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Revista Jung Corpo 6 Edição
Revista Jung Corpo 6 Edição
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Médico Psiquiatra e Analista Junguiano. Membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da
Associação Internacional de Psicologia Analítica. Criador da Psicologia Simbólica Junguiana. Educador e Historiador.
E-mail: c.byington@uol.com.br Site: www.carlosbyington.com.br
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Médico Psiquiatra e Analista Junguiano. Membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da
Associação Internacional de Psicologia Analítica. Criador da Psicologia Simbólica Junguiana. Educador e Historiador.
Por isso, a Psicologia Simbólica Junguiana, por mim conceituada, propõe que o
Arquétipo da Anima e o Arquétipo do Animus sejam bipolares, inclusive quanto ao gênero, e
que façam parte do Arquétipo da Alteridade, que articula a relação dialética do Ego e do
Outro na Consciência (Byington, 2004). Com isso quero dizer que as imagens da Anima do
homem podem ser projetadas tanto numa mulher como com num homem, o mesmo
acontecendo com o Animus da mulher, independentemente de serem homo ou
heterossexuais.
Desta maneira, podemos compreender melhor a importantíssima diferença entre a
homoafetividade e a homossexualidade, posto que a homoafetividade inclui a amizade entre
as pessoas do mesmo sexo e não necessita ser sexualizada. Com essa conceituação, é
possível também percebermos a atração e mesmo o fascínio propiciados pelos Arquétipos
da Anima ou do Animus por pessoas do mesmo sexo, que podem até mesmo gerar uma
conduta homossexual defensiva e inautêntica, que fixa e limita o desenvolvimento. Assim
sendo, concebo uma heterossexualidade normal e outra defensiva, e igualmente uma
homossexualidade normal e outra defensiva, diferenças estas de grande importância no
trabalho clínico e na caracterização teórica da normalidade e da patologia (Byington, 2006).
A bipolaridade da Anima e do Animus é muito importante também para
compreendermos duas grandes fases na transição da infância para a adolescência.
Baseado em mitos de dominância matriarcal e patriarcal, assim catalogados pela
primeira vez por Bachofen (1861), Erich Neumann (1949) descreveu o desenvolvimento
histórico da Consciência Coletiva através dos mitos de dominância do Arquétipo Matriarcal,
seguidos dos mitos de dominância do Arquétipo Patriarcal. Ao invés de Arquétipo da Grande
Mãe, prefiro a denominação de Arquétipo Matriarcal, pelo fato de este arquétipo ser também
bipolar e englobar o masculino e o feminino. A evidência desta bipolaridade está na
exuberância dos deuses da natureza, como Uranos e Cronos, que atuam ao lado das
Deusas Mães, o que impede abrangê-los sob a denominação da “Grande Mãe”.
A conceituação do Arquétipo da Alteridade pela Psicologia Simbólica Junguiana
permitiu ver que sua expressão histórica sucede a dominância patriarcal e que os principais
mitos que o expressam são o Mito do Buddha, no Oriente, e o Mito Cristão, no Ocidente
(Byington, 1983). Seguindo o que Neumann fez com o Matriarcal e o Patriarcal, e buscando
o equivalente do Arquétipo da Alteridade na personalidade individual, percebemos que ele
se torna dominante pela primeira vez na adolescência e volta a ser dominante na metanóia.
É no estudo da adolescência que vamos usufruir da compreensão da bipolaridade
do Arquétipo da Alteridade e dos Arquétipos da Anima e do Animus, que dele fazem parte.
Como descreveu Neumann em seu livro A Criança (1960), na fase matriarcal, do
nascimento aos 2 anos de idade, forma-se a identidade de gênero da criança, e na fase
patriarcal, dos 3 aos 12 anos, ocorre a socialização e a formação moral. Na transição para a
alteridade da adolescência ocorre a separação da família e a abertura para a sociedade.
Nessa transição vemos claramente duas subfases: a primeira, de homoafetividade; e a
segunda, de heteroafetividade.
A fase de homoafetividade que marca o começo da adolescência e a formação da
“patota” cria os clubes do Bolinha e da Luluzinha, que fortalecem a identidade sexual. Nesta
fase têm lugar vivências iniciáticas da identidade do homem e da mulher, que variam de
cultura para cultura. Pelo fato de as identidades homo, hétero e bissexual se definirem nessa
época, suas disfunções podem trazer fixações que confundem a identidade sexual na vida
adulta e que serão outra vez elaboradas e redefinidas na metanóia. Compreende-se, assim,
porque em bissexuais é comum a formação da família heterossexual na primeira metade da
vida e a escolha da homossexualidade na metanóia.
A homoafetividade tem a função de reforçar a identidade antes de passar à
heteroafetividade, que porá à prova a identidade de maneira muito intensa. O
reconhecimento da força estruturante da Anima e do Animus na homoafetividade é
importante porque ela explica a intensidade da formação de relações simbióticas nessa fase
e até mesmo sua exacerbação extraordinária pela constelação dos Arquétipos do Herói e da
Heroína, que podem chegar às raias da paixão, com intenso fascínio e admiração. Estas
pessoas podem buscar orientação psicopedagógica e terapêutica, e é muito importante que
elas não sejam consideradas homossexuais, pois às vezes o são e às vezes não. Há
situações em que é difícil distinguir entre uma pessoa que é homossexual e outra que entra
na homossexualidade para não perder uma amizade.
Com o desenrolar da adolescência, a Anima, o Animus e a Alteridade se constelam
ainda mais, e a heteroafetividade se intensifica. Mesmo em adolescentes homossexuais,
vemos a busca de parceiros de tipologia complementar, o que comprova a bipolaridade da
Anima e do Animus.
Estas considerações são preparatórias para compreendermos o que quero dizer
com o título da palestra ser A Alma Masculina e a Função Estruturante da Sensibilidade.
A Psicologia Simbólica Junguiana considera todas as coisas símbolos estruturantes,
e todas as funções da vida como funções estruturantes. Todos os símbolos e funções
estruturantes são arquetípicos, e por isso podemos perceber os arquétipos pelas imagens
arquetípicas (símbolos estruturantes), como descreve Jung, como também pelas funções da
vida (funções estruturantes) (Byington, 2002).
Assim sendo, a sensibilidade é uma função estruturante arquetípica. Sua
caracterização é difícil, pois, afinal, toda a matéria viva é sensível. Ao invés de buscar defini-
la por sua presença na personalidade do homem, que é o título da palestra, vamos começar
pelo seu cerceamento, por sua ausência e pelo que ela foi impedida de ser.
Podemos dizer que durante o período de aproximadamente dez milênios em que se
formou e se desenvolveu a civilização, a sensibilidade do homem foi intensamente
reprimida. Ela foi reprimida em função do papel atribuído ao homem na família e na
organização social de dominância patriarcal. Sendo o papel do homem e o da mulher
codificado em função das atividades do lar e da sociedade, e sendo as funções do lar
atribuídas à mulher, o homem permaneceu com o poder social, a competição profissional
para prover a família, o exército e a guerra. Quando definimos e criticamos o machismo, o
despotismo, a rudeza, a promiscuidade e o cafajestismo do homem patriarcal, geralmente
nos referimos ao que ele tem e exerce de forma poderosa e distorcida, e quase nunca
percebemos o que ele não tem e que sofre por não ter e, o pior, o que ele não tem e nem
pode sentir que não tem, porque, se o fizer, estará depondo contra o seu papel de homem.
É surpreendente, porém, e isto eu só fui descobrir no meu próprio processo de individuação,
que estas características que o homem patriarcal está impedido de ter e de exercer,
constituem a sua sensibilidade. Ela é tão proibida que a insensibilidade passou a fazer parte
do papel do homem patriarcal, ou seja, por mais educado e refinado que seja, ele, no fundo,
é compelido a ser insensível e casca grossa em muitos aspectos de sua vida afetiva e
profissional.
Ainda não pude lhes transmitir fenomenologicamente o que é a função estruturante
da sensibilidade do homem, pois, como estamos vendo, ela foi reprimida durante milênios.
No entanto, sabemos que a repressão nunca é absoluta, e geralmente boa parte do material
reprimido é projetado. Normalmente, projetamos nosso inconsciente para depois introjetá-lo
e formar nossa Consciência, mas projetamos também o que reprimimos para aperfeiçoar a
repressão, negando ainda mais o que estamos proibidos de integrar. É como se
disséssemos: - “Vejam, isso não pode ser de forma alguma uma qualidade minha, pois ela é,
sem dúvida, uma característica do outro”. Nesse caso, quando analisamos as projeções,
descobrimos a identidade de quem as projetou. Mas isso não é tão fácil assim, pois as
projeções se misturam com as características do seu alvo, o que dificulta muito o seu
conhecimento. Assim, aconteceu que, ultimamente, ao começarmos a descobrir a
sensibilidade do homem, passamos a examinar cuidadosamente suas projeções para
chegarmos à sua verdadeira natureza. Por esse caminho tortuoso, mas produtivo,
descobrimos as depositárias das duas grandes projeções históricas associadas à repressão
da sensibilidade do homem: a mulher e a homossexualidade. Sabemos isso porque o
homem patriarcal podia ser tudo, menos mulherzinha e gay. Mas, o que haverá de comum
entre eles que explique a sensibilidade do homem?
As funções estruturantes que a mulher exerceu na família patriarcal foram o
aconchego e o carinho para com os filhos, o acolhimento da sua vulnerabilidade e do seu
sofrimento, sua dedicação e zelo, sua ternura e delicadeza, a cultura dos sentidos do
paladar para cozinhar, as prendas domésticas para costurar e decorar a casa, a paciência e
resignação diante de situações de impotência, seu espírito de sacrifício e tantas mais, que
todos bem conhecemos.
E os homossexuais? O que é que eles têm em comum com a mulher, que o homem
patriarcal é proibido de exercer? Eles cultivam tanto o afeto e a alegria, que na sociedade
americana foram intitulados gay. Vestem-se com vaidade e de forma cuidadosa, criativa e
até chocante e espalhafatosa. Basta vermos o terno e gravata do homem patriarcal, e sua
semelhança estereotipada com a farda militar, para vermos uma diferença marcante do
mundo gay. A distância da alegria também é marcante porque o homem patriarcal é sisudo,
emburrado, e vive com raiva e cansado pelo peso da responsabilidade, devido a todo o
poder que amealhou. Some-se a isso a frustração e a inveja defensiva da imensa
sensibilidade que está proibido de ter e que observa de longe na mulher e nos gays, e nos
damos conta de que ele é assim tão sério porque é infeliz. Nesse sentido, sua gravata é a
coleira que o estrangula com as suas obrigações. É curiosamente simbólico que o homem
patriarcal, quando se permite um momento de lazer e descontração, a primeira coisa que faz
é afrouxar o nó da gravata.
O desconhecimento do que é a sensibilidade do homem ainda é tão grande que
Jung, que enfatizou tanto a bipolaridade psicológica no homem e na mulher, referiu-se
freqüentemente à Anima como a parte feminina do homem. Mas, quando procuramos a
definição de feminino no dicionário e encontramos “algo pertencente à mulher”, ficamos
frustrados, pois achávamos que descobriríamos o que era a sensibilidade do homem e
acabamos de volta à mulher. Nesse sentido, é fácil falarmos da sensibilidade do homem
quando ele sonha com uma mulher ou se apaixona por ela. Mas, se ele se veste
criativamente, gosta de cozinhar e de escrever poesia, é humilde, delicado com as pessoas,
inclusive com outros homens, tem prazer em decorar a casa e de se perfumar, dizer que isto
é coisa de mulher evade a busca do conhecimento do que é a sua sensibilidade. Não é raro
que os gays também se percam nesse caminho, pois, na hora de “saírem do armário”, como
dizem, e de assumirem quem são, freqüentemente falam com trejeitos, desmunhecam e até
rebolam, tudo com jeito de mulher. Como se, na hora de se libertarem e realmente
mostrarem sua sensibilidade como homens que são, ainda não soubessem do que ela se
trata.
Sérgio Buarque de Hollanda foi quem mais se aproximou de uma definição da
sensibilidade, quando descreveu o brasileiro como o homem cordial, ou seja, com o jeito do
coração. Aí chegamos muito perto do homem sensível. Mas então vêm aqueles que
associam o homem cordial com o sedutor, o jeitinho brasileiro, o malandro, o golpista, o
cafajeste, o promíscuo, o vagabundo, o canalha, e desaparece outra vez a sensibilidade
como função estruturante da alma masculina.
Afinal, ainda não sabemos bem o que é a sensibilidade do homem, mas estamos
cada vez mais perto de concluir que é pelo fato de não poder exercer sua sensibilidade que
o homem patriarcal não sabe amar. Senhor de um imenso poder, ele engana bem.
Apresenta-se hoje cada vez mais politicamente correto, incorporando o que soa melhor,
venha da esquerda ou da direita. Aprendendo com as reivindicações femininas tudo o que
as mulheres desejam num homem, ele está se dirigindo para perceber o caminho da
descoberta e da expressão da sua sensibilidade.
No entanto, no meio da viagem, sempre que surge a grande prova do exercício da
sensibilidade, ele vê que o território em que se encontra é uma região imensa, promissora,
mas ainda desconhecida. Ao buscar sua sensibilidade, o homem começa a descobrir o amor
e percebe que essa é a terra prometida, a terra do leite e do mel, com a qual muitos de seus
antepassados sonharam, mas que somente alguns poucos foram eleitos para lá chegar.
Eu lhes disse que um dos problemas para conhecermos o conteúdo de nossas
projeções é porque elas se misturam com a natureza do alvo sobre a qual foram projetadas.
Assim, aconteceu que o nosso viajante, ao chegar perto de sua sensibilidade, descobriu que
ele só a conhecerá mesmo no território do amor, e que essa vivência depende do encontro
da mulher, da companheira de viagem. Surpreso, ele se dá conta também que a sua
descoberta depende do amor, porque, para conhecer a sua sensibilidade, necessita que ela
a mulher também o faça. E a surpresa seguinte é que tudo o que projetara nela e que era
proibido para ele, e que ele agora começa a integrar, não completa a sensibilidade dela, pois
o que faz falta a ela estava projetado nele. Iniciativa, criatividade, poder, conhecimento,
realização, independência, auto-suficiência, auto-estima, e até superioridade estavam
projetados nele, e ela necessita também de boa parte disso para saber quem é.
