simbólica masculina,
pois o ajuda com “a mulher no seu interior”, transmitindo-lhe as mensagens vitais do
Self. (von Franz, 1985).
Lembremos que a idéia central contida na palavra símbolo é a união de algo
conhecido com algo que vem de fora, do estrangeiro, algo que é desconhecido e
inconsciente. Entretanto, o símbolo sempre nos reporta a uma realidade além daquela
expressa na imagem e nem sempre há um consenso quanto à sua compreensão. Não
há uma explicação no plano lógico sobre o que leva um fenômeno ou um objeto a se
tornar símbolo, mas sabemos que há, neste caso, a presença de uma emoção que nos
torna sensíveis a ele. Como fenômeno pulsante, vivo e cheio de significado, o símbolo
sempre aparece associado a algum tipo de emoção; lembrando aqui que e-moção
significa um movimento para fora, para o exterior. Valle afirma:
A psicologia terapêutica, aproximando-se da antropologia cultural, começou a
entender que os rituais, as imagens e os mitos, vigorosamente plastificados em
símbolos e narrativas, pertencem à substância do viver e do sofrer humano.
Podemos tentar escondê-los, mutilá-los e desvalorizá-los, mas não nos é possível
alijá-los de todo da nossa vida mental e cultural. Quando tentamos expulsá-los,
eles tendem a retornar com exigências frenéticas, como o evidenciam tantos
movimentos e misticismos contemporâneos.

(...) Os símbolos respondem à necessidade de desvelar as mais secretas e


profundas experiências do ser humano (1998, p.116).

Por isso, entendemos que a Iemanjá erotizada não é apenas uma representante
da Anima Negativa, que impede a caminhada do homem rumo ao processo de
individuação, mas é, sobretudo, um meio condutor importante para a realização de tal
meta, porque resgata valores do feminino muito pouco analisados ao longo da história
cristã, como o corpo, a sexualidade, a intuição e o sentimento. Iemanjá, como guia para
o mundo interior, tem a função positiva de fazer o homem levar a sério os sentimentos,
os humores, as expectativas e as fantasias enviadas por sua Anima. E somente a
decisão essencialmente simples, mas difícil, de levar a sério os nossos sentimentos e
fantasias pode, neste estágio, evitar a estagnação do processo de individuação
masculina. (von Franz, 1985).

Iemanjá para a psique feminina

Este é um fenômeno que deve analisado apuradamente para não se cair nos
vieses e nas polarizações relativamente comuns quando tratamos de sincretizações
religiosas e culturais. O Brasil é um país eminentemente católico e os católicos que
aqui vivem, assim como aqueles que participaram de nossa pesquisa gozam de maior
liberdade e praticam um catolicismo muito peculiar, que abraça sem grandes
problemas de consciência todas as formas de religião. Trata-se que um catolicismo
popular que acolhe, com maior liberdade, toda forma de religião, principalmente as
experiências afro-brasileiras que convivem conjuntamente ou paralelamente desde a
época da escravidão. Em nossa sociedade moderna e pluralista, o sincretismo mostrou
ser um processo livre, espontâneo e orgânico, no qual as instituições religiosas não
possuem, como gostariam, o controle social dos respectivos símbolos e dogmas (Boff,
1995).
Dentro desta religiosidade popular, alguns símbolos começam a se constelar,
reproduzindo a necessidade psíquica de encontrar novas conexões religiosas, que
perderam sua força ao longo do tempo.
Se o homem necessita entrar em contanto com sua Anima de maneira mais
positiva, objetivando trabalhar sua personalidade de uma forma mais coesa e
integrada, o amadurecimento psicológico da mulher passa pelo mesmo processo,
evidentemente, dentro daquilo que é pertinente ao universo feminino.4
Segundo Neumann (2000), o medo da mulher como o seu próprio Feminino está
na fase de transição entre o período Matriarcal para o Patriarcal. Diferentemente do
que ocorre com o homem, a mulher está mais próxima do arquétipo da mãe, tornando
a separação com a fase matriarcal mais difícil. A mulher corre o risco de uma fixação
primal, o que não é considerada uma fixação patogênica, mas que dificulta,
sobremaneira, a progressão rumo ao patriarcado. Este matriarcado aprisionador é
chamado de bruxa maternal. É necessário derrotá-la para que ocorra a identificação
parcial da mulher com o seu lado masculino, o “Animus”, que deve ser desenvolvido.
Portanto, é papel difícil, mas essencial da mulher em nossa cultura, o
desenvolvimento dos seus aspectos masculinos e patriarcais, sem, contudo, desistir do
seu ser feminino. Inequivocamente é atribuído valor negativo ao Feminino no
patriarcado, deixando a mulher insegura quanto à própria feminilidade. A mãe negativa,
ou o maternal bruxa, aparece, então, para a filha mulher como uma bruxa patriarcal
que supervaloriza o Masculino e o filho, mas subvaloriza o Feminino e a filha,
colocando em risco o desenvolvimento desta mulher. Segundo Neumann:

Nesta situação, a mulher muitas vezes não vê outra escolha a não ser
livrar-se de sua feminilidade e transformar-se em um ser quase masculino. O
perigo é especialmente grande quando, como na cultura patriarcal ocidental,
está ausente a figura do Feminino arquetípico como divindade e encarnação do
Self feminino. (2000, p.259)

Não temos essa ausência absoluta da divindade feminina na Igreja Católica; ao


contrário, o catolicismo está impregnado por cultos marianos. Muito menos nas
religiões afro-brasileiras, nas quais a presença do feminino é bastante significativa.
Mas, o que é preciso ser revisto é como o feminino é inserido no contexto da
religiosidade, principalmente dentro do catolicismo e de que forma a divindade feminina
é legitimada.
Se por um lado a Assunção de Maria mudou o papel do feminino dentro do
catolicismo, elevando-a a uma categoria de Rainha do Céu e Mediatrix, e colocando a
relação matéria e espírito em diálogo novamente, por outro lado é questionável a sua
função no que se refere à integração psíquica. Pois, a totalidade do feminino está na
confrontação e assimilação das polaridades negativas e positivas das dimensões
elementar e mutacional. Para cumprir tal função, seria necessário que Maria possuísse
os aspectos sombrios ou negativos do arquétipo do feminino, mas a ela foi delegada
apenas a mãe bondosa, providente e consoladora.
O feminino foi dissociado e o lado ctônico da feminilidade, a emocionalidade
extática, a sexualidade feminina e até o aspecto destrutivo da Grande Mãe foram
rejeitados e recalcados pela cultura cristã. Somente a boa mãe virginal encontrou
acolhida no pensamento cristão. (Iwashita, 1991) Esta é uma crítica de Jung à
unilateralidade da imagem feminina na Igreja Católica, onde o terrestre, o escuro, a
insondabilidade do corpo humano com seus instintos e paixões e as matérias são
delegadas às pecadoras mulheres reais ou transferidas para a figura de Eva,
considerada também um arquétipo da “mãe de todos os viventes” e um dos aspectos
do grande Arquétipo Feminino.
Quando isso acontece a mulher concreta não tem a possibilidade de viver o
arquétipo, como deveria, em sua plenitude e nas suas polaridades positivas e
negativas, porque...

Historicamente, enquanto os aspectos negativos de Eva foram projetados


sobre as mulheres reais, as boas qualidades de Maria, por sua vez, lhes foram
propostas como modelo, de modo que a virgindade de Maria, por exemplo,
concluiu-se falsamente a desvalorização da sexualidade, a da mulher em
particular, e a valorização unilateral do estado de vida virginal. O equívoco
psicológico desse desenvolvimento consiste em que as mulheres, como seres
histórico-transitórios, deviam viver o eterno arquétipo da virginal Grande-Mãe. O
desenvolvimento psíquico feminino ficou, por isso, numa longa inconsciência
acompanhado de reduzido desenvolvimento do Eu. O fato de as mulheres da
Igreja católica se terem submetido por séculos aos modelos “Eva” e “Maria” pode
ter relação com a sua fraca formação do Eu. (Iwashita, 19991, p.295)

4
No nosso caso, abordaremos especificamente a sombra do feminino, apenas através da concepção
religiosa.
Tal modelo levou o ego da mulher moderna a experienciar um medo profundo do
Feminino como medo dela própria e como medo da incompreensível numinosidade da
natureza feminina, o que dificulta que o arquétipo seja confrontado e integrado em sua
totalidade ambivalente durante o seu processo de individuação.

Ninguém pode rejeitar essas coisas numinosas por motivo puramente


racionais. São partes importantes de nossa estrutura mental e não podem ser
erradicadas sem uma grande perda, pois participam como fatores vitais na
construção da sociedade humana, e isto desde tempos imemoriais. Quando são
reprimidas ou desprezadas, sua energia específica desaparece no inconsciente,
com conseqüências imprevisíveis. A energia aparentemente perdida revive e
intensifica o que sempre está por cima no inconsciente, isto é, tendências que até
então não tiveram oportunidade de manifestar-se ou não puderam ter uma
existência desinibida na consciência, constituindo assim uma sombra sempre
destrutiva. Mesmo as tendências que poderiam exercer uma influência altamente
benéfica transformam-se em verdadeiros demônios quando são reprimidas. (Jung,
2000, pp. 253-254)

O aspecto luminoso de Maria, plena de graça e glorificada, um ideal a ser


alcançado, acaba distanciando-a, em parte, da mulher real, que se sente muito aquém
de cumprir o papel ou a expectativa a ele condicionado, como um ideal a ser
alcançado.
Eis o papel importante de Iemanjá neste contexto. Como mãe-natureza, mais
próxima dos valores terrenos, mito vivo e atual, cabe-lhe o papel de ajudar suas “filhas”
a integrar os aspectos negligenciados pela Igreja Católica e que receberam uma
conotação negativa ao serem simplesmente sublimados. Ora, sobre Iemanjá pode ser
projetado não só o aspecto mãe, mas também a mulher sensual, que carrega aspectos
de sensualidade e de amor erótico, além da mulher guerreira, forte e poderosa. O culto
a Iemanjá ajuda a evitar o recalque ou o esquecimento do pólo excluído do arquétipo,
impedindo-o de cair nos redutos do inconsciente, onde passa a agir negativamente,
pois o recalcado volta na forma de hostilidade contra a mulher e a sexualidade.
Nossa pesquisa aponta que Iemanjá é inspiração e modelo para que a mulher
moderna não delegue ao inconsciente valores que lhe são importantes para a
integração psíquica. Ela aparece como exemplo de um feminino forte, atualizado e
acolhedor. Palavras e expressões como: santa/rainha do mar, Deusa, acolhimento,
bondade e proteção, mas também, mulher guerreira e batalhadora, com força e poder,
mulher realizadora e altiva ou ainda, figura ,tranqüila, doce, bonita e feminina,
aparecem amplamente nas questões abertas.
Isso nos aponta que, o culto a Iemanjá pode permitir que a mulher concreta
vivencie de forma positiva aquilo que lhe foi incutido como sendo negativo, portanto,
algo a ser sublimado. Para que alcancemos o aspecto Sofia do arquétipo do Feminino,
para nos tornarmos a velha sábia, é necessário a experiência da plenitude de vida. Se
Iemanjá, além de incorporar o arquétipo da Grande Mãe em sua polaridade incorpora
também o aspecto Eva e Helena do Feminino anímico, podemos supor que ela
representa igualmente os dois pólos que todo arquétipo tem que possuir. Dizer que
Iemanjá, em seu aspecto Anima, carrega só a polaridade negativa, além de se redutivo,
nega a possibilidade de existência de uma outra polaridade do arquétipo, tantas vezes
aqui relatadas, como importante e imprescindível quando falamos desse conceito.
A pesquisa de campo reforça o aspecto de que Iemanjá é importante por
comportar justamente tais projeções, ocupando um lugar que estava vazio e sem
representante no panteão das santas católicas.
E por que Iemanjá estaria ocupando esse lugar? Zacharias nos aponta um dos
motivos, ao escrever...

... não podemos apresentar Iemanjá como o elemento polar negativo da


grande mãe, em que a Virgem Maria se configura como o positivo.
Iemanjá não pode ser a expressão sombria da grande mãe, pois sendo
um Orixá, sintetiza em sua natureza as duas polaridades, luminosa e
sombria. A Virgem Maria não pode, do ponto de vista teológico,
apresentar esta síntese, pois o atributo de summum bonum atribuído a
Deus é extensivo a ela, não sendo possível aparecer em sua simbologia
elementos sombrios. (1998, p.191)

Esta afirmação de Zacharias encontra respaldo nos resultados das perguntas


abertas coletados na pesquisa de campo, nos quais há uma projeção dos devotos ou
admiradores da figura de Iemanjá, que vai além do seu aspecto materno. Na verdade,
elementos de sua sexualidade, beleza, erotismo e de poder realizador ativo se
destacam, pois, Iemanjá, além de santa, é mulher guerreira. Estes aspectos estão
presentes no imaginário de seus fiéis, mesmo que sua imagem externa esteja em
mutação. A Imagem desta Deusa do Mar é multifacetada e falar de sua sincretização
com as santas marianas do catolicismo, justapondo apenas o seu lado materno
acolhedor e protetor, reflexo do aspecto positivo do arquétipo da Grande Mãe, e por
isso mesmo inatingível, seria, salvo melhor juízo, um pensamento redutivo. O que
Iemanjá traz e simboliza de novo para este panteão de santas é justamente os
aspectos negados, reprimidos pela moral cristã, e que compõem o outro lado deste
arquétipo, mas que estão mais do que nunca presentes no inconsciente do homem e
da mulher pós-modernos. Lembremos que os símbolos não são criações
irresponsáveis e gratuitas da psique, com bem o demonstra Jung (Valle, 1998). Na
verdade, eles respondem à necessidade de desvendar as mais secretas e profundas
experiências e necessidades do ser humano. Iemanjá possibilita este resgate da
necessidade e da natureza humana, pois, conforme tão claramente descreve:

a períodos e situações de repressão sucedem-se, de costume, fases em


que as erupções do simbólico parecem querer provar ao homem a existência e
pujança de um mundo mais profundo, inconsciente, mas densamente humano,
logo, portador de sentido. (Valle, 1998, p.116)

Muito provavelmente, é esta “nova informação“ que a imagem de Iemanjá


permite aos seus fiéis e seus admiradores projetar e que faz dela um orixá tão popular,
quase santificado.
É interessante notar que, mesmo dentro do processo de sincretização que vem
sofrendo, algumas características de Iemanjá são preservadas. Segundo Ricardo
Freitas, estudioso das tradições religiosas africanas iorubás, ele acredita na
possibilidade de a Rainha do Mar se tornar para os católicos uma santa, e acrescenta:

