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EDITORIAL

Neste quinto número da Revista Jung & Corpo temos o prazer de contar com a
participação de profissionais que, com sua criatividade, contribuem tanto para a formação
dos alunos do nosso curso de especialização quanto para o avanço do conhecimento e da
pesquisa na área da saúde.
No primeiro artigo, a neurologista Denise Menezes aborda, num instigante trabalho, o
desenvolvimento cerebral e seu entrelaçamento com nossas percepções, nossos afetos e
memórias na construção de nossa história pessoal.
O uso de técnicas corporais frente a diferentes quadros clínicos pode ser encontrado
nos artigos sobre anorexia nervosa, escrito pela psícóloga Fabiana Biagigo, e também no
relato da psicóloga Ana Carolina Sobreiro, que escreve sobre sua experiência com pacientes
cardiopatas em situação de hospitalização.
Sentimo-nos muito honradas pela possibilidade de homenagear dois profissionais cuja
visão de integração fisiopsíquica reflete-se em seus importantes trabalhos. A história do
Professor Pethö Sándor é relatada pelo psicólogo Arnaldo Motta a partir de pesquisa
minuciosa por ele realizada. E a Professora Márcia Bittencourt compartilha conosco sua
experiência pessoal a partir de seus encontros com Marion Woodman.
Exemplo de integração fisiopsíquica é trazido pelo psiquiatra e sociólogo Paulo
Machado, que aborda as danças circulares e sua importância como agente integrador do
corpo, da mente e do espírito através dos tempos e em diferentes culturas.
Num trabalho que conjuga a visão junguiana e a abordagem sistêmica, a psicóloga
Denise Mathias apresenta um relato de caso no qual sonhos foram utilizados como recursos
na terapia familiar.
Dois dos artigos recorrem à mitologia para amplificar vivências atuais. Ana Cássia
Stamm, psicóloga, historiadora e graduada em letras, aborda o mito de Lilith, associando-o a
elementos que necessitam ser resgatados na cultura e na personalidade de homens e
mulheres. A psicóloga Maria Helena M. Guerra aborda o tema da violência contra a mulher,
ilustrado pela história de Sitā, proveniente do épico indiano Ramāyana.
Finalizando, nossa revista publica o artigo do psiquiatra e analista junguiano Carlos
Byington, que, numa nova concepção, busca situar a ética dentro da ciência através do seu
estudo como função estruturante arquetípica e neurológica.

Boa leitura!
CONSIDERAÇÕES SOBRE AS RELAÇÕES MENTE-CORPO

Denise Menezes1

A relação entre o nosso psiquismo e o funcionamento orgânico vem sendo objeto de


estudos há várias décadas. Acredito que, teoricamente, todos sabemos ser nossa mente
una com nosso corpo. Para os seguidores do materialismo científico isso significa que nosso
psiquismo é um sub-produto do nosso cérebro, portanto, do nosso corpo. Para os idealistas
dualistas isso traduz a convicção de que nossa mente antecede em existência e cria nosso
corpo. Para os idealistas monistas nossa mente surge simultaneamente com o nosso corpo,
ambos conseqüência do colapso quântico de uma Consciência maior e incognoscível. Essa
discussão foge ao meu objetivo aqui e, confesso, à minha capacidade. Pretendo por
enquanto analisar o “teoricamente” do início do parágrafo.
Embora a noção de que somos essa unidade Mente-Corpo já esteja presente em
algum grau nas pesquisas científicas, a nossa prática, enquanto profissionais da área da
saúde, freqüentemente se distancia dessa realidade. É comum ver médicos separarem
doenças ditas psicossomáticas de outras, como se fosse possível a alguma doença não ser
a expressão da totalidade. Da mesma forma vejo com freqüência psicólogos surpresos,
quando exames neurorradiológicos funcionais mostram envolvimento deste ou daquele
circuito cerebral em doenças conhecidas como psicológicas, como se fosse possível uma
manifestação psíquica dissociada de substrato neuronal.
Talvez o maior motivo para essa dissociação seja que, para a maioria das pessoas, a
relação mente-corpo permanece envolvida em uma névoa mágica, como se fosse possível
discorrer teoricamente sobre ela sem, no entanto, concretizá-la. A ciência positivista nos
deixou quase com um cacoete, de que o sofrimento da alma não tem correspondência física.
Aceitamos simplesmente que ele exista. E quando essa correspondência é demonstrada,
imediatamente a comunidade científica passa a classificá-lo como distúrbio orgânico, como
se a partir desse momento ele tivesse deixado de ser psíquico. Outra forma de atribuírem
organicidade a um problema de saúde é quando reiteradas abordagens psicológicas não

1
Neurologista pela UNIFESP. Mestre em Biologia Molecular pela UNIFESP. Homeopata pelo CEPAH. Professora de
Bases Neurológicas do Diagnóstico Psicológico na PUC-SP.
obtêm sucesso significativo no seu tratamento. Assim aconteceu com a síndrome do pânico,
com o transtorno obsessivo compulsivo, a câimbra do escrivão, com o transtorno por déficit
de atenção, e muitas outras. Persistimos esperando que haja uma nítida separação entre o
que deve ser tratado com remédios e o que deve ser tratado com a palavra. Instrumentos
complementares são vistos como excludentes.
Antes de seguir adiante neste raciocínio, façamos um breve apanhado das relações
psique-soma. Sem dúvida ainda há muito a ser descoberto, mas já sabemos o suficiente
para, ultrapassando esse enfoque puramente teórico, incorporarmos o raciocínio da unidade
à prática clínica.
Não temo me referir à mente e ao corpo, apesar de defender sua unicidade, pois
cada parte do todo é parte e é todo. Minha mão, por exemplo, apesar de ser “eu”, ainda
assim é mão, ainda assim é minha. Dessa forma posso me referir a sentimentos, idéias e
emoções como mente, mesmo sabendo que sempre corresponderão a padrões e
movimentos físico-químicos, em alguma parte do corpo. Para resumir superficialmente o
complexo intricado que existe entre mente e corpo, vamos primeiramente acompanhar o
desenvolvimento cerebral, portanto, o desenvolvimento da nossa história pessoal.
Nascemos com o cérebro em parte pronto, em parte projeto. Nosso genoma prevê
um cérebro pleno, mas apenas as áreas que carregam as aquisições evolutivas da nossa
espécie, que não mais precisam ser aprendidas, estão finalizadas. O resto é cérebro em
potencial. Para que ele se concretize é necessário que fatores ambientais ajudem. Esses
fatores ambientais vão desde os hormônios e nutrientes circulantes na placenta, passam
pelos hábitos da família em que nascemos, por suas características afetivo-emocionais, indo
até as condições sócio-político-culturais em que vivemos.
Nascemos com todos os neurônios já posicionados na arquitetura do parênquima
cerebral, mas muitos ainda não se comunicam entre si. Nossos neurônios são planejados
para se comunicarem de maneira específica, de acordo com suas funções. Mas muito dessa
comunicação, ou seja, muitas de nossas sinapses só se desenvolvem a partir do momento
em que haja necessidade de que isso ocorra. A necessidade do uso antecede o
desenvolvimento pleno de nossas sinapses. Por exemplo, para desenvolvermos a
audição faz-se necessário estimulação auditiva. Se não houver onda sonora no ambiente
ou, se existindo, elas não estimularem nosso aparelho auditivo (por exemplo, por secreção
no ouvido médio, que impeça o tímpano de vibrar), não chegará nenhum estímulo sonoro ao
nosso córtex auditivo, portanto não haverá necessidade de ouvir. Nossas sinapses
permanecerão imaturas nas áreas relacionadas com a audição. Esse raciocínio vale para
todas as nossas percepções. Percepção gera modificação sináptica. Podemos concluir
que a presença de estímulos é condição fundamental para o desenvolvimento do nosso
cérebro. E que a qualidade deles promove conexões com qualidade equivalente. Quanto
melhor a estimulação, melhor rede sináptica irá se formar. E quanto melhor for a rede
sináptica do cérebro, maior a acuidade da percepção. E quanto maior a acuidade da
percepção, mais eficiente o cérebro. E quanto... Bem, entendemos agora por que a árvore
que o sábio vê é diferente da árvore que o tolo vê.
Vamos nos estender um pouco mais em como se dá a percepção. Todos os
estímulos que nos chegam, para serem percebidos, são desmembrados em sub-estímulos.
Isso porque nosso cérebro processa cada característica do estímulo em um local diferente.
Por exemplo, a forma, o movimento, a cor, a profundidade, o significado de um estímulo
visual, são características processadas em separado. Apenas após esse processamento é
que os neurônios, disparando em locais diferentes, porém no mesmo ritmo, freqüência e
intensidade, nos dão a percepção de uma imagem única. A nossa percepção é, pois,
construída. Se você tem um vício de refração, miopia por exemplo, a imagem que você
formará será diferente da de alguém que tem visão plena. E se o estímulo é algo conhecido,
com o qual você já teve contato outras vezes, também formará uma imagem diferente da
formada por alguém que está tendo seu primeiro contato com ele (as sinapses estarão em
grau diferente de desenvolvimento, lembra?). E se em algum momento da vida você adquiriu
uma pequena lesão em alguma das áreas responsáveis por uma sub-função, novamente o
resultado final será diferente do obtido por quem não possui a lesão. Neste exemplo nós
estamos tratando apenas da visão. Mas o mundo é percebido por (formado em) nosso
cérebro através de todos os sentidos. Se pensarmos que fora do nosso cérebro não existe
cor, cheiro, som, mas ondas eletromagnéticas de comprimentos diferentes, moléculas
odoríferas, ondas de pressão respectivamente, entenderemos que o mundo é
percebido/construído por cada um de nós de forma muito particular. O fato de termos todos
o cérebro no mesmo estágio evolutivo, o da nossa espécie Homo sapiens sapiens,
necessariamente torna nossas percepções mais parecidas entre si, do que com o mundo
percebido/construído por outros animais. Mas a semelhança pára por aí.
Há ainda outra variável significativa na formação da percepção: o afeto. Mesmo
sendo saudáveis, nem todos os estímulos que nos cercam adentram nosso sistema nervoso
central. O crivo do significado está sempre ativo, quer dormindo, quer acordado. Quando
algo não tem relevância para nós, nosso cérebro pode simplesmente não dar passagem
para que esse estímulo atinja nossas áreas de percepção. Um bom exemplo disso é o que
acontece com a mãe que acabou de dar à luz, quando o cansaço impede que um barulho
forte a desperte, mas que acorda ao menor gemido do filho no quarto ao lado. Ou o filho
adolescente, que nunca acordava com o despertador, até se ver sozinho sem a mãe para
acordá-lo. Durante a vigília, quando dividimos a atenção ao que fazemos com pensamentos
paralelos, e esse costuma ser nosso modo mais comum de funcionar, muitos estímulos do
meio ambiente não conseguem penetrar no nosso sistema nervoso. Por isso, pessoas que
estão passando pelas mesmas experiências podem perceber fragmentos diferentes dessa
realidade, e o que for comum pode ser construído com pequenas variações. Nosso
psiquismo influencia desde o princípio a construção da nossa percepção, por conseguinte, a
construção do nosso cérebro. Mas a nossa história é feita do que já passou, portanto, da
nossa memória.
Memória é modificação de sinapses. Ao memorizar fazemos novas sinapses, ou
reforçamos as antigas, ou desativamos as que não nos servem mais. Ao rememorarmos um
fato, voltamos a disparar os mesmos neurônios que haviam sido disparados no momento da
percepção. Rememorar é uma reconstrução ativa. Só que essa reconstrução está sujeita
a muitos equívocos. Primeiro, nós podemos arquivar fragmentos de percepções misturados,
só porque foram estímulos percebidos ao mesmo tempo (por exemplo, se uma mulher alta
nos conta sobre outra mulher, podemos memorizar que aquela sobre quem falávamos era
uma mulher alta; ou se alguém faz um comentário sobre um fato que está sendo discutido,
podemos incluir essa informação como sendo original do fato). Em segundo lugar, nós não
memorizamos o fato, mas a idéia, o sentido que o fato teve para nós. Em cima desse
significado, fantasiamos, colocamos detalhes que são fruto do modo como nos sentimos em
relação ao fato. Daí que ninguém consegue fazer um bolo tão gostoso como o da nossa
avó. E se no parágrafo anterior falamos de estímulos que não adentram nosso sistema
nervoso central por não serem suficientemente importantes, agora me refiro ao fato de nós
podermos também esquecer estímulos percebidos (talvez por serem importantes, mas nos
trazerem sofrimento, por exemplo). Essa situação é muito diversa, pois o processo de
esquecimento é um processo ativo, que requer gasto de energia e modificação sináptica.
Mais uma vez, nosso psiquismo interfere na construção de nossas sinapses, por
conseguinte, do nosso cérebro.
Já vimos que nosso cérebro está sendo permanentemente construído ao longo da
vida, de acordo com o que vivemos, quantitativa e qualitativamente. Mas, onde entram
nessa história a saúde e a doença?
Nossos órgãos internos, nossas glândulas endócrinas, nosso sistema circulatório e o
imunológico necessitam do equilíbrio dinâmico entre as funções, ora antagônicas, ora
sinérgicas, do nosso sistema nervoso autônomo, que é responsável pela nossa
homeostase.

Esquema de inervação autonômica dos nossos órgãos e glândulas- Kandel e cols.


O hipotálamo é o centro integrador das informações somáticas, viscerais e
comportamentais que chegam de todo o corpo. Ele, por estar intimamente ligado à memória
afetiva (complexo amigdalóide), reage prontamente ao reconhecimento de que determinada
vivência nos é agradável, prazerosa, construtiva, ou pelo contrário, significa sofrimento,
desprazer, risco de vida, preparando o organismo para luta, ataque, sexo, ou outro
comportamento adaptativo.

Kandel e cols.
O sistema nervoso simpático e o parassimpático, um aumentando nosso alerta e
dirigindo nossa energia para o esforço de lutar ou fugir de um perigo potencial, outro
privilegiando nossas funções digestivas e relaxando o corpo de uma maneira geral, são
fundamentais para nossa sobrevivência. A ativação do sistema nervoso autonômico interfere
na pressão sanguínea e na composição eletrolítica (gerando comportamentos como beber
água, comer), regula a temperatura corporal, controla o metabolismo energético, regula a
reprodução (por meio de hormônios relacionados à atividade sexual, gravidez e lactação) e
controla a resposta ao estresse. Essa nos interessa particularmente agora.
A resposta ao estresse aumenta a produção de hormônios como o cortisol, a oferta
circulatória da glicose armazenada no fígado (precisamos de energia extra, não?), privilegia
a circulação para os músculos e as áreas cerebrais responsáveis por tomadas de decisão,
aguçando nossos sentidos, e inibindo nossas defesas imunológicas (afinal, não vamos
nesse momento nos ocupar com vírus ou bactérias, pois o “inimigo” é alguém de carne e
osso, ou um ônibus que se aproxima perigosamente). É importante que assim o seja.
Precisamos ser capazes de prontidão ao risco, da mesma forma como precisamos ser
capazes de nos manter em estado relaxado quando esse risco não existir.
O problema é quando o equilíbrio dinâmico do nosso sistema nervoso autônomo é
desfeito, com desnecessária ativação do sistema simpático. A cascata de reações químicas
que ocorre dentro das nossas células, pela excessiva exposição aos neurotransmissores,
peptídeos, hormônios, produzidos numa situação de estresse, pode levar a modificações
nas produções protêicas pelos nossos genes (e tudo o que acontece conosco, o início e a
finalização de qualquer função celular, depende de produção protéica. Podemos dizer que é
só isso que fazemos a nível celular: fabricar proteínas). Essa sobrecarga pode levar a erros
na produção de proteínas, podemos ativar genes herdados relacionados com doenças, e
inativar genes saudáveis que são imprescindíveis para a nossa saúde.
Resumidamente, a unidade mente-corpo é constituída por coisas tão diferentes como
aminoácidos, impulsos elétricos, emoções e valores. Qualquer ponto dessa imensa rede
pode nos levar à totalidade. Ao optarmos por um determinado instrumento na abordagem de
um paciente, o mais importante é descobrir se esse instrumento é o mais adequado para
aquele paciente naquele momento, seja ele um remédio, um ato cirúrgico, uma sessão de
terapia psicológica, de fisioterapia, ou um conjunto de medidas interdisciplinares.
Sugestões de leitura

KANDEL, Eric R. e cols. Princípios da Neurociência. Editora Manole ltda., 1ª edição


brasileira, 2003.

LENT R. Cem Bilhões de Neurônios: conceitos fundamentais da neurociência. Editora


Atheneu, 2004.
TOCANDO A MULHER FERIDA: O USO DA ABORDAGEM CORPORAL
NA ANOREXIA NERVOSA
Fabiana Rocha Biagigo1

O corpo protege-nos e nos guia – seus sintomas são sinais que nos religam à nossa própria alma
perdida. (Woodman, 2003, p. 29)

Na vida cotidiana, embora sejamos “bombardeados” a todo instante com a idéia de que
devemos cuidar de nosso corpo (muito mais do ponto de vista da estética do que do bem-
estar) e de nossa saúde, estamos muito distantes do conhecimento do que seja viver e
cuidar da saúde a partir do corpo.
Estereótipos, padrões e modelos externos fornecidos pela cultura norteiam a relação
do indivíduo com seu próprio corpo. O corpo passou a ser enxergado como um objeto e
tratado de maneira racional. Criou-se uma imagem corporal ideal e muitos passaram a
persegui-la a qualquer preço.
As mulheres, aparentemente com maior intensidade do que os homens, são
constantemente cobradas em relação à sua aparência física. Alcançar um corpo
esteticamente perfeito, nos padrões culturais atuais, significa ser socialmente aceita e bem
sucedida.
Academias e clínicas voltadas para a estética corporal proliferam a cada esquina e
seduzem com receitas e promessas milagrosas de emagrecimento e perda de gordura
corporal. É necessário “malhar” por horas, todos os dias, e submeter-se a processos às
vezes dolorosos e invasivos a fim de alcançar o “corpo perfeito”. Dietas altamente restritivas
e cirurgias plásticas tornaram-se práticas comuns e quase banais atualmente.
Nessa busca, muitas vezes sem critérios, por um corpo magro e quase sem curvas,
digno de top models internacionais, a saúde e o bem-estar de nosso corpo concreto e real
deixam de ser prioridade.

1
Psicoterapeuta junguiana. Especialista em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas Corporais pelo
Instituto Sedes Sapientiae. Membro da equipe de trabalho do Núcleo Espiral – Núcleo de Atendimento Psicológico a
Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência.
Perde-se o contato com o próprio corpo, com a experiência corporal e com o
conhecimento interno, desconectando-se assim do significado simbólico do corpo. Negando
o próprio o corpo, nega-se morada à alma.
No início de 2004, a convite de uma amiga, tive a oportunidade de realizar alguns
encontros com pacientes internadas em uma clínica voltada para o atendimento de mulheres
com os mais diversos quadros psiquiátricos. O que se observava, no entanto, naquela
instituição, era um predomínio de pacientes com quadro de distúrbios alimentares.
Sabendo do meu interesse pela utilização da abordagem corporal na prática da
psicoterapia, essa amiga convidou-me para trabalhar juntamente com ela, focando
especialmente o corpo dessas pacientes.
Apesar de ter sido uma experiência muito breve, por problemas enfrentados pela
instituição, uma semente ficou plantada. Foi uma vivência muito marcante, que despertou
em mim a necessidade de estudar mais a respeito dos distúrbios alimentares, cada vez mais
freqüentes entre as mulheres jovens, dos aspectos culturais envolvidos e buscar
compreender como a Psicologia abordava, ou poderia abordar, o corpo dessas pacientes.
Para mim, era quase impossível observar as mulheres anoréxicas com corpos
extremamente emagrecidos e famintos, e não pensar, imediatamente, na importância de
incluir a abordagem corporal no processo terapêutico das pacientes. Foi assim que nasceu a
idéia da monografia apresentada como trabalho de conclusão do curso de especialização
em “Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas Corporais”, da qual foi
extraído esse artigo.