Nosso homem continua sem saber como é a alma masculina, mas pelo menos ele já
sabe que ela é feita de sua sensibilidade projetada desde tempos imemoriais nas mulheres e
nos gays. Mas agora ele já está mais animado em sua busca. Ele descobriu que ela se
realiza no amor e que, por isso, ele não pode lá chegar sozinho, pois necessita da mulher
para acompanhá-lo. Descobriu também, para consolo do seu complexo de inferioridade, que
a mulher e os gays em quem depositara tudo o que não tem, também não são completos,
pois ainda não encontraram nem realizaram plenamente a sua sensibilidade, mas também a
estão buscando e descobrindo.
Concluindo, quero lhes dizer que a alma masculina depende da função estruturante
da sensibilidade tanto quanto a alma feminina, mas que cada um tem que descobri-la e
realizá-la à sua maneira. A Sombra da humanidade é muito grande e chega atualmente a
ameaçar nossa sobrevivência, mas a possibilidade de as pessoas buscarem sua alma
seguindo os caminhos de sua sensibilidade dentro do amor nos enche de esperança.
O TRABALHO CORPORAL EM PSICOTERAPIA COM IDOSAS:
Algumas Experiências num Serviço Público de Saúde
Cláudia Sampaio1
1
Psicóloga, aperfeiçoada em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde e especializada em Psicoterapia de Orientação
Junguiana Coligada a Técnicas Corporais pelo Instituto Sedes Sapientiae. E-mail: claudiamcsampaio@terra.com.br
necessidades que ali se apresentavam, ao mesmo tempo em que cuidada para não repetir
padrões de conduta opressivos, tão combatidos em sistemas mais amplos, mas também
presentes e escamoteados em pequenas redes, como aquela que se configura nas
instituições de saúde, no interior dos consultórios dos diversos especialistas, sejam eles de
assistência médica, paramédica ou social.
Guggenbühl-Craig (1978) já havia salientado a particularidade e risco da ocorrência
desse fenômeno no exercício das profissões de ajuda que ele denominou de ministério. No
que diz respeito ao exercício da psicoterapia, numa abordagem junguiana, isso ocorreria
quando o terapeuta deixasse de adotar uma atitude de abertura, tanto quanto o seu
paciente, para uma gradual assimilação dos conteúdos emergentes à consciência de ambos
que compõe a relação, o que levaria a uma estagnação nas posições polares ocupadas
inicialmente por eles, estando elas regidas pelo arquétipo curador-enfermo.
Nesses casos, o paciente permaneceria identificado com uma única polaridade do
arquétipo, com o doente, e aquele que é usuário público, possivelmente, com o portador das
deficiências, ou de todas as mazelas, eu acrescentaria.
O idoso, fazendo parte de um segmento populacional historicamente pouco
considerado e, portanto, marginalizado, torna-se ainda mais suscetível, numa relação
terapêutica, a imbricar-se nessa qualidade de relacionamento que tende a não gerar
movimento quando, consciente ou inconscientemente, o profissional mantém a assimetria.
Apenas mais recentemente essa faixa da população vem sendo alvo de
preocupações das políticas públicas, dado o crescente aumento do número de habitantes
idosos no país.
Esse fato refletiu-se no serviço onde eu trabalhava, logo na ocasião de sua
inauguração, quando uma extensa fila desses indivíduos, vindos das mais diferentes regiões
da cidade, formou-se na porta de entrada do ambulatório. Naturalmente, muitos foram
dispensados por não residirem nas imediações do serviço, previamente demarcadas para
assistência pelas políticas de saúde.
Fazia-se necessária para a equipe multidisciplinar a oferta de trabalhos que
atendessem o maior número de pacientes num período relativamente curto, sem que
evidentemente, houvesse a perda da qualidade do serviço.
No tocante às modalidades individuais de atendimento, presumi que os recursos do
método corporal, idealizados por Pethö Sándor, poderiam revelar-se como um instrumento
catalisador dos processos de psicoterapia, em virtude, principalmente, da posição
privilegiada que a relação terapêutica ocupa em seu método.
O caráter ritualístico de seus procedimentos técnicos, como a calatonia e suas
ampliações, mais conhecidas por toques sutis, somado à polaridade que se forma no
ambiente terapêutico pelo profissional da saúde mais o paciente, cria um campo de força
que propicia a constelação do arquétipo relacionado à cura. As condições originadas pela
presença desse campo leva o profissional, desde o início, a envolver-se de um modo
completamente diferente na relação; leva-o a voltar sua atenção para a emergência de
elementos que transcendem suas expectativas individuais e intenções conscientes, quer
dizer, o mantém mais sensível para a atuação de um terceiro ponto que orientaria os
processos, sendo este melhor compreendido em termos da totalidade de sua psique, ou da
de seu paciente ou, ainda, do encontro entre elas.
Qualquer trabalho terapêutico aprofundado, nessa perspectiva, tem lugar apenas
quando aquele que se propõe a “restabelecer a saúde” prontifica-se a contatar
continuadamente, e em proporções cada vez maiores, seus próprios aspectos doentios ou
desprezíveis, ao passo que, aquele que se encontra em “déficit”, se abra para recuperar
para si os elementos saudáveis, que em geral atribui à figura daquele que se propôs à
terapêutica.
A disposição interna daquele que assiste é, portanto, fundamental para que um
processo terapêutico deflagre, como também a retirada mútua de projeções, para que ele se
desenrole. No entanto, o tratamento só terá êxito se o profissional, apesar de todo o
conhecimento técnico que possui, decidir abdicar do suposto controle que intenciona ter
sobre o processo e conseqüentemente sobre o paciente e deixar-se influenciar mais pelo
conjunto de imagens, oriundas daquele ponto intermediário, que sempre agirá para os dois e
conterá a finalidade do encontro.
Numa instituição, o que se observa com mais frequência é que nem sempre o
profissional da saúde está disposto a assumir e lidar com suas vulnerabilidades no contexto
terapêutico, muito menos receptivo ou confiante na possibilidade de que aquele outro que
lhe solicita ajuda, proveniente às vezes de uma classe social desfavorecida, poderá também
transformá-lo, mediante o encontro que se dará. Nesses casos, torna-se mais conveniente
para ele atribuir o pouco aproveitamento da terapêutica pelo paciente às diferenças
socioculturais existentes entre eles ou, ainda, à fragil aderência daquele ao tratamento,
situações possíveis, porém alegadas em demasia nos serviços públicos.
Na experiência que obtive com os pacientes idosos, notei que muitos que chegavam
para ser atendidos pelo setor de psicologia já haviam passado por diversas especialidades
médicas, ou ainda iriam passar.
Além do geriatra, muitos ainda iriam consultar o cardiologista, o neurologista, o
otorrinolaringologista, o endocrinologista, o psiquiatra, para conhecerem a causa e o
tratamento de sintomas como palpitações no peito, oscilações freqüentes na pressão
arterial, dores de cabeça, falhas de memória, zumbidos no ouvido, queimação no estômago,
distúrbios do sono e tantos outros sintomas, inclusive os de labilidade vegetativa.
Dessa maneira, não raro, observava o longo percurso que faziam dentro do serviço
de saúde, obtendo de cada especialidade um veredicto sobre seu corpo e um medicamento
correspondente ao mesmo. Embora o serviço seguisse o preceito de integralidade nas
ações prestadas, mantinha o corpo do idoso “despedaçado”. O sentido das diversas
disfunções do corpo e do todo, para ele permanecia, apesar disso, desconhecido.
No âmbito das terapêuticas, várias pareciam ser as situações que não contribuíam
para a constelação daquilo que, em linguagem junguiana, também chamamos de imagem
arquetípica do médico ferido. O idoso parecia estar privado dessa qualidade de experiência,
ou pela grande especialização dos profissionais das diversas áreas pelas quais passava,
que conheciam muito uma pequena parte, mas muito pouco de sua totalidade, ou pelo ritmo
acelerado de atendimento, característico de toda a rede pública ou, ainda, – por que não
afirmar nesses termos? – pela própria vaidade dos “doutores”, que tentam permanecer
imunes à pobreza, à ignorância, à doença e à velhice.
Oito dias antes de comparecer à entrevista Sra. Antônia teve forte mal-estar. Sentiu
angústia acompanhada de tremores, tonturas e adormecimento dos lábios. Teve sensação
de que iria morrer. Desesperou-se e atravessou na frente de carros que passavam pela rua.
Dona A. começou a terapia dando ênfase à sintomatologia corporal. Mantinha-se
cabisbaixa e apresentava bastante ansiedade, enumerando diversos medos, alguns
inespecíficos. Havia presença de comportamentos fóbicos, esquecimentos freqüentes e
presença eventual de gagueira.
Desde o momento inicial, revelava o esforço que vinha fazendo a fim de manter-se
alheia a respeito de conteúdos da sombra que tentavam emergir.
Trazia queixas de dificuldades de relacionamento conjugal e se sentia impossibilitada
de tomar qualquer iniciativa. Devido ao fato de o marido estar com idade avançada e fazer
hemodiálise, percebia que necessitava de cuidados especiais, pelos quais só ela podia se
responsabilizar.
Estava inapetente e sem conseguir andar sozinha pelas ruas, solicitando
freqüentemente que a filha a acompanhasse.
Sempre fora frequentadora assídua dos cultos religiosos da igreja, mas não estava
conseguindo permanecer nos mesmos. Vinha observando, com perplexidade, que as
recomendações que os “irmãos” da igreja davam não eram compatíveis com suas atitudes.
Começou a revelar situações de humilhação às quais se submetia na relação com o
marido. Esta era marcada por ofensas contínuas e raramente Sra. A. procurava se defender.
Vinha tendo sonhos nos quais vivia uma espécie de perseguição. Nessas ocasiões acordava
assustada e permanecia agitada. Alguém parecia “bulir” em sua cabeça.
A esta altura introduzi o primeiro trabalho corporal: a compressão fracionada2.
Sra. Antônia expôs em atendimentos subseqüentes sua angústia. Não conseguia
resolver as tarefas às quais se propunha e se sentia em uma espécie de labirinto. Tinha
vontade de sair andando, de ir para um lugar aonde não tivesse perturbações. Expressou o
quanto sempre procurou manter as situações sob controle, fazendo tudo “certinho”.
Mencionou ter pensado em morrer para se livrar de tais tormentos.
Miranda (2000) refere que tanto as mandalas como o labirinto são objetos e temas
simbólicos para meditação. O labirinto, para ele, conduz ao interior de cada um, para uma
espécie de santuário sagrado, no qual toma assento a dimensão mais misteriosa da pessoa
2
Esta é uma forma de estimulação tátil suave, que consiste em uma aproximação rítmica e gradual em direção à pele. A
descrição detalhada da aplicação da técnica, bem como de outros procedimentos de intervenção corporal designados neste
texto como toque sutil, encontram-se ilustrados no trabalho de Suzana Delmanto (1997).
humana. Traz à lembrança o concentrar-se sobre si mesmo, através dos milhares de
caminhos das sensações, das emoções, das idéias. Tudo de que Sra. A. queria esquivar-se.
O labirinto no corpo, vinculado aos ouvidos, estaria relacionado à necessidade de
escuta. As dificuldades de verbalização, de emissão da palavra, como apresentada pela
paciente, estavam ligadas a uma dificuldade física de escuta e de receptividade, conforme
foi se evidenciando ao longo do processo.
Abordamos o movimento unilateral que realizava em seus relacionamentos, nos quais
procurava sempre ofertar e dar de si para outros. Ressentia-se por não obter
reciprocamente o que dava, mas também não se prontificava a receber.
De um modo mais explícito começou a aparecer as recriminações que a Sra. A. se
auto-impunha e que, anteriormente, considerava provenientes exclusivamente de terceiros.
Introduzi na sequência outra intervenção corporal: toque sutil no esterno.
Sra. A. obteve sensação de leveza corporal e trouxe conteúdos de qualidade
diametralmente opostas à vivência observada corporalmente, carregados de destrutividade.
Ocorreu-lhe pensamentos de morte. Sentiu medo de morrer e de ficar louca; por outro
lado, questionou por que deveria sobreviver. Fez referências sobre a presença de outros
pensamentos que surgiam e a denegriam.
O marido parecia-lhe bom quando questionava-a sobre seu estado de saúde, era
comum, porém, que em seguida a culpasse por seu adoecimento. Sra. A. nunca se sentira à
vontade em sua casa: era como se lá não houvesse criado raízes e o marido contribuía
negativamente para a exacerbação de sua autocrítica que, conforme descobrimos, era
bastante severa.
Realizamos pouco depois deste atendimento toques sutis que incluiram: toques na
clavícula, ombros, cabeça e o trabalho foi finalizado com um estiramento das pernas.
Dona A. obteve relaxamento por todo o corpo e sensação de cuidados maternos, que
lhe parecia nunca ter experimentado. Trouxe queixas relacionadas a um mal-estar que
sentia quando presenciava as repreensões que sua neta sofria de seus pais e lembranças
sobre uma cirurgia que havia realizado anos atrás e que resultou na retirada de seu útero.
Segundo dados que havia fornecido em entrevista, aos 4 anos foi dada por sua mãe
para ser criada por outra mulher, que por longo tempo na infância lhe bateu. Nesse
momento da terapia parecia que recuperava vivências de rejeição na infância e
experimentava novamente as dores da época através de um movimento de identificação
projetiva na neta.
A lembrança da cirurgia mostrou-se significativa, pois, do ponto de vista simbólico, o
útero vem a ser a matriz do ser. De acordo com Penna (1989), passamos 9 meses
embalados no líqüido amniótico e, por esse motivo, geralmente as pessoas projetam
conteúdos ligados às origens, aos instintos e aos aspectos mais inconscientes nesta região
do corpo.
O útero é o lugar onde o embrião é matriciado e desenvolvido. Miranda (2000) lembra
que desenvolver é o oposto de envolver e quem se des-envolve, livra-se de envolvimentos e
matrizes, contando com aqueles que em sua origem foram aprisionantes ou esterilizantes.
Para ele, o processo de individuação indica que cada um deve buscar seu verdadeiro lugar
na vida, rompendo com envolvimentos que limitam e confundem. As marcas da sujeição
parental podem ser terríveis e a saída está no centro, no centrar-se.