Uma santa nova...Isto porque sua representação vai mudando...tem-se


esta representação dada pela escultura de uma mulher insinuante e sedutora,
ou pela imagem de santa, como disse. Sua representação certamente foi se
transformando ao longo dos tempos. Hoje ela possui uma imagem em que é
“meio-santa”, “meio-insinuante”,... foi se embranquecendo através da relação
com as representações de Nossa Senhora. Sua imagem foi se mesclando, seu
formato modificando,...sua posição,...sua postura... Vê-se Iemanjá em cima das
águas, com uma coroa de característica européia, não contendo búzios ou
contas na frente, como ocorre com a coroa iorubá, de nome ade. (...) Iemanjá
perdeu. Perde seu ade, ao passo que ganhou um coroa. De suas mãos saem
pérolas, mãos que estão em posição de benção, tal qual as presentes nas
imagens de santos (...) chegando até mesmo a ser coberta por mantos (...)
Porém, foi lançado recentemente na industria estatuária, através de uma fábrica,
que chama Casas Bahia, uma nova representação de Iemanjá. Reformulada há
pouco. Interessante de se saber é que a antiga estátua era mais gordinha, não
deixando, no entanto, de ser insinuante, com sua roupa colada ao corpo. Agora
ela continua com esta mesma roupa, mas seu corpo mudou. Fez uma “lipo” e
está perfeita se relacionada ao modelo de mulher da atualidade. Sem mantos e
com mais cintura. (24/11/04) (O grifo é meu)
Tais argumentos, aliados aos resultados apurados pela nossa pesquisa,
apontam que Iemanjá habita o imaginário tanto do homem quanto da mulher por outros
motivos, além de ser apenas o objeto de fé, que reside na mística da virgindade, da
imaculabilidade ou da pureza intocada. Iemanjá traz em si características de um Orixá,
mesmo sendo sincretizada com as Nossas Senhoras do catolicismo popular. O que
muda, neste contexto, é que ela não se torna Imaculada Iemanjá, mas a bem vivida e
bem amada Iemanjá, Senhora dos Mares, a “quase” santa para os católicos de
devoção popular. Lembremos que a Rainha do mar é uma divindade, mas também
uma mulher. Iemanjá é antes de tudo uma divindade feminina iorubá e, com tal,
segundo os mitos desta tradição, viveu intensamente, teve maridos, teve vários
amantes, teve filhos e cometeu incesto. Tudo aquilo que representa o ser humano,
detendo além, e não aquém de tudo isso, um caráter transcendente.
Iemanjá é luz, é caminho, é iluminação interior. Evidentemente que os aspectos
não elaborados do arquétipo não desaparecem, mas um contrapeso com os aspectos,
agora reconhecidamente positivos, vêm se estabelecer com uma polaridade plena de
dinamismo e de fonte de inspiração. Tudo parece indicar que estamos assistindo ao
surgimento de um dos aspectos dos arquétipos mais decisivos do inconsciente coletivo
da humanidade, o arquétipo da Anima em suas múltiplas manifestações e na sua
realização quaternária. E no caso de Iemanjá não é apenas negativo, ao contrário, traz
luz a aspectos positivos, sombriamente negados do feminino e relegado à
marginalidade. Neste momento, o feminino arquetípico é experienciado não como uma
ilusão, antes como realidade inimaginável e como vida na qual o acima e o abaixo, o
espiritual e o físico não estão competindo um com o outro (Neumann, 2000). Porque,
para que haja um caminho para a individuação, são necessárias a integração e a
reconciliação mútuas, condição fundamental é que o arquétipo seja vivido na sua
totalidade, o que leva à confrontação com a sombra, ou seja, com os aspectos negados
e não assimilados, cuja expressão convivem, nos tempos pós-modernos, no culto a
Iemanjá.
Não estamos esquecendo, entretanto, que Iemanjá, ao lado de outras santas,
também é conhecida como uma Grande Mãe, que acolhe, protege, proporciona
milagres e intervém a favor de seus “filhos”. Este, no nosso entender, é um dos motivos
que está fazendo com que ela seja incorporada no panteão dos santos católicos.
Porém, não é o único motivo. O segundo e mais importante, de acordo com as
constatações dos dados colhidos em nova pesquisa, seja através dos questionários,
dos depoimentos e da entrevista com o Sacerdote Ricardo Freiras, está justamente no
”algo novo” ou inovador que ela traz para este lugar. Iemanjá é Santa, é mãe, mas é
também mulher. Mãe e mulher forte, poderosa e bonita, que ajuda seus filhos e
devotos a re-encontrarem a sua religiosidade e a conexão com seu Self, dentro dos
padrões, desta vez, da era da pós-modernidade.

Concluindo...

Se não existiu, anteriormente, na história do mito de Iemanjá, heróis que


pudessem vencer as artimanhas da Grande Mãe devoradora, na era da pós-
modernidade, onde conceitos e valores estão sendo re-significados, há espaços para
que esses heróis e essas heroínas lutem e não morram nos braços mortais da Deusa
Iemanjá. A recompensa de suas vitórias está no poder de usufruir um outro patamar do
Grande Feminino, que é o arquétipo da Anima na sua concepção mais completa e
integrativa. Whitmont, em seu livro O Retorno da Deusa, chama a atenção para a
reemergência dos “valores do ego” feminino e propõe que a tradição heróica, baseada
em pressão, vontade, razão, honra e o mito da objetividade, seja substituída pela
tradição da Deusa, que valoriza a interioridade, o sentimento, a aceitação, o paradoxo,
a incerteza e o viver o momento. Além de trazer à consciência um novo estilo do
Feminino, que é ao mesmo tempo poderoso e alimentador, ativo e receptivo,
relacionado e autônomo, Whitmont insiste em reverenciar as diferenças arquetípicas
entre o Masculino e o Feminino, defendendo a liberação do Feminino, que é diferente e
muito maior do que simplesmente a liberação das mulheres. Ou seja, o Feminino posto
ao lado do Masculino trará uma outra harmonia e equilíbrio tanto para os homens,
quanto para as mulheres e, portanto, para a sociedade em geral (Whitmont, 1991, apud
Reis).
Campbell, em seus livros O Poder do Mito e Herói de Mil Faces, esclarece que
os mitos são eternos e se repetem nas civilizações desde os tempos primordiais das
civilizações humanas. No entanto, a roupagem que estes mitos recebem é
caracterizada pelas épocas que são vividos, revestidos de potenciais espirituais da vida
humana, com aquilo que somos capazes de conhecer, re-conhecer e experimentar
interiormente (Campbell, 1990, p.6). O mito atual de Iemanjá, contemporâneo,
amalgamado pelos valores culturais deste país, além de ser um símbolo religioso que
expressa “verdades eternas”, é, também, fruto de aprimoramentos e transformações da
sociedade atual.
Portanto, Iemanjá e seu culto não são simplesmente assimilados por Maria ou
por Nossa Senhora da Conceição Aparecida. A Rainha do Mar, a mãe mais próxima
dos valores humanos, o mito vivo e presente na cultura, tem valores próprios e
importantes a serem incorporados, absorvidos e fundidos no panteão católico. Ela não
é uma Iemanjá “marianizada” apenas, ela é uma Iemanjá bem vivida, santificada e
consagrada por aqueles que nela acreditam porque a Soberana do Mar agrega novos
símbolos religiosos importantes e numinosos na busca do caminho e da meta para a
individuação.
Iemanjá, como figura de Anima positiva, pode canalizar e transformar esta
energia reprimida em energia criativa, desta vez, integrada à consciência do ego e a
serviço da totalidade psíquica do Self. Pois, “a totalidade inata, mas escondida da
psique, não é a mesma coisa que uma totalidade plenamente realizada e vivida” (von
Franz, 1985, p.162). É importante salientar que nem tudo que é delegado à sombra é
negativo, mas potenciais positivos humanos não reconhecidos pela consciência ou pela
coletividade também se encontram neste lugar, esperando serem resgatados, a bem
do processo de individuação dos seres humanos.
Isto posto, se a meta humana, do ponto de vista psicológico, é estar sempre na
busca da individuação em seu mais alto grau de evolução, mesmo que em nossa
constante perseguição a esta meta nos leve a este contato, é com a Anima “mais
terrena”, mais próxima dos valores mundanos, que teremos que lidar no nosso
cotidiano e em primeiro lugar. Mesmo porque, a individuação ou a totalidade psíquica
são metas, idéias que não existem para serem atingidas, mas para serem perseguidas.
A individuação, portanto, é um processo, uma constante construção durante o caminho
a ser percorrido ao longo de nossa vida.
A retomada psicológica da simbologia e da vivência religiosa nos dias atuais
está nos obrigando a retornar e retomar os valores projetados na figura de Iemanjá.
Vivenciá-los de maneira correta e positiva, como uma parte importante a ser integrada
dentro de nós nos ajuda a entronizar o Eros ao lado do Logos, na busca de uma nova
religiosidade, enriquecida, desta vez, também com os valores do feminino. O resgate
do sentimento, na sua mais ampla e aplicável contextualização, inclusive religiosa,
pode ser a chave que procuramos para abrir as portas do novo milênio.

Referência Bibliográfica

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VETOR, 1998.
A DEPENDÊNCIA QUÍMICA NA PERSPECTIVA DA
PSICOLOGIA ANALÍTICA

Carlos Artur Aguena1

Apresentação

Hélio, pouco antes de completar 23 anos, retorna pela segunda vez a uma
comunidade terapêutica que trata de dependentes químicos em um bairro da zona leste da
cidade de São Paulo. Desde os 15 anos usa maconha e aos 20 anos começou a traficar e
consumir crack e cocaína. Filho de pais muito jovens, que não o assumiram como filho, foi
criado pela avó materna e mais tarde pelo tio, irmão de sua mãe. Pertence a uma família
abastada do interior do estado de São Paulo e vive sua infância e adolescência ganhando
brinquedos caros, motos e roupas de moda. É muito mimado pela sua avó, que procura
compensá-lo da ausência de seus pais. Relata que está sempre insatisfeito, sente um
vazio que não sabe explicar e busca muito o afeto das pessoas. Apresenta-se sempre
muito sorridente para conquistar a simpatia de todos, mas no fundo sente-se triste e
carente. Fica muito contrariado em várias situações nas quais demonstra disponibilidade
em ajudar alguém, porque só o faz na expectativa de receber algo em troca, o que nem
sempre acontece. Conheceu uma garota evangélica e se apaixonou por ela, tiveram um
filho que hoje tem 5 anos. Hélio se envolve com traficantes em sua cidade, desenvolve
uma compulsividade por drogas e vende objetos valiosos seus e de seus familiares para
manter seu consumo. Chega a um ponto tão insuportável para todos próximos a ele que
acaba sendo internado. Permanece quatro meses em uma comunidade que trata
dependentes químicos e retorna para a casa de seu tio, onde se mantém em abstinência
por quase 2 anos. Tem, no entanto, muita dificuldade em se adaptar às normas rígidas da
família de seu tio, que é evangélica, e acaba voltando ao uso de drogas. Ele pede para
retornar à comunidade terapêutica para ficar, no máximo, durante um mês. Seus
familiares, porém, não o aceitam mais de volta e ele permanece lá mais oito meses.
Durante suas duas internações eu o atendi em psicoterapia e sua história será
aqui descrita e aprofundada, buscando-se conceitos da Psicologia Analítica para uma
melhor compreensão do sentido de sua doença e de seu sofrimento. Hélio, como milhares

1
Psicólogo Clínico com especialização em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Abordagem
Corporal, pelo Instituto Sedes Sapientiae. E-mail: aguenaca@yahoo.com.br
de dependentes químicos, é execrado pela sociedade e pelos próprios familiares, que
acabam expostos a situações de risco e com sérios prejuízos financeiros e morais.
Ele e todos aqueles que têm histórias semelhantes, no entanto, representam um
importante aspecto sombrio da nossa sociedade. Carl Gustav Jung denomina Sombra tudo
o que é negado e não reconhecido pela consciência e pede para ser compreendido e
novamente integrado à totalidade à qual pertence. É a nossa inveja não admitida do
colega de trabalho que recebeu uma promoção e que, inconsciente e sutilmente,
sabotamos. São os mendigos nas calçadas que nos lembram que participamos de uma
sociedade que não oferece oportunidades iguais para todos. São os dependentes
químicos que nos alertam sobre nossa extrema racionalidade, que empobreceu nossas
vidas e destituiu de nosso cotidiano a experiência mítica e o contato com o sagrado.

A dependência química

A dependência química, de acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de


Transtornos, o DSM IV, resumidamente, é um padrão de uso disfuncional de uma
substância, levando a um comprometimento ou desconforto clinicamente significativo,
manifestado por pelo menos três dos seguintes sintomas, ocorridos em um período de 12
meses: aumento da tolerância ao uso de drogas, abstinência, uso maior do que o
intencionado, desejo persistente ou falta de controle do uso, muito tempo dispendido para
a obtenção e o consumo da droga, abandono de atividades importantes para usar a droga
ou manutenção do uso apesar dos prejuízos físicos ou psicológicos.
Hélio se enquadra em todos esses sintomas.
A dependência química hoje é tida como um dos problemas de saúde pública
mais graves em todo o mundo, que acarreta o afastamento do trabalho de uma população
jovem e mobiliza instituições para ações em pesquisas médicas e projetos sociais de
tratamento e prevenção. Além disso, ela está diretamente ligada a um aumento dos
índices de criminalidade e do tráfico de drogas.
O Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas (CEBRID), em parceria com a
Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), realizou o I Levantamento Domiciliar sobre o uso
de drogas psicotrópicas no Brasil e descobriu que 19,4 % da população brasileira entre 12
e 65 anos já consumiu algum tipo de droga ilícita e 3,3 % são dependentes químicos.
A rede pública de saúde no Brasil oferece hoje, para o atendimento de
dependentes químicos, hospitais psiquiátricos, unidades comunitárias de álcool e drogas,
unidades ambulatoriais especializadas, moradias assistidas, albergues comuns e
hospitais-dia. Além disso, há os grupos de narcóticos anônimos, de iniciativa e
manutenção da própria comunidade, baseados no modelo dos doze passos, originalmente
criado pelos alcoólicos anônimos e as comunidades terapêuticas particulares.
Os resultados de tratamento de dependentes químicos são bastante
desanimadores. O índice de abandono do tratamento na rede pública é de mais da metade
na primeira consulta e mais de um terço após as duas consultas seguintes.
As estatísticas no Brasil e no mundo indicam um aumento de usuários e
dependentes de drogas.
Há referências aos efeitos da mescalina na obra de Jung no capítulo sobre
esquizofrenia seu livro A Psicogênese das Doenças Mentais (1907), onde ele identifica
semelhanças entre esse distúrbio e o uso da substância. Em 1954 ele responde a um
padre católico sobre o que ele achava do uso de drogas:

As influências (da mescalina) são de fato singulares – vide Aldous


Huxley! – e deles conheço muitíssimo pouco. Não sei qual o valor psicoterápico
nos pacientes neuróticos ou psicóticos. Sei apenas não haver razão alguma em
querer conhecer mais sobre o inconsciente coletivo do que se consegue através
dos sonhos e da intuição. ( in Jaffé, 1995, p. 73-74)

Psicologia Analítica e Alquimia

Jung recebeu de seu amigo Richard Wilhelm, em 1928, um livro por ele traduzido
do chinês chamado o Segredo da Flor de Ouro, um tratado alquímico milenar e também
um texto taoísta. Neste livro Jung descobre finalmente os pressupostos conceituais que
iriam fundamentar o que vinha pesquisando desde 1913 sobre o inconsciente coletivo. Ele
encontra as raízes históricas de seu trabalho no tratado de alquimia chinesa, que se
caracteriza fundamentalmente por uma natureza pragmática e anímica, bastante distinto
da intelectualidade e racionalidade ocidental.
A alquimia, de acordo com o Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier (1991) é:

A arte da transmutação dos metais com vistas à obtenção do ouro.