Quadro Clínico da Anorexia Nervosa

Os transtornos alimentares apresentam geralmente suas primeiras manifestações na


infância e na adolescência. Aqueles que aparecem precocemente na infância, representam
alterações da relação da criança com a alimentação e não parecem estar associados a uma
preocupação com peso ou forma corporal, como assinalam Appolinário e Claudino (2000).
No entanto, alguns comportamentos presentes na idade escolar podem ser
considerados fatores de risco para o surgimento de distúrbios alimentares no futuro. Os
transtornos com surgimento mais tardio são os alimentares propriamente ditos: a anorexia
nervosa e a bulimia nervosa.
Como apontam Appolinário e Claudino (2000), existem evidências de que os fatores
psicossociais desempenham importante papel na distribuição dos distúrbios alimentares na
população. A influência do “culto ao corpo” e da exigência da “magreza” nas sociedades
ocidentais parece estar associada ao surgimento de comportamentos anoréxicos. Além
disso, naquelas profissões nas quais o desempenho é alterado pela “leveza” (ginastas,
patinadoras, bailarinas) ou nas quais ocorre a comercialização da imagem (modelos e
atrizes), o risco de desenvolvimento de transtornos alimentares está aumentado em relação
à população geral.
O modelo mais aceito atualmente para explicar o surgimento e a manutenção dos
transtornos alimentares é o modelo multifatorial, no qual fatores biológicos, psicológicos e
sociais se inter-relacionam.
O início da anorexia nervosa, em sua forma típica, é marcado por uma restrição
progressiva da dieta, com a eliminação de alimentos considerados hipercalóricos, como os
carboidratos. Appolinário e Claudino (2000) relatam em seu estudo que as pacientes
passam a apresentar insatisfação com seus corpos, medo de engordar, e a viver em função
da dieta, da comida, peso e forma corporal, restringindo seu campo de interesses, o que
leva ao isolamento social. As pacientes apresentam uma perda de peso progressiva e
continuada, acompanhada de distorção da imagem corporal, com auto-avaliação
inadequada e negação do baixo peso. O padrão alimentar vai tornando-se cada vez mais
secreto adquirindo, algumas vezes, características ritualizadas e “bizarras”.
Existem dois tipos de apresentação clínica da anorexia nervosa: tipo restritivo e tipo
purgativo. No tipo restritivo, as pacientes apenas empregam comportamentos restritivos
associados à dieta. No segundo tipo, o purgativo, ocorrem episódios de compulsão alimentar
e/ou comportamentos de vômitos auto-induzidos, abuso de laxantes e de diuréticos.
A prática de exercícios físicos é freqüente e tem como objetivo a queima de calorias e
perda de peso.
As complicações clínicas decorrentes da desnutrição e dos comportamentos purgativos
são a anemia, interrupção dos ciclos menstruais (nas mulheres), alterações das capacidades
de atenção e concentração, alterações freqüentes do humor, alterações endócrinas,
osteoporose e alterações hidroeletrolíticas, podendo esta última levar a arritmia cardíaca e
morte súbita. Como relatam Appolinário e Claudino (2000), é bastante freqüente a
associação dos transtornos alimentares com outros quadros psiquiátricos, especialmente
com transtornos de humor, transtornos de ansiedade e/ou transtorno de personalidade, o
que torna essencial um diagnóstico preciso, sob o risco de comprometimento do tratamento.
O DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) descreve uma
série de critérios diagnósticos que compõem o quadro da anorexia nervosa.

O Olhar da Psicologia Analítica

A psicoterapia de orientação junguiana diferencia-se de outras linhas teóricas por


propor, entre outras coisas, um olhar simbólico e prospectivo para os dinamismos psíquicos.
Como afirma Jung:

...o trauma, motivo aparente da doença, nada mais é do que a oportunidade que
algo que está fora do domínio da consciência (...) tem de se manifestar. Assim sendo, o
trauma perde a exclusividade, sendo substituído por uma interpretação muito mais
abrangente e profunda (...) (Jung, 1987, p.10, parágrafo 13).

Ao longo da obra de Jung é possível notar as inúmeras menções à correlação entre os


processos corporais e os dinamismos psíquicos. Corpo e psique são compreendidos, pelo
autor, como duas expressões do ser humano.

Tudo o que se pode observar empiricamente é que os processos do corpo e


processos mentais desenrolam-se simultaneamente e de maneira totalmente misteriosa
para nós. É por causa de nossa cabeça lamentável que não podemos conceber corpo e
psique como sendo uma única coisa. (Jung, 1985, p.29, parágrafo 69).

É a partir desse pressuposto teórico e dessa visão de ser humano, na qual mente e
corpo formam uma unidade inseparável, que buscarei compreender a anorexia nervosa. A
mulher anoréxica deve ser abordada tanto no âmbito individual como no coletivo, uma vez
que se encontra inserida dentro de um contexto social e cultural bastante específico.
Muitas das mulheres modernas foram criadas em lares de “autoridade abstrata e
coletiva”, onde predominam os lemas de “é preciso” e “deve-se” do superego, ou então,
acabaram identificando-se com a cultura patriarcal, freqüentemente, mas não só,
representada pelo pai, alienando-se de sua base feminina e, muitas vezes, da mãe pessoal,
considerada fraca e irrelevante. Segundo Perera (1985), essas mulheres necessitam
defrontarem-se com a “deusa em sua realidade fundamental”.
As mulheres feridas na relação com o feminino quase sempre têm uma persona
eficiente. São filhas dóceis do patriarcado, intelectuais e dotadas do que a autora denominou
“egos-animus”. Lutam para defender virtudes e ideais estéticos apresentados pelo superego
patriarcal, mas enchem-se de auto-rejeição quando não conseguem satisfazer ou aliviar as
exigências de perfeição do superego.
Robell (1997), com base nas discussões realizadas em supervisões clínicas com
Marion Woodman, afirma que a mesma compreende a mulher anoréxica como uma mulher
cuja feminilidade está ausente em função de sua busca de metas masculinas, que são, na
verdade, apenas uma paródia daquilo que a masculinidade realmente é. As mulheres
anoréxicas geralmente têm educação superior, são sensíveis e eficientes, estudiosas e têm
boas notas. O princípio feminino apresenta-se dividido em duas partes: de um lado está a
mãe boa e carinhosa, que nutre e ama incondicionalmente; do outro lado, a prostituta
impiedosa, não-relacional, sexuada e ciumenta.
Na visão de Perera (1985) foram valorizadas socialmente, nas mulheres ocidentais,
virtudes que freqüentemente apenas se definem por sua relação com o homem: mãe e
esposa fecunda e bondosa; a filha agradável, dócil e delicada; a companheira diligente,
discretamente encorajadora ou brilhante.
As anoréxicas costumam ter sentimentos ambivalentes em relação à mãe: ao mesmo
tempo que se identificam inconscientemente com os ideais de orientação masculina da mãe,
rejeitam estes mesmo ideais, identificando-se com a mãe amorosa.
Na maioria dos distúrbios alimentares, o corpo está doente com o “veneno” do
complexo da mãe negativa. Woodman (1999) afirma que nossa cultura “sentimentaliza
mamãe, torna-a uma vaca sagrada”, deixando-nos cegos para a devastação que efetua o
complexo da mãe negativa, tanto pessoal como culturalmente. A figura materna deve ser
adorada incondicionalmente, sem questionamentos, mesmo que isso signifique, para a
mulher, rejeitar a si mesma. Enquanto a mulher não conseguir separar sua mãe real da
“vaca sagrada”, ela ama o que a está destruindo.
Mas o inverso também é verdadeiro: quanto mais a mulher se amar, mais vai odiar a
sentimentalização da mãe. No entanto, abominar a mãe é muito mais doloroso e ameaçador
do que abominar a si mesma. Freqüentemente, a mulher está mais preparada para destruir
a si mesma do que para odiar o complexo materno associado com sua mãe de carne e osso.
A mãe da anoréxica pode ser “suficientemente boa”, mas a vivência interna assume um
caráter negativo e constela-se então a “mãe terrível”.
O que a consciência solicita é que haja o reconhecimento da diferença entre a
aparência e a realidade, definindo assim os sentimentos ambivalentes em relação à mãe.
Em sua análise, Robell (1997) afirma que a comida simboliza os falsos valores que o
corpo se recusa a assimilar, pois não suporta a mãe negativa. O corpo da anoréxica
demanda que ela se diferencie da mãe negativa a fim de descobrir-se como mulher madura.

A intimidade psíquica e a intimidade física caminham naturalmente juntas, mas


quando foram dissociadas em algum nível pré-verbal, o instinto fica isolado. O alimento
emocional que deveria ser incorporado com o alimento físico não está presente. (...) Sem
a experiência dos instintos, nem a alma feminina, nem o espírito masculino encarnam.
Consequentemente, numa etapa futura, a intimidade emocional, inclusive a relação
sexual, pode ser desestabilizada por sensação de traição. O corpo não está presente. Ela
não está ali. (Robell, 1997, p. 61)

Um outro tipo de dinâmica é discutido por Woodman (1999) em seu livro A Virgem
Grávida. A autora descreve a “mulher-anima” como a filha de uma mãe que tem pouco
contato com sua própria feminilidade, uma “mãe-puella” que nunca fixou residência em seu
próprio corpo. Este afastamento em relação ao próprio corpo impede que haja um elo físico
entre mãe e bebê.

A segurança do mundo corporal materno não está presente para ela (filha), na
matriz original, assim como também não existe sustentação para seu corpo em vias de
maturação, conforme avança rumo à puberdade, tentando distinguir seu contorno próprio
do da mãe e do mundo externo (Woodman, 1999, p. 58).

Durante seu desenvolvimento, ao invés de consolidar seu senso de identidade física, a


filha reage à rejeição inconsciente que sofre da mãe.
O corpo desta mulher pode tornar-se uma prisão. É freqüente que, com a mãe, ela
tenha aprendido a rejeitar seu próprio corpo e, com o pai, a reter suas emoções, pois
embora saiba que é sua “princesinha” e que sua mãe não é verdadeiramente uma rival,
existe uma linha que ela não ousa cruzar. Existe aí um campo muito favorável para a
confusão no desenvolvimento da identidade da mulher.
O pai da mulher-anima costuma ser infantil, puer, imaturo para valorizar a filha por si
mesma. É o masculino em seu estado nascente, sem poder de penetração e conquista, que
seduz pela fragilidade. Freqüentemente, o pai, casado com uma esposa-mãe – que, cheia
de ressentimentos e de uma sexualidade reprimida, enfrenta um mundo decepcionante e
projeta em seus filhos as fantasias de uma vida não vivida – está livre para projetar, em sua
filha, sua anima. Deste modo, a criança fica presa em um incesto espiritual e é convocada a
ser a “filhinha do papai”. Sabendo que não poderá dividir o leito com seu pai, a libido da filha
torna-se incestuosa e a menina não tem acesso ao próprio corpo e à sua sexualidade.
Existe um desejo inconsciente do pai de que esta filha permaneça criança, atendendo,
assim, às projeções de sua anima. Para satisfazer as expectativas do pai, a mulher tem seu
processo criativo impedido (a integração do animus é fundamental para o desenvolvimento
da sua criatividade) e, com isso, seu crescimento e desenvolvimento. A anoréxica constrói
uma frágil identidade feminina e identifica-se com o animus da mãe, rígido e negativo.
Somado à dinâmica familiar bastante específica da anoréxica, outro aspecto importante
para a compreensão do quadro de anorexia, é o momento histórico e cultural atual.
A fantasia de supremacia do ego, de que podemos controlar/dominar praticamente todo
o mundo à nossa volta, leva-nos à fantasia de que podemos também controlar o corpo. A
cultura nos oferece inúmeras maneiras de “controlarmos e disciplinarmos” o corpo: dietas
milagrosas, cirurgia plástica, academias, esteiras, tratamentos estéticos (com ou sem
agulhas)... todas alternativas criam a fantasia de controle do corpo. No entanto, é o corpo
um espaço propício para que o inconsciente se manifeste e, principalmente, o corpo da
mulher, tão reprimido durante séculos e hoje, embora aparentemente liberado, escravizado
como objeto de consumo. Na anorexia nervosa, é o inconsciente que se manifesta e nos
mostra que todas estas técnicas de controle do corpo de nada servem.
Numa sociedade na qual a obsessão pela magreza tornou-se o motivo central da vida
de muitas mulheres, ter apetite e comer com vontade tornou-se algo problemático e até
mesmo vergonhoso. A comida passa a ser associada à gordura e à falta de controle e
perder o controle pode ser algo terrível dentro de nossa cultura.
Hoje, as mulheres já conquistaram sua independência em relação aos homens no
campo profissional. No entanto, além do sucesso profissional, as mulheres anseiam ainda
por inteligência, beleza, um marido bem sucedido e uma família com filhos. Para conseguir
tudo isso, as mulheres devem ser extremamente exigentes consigo mesmas. As mulheres
estão “famintas” por sucesso nas mais diversas “áreas” de suas vidas, mas para conseguir
tudo isso, as mulheres devem ser extremamente exigentes consigo mesmas. Segundo
Robell (1997) as mulheres sofrem com toda essa “fartura” pela qual anseiam, pela
necessidade de ser sempre eficiente e bem sucedida.

Apesar de tudo, e de todo o movimento feminista, o inconsciente da cultura


continua a se manifestar predominantemente no corpo das mulheres (...) As próprias
mulheres não suportam mais a fartura pela qual elas lutaram. (Robell, 1997, p. 53)

O corpo da mulher anoréxica, caracterizado por formas infantis ou andrógenas,


evidencia claramente a dificuldade de definição de uma identidade feminina e de
diferenciação dos modelos masculinos e femininos.
As mulheres talvez não tenham tido tempo suficiente para se estruturar e se preparar
para a inserção no mundo masculino. Ou ainda, é possível que o animus, o arquétipo que
permite um contato mais completo com a feminilidade, não tenha acompanhado todas estas
mudanças. “Com o feminismo, a cultura parece ter criado uma hipertrofia do animus”
(Robell, 1997, p. 119). As mulheres possuídas pelo animus e masculinizadas apresentam,
em última análise, um problema com o feminino.
No momento histórico atual, a moda dita um padrão estético no qual a mulher para ser
bem sucedida, desejada e saudável, tem que ser magra. Trata-se de uma “tentativa da
consciência coletiva imatura de aprisionar o espírito numa fantasia de imortalidade da
matéria, representada pelo corpo das mulheres.” (Robell, 1997,p. 75). O corpo da mulher se
recusa a acompanhar o padrão moral do feminismo. Trata-se de um padrão idealizado de
perfeição, pelo qual as mulheres tiveram a fantasia onipotente de poder ser iguais aos
homens.

O Corpo na Anorexia
Byington (1988) afirma que o corpo é de fundamental importância na formação dos
símbolos psíquicos. O corpo estrutura simbolicamente a consciência, nela incluindo suas
características e suas limitações.
Segundo o autor, o ser humano nasce ainda muito frágil e dependente da dimensão
sociofamiliar. Essa característica da formação de nosso corpo intensifica a importância da
dimensão social nos símbolos de nossas relações primárias. Somos, dessa forma, muito
vulneráveis às influências emocionais primárias.
Ramos (1994) afirma que, quando a relação mãe-bebê é suficientemente boa,
desenvolve-se, a partir da matriz somatopsíquica inicial, uma diferenciação progressiva na
criança entre seu corpo e o corpo de sua mãe, sendo esta a primeira representação do
mundo externo. Os conteúdos psicológicos lentamente se diferenciariam dos somáticos na
psique infantil.
A autora defende a idéia de que o fato de um paciente somatizar não significa que ele
não simbolize, mas sim que esta simbolização acontece no plano somático. O paciente que
se expressa somaticamente teria perdido a conexão de seu corpo com seu inconsciente
somático, de modo que a vida fantasiosa estaria desconectada da vida orgânica. Esses
pacientes teriam uma vida simbólica mais restrita e compulsiva.
Ramos (1994) supõe que a dificuldade de simbolizar no nível mais abstrato seria
conseqüência da interrupção prematura na relação com a mãe. A figura materna exerceria a
função de decodificar, verbal e gestualmente para a criança, tanto os estímulos externos
quanto suas sensações corporais aparentes. É através desta relação que a criança aprende
a identificar seu corpo abstratamente.
A partir das colocações da autora, poderíamos pensar que na anorexia nervosa pode
existir uma “falha” nesta decodificação e na realização da função transcendente, feita pela
mãe, para a criança. Pode-se supor que, uma vez que certos estados emocionais não
puderam ter uma elaboração simbólica abstrata, haveria uma tendência à cisão. Desta
forma, o sintoma orgânico da anorexia nervosa conteria mensagens psíquicas que não
teriam representação abstrata na paciente. À medida que um complexo não é reconhecido
no nível abstrato, o conflito pode assumir uma expressão orgânica.
Byington (1988) relata que cada parte do corpo forma símbolos específicos.
Cada um dos cinco aparelhos ou sistemas corporais (respiratório, digestivo,
cardiovascular, neuroendócrino e locomotor) afeta de forma característica um sem
número de símbolos que estruturam, tipicamente, nossa identidade e nossa forma de
estar e conhecer o mundo. (Byington, 1988, p.29)

O autor ressalta que em uma abordagem na qual a importância simbólica da


expressividade corporal é plenamente reconhecida, o indivíduo é capaz de lidar com seu
corpo como uma fonte não só de prazer e atividade, mas também de ensinamentos
transmitidos “por caminhos próprios de cada um”.
A anorexia e a bulimia nos mostram que nosso corpo se tornou muito “cerebral” e que
nossa alma está definhando. De acordo com Woodman (2003), as anoréxicas e bulímicas
são “seccionadas ao nível do pescoço”, vivem vidas de performances, onde não há um “eu
verdadeiro” que sinta e perceba o que acontece dentro daquele corpo. Na verdade, estão
famintas por uma vida interior; tem-se a sensação de que existe algo interno que está
abandonado. Trata-se do próprio corpo e da alma.
O alimento representa a nutrição fornecida pela mãe e, quando rejeitada, como
acontece na anorexia, simboliza a rejeição da própria vida. A anoréxica é incapaz de nutrir a
si própria ou de ser nutrida pelo outro (dificuldade nas relações e afastamento social).

A comida simboliza a Mãe. A pessoa bulímica quer a Mãe de maneira tão


desesperada que simplesmente soca tudo garganta abaixo. Mas no instante em que as
coisas estão no seu estômago, ela não consegue assimilá-las, de modo que vomita. A
anoréxica recusa e rejeita a Mãe até ser consumida por sua própria falta de nutrição
interior. O corpo é como uma metáfora elaborada. Podemos ser capazes de saborear,
mas não de engolir, como a anoréxica, ou de engolir e não assimilar, como a bulímica ou
a obesa. (Woodman, 2003, p. 19)

É preciso que se compreenda do que a alma tem fome para então poder alimentá-la.

Hoje as mulheres estão sendo forçadas a lidar com seu próprio desejo de morte,
que é precisamente o que devemos fazer em escala mundial. A verdade é que estamos
nos encaminhando para a aniquilação porque nossa cultura não respeita a terra nem a
criatividade feminina. (Woodman, 2003, p. 16)

Woodman (2003) afirma que uma das razões para não sermos sensíveis ao nosso
corpo é o tabu contra a morte que existe em nossa cultura ocidental. O temor de deixar que
as coisas morram, o receio de abandonar o que é antigo e acolher o novo. Segundo ela, o
feminino genuíno sabe que a vida é cíclica, que o antigo deve morrer para que o novo possa
surgir e que todos temos de vivenciar estas transformações periodicamente.
A autora coloca o trabalho corporal como sendo um trabalho com a alma, e a
imaginação como a chave que os conecta. A imagem deve ser levada para dentro do corpo
“por meio da respiração” e, depois, pode se conectar com a força vital, provocando
mudanças físicas e psicológicas.

A maioria das pessoas mantém-se respirando tão superficialmente quanto possível


porque a irrupção de sentimentos é intensa demais quando inspiramos profundamente. A
respiração é muito importante porque se trata de uma maneira de receber, o que é
justamente o princípio feminino encarnado. (Woodman, 2003, p. 21)

Quando não usamos nosso corpo, ficamos desconectados de nossas almas e do


propósito da vida.