Dona A. manifestava-se negativista quanto à melhora de seu quadro. Apresentava
inquietação, dores de cabeça e tonturas. O marido permanecia fazendo reclamações
excessivas e mostrava-se muito intolerante com o fato de ela não melhorar. Ela traz um
sonho:
Sra. A. e mais algumas pessoas, dentre elas uma mulher vestida de noiva,
tentavam atravessar um rio. Sabia que teria que fazer a travessia antes que ele se
abrisse. Não houve tempo suficiente: o rio se abriu e a levou com sangue.
Seu sonho parecia revelar que não estava conseguindo, através de seus sucessivos
casamentos, que adquiriram qualidades emocionais violentas, efetuar as transformações
que necessitava em si mesma. No sonho recuava diante da travessia, e na vida diante dos
desafios – de modo muito parecido com aquele recuo do herói mitológico diante da ponte
de espada afiada – que percebe não ter havido tempo suficiente para se preparar e
alcançar o seu intento.
As uniões da Sra. A. eram repetições das histórias de negligência e maus tratos
vividas na infância. Seus casamentos foram tentativas de fuga de uma situação que
inconscientemente reiterava. No primeiro casamento uniu-se a um homem negligente para
livrar-se dos maus tratos físicos que sofria da mãe de criação e, no segundo, uniu-se a um
homem que lhe causava maus tratos morais para evitar uma suposta dependência
financeira que poderia vir a ter da mãe biológica que a negligenciou quando a deu para
adoção.
Sra. A. passou a expor de um modo mais explícito a rejeição que sofreu da mãe.
Apenas neste momento pode entrar em contato com toda a dor do abandono.
Lembrou-se de que o pai havia se manifestado contra a adoção, mas essa memória,
como a referente ao convívio harmonioso com o padrasto, que havia mencionado na
entrevista, parecia estar dissociada do afeto correspondente, pois ambas não lhe serviam de
alento. Quando, por exemplo, falei sobre a participação positiva das figuras paternas em sua
vida, mais uma vez foi a polaridade negativa da experiência que se sobrepôs e Sra. A. se
sentiu punida, pois cedo o pai biológico e o de criação haviam morrido.
De modo surpreendente para dona A., na sessão subseqüente trouxe mais um
sonho, que causou-lhe forte impacto e deu nova direção ao processo:
O pai (biológico) dizia para parar de sofrer e perdoar a mãe. Ele também lhe
transmitia o quanto lhe queria bem.
Sra. Emília veio para o setor de psicologia porque se sentia facilmente irritável.
Estava em acompanhamento farmacológico de epilepsia e buscava alívio para alguns
sintomas que, acompanhados ou não dos ataques, causavam-lhe importante mal-estar,
como era o caso das parestesias. Segundo seus relatos, a manifestação dos formigamentos
de mãos e pés e a sensação de intumescimento da região da boca vinham causando-lhe
angústia e por vezes tinha a impressão de que estava prestes a morrer.
Sra. E., quando falava sobre seu padecimento, descrevia com detalhes os sintomas
corporais, e quando falava sobre sua vida emocional usava termos vagos ou mantinha-se
lacônica, como se esta não tivesse importância.
Queixava-se de cansaço, falta de atenção e esquecimentos freqüentes. Sentia ainda
“peso” na cabeça. Fizemos nos primeiros atendimentos trabalhos de conscientização
corporal3. Introduzi também, nos momentos iniciais, uma sequência de toques na cabeça4 .
Mencionou conflitos com as filhas, lembrou ter sofrido agressão de um de seus
genros e concluiu que sempre havia trabalhado para os outros, como se tivesse anulado a si
3
Para a realização destes adotei os procedimentos descritos no trabalho de Rosa M. Farah (1995), denominado de “o
carimbo” - exercício de relaxamento.
4
Este tipo de estimulação tátil suave consta em Suzana Delmanto (1997) sob a designação de pontuação no couro cabeludo
acompanhada de imagem mental.
Via pessoas tomando banho num tanque com água suja. Havia crianças,
adolescentes e senhoras. Elas também brincavam.
Mencionou, ainda surpresa com a ocorrência do sonho, que “estava tudo preto em
sua mente” e sentia que começava a melhorar.
Parecia haver uma analogia entre a água suja do sonho e sua percepção de ter
estado com a mente escura, esquecida, alheia. As diversas etapas de sua vida simbolizadas
pelas três gerações no sonho estavam sendo regeneradas pela água, talvez re-significadas
mediante a terapia, que trazia como conseqüência um estado de soltura e alegria,
sensações associadas por ela à imagem do sonho.
Começou a andar sem calçados dentro de casa e percebia uma melhora no equilíbrio
do corpo. Comentou também que começava a sentir os pés.
Em seqüência trouxe conteúdos relativos a conflitos familiares, nos quais voltava a
adotar a familiar posição do “tô nem aí com isso”, seu já conhecido mecanismo defensivo.
Sobre isso conversamos, e também demos continuidade ao trabalho com pés e pernas.
5
Dychtwald (1984) define esse termo como sendo a qualidade do contato que a pessoa estabelece com a terra e com sua
força gravitacional através das pernas e dos pés e que resultam em graus diversos de obtenção de apoio e estabilidade a
partir da mesma. Haveria, para ele, uma correspondência do modo como o corpo da pessoa se relaciona com essa força e
com seu próprio senso de estabilidade psicológica.
5
A descrição pormenorizada da execução desses trabalhos constam na apostila de Técnicas de Abordagem Corporal
elaborada por Marilena Dreyfuss Armando e Luísa de Oliveira.
Dona Emília passou a comentar que se sentia menos irritada e impulsiva. Meses
atrás, quando as defesas falhavam, atirava o que tinha em mãos. Isso ocorria especialmente
quando não compreendia algo. Chegou a afirmar metaforicamente que estava colocando os
pés no chão com as orientações que vinha obtendo.
Ocorreu-me que poderia propor toques em outra região, num local onde houvesse
correspondências simbólicas com o que emergia em sua consciência. Propus então um
trabalho com toques sutis na coluna. Para Leloup (1998), a coluna vertebral relaciona-se
com o arquétipo do pai, com a autoridade, a estrutura, a orientação, o eixo.
Com essa intervenção surgiram memórias de ter sofrido pancadas acidentais em
suas costas, o que deu margem a dúvidas se tais episódios não constituíam situações de
violência doméstica, pois não foi possível explorá-los.
Como Sra. E. vinha oscilando entre momentos de tomada de pequenas iniciativas e
outros de desmotivação, realizamos um trabalho mais ativo e revigorante, como a
movimentação com todas as articulações do corpo. Observou a partir dele ter tirado grande
“peso” das costas e trouxe comentários de que à noite sua cabeça dormia, mas o corpo não.
Um sonho emerge e mostra a permanência de seu movimento de esquiva:
O rosto do marido olhava-a fixamente. Este era muito grande, parecia com a lua.
Ela (Emília) se escondia e ele continuava a olhá-la atentamente.
Estava andando a cavalo e perdia-se com frequência. A filha estava em outro cavalo e
a ajudava a se encontrar.
Ao fazer associações com as imagens lembrou-se de que a única vez em que andou
a cavalo, sofreu uma queda. Isso ocorreu na ocasião do casamento do irmão, quando foi
responsável por assinar documentos referentes ao mesmo, pois as pessoas presentes não
sabiam ler nem escrever. A partir disso ficou com medo de andar novamente a cavalo.
Para Mindell (1989), sonhos sobre cavalos, veículos de locomoção, referem-se à
máquina na qual estamos inseridos. É um símbolo do corpo em geral, do portador não
consciente do espírito e do corpo sutil.
Seu sonho parecia revelar que vinha alcançando um equilíbrio maior, um governo
maior dos instintos, pois permanecia em cima do cavalo no sonho; no entanto, ainda
precisava de ajuda para encontrar a direção certa. O medo, possivelmente de guiar a própria
vida, aparecia mais uma vez. Agora, porém, não podia se eximir da responsabilidade de
suas escolhas, pois, embora estivesse sendo ajudada a encontrar a direção, a realizar a
leitura de seu corpo-inconsciente, apenas ela podia escrever ou assinar, ou seja, ser a
autora de suas ações.
Nos encontros que se seguiram começou a expressar mais suas vontades, já como
resultado da consciência da vida que lhe faltava.
Tivemos mais dois encontros não consecutivos, nos quais voltamos a trabalhar o
grouding. Observou uma melhora importante no caminhar e estava andando descalça pela
casa. Mostrou-se muito satisfeita por ter voltado a fazer compras para abastecer seu
comércio.
Até finalizarmos a terapia a Sra. E. realizou três viagens, sendo que em uma delas
esteve na companhia de vizinhos, com os quais tinha pouco contato anteriormente. As dores
de cabeça estavam menos freqüentes, estava mais atenta e menos esquecida.
Assim que começamos a nos preparar para o desligamento trouxe seu último sonho:
“Sonhei que estava em meio a água limpa”. Havia nítidos paralelos entre a água suja do
primeiro sonho e a sua visão turva, sombria, desacordada, esquecida. A Sra. E. afirmou que
estava mais tolerante consigo quando não entendia algo; por outro lado, sua compreensão
sobre as coisas de um modo geral havia melhorado. Considerou que estivera cega e sua
mente começava a voltar. Mindell (1989) observa o aparecimento do simbolismo da água
nos processos de psicoterapia como a expressão da fluidez. Para ele, a água é
medicamento contra o enrijecimento da intuição, da mobilidade física e do sentimento.
Considerações Finais
Dona Antônia e Dona Emília foram duas entre muitas outras senhoras que
acompanhei intimamente em psicoterapia. Em muitas delas observei um elemento comum,
que caracterizava a base do sofrimento psicofísico pelo qual passavam. Elas apresentavam
profundas feridas em suas relações primárias, tendo sido muito pouco acolhidas pelas
figuras parentais ou por quem as substituiu. Haviam chegado numa idade mais avançada e
desenvolvido, de modo insuficiente, suas potencialidades, tendo permanecido presas nos
complexos materno e paterno.
Nos momentos iniciais, a postura cabisbaixa da Sra. Antônia e a aparente indiferença
da Sra. Emília quanto ao desenvolvimento da psicoterapia revelaram, mais tarde, o medo
que tinham de confiar, de se entregar e de receber.
Muitas tiveram dificuldades de sobrevivência em tenra infância, outras sofreram maus
tratos e, cada uma a seu modo, com os recursos que contavam na época, procurou uma
maneira de lidar com elas. Na velhice, em consequência dos conflitos arrastados por toda a
vida adulta, elas adormeciam, se esqueciam, fugiam ou não enxergavam, a fim de
manterem o parco equilíbrio diante das maiores adversidades.
Por esse motivo, muitos de seus desejos e vontades estavam encobertos e inaudíveis
quando iniciaram o processo terapêutico. Baseadas em suas origens, cultivavam a crença
de que estes não encontrariam possibilidades de serem atendidos.
Ao iniciarem a psicoterapia os sintomas que essas idosas apresentavam davam-lhes
a sensação de proximidade de morte. Na realidade, esta relacionava-se a seu aspecto
simbólico, isto é, ao potencial transformador que eles engendravam. Elas temiam, em última
análise, o novo, pois haviam sido muito pouco incentivadas e apoiadas a realizar mudanças
e conquistas.
Havia certa homogeneidade quanto à manifestação de seus comportamentos: estes
se apresentavam rígidos. Talvez até por esse motivo o símbolo mais presente no processo
terapêutico de algumas delas tenha sido a água.
A esse respeito Mindell (1989) já havia feito algumas considerações. Disse que a
água, sendo um agente curador, “cura doenças” caracterizadas pela rigidez. A existência do
complexo enrijece a consciência e este enrijecimento rodeia as fortes emoções relacionadas
com o âmago do complexo.
Isso confirmou-se na medida em que custaram para entrar em contato com as
emoções mais intensas relacionadas com a dor do abandono e da rejeição que haviam
vivido. Possivelmente, em virtude disso, mantinham-se defendidas frente à dependência e à
necessidade do outro e se identificavam unilateralmente com as doadoras.
A introdução dos toques sutis favoreceu a emergência de sentimentos de raiva e de
culpa, que as impossibilitavam de julgar a si mesmas dignas de oportunidades e de efetuar
escolhas, e que as privavam de se tornar menos suscetíveis às opiniões da coletividade,
como também menos conduzidas por ela.
A eclosão de tais sentimentos permitiu a elas que não apenas iniciassem a
elaboração dos mesmos, mas também que isso as levasse a se reconciliar com suas
origens, quer dizer, que adquirissem um pouco mais de consciência quanto a seus reais
propósitos, independentemente dos desígnios parentais, pois tiveram alguns interesses e
desejos despertados.
O trabalho corporal também facilitou a introspecção e a lembrança de sonhos. Elas
rememoraram, mediante sonhos e imagens hipnagógicas, experiências positivas nas
relações paternas. Houve ocasiões nas quais emergiu não propriamente a lembrança do pai,
mas figuras ou imagens que representavam uma autoridade interna que não fora
meramente introjetada, mas que dizia respeito às suas motivações genuínas.
Estas conferiram às idosas a sensação de encorajamento e de incentivo, sendo que
se sentiram mais capacitadas a tomar decisões e a estabelecer limites.
Durante o período em que estive atendendo essas senhoras minhas feridas também
foram tocadas por elas e tive sonhos nos quais surgiram imagens, cujos símbolos revelaram
similaridades com os dela.
Sonhos com carros que não conseguia guiar apareceram em várias ocasiões e
indicaram que eu não estava conseguindo manter o antigo controle rígido sobre as coisas.
Uma mudança fazia-se necessária, o que sugeriu a imagem de um outro sonho muito
significativo.
Neste eu preparava arroz e me desesperava quando via excrementos brotando do
fundo da panela. Eu tentava afundá-los quando vinham para a superfície, com a intenção de
suprimi-los, mas eles retornavam. Em seguida, começaram a compor, na forma de
pequenos pontos negros, variadas e belas imagens simétricas com os pontos brancos,
grãos do arroz. A imagem adquiria movimento e lembrava um caleidoscópio, que, por sua
vez, me remeteu, em vigília, à idéia da mandala e do labirinto, como apresentada por Dona
Antônia.
Entendi, a partir desses sonhos, que a vida estava exigindo que eu agisse com
inteireza, quer dizer, com maior autenticidade, o que seria possível se de fato incorporasse
tudo aquilo que estava relutando em aceitar e abominando em mim mesma; só assim
poderia readquirir o controle sobre minha vida sem tanta rigidez e com mais criatividade.