Entretanto, produzir ouro metálico para o gozo próprio, ou até mesmo, como na
China, ouro potável para, consumindo-o, atingir a longevidade corporal, nada
disso é na verdade o objetivo da alquimia. Ele não é de fato em nenhum grau uma
pré-química, mas uma operação simbólica. (...) A alquimia simboliza a própria
evolução do homem, de um estado que predomina a matéria para um estado
espiritual: transformar o ouro em metais é equivalente a transformar o homem em
puro de espírito. (p. 37)
E Jung (1929, 1938) assim explica seu conceito de inconsciente coletivo:

Assim como a anatomia do corpo humano é a mesma, apesar das


diferenças raciais, assim também a psique possui um substrato comum, que
ultrapassa todas as diferenças de cultura e de consciência. A este substrato dei o
nome de inconsciente coletivo. A psique inconsciente, que é comum a toda a
humanidade, não consiste apenas de conteúdos aptos a se tornarem conscientes,
mas predisposições latentes a reações idênticas. O inconsciente coletivo é mera
expressão psíquica da identidade da estrutura cerebral, independentemente das
diferenças raciais. Este fato explica a analogia e às vezes a identidade dos temas
mitológicos e dos símbolos, sem falar na compreensão humana em geral. As
diversas linhas do desenvolvimento anímico partem de uma base comum, cujas
raízes mergulham num passado muito distante. Encontramos aqui também o
paralelismo anímico com os animais.” (1988, p. 28)

As ações da consciência se desenvolvem, dessa forma, a partir desse substrato


inconsciente compartilhado por todos e ele é o ponto de partida para o desenvolvimento
humano em direção ao ouro alquímico. Em civilizações em que a coletividade predomina
sobre a individualidade, a condição de se estar mergulhado nesta inconsciência não causa
grandes problemas. Em algumas sociedades tribais, por exemplo, existem alguns
curandeiros ou xamãs que sonham algo que com freqüência será compreendido como
dizendo respeito à vida de todos daquela comunidade. Trata-se do estado que Jung
chama de participação mística, termo criado por Lévy-Bruhl e que designa uma
proximidade muito grande entre sujeito e objeto (Jung, idem, p. 58).
No Ocidente, no entanto, observou-se o desenvolvimento de uma maior
diferenciação entre esses pólos (sujeito e objeto). As vivências primordiais do
inconsciente, dessa forma, têm uma tendência, no Ocidente, a serem sobrepujadas pelo
plano consciente. Junto às vivências primordiais é banido também o conteúdo simbólico e
mítico do inconsciente, tornando o cotidiano do homem contemporâneo ocidental uma
experiência destituída de tudo aquilo que pertence ao universo dos deuses e do sagrado.
Corre-se o risco de a energia ficar desequilibradamente polarizada e, de acordo
com o pensamento chinês, emerge então uma força reivindicatória naquele pólo que foi
colocado em uma condição secundária, na tentativa de se resgatar o equilíbrio. São os
conteúdos inconscientes expulsos da vida cotidiana manifestos nos crescentes índices de
depressão, síndromes do pânico e dependências químicas. Em seus comentários ao
tratado chinês, Jung diz que os deuses tornaram-se doenças (idem, p. 50).
Para recuperar o equilíbrio e a integridade, a polaridade YIN, desvalorizada,
símbolo da emoção e do feminino lutará pelo seu lugar de direito perante a polaridade
YANG, da racionalidade, da luz e do masculino. Este equilíbrio e integridade é um
paradoxo de difícil compreensão: a união de opostos excludentes entre si, mas que são
simultaneamente verdadeiros. Nesse momento, quando o indivíduo consegue estabelecer
uma síntese de suas polaridades antagônicas, ele não é mais só onipotência, luz e razão,
nem tampouco apenas inconsciência, impotência, e emoção. Ele não se identifica mais
nem com o YIN nem com o YANG, mas constitui um terceiro ponto que para os chineses é
o “corpo diamantino do corpo alento incorruptível”, que nasce da flor de ouro e que Jung
denominou de Self. Segundo ele, “Os opostos sempre se equilibram na mesma balança,
sinal de alta cultura” (idem, p. 27). É a condição em que se conquista uma diferenciação e
autonomia frente à participação mística, ao mesmo tempo em que se abre mão da
unilateralidade radical, que julga que um pólo é melhor que outro.
O monge e conferencista Anselm Grün afirma que esta também foi uma questão
central para a filosofia grega, a contraposição da unidade e da fragmentação. Em alguns
momentos de nossas vidas sentimo-nos confiantes e seguros, plenos de gratidão. Em
outros momentos rapidamente mudamos nosso estado de espírito e sentimos uma
insegurança profunda e somos invadidos pelo medo da doença e da morte. São duas
experiências díspares que não estabelece uma ligação entre si. Segundo o autor:

Na filosofia grega coloca-se a seguinte questão: simplesmente nos


desmanchamos em diversas partes desligadas umas das outras, somos feitos de
diversas partes que estão lado a lado, como peças de uma máquina, ou existe em
nós uma unidade interna? A filosofia entendeu que a alma é que integra tudo. (2004,
p. 17)

Jung afirma que isso acontece fundamentalmente na segunda metade da vida,


após a metanóia, a crise em torno dos 40 anos, quando questionamos a validade e
importância de tudo que realizamos e conquistamos até então. A grande maioria dos
dependentes químicos, no entanto, iniciam sua drogadicção na primeira metade da vida e
estão astronomicamente distantes do opus alquímico.

A dependência química em uma perspectiva da Psicologia Analítica

Há duas perspectivas importantes da dependência química na abordagem da


psicologia analítica. A primeira trata do desejo da perpetuação de uma condição original da
vivência do arquétipo da Grande Mãe, em que todas as necessidades físicas e emocionais
são integralmente atendidas. O seio da mãe, permanentemente presente, traz o
suprimento paradisíaco de tudo que o indivíduo necessita e deseja, é a situação fusionada
e indiferenciada entre mãe e bebê. A droga, dessa forma, reproduz esse estado, ou seja,
uma felicidade total em que são banidas a falta e a frustração e em que são
perigosamente necessárias doses cada vez maiores para a sua manutenção. É a busca
infrutífera e desastrosa pela perpetuação da participação mística.
Essa etapa do desenvolvimento é, regra geral, mal concluída na história dos
dependentes químicos.
Hélio busca desesperadamente viver uma experiência de afeto, proteção e
acolhimento no seu seio familiar, experiência esta que na realidade viveu muito pouco.
Seus pais se separaram quando ele ainda era um bebê, casara-se novamente com outros
parceiros com os quais ele não tem bom relacionamento. É bastante estigmatizado por
sua condição de dependente químico. Sente-se, já adulto, como uma criança carente e
abandonada e quando usa drogas sente-se forte e poderoso, conquistou o respeito em
sua comunidade pela malandragem e pelo status de traficante, que tem muito dinheiro
para bancar baladas e boas roupas, carros e motocicletas. Na intimidade de seus
sentimentos, no entanto, ele chora pela ausência do amor de seus pais verdadeiros. A
droga é para ele, portanto um importante recurso de manutenção de sua vivência do
arquétipo matriarcal.
A segunda perspectiva refere-se ao desejo de uma experiência simbólica e
iniciática, de sentido de existência, na qual a consciência anseia por mergulhar nos seus
conteúdos inconscientes e lá encontrar os símbolos que darão significado ao ser. É a
intuição de que os efeitos de alteração na consciência, de prazer e bem-estar produzidos
pela droga são de alguma forma bastante semelhantes à experiência do Self.
Vivemos em uma época em que nunca houve tanta liberdade e acesso ao
conhecimento e informação, mas que, por outro lado, nunca o cotidiano foi tão
empobrecido e destituído de significados. Segundo Luigi Zoja (1992), as drogas, quando
originalmente utilizadas em rituais religiosos de iniciação em culturas tribais, demarcavam
passagens nas vidas dos indivíduos e traziam vivamente a experiência de transcendência
e organização temporal.
Hélio sente profundamente um vazio, uma falta de sentido em sua existência e no
fundo também sabe que não descobrirá a felicidade reencontrando uma família afetuosa e
acolhedora. Sua ex-namorada e os familiares dela não o aceitam e houve muitas situações
em que teve muita dificuldade em ver seu filho. Há uma parte nele que quer ser um bom
pai para seu filho e sair da condição de alguém que não amadureceu. Talvez sinta de fato
uma enorme falta de um acontecimento que demarcasse sua passagem da infância para o
mundo adulto.
A dependência química é simultaneamente um desejo de perpetuação da
condição protegida da vivência matriarcal e uma busca pelo desenvolvimento para além
dos roteiros de vida limitadores impostos por uma cultura cada vez mais destituída de
significado e de rituais. É ao mesmo tempo uma fuga inconsciente e uma busca rudimentar
e inglória pelo Self, pela vivência de totalidade.

O resgate do equilíbrio

Atualmente, todos os esforços da medicina e das ciências ligadas à saúde, de


uma forma geral, se concentram no bem-estar integral e na beleza física, tornando-se
cada vez mais competentes em seus objetivos. O equívoco dessa visão está em sua
extrema simplificação e linearidade, em que reduz o processo evolutivo humano a um
percurso sem desafios, como se fosse possível ou mesmo desejável uma vida
absolutamente feliz e saudável. As eventuais doenças, as perdas e tristezas são
sofrimentos que constituem uma existência, fundamentais no processo evolutivo humano e
hoje tenta-se bani-las do caminho humano. É a onipotência do ego, revelando-se no
orgulho desmedido, no desejo de poder; é a valorização extremada do YANG, submetendo
o YIN ao exílio.
Os conteúdos simbólicos e míticos do inconsciente, o sofrimento, as doenças e as
perdas são expulsos do paraíso contemporâneo em que vigoram as mais modernas
técnicas médicas e cosméticas que buscam a juventude e saúde eternas. Muitos estudos
atualmente aprofundam as reflexões sobre a cultura deste princípio de milênio, em que a
todo custo os indivíduos buscam seu bem-estar através de academias de ginástica e
métodos de rejuvenescimento, e fogem de tudo que não diz respeito a isso.
Mesmo assim, o homem contemporâneo, de maneira inata, continua na busca
pela sua inteireza. Seus conteúdos inconscientes e não desenvolvidos reivindicam seu
lugar negado. Ele sente um vazio que não sabe bem de onde vem, uma falta de sentido
em sua busca desenfreada pelo prazer e satisfações pessoais. Virão as depressões, as
síndromes de pânico diante das ameaças do crime organizado, da violência urbana, do
desemprego ascendente e as doenças modernas, frutos de uma civilização que valorizou
ao extremo o o status, o consumo e, por conseqüência, gerou desigualdades sociais e
uma profunda sensação de desolamento. Ele se encontra em uma cultura que promove as
compulsões, recursos para não vivenciar esse esvaziamento de valores e significados. Ele
vai ser compulsivo por sexo, trabalho, religião, esporte, jogo e, particularmente, ele será
compulsivo por drogas. São comportamentos que buscam imaturamente o bem-estar, a
felicidade e a anestesia para sua dor. O homem contemporâneo terá que renunciar à sua
acomodação fantasiosa para curar suas doenças e seu enorme vazio e reintegrar tudo
aquilo que foi banido para a sombra. Ele terá que morrer para nascer de novo.

A experiência da morte

O dependente químico é escravo de suas compulsões e não suporta ser frustrado,


tem um ego muito precariamente constituído, que não dá conta de administrar questões
objetivas de sua vida. É incapaz de pagar suas contas e honrar seus compromissos e
impulsivamente chega a vender pertences seus e de familiares para obter dinheiro para
comprar drogas. Não se importa com questões éticas nem com sentimentos de pessoas
por quem nutre afeto quando é tomado pelos seus desejos ou pelos seus sofrimentos. É
capaz de fazer qualquer coisa para ter prazer e não sentir dor. Ele precisa
desesperadamente conter sua compulsão, domar seus desejos e pavores para que não
precise mais usar drogas. Ele precisará definitivamente se abster da droga. A abstinência
que interrompe o uso de drogas e obriga o dependente químico a se confrontar com sua
total impotência perante seu vício é uma experiência de morte. Ela se assemelha à etapa
de solutio, da alquimia ocidental, quando tudo nele parece se dissolver. O indivíduo em
solutio vive o desmanche de tudo o que não é autêntico e adequado para seu
desenvolvimento, ele experiencia uma desintegração muito semelhante à morte, em que
morre o que ele acreditava ser sua verdadeira identidade. Ele estará defronte de suas
paixões e desejos que não serão satisfeitos. Para sobreviver terá que se sacrificar e
suportar a frustração de seus desejos e a sensação de diluição de todas as suas
características que mantinham defensivamente sua auto-afirmação: poder, felicidade,
bem-estar, segurança, controle das pessoas próximas, ser admirado e temido. O
dependente químico terá que tomar consciência de maneira radical do grande malefício da
droga e escolher se libertar dela. Não poderá ser uma escolha a partir de valores morais
externos ou qualquer outro tipo de interferência alheios a ele. Terá de ser uma escolha que
nasce visceralmente de seu ser, pois a profundidade de sua decisão será fundamental
para que ele suporte a solutio, a síndrome de abstinência e todo o sofrimento da
vulnerabilidade de sua condição humana, repleta de frustrações e perdas que ele tanto
negou, reveladas depois que ele perde a sua máscara de fantasias e idealizações da
realidade objetiva. Ele precisará suportar e elaborar a experiência simbólica da morte.
Segundo Zoja (1992), o processo de iniciação passa por três etapas:
- o adolescente em uma sociedade tribal realiza algo que transforma sua
condição de insignificância, conferindo-lhe uma identidade adulta, protagonista, criador;
- ocorre a morte iniciática, a aceitação de que definitivamente se encerrou uma
fase em sua vida; há uma renúncia de sua identidade anterior e um afastamento libidinal
dos investimentos usuais;
- o renascimento iniciático, que traz uma nova identidade.
As festas raves foram, a princípio, consideradas por alguns estudiosos como uma
possibilidade criada por grupos de jovens para reeditar a experiência de rituais sagrados
de iniciação, utilizando-se drogas sintéticas e música eletrônica. No entanto, de acordo
com o trabalho da socióloga Maria Isabel Mendes de Almeida (2005), a finalidade principal
destas festas é manter apenas um bem-estar físico muito prolongado.
Zoja (1992) afirma que o uso de drogas como uma forma de iniciação é
fracassado porque o dependente químico pula da primeira para a terceira etapa: ele não
vive a experiência da morte.

O corpo

Hélio, como muitos dependentes químicos, precariamente concluiu o ensino


fundamental. Não desenvolveu adequadamente seu intelecto e seus potenciais cognitivos.
Dificilmente seria possível uma psicoterapia baseada em explicações de tudo o que foi
tratado aqui.
Há, porém, um componente fundamental para a compreensão dessas questões,
que dispensa elaborações no plano das idéias e do intelecto. Este componente é seu
próprio corpo.
Jung, em seu livro A Dinâmica do Inconsciente (1928), diz que:

A alma e o corpo são presumivelmente um par de opostos e, como tais,


são a expressão de uma só entidade, cuja natureza não se pode conhecer nem a
partir das manifestações materiais exteriores nem através das percepções interiores
diretas. Como sabemos, segundo uma antiga crença, o homem surge do concurso
de uma alma com um corpo. Mais correto seria falar de um ser vivo desconhecido
sobre cuja natureza íntima o máximo que podemos dizer é que ela expressa
vagamente a quintessência da vida. (1998, p. 335-336)
Não há como não compreender vivências corporais. Em seu processo
compulsório de morte, quando foi literalmente abandonado por seus familiares, propus a
ele que dirigisse sua atenção ao contato de seus pés no chão, convidando-o a imaginar
raízes que saíssem da sola de seus pés e penetrassem no solo de tal forma que o
fincasse firmemente em uma base sólida, como um recurso para trazer estabilidade e
segurança em situações em que suas fantasias e pesadelos podiam alçar vôo e desligá-lo
da realidade objetiva. Pedi para que andasse descalço pelo tapete, colocando toda sua
atenção na sensibilidade de sua pele em contato com o chão. Ele gostou muito da
experiência e me relatou o quanto isso o ajudava a manter sua atenção no momento
presente e do quanto, em contrapartida, percebeu que suas recaídas foram causadas
pelas suas ausências e total distração.
Segundo Paulo Machado (2002), os pés em personagens do imaginário brasileiro
estão invertidos (curupira) ou estão em falta (saci). Isso pode significar, em termos da
cultura brasileira, que nossas bases são enganosas ou precárias. As pegadas do curupira,
pelos seus pés invertidos, sugerem uma direção contrária à que de fato ele se encaminha.
O saci se locomove com apenas uma perna.
Atender dependentes químicos é um desafio muito grande; eles são comumente
malandros e sedutores, nos enganam e manipulam, se aproximando muitas vezes de
comportamentos psicopáticos. O psicanalista Victor Eduardo Silva coloca a
impossibilidade de se enquadrar o toxicômano em uma única categoria diagnóstica. Ele
apresenta traços neuróticos, psicóticos, componentes maníaco depressivos e perversos.
Mas o corpo também compreende e percebe sem equívocos a autenticidade do
afeto. E isso tem o poder de curar. É também um traço da cultura e do comportamento
brasileiro a afetividade, qualidade bastante apreciada por muitos visitantes estrangeiros,
que muitas vezes se surpreendem com isso. Essa afetividade é calorosamente vivida em
nosso hábito brasileiro de nos abraçarmos muito.
Em todos finais de atendimento eu abraçava Hélio para transmitir-lhe força,
encorajamento e um sentimento de confiança de que é possível vencer a drogadicção e a
abstinência. Esse meu gesto, que expressava minha crença em seus potenciais de
enfrentamento e superação, valeram mais que mil palavras.
Atendimentos finais e conclusão

Hélio, terminado o prazo previsto de permanência na comunidade, ficou mais oito


meses, abandonado, em pleno solutio, tendo que dissolver sua identidade infantilizada,
calcada na farsa do papel de bom menino rico, mimado por uma família que o amava
incondicionalmente. Ele foi obrigado a viver sua experiência inciática de morte. Ele não
tinha para onde ir – caso abandonasse seu tratamento iria se transformar em um mendigo.
Tentou procurar emprego nos arredores da comunidade, inutilmente. Estava
extremamente frustrado e magoado em sua solidão mas, pela primeira vez, suportou todo
seu sofrimento. Relatava que se sentia forte, apesar de tudo, e que a psicoterapia estava
sendo fundamental para que ele suportasse tanta frustração. Finalmente conseguiu ligar
para sua mãe e combinou uma breve visita à sua cidade. Não retornou mais e algumas
semanas depois tive notícias de que ele estava muito bem, trabalhando em sua cidade.
Lembro que me avisou que iria fazer essa visita à sua família, gesto de consideração raro
em minha experiência com dependentes químicos.
Hélio é um paciente parcialmente fictício, síntese de duas histórias de
atendimentos que escolhi entre dezenas que realizei ao longo de cinco anos nessa
comunidade. É uma história muito freqüente, que se encaminha para a autodestruição,
onde o dependente não encontra condições estruturais e afetivas suficientes e adequadas
na família para se desenvolver, não vive um cotidiano rico em significados que dispense
artifícios pirotécnicos para viver uma existência interessante. Os finais satisfatórios,
adequados para se concluir um artigo como esse, são, porém, ainda muito pouco comuns.
Nós ainda estamos muito longe de integrarmos essa sombra.
Referências