Abordando o Corpo da Anoréxica

Podemos afirmar que a anoréxica encontra-se “descorporificada”. Ela idealiza uma


imagem, em lugar da experiência corporal, e acaba vivendo na imagem do corpo e não no
corpo em si.
Sua imagem corporal é distorcida. Mesmo estando com o corpo cadavérico, sem
curvas, olha-se no espelho e enxerga-se gorda. A anoréxica distanciou-se de seu corpo e
não mais o reconhece. Sua alma perdeu o contato com seu corpo.
A expressão somática, por meio de sua doença, mostra que a anoréxica perdeu a
conexão de seu corpo com seu inconsciente somático, de modo que a vida fantasiosa,
eidética, está desconectada da vida orgânica.
“Quando o corpo perde contato com a própria imagem somática interior, ficamos
alienados do sagrado” (Keleman, 2001, p.57).
A anoréxica vivencia um “falso-eu” que não sente ou percebe o que ocorre dentro
daquele corpo. Esse afastamento de si mesma dificulta e, às vezes, impossibilita o contato
com o outro e com o mundo externo, gerando dificuldades nas relações interpessoais e o
afastamento social.
A paciente anoréxica necessita reorganizar sua imagem corporal e, através de seu
corpo físico, ela poderá restabelecer esse contato consigo mesma, com os outros indivíduos
e com o ambiente.
O trabalho corporal constitui, nesse sentido, uma via de acesso a esse corpo reprimido
e negado e, em um nível mais amplo, um contato verdadeiro entre o indivíduo e o mundo no
qual está inserido. A partir da utilização das técnicas de abordagem corporal é possível fazer
a “ponte” entre os conteúdos inconscientes, sintomas orgânicos ou emocionais e o plano
consciente.
É através dos toques e do contato entre terapeuta e paciente, sempre permeados pelo
olhar simbólico do corpo, que a anoréxica poderá, gradativamente, reconhecer seu próprio
corpo.
O trabalho com corpo fornece ao paciente estímulos multissensoriais e cinestésicos
que, permeados pelos significados afetivos e cognitivos vivenciados, possibilitam à paciente
a re-estruturação e re-significação física e psíquica de seu corpo. Somado a isso, o próprio
contato entre terapeuta e paciente (tanto físico e tátil, como em seu sentido mais abstrato),
pode figurar como um fator atuante e decisivo na reconstrução da imagem corporal.
Ao entrar em contato com seu corpo “renegado”, a anoréxica tem a possibilidade de
conectar-se ao princípio feminino, uma vez que o corpo é a representação “concreta e
materializada” desse princípio para o ser humano. Surge, então, um terreno fértil para o
trabalho com a identidade feminina da paciente (freqüentemente “sufocada” no contexto
familiar), sua sexualidade e a diferenciação dos modelos masculinos e femininos, até então
bastante indiferenciados.
A ampliação e o desenvolvimento da consciência a respeito de si mesma e de seu
próprio corpo traduzem-se em um desenvolvimento da individualidade, a vivência do
“verdadeiro-eu”, a aceitação da imagem somática e a construção da identidade da paciente.
Diferentes técnicas corporais podem ser utilizadas no trabalho com pacientes
anoréxicas, dependendo sempre da aceitação e receptividade da paciente ao toque.
O “tato consciente”, como descreve a Eutonia, promove um desenvolvimento da
sensibilidade superficial e profunda, por meio de trabalhos de “estímulo consciente da pele e
do sentido do tato”. O desenvolvimento da consciência de toda a superfície da pele prepara
o corpo, aguçando a capacidade de atenção da pessoa para o mesmo.
A experiência do tato pode ser trabalhada por meio de diferentes atividades. A paciente
pode ser orientada a dirigir gradualmente sua atenção para cada parte de seu corpo,
procurando “sentir” cada uma destas partes. Podem ou não ser utilizados objetos pequenos
e variados, que produzam certa tensão sobre os tecidos, ativando e facilitando o estímulo e
a percepção de cada parte do corpo.
Essa mesma experiência também pode ser desenvolvida através do toque, como
acontece com o bebê nos primeiros anos de vida. Na relação com a mãe, ao ser tocado,
cuidado, acariciado, o bebê experimenta os limites de seu corpo. Ao tocar o “outro”, a
criança recebe informações a respeito do mundo externo. O tato difere dos outros sentidos
por envolver a presença imediata e inseparável do corpo que tocamos e do nosso corpo.
A utilização do toque aparece como prática bastante comum em diversos trabalhos. O
toque propicia estimulação e sensibilização das sensações cutâneas e cinestésicas,
promovendo integração e experiência de sua unidade afetiva, assim como normalização e
desenvolvimento da imagem corporal. Dessa maneira, torna-se uma prática que pode ser
bastante benéfica e de grande ajuda no trabalho terapêutico com pacientes anoréxicas.
Através dos estímulos multissensoriais é possível a reestruturação e re-significação
física e psíquica do corpo da paciente anoréxica, assim como a reconstrução de sua imagem
corporal.
Ela aprende a adaptar o “tônus muscular” às necessidades e circunstâncias “reais” em
que a ação tem que se desenvolver. O contato é a base para se alcançar o movimento e
pode ser vivenciado consigo mesmo ou com o outro, podendo ser esse “outro” uma pessoa,
um objeto ou o próprio espaço.
O “autotoque” pode ser especialmente interessante no trabalho com as pacientes
anoréxicas que não se sentem preparadas para serem tocadas por outra pessoa, no caso, o
terapeuta. Podem ser utilizados recursos como a automassagem em diversas partes do
corpo, como pés e pernas, e nesse caso, há uma vivência ativa da paciente.
O uso dos movimentos ativos e passivos configura outra prática integradora sugerida
pela Eutonia. Através dos movimentos ativos e passivos, a paciente tem a possibilidade de
perceber o estado de seu próprio corpo, observando tensões musculares, bloqueios,
flacidez, capacidades.
No movimento ativo, a pessoa usa sua própria energia e decide como, quando e onde
o executará. No movimento passivo, ela vivencia conscientemente a influência constante da
força da gravidade sobre seu corpo. A pessoa deve permitir que a gravidade “atue”, ela se
“entrega” a ela, percebendo o peso de seu corpo.
As experiências passivas, na prática da Eutonia, podem ser realizadas individualmente
ou com outra pessoa. Na segunda situação, a paciente deixa seu corpo passivo enquanto o
terapeuta assume o papel ativo, movimentando o corpo do paciente.
Para a paciente a anoréxica que parece ter perdido o contato com a Terra e com seu
próprio corpo, vivenciando um corpo quase “etéreo”, este exercício de “entrega” e a
percepção de seu próprio peso pode ser uma experiência muito rica e integradora.
O movimento, seja ele ativo ou passivo, emerge como expressão própria e única da
própria pessoa, por partir de sua atitude interior. É a consciência que ordena e dirige o corpo
e, desse modo, é necessária uma profunda e total atenção em cada uma das partes que se
deslocam no espaço, a fim de assegurar precisão no deslocamento.
Por meio da vivência consciente dos processos corporais, a anoréxica pode
desenvolver a percepção de seu corpo concreto, assim como seus limites e possibilidades,
ao mesmo tempo ativando e, finalmente, tomando posse de seu próprio corpo.
Do ponto de vista do efeitos psicobiológicos, já existem, atualmente, pesquisas como
as que vêm sendo realizadas pelo Touch Research Institute, na University of Miami School
of Medicine, que se dedicam ao estudo dos efeitos (bioquímicos e clínicos) e benefícios do
uso de técnicas de massagem, assim como os efeitos do toque no tratamento de doenças
como asma, dermatites, diabetes, câncer, depressão, transtornos alimentares, entre outras.
De acordo com dados do Touch Research Institute, de 1998, a utilização de
“massagens terapêuticas” ou “terapia do toque” em diferentes populações (bebês
prematuros, mães adolescentes com depressão e seus respectivos bebês, pacientes
soropositivos, pacientes com asma, distúrbios alimentares, queimaduras e outros)
apresentou, em 63 dos estudos realizados, benefícios clínicos e bioquímicos.
Entre os benefícios clínicos foram citados: o declínio de sintomas depressivos, redução
da ansiedade e do tempo de recuperação dos pacientes adoecidos, melhoras no sistema
imunológico, aumento do ganho de peso em bebês prematuros, em comparação com
aqueles que não haviam sido submetidos à massagem, entre outros.
No que se refere às alterações bioquímicas, foram citados: diminuição dos níveis de
cortisol (hormônio do stress), aumento dos níveis de serotonina, alteração das ondas
cerebrais indicativas do “estado de alerta” (stress), aumento da produção e da atividade de
anticorpos, entre outros.
Atualmente, no Brasil, são raras as pesquisas que se dedicam ao estudo dos efeitos
dos trabalhos de abordagem corporal na área da Saúde, em populações com diferentes
demandas.
Mostram-se de grande importância os trabalhos que buscam uma compreensão mais
ampla dos aspectos psicofísicos envolvidos nas patologias e que têm como foco o uso de
técnicas de abordagem corporal em pacientes com diferentes demandas e, mais
especificamente, pacientes com distúrbios alimentares (patologias que vêm se tornando
cada vez mais freqüentes nas clínicas e consultórios psiquiátricos).
Nessa busca pelo conhecimento e compreensão dos transtornos alimentares, assim
como na descoberta de tratamentos mais adequados e que ofereçam uma melhor qualidade
de vida aos pacientes, é imprescindível a participação e colaboração dos vários profissionais
de saúde, trabalhando em parceria e tendo um olhar abrangente para o ser humano e
considerando os aspectos físicos e psíquicos que o definem como indivíduo.

As pessoas ficam confusas porque sabem coisas sem saber dizer como sabem.
Chamamos a isso de intuição. Algumas pessoas têm medo de dizer que sabem a partir
do feeling corporal. Saber a partir do interior do nosso corpo é ser despertado por uma
onda de excitação. O corpo e as suas respostas são uma fonte de conhecimento.
(Keleman, 2001, p.26)

O trabalho com o corpo, o toque, tem uma atuação que não se limita apenas ao corpo
físico e material. Quando tocamos o corpo do paciente, estamos, simbolicamente, “tocando”,
“ativando” e “mobilizando” seu ego, sua identidade e seu feminino.
A anoréxica precisa “encarnar”, permitir que sua alma “aceite” e “habite” seu próprio
corpo feminino. Ao apropriar-se de seu corpo, ela é capaz de entrar em contato com o
feminino, ampliando sua consciência e permitindo o desenvolvimento de sua identidade e de
sua individualidade. Assim ela será capaz de nutrir a si própria, nutrir ao outro e deixar-se
ser nutrida.
Referências Bibliográficas

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_________ Feminilidade consciente: entrevistas com Marion Woodman. São Paulo: Paulus,
2003.
OS SONHOS COMO RECURSO NA TERAPIA FAMILIAR

Denise Mathias1

A Psicoterapia apareceu no final do século XIX, buscando respostas que pudessem ajudar o
homem a resolver questões existenciais, e assim diminuir o sofrimento humano. Desde Freud muitas
escolas apareceram, muitas tentativas de explicar o ser humano e ajudá-lo a viver melhor. Todas elas
oferecem caminhos e trazem respostas para aqueles que as seguem. A diversidade de caminhos
propostos e o sucesso de todos eles ilustram a complexidade do nosso objeto de investigação – o ser
humano. Como diz C.G.Jung:

a interação psíquica nada mais é do que a relação de troca entre dois sistemas
psíquicos. Uma vez que a individualidade do sistema é infinitamente variável, o resultado é
uma variabilidade infinita de afirmações de validade relativa. (1971)

Cada autor, cada pesquisador, cada escola, procurava a “Verdade”, a maneira mais eficiente
de aplacar a dor e o sofrimento mental, partindo então de um modelo positivista de Ciência. Naquele
momento achava-se que esse objetivo seria alcançado se conseguíssemos entender como funcionava
a psique, onde se localizam os traumas iniciais, encontrando, portanto a maneira mais adequada de
eliminá-los.
Em uma perspectiva pós-moderna podemos dizer que cada pesquisador falava da sua
verdade, e que todos estavam certos, pois, de certa forma, todos os métodos funcionam, dependendo
da crença daqueles que os aplicam e daqueles que os recebem.
Hoje, no início de um novo século, de um novo milênio, os problemas enfrentados pelo ser
humano são diferentes daqueles do início do século passado. Conhecemos um pouco melhor a nossa
psique, falamos com alguma intimidade de processos internos, conflitos, complexos, bloqueios. As
grandes descobertas do começo do século passado sobre o funcionamento da mente já fazem parte
do nosso cotidiano, e qualquer indivíduo refere-se a seus complexos e traumas sendo supostamente
entendido pelo outro.
Às dificuldades que sempre perturbaram o ser humano somam-se outras, com características
um pouco diferentes. Os espaços físicos são mais povoados, as atividades profissionais ou de lazer
são cada vez mais grupais, e talvez a grande dificuldade deste momento seja como conviver com a

1
Psicóloga, Psicoterapeuta Junguiana. Professora do curso de especialização em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a
Técnicas Corporais. Terapeuta de Família e casal pelo Instituto Familiae. E-mail: denisemathias@uol.com.br
complexidade resultante de vários sistemas psíquicos que precisam interagir, produzir, divertir-se,
realizar-se plenamente.
O ser humano que procura a nossa ajuda hoje enfrenta problemas de ordem diferente do final
do século XIX. O homem hoje vive num mundo globalizado onde qualquer fato significativo ocorrido
em qualquer parte do mundo rapidamente passa a ser conhecido e pode afetar diretamente a vida de
cada um de nós. O nosso olhar volta-se agora para as relações, e o quanto somos influenciados e
influenciamos o mundo que está à nossa volta. No mundo em que vivemos hoje, não é possível tentar
compreender-nos, decifrar-nos, sem olhar o mundo que nos cerca e as relações que estabelecemos
nele. O que somos é determinado também pela forma com que nos conectamos ao mundo e com
quem nos relacionamos.
É neste mundo que hoje desenvolvemos a nossa prática psicoterapêutica. Em minha prática
clínica observei a partir de uma certa etapa que, no trabalho que realizava com crianças, chegava a
um ponto em que não mais conseguia resposta para minhas questões. É como se os recursos de que
dispunha não mais pudessem ajudar na resolução das questões vividas por alguns de meus clientes.
Em alguns casos, o trabalho realizado apenas com a criança, embora apresentasse alguns resultados,
não era suficiente para resolver inteiramente a dificuldade trazida através da queixa dos pais ou da
escola.
Tal insatisfação com os resultados obtidos no trabalho ampliou o meu olhar para aquilo que se
passa no ambiente em que esta criança desenvolve-se, buscando caminhos que pudessem auxiliar-
me. Este ambiente é bastante amplo, incluindo a família de origem, a família estendida, escola,
amigos, ambiente físico etc. Dentro deste vasto campo voltei-me para a família de origem, por ser
habitualmente o ponto de maior convivência e que mais diretamente influencia o desenvolvimento da
criança, oferecendo-lhe todas as condições físicas e psíquicas para o seu crescimento.
Ao dirigir o olhar para a criança que apresenta problemas e à família onde esta criança se
desenvolve, observo que a queixa trazida influencia e é influenciada pela família. Depois da primeira
entrevista de anamnese com os pais, é comum que relatem mudanças ocorridas a partir deste contato,
sem que eu ainda sequer conheça a criança e apenas tendo entrado em contato com a sua história.
Essa observação fez voltar o meu olhar para a força transformadora que existe neste sistema familiar,
pois apenas pequenas mudanças na narrativa, através do contato com o terapeuta, já são capazes de
promover mudanças no comportamento da criança.
A curiosidade em saber qual é a extensão da força transformadora ou geradora de problemas
desta família conduziu-me à busca da compreensão da gama de interações possíveis entre a criança
e os membros de sua família.
O meu olhar inicial dirigia-se à criança, e a família aparecia fora do sistema terapêutico
auxiliando de forma mais indireta na resolução das dificuldades trazidas pela criança. Buscando
soluções que fossem mais efetivas no tratamento destas crianças comecei a interagir de forma mais
direta com a família, com contatos mais freqüentes, e até em muitos casos convidando esta família a
participar de algumas sessões, ou então a criança a participar de nossas reuniões.
Observei que, quando estas situações ocorriam, o trabalho com a criança fluía mais
facilmente e a terapia chegava ao fim mais rapidamente. Concluí que quando a família participava de
forma mais direta no tratamento, o meu trabalho era mais rápido, mais eficiente. As mudanças eram
mais profundas, pois a família envolvia-se e também era mais diretamente transformada pelo processo
de terapia da criança.
A teoria Junguiana fornecia-me a explicação teórica, pois desta forma estaria em contato com
o inconsciente familiar, provavelmente no ponto em que os impedimentos haviam sido gerados. A
introdução da família no processo de terapia traria para a consciência familiar os conteúdos geradores
de conflitos ou de sintomas. Embora tivesse o respaldo teórico, pareceu-me que eu deveria buscar
recursos que pudessem instrumentar-me melhor para poder trabalhar com a família no
acompanhamento dos sintomas trazidos pelas crianças. A partir daí, então, entrei em contato com a
terapia familiar sistêmica.
Venho de uma formação analítica Junguiana na Psicologia, e desde o início do contato com a
Teoria Sistêmica busco fazer a síntese entre a bagagem que eu trazia de minha antiga formação e
esta nova bagagem também eficiente e coerente com o mundo em que vivemos. Como fazer a síntese
entre o novo e o que eu já havia acumulado de experiência e conhecimento?
A partir deste novo olhar a ênfase não se encontra apenas no mundo intrapsíquico, ou seja,
como o homem se relaciona com seu mundo interno. Incluo aí a relação que este homem estabelece
com seus iguais, como o homem interage, como se comunica e como se constrói a partir destas
interações. De que maneira então as minhas antigas ferramentas para a compreensão do ser humano
poderiam ser utilizadas nesta nova abordagem?
Foi com este olhar dividido que entrei em contato com Marcelo e sua família em agosto de
19982. Os pais de Marcelo procuraram-me, visivelmente abalados, pois o filho havia dito para a irmã,
frente a uma dificuldade com a lição de casa, que iria se matar porque ele não servia para nada. Neste
momento estava com uma faca apontada para o coração. Frente à gravidade da situação e ainda sem
a experiência neste novo jeito de atender, optei pelo método tradicional, aceitando Marcelo como
paciente identificado e começamos uma fase de testes, em busca de sinais de depressão que
pudesse justificar aquela vontade de morrer.
Encontrei uma criança inteligente, muito sensível, mas muito ferida. Descrevia-se como
alguém inadequado, incapaz de corresponder às expectativas do meio. Estava sempre atento ao que
era esperado dele, procurando desta forma nortear-se, mas sentindo-se ao mesmo tempo incapaz.
Neste momento Marcelo estava sem saída, pois percebia que não conseguia corresponder ao que era
esperado dele, enchia-se de culpas, não era acolhido e nem conseguia reverter a situação. Marcelo
estava tenso, agitado, com muita angústia, mas não tinha sinais de depressão que justificassem a
vontade de morrer.
Eu estava neste ponto como Marcelo, pois não conseguia acreditar que uma terapia individual
pudesse ser eficiente para aliviar Marcelo da sua dor, ajudá-lo a acreditar em si mesmo.
Ao conversar com os pais sobre as questões de Marcelo, encontrei-os muito sensibilizados e
disponíveis para ajudar o filho a buscar uma saída. Ambos sentiam-se culpados e falavam muito da
vida familiar, procurando entender onde aconteceu o “erro” que poderia ter gerado tal reação em
Marcelo. A partir da idéia do “erro” tivemos oportunidade de entrar em contato com a maneira como
esta família se organiza a partir de regras, onde surge o certo e o errado. As regras são muito rígidas,
e parece ser difícil a Marcelo encontrar possibilidades de ser aceito, quando não consegue cumprir as
expectativas familiares. Sugiro então aos pais uma sessão com toda a família. Começamos a perceber
a contribuição de cada um na construção do sintoma trazido por Marcelo. Como é impossível fazer as
coisas “certas”, resta-lhe apenas a morte.
Indo em busca de novos recursos, falo aos pais da possibilidade da terapia familiar. O pai
admira-se da existência de tal trabalho, e acredita ser a melhor saída, pois incluiria também a filha,
igualmente necessitada de ajuda. A mãe vê na terapia familiar uma chance de ser ajudada a diminuir
os conflitos constantes que ela tem com Marcelo. Marcamos então mais uma sessão com toda a

2
Os nomes são fictícios e recebi autorização da família para o relato deste caso.
família para ouvirmos a opinião das crianças, que apóiam a decisão. Marcelo chega a falar que seria
bom todos poderem falar ali de “seus problemas” como ele havia feito nos seus encontros comigo.
Os pais têm curso universitário e trabalham. Marcelo tem 8 anos e a irmã 10. A mãe trabalha;
como é profissional liberal, tem horário flexível e sempre esteve muito presente na vida dos filhos:
cabe a ela todo o cuidado com as crianças, controle das lições, transmissão de valores e princípios.
Ao pai cabe o sustento da família; descreve-se e é visto pela família como um homem calado,
envolvido pelo próprio trabalho, dedicando pouco tempo aos problemas cotidianos da família.
Os pais tinham se proposto a formar uma família em que as divergências fossem resolvidas
sem brigas, para que não vivessem situações semelhantes às que foram vividas em suas famílias de
origem. Desta forma, o conflito é sempre indesejável, e é visto como um fracasso. No momento em
que entro em contato com esta família, Marcelo e a mãe vivem em meio a muitas discussões, onde as
regras são contestadas por ele. As brigas são intensas, longas e desgastantes para toda a família.
Durante os nossos encontros muitos caminhos foram construídos, muitas histórias
recontadas, encontramos juntos novas possibilidades para a resolução de conflitos antigos. Cada um
foi encontrando um novo lugar nesta família, que passou a aceitar as diferenças e características de
cada um. Nossos encontros iam trazendo sempre alívio para todos nós, pois podíamos experimentar
novos lugares para buscar a solução das dificuldades surgidas. Da minha parte era constantemente
estimulada a sair do meu lugar de especialista, para tornar-me co-autora desta nova organização
familiar.
Neste ponto, em uma sessão em que o pai de Marcelo pedia para a mãe que dividisse com
ele o sustento da família, procurando um emprego, ela nos conta um sonho que ela achou muito
importante. O sonho é o seguinte:

Aparece-me uma mulher mais velha, que diz ter a resposta para todos os meus
problemas. Quando a mulher começa a falar, assusto-me e acordo.

Ao contar o sonho estávamos todos sentados em círculo, para onde as crianças vieram
rapidamente, ouvindo com atenção o relato da mãe. Em seguida eu peço a ela que nos diga o que
pensou a respeito. A sua interpretação é de que haveria uma saída “mágica” para as dificuldades
econômicas enfrentadas, e que era só esperar. A família vivia um momento de dificuldades
econômicas e a mãe não concordava com o pai de que deveria procurar um emprego. Para ela o
sonho confirmava a sua idéia de que a situação poderia resolver-se a qualquer momento.
O sonho é da mãe, mas como é contado para todos – que ouvem atentamente –, resolvo
perguntar a todos sobre o sonho e a interpretação dada pela mãe.
Através das perguntas e das respostas construímos um entendimento do sonho: a mãe tinha,
até então, dificuldade em aceitar soluções diferentes daquelas idealizadas por ela como as mais
adequadas. A partir de sua história pessoal espera sempre que alguém apareça resolvendo suas
dificuldades. O marido ajudou muito na construção desta história, pois sempre resolveu os conflitos da
esposa procurando deixá-la tranqüila e, por outro lado, confirmando a história de sua família de origem
de que ela não era capaz.
Frente ao sonho trazido pela mãe, eu era tentada a buscar o significado daquele sonho para o
seu desenvolvimento pessoal. Por outro lado, este sonho é colocado numa situação familiar e,
portanto, precisamos entendê-lo dentro deste contexto. De que forma utilizar o sonho como um
recurso que servisse a todos?
Utilizei-me das perguntas, feitas a todos, que desta forma foram incluídos na busca de um
entendimento para a mensagem do sonho.Já que o sonho foi contado numa situação familiar, todos
poderiam participar da inserção do sonho no momento vivido por toda a família.
A partir das perguntas dirigidas a todos, pudemos encontrar um novo lugar para a mãe, sem
precisar buscar as “soluções mágicas”. De forma amorosa todos dizem à mãe que com freqüência ela
espera por saídas mágicas, fugindo de responsabilidades que lhe são apresentadas. A partir da
participação da família concluímos todos que a mulher do sonho poderia também estar indicando o
caminho da procura do emprego.
Em seguida um novo sonho contado, sendo novamente ouvido com atenção por toda a
família:

Dirigia um carro numa estrada muito estreita e perigosa. Chovia, a estrada


era de terra, estava molhada, o carro derrapava. Na estrada só havia espaço para o
meu carro, com mato dos dois lados. Eu estava só, e tinha muito medo. De repente o
carro começa a subir, e eu estou sobrevoando a estrada. O céu está azul, o perigo
passou, e eu já não sinto medo. Sinto então uma mão tocando na minha, acordo
muito assustada.