Com todas as faltas e carências que essas mulheres apresentavam elas também me
transformaram. Após o término da psicoterapia e de meu desligamento da instituição, o
simbolismo das águas também veio rondar meus sonhos das mais diferentes maneiras.
Simbolizando o reservatório de todas as possibilidades de existência, o contato com as
águas comporta sempre uma regeneração. Tudo indica que essa foi possível para todas
nós, mas antes pelo contato que estabelecemos, não com as águas, mas, de um modo
significativo, entre nós mesmas.
Referências Bibliográficas
1
Psicóloga Clínica, especialista em Psicoterapia Junguiana Coligada a Técnicas Corporais, pelo Instituto Sedes
Sapientiae. Especialista em Experiência Somática. E-mail: angelammf@ajato.com.br
Jung, E. (1931) descreve que o homem, que sempre foi valorizado pela
sociedade e viveu um papel de dominância sobre a mulher, ao ter que se confrontar
com sua Anima, terá que descer de seu pedestal, superar seu orgulho e,
humildemente, olhar para ela e com ela e se relacionar. A mulher, que sempre
esteve numa posição de obediência em relação ao homem e ao Animus, terá que
superar sua falta de confiança para conseguir "olhar" para o Animus com igualdade,
caso contrário só aumentará o poder dele sobre ela.
De acordo com Jung, C.G. (1987 [1916]), as funções da Anima e do Animus,
quando não são conscientizadas, funcionam como complexos autônomos,
comportando-se como personalidades independentes; porém, quando integradas à
consciência, podem ser convertidas em pontes para o inconsciente (psicopompo).
Sendo assim, a mulher, que esteve tanto tempo submetida a essa enorme
força do patriarcado, terá a árdua tarefa de travar uma luta interna diária em busca
do desenvolvimento de sua personalidade. Como o homem passou séculos
massacrando o feminino, ela foi internalizando um masculino destrutivo, opressor e
castrador e, uma vez internalizados esses conceitos, ela mesma assume a tarefa de
se autodesvalorizar.
Na opinião de Emma Jung (1931), se a mulher vive sob uma grande influência
do Animus, seu feminino pode estar sendo negligenciado, e um importante passo
para interromper essa dinâmica é retirar a projeção do outro e lidar com ela
internamente, reconhecendo e depois diferenciando-a de si mesma.
Cavenaghi (1999), em sua pesquisa sobre os séculos de opressão do
feminino, fornece dados que mostram que, desde 1790, a mulher vem percorrendo
um longo caminho para conquistar seu direito a voto, instrução, práticas
anticoncepcionais, trabalho, divórcio, aborto (em alguns países) e igualdade de
todos os direitos.
Essa autora aponta para o fato de o direito à cultura e instrução só ter sido
concedido às brasileiras em 1879, mas, ainda, com discriminação e desaprovação, e
somente em 1932 receberam o direito de voto.
Por isso, quando, muito tempo depois, foi autorizado o acesso da mulher ao
conhecimento, a vontade já se encontrava atrofiada e o sentimento de fraqueza e de
incapacidade já haviam sido incorporados.
Além disso, podemos considerar que, quando não desenvolvemos nosso
potencial, ficamos em dívida com nós mesmos, o que pode resultar em problemas
psicossomáticos, alteração de humor, depressões ou problemas de relacionamento.
Cavalcanti (1993) nos conta que o mito que melhor representa o jeito
patriarcal de pensar é o de Adão e Eva, onde Adão é considerado a imagem de
Deus e Eva nasce depois, num segundo momento, de sua costela, sem qualquer
ligação com o divino.
Evidentemente, esse tipo de interpretação do mito teve a clara intenção de
colocar a mulher em segundo plano, mostrando sua suposta inferioridade, com o
objetivo de garantir sua submissão, pois, segundo Sicuteri (1985), o primeiro capítulo
do Gênesis fala de como homem e mulher foram criados, juntos, à semelhança de
Deus, estando ambos ligados à divindade e, segundo ele, a primeira mulher a ser
criada foi Lilith. Só no segundo capítulo é que será encontrada a outra versão da
história, na qual Eva nasce da costela de Adão.
O autor acrescenta que Lilith não aceitava as coisas de uma forma passiva,
questionando Adão sobre a preferência dele, durante o ato sexual, pela posição
tradicional, na qual o homem fica por cima e a mulher por baixo. Ela pede para
inverter as posições e, diante da recusa e imposição de seu parceiro, Lilith
abandona Adão. Após esse episódio é que Eva é criada, numa versão que se
“encaixa” melhor dentro dos padrões religiosos e sociais.
Segundo Cavalcanti (1993), não sendo divina, a mulher, considerada
imperfeita, está mais suscetível ao pecado e perde o paraíso, sucumbindo à
tentação da serpente, ficando clara a necessidade de ser controlada por sua
fraqueza.
Considerada fraca e pecadora fica difícil reconhecer que, na verdade, Eva
teve grande importância para o desenvolvimento da humanidade.
A transgressão de comer o fruto proibido leva a humanidade à tomada de
consciência entre as diferenças do masculino e do feminino e, portanto, à
transformação, ao verdadeiro reconhecimento entre homem e mulher.
Com o feminino tão oprimido, o masculino passa a ser supervalorizado
também pelas mulheres e muitas projeções acabam acontecendo de forma
deturpada.
Segundo Whitmont (1995), a projeção faz com que se enxergue no outro
aquilo que está no inconsciente. O outro passa a ser possuidor dos defeitos,
dificuldades, maldades e, também, das virtudes, seguranças e sabedorias de quem
projeta. É muito comum que uma pessoa sem noção de seu potencial considere
outras como detentoras de desenvolvimento, conhecimento, confiança etc e, se a
força está toda no outro, a pessoa deixa de reconhecê-la em si mesma e fica
suscetível tanto às críticas externas como internas.
Segundo Wehr (1998), é de grande importância que a mulher reconheça que
a voz interior que lhe diz que não é capaz, que não consegue, que não sabe, é uma
internalização da visão que a sociedade patriarcal tem sobre ela, e não uma
realidade ou algo que pertence à sua essência. De tanto ser desvalorizada, a mulher
acabou por incorporar aspectos negativos em sua psique que, por sua vez, ao não
serem elaborados, ajudaram na formação de um Animus negativo.
A autora propõe, inclusive, mudar a nomenclatura desse aspecto do Animus
transformado em negativo (autodesvalorização) para opressão internalizada.
A religião judaica, por exemplo, deixa claro que seu Deus e seus profetas são
homens e o feminino, mais uma vez, é relegado à sombra, ao inferior,
completamente sem poder. Além disso, costuma considerar que a mulher está
impura quando menstruada, e, por isso, não pode ser tocada antes de passar por
um ritual de purificação.
Segundo Cavalcanti (1993), esse jeito de pensar faz com que a sexualidade
da mulher também seja vista como perigosa e a única qualidade aceita é a de
mulher casta, que não seja capaz de despertar desejos nos homens.
O feminino ficou inferiorizado e a mulher foi proibida de estudar, participar da
política e vida religiosa, ficando, assim, afastada do conhecimento, que lhe garantiria
algum poder e também a possibilidade de se desenvolver intelectual, cultural e
socialmente.
“O estado de indiferenciação psíquica facilita o exercício do poder. Essa é a
técnica mais antiga de dominação conhecida. O uso do poder pela proibição do
conhecimento impede a reflexão e a contestação do que está estabelecido.”
(Cavalcanti, 1993, p. 100)
Sendo assim, a mulher, tão cerceada de participar daquilo que estava
acontecendo em sua volta, acaba ficando imobilizada, paralisada, sem ter como
reagir, precisando cada vez mais do homem para guiá-la em seus caminhos,
aumentando a relação de desigualdade com ele.
Mas, assim como existe uma força que impulsiona para a paralisação e a
estagnação, existe também uma outra que impulsiona para o desenvolvimento, para
a individuação e, quando essas forças se contrapõem, a pessoa pode entrar em
colapso.
É importante considerar que o imenso conflito de querer desenvolver-se e ser
impedido disso pode gerar a mesma constrição que acontece quando a pessoa é
traumatizada. O impasse de querer desesperadamente ir em frente e ter que
incondicionalmente ficar, cria uma situação tão impactante que a pessoa pode ficar
num estado de imobilidade que gerará um trauma.
A mulher que viveu isso intensamente tem que conviver com marcas muito
profundas que vêm sendo carregadas há séculos, até os dias de hoje.
Sendo assim, pode ser adequado atribuir a perda do contato da mulher com
sua essência ao mecanismo de dissociação.
É fácil imaginar o quanto é preciso afastar-se de si mesma para conseguir
suportar tamanha repressão e massacre, sofridos durante tantos anos. Como é difícil
sentir que o impulso para o desenvolvimento não tem permissão para seguir adiante.
Como pode ser insuportável ter que se afastar de sua natureza porque esta foi
considerada inadequada, inútil e perigosa.
Na dissociação a pessoa se distancia de sua sensopercepção, é como estar
fora de seu corpo. E, estando fora dele, como a pessoa pode saber quem realmente
é?
Para lidar com o trauma e ter acesso ao processo de cura, Levine (1999)
propõe trabalhar com as sensações corporais internas através da “sensopercepção”.
A sensopercepção não é somente prestar atenção no corpo, mas prestar
atenção com consciência. Apoderar-se e estar presente ao que está acontecendo
com o corpo.
As sensações corporais são como um guia que nos mostra onde está o
trauma e como acessar nossos recursos internos.
Nem sempre é fácil estar atento a essas sensações, pois vivemos numa
sociedade pensante. São computadores, botões, tecnologia, video-games, televisão.
Tudo funcionando como um grande incentivo a um afastamento do corpo.
Aos poucos começamos a ouvir falar dos trabalhos corporais e os resultados
benéficos que o contato com o corpo pode trazer e, sem tantos preconceitos
começamos e aceitá-los. Hoje em dia já podemos ouvir alguns médicos dizendo:
“Parece que esse negócio de trabalhar com o corpo funciona”.
Segundo Levine (1997): “O trauma está no sistema nervoso, não no evento”.
Por isso, os registros de uma situação traumática ficam todos no corpo e é através
dele que pode ser liberado.
A mulher passou anos aprisionada nessa energia traumática. Chegou o
momento de entrar em contato com essa força, olhá-la, senti-la, descarregá-la.
Afinal, a intuição, os instintos, o afeto, o acolhimento, a intimidade com o
outro, são características ou dons femininos que vêm através do corpo e somente
através dele poderão ser resgatados. Essa é a verdadeira natureza da mulher e está
na hora de ela apropriar-se novamente do que é seu, com todo o direito.
JUNG, C.G. Aion: estudos sobre o simbolismo do Si-Mesmo. O.C. IX/2. Petrópolis:
Vozes, 1994.
1
Psicóloga, psicoterapeuta junguiana. Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, professora
no curso Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Abordagem Corporal, no Instituto Sedes Sapientiae.
E-mail: mariahelenarmguerra@hotmail.com
civilidade – diz o I Ching, o milenar livro chinês, que os porcos e os peixes são os
animais mais difíceis de serem comandados). Neste par estão contidas inúmeras
polaridades: masculino-feminino, humano-animal, cultura-natureza. Satyavati, a mulher
com cheiro de peixe, é fruto desta junção. Simboliza a dificuldade de uma cultura que
prioriza a ordem, a organização, a lei, a hierarquia, isto é, patriarcal, aceitar elementos
provenientes do universo matriarcal (o apego, a natureza instintiva, sensual, concreta).
No entanto, este lado da natureza humana é tão importante quanto o outro; somos tão
racionais quanto irracionais, capazes de construir uma civilização, mas profundamente
atrelados às nossas necessidades básicas, físicas, fisiológicas. Não podemos
prescindir nem de um aspecto nem de outro. O que, então, é capaz de conjugar
mundos tão diversos? O símbolo é a célula psíquica capaz de unir opostos, de juntar o
que conhecemos com aquilo que ainda não sabemos, e por isso sempre traz o novo .
No caminho do desenvolvimento da Consciência, os símbolos são aliados
importantes. São eles os portadores da energia psíquica transformada em algo
acessível. O símbolo pode vir de uma imagem interna – um sonho ou uma inspiração,
por exemplo, ou de uma experiência corporal – ou através de uma pessoa, ou de um
fato. Na verdade, tudo o que chega até nós tem seu caráter simbólico, porque tudo é
mais do que parece ser. O símbolo é esse veículo extraordinário que nos conduz para
além da obviedade, apontando sempre para o que ainda desconhecemos. É por meio
dele, portanto, que estruturamos e desenvolvemos nossa Consciência, e por isso
Byington considera que os símbolos são sempre estruturantes. São os símbolos,
portanto, os elementos que nos conduzem rumo a uma ampliação dos nossos
horizontes, da nossa visão de mundo, desde que possamos elaborar seus significados
e integrá-los à nossa Consciência. E como eles se expressam na Cultura? Através da
Mitologia, dos Contos de Fadas, das Religiões, da História, da Alquimia, do Folclore
etc. E da Arte. Através da Arte o indivíduo abre espaços para que a Cultura vá se
transformando. Porque a Arte é símbolo vivo. É através do artista que muitos dos
paradigmas são ultrapassados: a Arte é transgressão, é criação, inovação, revolução.
Na nossa história, é o artista Paraçara quem transforma o mau cheiro em
perfume, quem faz com que o odor natural, forte e insuportável de Satyavati possa não
apenas ser tolerado, como transformado em função de sua aceitação. E aqui podemos
lembrar a estruturação das nossas defesas, como sendo muitas vezes fruto da
rejeição, do desamparo, da não acolhida, da não aceitação – tudo o que só faz piorar o
mau cheiro.
Enraizados na mesma matriz, a Psique, o que o sonho traz para o indivíduo, a
Arte traz para a Cultura. O sonho, afirma Jung, quase nunca dirá ao sonhador o que ele
já sabe. Por isso é tão difícil interpretar os próprios sonhos – tendemos a ver aquilo que
já sabemos. Também a Arte exige criatividade e renovação. Assisti a uma entrevista
com o arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer, na qual ele citava Flaubert, que dizia que a
Arte tem que surpreender. A Arte é a surpresa, o inesperado, o novo, o inusitado.