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reflexão comparativa do recurso às drogas no contexto da contracultura e nas cenas
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oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix, 1991.
A DIMENSÃO SIMBÓLICA NO PROCESSO DE MIGRAÇÃO FAMILIAR

Ana Laura Rabelo Araújo de Castro1

Introdução

Faremos, neste artigo, uma reflexão a respeito do tema migração e família numa
visão junguiana, ou seja, procuraremos amplificar o sentido simbólico do engajamento
de famílias no processo da migração.
Este texto baseou-se na dissertação produzida originalmente em 2005, intitulada
“Você é daqui? A subjetividade de famílias brasileiras em movimento de migração
interna”, apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp para a
obtenção do título de Mestre em Psicologia.
Tal pesquisa foi impulsionada pela necessidade de buscar compreender a
experiência psicológica de famílias que migram do espaço familiar originário e reiniciam
uma vida em um novo contexto. O movimento migratório abordado aconteceu quase
sempre motivado conscientemente pela busca de melhores condições de vida, por
novas oportunidades laborais fora do contexto social de origem: enfim, em busca do
que poderíamos chamar simbolicamente de “a terra prometida”.
Trabalhamos numa metodologia qualitativa, entrevistando cinco famílias que
viveram um processo de migração interna, dentro do território brasileiro. A abordagem
da família e coleta dos dados foi efetuada através de contatos com os adultos
responsáveis pelas respectivas famílias.
A compreensão de uma experiência humana em sua riqueza de vida e
transformação transborda os limites de nossa capacidade de entendimento intelectual.
Buscamos a abordagem simbólica devido à insatisfação com a resposta racional que
encontramos ao problema.
Ao considerar o processo de migração – em sua dimensão simbólica – como um
movimento consoante com a busca da individuação, lançaremos mão de um mito, uma
imagem cinematográfica e uma obra literária, no sentido de ampliar a percepção deste
fenômeno humano.

1
Psicóloga, mestre em Psicologia pela Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – Campus Assis.
Especialista em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas Corporais pelo Instituto
Sedes Sapientiae. E-mail: analaura27@superig.com.br

1
A experiência simbólica

A dimensão simbólica é eminentemente a qualidade de experiência vital mais


importante para a humanidade, na visão da psicologia de Jung. Sua obra tem grande
importância no resgate do símbolo – e de sua função de ligação psíquica entre
consciente e inconsciente – no âmbito das ciências ocidentais.
A linguagem simbólica é a forma de expressão primária do inconsciente. Os
símbolos são o produto da psique humana, que surgem impregnados de energia
inconsciente e têm a função tanto de estabelecer uma ponte entre o consciente e o
inconsciente quanto de – através desta relação – ampliar a consciência e dar sentido a
aspectos desconhecidos ou até então conflituosos na vida das pessoas.
O trabalho envolvido na experiência simbólica, ou seja, a elaboração de um
símbolo, envolve mais do que a função intelectual, sendo necessária a vivência
subjetiva daquele conteúdo. O símbolo é uma experiência que nunca poderemos definir
com clareza ou compreender plenamente, já que vai além de nossa capacidade
intelectual. A aproximação com os símbolos, na medida em que se apresentam na vida
dos indivíduos ou das coletividades, faz parte do processo de desenvolvimento
psíquico, que tem como objetivo a integração de novos conteúdos à consciência, de
forma a ampliá-la.
A valorização da dimensão simbólica requer um reconhecimento da limitação da
consciência humana e a aceitação do fato de que na natureza inconsciente encontra-se
a fonte da energia psíquica.
Aquilo a que chamamos de símbolo pode ser uma imagem, um objeto ou uma
palavra. Algo que possui um significado além do manifesto, ou por trás do que aparenta
de imediato. Pode ser-nos enviado através de: sonhos, imagens, sintomas,
manifestações artísticas, mitos, lendas. Na atualidade, muitos símbolos encontram
expressão em filmes ou outras técnicas artísticas contemporâneas.

Toda vez que a psique tenta se apresentar à consciência [a partir] de uma


dimensão interna da experiência para a qual não há precedente (já que até o
momento aprendemos apenas a nos orientar para as coisas exteriores), isso
pode ocorrer somente através da associação deste território interior novo e
desconhecido com a imagem de algum objeto exterior ou através da expressão
desse território em termos desta imagem. (Whitmont, 1995, p.27)

2
Lembramos que, para Jung (1934), o inconsciente não é apenas constituído de
material reprimido, mas consiste na condição psíquica primária, e que a imagem,
portanto, teria uma ligação mais forte com a coisa em si do que o conceito racional. A
imagem simbólica, na psicologia analítica, não é considerada resultado de distorção de
conteúdos reprimidos, mas adquire status de componente básico do funcionamento
psíquico.
Desta forma, ao ampliarmos o fenômeno da migração familiar através de uma
abordagem diversa da racional, acreditamos estar contribuindo para uma compreensão
mais completa da subjetividade envolvida no movimento migratório. Ousamos dar
ouvidos à intuição e à sensação, como outras funções psíquicas que nos
instrumentaram a captar aspectos da questão que ainda estão faltando.

Imagens da migração

Formulada a questão da migração, a imagem de Moisés foi a primeira


associação que nos surgiu, já que esse personagem bíblico guiou todo seu povo no
caminho em busca da terra prometida.
O Êxodo – um dos principais acontecimentos narrados na história bíblica –
consiste num tema mítico judaico-cristão que retrata a saída do povo de Israel do Egito,
onde era escravizado. A missão de Moisés, nomeado de Deus e líder do povo
escolhido, revelou-se como sendo a de conduzir os hebreus na jornada, desde o Egito,
passando pela travessia do Mar Vermelho e marchando, através do deserto, até a
Terra Santa.
A presença do povo hebreu na terra do Egito foi resultado de uma sofrida
migração, muito tempo antes, de um menino, o filho da velhice de seu pai, e depositário
da esperança de um futuro melhor. O Gênesis, livro inaugural da Torá, o sagrado
Pentateuco do Judaísmo, conta a história de José, filho de Jacó, o pai das Doze Tribos
de Israel. Aos dezessete anos de idade, José era o filho favorito de Jacó, e, assim, alvo
dos ciúmes de seus irmãos, mais velhos. Decidiram, então, matá-lo. A intervenção de
um dos irmãos, Rúben, salvou-o da morte. José foi vendido por vinte moedas de prata
a ismaelitas, que rumavam para o Egito a fim de mercadejar especiarias e bálsamo.
No Egito, seus dotes de vidente e intérprete de sonhos acabaram por levá-lo à
presença do faraó, que o tomou a seu serviço. Mas José não apenas interpretava
sonhos: era também um bom administrador, zeloso e sagaz. Por essas qualidades, foi
alçado ao governo de todo o Egito pelo próprio faraó. Já governador, José recebeu sua

3
família de origem no Egito, pois havia fome na terra de seus antepassados. Perdoou
seus irmãos e fez que lhe trouxessem o pai, Jacó, e que se fixassem no Egito.
Morreu Jacó – a quem o próprio Deus tinha mudado seu nome para Israel – no
Egito, mas deixou instruções claras a José para que fosse sepultado na terra de
Canaã: a terra prometida a Abraão e a todos os seus descendentes. O Gênesis conta
que o primeiro hebreu a fazer a aliança com Deus, Abraão, teve de sua mulher, Sara,
seu filho Isaac quando já eram bem velhos. Isaac, o pai de Jacó, também foi salvo da
morte, por um anjo, quando estava prestes a ser imolado pelo próprio pai em ritual de
sacrifício ordenado por Deus.
José cumpriu as instruções. Com autorização do faraó, após os rituais de
embalsamamento, fez sepultar Jacó – Israel – na Terra Prometida. Quando ele próprio
estava prestes a morrer, depois de ter passado toda sua vida adulta na terra para a
qual migrara à força, e a despeito de ter-se tornado o governador dessa terra, José
rogou que o enterrassem na Terra Prometida. Foi embalsamado e posto em um caixão
no Egito.
Moisés cumpriu o juramento dos antepassados. Tomou os ossos de José
consigo e iniciou a longa jornada rumo à Terra Prometida.
Colhemos da Bíblia algumas passagens que ilustram parte dessa história de um
povo escravo, que busca seu lugar no mundo e a legitimação de seus costumes
religiosos e de suas leis.

E os filhos de Israel partiram de Ramessés por Socot, sendo perto de


seiscentos mil homens de pé, afora os meninos. ... Ora o tempo que os filhos de
Israel tinham morado no Egito, foi de quatrocentos e trinta anos. Completos os
quais, todo o exército do Senhor saiu no mesmo dia da terra do Egito. Esta
noite, em que os tirou da terra do Egito, deve ser consagrada ao Senhor; e todos
os filhos de Israel a devem celebrar nas suas gerações.
[Palavras de Moisés:] ’Vós saís hoje no mês dos trigos novos. Quando o
Senhor te tiver introduzido na terra ..., que ele jurou a teus pais que te havia de
dar, terra onde corre o leite e o mel, celebrarás este rito sagrado neste mês.’
... E o Senhor ia adiante deles para lhes mostrar o caminho, de dia numa
coluna de nuvem, e de noite numa coluna de fogo, para lhes servir de guia num
e noutro tempo. Nunca se retirou de diante do povo a coluna de nuvem durante
o dia , nem a coluna de fogo, durante a noite.
[Palavras de Deus:] ... ‘Dize aos filhos de Israel que... assentareis o
acampamento defronte deste sítio junto ao mar. Porque Faraó há de dizer
acerca dos filhos de Israel: Eles estão cercados no país, estão encerrados no
deserto.’
... E como Faraó se aproximasse, levantando os filhos de Israel os olhos,
viram os egípcios nas suas costas; e tiveram grande medo, e clamaram ao
Senhor, e disseram a Moisés: não havia talvez sepulturas no Egito, e por isto
nos tirastes de lá para morrermos no deserto. Por que quiseste fazer isto, tirar-
nos do Egito? Não é isto que te dizíamos no Egito: Retira-te de nós, a fim de que

4
sirvamos os Egípcios? Porque era muito melhor servi-los do que morrer no
deserto. Moisés disse ao povo: Não temais;estais firmes, e considerai as
maravilhas que o Senhor fará hoje; porque os egípcios, que agora vedes, nunca
jamais os tornareis a ver. O Senhor combaterá por vós, e vós estareis em
silêncio.
[Palavras de Deus para Moisés:] ‘E tu levanta a tua vara, e estende a tua
mão sobre o mar, e divide-o, para que os filhos de Israel caminhem em seco
pelo meio do mar.’
... E tendo Moisés estendido a mão sobre o mar, o Senhor, soprando toda
a noite um vento forte e ardente, o retirou e secou; e a água dividiu-se. E os
filhos de Israel entraram pelo meio do mar enxuto; porque a água estava como
um muro à direita e à esquerda deles.
... E o Senhor disse a Moisés: Estende a tua mão sobre o mar, para que as
águas se voltem para os egípcios, sobre os seus carros e os seus cavaleiros. E
Moisés, tendo estendido a mão sobre o mar, (este) ao romper da manhã, voltou
para o lugar habitual e, fugindo os egípcios, foram as águas sobre eles, e o
Senhor os envolveu no meio das ondas.
[Cântico de louvor de Moisés e dos Israelitas:] Foste por tua misericórdia o
guia do povo que resgataste; e o conduziste com tua fortaleza para a tua santa
morada.
... Tu os introduzirás (o povo escolhido), e os estabelecerás no monte da
tua herança, na tua firmíssima habitação, que tu fundaste, ó Senhor, no teu
santuário, Senhor, que tuas mãos firmaram.
... No terceiro mês, depois da saída dos Israelitas da terra do Egito, neste
dia chegaram ao deserto do Sinai. Porque tendo partido do Rafidim, e chegando
ao deserto do Sinai, acamparam naquele mesmo lugar, e Israel levantou aí as
suas tendas defronte do monte. (Bíblia, Êxodo,12-37 a 19-2, resumido)

Nesta parte da história, extraída da narrativa do Êxodo, o povo eleito migra do


Egito e chega ao monte Sinai. A trajetória, que parte da libertação do povo e atravessa
desertos e mar – auxiliada por milagres e maravilhas de Deus –, consiste no preâmbulo
da organização social do povo de Israel.
O monte Sinai representa a primeira morada, não a definitiva, onde se
estabelecem temporariamente os peregrinos e onde são promulgados os primeiros
mandamentos – que baseiam as leis civis, morais, cerimoniais e religiosas que regem o
povo eleito.
Mas a viagem não cessa por aí. Um longo caminho ainda se apresenta por ser
percorrido. Através de desertos e lutas com povos inimigos, eis que morre Moisés,
após abençoar seu povo e escolher um sucessor que possa assumir a liderança da
migração até a terra que Deus prometeu dar aos seus pais e à sua descendência.
Apresenta-se aqui um processo migratório eterno, uma peregrinação sem fim, até um
“paraíso” que nunca é alcançado.
O elemento que nos marcou inicialmente foi a idéia da Terra Prometida. Onde se
encontraria? Como se desvelaria tal imagem? A terra do leite e do mel, o paraíso
perdido, o nirvana, enfim, várias são as metáforas que simbolizam a terra prometida.

5
Como ocidentais, temos o hábito de fixar nossa atenção no ponto final, no destino, em
detrimento do caminho a ser percorrido. Cabe questionar então o que se busca com o
processo de migração. Onde queremos chegar, nós, migrantes? O que queremos ou
desejamos encontrar?
Sem nos atirarmos a uma interpretação mais detalhada desse mito – o que daria
por si só uma longa dissertação –, nossa intenção aqui consiste na apreensão da
densidade deste caminho: a aventura que constitui esta busca, que continua após a
morte de Moisés. Mares se abrem para a passagem de um povo, e se fecham sobre os
poderosos inimigos, nuvens e fogo servem de guia, enfim, toda a natureza se envolve
no processo que é mais do que um fim: sobretudo um meio.
Vislumbramos, gradualmente, a importância do caminho, do processo,
prioritariamente ao lugar onde se deseja chegar, ou do lugar de onde se partiu. O
caminho impõe-se como um símbolo. Na mitologia cristã, o personagem de Moisés vai
se construindo durante o êxodo, o sentido de sua vida vai se tecendo juntamente com a
conformação dos filhos de Israel. Sua identidade vai se formando em conjunto com a
identidade do povo judeu.
Enquanto viaja, a própria natureza, o ambiente, se mistura à identidade do
migrante. Tal identidade é construída nessa peregrinação. Essa construção observada
na figura de Moisés também pode ser encontrada no personagem Fabiano, criado por
Graciliano Ramos (1939), em seu conhecido romance Vidas Secas, parte da literatura
clássica nacional. O autor traduz, já no título, a confluência entre a identidade da
família migrante e a situação da seca nordestina.
Tendo como cenário uma paisagem árida e angustiante, Graciliano Ramos conta
a história de uma família expulsa de sua terra pela seca, suas expectativas e
esperanças, revelando a realidade de pessoas em constante migração, em busca da
sobrevivência.
Já no início podemos vislumbrar o que deseja o personagem Fabiano: tornar-se
dono daquelas terras abandonadas, onde se encontravam provisoriamente. Então –
sonha ele – viria a chover, e com a chuva voltaria à vida toda aquela natureza
nutridora, e como conseqüência, renasceria a vida da família.

Sinhá Vitória [a esposa] vestiria uma saia larga de ramagens. A cara


murcha de sinhá Vitória remoçaria, as nádegas bambas de sinhá Vitória
engrossariam, a roupa encarnada de sinhá Vitória provocaria a inveja das outras
caboclas. (Ramos,1939, p.15).