Parece que já temos agora uma forma de incluir os sonhos nas nossas conversas, pois o
passo seguinte ao relato do sonho são as perguntas de todos. Vamos então construindo o
entendimento deste novo sonho. A família continua passando por um momento delicado no campo
econômico. Concluímos que esta seria a estrada difícil do sonho, e a mãe identifica novamente sua
tendência a escapar das situações difíceis através das “saídas mágicas!”. A mão teria surgido para
interromper o vôo e reconduzi-la à estrada que, neste momento, está difícil.
Toda família contribuiu na construção deste novo lugar para a mãe, todos emitiram suas
idéias e asseguraram a busca deste novo lugar de competência. As crianças mostraram-se mais
tranqüilas e em muitas sessões posteriores, ao conversarmos sobre propostas de empregos,
“brincavam” com a mãe utilizando imagens dos sonhos.
Para mim também a situação representou um enorme aprendizado deste novo lugar de
terapeuta, que constrói junto uma nova história. Na terapia individual o meu trabalho seria desvendar
os intrincados caminhos de acesso ao inconsciente. Embora eu não partisse de respostas já prontas,
de alguma forma tinha a chave para ajudar o paciente a abrir as portas que davam acesso ao
inconsciente, e aí encontrar os novos caminhos a serem trilhados.
Não sabia o que poderiam significar estes sonhos para esta família e, através de perguntas,
convidei a todos para que construíssemos juntos o seu significado. Embora as conclusões a que
chegamos digam respeito à forma como a mãe reagia frente a dificuldades, é claro que este
comportamento afetava a todos. Quando nos contou os sonhos, ela já tinha um entendimento sobre o
significado: os sonhos trariam soluções que a ajudariam na resolução do problema econômico familiar
sem precisar procurar um emprego. A partir das perguntas e das intervenções do pai e mais
indiretamente dos filhos, ela ampliou a sua visão dos sonhos, que incluía aí a necessidade de um
amadurecimento e um enfrentamento menos mágico das dificuldades que a vida lhe apresentava.
A interpretação inicial da mãe (soluções mágicas) foi aceita por todos sem contestação, pois
fazia parte da “história oficial” da família. Eu busquei, pelas perguntas, saber mais a respeito de como
ela construiu esta interpretação que parecia deixá-la tranqüila. Por outro lado indagava também ao pai
e aos filhos para situar-me dentro da história familiar. Refletindo sobre as perguntas, o pai e os filhos
puderam acrescentar outros pontos de vista, que ajudaram a mãe a perceber-se de uma outra
maneira, incluindo aspectos que não faziam parte de sua interação com a família de origem. Ela pôde
perceber que era vista como competente, que todos esperavam pela sua colaboração e que assumir
mais responsabilidades, estando mais tempo fora de casa, não representaria a dissolução da
harmonia familiar.
O surgimento dos sonhos nos nossos encontros foi de grande ajuda na busca de recursos
para a dificuldade que a família enfrentava naquele momento. É uma linguagem que aquela família
valorizava, e os sonhos sempre fizeram parte do meu trabalho como terapeuta individual. Portanto era
uma linguagem que tínhamos em comum.
A dificuldade inicial foi ampliar o conteúdo do sonho do campo pessoal, onde eu estava
habituada a trabalhar, para o sistema familiar. A minha formação profissional sempre foi baseada em
C.G.Jung, que via no sonho o problema central do tratamento analítico. O objetivo da terapia seria
captar as mensagens do inconsciente que ofereceriam as saídas para o impasse que o paciente traz
para a terapia. Ainda segundo Jung, nós sonhamos com nossos problemas, com as nossas
dificuldades e as possibilidades para resolvê-los.
Para mim o resultado do trabalho em torno destes sonhos amplia também os recursos
possíveis para a busca de novas narrativas dentro do sistema terapêutico. Mais do que conclusões,
esta experiência desperta em mim uma pergunta: como é possível trabalhar com sonhos em um
contexto familiar?
Acredito que existam, nesta prática, muitos caminhos a serem explorados. É freqüente
também que imagens trazidas pelos sonhos passem a ser utilizadas pelo sistema familiar como
metáforas que facilitam as conversas a respeito de determinados conteúdos. Além disso, tais imagens
são utilizadas também no cotidiano destas pessoas e passam a fazer parte das interações familiares.
Desta forma, as imagens oníricas atuam durante algum tempo no cotidiano das famílias, facilitando a
todos a assimilação dos temas discutidos durante aquela sessão.
Tem ocorrido também que em algumas famílias passa-se a criar espaços de escuta e até
discussão sobre determinados sonhos de interesse de todos. É obvio que desta forma amplia-se o
campo de comunicação entre os membros da família, pois as produções oníricas de seus elementos
podem ser ouvidas, acolhidas e valorizadas por todos.
Além disso, costuma ocorrer que alguns membros do grupo familiar passem a prestar mais
atenção aos próprios sonhos, tornando-se mais atentos a si mesmos, mais reflexivos, identificando
mais facilmente as suas motivações.
Povos tribais tinham o hábito de contar os sonhos em grupos, que eram interpretados pelo
pajé, buscando significados que pudessem trazer ajuda a dificuldades enfrentadas pelo grupo. Da
mesma forma nos encontramos nesta situação, com a diferença de que a interpretação não parte só
do terapeuta, mas é construída por todo o grupo.
Quis ressaltar aqui a utilização do sonho como um recurso na terapia, e por esta razão detive-
me nos fatos relacionados a este tema.
O sonho contado por um dos membros do sistema terapêutico traz uma questão individual,
apresenta o conflito do grupo segundo a psicologia individual de um de seus componentes. Por outro
lado, esta pessoa neste momento traz o conteúdo do seu sonho para ser partilhado por todo o grupo
envolvido na terapia. Ao ouvir o relato do sonho no contexto da terapia, cada um dos membros da
família olha para ele do seu lugar e segundo sua visão da dificuldade que é partilhada por todos. Os
elementos do sonho que parecem relevantes para cada um e a visão de cada um sobre a inserção
destes elementos dentro da dificuldade vivida neste momento são uma contribuição bastante
importante para a condução e evolução do trabalho.
O atendimento desta família ajudou-me a observar vários passos de minha mudança de lugar
profissional, na busca de adaptar-me ao mundo em que vivemos. Comecei tentando o lugar antigo de
terapeuta especialista, tratando de uma criança problema. No decorrer dos nossos encontros o
paciente identificado tornou-se uma família pedindo ajuda e o terapeuta especialista tornou-se um
terapeuta sistêmico.
Por outro lado, pude ir percebendo também que este novo lugar de terapeuta admite a
bagagem que eu trago do lugar antigo. Afinal, se é esperado que eu esteja no sistema terapêutico com
toda a minha história profissional e pessoal, o terapeuta analítico tem muito a trocar com o terapeuta
sistêmico dentro de mim.
Sinto-me amparada nesta busca pelo próprio Jung:

minha experiência ensinou-me a manter-me afastado de “métodos” terapêuticos bem


como de diagnósticos. A enorme variação entre os indivíduos e suas neuroses colocaram
diante de mim o ideal de abordar cada caso com um mínimo de suposições preconcebidas. O
ideal seria, naturalmente, não ter nenhuma suposição. (Jung, 1971, par. 543)

Desta forma, quanto maior a bagagem que um terapeuta possa adquirir na sua formação,
mais recursos para poder manter-se afastado de métodos e assim poder olhar o indivíduo em toda sua
complexidade.

Referência Bibliográfica

JUNG, C.G. A Prática da Psicoterapia. Obras Completas XVI/I. São Paulo: Vozes, 1971.
LILITH E O FEMININO PROIBIDO

Ana Cássia Corrêa Stamm1

Introdução

Elaborar este texto foi uma oportunidade de realizar uma reflexão sobre um tema
que, para mim, é um farol iluminado na minha existência em alto mar.
Nos dias de hoje, a integração de aspectos do feminino continuam encontrando
obstáculos numa história patriarcal onde homens e mulheres estão desmembrados em
seu próprio intimo.
Como conseguir “montar” um quebra-cabeça em forma de um indivíduo inteiro,
num mundo que valoriza a pressa, a falta de contato consigo próprio e com os outros,
dando pouca importância aos ritmos biológicos próprios ou da natureza, supervalorizando
o intelecto e o poder?
Vivemos uma época, que apesar de avanços tecnológicos e científicos,
menospreza o que nossos antepassados nos ensinaram, o que os mitos nos contaram e o
resultado é um desenraizamento conosco próprios e com nossa terra.
Onde nos perdemos? Por que a necessidade que sentimos atualmente de nos
reaproximar de nossas raízes, da natureza e de nossos mitos?
Talvez a resposta esteja nas doenças e no stress que passamos diariamente em
nossas vidas. Estamos doentes e cansados, nossa alma tem sede. Sede de uma água
diferente. E é por isso que as histórias e mitos são tão importantes para nós neste
momento. Para entendermos onde nos perdemos e, o mais importante: onde está o farol
que nos guiará na viagem segura!
Segundo Campbell:

Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as


circunstâncias, os mitos humanos têm florescido. Da mesma forma esses mitos têm
sido a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo
e da mente humanos. Não seria demais considerar o mito a abertura secreta através
da qual as inexauríveis energias do cosmos penetram nas manifestações culturais
humanas. As religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e
histórico, descobertas da ciência e tecnologia, e os próprios sonhos que
povoam o sono, surgem do circulo básico e mágico do mito. (2003, pág.15)

1
Psicóloga, Socióloga e Historiadora, Especialista em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas
Corporais pelo Instituto Sedes Sapientiae e em Acupuntura pelo Ceata. E-mail: anacassia@stamm.com.br
O Mito de Lilith

O mito de Lilith é mais um mito que nos orienta rumo à nossa individuação. Por que
a escolha deste mito?
Lilith é um irresistível demônio feminino da noite; de longos cabelos, que está
presente na mitologia da maioria dos povos antigos. Durante o terceiro milênio a.C., na
Suméria, ela foi a principio Lil, uma tempestade destruidora ou espírito do vento. Entre os
semitas da Mesopotâmia, ela ficou conhecida como Lilith, um demônio noturno que agarra
os homens e as mulheres que dormem sozinhos, provocando-lhes sonhos eróticos.
Outras fontes referem-se a uma Lilith rainha de Sabá, também feroz e agressiva. O nome
Lilith tem origem assírio-babilônica e significa demônio feminino ou espírito dos ventos.
Em 2000 a.C; na época sumérica da epopéia de Gilgamesh, ela tomou o nome de Lillake
(Koltuv, 1997).
Segundo uma etimologia judaica vulgar, Lilith derivaria de Layil, que significa noite;
portanto, é o monstro noturno com os pés peludos de animal. Ainda mais evidente é o
parentesco com as Lâmias, as demoníacas filhas de Hécate.
Lilith tornou-se conhecida em todo mundo como bruxa e feiticeira. Associada à
serpente, ao cão, ao asno, à coruja e à emissão de horríveis sons noturnos, é
considerada a alma de todo ser vivo que rasteja. Ela foi a primeira mulher de Adão, a
fêmea do Leviatã, a mulher de Samuel, o Diabo, e até mesmo a esposa do próprio Deus.
As tentativas no sentido de suprimi-la e de negá-la remontam ao século VI a.C.
As origens de Lilith ocultam-se no tempo da criação do mundo. Ela surgiu do caos.
Existem muitos mitos acerca de seus aparecimento e ela surge, em todos eles, como uma
força contrária, mas um fator de equilíbrio, o outro lado da balança da bondade e
masculinidade de Deus, porém de igual grandeza.

No Spher Há-Zohar, o Livro do Esplendor, obra cabalística do século XIII,


encontramos tesouros preciosos e altamente sugestionáveis, que estimulam
nosso mundo imaginário, deixando-nos fascinados e inquietos, frente a tanta
sabedoria e verdade (Engelhard, 1997).

Segundo esta obra, no principio:

Deus criou duas grandes luzes. As duas luzes ascenderam juntas com a
mesma dignidade. A lua, porém, não estava à vontade com o sol e, na verdade,
cada um se sentia mortificado pelo outro. A Lua disse:” Onde apascentas o teu
rebanho?”(Cântico dos Cânticos, 1:7). O Sol disse:” Onde levas a repousar teu
rebanho ao meio-dia? Como pode uma pequena vela brilhar ao meio-dia?”Por
isso, Deus disse a ela: Vai e torna-te menor" Ela se sentiu humilhada e disse: “Por
que razão seria eu como a que se cobre com um véu?” Deus disse então: “segue
teu caminho guiando-te pelas pegadas do rebanho”.Por isso, ela diminui a si
mesma de tal modo que se tornou a líder das fileiras mais inferiores. Desde então,
nunca mais teve luz própria, obtendo sua luz do sol. A princípio, eles continuaram
em pé de igualdade; mais tarde, porém, ela foi se tornando a menor de suas
próprias fileiras, embora continuasse a ser líder delas. Quando a lua estava em
conexão com o Sol era luminosa, mas tão logo se separou do sol e foi-lhe
atribuído o comando de suas próprias hostes, reduziu sua posição e sua luz, e
cascas sobre cascas foram criadas para cobrir o cérebro e tudo em proveito do
cérebro. Depois que a luz primordial foi afastada, criou-se ali, uma “membrana
para a polpa”, uma K’lifah ou casca, e esta K’lifah expandiu-se e produziu uma
outra, que foi Lilith. (Zohar I, 19b)

No princípio, o Sol e a Lua eram iguais em dignidade. Assim como as trevas


desejam fundir-se com a luz, a noite também deseja fundir-se com o dia (Zohar I 17a-b).
Tudo isso é revelado no livro de Adão. Nele diz-se que quando as trevas reivindicaram
seus direitos, fizeram-no com violência (Cânt. 1:7). Mas assim que a cólera e a violência
abrandaram, surgiu um tipo de desavença, a saber, uma desavença amorosa... (Zohar I
16b-17b).
Para pôr um fim na discórdia entre a Lua e o Sol, Deus provocou uma separação.
Ele obrigou a lua a tornar-se menor e a seguir as pegadas do rebanho, à frente das
fileiras mais inferiores e disse:

É justo e adequado que as duas luzes governem: a luz maior de dia e a luz
menor de noite. Deste modo, o domínio do dia pertence ao macho e o domínio da
noite, à fêmea. (Zohar I, 20b)

Embora as duas luzes continuem a governar, é claro que a Lua se sentiu


inferiorizada. A intervenção de Deus nessa desavença amorosa priva-a de sua liberdade
de escolha. A diminuição da lua tem como resultado a k’alifa ou casca do mal, da qual
Lilith nasceu. Diz-se que, da cabeça até o umbigo, o corpo de Lilith é o de uma bela
mulher, porém do umbigo para baixo, ela é um fogo abrasador. A partir desses mitos do
Zohar, vemos que a energia de Lilith deriva do ressentimento e da diminuição da Lua. Ela
é sombria, ardente e noturna (Koltuv, 1997).
Este é apenas um dos mitos sobre o aparecimento de Lilith, sua queda e
significado, mas por que Lilith transformou-se em Sombra?
Segundo Jung (1986),

... a integração da Sombra, isto é, a tomada de consciência do


inconsciente pessoal, constitui a primeira etapa do processo analítico, etapa sem a
qual é impossível qualquer conhecimento da anima e do animus. (pág. 19-20)
Seria possível reconhecer Lilith em nós próprios, como aspectos nossos, mas que
estão projetados no mundo, se continuamos a renegá-la? E se estes aspectos
continuarem desconhecidos de nós próprios?
Quando dizemos que Lilith se origina daquele aspecto autoritário de Deus, de seu
poder de julgar e punir severamente, este é um aspecto sombrio de Deus, que nem
pensamos que exista. De qualquer forma, ou deste aspecto sombrio, ou proveniente da
diminuição da lua, expulsa do céu, Ela representa estas qualidades femininas
negligenciadas e rejeitadas.
Lilith é um instinto renegado enviado por Deus, para viver nas regiões inferiores e
assim conviver com a humanidade. Para os homens, a sedutora, a bruxa, a mãe má que
devora. Para as mulheres a sombra escura do seu Eu profundo principalmente na área da
sexualidade, Lilith representa a qualidade instintiva do feminino.
Tradicionalmente, as forças da sexualidade, do nascimento, da vida e da morte, do
mágico ciclo da vida eram consideradas governadas pela Deusa. Com o advento do
patriarcado, o poder de vida e morte tornou-se uma prerrogativa do Deus masculino,
enquanto a sexualidade e a mágica foram separadas da procriação e da maternidade.
Neste sentido, Deus é Uno, ao passo que a Deusa tornou-se duas. Em outro mito contido
no Gênesis I, Adão é criado por Deus andrógeno, o arquétipo celeste refletido no Adão
terrestre. Sua diferenciação seria um Adão com uma companheira feminina. “No principio
a criou, mas o homem a viu cheia de saliva e sangue, afastou-se dela e tornou a criá-la
uma segunda vez”. Lilith é a primeira mulher, mas assusta Adão. A segunda é Eva. É
lógico que Lilith é expulsa deste paraíso.
Que Lilith discordasse de Adão em muitos assuntos não é nem um pouco
surpreendente, considerando-se sua natureza sombria, ardente, feminina, lunar e não
submissa. Ainda hoje as mulheres sentem-se banidas quando demonstram
comportamentos discordantes dos de seu parceiro, ou da sociedade de dominância
patriarcal em que nos encontramos. Os homens pagam também um preço alto quando
projetam estes conteúdos em suas parceiras e não são compreendidos, ou então vêem
seus bens dilapidados por mulheres, em relacionamentos totalmente negativos.
A reivindicação de Lilith por igualdade fundamenta-se no fato de que tanto ela
como Adão foram criados da mesma terra; mas Lilith se recusa a ser mera terra para
Adão. Ela quer a liberdade de se mover, de agir, de escolher e de decidir (Koltuv, 1997).
A tradicional forma patriarcal do matrimônio, preferida por Adão, na qual o homem
possui as qualidades “masculinas” de atividade, comando e domínio, enquanto a mulher
sustenta as qualidades “femininas” da dependência e submissão, tem como resultado a
opressão da mulher e seu encarceramento, impedindo-a de se tornar ela mesma. Para
crescer e se desenvolver psicologicamente, uma mulher precisa integrar as qualidades de
liberdade, movimento e instintividade de Lilith. Precisa se mover da fase de consciência
matriarcal ou patriarcal para aquela em que possa integrar estes dois padrões de
funcionamento da consciência e, assim, caminhar em seu processo de individuação e
para um encontro simétrico do masculino com o feminino.
Lilith é aquela qualidade pela qual uma mulher se nega a ser aprisionada num
relacionamento. Ela não deseja a igualdade e a uniformidade no sentido de identidade ou
fusão, mas os mesmos direitos de se mover, mudar e ser ela própria.
Além disso, a necessidade de liberdade e de movimento talvez seja uma
necessidade de religar-se ao espírito. Lilith, ao que parece, pertence à época bastante
remota, na qual os poderes criativos eram prerrogativas da deusa. Conta-se que, ao
abandonar Adão, Lilith proferiu o inefável nome de Deus e voou para o céu, mas Deus
expulsou-a para baixo. A necessidade de uma ligação espiritual com o que está acima se
revela na própria origem de Lilith.
Segundo Koltuv (1997), a sensação de se ver abandonada no seu
desenvolvimento psicológico é comum na psicologia feminina. Como em muitos mitos
sobre a individuação das mulheres, há os elementos de surpresa e força. Perséfone
estica a mão para colher uma flor e se vê arrastada, esperneando, para o Hades. Psique,
engravidada por Eros, tenta olhar de relance para o pai de seu bebê e se vê desprotegida
no mundo, defrontando-se com todas as árduas tarefas da individuação.
Lilith escolhe a separação diante da coerção ou submissão, levando a mulher a um
sentimento de desespero e solidão, freqüentemente vivenciado como um período de
depressão. Infelizmente, Lilith é tão pouco integrada que muitas mulheres experimentam
sua fuga como um período em que se sentem tão subjugadas que se vêem obrigadas a
se afastar ou fugir, a se submeter ao que não lhes parece suportável – embora o
insuportável lhes possa parecer certo, como se pudesse haver um certo e um errado
nestas horas.
Desolada, sem o Sol, ela é como a Lua no mito do Zohar a respeito da origem de
Lilith. Do mesmo modo que Lilith, todas estas mulheres e nós próprias não temos escolha:
somos obrigadas a confrontar a Sombra.
A Inquisição

Por volta de 1200 d.C. exacerba-se o maior rito sangrento contra as mulheres: a
Inquisição. A partir deste momento a aversão pelos instintos será projetada sobre “certas”
mulheres, segundo específicos enquadramentos socioculturais e socioeconômicos.
Principalmente contra as chamadas bruxas.
A contraposição entre alma e corpo foi reconfirmada e ampliada, com o predomínio
do macho e a crença na inferioridade da mulher. A mulher será rechaçada à condição de
“periculosidade” totalmente identificada com a figura de Lilith.
Nunca antes, o homem havia lutado tanto contra os componentes erótico-sexuais
que quer reprimir, julgando-os obra do Diabo, como após o ano 1000. A mulher pagou um
preço alto pelo ódio masculino à força instintiva.
Ou porque a mulher aparecia como bruxa, mulher velha, sozinha, ou feia, de
aspecto feroz, ou porque era uma mulher jovem, belíssima, atraente, a verdadeira “sereia”
ou “víbora” das fantasias modernas, que podia seduzir com feitiços tidos como fogo por
sua beleza encantadora, qualquer que fosse a encarnação do demônio feminino, a mulher
era perseguida como herética e sem alma, a suja e cheia de pecado.
Segundo Sicuteri, o total das mulheres queimadas vivas como bruxas ou
endemoniadas durante a Inquisição não será jamais conhecido. A mulher, aquela que
devia ser a companheira da alma e do corpo para o homem, sua anima, foi massacrada e
execrada.
A Lilith da Idade Média novamente foi banida, obrigada a seguir novamente as
pegadas do rebanho.
O resultado final foi um sentimento de medo e de ódio contra as mulheres e das
próprias mulheres contra estes poderosos. Como Lilith, a mulher sentiu-se rebaixada e
sem direito de escolha e parte da Sombra se formou, traduzida em preconceito, ódio,
insatisfação e opressão pelo homem.