Mas, o que mais pode caracterizar a Arte? Rilke, em seu livro Cartas a um Jovem
Poeta, diz:
As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos
pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre
num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de
expressão do qualquer outra coisa são as obras de arte, – seres misteriosos cuja
vida perdura, ao lado da nossa, efêmera. (p. 21)
E mais adiante:
A obra (de arte) traz em si a sua própria forma; tudo aquilo que o autor
gostaria de acrescentar, será recusado; e tudo aquilo que ele não gostaria de
aceitar, lhe será imposto. Enquanto seu consciente está perplexo e vazio diante do
fenômeno, ele é inundado por uma torrente de pensamentos e imagens que jamais
pensou em criar e que sua própria vontade jamais quis trazer à tona. Mesmo contra
sua vontade tem que reconhecer que nisso tudo é sempre o seu Self que fala, que
é a sua natureza mais íntima que se revela por si mesma anunciando abertamente
aquilo que ele nunca teria coragem de falar. Ele apenas pode obedecer e seguir
esse impulso aparentemente estranho; sente que a sua obra é maior do que ele e
exerce um domínio tal que ele nada lhe pode impor. Ele não se identifica com a
realização criadora; ele tem Consciência de estar submetido à sua obra ou, pelo
menos, ao lado, como uma segunda pessoa que tivesse entrado na esfera de um
querer estranho. (par.110)
A Arte surge não do Ego, mas da natureza total. O artista se abre para o
inesperado, e quantas vezes não se surpreende com o que sai dele! Como a mãe que
gesta um filho, cabe ao verdadeiro artista dar passagem àquilo que agora emerge de
dentro dele, mas que reconhecerá não ser ele e que, sabe, só surge Deo concedente.
Por isso, diz von Franz (1990), a atividade criativa deve ser feita de forma
religiosa, no sentido de observação cuidadosa do numinoso. Um belo exemplo disso é
a história de “Seu” Gabriel, contada por Byington (1994) em seu artigo “A Missão de
Seu Gabriel e o Arquétipo do Chamado”, baseado, por sua vez, no livro da antropóloga
Amélia Zaluar sobre a vida e a obra de Gabriel dos Santos.
Seu Gabriel nasceu em 1892. Seu pai era um negro mestiço, escravo e feitor
de outros negros e sua mãe era filha de uma índia. Era o quarto filho, de uma família
de doze irmãos. Desde cedo, manifestou uma acentuada queda para as artes.
Cantava, fazia flores de papel crepom para vender, desenhava muito bem riscos para
tecidos bordados. Pintava em cartolina sereias e santos, de encomenda, dedicando
versos, de sua autoria, à pessoa que o contratava. Muito religioso, chegou a construir
uma capelinha dedicada a Santo Antônio, onde ele organizava festas nas datas
tradicionais da Igreja Católica. No altar, santos de barro, que ele mesmo esculpia e
pintava. Mas quando percebeu que a religião católica não o satisfazia plenamente,
passou para a Igreja Batista, à qual pertenceu até morrer. Nessa ocasião desfez-se dos
santos e derrubou a capelinha.
Desde pequeno, Gabriel intuiu que teria que viver sozinho, "fora da família",
para fazer, com tranqüilidade os "trabalhinhos" de que tanto gostava, para ter seu
espaço e liberdade de criar. Aos vinte anos, uma "revelação", um sonho lhe mostrou
que devia construir uma casa "só para si".
Começou a construí-la pouco a pouco, e levou quase dez anos para concluir a
obra. Dispunha de poucos recursos para comprar o material e trabalhava sozinho, em
seus momentos de folga. Semi-analfabeto e utilizando como recurso principal a
intuição, aprendeu sozinho a executar uma série de tarefas. Fez de tudo: foi pedreiro e
carpinteiro, arquiteto e construtor, operário e artista. Mas não construiu uma cozinha,
pois sentiu que naquela casa não se devia fazer refeições.
Depois de a casa terminada, um novo sonho lhe traz a idéia de enfeitá-la. Mas
como? Com quê? "Matutando" muito, resolveu embelezar seu rancho com o refugo das
construções locais, "restos de obras grandes da cidade", com objetos e materiais
quebrados encontrados no lixo, com coisas jogadas fora porque consideradas
imprestáveis para o uso. - "Pensei em fazer do nada."
Assim, não havia materiais "nobres" para Gabriel. Utilizava cacos, sobras,
restos. Via neles, nos materiais mais humildes, possibilidades que os outros não viam.
Tudo servia para compor sua casa/escultura, para dar vazão a uma prodigiosa
criatividade. O "imprestável", o "lixo", o "inútil", transformavam-se, através de seus
olhos visionários, em matéria preciosa para a produção de beleza não percebida pelas
pessoas comuns. Surge a Casa da Flor.
Em seu discurso, percebe-se que acreditava criar guiado por inspiração divina,
associando sua capacidade inventiva com a força e a criatividade de um espírito
superior: - "Eu mesmo fazendo, eu mesmo me espantando, isso pode ser só de mim?...
Isso não é da gente, não. É o espírito de Deus que concede!"
Gabriel nunca se casou, nem teve filhos. Sempre morou sozinho na Casa da
Flor. Dizia mesmo que não conseguia dormir com a presença de outra pessoa em sua
casa, mesmo que fosse uma criança. Isso o perturbava muito. Teve como companhia,
durante muitos anos, alguns cachorros, dentre eles, Diamante. Quando este morreu,
anotou seu pesar em um caderno e construiu para ele um túmulo. Fez o mesmo para
uma galinha, à qual havia se afeiçoado.
Seu Gabriel foi gradativamente perdendo a visão, e, no final, via somente
sombras. Mas isso lhe bastava para que continuasse trabalhando no embelezamento
do seu lar, o que fez até os 92 anos, quando faleceu sem deixar sua casa. Cinco dias
antes de sua morte, pediu ao sobrinho Wilson para zelar por sua casa, para ser "sua
pessoa", justificando: - "Isto é um enredo, uma história"...
Segundo Byington,
Outro exemplo da ligação entre a arte e a religiosidade foi presenciado por mim
ao assistir a uma apresentação de uma bailarina indiana. A Índia possui
tradicionalmente uma cultura na qual a sacralidade não ficou tão separada das
atividades seculares, ou melhor, nesse país, muitas das atividades permanecem, ainda
com uma certa freqüência, inseparáveis de seu caráter sagrado. Assim, antes de
determinadas atividades cotidianas, alguns ritos são realizados. Isso ocorre também
antes de uma performance de música clássica, ou uma apresentação teatral. Na
apresentação à qual me refiro, a dançarina, ao iniciar o espetáculo, havia feito um rito
de entrada – uma homenagem a um deus, possivelmente Ganesha, considerado o
patrono das Artes e, não por acaso, aquele que abre caminhos; ou então, a Shiva
Nataraja, o deus que criou o mundo dançando [segundo uma dançarina, “qualquer
Deus pode estar lá: Nataraja, Ganesha. (...) Para uma estudante cristã, tínhamos um
Nataraja e um Jesus no palco.” (Gaston, p.163)]. Ao final da apresentação, foi muito
aplaudida e a platéia pediu bis. Ela então, de modo absolutamente natural, pediu
desculpas de antemão, dizendo que ela já havia feito o rito de saída (evidentemente
não usou esta terminologia), e que, portanto, quem iria se apresentar agora seria
somente ela, e por isso a dança não seria mais a mesma coisa. Isto revela a enorme
diferença que existe entre a Arte como expressão de algo maior, expressão da
totalidade, e a expressão puramente egóica. Não sei se nós, da platéia, teríamos
sintonia e sensibilidade suficientes para perceber isso, mas, para ela, era algo que
fazia toda a diferença. A esse respeito, comenta Indira Rajan, dançarina de uma família
tradicional de dançarinas: “Porque os componentes da dança são baseados em Deus,
o palco deve ser como um templo” (idem, ibidem).
Em seu livro O Sagrado, Rudolf Otto estuda a experiência religiosa buscando
esclarecer seu caráter específico e sua fenomenologia. Procura descrever o “Deus
vivo”, e não uma idéia ou noção abstrata de Deus, mas sua vivência. Encontra, então,
o sentimento de pavor diante do sagrado, do mysterium a um só tempo tremendum e
fascinans, que exala uma superioridade esmagadora de poder e no qual se expande a
plenitude do Ser. Essas experiências foram chamadas por Otto de numinosas
(numen=deus), porque são provocadas pela revelação de um poder divino.
Brauen, Martin (1992). The Mandala – Sacred Circle in Tibetan Buddhism. London:
Serindia Publications, 1992.
Eliade, Mircea. (1956). O Sagrado e o Profano – A Essência das Religiões. Lisboa: Ed.
Livros do Brasil, s/d.
Jung, Carl Gustav (1922). Relação da Psicologia Analítica com a Obra de Arte Poética.
CW15. Petrópolis: Ed.Vozes, 1987, par. 110.
Kinsley, David (1979). The Divine Player – A Study of Krishna Lilā. Delhi: Motilal
Banarsidass, 1979.
Rilke, Rainer Maria (1953). Cartas a um Jovem Poeta. Porto Alegre: Editora Globo,
1983.
Estela Noronha2
Introdução
Meu interesse em pesquisa sobre Iemanjá começou com as minhas idas à praia
durante o Reveillon. O primeiro fato que chamou a minha atenção foi o número de
pessoas que de alguma forma, reverenciavam a Rainha do Mar. Tinha ciência da
impossibilidade de que todas aquelas pessoas, presentes na praia, pertencerem às
religiões afro-brasileiras. Sabia também, antes mesmo de aprofundar-me no assunto
que, apesar de o Brasil ser um país muito sincrético e haver uma tolerância religiosa
maior do que em muitos países, este é um país católico. A grande pergunta que ficou,
a partir destas observações foi: o que estaria levando todos aqueles indivíduos, mesmo
não sendo umbandistas ou candomblecistas ou de qualquer outra religião de raiz
africana, a cultuarem Iemanjá.
Revolvi investigar com mais profundidade o que observara naquele momento e a
pensar com mais acuidade em qual seria o objeto das inquietações em mim
despertado.
O objetivo deste trabalho foi demonstrar as causas sócio-antropológicas e
psicológicas que levam os indivíduos não pertencentes às religiões afro-brasileiras a
cultuarem Iemanjá.
Quem é Iemanjá?
Iemanjá é o orixá dos Ebás, na África, uma nação iorubá que, a princípio, estava
estabelecida na região entre Ifé e Ibadan, onde existia ainda o rio Yemonjá. Devido às
constantes guerras entre nações, os Ebás, no início do século XIX, imigraram para o
1
Este artigo é uma síntese do quarto capítulo da dissertação de mestrado em Ciência da Religião, da
PUC-SP, intitulado Tenha fé, tenha confiança, Iemanjá é uma esperança, de autoria de Estela
NORONHA.
2
Formada em letras e psicologia. Especialização em Psicoterapia Junguiana Coligada a Técnicas
Corporais pelo Instituto Sedes Sapientiae e Terapia de Casal e Família pela SBPA (em andamento).
Mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP. E-mail: estelapsico@terra.com.br
oeste, mais precisamente para Abeokutá e demais povoações ao longo do rio Ogum,
que passou a ser sua nova morada.
Segundo Unterste, ela é filha da união de Obatalá, o céu, e Odudua, a terra, do
qual nasceram o Aganju, o firmamento, e Iemanjá, as águas. Os pais de Iemanjá
representam o uroboros original, símbolo da totalidade globalizante do inconsciente.
Portanto, ela é considerada uma das mães primordiais, presentes em muitos mitos que
falam da criação do mundo, como senhora das grandes águas, doces na África ou
salgadas, como no Brasil e em Cuba. Divindade muito antiga, deusa das águas
primevas que são, conforme explicou Mircea Eliade, matrizes de todas as
possibilidades da existência. Mãe dos orixás e dos homens é a senhora das origens,
mãe de todas as potencialidades. Iemanjá também é considerada aquela que governa
as cabeças humanas. É dela a responsabilidade de trazer a consciência, o equilíbrio
emocional e a personalidade aos humanos.
Ao ser trazida para o Brasil durante o período da escravidão Iemanjá é relida e
re-interpretada na diáspora. Aqui se tornou um importante símbolo religioso e o mais
importante orixá feminino. Além de ser amplamente cultuada, é também sincretizada,
principalmente, com as Nossas Senhoras Aparecida e Conceição. Hoje em dia, a
admiração por Iemanjá ultrapassa os limites dos centros e terreiros e ganha
admiradores por todo o Brasil. Dentre aqueles que não pertencem às religiões afro-
brasileiras, apontado pela pesquisa, 93,33% professaram ser católico. Entrevistados
estes, de devoção popular e que projetam em Iemanjá a figura de “quase” uma Santa,
colocando-a, paulatinamente, dentro do panteão dos Santos Católicos.
Mas, por que Iemanjá estaria ganhando tamanha projeção entre aqueles que
não pertencem às religiões afro-brasileiras? Do ponto de vista psicológico, a pesquisa
de campo apontou três horizontes.
Outra figura que surge com bastante freqüência, é a moça jovem e atraente,
às vezes nua, quase sempre dançando ou nadando, quer dizer, associada a
elementos como cor, música, corpo e água. O cabelo é um traço marcante (...)
Ela pode utilizar-se de provocação agressiva ou simplesmente exercer um
fascínio tranqüilo. Porém, consegue mobilizar a libido e sua aparição sempre se
constitui um apelo. Essa moça conhece os segredos do jogo e traz vínculos
pagãos ou ateus como outras religiões ou sistemas morais. (...) Ela pode estar
associada a animais, ou a sua figura ser meio animal. Quase sempre essa figura
tem um pai interessante (...). Ela se associa com a vida de animais e com a água,
ou seja, com os instintos, com o fluxo das emoções, de tudo que é líquido, com
ritmos, com a natureza e o próprio prazer físico. Seu fascínio e atração
irresistíveis indicam a importância desse elemento para a nossa plenitude física,
pois do mesmo modo que ser perseguido em sonho significa que se anda a fugir
de algo, ser atraído também significa que esse aspecto da psique necessita mais
atenção. (Hillman, 1984, pp. 107-108)
Esta imagem acima revelada é o que Jung denomina como sendo a figura típica
de Anima, perfeitamente compatível com a descrição de Iemanjá, filha do Deus Obatalá
(o céu), segundo Unterste; ou filha de Olokum (o oceano), segundo Verger e a grande
maioria dos autores. A Deusa do Mar encerra todos os valores acima revelados, já que
ao mesmo tempo ela pode ser uma perigosa e bela feiticeira jovem, uma sereia 3 que
vive nas águas cintilantes e profundas do oceano e que com seus encantos sedutores
e hipnóticos arrastam as suas vítimas para o fundo do mar, como também ela é aquela
que porta na mão um espelho, que auxilia o homem a ver a entrar em contato com a
sua sombra e com a sua própria alma, ou seja, com o seu interior. Neste sentido, o
aparecimento da sereia Iemanjá das águas profundas representaria a emersão de um
conteúdo do inconsciente à superfície, que poderia ser integrada à consciência, ou
seja, ao ego.