6
No entanto, vem a chuva e com ela o verdadeiro dono da terra. Fabiano passa a
trabalhar como vaqueiro naquela fazenda. Reflete sobre seu caminho, e sente a família
como um peso que deve carregar pela vida afora. A memória da seca e do caminho
que ela impõe permeia sua vida, bem como a de sua família.
Sinhá Vitória também carrega a marca da seca e da migração. Descontente com
sua cama de varas, ela sonha com uma cama de couro, mas esse sonho se enlaça
com a memória da desgraça, da seca. Desconjura, mas a lembrança insiste: seus pés
de papagaio, o papagaio de estimação que tiveram que comer para sobreviver, no
percurso.
A seca novamente se avizinha, prometendo colocar em movimento aquela
gente, como se repete há gerações. Fabiano se revolta com esta possibilidade, e tenta
em pensamento buscar uma alternativa singular, diferente daquela sina de matuto
retirante. Qualquer coisa serviria: até ser criminoso, até ser detento, até ser cangaceiro.
Algum desses caminhos o aproximaria da humanidade. “Seria homem então!”, pensa,
indignado.
O caboclo ainda se agarra à esperança de não precisar migrar. Torce pela
chuva, mas nos sinais da natureza é versado, e nestes está escrita a iminência da
seca. Seu coração se aperta.
A chegada das aves, “arribações” – nas palavras de Ramos (1939) – anunciam a
seca. As aves beberiam a água, o gado morreria de sede, as aves comeriam o gado, a
família seria morta pelas aves, as aves comeriam os humanos ou seriam comida para
os humanos, em sua retirada. Fabiano se confunde entre a vida e a morte, a
humanidade e a natureza, inerte e impotente diante do ciclo da vida.
Novamente a família em retirada. Agora seus membros relutam antes de colocar
o pé na estrada, pois estão mais velhos e mais fracos, sem Baleia, a cachorra de
estimação que morrera. Migrando para um local onde talvez não houvesse gado para
tanger. Fugindo da morte, indo em direção a uma vida desconhecida.
Sinhá Vitória fala de como seria bom voltar a ser como no começo, voltar ao
lugar de onde vieram, voltar a ser como eram. Mas sempre haveria o medo da seca.
A seca, a migração, o desterro, o desconhecido, permeiam os personagens e
suas vivências internas. Independentemente de passado, presente ou futuro, o que é
negado a estes personagens é um lugar de vida, a ponto de nos questionarmos sobre
que força os move através do sertão.

7
Por não pertencer a um lugar, ou por não possuir um lugar no mundo, o
personagem de Fabiano muitas vezes chega a duvidar de sua condição humana. A
vivência interna se reflete nas experiências reais. No caso de Fabiano e sua família,
humanidade significa sobreviver com um mínimo de decência: uma cama de couro
para sinhá Vitória, algum gado para Fabiano tanger. A existência de Fabiano, sua
essência, se vê ameaçada, e a migração representa a busca por esse lugar interno, a
construção de sua verdadeira identidade. Daí a força que o move. A força do símbolo,
a busca do lugar-lar, do seu lugar no mundo, onde possa sobreviver.
O sentido simbólico do lugar-lar concreto aproxima-se da representação interna
de prazer, felicidade, bem-estar. Qualidade de vida, como disseram alguns
entrevistados de outras pesquisas (Brasil, 1996; Almeida,1997; Azevedo,1993), ou
conhecidos migrantes. Percebemos que qualidade de vida não consiste num produto
final da busca, ou na chegada à terra prometida, mas sim que qualidade de vida
permeia a vida toda. As pessoas não desejam viver e depois ter qualidade de vida, mas
viver em condição de qualidade na vida. Viver – dia após dia, no trabalho, na rotina
diária, com a família e os amigos, no lazer – em condição de bem-estar.
No que consiste, em termos simbólicos, a migração: uma viagem, uma busca,
um caminho, uma peregrinação, uma retirada. O abandono de um lugar conhecido,
seguro ou não, em prol do desejo, ou da necessidade, de algo mais, de chegar a
conquistar um estado de satisfação.
Esse caminho que o migrante percorre em sua vida objetiva representa a
concretização de um outro caminho, no nível psíquico, de permanente confronto da
consciência com o inconsciente, com o psiquicamente desconhecido. Como o
migrante, a consciência constrói-se dinamicamente nesse processo. A personalidade
vai sendo ampliada e transformada no decorrer dessa jornada.
Ângela Brasil (1996) desenvolve, em sua tese de doutorado, uma analogia entre
a trajetória migrante e o mito do herói. O significado da migração é entendido não
apenas como uma mudança geográfica, externa ao universo psíquico do indivíduo,
mas o processo concreto de mudança acarreta toda uma alteração nos níveis
psíquicos consciente e inconsciente, e encontra-se relacionado a um processo que tem
sua origem no universo simbólico das pessoas.

O mito do herói, em suas grandes performances, delineia padrões para a


caminhada existencial através da dimensão imaginária. O herói é um modelo de
bravura, coragem, perseverança, tenacidade e criatividade, para enfrentar o
desconhecido e o obscuro de seus caminhos. Sempre que algo novo e

8
transformador vai ser implantado em nossa consciência pessoal e coletiva,
algum dinamismo heróico é ativado. (Brasil, 1996, p.5)

Na medida em que se construiu esta imagem do processo, do desenrolar da


existência das pessoas, lembramos que, para Jung (1957), a finalidade dessa
existência consiste em buscar sua verdadeira identidade e realização pessoal. A tal
busca, ele denominou processo de individuação.

O processo de individuação

Tudo o que nele [no inconsciente] repousa aspira a tornar-se


acontecimento, e a personalidade, por seu lado, quer evoluir a partir de suas
condições inconscientes e experimentar-se como totalidade. (Jung, 1957, p.19).

A psicologia analítica não concebe o ego como o centro da psique. O


inconsciente coletivo – um a priori da vida psíquica, em outras palavras, condição inata
ao ser humano – é de onde germina e se desenvolve, a partir do contato com a
realidade exterior, toda a estrutura da personalidade pessoal, de acordo com o
movimento de transformação da libido, ou energia psíquica.
O inconsciente coletivo é constituído não por aquisições individuais, mas por um
patrimônio coletivo da espécie humana. Esse espectro coletivo é essencialmente o
mesmo em qualquer lugar e em qualquer época, não varia de pessoa para pessoa,
representando uma condição psíquica prévia da humanidade.
Em desenvolvimentos posteriores da teoria junguiana, o inconsciente coletivo
passou a ser denominado de psique objetiva, em contraposição à psique subjetiva, ou
individual, que se constrói a partir do nascimento do ser humano. O inconsciente
pessoal consiste num depósito de material que já foi consciente, mas foi esquecido ou
reprimido. O ego se forma como o centro da personalidade pessoal.
Os processos psíquicos e sua manifestação vital são compreendidos, nesse
contexto, como reflexo do entrechoque constante de forças antagônicas. Numa
analogia com a física, podemos dizer que a tensão entre os pares de opostos gera uma
diferença de potencial de energia, com a qual vai sendo construída a estrutura da
personalidade.
Esse vasto campo energético que consiste no inconsciente coletivo possui um
princípio ordenador denominado Self, ou Si-Mesmo, o eixo central da totalidade. Em
função desse princípio, as forças psíquicas interagem, em movimentos de regressão e
progressão. A regressão da libido se dá quando a energia se volta para o inconsciente.

9
A progressão da libido significa o direcionamento da energia psíquica para a
construção da consciência, e através desta, para o mundo externo.
Por meio dessa dinâmica, no curso do desenvolvimento humano, uma instância
– o ego – vai emergindo do inconsciente e se diferenciando. O ego vai sendo
sedimentado como a base da consciência e funcionando como intermediário entre a
totalidade do indivíduo e seu meio ambiente: o mundo dos objetos.
O ego consiste no centro da consciência e abriga as funções psíquicas como a
sensação, o pensar, o sentir e o intuir. Ele fornece um sentido de consistência e
direção em nossas vidas conscientes. Tende a contrapor-se a qualquer coisa que
possa ameaçar essa frágil consistência da consciência. Valorizamos em nossa
sociedade ocidental, freqüente e erroneamente, o ego como o elemento central de toda
a psique e chegamos a ignorar que, a princípio, a psique é fundamentalmente o
inconsciente.
O ego é responsável pela adaptação do indivíduo ao meio, e por seus atos
representa sua identidade consciente e desfruta de certa autonomia na vida diária,
porém tem suas raízes no inconsciente e dele deriva sua energia. É o centro da psique
consciente, que faz oposição às tendências inconscientes de indiscriminação e
sincretização. O ego realiza, materializa, diferencia-se, delimitando uma
individualidade, ou uma identidade singular, perante todos os outros seres humanos.
Assim sendo, o ego existe no aqui e agora, enquanto o Self é uma instância
atemporal. Através do ego, o Self tem possibilidade de se realizar. O processo de
individuação consiste no tornar-se consciente, mas também na aceitação da primazia
do Self. A característica dupla do processo de individuação revela-se no movimento de
ir e vir neste eixo ego-Self: o emergir de conteúdos e o mergulhar no inconsciente.
A individuação revela-se uma dinâmica circular, cíclica, caracterizada pela inter-
relação entre o ego e o Self. Uma busca de completude, porém jamais a perfeição, pois
o completo inclui o perfeito e o imperfeito.
O ser humano sempre esteve em busca de algo inalcançável, o que o moveu a
conquistar toda a terra e o que o move ao espaço cósmico. Em outra direção, essa
busca o levou ao que se encontra subjacente à racionalidade, ou à consciência.
Consideramos que a busca do migrante por outros lugares equivale simbolicamente a
uma busca interna, por si próprio, ao seu próprio Self.

10
O dinamismo por trás da migração

No caso do nosso trabalho, destacamos o nível familiar, consciente e


inconsciente, e sua implicação no processo da migração. Tratar-se-iam então de
famílias heróicas – fazendo um paralelo com o dinamismo heróico do migrante (Brasil,
1996) – em busca de seu autodesenvolvimento? Ou famílias presas a mitos de base
arquetípica, que algum dia tiveram sentido, mas que não são mais atuais? Famílias que
permitem o ir e vir de seus filhos, ou famílias cujos membros engajaram-se na
peregrinação como uma maldição herdada de pai para filho?
Não existe, ainda, o conceito de individuação familiar, mas existem sim famílias
que permitem a seus membros que se desenvolvam individualmente, como pessoas
integradas e autoconscientes. E nesse sentido, sim, são famílias heróicas, já que
enfrentaram fantasmas do passado e lutaram contra destinos pré-estabelecidos com
garra, pois sabemos o quanto têm força tais conteúdos inconscientes.
Uma bela imagem que ressalta o que vimos dizendo até então – a respeito de
legados e heranças familiares que podem tanto nos levar ao crescimento quanto nos
aprisionar num destino coletivo – encontra-se no filme Chocolat (Inglaterra/França,
2000).
Nesta obra cinematográfica, uma pequena parte da vida de Anouk é relatada por
ela própria: uma menina em torno dos oito anos de idade, descendente de uma tribo
indígena nômade da Guatemala por parte da avó materna e de um avô materno de
origem francesa.
Num certo dia de inverno, com o vento que soprava do norte, Anouk e sua mãe,
Vianne, chegam a uma pequena aldeiazinha na França, no final dos anos de 1950,
onde o povo acreditava em tranqüilidade. O panorama apresentado envolve uma
comunidade presa às tradições; uma mãe e sua filha amarradas a uma herança. Uma
sociedade paralisada por convenções sem vida; duas mulheres levadas por um árduo
movimento sem fim. O povo da cidade e a família errante têm em comum o legado a
ser carregado, e o encontro dessas duas tradições virá a transformá-los.
A menina possui um amigo imaginário: Pantoufle – um filhote de canguru que
não sabe saltar, porque tem a perna machucada num ferimento de guerra – que não
suporta mais essa sina de mudar de cidade em cidade, tão logo começa a soprar o
vento norte. É ele que pergunta a Vianne quanto tempo ficarão nesta cidade tão bonita.

11
Esse personagem imaginário aponta para o paradoxo do movimento versus a
paralisação, que envolve essa família. Migram durante gerações, percorrendo longos
caminhos, mas psiquicamente encontram-se estáticas, vítimas de uma maldição, sem
poderem seguir seu próprio desenvolvimento existencial.
A mãe, chegando a esta cidadezinha, vai desfazendo as malas, colocando em
seus novos lugares os objetos familiares, inclusive a urna contendo as cinzas de
Chitza, avó de Anouk. Inicia a montagem primorosa de uma chocolateria, onde
desenvolverá receitas mágicas de chocolates, que despertam um poder transformador
naqueles que as degustam.
Assim se delineia essa ascendência matrilinear que parte de Chitza –
guatemalteca de tribo nômade – cujo povo errava, levado pelo vento norte, de aldeia
em aldeia, aviando remédios antigos, sem nunca se estabelecer ou criar raízes. Ao
casar-se com George, boticário francês, tentou em vão constituir uma família estável.
Mas, ao soprar o vento norte, foi por ele carregada, e continuou a migrar, levando
consigo sua filha Vianne.
Mãe e filha estavam fadadas a vagar de aldeia em aldeia, aviando remédios
antigos à base de cacau, viajando com o vento, como o povo de Chitza fazia há
gerações. Mas a terceira geração, na pessoa de Anouk, filha de Vianne, já não aceita
automaticamente o legado e pede dia após dia que a história lhe seja contada, como se
buscasse compreender a teia na qual estava enredada. Então, no inverno seguinte, ao
soprar o vento norte, reluta em prosseguir o caminho e enfrenta a mãe, momento em
que as malas despencam escada abaixo, fazendo em pedaços a urna ancestral.
O legado dessas mulheres vem imbuído de uma missão: a missão de resgatar,
através do chocolate, energias telúricas inconscientes, que agem transformando as
existências, tanto coletivas como individuais. Mas essa missão as aprisionava numa
vida carente de elos afetivos estáveis e seguros com outras pessoas. Não consistia
mais no caminho de autodesenvolvimento, tanto para a mãe como para a filha. O novo
desafio delas seria o de ficar e assumir seu lugar naquela comunidade, envolvendo-se
e transformando-se com ela.
O filme Chocolat, de Lasse Hallström (Inglaterra/França, 2000), ilumina
dimensões humanas diversas como a sociocultural, representada pela aldeia onde
chegam as personagens; a familiar, incluindo a história de outras gerações; e por fim a
dinâmica emocional de cada uma: mãe e filha. Aborda, neste caminho, a possibilidade
de envolvimento e adaptação do migrante ao novo lugar-lar.

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Recorremos a imagens simbólicas coletivas para ilustrar e ampliar a questão da
migração enquanto processo não apenas social ou familiar, mas também
psicodinâmico. Partindo de tais idéias consideramos a existência de um sentido
psicológico mais profundo por trás desta jornada.

Família e processo de individuação

O desenvolvimento pessoal não consiste num processo pelo qual passamos


sozinhos. Desde que nascemos, estamos envolvidos em grupos, e a família constitui o
primeiro deles. Neste sentido, a família pode ser um ambiente fértil que favorece o
desabrochar do processo de individuação, ou uma terra seca, onde nada pode
florescer, nem pode germinar uma vida plena de humanidade.
O ser humano nasce com a finalidade de se desenvolver, amadurecer, criar e
procriar. Nas palavras de Vargas:

O ser humano necessita de humanizadores para desenvolver e estruturar


seus dinamismos arquetípicos, do contrário eles não se realizam. Esta é sempre
uma história pessoal e específica para cada ser humano, mas é coletiva a
necessidade de realizá-la. (Vargas, in Junguiana,1989, p.104)

O inconsciente coletivo, instância psíquica primordial, na teoria analítica, como já


explicamos, é constituído não por aquisições individuais, mas por um patrimônio
coletivo da humanidade. O desenvolvimento filogenético da espécie humana estaria
nele depositado. Os conteúdos do inconsciente coletivo são organizados em forma de
arquétipos, que se caracterizam por reunir as condições ou os modelos prévios da
formação psíquica em geral.
Arquétipos seriam, portanto, formas ou padrões psíquicos sem conteúdo próprio
que serviriam para organizar ou canalizar o material psicológico, como elementos
estruturais e formadores do inconsciente, dando origem tanto às fantasias individuais
quanto às mitologias de um povo; e, através de sua função organizadora,
apresentando-se ordenadamente à consciência, proporcionam seu amadurecimento.
Em seu desenvolvimento psíquico, o homem e a mulher projetam no
companheiro seus conteúdos arquetípicos inconscientes. É através dessa projeção que
tais conteúdos se diferenciam, são elaborados e amadurecem. A relação objetal
consiste no primeiro modo de aproximação entre a consciência e os conteúdos
inconscientes. Um primeiro passo no caminho da individuação.