A Grande Mãe

Embora Lilith, a sedutora, seja perigosa para as pessoas completamente


inconscientes, para as que já trilham o caminho da consciência o encontro com Lilith pode
ser transformador. Jung chama-a de uma “anima xamanística”. Ele comenta que “não há
como relacionar Eva a Sofia, uma vez que Eva nada tem que ver com magia, mas sim a
primeira mulher de Adão, Lilith” (Jung, 2002 – pág.68).
Lilith, como a forma sedutora e transformadora do feminino, não é, de modo geral,
vivenciada conscientemente pelas mulheres antes de alcançarem a segunda metade de
suas vidas. As mulheres jovens conhecem o poder de sua sexualidade Lilith de um modo
até certo ponto inconsciente, por serem objeto do desejo dos homens e formas prontas
para suas projeções.
Depois de sucesso profissional, tendo tido filhos ou não, ou realizado algum
empreendimento, a mulher pode se apaixonar, profunda e totalmente, de um modo que
não é possível a uma mulher mais jovem com menos experiência. Esse relacionamento
da segunda metade da vida é caracterizado por uma troca de amor plena, de sexualidade
viva e ativa, mesmo quando já se encontra num relacionamento.
Esta conjunctio entre Lilith e Adão após a queda é uma parte vital do processo de
individuação da mulher.
Ser a parte ativa e conscientemente sedutora de uma relação é, para uma mulher,
uma experiência numinosa. Na época babilônica, quando os cultos da Deusa floresceram,
Lilith era chamada de “a mão de Inana”. Tinha como função reunir os homens na rua e
trazê-los para o templo. Ela usava seu poder de sedução a serviço da Deusa. O velho
Testamento, que documenta o advento do patriarcado, está repleto de histórias de
mulheres que usam seu poder de sedução – a sua Lilith – de modo consciente, para
realizar os objetivos de seus egos.

Lilith e Eva

Quando comparamos Lilith a Eva estamos falando de polaridades contrárias de um


mesmo feminino. Por exemplo, quando Lilith se encontra separada de Eva, a mulher pode
ser sexualmente fria. Freqüentemente, ela se casa com um homem que ajuda a perpetuar
essa divisão, relacionando-se apenas com seu lado Eva, de pureza e um casamento bem
tradicional, onde a mulher seria totalmente submissa. A sensação de inteireza que resulta
da integração consciente de ambas – Lilith e Eva – é muito desejada.
Harding (2003), assinala que, para que a individuação possa ocorrer, uma mulher
precisa ser fiel ao seu próprio sentimento e não ao contrato ou à lei. Para as filhas de Eva,
a sombra Lilith encontra-se muito próxima da transcendência, e a assimilação de Lilith
tem um profundo efeito sobre a individuação. Assim como para as mulheres Lilith valeria o
mesmo ponto de equilíbrio.
Eva é o lado instintivo que nutre a vida, enquanto Lilith é o seu lado oposto, aquela
que lida com a morte e cujos poderes são superiores nas encruzilhadas instintivas da vida
de uma mulher: na puberdade, em cada menstruação, no início e no fim da gravidez, na
maternidade e na menopausa.
Eva sente-se acorrentada à terra pelos homens e pelos filhos, e reflete os ciúmes
de Lilith. Eva permanece sempre ao lado de Adão, sua vida é a dele. Vemos mulheres
que passam a vida cuidando e comemorando o sucesso do parceiro, mulheres que fazem
aquilo que delas se espera devido a um severo juízo patriarcal, firmemente enraizado
nelas mesmas.
Segundo Engelhard (1997), a cisão em nível intrapsíquico, desses dois aspectos
do feminino, leva a consciência, no mínimo, a situações perturbadoras. Os indivíduos,
homens ou mulheres, tornam-se desumanos, sem limites, passando a não atender suas
próprias necessidades corporais, pois mesmo cansados prosseguem em suas atividades
(workaholics), alimentam-se mal, de modo insuficiente e irregular, e maltratam o corpo
numa tentativa de estrangular sua criança interior. Caso se tornem conscientes desta
negligência, pela própria integração Eva-Lilith, poderão, através da sabedoria do coração,
cuidarem-se melhor, nutrindo sua criança interior e salvando-a do sacrifício. Somente
quando se é fiel ao sentimento do feminino é que a individuação pode ocorrer nas
mulheres e nos homens, porque estarão seguindo parte importante de sua verdadeira
essência e não se subjugando exclusivamente ao controle de uma lei repressora.

A Integração de Lilith

Nos tempos antigos, acreditava-se que o poder de Lilith podia se capturado


debaixo de um vaso invertido, no qual estivesse sido escrita uma fórmula apropriada. Os
vasos babilônicos de 600 a.C. retratam Lilith fortemente amarrada com correntes, pois o
ferro é o material tradicional para se prender demônios. Outros vasos babilônicos
apresentam ordens de divórcio, expulsando Lilith.
O crescimento psicológico, a individuação, necessita que aspectos de Lilith sejam
integrados. Qualidades como liberdade, movimento, contestação, instintividade, não são
qualidades apenas individuais, mas coletivas, que mostram nossa sombra num planeta
que se destrói a cada dia.
O ser humano busca sua transformação ordenando o caos. Seu desejo de
igualdade, expresso desde o início, inclusive neste mito, é de mudança para se ser “si
mesmo”, isto é, religar-se ao espiritual, aos poderes criados e criativos que pertenciam à
grande Deusa (Engelhard -1997).
Lilith não pode ser expulsa de nossa consciência; pelo contrário, precisamos todos
estabelecer um diálogo com ela.
Segundo Koltuv (1997), Lilith é aquela parte da Grande Deusa que foi rejeitada e
expulsa. Ela representa algumas qualidades do feminino.
A primeira é a consciência lunar, uma conexão com os ciclos crescente e
minguante: vida, morte e renascimento. Lilith é a Deusa da morte (de todas as mortes que
ocorrem em todas as fases de nossa vida).
A segunda é o corpo – instintividade e sexualidade. No período de dominância
patriarcal, a mulher é vista como receptáculo e mãe, e sua sexualidade limita-se ao
enlace conjugal ou é idealizada e espiritualizada na Virgem. Lilith não se enquadra em
nenhum desses dois casos. Ela é prostituta ligada à terra, ctônica. Nenhum homem detém
sua sexualidade. Sua sexualidade pertence a si mesma e à Deusa.
O terceiro valor rejeitado da Deusa é o conhecimento profético, a intuição
premonitória interior e da experiência acima da lógica ou da lei. Ela é diretamente sentida
e vivida no interior da própria pessoa, sem sofrer a mediação da palavra ou da lei.
A quarta e última qualidade feminina que Lilith possui é aquela do Deus na
natureza da mulher, isto é, as qualidades femininas de Deus – mãe e criador e pai e
criador, pai-mãe nutriente e fertilizador. Ela é a parte do Eu feminino com o qual a mulher
moderna precisa voltar a se relacionar, a fim de não ser mais uma proscrita espiritual.
Lilith pode ajudar as mulheres a lembrar-se de que:

Houve um tempo em que não eras uma escrava, lembra-te disso.


Caminhavas sozinha, alegre e banhavas-te com o ventre nu. Dizes que perdeste
toda e qualquer lembrança disso, recorda-te... Dizes que não há palavras para
descrevê-lo, dizes que isso não existe. Mas lembre-te. Faze um esforço e recorda-
te, ou, se não o conseguires, inventa. (Wittig, M. apud Koltuv, 1997).

Conclusão

Harding (2003) nos diz que homens e mulheres precisam conhecer a voz de seu
demônio interior, permitindo-lhe falar neles sem a censura do pensamento racional ou da
moralidade convencional. Através de tal experiência um indivíduo pode tornar-se
familiarizado com a realidade de sua própria natureza. Aprende a conhecer as suas
próprias profundezas e seus próprios limites.
Quando proponho a integração de Lilith em nossa psique não é para que
concretamente vivamos as experiências que ela simboliza. Mas que Lilith em nós tenha
voz, para que possamos entabular uma conversa com ela, porque com sua polaridade
contrária, a santa, é muito mais fácil estabelecer este diálogo.
No atendimento psicoterápico, muitas vezes nos defrontamos com estas
polaridades do sagrado e do profano. Muitas mulheres e homens estão confusos. Em
muitos casos papéis ditos tradicionais pelo patriarcado estão trocados. Vemos, por
exemplo, casais onde a mulher está altamente envolvida na competitividade de cargos e
carreiras e o homem, tradicional provedor do lar, no cuidado com os filhos. Nestes casos
podemos encontrar a mulher altamente realizada, mas trazendo uma culpa muito grande
por considerar ainda seu dever cuidar dos filhos, ou o homem muito contrariado em contar
com a ajuda financeira da esposa.
Situações como esta não são difíceis de serem encontradas. Nas adolescentes ou
mulheres que “procuram” namorados fica a pergunta de “O que é melhor? Ir para a cama
ou não no primeiro encontro?” “Esperar o homem chegar ou já partir para o ataque?” De
qualquer forma são temas que recheiam revistas nas bancas, vendendo em grande
quantidade, e cuja pergunta é: “O que querem os homens?”, ou “O que querem as
mulheres?”.
É muito recente para a mulher se colocar com seu desejo, assumi-lo,
responsabilizar-se por ele. É muito novo para o homem aceitar a cantada, tomar conta
dos filhos, aceitar estar em casa sem provê-la.
Escutar sua voz interior é se perguntar se é possível ser feliz nestas situações não
aceitas pelo status quo. Se o caminho do crescimento está justamente no não
convencional, por que não segui-lo? Só com o exercício de escutar essa voz rebelde que
vem da Lilith de dentro de nós próprios, tão presente na época adolescente, é que
poderemos ser inteiros. Ser inteiro com Lilith é se permitir errar, experimentar, tentar,
desafiar, contornar, divergir. É sentir liberdade, movimento, contestação, instintividade. É
procurar não incentivar preconceitos, de nenhuma forma. É se respeitar no relógio
biológico, na alimentação, no cuidado por si próprio. É cuidar da casa interna e da
externa. É cuidar da natureza, do reciclável, da educação e da cultura. É não criticar o
comportamento do outro porque afinal não se estava na pele dele para saber se faríamos
melhor.
Entre Eva a submissa e Lilith a devassa, atravessamos uma linha que vai de uma
polaridade a outra. Lilith nos pede igualdade sem submissão. Eva nos pede que sejamos
submissas às exigências do patriarcado. Lilith não se submete e vai embora: prefere
perder Adão; Eva fica com ele, mas sabe que não o tem. Estes comportamentos estão em
duas polaridades distintas.
Byington (1988) nos lembra que as polaridades reúnem opostos e delimitam, nas
suas variações, uma certa região psíquica. É dele também a definição de símbolo
estruturante, que é aquele que está em atividade no eixo simbólico, formando e
transformando a consciência através de suas polaridades. Comportamentos polares não
nos levam à alteridade. Alteridade, segundo ele, é justamente uma conversa dialética e
igualitária entre estas polaridades. Dentre as idéias de alteridade estão a igualdade, a
liberdade, a fraternidade, a tolerância, a compreensão, a convivência, o encontro, a
abrangência do atrito e do conflito. No terreno emocional, os estados mais propícios à
expressão simbólica na alteridade são a fé, esperança, caridade, amorosidade da troca,
busca do encontro mutuamente frutificador.
Por isso é necessário e urgente que aceitemos Lilith em nós. A polaridade de Eva
ficou sem seu aspecto contrário. A Lua foi banida, a primeira esposa foi banida, falta a
nossa outra polaridade que nos levará ao todo, ao Uno, a Deus ou a Sofia, enfim, à
completude.

Referências Bibliográficas

AMY, Sophia Marashinsky. Oráculo da Deusa. São Paulo: Pensamento, 1997.

BYINGTON, Carlos. Dimensões Simbólicas da Personalidade. São Paulo: Ática, 1988.

CAMPBEL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Pensamento-Cultrix, 2003.

ENGELHARD, Suely. O Renascer de Lilith. Junguiana 15: 28-41, 1997.

HARDING, M. Esther. Os Mistérios da Mulher. São Paulo: Paulus, 2003.

JUNG, C. Gustav. Aion – Estudos Sobre o Simbolismo do Si Mesmo, Petrópolis: Ed.


Vozes, 1986.

____________ Cartas – Vol. 2, Petrópolis: Ed. Vozes, 2002.

KOLTUV, Bárbara Black. O Livro de Lilith. São Paulo: Cultrix, 1997.

MOOREY, Teresa. A Deusa. São Paulo: Circulo do Livro, 2000.

PERERA, Sylvia B. Caminho Para a Iniciação Feminina. São Paulo: Paulus, 1998.

SICUTERI, Roberto. Astrologia e Mito. São Paulo: Pensamento, 1998

____________ Lilith – A Lua Negra. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1987.
DANÇAS CIRCULARES E SUAS CORRELAÇÕES PSICOFÍSICAS,
ESPIRITUAIS E INTEGRATIVAS1

Paulo Toledo Machado Filho2

Dançamos porque dançamos


Porque a dança nos procura
Vem assim, vem nos tocando,
Em nossa pele soprando,
Põe as mãos em nossas mãos
Ilumina nosso olhar.

Da poesia “Vamos dançar!”, de Eliana Carreirão.

O desenvolvimento psicológico do ser humano, denominado por Jung processo


de individuação, implica num contínuo ajuste da psique, em suas dimensões
consciente e inconsciente, aos arquétipos ordenadores e correspondentes à totalidade.
Em tempos passados, estes arquétipos ou as chamadas imagens primordiais
relacionavam-se com a visão de mundo de um determinado povo ou de uma cultura e
correspondiam às suas matrizes míticas. Assim sendo, a percepção da terra e do céu,
do percurso regular do Sol ao longo da abóbada celeste ou da presença irregular da
Lua na esfericidade do céu noturno, as vivências do dia e da noite (ou ainda, da luz e
das trevas), das estações do ano e dos ciclos de vida e morte eram experiências
elaboradas conforme as referências míticas, que falavam sobre as origens do Universo,
de Deus e de todas as coisas existentes no mundo.
O mito era, portanto, o modo alegórico como as culturas passadas definiam o
ato criativo original ou a história sagrada de suas origens, tornando-se conhecidos tais
fatos pela transmissão oral ou através de celebrações rituais. O ato divino de criação
implicava, nas concepções míticas, na passagem do indiferenciado (ou não-manifesto)
para o diferenciado (manifesto), e envolvia a existência anterior de um modelo

1
Baseado em palestra proferida no I Encontro Internacional de Músicas e Danças Étnicas, realizado em
Itatiba, São Paulo, em 29/01/1998.
2
Psiquiatra e Psicoterapeuta Junguiano, Mestre em Ciências Sociais pela USP. Professor do Curso de
Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas Corporais - Instituto Sedes Sapientiae. E-
mail: ptmachado@uol.com.br
exemplar, de origem sagrada. Este processo iniciava-se sempre em um centro, que
podia ser assinalado ou representado por um ponto. Este, em sua amplitude, podia ser
desdobrado em um círculo. O referido ponto representava também a concentração do
tempo num dado momento, assim como o círculo, a eternidade.
As noções de ponto e sua forma estendida, o círculo, na medida em que se
referiam a um princípio, relacionavam-se, conforme observamos, com a noção de
centro, denotando este o local de origem (do mundo, de um ciclo etc.) e remetendo
assim à noção do sagrado e, conforme Jung, em várias afirmações, à noção da
totalidade. Mas muitos outros autores também prestaram atenção à fenomenologia da
circularidade, do centro e do ponto.
Bachelard (1996), discutindo a afirmação de Jaspers (“Todo ser parece em si
redondo”) e a poesia de Rilke, que metaforiza a circularidade do mundo em torno de
uma árvore, afirma que “o mundo é redondo em torno do ser redondo”. Eliade (1985)
afirma que “o centro é a zona do sagrado por excelência, da realidade absoluta”. O
centro pode ser representado, conforme exemplifica generosamente, por uma pedra
(ou bétilo, ou monolito), por uma árvore, um templo ou um palácio.
Encontramos no Dicionário de Símbolos de Chevalier que ponto e círculo
possuem propriedades simbólicas comuns, como a homogeneidade, a ausência de
divisões, e configuram, respectivamente, micro e macrocosmos. O autor refere ainda
que ponto e círculo podem simbolizar o mundo e também os ciclos celestiais,
caracterizando a tendência expansiva. A noção de ciclos sugere a de movimento, e
assim chegamos ao movimento circular. Sobre este, Chevalier (1989) observa ser
perfeito, invariável, sem começo nem fim, e que pode simbolizar o tempo, o céu (“de
movimento anular e invariável”), ou o movimento do Sol ou das estrelas em torno da
estrela polar.
Beaine (1995) fala sobre a circularidade, dizendo que esta representa “tudo
que corresponde à unidade mítica – o dia e a noite, as estações do ano, a passagem
ao devir, o instável suceder das horas, a passagem do visível para o invisível, o contato
entre as criaturas e o criador” (p.62).
Relacionando as noções de circularidade e centro, encontramos uma
interessante referência às palavras do sacerdote e sábio sioux, Hekapa Sapa (Alce
Negro):

Tudo que o poder do mundo realiza plasma-se em círculo. O céu é


circular... O vento, em seu maior poder, gira em remoinhos. Os pássaros fazem
ninho em círculos, porque sua religião é a mesma que a nossa... Nossas tendas
são circulares, como os ninhos dos pássaros, e sempre dispostas em círculo,
formando o elo de nossa nação, um ninho de muitos ninhos, onde o Grande
Espírito quer que geremos nossos filhos. (Burckhardt, 2004, p.42)