O pai importante, que aparece por trás dessa figura de Anima exemplificada por
Hillman, nos revela que o homem que a “escutar” pode chegar à sua própria condição
masculina. Em outras palavras:
3
Sereias e ninfas são consideradas como figuras de Anima, seres místicos e muito populares. São
temas de numerosos contos, lendas e canções folclóricas de todo mundo.
o inconsciente, o instinto, o sexo e a terra – enquanto “coisas deste mundo” pertencem
ao “feminino negativo”. Esta atitude defensiva de desvalorização, no entanto, deve ser
entendida como uma tentativa de superação do medo do Feminino e de seu aspecto
perigoso, como a Grande Mãe e como a Anima, inclusive, do caráter transformador
desta última. Para o masculino “superior”, ela se torna a feiticeira, a sedutora, a sereia,
a bruxa e é rejeitada em virtude do medo associado ao Feminino irracional.
Este mesmo tipo pode negar e cindir a mulher “terrena” a fim de ser
estimulado por figuras de femme inspiratrice. Em ambos os casos, a ideologia
patriarcal está baseada em se manter a anima inconsciente, e em um conflito no
qual o Feminino e a mulher são experienciados não como uma unidade, mas
como dois pólos opostos. Desta maneira, a mulher e o Feminino aparecem quer
como uma força negativa, que puxa para baixo, como mulher-pântano, ou duende
da água, quer como uma força positiva, que ergue, como anjo ou deusa.
(Neumann, 2000, p.253)
Por isso, entendemos que a Iemanjá erotizada não é apenas uma representante
da Anima Negativa, que impede a caminhada do homem rumo ao processo de
individuação, mas é, sobretudo, um meio condutor importante para a realização de tal
meta, porque resgata valores do feminino muito pouco analisados ao longo da história
cristã, como o corpo, a sexualidade, a intuição e o sentimento. Iemanjá, como guia para
o mundo interior, tem a função positiva de fazer o homem levar a sério os sentimentos,
os humores, as expectativas e as fantasias enviadas por sua Anima. E somente a
decisão essencialmente simples, mas difícil, de levar a sério os nossos sentimentos e
fantasias pode, neste estágio, evitar a estagnação do processo de individuação
masculina. (von Franz, 1985).
Este é um fenômeno que deve analisado apuradamente para não se cair nos
vieses e nas polarizações relativamente comuns quando tratamos de sincretizações
religiosas e culturais. O Brasil é um país eminentemente católico e os católicos que
aqui vivem, assim como aqueles que participaram de nossa pesquisa gozam de maior
liberdade e praticam um catolicismo muito peculiar, que abraça sem grandes
problemas de consciência todas as formas de religião. Trata-se que um catolicismo
popular que acolhe, com maior liberdade, toda forma de religião, principalmente as
experiências afro-brasileiras que convivem conjuntamente ou paralelamente desde a
época da escravidão. Em nossa sociedade moderna e pluralista, o sincretismo mostrou
ser um processo livre, espontâneo e orgânico, no qual as instituições religiosas não
possuem, como gostariam, o controle social dos respectivos símbolos e dogmas (Boff,
1995).
Dentro desta religiosidade popular, alguns símbolos começam a se constelar,
reproduzindo a necessidade psíquica de encontrar novas conexões religiosas, que
perderam sua força ao longo do tempo.
Se o homem necessita entrar em contanto com sua Anima de maneira mais
positiva, objetivando trabalhar sua personalidade de uma forma mais coesa e
integrada, o amadurecimento psicológico da mulher passa pelo mesmo processo,
evidentemente, dentro daquilo que é pertinente ao universo feminino.4
Segundo Neumann (2000), o medo da mulher como o seu próprio Feminino está
na fase de transição entre o período Matriarcal para o Patriarcal. Diferentemente do
que ocorre com o homem, a mulher está mais próxima do arquétipo da mãe, tornando
a separação com a fase matriarcal mais difícil. A mulher corre o risco de uma fixação
primal, o que não é considerada uma fixação patogênica, mas que dificulta,
sobremaneira, a progressão rumo ao patriarcado. Este matriarcado aprisionador é
chamado de bruxa maternal. É necessário derrotá-la para que ocorra a identificação
parcial da mulher com o seu lado masculino, o “Animus”, que deve ser desenvolvido.
Portanto, é papel difícil, mas essencial da mulher em nossa cultura, o
desenvolvimento dos seus aspectos masculinos e patriarcais, sem, contudo, desistir do
seu ser feminino. Inequivocamente é atribuído valor negativo ao Feminino no
patriarcado, deixando a mulher insegura quanto à própria feminilidade. A mãe negativa,
ou o maternal bruxa, aparece, então, para a filha mulher como uma bruxa patriarcal
que supervaloriza o Masculino e o filho, mas subvaloriza o Feminino e a filha,
colocando em risco o desenvolvimento desta mulher. Segundo Neumann:
Nesta situação, a mulher muitas vezes não vê outra escolha a não ser
livrar-se de sua feminilidade e transformar-se em um ser quase masculino. O
perigo é especialmente grande quando, como na cultura patriarcal ocidental,
está ausente a figura do Feminino arquetípico como divindade e encarnação do
Self feminino. (2000, p.259)
4
No nosso caso, abordaremos especificamente a sombra do feminino, apenas através da concepção
religiosa.
Tal modelo levou o ego da mulher moderna a experienciar um medo profundo do
Feminino como medo dela própria e como medo da incompreensível numinosidade da
natureza feminina, o que dificulta que o arquétipo seja confrontado e integrado em sua
totalidade ambivalente durante o seu processo de individuação.
Concluindo...
Referência Bibliográfica
____________. Tratado de História das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
____________. Memória, Sonhos e Reflexões. 14ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
1985.
HILLMAN, James. Uma busca interior em psicologia e religião. Trad. Araceli Martins
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VALLADO, Armando. Iemanjá: a grande mãe africana do Brasil. 1a ed. Rio de Janeiro:
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VALLE, Edênio. Psicologia e experiência religiosa. São Paulo: Ed. Loyola, 1998.
ZACHARIAS, J. J. de Morais. Ori Axé: a dimensão arquetípica dos orixás. São Paulo:
VETOR, 1998.
A DEPENDÊNCIA QUÍMICA NA PERSPECTIVA DA
PSICOLOGIA ANALÍTICA
Apresentação
Hélio, pouco antes de completar 23 anos, retorna pela segunda vez a uma
comunidade terapêutica que trata de dependentes químicos em um bairro da zona leste da
cidade de São Paulo. Desde os 15 anos usa maconha e aos 20 anos começou a traficar e
consumir crack e cocaína. Filho de pais muito jovens, que não o assumiram como filho, foi
criado pela avó materna e mais tarde pelo tio, irmão de sua mãe. Pertence a uma família
abastada do interior do estado de São Paulo e vive sua infância e adolescência ganhando
brinquedos caros, motos e roupas de moda. É muito mimado pela sua avó, que procura
compensá-lo da ausência de seus pais. Relata que está sempre insatisfeito, sente um
vazio que não sabe explicar e busca muito o afeto das pessoas. Apresenta-se sempre
muito sorridente para conquistar a simpatia de todos, mas no fundo sente-se triste e
carente. Fica muito contrariado em várias situações nas quais demonstra disponibilidade
em ajudar alguém, porque só o faz na expectativa de receber algo em troca, o que nem
sempre acontece. Conheceu uma garota evangélica e se apaixonou por ela, tiveram um
filho que hoje tem 5 anos. Hélio se envolve com traficantes em sua cidade, desenvolve
uma compulsividade por drogas e vende objetos valiosos seus e de seus familiares para
manter seu consumo. Chega a um ponto tão insuportável para todos próximos a ele que
acaba sendo internado. Permanece quatro meses em uma comunidade que trata
dependentes químicos e retorna para a casa de seu tio, onde se mantém em abstinência
por quase 2 anos. Tem, no entanto, muita dificuldade em se adaptar às normas rígidas da
família de seu tio, que é evangélica, e acaba voltando ao uso de drogas. Ele pede para
retornar à comunidade terapêutica para ficar, no máximo, durante um mês. Seus
familiares, porém, não o aceitam mais de volta e ele permanece lá mais oito meses.
Durante suas duas internações eu o atendi em psicoterapia e sua história será
aqui descrita e aprofundada, buscando-se conceitos da Psicologia Analítica para uma
melhor compreensão do sentido de sua doença e de seu sofrimento. Hélio, como milhares
1
Psicólogo Clínico com especialização em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Abordagem
Corporal, pelo Instituto Sedes Sapientiae. E-mail: aguenaca@yahoo.com.br
de dependentes químicos, é execrado pela sociedade e pelos próprios familiares, que
acabam expostos a situações de risco e com sérios prejuízos financeiros e morais.
Ele e todos aqueles que têm histórias semelhantes, no entanto, representam um
importante aspecto sombrio da nossa sociedade. Carl Gustav Jung denomina Sombra tudo
o que é negado e não reconhecido pela consciência e pede para ser compreendido e
novamente integrado à totalidade à qual pertence. É a nossa inveja não admitida do
colega de trabalho que recebeu uma promoção e que, inconsciente e sutilmente,
sabotamos. São os mendigos nas calçadas que nos lembram que participamos de uma
sociedade que não oferece oportunidades iguais para todos. São os dependentes
químicos que nos alertam sobre nossa extrema racionalidade, que empobreceu nossas
vidas e destituiu de nosso cotidiano a experiência mítica e o contato com o sagrado.
A dependência química
Jung recebeu de seu amigo Richard Wilhelm, em 1928, um livro por ele traduzido
do chinês chamado o Segredo da Flor de Ouro, um tratado alquímico milenar e também
um texto taoísta. Neste livro Jung descobre finalmente os pressupostos conceituais que
iriam fundamentar o que vinha pesquisando desde 1913 sobre o inconsciente coletivo. Ele
encontra as raízes históricas de seu trabalho no tratado de alquimia chinesa, que se
caracteriza fundamentalmente por uma natureza pragmática e anímica, bastante distinto
da intelectualidade e racionalidade ocidental.
A alquimia, de acordo com o Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier (1991) é:
O resgate do equilíbrio
A experiência da morte
O corpo
ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de. Paisagens existenciais e alquimias pragmáticas: uma
reflexão comparativa do recurso às drogas no contexto da contracultura e nas cenas
eletrônicas contemporâneas. Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos.
Simpósio: Drogas, controvérsias e perspectivas. 29 e 30 de setembro de 2005.
http://www.neip.info/simposio_apresentacao.htm Acesso em 22/05/2006
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ZOJA, Luigi. Nascer não basta: iniciação e toxicodependência. São Paulo: Axis Mundi,
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Introdução
Faremos, neste artigo, uma reflexão a respeito do tema migração e família numa
visão junguiana, ou seja, procuraremos amplificar o sentido simbólico do engajamento
de famílias no processo da migração.
Este texto baseou-se na dissertação produzida originalmente em 2005, intitulada
“Você é daqui? A subjetividade de famílias brasileiras em movimento de migração
interna”, apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp para a
obtenção do título de Mestre em Psicologia.
Tal pesquisa foi impulsionada pela necessidade de buscar compreender a
experiência psicológica de famílias que migram do espaço familiar originário e reiniciam
uma vida em um novo contexto. O movimento migratório abordado aconteceu quase
sempre motivado conscientemente pela busca de melhores condições de vida, por
novas oportunidades laborais fora do contexto social de origem: enfim, em busca do
que poderíamos chamar simbolicamente de “a terra prometida”.
Trabalhamos numa metodologia qualitativa, entrevistando cinco famílias que
viveram um processo de migração interna, dentro do território brasileiro. A abordagem
da família e coleta dos dados foi efetuada através de contatos com os adultos
responsáveis pelas respectivas famílias.
A compreensão de uma experiência humana em sua riqueza de vida e
transformação transborda os limites de nossa capacidade de entendimento intelectual.
Buscamos a abordagem simbólica devido à insatisfação com a resposta racional que
encontramos ao problema.
Ao considerar o processo de migração – em sua dimensão simbólica – como um
movimento consoante com a busca da individuação, lançaremos mão de um mito, uma
imagem cinematográfica e uma obra literária, no sentido de ampliar a percepção deste
fenômeno humano.
1
Psicóloga, mestre em Psicologia pela Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – Campus Assis.
Especialista em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas Corporais pelo Instituto
Sedes Sapientiae. E-mail: analaura27@superig.com.br
1
A experiência simbólica
2
Lembramos que, para Jung (1934), o inconsciente não é apenas constituído de
material reprimido, mas consiste na condição psíquica primária, e que a imagem,
portanto, teria uma ligação mais forte com a coisa em si do que o conceito racional. A
imagem simbólica, na psicologia analítica, não é considerada resultado de distorção de
conteúdos reprimidos, mas adquire status de componente básico do funcionamento
psíquico.
Desta forma, ao ampliarmos o fenômeno da migração familiar através de uma
abordagem diversa da racional, acreditamos estar contribuindo para uma compreensão
mais completa da subjetividade envolvida no movimento migratório. Ousamos dar
ouvidos à intuição e à sensação, como outras funções psíquicas que nos
instrumentaram a captar aspectos da questão que ainda estão faltando.
Imagens da migração
3
família de origem no Egito, pois havia fome na terra de seus antepassados. Perdoou
seus irmãos e fez que lhe trouxessem o pai, Jacó, e que se fixassem no Egito.