13
Considerando que a instituição familiar propicia as primeiras relações objetais
infantis, podemos apontar a família como ambiente de fundamental importância no
desenvolvimento psíquico do ser humano. Neste âmbito familiar pode-se viver um
dinamismo arquetípico de forma cíclica e aprofundada, experiência que nenhuma outra
vivência humana pode oferecer.
Em outras palavras, podemos realizar, por exemplo, o arquétipo materno,
primeiramente enquanto filhos, depois como mães, finalmente como avós, e,
eventualmente, como bisavós. Cada um desses momentos representa uma
oportunidade para a elaboração de conteúdos referentes a esse arquétipo. E, como
nas relações familiares os vínculos afetivos encontram-se tão potencializados, estas se
tornam um meio altamente propício para a manifestação simbólica.
Procuramos compreender a relação entre a vivência familiar e o processo de
individuação. Onde o singular e o coletivo/familiar se encontram? Como poderemos
compor uma terceira via, enquanto indivíduos, entre nossas heranças arquetípicas e as
novas construções simbólicas pessoais?
Enquanto mulheres aprendemos – quando filhas – como é ser mãe. Entretanto,
quando somos mães e temos nossos filhos, reaprendemos – ou atualizamos no
momento da experiência – a ser mães diferentes das mães que tivemos, pois a
realidade cobra do indivíduo uma resposta adaptativa, e o mundo se transforma
constantemente. Conquanto sejamos mães diferentes hoje, carregamos em nossa
maternidade as heranças de nossas mães, avós, bisavós...
Essa dialética existencial exige uma condição egóica ideal, que nem sempre
está presente em todos os membros de uma família, em todos os momentos da vida e,
sobretudo, frente a todas as tragédias humanas. Enquanto seres humanos, somos
limitados em nossa capacidade de conscientização, e deixamos estar na obscuridade
do inconsciente alguns conteúdos não elaborados, frutos de traumas, de sofrimentos
ou de mera desatenção.
Sabendo que realizamos os potenciais arquetípicos em nossas vidas de relação,
e que a eles temos acesso através de nossas heranças – conscientes e inconscientes
– concluímos que especialmente os conteúdos não elaborados podem ser transmitidos
como heranças inconscientes.
Embora não possamos afirmar que membros de uma família ou de outra não
estejam envolvidos em um processo de individuação, observamos em nossa pesquisa
que alguns dinamismos arquetípicos encontram bloqueado seu acesso à realização.

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Infelizmente não caberia neste artigo a descrição pormenorizada de cada caso
estudado, de forma que comentaremos nossas constatações finais e sugerimos ao
leitor interessado que se remeta a Castro (2005).
Dentre as principais dificuldades, observamos o bloqueio do dinamismo
arquetípico da conjugalidade e o aprisionamento de um dos membros do casal à
família de origem.
Duas das famílias pesquisadas apresentaram este dinamismo. Numa delas o
novo núcleo familiar (pai/esposo, mãe/esposa, filho) continuava morando na casa dos
pais da esposa e subordinava sua dinâmica familiar à da família de origem da esposa,
sendo que o fator preponderante desta situação não envolvia uma necessidade
econômica. Observamos a existência de um trauma familiar relacionado à questão do
exílio, que permeava e bloqueava a possibilidade deste novo núcleo familiar se
diferenciar da família de origem da esposa. A partida desta filha simbolizava uma
reedição deste exílio, um dilaceramento da família.
Em outra família, que migrara do nordeste, também a esposa/mãe não
conseguira se desligar psicologicamente do lar materno, sofrendo até mesmo de
sintomas depressivos e isolando-se em casa. Percebemos a solidão decorrente da
impossibilidade da constelação da conjugalidade e a busca de apoio na religião.
Outra dificuldade observada consistiu na paralisação numa posição infantil, por
parte do filho, indicando que o arquétipo do herói não se constelou, impedindo sua
partida para a conquista do mundo dos adultos, e a construção de uma identidade
como homem. Nesta família, cuja esposa/mãe havia vivido em sua infância o trauma do
abandono paterno e em função deste o recrudescimento dos vínculos familiares (mãe-
filhos), percebemos que os filhos – já na geração seguinte – herdaram a dificuldade de
saírem para o mundo e crescerem. Este processo, em si mesmo natural e saudável,
remontava à experiência do abandono paterno. Em outras palavras, viajar ou morar
fora de casa era simbolicamente vivido como aniquilamento da família de origem.
Outras famílias por nós investigadas, mesmo outros membros de famílias que
enfrentavam alguma paralisação, parecem se beneficiar pelo movimento vital, e
migratório, apesar de muitas vezes sofrerem, ou terem sofrido no passado
transformações dolorosas as quais deixaram profundas marcas psíquicas e físicas.
Enfim, a migração – concreta ou simbolicamente vivida –, assim como o
desenvolvimento existencial, quando aceitos em sua dialética e se não estão

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associados simbolicamente a traumas como abandono, exílio ou morte, são
experimentados como processos naturais e inerentes ao ser humano.

Considerações finais

Perguntávamos “Você é daqui?”, repetidamente, às pessoas estranhas que, dia


após dia, encontrávamos nesta terra estranha – cidade para a qual migramos há cinco
anos. Tal questão simbolizou nossa busca do sentido da migração para as famílias de
migrantes.
Retomando o subtítulo de nossa dissertação – “a subjetividade de famílias
brasileiras em movimento de migração interna” – lembramos que pretendíamos
especificar a migração acontecida dentro do território brasileiro.
O interno como território demográfico e cultural da migração, no entanto,
ampliou-se para o interno com o sentido de dentro da história de vida familiar,
mergulhando no psiquismo familiar, chegando ao inconsciente, ao Si-Mesmo, ao
caminho da individuação. Retornamos, então, de forma circular, ao coletivo, na medida
em que a base deste processo individual é eminentemente arquetípica.
Famílias consistem em estruturas dinâmicas e passíveis de transformações.
Dentre as transformações às quais uma família está sujeita, podemos incluir a
migração, como um processo eliciador de alterações nos contextos espaço-temporal,
relacional e profissional, dentre outros; portanto, na identidade familiar e na identidade
de cada um dos seus membros.
Independentemente das características sociais, a migração, quando vivida
dialeticamente, envolve a busca por melhores condições de vida. O significado da
melhoria da condição de vida varia, de pessoa a pessoa, de família a família. Para
algumas representa a sobrevivência, para outras a manutenção da proximidade
familiar, ou, ao contrário, a busca de um território novo, do qual possa tomar posse.
Simbolicamente, entretanto, a família que se engaja num processo migratório
espontâneo tem em comum o inconformismo em relação ao tempo e espaço presentes.
Busca algo novo, também na dimensão psicológica. Uma transformação mobilizada
pela existência de dois pólos: o tempo/lugar de origem – o conhecido, o consciente –
versus o tempo/lugar de destino – o desconhecido, o inconsciente. Tal polarização gera
uma dinâmica e uma transcendência.
A migração, quando não é uma fuga, consiste no reflexo externo desse
dinamismo interno. Simboliza o fluir da vida, condição presente no processo de

16
individuação. Jornada na qual nos envolvemos, em busca de felicidade – no sentido de
paz, fortuna, alegria – mas no cerne da qual somos transformados de forma tão
extraordinária e profunda que dificilmente podemos expressar em termos racionais.
No processo de individuação, bem como na migração familiar, os limites
intersubjetivos são bastante relativos. Este artigo buscou ampliar o conhecimento
acerca da subjetividade da família migrante, tendo como pano de fundo a
universalidade do fenômeno inconsciente, território comum a toda a humanidade.

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Referências Bibliográficas

ALMEIDA, R. S. A significação afetiva da solidão: um estudo com migrantes na cidade de São


Paulo. São Paulo, 1997. Dissertação de mestrado em Psicologia. Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, PUC – SP.

AZEVEDO, A. A. T. M. Estrangeiros em sua própria pátria: um estudo sobre os processos


psicológicos inerentes à migração. Rio de Janeiro, 1993. Dissertação de mestrado em
Psicologia. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC – RJ.

Bíblia Sagrada traduzida da Vulgata e anotada pelo Pe. Matos Soares, reimpressa. São Paulo:
Edições Paulinas, 13a Edição, 1955.

BRASIL, A. M. R. C. “Voar é viajar, viajar é migrar, é sair da terra”. Migração como processo
finito e processo infinito. Estudo junguiano dos símbolos presentes na trajetória heróica
migrante. São Paulo, 1996. Dissertação de Doutorado em Psicologia. Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, USP.

CASTRO, Ana Laura R. A. “Você é daqui? A subjetividade de famílias brasileiras em


movimento de migração interna” Assis, 2005. Dissertação apresentada para obtenção do título
de Mestre em Psicologia, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Sociedade,
Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP.

JUNG, C. G. O Eu e o inconsciente. Tradução de Dora Ferreira da Silva. Petrópolis: Vozes,


1987. (Obras completas de C. G. Jung, V.7, t. 2).

JUNG, C. G. Memórias, Sonhos, Reflexões. Tradução de Dora Ferreira da Silva. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1975.

RAMOS, G. Vidas Secas; posfácio de Álvaro Lins, ilustrações de Aldemir Martins, 53ª ed. Rio,
São Paulo: Record,1984.

VARGAS, N. S. O casamento e a família como caminho de individuação. Junguiana – Revista


da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica.São Paulo, 1989, vol. 7, p.101-111.

WHITMONT, E. C. A busca do símbolo: conceitos básicos de psicologia analítica. Tradução de


Eliane Fittipaldi Pereira e Kátia Maria Orberg. São Paulo: Editora Cultrix, 1995.

Filmografia:

CHOCOLAT. Direção: Lasse Hallström. Produção: David Brown. Intérpretes: Juliette Binoche;
Judi Dench; Alfred Molina; Len Olin; Johnny Depp e outros. Música: Rachel Portman.
Inglaterra/França: Miramax Films, 2000. 1DVD (122 min). Baseado na novela “Chocolat”, de
Joanne Harris.

18
EMOÇÃO SOB O OLHAR DA ASTROLOGIA E DA CIÊNCIA

Tereza Kawall1

O presente artigo tem como proposta analisar o tema da emoção humana tanto
do ponto de vista da neurociência quanto do simbolismo astrológico, numa tentativa de
estabelecer uma aproximação entre as duas formas bastante distintas de
conhecimento.
Neste desafio vamos entrelaçar alguns conceitos e princípios da astrologia, um
conhecimento milenar e essencialmente simbólico, e algumas noções básicas da
neurofisiologia, que, com a tarefa de desvendar o intrincado cérebro humano com o
subsídio da alta tecnologia, tem obtido resultados surpreendentes e fascinantes nos
últimos anos.
Para esse estudo, escolhemos o símbolo da Lua astrológica, uma vez que ele
nos remete ao arquétipo do feminino, da maternidade e da memória emocional, que é o
foco de nosso interesse.
Nessa reflexão analisaremos, através de um exemplo, como uma combinação
planetária e seus símbolos podem ter uma analogia com possíveis complexos
psicológicos e como estes podem representar ou indicar predisposições ao
adoecimento. Seria esta interface possível?

Astrologia – breve histórico

A tradição astrológica é um campo de conhecimento cuja origem está


provavelmente no terceiro milênio AC, na Mesopotâmia e Caldéia, de onde se expandiu
para a China e Índia. Nessas culturas, a identificação entre o homem e as forças da
natureza era total; os primeiros calendários com os ciclos do sol e da lua datam desta
época.

1
Psicóloga e psicoterapeuta com orientação junguiana. Pós-graduação em Psicossomática Junguiana pelo FACIS
IBEHE, SP. E.mail: tekav@uol.com.br
No Egito, ela evoluiu através de grandes avanços na astronomia, com
conhecimento sobre as leis do universo e da medicina. Neste período histórico, religião,
astrologia e astronomia eram inseparáveis tanto no conceito quanto na prática.
Em sua famosa obra Tetrabiblos, Ptolomeu (100-178 DC), astrólogo e
astrônomo da Alexandria, sistematizou pela primeira vez todo o conhecimento
astrológico e astronômico da Antigüidade, relativo às posições, aos significados dos
planetas e suas influências especificas nos assuntos humanos.

Nos séculos subseqüentes, várias gerações de astrólogos expandiram,


revisaram e refinaram o sistema de Ptolomeu. Em sua forma grega,
completamente desenvolvida, a astrologia influenciou, durante quase dois mil
anos, a religião, a filosofia e a ciência da Europa pagã e posteriormente cristã.
(Grof, 2003, p.283)

O conhecimento astrológico foi aperfeiçoado pelos árabes e fazia parte do


pensamento ocidental da Idade Média. Até o século XVI era disseminado em
almanaques com previsões de plantio e colheita e em estudos de classificação
botânica. Nessa época os astrólogos eram consultores especiais dos reis e dos nobres
da corte européia.

Em várias épocas a astrologia funcionou como um mecanismo medidor


do tempo e precursor dos calendários, uma linguagem dos deuses, a base para
uma cosmologia de algumas das maiores religiões do mundo; um depositário
para a imagem projetada dos deuses; um termo sinônimo que abrangeria a
astronomia, geometria, matemática e psicologia; um primeiro diagnóstico e
ferramenta na medicina; e como mãe das artes mânticas. (Mann, 1979, p.15)

Na Renascença a astrologia recebeu um grande impulso, tendo em vista seu


caráter panteísta, que ampliava a visão humanista do mundo. Posteriormente, com as
grandes descobertas da astronomia, a repressão da Igreja católica e a expansão da
tecnologia em outros setores produtivos, a astrologia perdeu a sua força e seu pacto
inicial com a natureza foi rompido. O antagonismo entre ciência e magia, ou entre
racionalismo e esoterismo, foi se delineando de forma crescente até o final do século
XVII. Nesta época a visão de mundo passa por grandes transformações e a visão
astrológica sustentada em um contexto mais mágico e humanista foi substituído por
uma mentalidade cujo Zeitgeist estava se voltando para uma visão mais cientifica,
objetiva e mecânica da natureza.
A astrologia nesse período caiu em descrédito, transformando-se em linguagem
hermética e oculta, relegada ao rol das superstições e crendices populares.
Como um sistema esotérico, foi banida das universidades européias por volta de
1700, época em que estava nascendo o paradigma da ciência clássica, cuja visão
racionalista e mecanicista permeou todas as áreas de conhecimento nos últimos dois
séculos.
As incursões no campo da Psicologia começaram a influenciar a astrologia de
forma marcante a partir da década de 30. Essa gradual assimilação começou a tomar
forma a partir da publicação do livro A Astrologia da Personalidade, pelo conhecido
escritor, músico e astrólogo francês, Dane Rudhyar.

Só me familiarizei completamente com as idéias de Jung no verão de


1933, enquanto estava no rancho do Novo México, onde li todas as suas obras
até então traduzidas. Imediatamente me ocorreu que poderia desenvolver uma
série de conexões entre os conceitos de Jung e um tipo reformulado de
astrologia. (Rudhyar,1985, p. 12.)

A partir desta importante publicação, teve início um positivo entrelaçamento


conceitual com aproximações teóricas entre a astrologia e a Psicologia Analítica.
Rapidamente este processo começou a dar frutos e inúmeras obras surgiram,
sedimentando, anos mais tarde, o que chamamos de Astrologia Psicológica, e que
conta atualmente com renomados estudiosos na Europa e EUA.
A astrologia é uma linguagem que usa uma série de símbolos para criar uma
identificação entre o homem e o universo; é o estudo comparado entre o céu e a Terra.
Os planetas são a representação simbólica dos impulsos, necessidades e motivações
humanas, servindo como agentes catalisadores das várias funções psicológicas. Da
mesma forma que os doze signos zodiacais, são energias psíquicas ou princípios
arquetípicos presentes em toda a manifestação da vida, seja ela individual ou coletiva.