Para Hekapa Sapa, o centro é a morada do Grande Espírito; a circularidade é a


manifestação de seu poder.
Tais imagens sugeriam o incognoscível, aquilo que o homem não conseguia
explicar racionalmente ou através de palavras, mas que podia representar, e a
representatividade proposta vinha sempre de um ato ou modelo extra-humano ou
divino, e portanto, sagrado. A atitude do ser humano com tais simbolizações ou com o
sagrado, propriamente, era de respeito, com nuances de temor, por um lado, ou de
segurança e esperança, por outro lado, uma vez que este configurava a ordem superior
ou o verdadeiro poder.
Existiram muitas maneiras de se expressar este respeito pelas forças
sobrenaturais, mas conforme observa o folclorista Câmara Cascudo (1988), as danças
circulares talvez constituam-se nas mais antigas manifestações de homenagem às
referidas potências. O autor citado informa-nos da existência de vestígios de danças
circulares no chão da gruta de Trie D’Audoribert, em Ariège, França, pertencentes ao
período Magdaleniano (Era Mesolítica). Existe ainda nesta gruta uma inscrição rupestre
datada desta época (aproximadamente 15.000 A.C.), onde os feiticeiros dançam em
círculos vestidos com peles de animais, tentando seduzir cervos. Possivelmente,
tratava-se de um ritual de caça (existem referências míticas da crença em um Senhor
das Feras), e esta dança deveria ser conduzida por um xamã, que era quem
intermediava o contato entre os homens e o sobrenatural, e direcionava-se, assim, ao
campo do sagrado.
Foram encontradas, próximas a estas e na África, outras representações, mas
remetendo ao período neolítico, onde observam-se figurações de combates dançados,
ou ainda cenas de dança solo ou coletivas em que os participantes vestiam-se com
peles de animais, o que poderia também estar representando um culto totêmico
dançado.
Todas as danças eram originalmente consideradas sagradas, pois, segundo
Eliade (1985), elas também possuíam um modelo extra-humano. Desta forma, elas
constituíam-se na imitação de um modelo arquetípico ou paradigmático ou, ainda,
comemoravam um momento mítico. E como tal, elas eram realizadas quando se
pretendia alcançar a incorporação do animal no homem, para obter-se alimentos, ou
também para honrar os mortos, para assegurar a harmonia do cosmos, ou nas
cerimônias de iniciação.
Neste sentido, elas teriam sido criadas em illo tempore, na época mítica, por
um animal totêmico (como o “Senhor das Feras”), por um deus ou por um herói, e os
ritmos coreográficos tentavam, então, reatualizar este illo tempore ou repetir
alegoricamente o gesto original e recolocar o homem em contato com as poderosas
forças primordiais (relacionadas com o momento de criação do mundo).
Nos períodos mesolítico e neolítico as danças circulares possuíram motivos ou
finalidades variadas, expressando de algum modo a relação com o sagrado. Dançava-
se para atrair chuva, para favorecer a caça ou a pesca, para agradecimento às
divindades ou para rogar perdão, para favorecer a colheita ou para pedir a cura de
algum enfermo, e assim por diante. Na medida em que nos aproximamos do período
histórico, elas passam a incorporar outras temáticas, que assinalaremos a seguir.
Na transição entre os períodos pré-histórico e histórico, observamos que as
danças circulares surgem espontânea e recorrentemente nas mais diversas culturas,
sempre associadas à dimensão do sagrado, constituindo-se numa forma de expressão
de tudo que a linguagem não atingia e assim, de comunicação do mito. Era a própria
coreografia do mito. Beaine (1995) afirma que o mito podia ser comunicado através da
voz, do gesto, da dança, dos cânticos ou da prece, ressaltando-se então que a
transmissão das informações podia ser feita de modo oral, corporal ou rítmico,
tornando-se importante assinalarmos, portanto, que as danças circulares, por envolver
vários dos aspectos referidos, constituíram-se em importantes arquivos das antigas
culturas. Note-se que o que as danças comunicavam era o que não dava para ser
expresso através de palavras. O filósofo Garaudy (1980) ressalta que se alguma coisa
pudesse ser dita, não precisaria ser dançada.
Tal relevância da comunicação não-verbal, de outro modo, já foi assinalada por
Jousse (1974), que propõe em seu atualmente pouco referido trabalho, L’Anthropologie
du Geste, um estudo da etnia palestina através das expressões corporais, como uma
forma de melhor compreender-se o Evangelho. Isto porque todas as versões existentes
do mesmo constituem-se em traduções e interpretações de outras narrativas das
palavras de Cristo, que foram transmitidas oralmente (“Evangelho” quer dizer, segundo
o autor, “Anúncio Oral”) e em outra língua, pois Cristo falava aramaico.
O pensador francês Roger Garaudy (1980) faz várias referências sobre o
surgimento da dança no período histórico. Observaremos que os motivos originais
relacionados com o surgimento da dança, nas diversas culturas, modificam-se nos
períodos mais recentes, perdendo-se em parte (mas não totalmente) a relação destas
com o sagrado, mas ainda preservando-se os motivos que as relacionam com os fatos
da natureza, e principalmente, surgindo aqui a relação que estes fatos poderiam ter
com o trabalho.
Há cerca de seis mil anos, os egípcios reverenciavam Vênus dançando a
dança da Estrela da Manhã, quando os astros noturnos desapareciam, visando manter
a ordem celeste. Dançava-se figurando o movimento dos planetas. Um pouco mais
recentemente, segundo Garaudy (1980), os mesmos egípcios homenageavam o fluxo e
o refluxo do rio Nilo, “cujos ritmos comandavam os trabalhos de semeadura e colheita,
imagens de morte e da ressurreição da natureza eram celebradas na primavera, nos
mitos e nos ritos das danças que evocavam Ísis e Osíris”.
Entre os gregos, Garaudy (1980) faz referência a Ted Shawn, que afirma que
“o teatro nasceu da dança, a dança do teatro e ambos de Dionisos”. O autor refere que
nas tarefas de amassamento das uvas para fazer vinho, os pisadores cantavam e
dançavam, num ritmo que contagiava a todos, até que, fatigados, eram substituídos por
outros pisadores que faziam parte da platéia e que através de cantos acompanhavam o
ritmo dos primeiros. Toda a população participava deste cerimonial, formando fileiras
concêntricas em torno do tanque onde se amassavam as uvas, enquanto aguardava a
sua vez, num processo em que, realizando-se as danças juntamente com o trabalho,
estas, no entanto, não se desvinculavam de sua origem sagrada, ao celebrarem
Dionisos.
Aqui no Brasil temos informações sobre a realização de cerimônias
semelhantes quando se procedia ao amassamento de grãos para a feitura de farinha.
Esta tradição teria sido herdada dos indígenas, que são referidos por Câmara Cascudo
(1988), a respeito de documentos que remetem ao século XVI (época do
descobrimento), sobre as danças em círculos, onde o pajé defumava os guerreiros
dançarinos para “transmitir-lhes o espírito da coragem”. A feitura dos alimentos era um
motivo sacramental para os indígenas. Mais tarde, com a vinda dos africanos, o
trabalho do plantio e da colheita eram também pontuados por cânticos, que
potencializavam a força dos trabalhadores e transformavam o trabalho agrícola numa
extensa cerimônia cantada e dançada, que desdobrava-se até o momento da batedura
das espigas e da moenda dos grãos. Mais recentemente, a pesquisadora Lydia Hortélio
observou resquícios desta antiga tradição entre trabalhadores rurais no interior da
Bahia.
Na África, onde, segundo Garaudy, costumava-se perguntar “O que danças?”
no lugar de “Quem és?” para saber da procedência do indivíduo, a dança representava
“a tribo, os costumes, a religião e os grandes ritmos humanos da comunidade”. Era
comum os povos africanos dançarem com máscaras, que serviam de condensadores
de energia, reunindo as forças esparsas da natureza, dos membros vivos ou mortos da
comunidade, “criando núcleos mais densos de energia e realidade”.
Considera-se que a origem da dança indiana é celeste. A dança de Shiva, o
“Senhor da Dança” (Natarāja) expressa a criação, a conservação e a destruição do
mundo, como ciclos permanentes da atividade divina. Burckhardt (2004) afirma que:

As imagens da dança de Shiva algumas vezes mostram os atributos de


um deus, outras os de um asceta, outras ainda os de ambos ao mesmo tempo,
pois Deus está além de todas as formas, e somente assume uma forma para
poder sacrificar-Se, para ser Sua própria vítima. (p.71-72)

Sobre a China, Garaudy cita Confúcio, que afirmava “mostre-me como dança
um povo e eu lhes direi se sua civilização está doente ou tem boa saúde”.
A coreógrafa e “mentora” de danças Marie-Gabriele Wosien (2004) faz uma
compilação da importância simbólica da dança (que, enquanto elemento expressivo,
antecede a linguagem), observando como movimentam-se os símbolos nas infinitas
coreografias, que comunicavam tudo aquilo que as narrativas não preenchiam.
Encontramos no estudo feito pela autora o simbolismo do espaço e do tempo, do Sol e
do círculo, das espirais e meandros, da cruz e da árvore, da origem da criação, das
deusas dançantes, da música e Orfeu, do corpo dilacerado e do corpo recomposto e
templo da manifestação divina, todos mobilizados pela dança.
Como pudemos observar, esta foi uma etapa transicional, quando os seres
humanos começaram a se tornar sedentários e passaram a domesticar animais e
cultivar plantas. Nesta etapa, o ritmo das ações de trabalho vinculado com os ciclos da
natureza, juntamente com os cânticos grupais, expressaram-se através das danças
circulares e constituíram-se em elementos catalizadores das forças coletivas. Do
mesmo modo que na época em que elas remetiam ao mito e colocavam o homem em
contato com as forças primordiais, as danças continuaram a possibilitar a um
determinado povo que este transcenda e supere seus limites.

Os Efeitos Psicofísicos da Dança em sua Relação com o Sagrado

Garaudy (1980) informa-nos que a expressão dança (no francês, danse), como
danza, dance, tanz, deriva de tam, que em sânscrito quer dizer tensão. Por isso, o que
se expressa através da dança possui uma intensidade corporal. O ser humano que
dança encontra-se em uma relação ativa com a natureza, como se dela participasse,
permitindo que os ritmos cósmicos manifestem-se através de seu corpo. Garaudy
afirma mais adiante que “a dança simboliza de algum modo um certo sentido, pelo qual
temos consciência da posição e da tensão de nossos músculos” (p.14).
Como expressão do sagrado que inicialmente ela foi, a dança também é
unificadora, na medida em que integra o conhecimento de diversos planos. Nas
palavras do mesmo autor:

Ela nos revela que o sagrado é também carnal e que o corpo pode
ensinar o que um espírito que se quer desencarnado não conhece: a beleza e a
grandeza do ato quando o homem não está separado de si mesmo, mas inteiro
e presente no que faz”...”a dança afirma a unidade do homem e seu meio, do
indivíduo e do grupo, do corpo e do espírito. (p.16)

Informação semelhante nos dá o dançarino e pai da já citada Marie-Gabriele,


Bernhard Wosien (2000), quando se refere à origem da dança relacionada com a
meditação e a oração. Para ele, a dança é uma oração em que tanto a alma quanto o
corpo participam. Refere, mais adiante, que a dança teria surgido da meditação, sendo
assim um caminho que conduz o conhecimento “de dentro para fora”. Wosien afirma
que o corpo é o objeto de meditação do bailarino. Em suas palavras:

Este (o corpo) é para ele, ao mesmo tempo, templo, moradia e


instrumento. Durante o exercício, durante a dança, ele deve apropriar-se
inteiramente dele, preencher todos os seus recantos. O colloquium internum leva
a si mesmo, assim como à fusão com o objeto: calor, circulação e suor
produzem um despertar interior, flexibilidade e solução. A inspiração e a
expiração são mais profundas, a tensão e o relaxamento são mais intensos, a
correção do equilíbrio interno e externo é repetidamente treinada. O aumento de
suor leva a um aumento de resíduos. No todo, esse processo é, a cada vez, um
passo para a autodescoberta. (p.28-29)

Nas danças em roda, os participantes movimentam-se passo a passo, como


numa marcha. Os pés ligam-se ao chão como profundas raízes, formando com a
coluna vertebral e a cabeça o eixo que projeta o corpo para o céu. Com os braços
estendidos para os lados, estabelece-se a união através das mãos: palma da mão
esquerda receptiva, voltada para baixo e palma da mão direita ofertando a energia
circulante, orientada para cima. Forma-se a cruz corporal. Quando as mãos ou os
braços não estiverem presentes, as intenções, relacionadas com o ritmo e o
movimento, as substituem. As mãos e os braços, como apêndices do tórax, fazem
circular a energia cardíaca; a freqüência combinante das respirações atesta a empatia
grupal. O Eu, integrando o Tu, torna-se Nós. Todos constituem um só corpo.
Juntamente com a dança, a música e o ritmo contribuem como elementos
desencadeadores de Estados Especiais de Consciência (reduzidamente, EEC,
conforme refiro em minha dissertação de mestrado), que podem conduzir ao êxtase ou
ao transe. O êxtase relaciona-se principalmente com o xamanismo, caracterizado pela
saída do espírito do xamã de seu próprio corpo (e do mundo profano) e sua penetração
no plano sagrado, percorrendo um itinerário mítico concernente ao seu universo
cultural. O transe relaciona-se com os ritos de possessão, que implicam na descida dos
deuses ou das entidades espirituais que incorporam os mediuns (dançarinos) e se
manifestam através de seus corpos.
Nos ritos xamânicos, a música possui um poder mágico; o seu ritmo é ditado
por instrumentos de percussão, como o tambor xamânico e chocalhos com conchas,
além da própria voz do xamã, sendo, juntamente com os movimentos dançados,
elementos importantes que favoreciam o êxtase, momento em que o feiticeiro entrava
em contato com o mundo dos espíritos. O ritmo, os movimentos dançados e os
cânticos executados tinham ainda o poder de desenhar, para o público presente, a
paisagem a ser percorrida pelo xamã durante a viagem extática.
O público, quando presente, vivenciava em parte os efeitos psicofísicos que
conduziam o xamã ao êxtase. Os movimentos musculares deste, como de qualquer
outro dançarino, podem produzir ressonâncias nas cadeias musculares dos
espectadores, configurando a empatia destes com os dançarinos, correspondendo
mesmo a uma execução passiva dos referidos movimentos, e, no caso da dança do
xamã, aproximando o público do êxtase.
Nos ritos de incorporação, a música geralmente é um canto coletivo, sendo que
os efeitos psicofísicos advindos dessa corresponde à força do grupo. Tais efeitos
produzem um deslocamento da psique das referências comuns de espaço e tempo, às
vezes acrescido de uma perda do domínio consciente sobre os movimentos corporais,
ocorrendo ainda, em determinadas circunstâncias, um desencadear de reações
neurovegetativas acompanhadas de exacerbações emocionais. Existem pesquisadores
que, apoiados em referências psicopatológicas, configuram o conjunto de
manifestações observadas como sintomas de histeria, o que é contestado por outros
(como Roger Bastide), que afirmam que o fenômeno possui uma determinação social e
não individual, e portanto, não se deveria falar em patologia. Em certas culturas,
inclusive, determinadas danças constituem-se em técnicas de saída do tempo, como a
simbolizada por Shiva, na Índia, cujos movimentos desfazem e refazem o tempo.
Ainda nas danças xamânicas, encontramos o motivo da cura. Beaine (1995)
cita o exemplo dos boximanes, povo caçador e coletor que vive na África do Sul, para
os quais a dança com finalidade de cura possuía o efeito de fazer eclodir o calor
interior. Nos seus ritos de cura, o grupo posta-se circularmente em torno de uma
chama acesa e, através de cânticos e movimentos circulares, reconstituem suas
estruturas míticas. Posteriormente, vivenciando o fogo e movendo-se conforme este
através da dança, ainda cantando e dançando os motivos míticos originais, o grupo
apoia o xamã que, em êxtase, percorre o universo mítico procurando a solução para
aquela enfermidade.
Os dervixes rodopiantes são dançarinos sagrados que possivelmente herdaram
conhecimentos da antiga tradição xamânica. Eles dançam evocando “a evolução dos
astros e o êxtase da alma”, conforme as palavras de Chevalier (1989). Assinalamos a
citação do mesmo autor acerca do evocador dessas danças, Jalal-od-Drin-Rumi, que
proferia antes do seu início:

Ó dia, levanta-te, os átomos dançam, dançam as almas perdidas de


êxtase, e dança a abóbada celeste por causa deste Ser. Ao ouvido te direi onde
essa dança o conduz. Todos os átomos que se encontram no ar e no deserto,
saiba que estão possuídos como nós, e que cada átomo, ditoso ou desditoso,
fica aturdido pelo Sol da alma incondicionada.

Chevalier refere-nos ainda, sobre os dervixes, que o círculo formado pelos


dançarinos era dividido em duas metades, sendo que o primeiro arco formado era o da
descida ou involução das almas no mistério e o outro era o arco da ascensão para a
luz. Enquanto a dança ocorria, “o xeique, imóvel no centro da ronda, representa o pólo,
o ponto de intersecção entre o temporal e o intemporal, por onde passa e se distribui a
graça para os dançarinos”.
O rito da circum-ambulação é a parte conclusiva da peregrinação para a
Caaba, expressando também a relação entre o santuário como centro, para a tradição
islâmica, e os movimentos celestes. A realização de sete circunvoluções, três correndo
e quatro caminhando, corresponde ao número de esferas celestes.
Na tradição cristã, aqui no Brasil, segundo Câmara Cascudo (1988), no século
XVIII dançava-se acompanhando as procissões e bailava-se em círculo dentro da
igreja, costume que foi se perdendo na medida em que o país urbanizava-se. A circum-
ambulação também veio das tradições indígenas e, no interior das cidades, sincretizou-
se com os costumes cristãos.
A Decadência das Danças

O processo vivido principalmente pela civilização ocidental concorreu,


infelizmente, para uma decadência das danças circulares. Tanto a orientação dada
pelas religiões monoteístas, determinando a repressão de toda corporalidade com o
intuito de promover-se o desenvolvimento espiritual, como a tendência racionalizante
intensificada nos últimos séculos, a industrialização e o crescimento urbano foram
fatores consideráveis para que, pouco a pouco, as danças circulares declinassem,
resistindo apenas de forma restrita em grupos étnicos ou em manifestações do folclore.
Concomitantemente, o dançarino Maurice Béjart, prefaciando o livro de Garaudy
(1980), fala da dissociação da educação do corpo e da educação da alma (ou coração)
como característica da época atual, também desfavorável ao desenvolvimento das
danças em geral.
Hoje nós nos confrontamos com novos paradigmas estabelecidos pelo
conhecimento científico, principalmente, e pela impressionante aceleração no acesso a
informações, que exigem da humanidade uma nova postura e uma outra ética.
Novamente vivemos uma época que reproduz outros momentos já percorridos pelos
seres humanos, onde entram em confronto um mundo novo e desconhecido com o
outro mundo que supúnhamos conhecer. A elaboração deste processo exige o
encontro de novas imagens ou de outros pressupostos que permitam a integração
desse conhecimento.
Mas, diversamente de outras épocas, temos poucas soluções para nós
próprios, uma vez que estamos muito dissociados, tanto em nível coletivo, existindo
uma orientação muito individualista para a vida social, como em nível pessoal, cujo
desenvolvimento da personalidade está, de modo geral, unilateralmente orientado pela
via racional. Esta condição aprofunda ainda mais a dissociação mente-corpo já
referida.
Um Caminho Possível

Com exceção da arte, não temos muitas outras soluções coletivas para
encontrarmos as novas imagens que necessitamos. As danças circulares, embora não
possamos defini-las exatamente como expressões artísticas strictu senso, mas como
manifestações da criatividade coletiva, resistem como depositárias dessa possibilidade.
E talvez a necessidade de refletir-se sobre os novos paradigmas, com os quais nos
confrontamos e que nos referimos acima, justifique o seu ressurgimento neste
momento, além da própria e evidente necessidade psicofísica de contrabalançar-se a
amplitude racional que orienta o modo de pensar contemporâneo.
O mesmo Béjart propõe que, através da dança, o homem tem uma
oportunidade de ver-se totalmente engajado através do corpo, espírito e coração. E
através das danças circulares, podemos afirmar que reencontramos a possibilidade de
reabrirmo-nos para as configurações coletivas e para a harmonia no convívio com o
próximo. Elas tanto podem contribuir para o encontro das referidas imagens que nos
fazem falta, inclusive no campo da ética, como servem para apaziguar a alma que vive
uma inflação do racional e a nostalgia do “verdadeiramente real” ou do simbólico.
Como manifestações coletivas que são, podem também auxiliar os povos a superarem
os dogmatismos que os impedem de conviver em paz.
Garaudy (1980) afirma que “a dança nos revela a unidade de todo momento do
corpo com um movimento psíquico, mostrando que o físico e o espiritual não são dois
domínios separados, mas dois aspectos de uma mesma realidade”. E também como
elemento que revela a unidade, as danças circulares permitem que homens e mulheres
integrem-se como partes de uma totalidade que se une através das mãos, da
respiração, dos movimentos corporais ditados pelo ritmo da música, numa disposição
em círculo que sugere o sagrado e a eternidade, como num ensaio para a mônada que
as intuições esotéricas dizem que iremos constituir.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1996.


BASTIDE, Roger. Os Problemas da Vida Mística. Lisboa: Publicações Europa-América,
s/data.
BEAINE, Thaís Curi. Máscaras do Tempo. Petrópolis: Vozes, 1995.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo Horizonte, Itatiaia e
São Paulo: EDUSP, 1988.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro:
José Olympio Editora, 1989.
ELIADE, Mircea. O Mito do Eterno Retorno. Lisboa: Edições 70, 1985.
GARAUDY, Roger. Dançar a Vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
HORTÉLIO, Lydia. Cantos do Trabalho (DVD). Instituto de Radiodifusão Cultural da
Bahia.
JUNG, Carl Gustav. A Dinâmica do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1991.
JOUSSE, Marcel. L’Anthropologie du Geste. Paris,: Gallimard, 1974.
MACHADO FILHO, Paulo Toledo. Gestos de Cura e seu Simbolismo (dissertação de
Mestrado). São Paulo, USP, 1994.
WOSIEN, Bernhard. Dança, Um Caminho para a Totalidade. São Paulo: Triom, 2000.

WOSIEN, Marie-Gabriele. Dança, Símbolos em Movimento. São Paulo, Anhembi


Morumbi, 2004.
ENCONTROS COM MARION WOODMAN

Márcia Taques Bittencourt

A posteridade não poderá compreender depois de já haver reinado a luz, tivéssemos de viver outra vez
em trevas tão espessas.
Castellio em “De arte dubitante”

Primeiro encontro

Certo dia, conversando com minha querida amiga Ceres sobre Compulsão Alimentar,
ela me disse: “Há um livro, A Coruja era Filha do Padeiro – Obesidade, Anorexia Nervosa e
o Feminino Ferido, por Marion Woodman”.
Marion Woodman é uma analista junguiana conhecida internacionalmente, que tem
explorado a relação corpo-alma em seu trabalho como analista e professora por mais de
trinta anos.
Canadense, graduada pelo Instituto C.G. Jung de Zurique e membro da Associação
Internacional de Psicologia Analítica (IAAP), é autora de vários livros, entre eles A Virgem
Grávida, O Vício da Perfeição e Feminilidade Consciente.

Segundo encontro

Foi em 1996, em Hilton Head, na Carolina do Sul, numa conferência sobre


Psiconeuroimunologia, que eu a vi pela primeira vez.
Marion foi a responsável pela abertura do evento. Eram mais de oitocentas pessoas
que ouviam atentamente aquela figura feminina. Alta, com cabelos ondulados, e intensos e
brilhantes olhos azuis, possuidora de uma energia vibrante, articulada e bem-humorada.
Contava ela a estória de sua vida, de sua luta em varias situações de vida e morte, anorexia, sérios
problemas renais, sua experiência na Índia, e como havia sobrevivido a um câncer através de uma dedicação
diária aos sonhos, aos “símbolos expressivos dançantes” (imagens de cura ) em seu corpo e à energia do
feminino.
“A energia do feminino tende a desfrutar o prazer da jornada, e é capaz de levar essa
energia para ambos os lados, para o ego e para a sombra.” (nota minha desta conferência)
Sozinha, sendo sua própria testemunha, ela gravava o fluxo de suas imagens,
sentimentos, associações que surgiam, e posteriormente trabalhava esses conteúdos
escrevendo, dançando, desenhando e em sua análise terapêutica.
Suas palavras entraram em minha alma. Terminada a conferência, na mesa aonde
autografava os livros, perguntei como poderia estudar com ela.
“Há workshops aos quais você poderia ir. Deixe seu endereço para receber as
informações.”
Ao entregar aquele pedaço de papel com minha direção, sua xícara de café virou e
borrou toda a escrita! Então, enquanto pensava que jamais ouviria sobre os workshops, ela
jogou meu endereço em sua inseparável bolsa.
De volta ao Brasil, o tempo corria. Foi quando certo dia chegou uma carta do Canadá
contendo as preciosas informações!