Morreu Jacó – a quem o próprio Deus tinha mudado seu nome para Israel – no
Egito, mas deixou instruções claras a José para que fosse sepultado na terra de
Canaã: a terra prometida a Abraão e a todos os seus descendentes. O Gênesis conta
que o primeiro hebreu a fazer a aliança com Deus, Abraão, teve de sua mulher, Sara,
seu filho Isaac quando já eram bem velhos. Isaac, o pai de Jacó, também foi salvo da
morte, por um anjo, quando estava prestes a ser imolado pelo próprio pai em ritual de
sacrifício ordenado por Deus.
José cumpriu as instruções. Com autorização do faraó, após os rituais de
embalsamamento, fez sepultar Jacó – Israel – na Terra Prometida. Quando ele próprio
estava prestes a morrer, depois de ter passado toda sua vida adulta na terra para a
qual migrara à força, e a despeito de ter-se tornado o governador dessa terra, José
rogou que o enterrassem na Terra Prometida. Foi embalsamado e posto em um caixão
no Egito.
Moisés cumpriu o juramento dos antepassados. Tomou os ossos de José
consigo e iniciou a longa jornada rumo à Terra Prometida.
Colhemos da Bíblia algumas passagens que ilustram parte dessa história de um
povo escravo, que busca seu lugar no mundo e a legitimação de seus costumes
religiosos e de suas leis.
4
sirvamos os Egípcios? Porque era muito melhor servi-los do que morrer no
deserto. Moisés disse ao povo: Não temais;estais firmes, e considerai as
maravilhas que o Senhor fará hoje; porque os egípcios, que agora vedes, nunca
jamais os tornareis a ver. O Senhor combaterá por vós, e vós estareis em
silêncio.
[Palavras de Deus para Moisés:] ‘E tu levanta a tua vara, e estende a tua
mão sobre o mar, e divide-o, para que os filhos de Israel caminhem em seco
pelo meio do mar.’
... E tendo Moisés estendido a mão sobre o mar, o Senhor, soprando toda
a noite um vento forte e ardente, o retirou e secou; e a água dividiu-se. E os
filhos de Israel entraram pelo meio do mar enxuto; porque a água estava como
um muro à direita e à esquerda deles.
... E o Senhor disse a Moisés: Estende a tua mão sobre o mar, para que as
águas se voltem para os egípcios, sobre os seus carros e os seus cavaleiros. E
Moisés, tendo estendido a mão sobre o mar, (este) ao romper da manhã, voltou
para o lugar habitual e, fugindo os egípcios, foram as águas sobre eles, e o
Senhor os envolveu no meio das ondas.
[Cântico de louvor de Moisés e dos Israelitas:] Foste por tua misericórdia o
guia do povo que resgataste; e o conduziste com tua fortaleza para a tua santa
morada.
... Tu os introduzirás (o povo escolhido), e os estabelecerás no monte da
tua herança, na tua firmíssima habitação, que tu fundaste, ó Senhor, no teu
santuário, Senhor, que tuas mãos firmaram.
... No terceiro mês, depois da saída dos Israelitas da terra do Egito, neste
dia chegaram ao deserto do Sinai. Porque tendo partido do Rafidim, e chegando
ao deserto do Sinai, acamparam naquele mesmo lugar, e Israel levantou aí as
suas tendas defronte do monte. (Bíblia, Êxodo,12-37 a 19-2, resumido)
5
Como ocidentais, temos o hábito de fixar nossa atenção no ponto final, no destino, em
detrimento do caminho a ser percorrido. Cabe questionar então o que se busca com o
processo de migração. Onde queremos chegar, nós, migrantes? O que queremos ou
desejamos encontrar?
Sem nos atirarmos a uma interpretação mais detalhada desse mito – o que daria
por si só uma longa dissertação –, nossa intenção aqui consiste na apreensão da
densidade deste caminho: a aventura que constitui esta busca, que continua após a
morte de Moisés. Mares se abrem para a passagem de um povo, e se fecham sobre os
poderosos inimigos, nuvens e fogo servem de guia, enfim, toda a natureza se envolve
no processo que é mais do que um fim: sobretudo um meio.
Vislumbramos, gradualmente, a importância do caminho, do processo,
prioritariamente ao lugar onde se deseja chegar, ou do lugar de onde se partiu. O
caminho impõe-se como um símbolo. Na mitologia cristã, o personagem de Moisés vai
se construindo durante o êxodo, o sentido de sua vida vai se tecendo juntamente com a
conformação dos filhos de Israel. Sua identidade vai se formando em conjunto com a
identidade do povo judeu.
Enquanto viaja, a própria natureza, o ambiente, se mistura à identidade do
migrante. Tal identidade é construída nessa peregrinação. Essa construção observada
na figura de Moisés também pode ser encontrada no personagem Fabiano, criado por
Graciliano Ramos (1939), em seu conhecido romance Vidas Secas, parte da literatura
clássica nacional. O autor traduz, já no título, a confluência entre a identidade da
família migrante e a situação da seca nordestina.
Tendo como cenário uma paisagem árida e angustiante, Graciliano Ramos conta
a história de uma família expulsa de sua terra pela seca, suas expectativas e
esperanças, revelando a realidade de pessoas em constante migração, em busca da
sobrevivência.
Já no início podemos vislumbrar o que deseja o personagem Fabiano: tornar-se
dono daquelas terras abandonadas, onde se encontravam provisoriamente. Então –
sonha ele – viria a chover, e com a chuva voltaria à vida toda aquela natureza
nutridora, e como conseqüência, renasceria a vida da família.
6
No entanto, vem a chuva e com ela o verdadeiro dono da terra. Fabiano passa a
trabalhar como vaqueiro naquela fazenda. Reflete sobre seu caminho, e sente a família
como um peso que deve carregar pela vida afora. A memória da seca e do caminho
que ela impõe permeia sua vida, bem como a de sua família.
Sinhá Vitória também carrega a marca da seca e da migração. Descontente com
sua cama de varas, ela sonha com uma cama de couro, mas esse sonho se enlaça
com a memória da desgraça, da seca. Desconjura, mas a lembrança insiste: seus pés
de papagaio, o papagaio de estimação que tiveram que comer para sobreviver, no
percurso.
A seca novamente se avizinha, prometendo colocar em movimento aquela
gente, como se repete há gerações. Fabiano se revolta com esta possibilidade, e tenta
em pensamento buscar uma alternativa singular, diferente daquela sina de matuto
retirante. Qualquer coisa serviria: até ser criminoso, até ser detento, até ser cangaceiro.
Algum desses caminhos o aproximaria da humanidade. “Seria homem então!”, pensa,
indignado.
O caboclo ainda se agarra à esperança de não precisar migrar. Torce pela
chuva, mas nos sinais da natureza é versado, e nestes está escrita a iminência da
seca. Seu coração se aperta.
A chegada das aves, “arribações” – nas palavras de Ramos (1939) – anunciam a
seca. As aves beberiam a água, o gado morreria de sede, as aves comeriam o gado, a
família seria morta pelas aves, as aves comeriam os humanos ou seriam comida para
os humanos, em sua retirada. Fabiano se confunde entre a vida e a morte, a
humanidade e a natureza, inerte e impotente diante do ciclo da vida.
Novamente a família em retirada. Agora seus membros relutam antes de colocar
o pé na estrada, pois estão mais velhos e mais fracos, sem Baleia, a cachorra de
estimação que morrera. Migrando para um local onde talvez não houvesse gado para
tanger. Fugindo da morte, indo em direção a uma vida desconhecida.
Sinhá Vitória fala de como seria bom voltar a ser como no começo, voltar ao
lugar de onde vieram, voltar a ser como eram. Mas sempre haveria o medo da seca.
A seca, a migração, o desterro, o desconhecido, permeiam os personagens e
suas vivências internas. Independentemente de passado, presente ou futuro, o que é
negado a estes personagens é um lugar de vida, a ponto de nos questionarmos sobre
que força os move através do sertão.
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Por não pertencer a um lugar, ou por não possuir um lugar no mundo, o
personagem de Fabiano muitas vezes chega a duvidar de sua condição humana. A
vivência interna se reflete nas experiências reais. No caso de Fabiano e sua família,
humanidade significa sobreviver com um mínimo de decência: uma cama de couro
para sinhá Vitória, algum gado para Fabiano tanger. A existência de Fabiano, sua
essência, se vê ameaçada, e a migração representa a busca por esse lugar interno, a
construção de sua verdadeira identidade. Daí a força que o move. A força do símbolo,
a busca do lugar-lar, do seu lugar no mundo, onde possa sobreviver.
O sentido simbólico do lugar-lar concreto aproxima-se da representação interna
de prazer, felicidade, bem-estar. Qualidade de vida, como disseram alguns
entrevistados de outras pesquisas (Brasil, 1996; Almeida,1997; Azevedo,1993), ou
conhecidos migrantes. Percebemos que qualidade de vida não consiste num produto
final da busca, ou na chegada à terra prometida, mas sim que qualidade de vida
permeia a vida toda. As pessoas não desejam viver e depois ter qualidade de vida, mas
viver em condição de qualidade na vida. Viver – dia após dia, no trabalho, na rotina
diária, com a família e os amigos, no lazer – em condição de bem-estar.
No que consiste, em termos simbólicos, a migração: uma viagem, uma busca,
um caminho, uma peregrinação, uma retirada. O abandono de um lugar conhecido,
seguro ou não, em prol do desejo, ou da necessidade, de algo mais, de chegar a
conquistar um estado de satisfação.
Esse caminho que o migrante percorre em sua vida objetiva representa a
concretização de um outro caminho, no nível psíquico, de permanente confronto da
consciência com o inconsciente, com o psiquicamente desconhecido. Como o
migrante, a consciência constrói-se dinamicamente nesse processo. A personalidade
vai sendo ampliada e transformada no decorrer dessa jornada.
Ângela Brasil (1996) desenvolve, em sua tese de doutorado, uma analogia entre
a trajetória migrante e o mito do herói. O significado da migração é entendido não
apenas como uma mudança geográfica, externa ao universo psíquico do indivíduo,
mas o processo concreto de mudança acarreta toda uma alteração nos níveis
psíquicos consciente e inconsciente, e encontra-se relacionado a um processo que tem
sua origem no universo simbólico das pessoas.
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transformador vai ser implantado em nossa consciência pessoal e coletiva,
algum dinamismo heróico é ativado. (Brasil, 1996, p.5)
O processo de individuação
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A progressão da libido significa o direcionamento da energia psíquica para a
construção da consciência, e através desta, para o mundo externo.
Por meio dessa dinâmica, no curso do desenvolvimento humano, uma instância
– o ego – vai emergindo do inconsciente e se diferenciando. O ego vai sendo
sedimentado como a base da consciência e funcionando como intermediário entre a
totalidade do indivíduo e seu meio ambiente: o mundo dos objetos.
O ego consiste no centro da consciência e abriga as funções psíquicas como a
sensação, o pensar, o sentir e o intuir. Ele fornece um sentido de consistência e
direção em nossas vidas conscientes. Tende a contrapor-se a qualquer coisa que
possa ameaçar essa frágil consistência da consciência. Valorizamos em nossa
sociedade ocidental, freqüente e erroneamente, o ego como o elemento central de toda
a psique e chegamos a ignorar que, a princípio, a psique é fundamentalmente o
inconsciente.
O ego é responsável pela adaptação do indivíduo ao meio, e por seus atos
representa sua identidade consciente e desfruta de certa autonomia na vida diária,
porém tem suas raízes no inconsciente e dele deriva sua energia. É o centro da psique
consciente, que faz oposição às tendências inconscientes de indiscriminação e
sincretização. O ego realiza, materializa, diferencia-se, delimitando uma
individualidade, ou uma identidade singular, perante todos os outros seres humanos.
Assim sendo, o ego existe no aqui e agora, enquanto o Self é uma instância
atemporal. Através do ego, o Self tem possibilidade de se realizar. O processo de
individuação consiste no tornar-se consciente, mas também na aceitação da primazia
do Self. A característica dupla do processo de individuação revela-se no movimento de
ir e vir neste eixo ego-Self: o emergir de conteúdos e o mergulhar no inconsciente.
A individuação revela-se uma dinâmica circular, cíclica, caracterizada pela inter-
relação entre o ego e o Self. Uma busca de completude, porém jamais a perfeição, pois
o completo inclui o perfeito e o imperfeito.
O ser humano sempre esteve em busca de algo inalcançável, o que o moveu a
conquistar toda a terra e o que o move ao espaço cósmico. Em outra direção, essa
busca o levou ao que se encontra subjacente à racionalidade, ou à consciência.
Consideramos que a busca do migrante por outros lugares equivale simbolicamente a
uma busca interna, por si próprio, ao seu próprio Self.
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O dinamismo por trás da migração
11
Esse personagem imaginário aponta para o paradoxo do movimento versus a
paralisação, que envolve essa família. Migram durante gerações, percorrendo longos
caminhos, mas psiquicamente encontram-se estáticas, vítimas de uma maldição, sem
poderem seguir seu próprio desenvolvimento existencial.
A mãe, chegando a esta cidadezinha, vai desfazendo as malas, colocando em
seus novos lugares os objetos familiares, inclusive a urna contendo as cinzas de
Chitza, avó de Anouk. Inicia a montagem primorosa de uma chocolateria, onde
desenvolverá receitas mágicas de chocolates, que despertam um poder transformador
naqueles que as degustam.
Assim se delineia essa ascendência matrilinear que parte de Chitza –
guatemalteca de tribo nômade – cujo povo errava, levado pelo vento norte, de aldeia
em aldeia, aviando remédios antigos, sem nunca se estabelecer ou criar raízes. Ao
casar-se com George, boticário francês, tentou em vão constituir uma família estável.
Mas, ao soprar o vento norte, foi por ele carregada, e continuou a migrar, levando
consigo sua filha Vianne.
Mãe e filha estavam fadadas a vagar de aldeia em aldeia, aviando remédios
antigos à base de cacau, viajando com o vento, como o povo de Chitza fazia há
gerações. Mas a terceira geração, na pessoa de Anouk, filha de Vianne, já não aceita
automaticamente o legado e pede dia após dia que a história lhe seja contada, como se
buscasse compreender a teia na qual estava enredada. Então, no inverno seguinte, ao
soprar o vento norte, reluta em prosseguir o caminho e enfrenta a mãe, momento em
que as malas despencam escada abaixo, fazendo em pedaços a urna ancestral.