O Zodíaco era considerado pelos astrólogos e filósofos da Antigüidade


como sendo a “alma da natureza”, aquela que dá forma e ordem à vida. A
astrologia é uma linguagem de princípios universais, uma maneira de simbolizar
a unidade de cada indivíduo com fatores universais. (Arroyo, 1984, p.46)
Para Jung, os arquétipos são princípios universais, idéias estruturantes inatas ou
herdadas, a soma de todas as potencialidades latentes na psique humana, que
pertencem ao Inconsciente Coletivo.
Este é, portanto, o riquíssimo substrato psíquico, a memória de todas as
imagens arcaicas do homem. Os arquétipos são como protótipos de conjuntos
simbólicos, modelos pré-formados, ordenados e ordenadores, dotados de
extraordinário dinamismo psíquico.
A astrologia psicológica abarca estes valiosos conceitos da Psicologia Analítica,
uma vez que o arcabouço intelectual de ambas têm muitos pontos em comum. Outras
premissas teóricas abrangem os postulados de vida potencial dada a priori, o aspecto
dinâmico do inconsciente e o propósito criativo e finalista da existência, em que o
desenvolvimento individual, vale dizer, a própria vida, tem um significado.
Cito Jung numa carta ao astrólogo francês André Barbault, em 1954:

Existem muitos exemplos de notáveis analogias entre constelações


astrológicas e eventos psicológicos ou entre o horóscopo e a disposição geral do
caráter. É até mesmo possível prever até certo ponto, o efeito físico de um
trânsito astrológico. Podemos esperar, com considerável certeza, que uma
determinada situação psicológica bem definida seja acompanhada por uma
configuração astrológica análoga. A astrologia consiste de configurações
simbólicas do inconsciente coletivo, que é o assunto principal da psicologia; os
planetas são deuses, símbolos dos poderes do inconsciente. (Jung, 2002,
p.344.)

Os símbolos astrológicos, sejam eles histórias de deuses, heróis ou sobre a


origem das constelações, são projeções de imagens internas do homem, criados pelo
coração do homem para serem lançados ao céu a fim de povoá-lo de figuras, visões e
significados. Essa percepção nada mais é que a experiência especular humana, a
busca de uma ordem e significado para sua existência.
Diz Sicuteri sobre os símbolos:

Julgamos que a vida não poderia ser vivida e expressa na sua mais
íntima profundidade – mesmo inconsciente – se os símbolos não viessem em
nossa ajuda. E é com a ajuda deles que podemos traduzir em linguagem aquilo
que sentimos dentro de nós. Portanto, o símbolo é a imagem que criamos a
respeito de um conteúdo interior que transcende a consciência. No caso da
astrologia, o símbolo encerrado no Zodíaco e nos planetas é o ponto de
encontro, a soldagem dominante entre o mundo psicológico e espiritual do
homem (microcosmo) e o universo dos astros no céu (macrocosmo). (Sicuteri,
1994, p. 11)

A astrologia contém uma estrutura mitológica e arquetípica se compreendermos


que a essência dessas imagens e padrões pré-ordenados está na base de toda a
criação humana. Cada signo pressupõe uma jornada mítica e todas as imagens
simbólicas que lhe são inerentes.
Um signo não descreve só um tipo de comportamento ou personalidade; ele
contém um padrão de desenvolvimento, uma história dinâmica a ser vivida. Um tema
mitológico é também astrológico, uma vez que seus símbolos estão intimamente
entrelaçados no Inconsciente Coletivo.

Os símbolos Mitológicos e Astrológicos da Lua

Adentrando a dimensão simbólica da Lua em civilizações remotas e em


inúmeras culturas, podemos dizer que ela foi adorada e cultuada de diferentes formas,
sempre evocando o princípio materno e feminino, imagem do arquétipo da Grande
Mãe. Entendemos que a crença de que há uma conexão bastante peculiar entre a
mulher e a Lua tem sido universalmente mantida, ou, dito de outro modo, essa foi uma
experiência humana arquetípica, projetada na Lua física do céu.
Em termos mitológicos, a Lua é a representação da Grande Deusa ou Grande
Mãe, patrona da fertilidade, concepção e crescimento, tanto na vida vegetal, quanto
animal ou humana. Como Ártemis da antiga Grécia, ou Ísis do antigo Egito, ou Shakti
da cosmologia hindu, deusas mães ou divindades lunares regiam, além do ciclo anual
da vegetação, o ciclo humano do nascimento, da vida e da morte.
Diz Jung sobre o arquétipo materno:

Como todo arquétipo, o materno também possui uma variedade


incalculável de aspectos. Menciono apenas alguns (..) a própria mãe, avó (...), a
deusa, a Mãe de Deus, a Virgem, (...) a Igreja, a Universidade (...), o Céu, a
terra, a floresta, o mar, as águas quietas, o subterrâneo, a Lua. No sentido mais
restrito, o lugar do nascimento, a concepção, o jardim, a gruta, a fonte, o poço
(...) (Jung, 2000, par. 156)
O símbolo da Lua, como outros, possui uma dimensão mais universal e outra
mais individual, e todas as imagens ou narrativas a ele relacionadas são auto-retratos
da psique coletiva, o que dá ele um caráter multidimensional.
Um fator relevante no que diz respeito a essa simbologia lunar é a compreensão
deste arquétipo ou divindade com duas faces distintas. Além de mães provedoras,
tinham também seu lado sombrio, pois, com seu poder, as colheitas poderiam secar ou
as tempestades poderiam causar inundações e morte.
Esta relação pode ser compreendida a partir das variações do ciclo da lua no
céu, ora crescendo, ora minguando.
Diz Liz Greene sobre essa ambivalência lunar:

Ao jogar com as imagens evocadas por essas três fases, podemos ver
como a Lua nova, essa traiçoeira Lua negra, se associa à morte, à gestação, à
feitiçaria, e à deusa grega Hécate, regente dos nascimentos e da magia negra.
Após o escurecimento da Lua, vinha a Lua crescente, com sua virginal
delicadeza e suas promessas. Sua forma é de uma tigela aberta, pronta para
receber um conteúdo vindo de fora. A Lua crescente era relacionada com a
deusa virgem Perséfone, raptada por Hades. A Lua cheia, por outro lado, tem
uma aparência grávida; é redonda e suculenta, plena e madura, e seu parto
pode ocorrer a qualquer momento. É a Lua em seu poder máximo, associada à
deusa da fertilidade Deméter, a mãe de todos os seres vivos. (Greene, 1994,
p.6)

Esta relação misteriosa com o feminino também está presente nos contos
folclóricos, dos lobos e vampiros metamorfoseados na lua cheia, na relação com a
loucura, com rituais mágicos, na feitiçaria – todas essas fantasias e mitos relacionam-
se ao mundo lunar, o mundo noturno e obscuro das emoções humanas, sejam elas o
amor, a loucura ou a magia.
A Lua astrológica tem significados e representações análogas ao arquétipo
feminino e materno; no zodíaco ela é a regente do signo de Câncer, do elemento água;
é o significador dos relacionamentos e das emoções. Este signo ocupa a quarta casa
zodiacal, simbolizando a família, a infância, a mãe, a segurança do lar.
Como vimos anteriormente, as histórias míticas que estão relacionadas aos
arquétipos zodiacais são internas e externas, refletindo a alma de uma pessoa, seus
deuses e seu destino. Podemos apreendê-las como a jornada do herói rumo ao seu
desenvolvimento. O signo de Câncer diz respeito a esta passagem, que é a
emancipação emocional do reino da Grande Mãe, arquetípica e pessoal, para uma fase
de mais autonomia e independência.
Tomando como base o período pré-natal, entende-se que o feto, desde a sua
concepção, está sujeito às condições físicas e emocionais da mãe; assim, na vida intra-
uterina alguns dos padrões da criança já estão sendo incorporados, na medida em que
ela registra via corpo e via inconsciente o que a mãe está experimentando. Temos aqui
uma experiência arquetípica, isto é, comum a toda humanidade, pois todos nascemos
de um corpo de mulher e dele recebemos nosso primeiro alimento, seja ele o
aleitamento, a proteção, o calor físico ou o amor; o que varia é a qualidade da
experiência individual.
Assim, as primeiras experiências do bebê são marcadamente sensações
corporais; amamentação, sono, calor, frio, contato, dor, prazer, sons, imagens,
percepções, memórias que vão tecendo a base instintiva e emocional daquele ser
ainda em estado de fusão e dependência da mãe.
Os princípios arquetípicos da fase oral são os de amor, nutrição e sobrevivência.
Nessa fase, que vai do nascimento até aproximadamente os dois anos, o bebê
relaciona-se com o mundo através da boca e da atividade de sucção. O alimento, seja
ele físico ou emocional, é essencial para a base psíquica saudável ou não da criança.
Baseado em suas observações como pediatra, Winnicott estabeleceu algumas
premissas básicas a respeito do primeiro ano de vida do bebê, e quais as suas
implicações para a sua saúde mental e física.
A pedra angular da teoria winnicottiana é fundamentada na relação mãe-bebê
nos primeiros meses de vida Segundo este autor, o desenvolvimento da conquista da
autonomia é central nesta fase, pois o bebê sadio gradualmente deve sair da fase de
dependência absoluta para a fase de dependência relativa.
Diz Winnicott:

É a mãe da criança que costuma ser a pessoa mais qualificada para


desempenhar essa tarefa sumamente delicada e constante; é a pessoa mais
adequada, pois é ela que, com maior probabilidade, entregar-se-á de modo mais
natural e deliberado à causa da criação do filho. (Winnicott, 1993, p. 6)
As memórias são construídas a partir das impressões sensoriais, associadas às
qualidades destes cuidados. No início da vida da criança, há uma fusão entre ela e sua
mãe, mas aos poucos o “eu” vai se diferenciando e se cristalizando. Para que esse
processo de separação e de integração ocorra, a criança precisa de um ambiente
propiciador.
O desenvolvimento normal passa por um esquema corporal, por ele denominado
de “unidade psique-soma”. Tendo chegado ao status de indivíduo, a criança vive
firmemente estabelecida no seu corpo.
Sobre essa parceria psicossomática diz o autor:

Uma tarefa subsidiária no desenvolvimento infantil é o abrigo


psicossomático (deixando de lado, por enquanto, o intelecto). Grande parte do
cuidado físico dedicado à criança – segurá-la, manipulá-la, fisicamente, banhá-
la, alimentá-la, e assim por diante – destina-se a facilitar a obtenção, pela
criança de um psique-soma que viva e trabalhe em harmonia consigo mesmo.
(Winnicott, 1984, p. 23)

Nesse delicado processo, a criança integrada vai aprendendo a formar símbolos


que possam substituir a mãe ou outros objetos desejados. Saber esperar, tolerar,
suportar frustrações, brincar e interagir com o mundo, fazer vínculos, tudo propiciará à
criança um rico suporte existencial, que terá repercussões positivas na vida adulta, e
trará chances de se expressar no mundo de forma mais feliz e criativa.
A Lua é o símbolo arquetípico do grande registro primitivo e inconsciente das
primeiras experiências vividas pela criança em relação ao ambiente, em especial com a
mãe, nos primeiros meses de vida. A Lua representa a atmosfera psíquica absorvida
pela criança, as imagens, as sensações ou representações mentais que constituem a
sua base instintiva e a memória emocional.
A Lua/mãe não é simplesmente a pessoa que vai cuidar do seu filho e protegê-
lo, mas é, sem dúvida, o primeiro relacionamento importante na vida de qualquer
pessoa, o primeiro romance, o primeiro amor e, certamente, inesquecível. Ainda que
não lembremos deste registro de forma consciente, todas as impressões desta fase
pré-verbal estão guardadas na memória celular do corpo.
O grau e a qualidade de sintonia com a mãe, a capacidade de comunicar-se
satisfatoriamente e estabelecer vínculos significativos são parte constitutiva deste
tecido que é a nossa memória emocional, arcaica e inconsciente.

É a mãe pessoal quem primeiro vai intermediar para a criança o


arquétipo da Grande Mãe lunar, incorporando e encarnando dimensões
específicas desse arquétipo. (Greene, 1994 p. 26)

Assim, a Lua astrológica abrange inúmeros significados, pois como a matriz da


vida física e psíquica de um indivíduo, representa a sua base instintiva, as respostas
corporais e emocionais e os mecanismos de adaptação, dando a base da
personalidade do indivíduo.
De forma análoga ao nosso satélite que gira ao redor da Terra, refletindo e
modulando a luz do disco solar, também a mãe gira ao redor do bebê, refletindo como
um espelho, suas necessidades físicas e emocionais.
Essa dependência da criança em relação à mãe é a mesma que havia nos
primórdios do desenvolvimento da espécie humana. O homem primitivo dependia em
larga medida do ambiente natural para sobreviver, deveria submeter-se à natureza, a
Mãe Terra, que embora generosa, era também imprevisível e destrutiva.
Tais experiências pessoais encontram-se calcadas não apenas em uma fonte
arquetípica simbólica, mas também em um terreno fisiológico sensorial.

Sobre a natureza do arquétipo e sua base instintiva, diz Jung:

O inconsciente coletivo não é, de forma alguma, um canto obscuro da


mente, mas o poderoso depósito de experiências ancestrais acumuladas por
milhões de anos. O eco de acontecimentos pré-históricos, aos quais cada século
adiciona uma infinitesimal pequena quantidade de variação e diferenciação. Como
o inconsciente coletivo é, em ultima análise, um depósito de processos terrenos
encravados na estrutura do cérebro e do sistema nervoso simpático, ele
constitui na sua totalidade uma espécie de eterna e atemporal imagem-do-mundo
que contrabalança nossa consciente e momentânea imagem do mundo. (Jung,
1998, par. 729) (O grifo é meu)
Emoções e neurofisiologia

Nos últimos anos os neurocientistas têm demonstrado um especial e crescente


interesse pelos processos cognitivos como a percepção e a memória. Com os
modernos recursos da tecnologia já é possível ver hoje as imagens do cérebro em
plena atividade, e esse mapeamento é o que permite a confirmação e a visualização
das regiões onde se processam as emoções, o raciocínio lógico e a linguagem, entre
outras coisas.
Os cientistas estão particularmente voltados para o entendimento das bases
neurofisiológicas das emoções, ou seja, como o cérebro processa e distribui
determinadas informações, que são a base de nossa percepção da realidade, e que
dão o tom e o colorido da nossa existência. Esse conhecimento vem se sofisticando e
trazendo importantes esclarecimentos para entendermos de forma abrangente, a
influência dos estados emocionais na saúde.