Terceiro encontro

Decidida, fiz minhas malas e voei.


Abraxas Retreat Center, em Mississagua, uma região distante de Toronto mais ou
menos duas horas. Muito verde, muita paz e uma casa grande, como um paiol.
Depois de caminhar pelas trilhas locais, resolvi me refrescar com um mergulho na
piscina. Foi quando Marion chegou e espantada me disse: “Você veio mesmo, me de um
abraço!” Senti um acolhimento cheio de amor e consideração como nunca havia
experimentado.
Neste grupo lideravam também Ann Skinner, professora de voz; Mary Hamilton,
professora de dança; e Paula Reeves, analista. Em todo o grupo de professores e de alunos
havia a mesma qualidade amorosa, um amor incondicional, cheio de respeito e aceitação.

Quarto, quinto……..encontros

Vários outros workshops, seminários de sonhos, grupos de leitura dos seminários de


Jung sobre Zaratustra foram vividos. Completei o primeiro programa de liderança oferecido
pela Fundação Marion Woodman em 2003. Nessa oportunidade convidei-a a vir ao Brasil, e
em outubro de 2004, através de uma carta, ela confirmou sua intenção de vir a São Paulo,
assinalando, porém:
We must all accept the reality that my physical health is no longer as dependable as it
was before these heart difficulties (...) Time is healing. (Devemos aceitar os fatos de que
minha saúde física não é tão boa quanto antes, depois dos problemas cardíacos (...) O
tempo é o curador.)
Encontrar Marion foi a oportunidade para me encontrar e me perder, para vivenciar
uma energia totalmente desconhecida, e usá-la criativamente. Abrir a alma para a
espiritualidade, sentir-me fortalecida para render-me, buscar a segurança para cortar o
velho, segurança para agir livre da crítica e do julgamento alheio. Buscar a possibilidade de
ser autêntica. Aceitar o poder do inconsciente, respeitar os sonhos e viver a sabedoria do
corpo.
Soberano ao consciente, o inconsciente, segundo Jung, “não deve ser considerado
apenas como perigoso. Em todo caso, o inconsciente é desfavorável ou perigoso só porque
não formamos uma unidade com ele e portanto estamos em oposição a ele. Uma atitude
negativa em relação ao inconsciente, ou separar-se dele, é prejudicial, se considerarmos
que a dinâmica do inconsciente é idêntica à energia instintiva. Desligar-se do inconsciente é
sinônimo de perder os instintos e as origens”. (Two Essays in Analytical Psychology,
parg.195)
Minha trajetória pessoal nessa busca do conhecimento da relação corpo-alma, teve
início quando, aos oito anos, participava das aulas de dança baseadas no método Laban.
Meu espírito voava e minha alma feliz sentia em meu corpo esse encontro. Dançando
se pode ser tudo ou nada.
Em A alma e a Dança, Paul Valery escreve sobre um encontro no qual Sócrates,
Fedro e Eriximaco apreciam a dançarina Athiktê e discutem sobre o que a bailarina poderia
representar: o amor, as ondas do mar… Sócrates diz: “Coisa nenhuma, caro Fedro, mas
qualquer coisa, Erixímaco. Tanto o amor quanto o mar, e a própria vida e os pensamentos…
Não sentis que ela é o ato puro das metamorfoses?” (pg.47-48)
Os anos de estudo e de trabalho com Pethö Sandor, aprendendo e ensinando junto com ele nos cursos
do Instituto Sedes Sapientiae, participando na criação de um programa de Cinesiologia Psicológica,
independente do curso de Terapia Psicomotora, devido ao grande numero de pessoas interessadas em
experimentar esse caminho, contribuíram para afirmar e confirmar minha crença nessa totalidade que é o ser
humano: corpo, alma, espírito.
E assim, integrando o aspecto somático (localizado nos ossos e na carne) ao
complexo inconsciente à psique, as pontes com a teoria junguiana foram sendo construídas
aos poucos, tornando vivas as energias dos complexos, arquétipos, sombra, persona.
“A separação da psicologia das bases assertivas da biologia é puramente artificial,
porque a psique humana vive uma união indissolúvel com o corpo” (Greene, 1936).

Encontros no Brasil

Em abril de 2005 Marion chegou a São Paulo, primeira cidade latino-americana a


recebê-la para duas conferencias e três workshops.
O desejo de dividir minha experiência com a comunidade brasileira só foi possível
graças à união de esforços pessoais e institucionais. Com tal contribuição posso dizer que
os encontros foram um sucesso.
As conferências na PUC de São Paulo e na Universidade Mackenzie proporcionaram
uma oportunidade única para professores e alunos, além da comunidade em geral: a de
ouvir e sentir a energia dessa analista cujo trabalho tem sido reconhecido
internacionalmente.
A revista Spring, Journal of Archetype and Culture de n° 72 dedica toda sua edição à
Marion.
Nos workshops, cada um é levado à experiência paradoxal de que é necessário,
durante o processo, aumentar a força e a flexibilidade do ego corporal, enquanto
simultaneamente as defesas vão pouco a pouco sendo dissolvidas.
Isso é necessário para que seja viável um diálogo com as energias do inconsciente.
Sendo o ego um filtro entre consciente e inconsciente, é através dele que esse
processo pode se realizar. Se o ego não estiver suficientemente fortalecido, ele será
destruído pelo poder dos complexos e dos comportamentos ligados à adição.
Para que seja possível render-se ao mundo da alma é necessário um ego fortalecido,
pois é ele que segura e mantém o centro, de forma que novas idéias possam aparecer.

O mundo da alma e o mundo das imagens


Quando se trabalha o corpo, as imagens vêm à consciência de forma que você pode
dançá-las, pintá-las, fazer uma escultura ou usar qualquer outro caminho criativo que a
energia sugira.
É através das imagens que se apresentam as possibilidades de transformar a energia
para torná-la passível de expressão, torná-la consciente, para que não permaneça no
inconsciente e se torne perigosa.
É através dos sonhos que se vêem os símbolos e é através do corpo,
adequadamente preparado, que eles podem ser vivenciados.
Se você se permitir brincar com as imagens, observando seu processo de
transformação, a energia presa na sombra emerge, trazendo consigo o fogo criativo.
Nessa nova integração, o Self oferece a oportunidade de cura para a alma e a energia
para a arte, para a criatividade.
Para Marion, “trabalho com o corpo é trabalho com a alma, e as imagens, a ponte
entre os dois”. Descobrir a própria voz é uma parte essencial nesta trajetória. Segundo ela,
“os freqüentes sons altos das vozes femininas são devidos a um animus negativo, que
aperta sua garganta com seu criticismo interior”.
Os ensinamentos em seus workshops nos levam a conhecer o amor, o amor que
temos por nós mesmos, ao invés do desejo do poder.
Nesta jornada da alma é necessário criar um espaço que contenha positivamente o
amor, o respeito e a presença, não apenas num nível físico e interpessoal, mas também
num nível arquetípico. Por isso, podemos observar elementos ritualísticos em seu trabalho.
Finalizando, esses métodos atuam colaborando na abertura do corpo, na soltura das
amarras dos complexos, nos cuidados com a criança ferida, assim como, também, ajuda o
corpo sofrido e traumatizado a chegar, através do ego, ao campo da consciência de maneira
mais rápida do que numa análise tradicional.
O que podemos também observar no acompanhamento das pessoas que
experimentam essa metodologia é a construção de corpos mais sensíveis e flexíveis,
recipientes para a feminilidade consciente.
É ainda importante lembrar que

Ambos os gêneros, necessitam de uma boa diferenciação entre as energias


masculina e feminina. As estruturas poderosas do patriarcado feriram profundamente
a ambos, homens e mulheres, e um relacionamento maduro quase sempre só é
possível com ajuda de um árduo trabalho psíquico. (Woodman, 1996, pg 2)

Bibliografia

GREENE, Anita U. Listening to the Body for the Sake of the Soul in Spring 72, Journal of
Archetype and Culture. Body and Soul. Honoring Marion Woodman.

HARRYS, Judith Jung e o Ioga – A ligação corpo-mente. São Paulo: Ed Claridade, 2004.

JUNG, Carl Gustav. Two Essays on Analytical Psychology. CW 7. London: Routledge and
Kegan Paul, 1971.

STROMSTED, Tina. Cellular Resonance and the Sacred Feminine: Marion Woodman’s
Story-Somatics. Journal of Bodily Arts and Science XIII (1) (2000-1,Fall-Winter), 4-11&5154.

VALERY, Paul. A Alma e a Dança e Outros Diálogos. Rio de Janeiro: Editora Imago
Editorial, 1996

WOODMAN, Marion and Dickson, Elinor. Dancing in the Flames. The Dark Goddess in the
Transformation of Consciousness. Boston & London: Shambhala Publications, Inc.,1996.

WOODMAN, Marion. A Coruja era Filha do Padeiro. Obesidade, Anorexia Nervosa e o


Feminino Reprimido. São Paulo: Editora Cultrix, 1980.

______________ A Virgem Grávida. Um processo de transformação psicológica. São Paulo:


Editora Paulus, 1999.

______________ O Vício da Perfeição. Compreendendo a relação entre distúrbios


alimentares e desenvolvimento psíquico. São Paulo: Editora Summus Editorial, 2002.
O USO DE TÉCNICAS DE INTEGRAÇÃO PSICOFÍSICA NO HOSPITAL

Ana Carolina Cascaldi Sobreiro1

Resumo
Este trabalho discute a importância da atenção ao corpo no contexto hospitalar,
corpo este que é, nos dias de hoje, amplamente discutido e no qual muito se investe. O
recurso que o psicólogo dispõe para isso são as técnicas de integração psicofísicas,
que se constituem um meio eficaz de dar voz a esse corpo que é acometido pelo
adoecimento.

Introdução
Percebe-se nos dias de hoje um grande interesse pelo corpo. Fernandes (2003)
diz que “ele está em alta”, vem sendo alvo do ideal de completude e perfeição, e está
tomando a frente da cena social. A autora coloca ainda que esse saiu de espaços
privados, como casas e instituições de saúde, e ganhou o espaço público das
academias, clínicas de estética e a rua.
Frente à doença, é este corpo e estes ideais que se deparam com o processo de
hospitalização, é neste ambiente que ele fica em evidência. O corpo que chega ao
hospital não é esse tão cultuado atualmente: ele está acometido por uma doença e em
sofrimento, qualquer estímulo ou toque externo pode ser vivido com medo e
apreensão, é um corpo tenso e apreensivo. Ávila (2004) analisa as experiências
subjetivas nas doenças como um caminho para a investigação da relação mente-corpo.

O modo como a consciência é afetada quando o corpo sofre processos


patológicos, e a forma como a mente, em suas dimensões consciente e
inconsciente, processa as transformações objetivas das doenças, podem fornecer
elementos para a construção de modelos de compreensão de que é a
subjetividade e qual é sua relação com o corpo próprio. (Ávila, 2004 p.144)

1
Psicóloga, Especialista em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas Corporais pelo Instituto
Sedes Sapientiae. Curso de Formação em Psicologia Clínica aplicada a Hospitais pelo INCOR.
E-mail: anasobreiro@yahoo.com.br
Dessa forma, como o psicólogo, com seus instrumentos e formas de atuação,
dentre as quais as técnicas de integração psicofísicas, pode escutar as necessidades
desse corpo?
Este trabalho procura mostrar como a utilização dessas técnicas pode ser feita
no contexto hospitalar, como podem se constituir em um recurso que auxilie o paciente
a viver da melhor forma o período de internação e visa ainda discorrer sobre a
importância de se trabalhar o corpo durante a hospitalização, pois sabe-se que o
acometimento de uma doença implica em significativas vivências não apenas
psicológicas, mas também corporais.

Discussão

A humanidade, ao entrar no século XX, trouxe consigo uma visão fragmentada


do homem, enfatizando a objetividade, a concretude e a padronização. Este paradigma
modelou durante muitos anos o conceito de doença e a relação mente-corpo (Ramos,
1994).
Sabe-se que essa objetividade vem desde os tempos de Descartes, onde se
evidenciou a cisão mente-corpo como uma conseqüência das dificuldades da ciência
para se desenvolver (Machado, 2001).
Como Jung já dizia,

a distinção entre mente e corpo é uma dicotomia artificial, um ato de


discriminação baseado muito mais na peculiaridade da cognição intelectual do que
na natureza das coisas. (Jung apud Ramos, 1994, p.27)

Entretanto, atualmente, mais atenção vem sendo dada ao corpo, e isso pode ser
pensado como sendo uma compensação da atitude excessivamente racional adotada
durante os últimos séculos, principalmente no mundo ocidental. Pode-se dizer que está
ocorrendo um restabelecimento do contato com o corpo e também com a própria
natureza humana (Farah, 1995).
Fernandes (2003) também aponta que as relações entre o psíquico e o somático
têm despertado recentemente um interesse renovado e sido objeto de estudo em
domínios muito diferentes, que pertencem tanto às ciências biológicas quanto às
ciências humanas, ambas interessadas na exploração do caráter enigmático dessas
relações.
Buscar um maior contato com o corpo, também no contexto hospitalar, é a nossa
proposta. A psicologia, com sua vasta área de conhecimento, pode propiciar esse
encontro, tornando possível uma abordagem conjunta de traços psíquicos e corporais.
Dar atenção ao corpo é de grande valia, pois o corpo não mente, e, muito mais
que isso, ele pode contar muitas histórias: o corpo é a memória mais arcaica que se
dispõe. Nele, nada está esquecido, cada acontecimento vivido deixa uma marca
profunda (Leloup, 1998).
No corpo é que se operam grandes transformações; ele se constitui como o
primeiro instrumento que ajuda o homem a se adaptar às situações com que se depara
ao longo da vida, porque o corpo proporciona a consciência de mobilidade,
flexibilidade, dinâmica e de limite além de ensinar o senso primário de organização e
desorganização. (Bogea, 2004)
Fernandes (2003) afirma:

O corpo que a construção teórica de Freud anuncia não se confunde com o


organismo biológico, objeto de estudo e intervenção da medicina, ele se
apresenta, ao mesmo tempo como o palco onde se desenrola o complexo jogo
das relações entre o psíquico e o somático e como personagem integrante da
trama dessas relações. (p. 33)

Entretanto, se, dar atenção ao corpo saudável é de grande importância, o corpo


que adoece também precisa ser ouvido pois, como diz Moura et al (2002), quando o
paciente é hospitalizado o que se torna urgente são suas necessidades biológicas,
orgânicas; são essas que precisam ser atendidas. Nesse ambiente e nesse período, o
paciente se encontra despido de suas roupas, seus pertences, de seu ambiente, de
seu trabalho, de sua família e amigos, ou seja, está despido de tudo o que o identifica
como sujeito. A ele agora cabe apenas suportar a doença, o sofrimento, as
intervenções dolorosas, o isolamento e a dependência. Sendo assim, é o corpo doente
e sofrido que chega ao hospital, é este corpo acometido muitas vezes por dores que se
encontra diante do psicólogo; dar atenção a este corpo de maneira diferenciada pode
ser de grande valia para esse paciente.
A doença é uma quebra do equilíbrio biopsicossocial do indivíduo e
obrigatoriamente remete o paciente à revisão de valores, ações e desencadeia
mecanismos de resgate da condição humana e de suas relações. (Romano, 2002 p.70)

Ávila (2004) diz que as doenças apresentam um inegável componente subjetivo.


Quando ela ocorre, a pessoa vivencia os processos vitais, percebe seu corpo como
uma fonte contínua de experiências; ele é pensado, sentido e é fonte de prazer e de
dor.
No hospital, o corpo concreto se impõe de forma irrefutável, pois para a equipe
médica ele é aquilo que se apalpa e que se enxerga, algo que funciona ou não
funciona, objeto a ser investigado (Capobianco, 2003).
Muitas vezes esse corpo fica abandonado no circuito institucional, perde o
domínio de si e se expõe aos cuidados da equipe que busca curá-lo. O hospital se
constitui como uma instituição promotora de saúde e assim respalda os movimentos
que esse corpo precisa para viver (Muylaert, 2000). O psicólogo atuando nessa
instituição pode, através do seu trabalho, colaborar para que esse local seja promotor
de saúde.
A doença e a hospitalização geram um estado de crise e impõem ao paciente
perdas e desorganizações; ele sente seu corpo impossibilitado de seguir seu ritmo
físico e psicológico, e então sente-se em conflito. De um lado está imobilizado pela
doença e hospitalização, de outro, busca a homeostase perdida (Chiattone e
Sebastiani, 1997).
Uma forma de dar atenção a esse corpo no contexto hospitalar é através da
utilização de técnicas de integração psicofísica, que são um recurso disponível para
que se perceba e promova a efetiva integração mente-corpo.
A integração psicofísica consiste em uma abordagem em psicologia que vê o ser
humano como um todo, uma unidade onde físico e psíquico são apenas aspectos
diferentes de uma mesma e única totalidade (Farah, 1998).
A psicoterapia corporal existe há quase duzentos anos e é considerada uma
disciplina científica, com um método planejado e sistematizado de sua prática e
avaliada constantemente. Objetiva o melhor viver do ser humano (Bezerra, 2001).
Valorizar a percepção do próprio corpo é algo muito válido, pois assim pode ser
resgatada a integração mente-corpo, além de facilitar uma possível compreensão do
surgimento e da finalidade das patologias que aparecem ao longo da vida (Gimenes,
2002).
A abordagem corporal em psicoterapia inclui métodos de relaxamento e diversas
técnicas. Os métodos não apresentam contra-indicações e são recomendados quando
se pretende recuperar o estado peculiar de cada indivíduo em consonância com o seu
meio circundante (Sannino, 1992).
São inúmeras as técnicas corporais utilizadas, várias delas descritas por
Delmanto (1997). São elas: toques nos pés, toques nos tornozelos, toques na parte
inferior da perna, toques no joelho, trabalho com as pernas inteiras, trabalho nos
quadris, trabalho na região do sacro, toques na região da cavidade abdominal, trabalho
na região das costas, trabalho na região peitoral, trabalho na região dos braços,
trabalho com as mãos, trabalho na região do pescoço, toques no rosto, toques nas
faces, toques no nariz, toques na região da orelha, toques na região ocular, toques na
cabeça e trabalho no corpo todo.
Pëtho Sándor estabeleceu os fundamentos para a utilização desses toques, que

se utilizam do alto potencial da sensibilidade cutânea, proporcionando uma


vivência multisensorial, uma síntese de várias particularidades perceptivas e
aperceptivas, sintonizadas e sincronizadas numa configuração singular em cada
indivíduo (Sándor,1982. p.99).

Esses toques podem ajudar a aprofundar o atendimento psicoterápico Tocando-


se pontos específicos, as memórias corporais são tocadas também e, a partir disso,
conteúdos podem surgir.
O relaxamento corporal é um outro instrumento e é considerado um método de
recondicionamento psicofisiológico. Sándor (1982) diz que o relaxamento tornou-se um
meio indispensável para se obter descontração e tranqüilização nos pacientes,
fornecendo possibilidades terapêuticas dependendo do campo em que for utilizado.
Propicia libertar energias antes amarradas, retidas e, quando associado à psicoterapia,
favorece a assimilação e a integração de conteúdos não elaborados e fixados no corpo,
colaborando no processo de desenvolvimento.
No contexto hospitalar, o corpo pode ser mobilizado através de várias técnicas e
assim se constituir em “um instrumento da alma” como diz Walter Bühler (Bühler, apud
Delmanto, 1997 p.21).
Mesmo quando a pessoa tem dificuldade em lidar com as manifestações
corporais espontâneas, procurando subjugá-las à mente racional, ainda assim as
técnicas de abordagem corporal podem ser utilizadas, pois, ao favorecem o reequilíbrio
da tensão corporal, propiciam uma alteração do estado de consciência e o surgimento
de conteúdos até entáo indisponíveis.
As técnicas corporais devem ser cuidadosamente escolhidas, sobretudo quando
aplicadas no contexto hospitalar, pois deve-se levar em consideração que a grande
maioria dos pacientes estão em seus leitos, muitas vezes com soros, sondas,
curativos, aparelhos de monitoramento e outros. Sendo assim, a técnica não pode
interferir nessa condição. Há diversos tipos de técnicas, como as com sugestões
verbais, como Schultz e Jacobson; técnicas com toques sutis, como Calatonia; técnicas
com movimentos articulares suaves, como Michaux, entre outras. Portanto, cada caso
deve ser analisado pelo profissional e cada paciente pode ser convidado a participar da
técnica mais apropriada à sua condição. Depois ouvem-se as considerações do
paciente, se há alguma observação particular, o aparecimento de sensações, imagens,
lembranças, emoções ou quaisquer outras manifestações físicas ou emocionais, pois a
partir desse relato pode-se obter importante material para o atendimento psicológico.
É muito importante ressaltar que o trabalho corporal é aplicado a partir do
consentimento do paciente e a técnica escolhida é cuidadosamente pensada antes de
ser aplicada. É preciso bom senso na hora da escolha e da aplicação, e ainda levar em
consideração as condições físicas e psíquicas do paciente (Delmanto,1997).