O legado dessas mulheres vem imbuído de uma missão: a missão de resgatar,
através do chocolate, energias telúricas inconscientes, que agem transformando as
existências, tanto coletivas como individuais. Mas essa missão as aprisionava numa
vida carente de elos afetivos estáveis e seguros com outras pessoas. Não consistia
mais no caminho de autodesenvolvimento, tanto para a mãe como para a filha. O novo
desafio delas seria o de ficar e assumir seu lugar naquela comunidade, envolvendo-se
e transformando-se com ela.
O filme Chocolat, de Lasse Hallström (Inglaterra/França, 2000), ilumina
dimensões humanas diversas como a sociocultural, representada pela aldeia onde
chegam as personagens; a familiar, incluindo a história de outras gerações; e por fim a
dinâmica emocional de cada uma: mãe e filha. Aborda, neste caminho, a possibilidade
de envolvimento e adaptação do migrante ao novo lugar-lar.
12
Recorremos a imagens simbólicas coletivas para ilustrar e ampliar a questão da
migração enquanto processo não apenas social ou familiar, mas também
psicodinâmico. Partindo de tais idéias consideramos a existência de um sentido
psicológico mais profundo por trás desta jornada.
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Considerando que a instituição familiar propicia as primeiras relações objetais
infantis, podemos apontar a família como ambiente de fundamental importância no
desenvolvimento psíquico do ser humano. Neste âmbito familiar pode-se viver um
dinamismo arquetípico de forma cíclica e aprofundada, experiência que nenhuma outra
vivência humana pode oferecer.
Em outras palavras, podemos realizar, por exemplo, o arquétipo materno,
primeiramente enquanto filhos, depois como mães, finalmente como avós, e,
eventualmente, como bisavós. Cada um desses momentos representa uma
oportunidade para a elaboração de conteúdos referentes a esse arquétipo. E, como
nas relações familiares os vínculos afetivos encontram-se tão potencializados, estas se
tornam um meio altamente propício para a manifestação simbólica.
Procuramos compreender a relação entre a vivência familiar e o processo de
individuação. Onde o singular e o coletivo/familiar se encontram? Como poderemos
compor uma terceira via, enquanto indivíduos, entre nossas heranças arquetípicas e as
novas construções simbólicas pessoais?
Enquanto mulheres aprendemos – quando filhas – como é ser mãe. Entretanto,
quando somos mães e temos nossos filhos, reaprendemos – ou atualizamos no
momento da experiência – a ser mães diferentes das mães que tivemos, pois a
realidade cobra do indivíduo uma resposta adaptativa, e o mundo se transforma
constantemente. Conquanto sejamos mães diferentes hoje, carregamos em nossa
maternidade as heranças de nossas mães, avós, bisavós...
Essa dialética existencial exige uma condição egóica ideal, que nem sempre
está presente em todos os membros de uma família, em todos os momentos da vida e,
sobretudo, frente a todas as tragédias humanas. Enquanto seres humanos, somos
limitados em nossa capacidade de conscientização, e deixamos estar na obscuridade
do inconsciente alguns conteúdos não elaborados, frutos de traumas, de sofrimentos
ou de mera desatenção.
Sabendo que realizamos os potenciais arquetípicos em nossas vidas de relação,
e que a eles temos acesso através de nossas heranças – conscientes e inconscientes
– concluímos que especialmente os conteúdos não elaborados podem ser transmitidos
como heranças inconscientes.
Embora não possamos afirmar que membros de uma família ou de outra não
estejam envolvidos em um processo de individuação, observamos em nossa pesquisa
que alguns dinamismos arquetípicos encontram bloqueado seu acesso à realização.
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Infelizmente não caberia neste artigo a descrição pormenorizada de cada caso
estudado, de forma que comentaremos nossas constatações finais e sugerimos ao
leitor interessado que se remeta a Castro (2005).
Dentre as principais dificuldades, observamos o bloqueio do dinamismo
arquetípico da conjugalidade e o aprisionamento de um dos membros do casal à
família de origem.
Duas das famílias pesquisadas apresentaram este dinamismo. Numa delas o
novo núcleo familiar (pai/esposo, mãe/esposa, filho) continuava morando na casa dos
pais da esposa e subordinava sua dinâmica familiar à da família de origem da esposa,
sendo que o fator preponderante desta situação não envolvia uma necessidade
econômica. Observamos a existência de um trauma familiar relacionado à questão do
exílio, que permeava e bloqueava a possibilidade deste novo núcleo familiar se
diferenciar da família de origem da esposa. A partida desta filha simbolizava uma
reedição deste exílio, um dilaceramento da família.
Em outra família, que migrara do nordeste, também a esposa/mãe não
conseguira se desligar psicologicamente do lar materno, sofrendo até mesmo de
sintomas depressivos e isolando-se em casa. Percebemos a solidão decorrente da
impossibilidade da constelação da conjugalidade e a busca de apoio na religião.
Outra dificuldade observada consistiu na paralisação numa posição infantil, por
parte do filho, indicando que o arquétipo do herói não se constelou, impedindo sua
partida para a conquista do mundo dos adultos, e a construção de uma identidade
como homem. Nesta família, cuja esposa/mãe havia vivido em sua infância o trauma do
abandono paterno e em função deste o recrudescimento dos vínculos familiares (mãe-
filhos), percebemos que os filhos – já na geração seguinte – herdaram a dificuldade de
saírem para o mundo e crescerem. Este processo, em si mesmo natural e saudável,
remontava à experiência do abandono paterno. Em outras palavras, viajar ou morar
fora de casa era simbolicamente vivido como aniquilamento da família de origem.
Outras famílias por nós investigadas, mesmo outros membros de famílias que
enfrentavam alguma paralisação, parecem se beneficiar pelo movimento vital, e
migratório, apesar de muitas vezes sofrerem, ou terem sofrido no passado
transformações dolorosas as quais deixaram profundas marcas psíquicas e físicas.
Enfim, a migração – concreta ou simbolicamente vivida –, assim como o
desenvolvimento existencial, quando aceitos em sua dialética e se não estão
15
associados simbolicamente a traumas como abandono, exílio ou morte, são
experimentados como processos naturais e inerentes ao ser humano.
Considerações finais
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individuação. Jornada na qual nos envolvemos, em busca de felicidade – no sentido de
paz, fortuna, alegria – mas no cerne da qual somos transformados de forma tão
extraordinária e profunda que dificilmente podemos expressar em termos racionais.
No processo de individuação, bem como na migração familiar, os limites
intersubjetivos são bastante relativos. Este artigo buscou ampliar o conhecimento
acerca da subjetividade da família migrante, tendo como pano de fundo a
universalidade do fenômeno inconsciente, território comum a toda a humanidade.
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Referências Bibliográficas
Bíblia Sagrada traduzida da Vulgata e anotada pelo Pe. Matos Soares, reimpressa. São Paulo:
Edições Paulinas, 13a Edição, 1955.
BRASIL, A. M. R. C. “Voar é viajar, viajar é migrar, é sair da terra”. Migração como processo
finito e processo infinito. Estudo junguiano dos símbolos presentes na trajetória heróica
migrante. São Paulo, 1996. Dissertação de Doutorado em Psicologia. Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, USP.
RAMOS, G. Vidas Secas; posfácio de Álvaro Lins, ilustrações de Aldemir Martins, 53ª ed. Rio,
São Paulo: Record,1984.
Filmografia:
CHOCOLAT. Direção: Lasse Hallström. Produção: David Brown. Intérpretes: Juliette Binoche;
Judi Dench; Alfred Molina; Len Olin; Johnny Depp e outros. Música: Rachel Portman.
Inglaterra/França: Miramax Films, 2000. 1DVD (122 min). Baseado na novela “Chocolat”, de
Joanne Harris.
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EMOÇÃO SOB O OLHAR DA ASTROLOGIA E DA CIÊNCIA
Tereza Kawall1
O presente artigo tem como proposta analisar o tema da emoção humana tanto
do ponto de vista da neurociência quanto do simbolismo astrológico, numa tentativa de
estabelecer uma aproximação entre as duas formas bastante distintas de
conhecimento.
Neste desafio vamos entrelaçar alguns conceitos e princípios da astrologia, um
conhecimento milenar e essencialmente simbólico, e algumas noções básicas da
neurofisiologia, que, com a tarefa de desvendar o intrincado cérebro humano com o
subsídio da alta tecnologia, tem obtido resultados surpreendentes e fascinantes nos
últimos anos.
Para esse estudo, escolhemos o símbolo da Lua astrológica, uma vez que ele
nos remete ao arquétipo do feminino, da maternidade e da memória emocional, que é o
foco de nosso interesse.
Nessa reflexão analisaremos, através de um exemplo, como uma combinação
planetária e seus símbolos podem ter uma analogia com possíveis complexos
psicológicos e como estes podem representar ou indicar predisposições ao
adoecimento. Seria esta interface possível?
1
Psicóloga e psicoterapeuta com orientação junguiana. Pós-graduação em Psicossomática Junguiana pelo FACIS
IBEHE, SP. E.mail: tekav@uol.com.br
No Egito, ela evoluiu através de grandes avanços na astronomia, com
conhecimento sobre as leis do universo e da medicina. Neste período histórico, religião,
astrologia e astronomia eram inseparáveis tanto no conceito quanto na prática.
Em sua famosa obra Tetrabiblos, Ptolomeu (100-178 DC), astrólogo e
astrônomo da Alexandria, sistematizou pela primeira vez todo o conhecimento
astrológico e astronômico da Antigüidade, relativo às posições, aos significados dos
planetas e suas influências especificas nos assuntos humanos.
Julgamos que a vida não poderia ser vivida e expressa na sua mais
íntima profundidade – mesmo inconsciente – se os símbolos não viessem em
nossa ajuda. E é com a ajuda deles que podemos traduzir em linguagem aquilo
que sentimos dentro de nós. Portanto, o símbolo é a imagem que criamos a
respeito de um conteúdo interior que transcende a consciência. No caso da
astrologia, o símbolo encerrado no Zodíaco e nos planetas é o ponto de
encontro, a soldagem dominante entre o mundo psicológico e espiritual do
homem (microcosmo) e o universo dos astros no céu (macrocosmo). (Sicuteri,
1994, p. 11)
Ao jogar com as imagens evocadas por essas três fases, podemos ver
como a Lua nova, essa traiçoeira Lua negra, se associa à morte, à gestação, à
feitiçaria, e à deusa grega Hécate, regente dos nascimentos e da magia negra.
Após o escurecimento da Lua, vinha a Lua crescente, com sua virginal
delicadeza e suas promessas. Sua forma é de uma tigela aberta, pronta para
receber um conteúdo vindo de fora. A Lua crescente era relacionada com a
deusa virgem Perséfone, raptada por Hades. A Lua cheia, por outro lado, tem
uma aparência grávida; é redonda e suculenta, plena e madura, e seu parto
pode ocorrer a qualquer momento. É a Lua em seu poder máximo, associada à
deusa da fertilidade Deméter, a mãe de todos os seres vivos. (Greene, 1994,
p.6)
Esta relação misteriosa com o feminino também está presente nos contos
folclóricos, dos lobos e vampiros metamorfoseados na lua cheia, na relação com a
loucura, com rituais mágicos, na feitiçaria – todas essas fantasias e mitos relacionam-
se ao mundo lunar, o mundo noturno e obscuro das emoções humanas, sejam elas o
amor, a loucura ou a magia.
A Lua astrológica tem significados e representações análogas ao arquétipo
feminino e materno; no zodíaco ela é a regente do signo de Câncer, do elemento água;
é o significador dos relacionamentos e das emoções. Este signo ocupa a quarta casa
zodiacal, simbolizando a família, a infância, a mãe, a segurança do lar.
Como vimos anteriormente, as histórias míticas que estão relacionadas aos
arquétipos zodiacais são internas e externas, refletindo a alma de uma pessoa, seus
deuses e seu destino. Podemos apreendê-las como a jornada do herói rumo ao seu
desenvolvimento. O signo de Câncer diz respeito a esta passagem, que é a
emancipação emocional do reino da Grande Mãe, arquetípica e pessoal, para uma fase
de mais autonomia e independência.
Tomando como base o período pré-natal, entende-se que o feto, desde a sua
concepção, está sujeito às condições físicas e emocionais da mãe; assim, na vida intra-
uterina alguns dos padrões da criança já estão sendo incorporados, na medida em que
ela registra via corpo e via inconsciente o que a mãe está experimentando. Temos aqui
uma experiência arquetípica, isto é, comum a toda humanidade, pois todos nascemos
de um corpo de mulher e dele recebemos nosso primeiro alimento, seja ele o
aleitamento, a proteção, o calor físico ou o amor; o que varia é a qualidade da
experiência individual.
Assim, as primeiras experiências do bebê são marcadamente sensações
corporais; amamentação, sono, calor, frio, contato, dor, prazer, sons, imagens,
percepções, memórias que vão tecendo a base instintiva e emocional daquele ser
ainda em estado de fusão e dependência da mãe.
Os princípios arquetípicos da fase oral são os de amor, nutrição e sobrevivência.
Nessa fase, que vai do nascimento até aproximadamente os dois anos, o bebê
relaciona-se com o mundo através da boca e da atividade de sucção. O alimento, seja
ele físico ou emocional, é essencial para a base psíquica saudável ou não da criança.
Baseado em suas observações como pediatra, Winnicott estabeleceu algumas
premissas básicas a respeito do primeiro ano de vida do bebê, e quais as suas
implicações para a sua saúde mental e física.
A pedra angular da teoria winnicottiana é fundamentada na relação mãe-bebê
nos primeiros meses de vida Segundo este autor, o desenvolvimento da conquista da
autonomia é central nesta fase, pois o bebê sadio gradualmente deve sair da fase de
dependência absoluta para a fase de dependência relativa.
Diz Winnicott:
Assim, para Jung, tanto nas neuroses quanto nas psicoses, os sintomas
de natureza somática ou psíquica originam-se nos complexos. Nas neuroses, os
complexos sofreriam alterações contínuas, enquanto nas psicoses eles seriam
fixos, impedindo o progresso da personalidade. (Ramos, 1994, p. 42).
Considerações finais
FERNANDES, Fernando. Astrologia para um novo ser. São Paulo: Roka, 2000.
MANN, A.T. The Round Art, The Astrology of time and space. Great Britain: Dragon´s
World Book,1979.
WINNICOTT, Donald. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1984.