Muito desse trabalho envolveu estudos sobre um tipo particular de emoção


– o medo – e a maneira como eventos ou estímulos específicos vêm, através das
experiências individuais de aprendizado, evocar este estado. Cientistas
conseguiram determinar a maneira pela qual o cérebro molda nosso modo de
forma memórias relacionadas a este evento emocional básico, porém significativo.
Chamamos este processo de “memória emocional”. (LeDoux, 2004)

O chamado cérebro emocional é a estrutura cerebral de evolução mais antiga, e


situa-se na camada mais profunda do cérebro. Ao redor desta estrutura há uma
camada mais recente, denominada de novo cérebro ou neo-cortex, o setor mais
moderno do cérebro, em termos evolutivos, que responde pelos processos cognitivos,
atenção, pensamento, linguagem e pela inibição dos instintos.
O sistema límbico, ou o cérebro antigo, está intimamente ligado ao corpo e
responde pelo nosso equilíbrio fisiológico, ou seja, pelos batimentos cardíacos, apetite,
sono, impulso sexual, respiração e pelo sistema imunológico. Esse equilíbrio dinâmico
e auto-regulador do nosso organismo é denominado homeostase, e é ele que nos
permite manter-nos vivos. Os dois cérebros funcionam em conjunto e são igualmente
importantes.
A estrutura do sistema límbico compreende o tronco cerebral, o tálamo e o
hipotálamo.
Este último está alojado bem no meio do sistema límbico, recebe sinais de todas
as partes do sistema nervoso, e possui um papel fundamental na regulação das
glândulas endócrinas, como a tiróide, a pituitária, os órgãos reprodutores, as supra-
renais, que produzem vários hormônios, e no sistema imunológico.
Cito Damásio:

A regulação endócrina, que depende de substâncias químicas liberadas


na corrente sanguínea e não de impulsos neurais, é indispensável para manter a
função metabólica e dirigir a defesa dos tecidos biológicos contra
micropredadores, como os vírus, as bactérias e os parasitas. (Damásio, 1996,
p.146)

A organização celular do cérebro límbico é bem mais simples que a estrutura do


córtex frontal. Foi ele quem garantiu, através de impulsos e comportamentos instintivos,
seja de proteção ou de luta com os predadores na natureza, a sobrevivência da
espécie humana. O sistema límbico está, portanto, relacionado também às emoções
primárias inatas, e podemos entender que todos os processos de emoção e
sentimentos da espécie humana também fazem parte desta estrutura neural.
O sistema límbico funciona junto com o sistema nervoso autônomo, SNA, numa
rede de comunicação de mão dupla formada pelo sistema nervoso simpático e pelo
sistema nervoso parassimpático, que funcionam de forma oposta e auto-reguladora.
O primeiro acelera o corpo, mais especificamente sob a emoção da raiva, medo,
ou perigo iminente: o corpo é acionado para o ataque ou fuga; a adrenalina, que é o
hormônio do stress aumenta a pressão arterial, contrai a musculatura e aumenta a
circulação sanguínea e acelera o coração.
O parassimpático tem uma função oposta, atuando como um “breque” que vai
desacelerar o corpo, gerando uma diminuição do ritmo do batimento cardíaco e da
respiração. O sistema nervoso autônomo sempre mobiliza fisiologicamente o corpo:
quando há alguma situação de stress, há uma situação de ativação fisiológica, seguida
de uma desativação, e um retorno do corpo ao estado normal.
Ao longo da vida, o cérebro vai classificando as informações recebidas e
responde a elas através do corpo, de acordo com a memória e as emoções
decorrentes ou relacionadas aos eventos anteriores. No cérebro límbico há uma
pequena estrutura chamada amígdala, que reponde pelas emoções do medo; como
uma sentinela emocional, ela rapidamente identifica sinais de perigo.
Diz Goleman a esse respeito:

... quanto mais intenso o estímulo da amígdala, mais forte o registro. As


experiências que mais nos apavoram ou emocionam na vida estão entre nossas
lembranças indeléveis. Isto significa, na verdade, que o cérebro tem dois
sistemas de memórias, um para fatos comuns e outro para os emocionalmente
carregados. (Goleman, 1995, p. 34)

Há um mecanismo cerebral que controla e classifica essas memórias mais ou


menos conscientes, chamado marcador somático, que, de uma certa maneira, aciona
mecanismos fisiológicos e emocionais, mas que pode agir de forma equivocada ou
exagerada. Esse circuito emergencial do sistema nervoso autônomo, ao se tornar
crônico ou se for demasiadamente ativado, vai gerar um desequilíbrio nos vários
sistemas corporais e alteração nos tecidos orgânicos e celulares, que acarretarão
doenças como gastrite, hipertensão, asma e enxaqueca, entre outros distúrbios.
Esses quadros associativos estão intimamente relacionados à memória, que é
uma reconstrução de uma imagem, evento ou percepção matizada anteriormente por
uma determinada emoção. A memória emocional está presente nas células corporais e
reaparece em situações de stress, tristeza, pânico, ameaças etc.
Nas palavras de Menezes:

São as emoções que modulam a cada momento a construção das redes


sinápticas cerebrais. A nossa percepção da realidade é influenciada não apenas
pela integridade do tecido nervoso, como também pelo colorido que nosso
psiquismo dá às nossas interpretações da realidade. Da mesma forma, ao
lembrarmos fatos passados, nossa reconstrução da realidade terá o colorido não
só da nossa percepção no momento em que estes fatos ocorreram, mas
também dos sentimentos que tivemos em relação a eles ao longo do tempo.
(Menezes, 2003.

Entendemos que o stress emocional ou social em si não é negativo, uma vez


que até certo ponto pode promover o desenvolvimento psicológico do indivíduo. A
leitura e a percepção distorcida dos eventos, e a atitude perante as dificuldades é que
poderão levá-lo ao adoecimento.
Na Psicologia Analítica sabemos que os complexos podem ter sua origem numa
situação dolorosa ou traumática e são dotados de alta carga emocional. Segundo Jung,
o complexo é como uma pequena psique fechada, cuja fantasia desenvolve uma
atividade própria; através de sua manifestação podemos chegar ao inconsciente.
Sobre a natureza e a origem do complexo, ele diz:

A etiologia de sua origem é muitas vezes um chamado trauma, um choque


emocional, ou coisa semelhante, que arrancou fora um pedaço da psique. (Jung,
1998 par 204).

O complexo constelado ou ativado produz uma série de alterações fisiológicas:

Não podemos esquecer que os complexos são uma espécie de tecido


interativo entre corpo e alma. Por isso não é espantoso que nos afete
corporalmente, no momento que se ativam: batimentos cardíacos, energização
excessiva, sufocamento, sonolência, letargia, insônia etc, não são raros. (Maroni,
2002, p. 113).

O complexo é também denominado personalidade autônoma ou parcial, e


mesmo “sub-personalidades”, que, funcionando como satélites psicológicos, coexistem
dentro da personalidade total. Dotado de vida própria, um complexo tem sentimentos,
impulsos e crenças específicas; é, assim, determinante na constituição psíquica
individual. Organiza-se freqüentemente em torno de um tema arquetípico central.
Ainda sobre os complexos, diz Denise Ramos:

Assim, para Jung, tanto nas neuroses quanto nas psicoses, os sintomas
de natureza somática ou psíquica originam-se nos complexos. Nas neuroses, os
complexos sofreriam alterações contínuas, enquanto nas psicoses eles seriam
fixos, impedindo o progresso da personalidade. (Ramos, 1994, p. 42).

Entendemos que a teoria do marcador somático, que dispara respostas de


stress através do corpo, encontra seu equivalente conceitual e operacional na teoria
dos complexos de Jung. Estes são ativados de forma autônoma e inconsciente,
provavelmente quando a memória emocional é ativada, causando alterações de humor
ou fisiológicas e um verdadeiro seqüestro das funções cognitivas.
O complexo constelado, um verdadeiro ponto nevrálgico na vida psicológica, e
que desencadeia sintomas e distúrbios psicossomáticos, está aqui descrito de forma
bastante precisa pelo neurocientista David Schereiber:
Imagens, pensamentos, sons, cheiros, emoções, sensações físicas,
crenças que se desenvolveram, como “estou sem saída”, estão todos estocados
em uma rede neural que tem vida própria. Imprimida no cérebro emocional e
desconectada do nosso conhecimento racional a respeito do mundo, essa rede
se torna um pacote de informação não processada e disfuncional, que pode ser
reativada à menor lembrança do trauma original. (Servan-Schereiber, 2004,
p.93).

Fica claro, assim, que os complexos são inseparáveis de estados


psicofisiológicos carregados de emoção.

Lua, emoção e adoecimento

Como vimos antes, todos os sistemas corporais conversam e trocam


informações entre si; de forma análoga, podemos dizer que os símbolos presentes no
mapa astrológico de nascimento também conversam entre si, dependendo dos
aspectos e das configurações planetárias que ali estão.
Seguindo um raciocínio analógico, a Lua astrológica tem uma função
semelhante ao sistema límbico, pois ambos, enquanto processadores e
armazenadores de informações, memórias, e respostas emocionais e instintivas,
influenciam o comportamento e o psiquismo, causando sintomas e inúmeras doenças.
Essa influência pode ser observada através daquilo que a astrologia chama de
aspectos planetários.
Os aspectos são os ângulos que estabelecem relações entre os planetas na
carta natal. Eles revelam como as várias dimensões da experiência podem ser
integradas no indivíduo, seja de uma forma mais desafiadora, ou de uma forma mais
fluente e harmoniosa. É importante ressaltar que as combinações astrológicas são
inúmeras, levando-se em consideração os vários símbolos deste corpo de
conhecimento. Outro fator relevante no que tange ao entendimento da psicologia
astrológica é a premissa a priori dos arquétipos atuando como potencialidades no
psiquismo humano.
Ainda que fatos ou eventos ocorridos tenham grande importância na
estruturação da personalidade, a astrologia psicológica afirma que todos já nascemos
com uma predisposição inata que nos leva a esperar que certas coisas aconteçam de
uma determinada forma. Isto está dado pelas configurações planetárias que existem
em estado latente na carta natal.
Astrologicamente, a imagem da mãe pessoal terá a sua particularidade
associada à posição da Lua (por signo e casa) e aos aspectos (ângulos) que ela faz
com outros planetas ou arquétipos na carta natal.
Se tomarmos como exemplo os símbolos da Lua e Saturno e suas posições em
uma determinada carta, como poderiam ser analisados num “difícil diálogo” entre eles?
Sintomas físicos e doenças psicoafetivas, possíveis complexos, teriam alguma conexão
com os princípios arquetípicos representados por estes símbolos zodiacais, quando em
determinada angulação?
Além do aspecto emocional, já bem detalhado em relação ao corpo e às
sensações, a Lua pode representar suscetibilidade ao adoecimento, quando
entendemos que a sua posição na carta responde tradicionalmente pelos chamados
órgãos de choque ou de menor resistência do organismo.
Na astrologia médica há uma estreita relação entre os signos zodiacais e
determinadas áreas e órgãos do corpo. Por exemplo, o signo de Áries está relacionado
à área da cabeça e ao cérebro; Gêmeos relaciona-se ao aparelho respiratório e aos
braços, e assim por diante.
Especificamente no corpo físico, a Lua relaciona-se ao estômago, útero, seios,
pâncreas; rege o ciclo menstrual, a gestação, amamentação e o sistema nervoso
simpático, e alguns estudiosos incluem também o sistema linfático.
No aspecto psicológico, o arquétipo de Saturno representa os valores da
responsabilidade, austeridade, restrição, inibição, autonomia, disciplina e controle,
pessimismo, melancolia, rigidez, repressão e culpa, assim como as variantes do medo,
como timidez ou pânico. No corpo físico, Saturno simboliza as estruturas mais
duráveis, como ossos, dentes e unhas; a pele que delimita o corpo, as articulações e
os processos de calcificação.
Diz Valentine sobre essa tendência saturnina:

No fundo, o contato Lua-Saturno descreve a própria mãe interior do


indivíduo, bem como sensações de rejeição emocional, privação, frustração e
isolamento, que são compensadas através de ênfase excessiva em coisas como
estrutura, rotina, disciplina, auto-suficiência e controle. (Valentine, 1994, p.73)
Quando encontramos um ângulo ou aspecto difícil entre os planetas Lua e
Saturno na carta natal, observa-se no indivíduo, de forma bastante freqüente, uma
predisposição a um padrão de isolamento, seriedade, criticismo ou frieza emocional. É
comum encontrarmos uma atmosfera psíquica emocionalmente empobrecida na
história familiar, com relatos de rejeição, ausência ou depressão materna, privação de
estímulos sensoriais ou cuidados básicos. O indivíduo tende a ter uma expectativa
subjacente de que suas necessidades básicas não serão atendidas, uma dificuldade de
relaxar ou confiar nas pessoas, vínculos frágeis, tendência ao ressentimento e a
negação dos sentimentos.
Os mecanismos de defesa ou adaptativos tendem a trabalhar por autonomia,
racionalização excessiva e auto-suficiência, que acabam por afastar os outros,
causando prejuízos na vida pessoal e mesmo social. Observa-se uma tendência pela
busca constante de relações impossíveis e frustrantes, que acabam por confirmar
aquilo que já está fadado ao sofrimento. Todas essas características dizem respeito
àquilo que comumente denominamos como um “lua saturnina”, vale dizer, matizada por
traços saturninos.
Em termos de estrutura física, o indivíduo pode ter uma tendência à rigidez
corporal, tensão, e no comportamento é comum observarmos transtornos emocionais
como fobias, pânico ou depressão. Todos esses componentes arquetípicos podem vir à
tona quando o indivíduo está sob stress ou quando o complexo se constela, neste caso
evidenciando um núcleo arquetípico materno com conotações negativas.
Segundo estudiosos, os sintomas físicos mais comuns relacionados a esses
dois símbolos são: alergias, úlceras, gastrites, artrite reumatóide, hérnias de disco,
miomas uterinos, diabetes juvenil. Disfunções alimentares, como bulimia e anorexia,
também podem surgir, associadas freqüentemente a conflitos com a imagem materna.
A ansiedade constante, o medo do abandono ou a suspeita de que a vida não é
um lugar seguro podem ser um padrão psicológico que poderá atuar como
desdobramento de comportamentos de fracasso e incertezas em várias áreas da vida.
Portanto, estruturas psíquicas e complexos podem guardar uma relação com
determinadas configurações astrológicas.
Sobre este tema encontramos:
Como todo complexo tem uma matriz universal arquetípica, é possível
que indivíduos com traços psicológicos semelhantes tenham uma estrutura
somatopsíquica arquetípica semelhante. Isto é, as semelhanças tipopatológicas
seriam reflexo de uma semelhança na disfunção ego-arquétipo, a qual, por sua
vez, tem um limite quanto ao escopo de suas representações. Portanto, os
estudos que relacionam traços de personalidade e doenças podem estar
apontando para uma certa universalidade na sincronicidade das manifestações
fisio e psicopatológicas. (Ramos, 1994, p. 116).

Vemos assim que fatores biológicos, psíquicos, circunstanciais e astrológicos


atuam de forma interdependente na construção da individualidade.

Considerações finais

Na visão de Jung, os sintomas ou doenças são a manifestação simbólica dos


complexos, e sabemos que estes têm uma base ou estrutura arquetípica. Dentro de
uma visão psicossomática, onde se observa uma interdependência de aspectos
biológicos e psicológicos, essa estrutura somato-psíquica arquetípica também pode ser
contemplada pela visão astrológica. Nesse contexto, a astrologia poderia estabelecer
aproximações e analogias que estariam inseridas nos desdobramentos que seus
símbolos permitem.
Sobre a intertradução dos símbolos, diz Fernandes:

A função dos símbolos no interior do código astrológico pode ser


transportada, mediante o recurso da analogia, para o interior de outros códigos,
ou outros conjuntos de significado. (Fernandes, 2000, p. 22)

O Zodíaco, o círculo dos doze signos, é um símbolo de totalidade e como uma


mandala representa todas as possibilidades da vida. A astrologia como uma linguagem
de princípios universais reflete o significado da palavra grega kosmos, que descreve o
mundo como um sistema inteligente, ordenado e interconectado com o movimento dos
corpos celestes.
A carta natal é uma fotografia do céu tirada no momento da nascimento de uma
pessoa. Ela reflete, através das suas configurações planetárias, no tempo e no espaço,
o “tempo qualitativo” da tradição astrológica.
Diz Jung:
Aquilo que nasce ou é criado num dado momento adquire as qualidades
deste momento. (Jung, 1984, p. 15)

Na base epistemológica da astrologia encontramos o princípio das


correspondências e o raciocínio analógico, cujo paradigma é intersistêmico, quando
afirma que o microcosmo da psique humana reflete o macrocosmo; vale dizer, o
homem e a alma universal têm a mesma natureza.
O pressuposto astrológico afirma que corpo, psique e cosmos guardam entre si
uma relação sincrônica, e seus fenômenos não seguem ou obedecem a uma relação
de causa e efeito, mas de significado.
Cito Jung ao falar sobre seu conceito de sincronicidade:

Como a psique e a matéria estão encerradas em um só e mesmo mundo,


e, além disso, se acham permanentemente em contato entre si, e em ultima
análise, se assentam em fatores transcendentes e irrepresentáveis, há, não só a
possibilidade, mas até mesmo uma certa probabilidade de que a matéria e a
psique sejam dois aspectos diferentes de uma só e mesma coisa (Jung, 1998,
par. 418)

Ainda que o conhecimento da astrologia não esteja fundamentado nos moldes


científicos cartesianos ou tradicionais, sabemos de desde a sua origem ela é
transdisciplinar, pois caminhou ao longo dos séculos e em diferentes culturas ao lado
de outras ciências, como astronomia, botânica, medicina e da própria alquimia, que
lançou as bases para a química moderna.
Nas ultimas décadas, o ciclo do paradigma cientificista e fragmentador vem
perdendo a sua força e abrindo espaço para uma nova concepção de vida e de ciência,
que considera a complexidade, a interdependência de vários fatores e a necessidade
de uma razão aberta, que não se restrinja aos princípios da lógica clássica.
Esse novo Zeitgeist, essa nova e oxigenada mentalidade e visão de mundo,
observada e reconhecida por brilhantes cientistas de várias áreas, parece ser a grande
transformação do nosso tempo. Esse espírito criativo vem permitindo uma fértil
interface dos saberes, entrelaçando ciência, espiritualidade e antigas tradições.
Diferentes níveis de realidade e formas de conhecer são possíveis, tornando esse
diálogo mais fascinante, fazendo despertar uma nova consciência e, quem sabe, novas
expressões arquetípicas.
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