Assim entramos no território sagrado que é o corpo, aproximando-nos de um


conhecimento essencial que pode nos ser revelado. Isto requer do paciente uma
disponibilidade, uma permissão para ser tocado, ao mesmo tempo em que exige de nós
uma entrega ao trabalho que está sendo realizado, para que possamos também ser
tocados por ele. Os corpos contam uma história e é preciso estar atento para podermos
ouvi-la. (Oliveira e Armando, 2002 p.21)

É interessante dizer que essas técnicas podem ser aplicadas em várias etapas
durante a hospitalização, como nos períodos pré e pós-operatório, por exemplo. Podem
ainda ser utilizadas em enfermarias e UTIs, sendo necessário cuidado e respeito em
sua aplicação, sempre levando em consideração a permissão do paciente. Através
dessas técnicas corporais, o que se oferece ao paciente hospitalizado e a esse corpo
acometido por uma doença é uma forma diferenciada de percepções corporais. O
corpo através dessas técnicas é tocado de uma forma diferente do que vem
experimentando durante a internação – sem dor e sem procedimentos invasivos. Dessa
forma o psicólogo pode auxiliar a valorizar esse corpo e dar a ele sua devida
importância, abrindo-se para o significado de suas inúmeras manifestações.

Durante um período de aproximadamente um ano pude fazer uso da abordagem


corporal no contexto hospitalar. A experiência foi desenvolvida no Instituto do Coração
do Hospital da Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. A
técnica utilizada constituiu-se de orientações verbais, sem toques no paciente. É um
relaxamento inicial de uma técnica específica denominada Exercício de Relaxamento: o
Carimbo. Consiste em pedir ao paciente que perceba diversas partes de seu corpo
como pés, pernas, abdômen, ombros, braços, costas, pescoço, face e cabeça, e
também perceba sua respiração. Isso foi aplicado em pacientes hospitalizados em
enfermarias e UTIs. Recorreu-se especificamente a essa técnica por se entender que
ela poderia promover um relaxamento no paciente e ajudá-lo a perceber melhor seu
corpo, dando a ele uma oportunidade para entrar mais profundamente em contato com
suas sensações corporais e assim favorecer a ampliação de suas vivências na situação
de estar hospitalizado. Pode-se relatar que, nos casos atendidos observou-se uma
maior abertura dos pacientes para o atendimento psicológico, além de relatos de
vivências corporais inéditas para eles. Um dos relatos mais marcantes foi feito por um
jovem do sexo masculino, hospitalizado por causa de um grave problema de válvulas
cardíacas. Após a vivência da técnica, ele relatou sentir como se seu peito tivesse se
aberto e agora estava mais tranqüilo. Após essa vivência, observou-se grande
evolução nos atendimentos seguintes com a psicóloga – antes ele se mantinha fechado
ao atendimento, bastante racional, evitando falar de seus medos e emoções, mas, aos
poucos, ele foi se abrindo e isso foi podendo ser falado e vivido por ele nos
atendimentos seguintes.
Segundo pesquisa realizada no ambiente hospitalar, percebeu-se que, “mesmo
as pessoas que não aceitam muito passivamente uma manipulação de seu corpo, não
encontram eco para suas razões e não são ouvidas em suas necessidades”. (Bellato,
2001 p.117)
Romano (2002) também fala sobre a necessidade de o psicólogo ser o
interlocutor desse paciente, pois apesar de toda a evolução da sociedade o ser
humano fica perdido num canto, acuado pelo adoecer, como há mil séculos atrás.
Segundo estudos realizados no Instituto de Ortopedia e Traumatologia do
Hospital da Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a
utilização de técnicas corporais auxiliaram na compreensão do processo complexo dos
fenômenos que envolvem a conexão corpo-mente e do desenvolvimento de
determinadas patologias (Souza, 2000).
A partir do conhecimento de que “toda angústia implica em tensão e esta pode
ser refletida na área corporal” (Vargas apud Romano, 2002, p.40), as técnicas de
abordagem corporal auxiliam na soltura do corpo e promovem um reajuste postural
mais adequado, além de proporcionar um rebaixamento das defesas da consciência, o
que facilita que conteúdos reprimidos venham à tona. A soltura dessas tensões
promove condições para expansão e crescimento (Delmanto, 1997).
Há estudos que demonstram que doenças e tratamentos resultam e provocam
mudanças na imagem corporal. Doenças significativas e tratamentos médicos
modificam a atenção e a experiência relacionada com o corpo, diminuem a sensação
do que há de seguro e sensível nele. Dor e perda das funções orgânicas, entre outras
manifestações, podem modificar psicologicamente a experiência do indivíduo com seu
corpo. Doenças e tratamentos médicos muitas vezes exigem uma nova adaptação da
imagem corporal (Pruzinsky, 2003). Com a utilização de técnicas corporais há uma
grande possibilidade de ajudar o paciente a estruturar uma imagem corporal mais
aceita por ele e assim melhorar sua qualidade de vida.
Há também trabalhos com eutonia na área da psicooncologia, os quais indicam
sua eficiência como auxiliar nos tratamentos convencionais. Esses trabalhos
mostraram que auto-observação e toques específicos contribuíram para amenizar
dores crônicas (Calheiros, 1997).
Portanto, o uso das técnicas corporais no contexto hospitalar constituem-se um
recurso a mais que o profissional habilitado pode utilizar para uma maior compreensão
de seus pacientes, além de proporcionar a estes um maior bem-estar durante o período
de internação e ainda estimular o surgimento de conteúdos antes bloqueados, abrindo
um espaço maior para o atendimento psicológico e, por conseguinte, para a elaboração
de suas vivências.

Considerações finais

Trabalhar o corpo no contexto hospitalar é de grande valia, pois quando se é


acometido por uma doença, o ser humano encontra-se diante da necessidade de
revisar os valores de sua vida a partir da quebra no equilíbrio psicossocial, além de ter
que se deparar com um corpo sofrido, vivenciado através de dores e desconfortos.
Sendo assim, resgatar esse corpo, nesse contexto, pode propiciar grandes
transformações.
O trabalho com o corpo vem como um complemento ao trabalho verbal, pois,
resgatando a expressividade do corpo, ocorre a soltura de tensões, um reajuste
postural rumo a uma maior adequação, além de favorecer um rebaixamento das
defesas, o que possibilita o vir à tona de importantes conteúdos que podem ser
valiosos para o desenvolvimento da consciência da pessoa.
Cabe uma observação: percebeu-se, durante todo o tempo de estudo e preparo
desse trabalho, que são escassos os artigos publicados sobre a utilização dessas
técnicas pelos profissionais. Fica assim uma proposta para estudos futuros.
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http://www.periodicos.capes.gov.br
PETHÖ SÁNDOR1 E A CALATONIA:
DOS CAMPOS DE REFUGIADOS, NA EUROPA, AO BRASIL

Arnaldo Alves da Motta2

O Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo, é uma importante referência para


pessoas que buscam conhecer a psicologia analítica de Carl Gustav Jung. Entre uma
variedade de cursos que oferece, abordando diversos pontos de vista teóricos, temos, em
2004, pelo menos sete nesta perspectiva, destacando-se dois deles em nível de
especialização. Além disso, o grupo do Sedes, responsável pelas atividades ligadas a essa
disciplina, vem realizando encontros anuais para discutir temas relacionados à Psicologia
Analítica e edita duas revistas, Hermes e Jung & Corpo, ambas de freqüência anual.
O Instituto Sedes Sapientiae tem uma longa história. A sua origem pode ser
localizada em 1933, quando as Irmãs da Congregação de Nossa Senhora – Cônegas de
Santo Agostinho decidiram fundar o Instituto Superior de Pedagogia, Ciências e Letras.
Entre os anos de 1944/5, já com o nome de Sedes Sapientiae, o Instituo se estruturou como
Faculdade de Filosofa Ciências e Letras e em 1947 foi anexada, como faculdade agregada,
à Pontifícia Universidade Católica - PUC-SP. A integração da Faculdade Sedes Sapientiae à
PUC-SP, só ocorreu em 1971 após a reforma universitária proposta, em 1968, pelo governo
militar em meio às lutas do movimento estudantil contrárias à ditadura. A Clínica Psicológica
Sedes Sapientiae foi excluída desse processo de integração e permaneceu desenvolvendo
suas atividades tendo Madre Cristina Sodré Dória como diretora. Em 1977 a Clínica ganhou
novas instalações, com a construção do atual Instituto Sedes Sapientiae que surgiu, neste
ano, segundo discurso de inauguração proferido por Madre Cristina, como “um espaço
aberto aos que quiserem estudar e praticar um projeto para a transformação da sociedade,
visando atingir um mundo onde a Justiça Social seja a grande lei” (Arantes, 1998).
Em 1981, a convite de Madre Cristina, o doutor Pethö Sándor iniciou suas atividades
no Instituto Sedes Sapientiae e, segundo Agnes Geöcze 3, foi aí que Sándor “estourou
totalmente”. A sua ida para o Sedes foi um marco importante para a difusão do seu trabalho,

1
Em húngaro coloca-se o sobrenome em primeiro lugar, assim Pethö é o nome de família e Sándor o nome
próprio, que no Brasil se traduz como Alexandre.
2
Psicólogo. Membro analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Mestre em Psicologia
Social/História da Psicologia – PUC-SP. E-mail: arnaldomotta@uol.com.br
3
Em depoimento ao autor, em 21/05/2004. Agnes Geöcze é filha de criação e importante colaboradora de
Sándor, que conheceu desde os 13 anos, quando suas respectivas famílias se retiraram, em fuga, da Hungria
com a chegada das tropas Russas, em 1945.
tanto que o grupo que se formou em seu redor continua a desenvolver suas atividades nesta
instituição.
Esse movimento, porém, foi fruto de uma trajetória que vale a pena ser conhecida,
pois o trabalho de Sándor tinha características peculiares que devem ser vistas a partir do
percurso deste médico húngaro que chegou ao Brasil em 1949.
Nascido em 1916, filho de um juiz de direito, viveu em um ambiente cultural
estimulante. “A formação dele era para ser cantor de ópera” relata Maria Luiza Simões 4,
tentando lembrar o nome do professor de canto de Sándor, de quem possui um long-play.
Em 1943, formou-se médico obstetra e ginecologista pela Faculdade de Medicina de
Budapeste, época em que a 2ª Grande Guerra assolava a Europa.
A chegada das tropas russas na Hungria, em 19455, fez com que muitos moradores
deixassem seus locais de origem, em função “dos russos, que estavam maltratando muito,
principalmente as mulheres” conta Agnes Geöcze, filha de uma das numerosas famílias que
embarcaram em um trem em busca de um lugar mais seguro naquele final de abril, véspera
do final da guerra. Agnes, na ocasião com 13 anos de idade, relembra que “para escapar
disso, a gente foi na primeira vez para a Áustria, depois fomos para a Tchecoslováquia,
onde ficamos durante mais ou menos duas a três semanas, ...foi muito tumultuado, várias
vezes quase fomos capturados, várias vezes quase fomos bombardeados... quando
chegamos na Alemanha, os exércitos abriam e roubavam tudo... a gente ficou sem um
monte de coisas...”. O trem em que estavam, já na Alemanha, ficou parado em uma estação
por não ter ninguém para tirá-lo dali. Com dois ou três dias sem ter o que comer, resolveram
cozinhar em um dos vagões. Sándor e sua família faziam parte daquele grupo que
embarcou no trem fugindo da Hungria. Enquanto alguns acendiam o fogo para preparar a
comida, ele desembarcou para pegar água. A fumaça desprendida do vagão onde se
cozinhava chamou a atenção dos aviões americanos que já operavam praticamente
vitoriosos na Alemanha. O trem foi metralhado. Sándor, o único médico presente, voltou
para acudir os inúmeros mortos e feridos, entre eles seu pai e sua mãe. Agnes conta que,
quando Sándor viu a gravidade dos ferimentos de seus pais, teria dito “quanto a estes não

4
Em depoimento para o autor em 30/04/2004. Maria Luíza Simões foi esposa de Sándor.
5
Durante a 2ª Guerra a Hungria, juntamente com a Romênia, Bulgária e Eslováquia, se alinhou aos países do
Eixo – Alemanha, Itália e Japão. Foi invadida durante a contra-ofensiva Russa e, com o final da guerra, passou
a integrar os países da Cortina de Ferro, sob a influência de Moscou.
posso fazer mais nada, tragam-me os outros”. Só após ter trabalhado exaustivamente
naquele dia é que se permitiu um momento de retiro.
A guerra terminou, mas a condição de refugiados permaneceu para aqueles que
preferiram não voltar à Hungria ocupada pelos russos. Vivendo em condições precárias na
Europa destruída pela guerra, Sándor teve outra perda. Sua esposa veio a falecer aos 26
anos, deixando dois filhos pequenos, de dois e três anos. Buscou, então, uma família
conhecida para ajudá-lo naquela situação e, juntos, passaram por diversos campos de
refugiados até 1949, quando emigraram para o Brasil6.
Como uma pessoa, cuja sensibilidade vinha sendo estimulada pelo estudo da música
lírica, pôde se deparar com perdas como as que Sándor teve neste curto intervalo de
tempo? Não podemos deixar de pensar o quanto tais vivências marcaram e influenciaram a
sua maneira de ser.
Pessoas próximas a Sándor descrevem-no como alguém que não fazia concessões.
Tal característica pode ser sentida como uma certa “rudeza” no trato pessoal que, por vezes,
Sándor deixava transparecer, e que fazia dele uma pessoa seletiva em relação aos que
buscavam aproximação. Um exemplo desta particularidade pode ser visto no relato de Maria
Luiza Simões sobre o seu primeiro contato, em uma entrevista, com aquele que viria a ser
seu companheiro afetivo:

Ele cumprimentou:
- O que veio ela fazer aqui?
Eu falei:
- Sabe, doutor, depois de eu ter a entrevista nós [ela e a sobrinha] vamos passear um
pouco na rua Augusta...
Então:
- Passe bem, vá passear na rua Augusta, volte a semana que vem.
Este era o Sándor: tire o lenço, não fume aqui dentro, o que veio fazer a sua sobrinha...
e vá embora... vá embora...
Isso era o Sándor!...Se a gente agüentava, eu acho que dentro dele ele “dava o
passaporte” [Querendo dizer que se ela suportasse esse tipo de tratamento, então
poderia ser recebida por ele].

Profissionalmente, ainda na Europa, Sándor trabalhou como médico nos campos de


refugiados em que permaneceu. Em texto onde apresenta a calatonia ele relata que:
num hospital da Cruz Vermelha foram atendidas as mais diferentes queixas na fase
pós-operatória, desde membros fantasmas e abalamento nervoso, até depressões e
reações compulsivas. Percebeu-se então que, além da medicação costumeira e dos
cuidados de rotina, o contato bipessoal juntamente com a manipulação suave nas
extremidades e na nuca, com certas modificações leves quanto à posição das partes
manipuladas, produzia descontração muscular, comutações vasomotoras e
recondicionamento do ânimo dos operados, numa escala pouco esperada (...).
Aplicava-se a mesma técnica às pessoas deslocadas que se preparavam para
emigração e na população abalada e constrangida, mas desta vez, não em clínicas
cirúrgicas, mas em pacientes das áreas psicológica ou neuropsiquiátrica (Sándor,
1972b, pp. 92/93).

É interessante trazer as palavras do criador da calatonia, que relatam a origem da


técnica de trabalho corporal que ele iria aprimorar e difundir no Brasil. De início, chama
atenção o fato de ele mencionar o contato com seus pacientes como sendo “bipessoal”,
como se fizesse questão de enfatizar um tratamento especial presente em suas consultas,
que se davam nas condições severas como a de um hospital de refugiados em um pós-
guerra. Outro ponto que vale a pena abordar é a descoberta que ele fez, e que o levaria a
formular a proposta de seu método de trabalho corporal. Tal achado se deu através de
“manipulações suaves” em determinadas partes do corpo dos pacientes. A imagem de caos
que sugere o ambiente de trabalho de um médico nas condições em que Sándor atuou
nesse período parece pouco favorável, não só ao tipo de contato pessoal com o paciente,
conforme ele propõe, como também para observar as sutilezas decorridas de intervenções
chamadas de manipulações suaves. A própria palavra “suave” parece destoar do contexto
“hospital de um campo de refugiados”. Porém, a existência da calatonia enquanto método
caracterizado por “toques sutis” (Delmanto, 1997, p.15) é a prova de que Sándor pôde
constituir um espaço para continuar a exercer a sua sensibilidade mesmo em situações
desfavoráveis.
Uma frase atribuída a ele por alguns de seus ex-alunos, dita como se falasse de uma
“filosofia” que permeava as atitudes de Sándor, é de que o objetivo da vida é a aceitação
total da sobrecarga e a consciência da absoluta insegurança da vida. Nada mais coerente
com a história de alguém que conviveu com situações adversas como as que acabamos de
relatar e seguiu adiante no seu caminho durante o qual pôde, entre outras coisas,
desenvolver iniciativas que fazem parte da psicologia analítica brasileira.

6
Após a 2ª Guerra Mundial, o Brasil recebeu a terceira leva de imigrantes húngaros. Antes dessa houve a
primeira, em 1890, e a segunda após a 1ª Guerra Mundial. Houve ainda uma quarta oportunidade para a
imigração húngara após o levante popular contra a ocupação soviética de 1956.
O trabalho que é desenvolvido hoje no Sedes, com base nos ensinamentos de
Sándor, apresenta o que podemos considerar uma síntese, fruto deste percurso peculiar
descrito até aqui. Tanto o título de um dos cursos de especialização como o nome de uma
das revistas publicadas pelo grupo que deu continuidade aos ensinamentos de Sándor falam
de conjugação entre corpo e Jung7. A origem do chamado “corpo” pode ser facilmente
localizada tanto na sua formação universitária, como na sua prática profissional no pós-
guerra. Mas e o “Jung”, como chegou a Sándor?
Não sabemos se Sándor leu Jung durante a universidade. É possível especular que
sim, dado o intercâmbio cultural e a tradição de formação geral que havia na Europa. Sándor
dominava várias línguas estrangeiras, como o alemão, o inglês, o grego, o latim, além do
húngaro, sua língua natal. Porém sua formação médica foi em ginecologia e obstetrícia e
não sabemos se havia textos de psicologia ou psiquiatria em seu currículo. As informações
obtidas a respeito do seu contato com Jung fornecem algumas pistas: a família em que
Sándor buscou ajuda, após a perda de sua esposa, era conhecida de seus pais e estava
naquele mesmo trem que fugiu da Hungria. Jozseph Buydos, juiz de direito que havia
trabalhado com o pai de Sándor, e sua esposa Irene, eram astrólogos e estudiosos de
esoterismo e iniciaram Sándor nesse campo. Farah (s.d.) menciona que nessa ocasião
Sándor já tinha interesse em psicologia profunda, porém não tivemos confirmação desta
informação. No entanto, sabemos que estas áreas do conhecimento foram estudadas por
Jung8. Existe ainda uma passagem mencionada nos depoimentos de Geöcze e de Simões,
que conta que o grupo húngaro permaneceu em um local referido como “vitrine”, que fazia
parte de um prédio abandonado em que ficaram acomodados por algum tempo. Maria Luíza
e Agnes lembram que Sándor comentava esse período quando teve “todo o tempo do
mundo para ler”, para justificar o fato de ter lido oito vezes um livro de Jung. Além disso,
contam que Sándor teria tentado ir para a Suíça por duas vezes nesse meio tempo, tendo
sido impedido de entrar no país por não ter passaporte. Tais dados não permitem situar com
precisão quando Sándor começou a estudar Jung, porém indicam que nos primeiros anos

7
Curso “Psicoterapia de orientação junguiana coligada a técnicas corporais”, “Cinesiologia psicológica –
Integração físio-psíquica” e revista Jung & Corpo.
8
Toda a psicologia de Jung tem como um dos seus principais pressupostos a existência do inconsciente, o
que caracteriza as abordagens da chamada psicologia profunda. Além disso os primeiros estudos psiquiátricos
de Jung versam sobre os fenômenos chamados ocultos (Jung, 1902/1993). Nos seus trabalhos podem,
também, ser encontradas menções à gnose, por exemplo em publicações sobre alquimia, de 1935-6 (Jung,
1943/1991) e astrologia (Jung, 1950/1984b).
em que esteve na condição de refugiado (1945-9), já havia um contato do médico húngaro
com a psicologia analítica. Foi Jung quem forneceu o embasamento teórico para as
reflexões de Sándor sobre as manifestações psíquicas que emergiam de seus pacientes
nestes primórdios do que viria a ser a calatonia.
A adesão de Sándor aos postulados junguianos é inquestionável. No entanto, se
fôssemos nos deter apenas em seus escritos publicados, a sua inclinação ao psicólogo
suíço não fica tão evidente – talvez ‘sutil’ fosse o termo mais adequado em se falando de
Sándor. Na “Introdução” do Boletim de Psicologia (1972a, pp. 4-10) ele apresenta o
relaxamento como “um método de recondicionamento psicofisiológico” (p. 4) e segue
descrevendo “três exemplos marcantes quanto à utilização das idéias ou práticas de tensão
e distensão (relaxação)” (p. 5). Após descrever a “psicoterapia biônoma de Schultz” (p. 5), a
“terapia comportamental” (p. 6) e a “psicologia profunda” (p.8), afirma que a “terapia
organísmica e a comportamentalista podem ser combinadas com criteriosidade prudente,
mesmo que as premissas e fundamentações sejam bem diferentes”. Logo adiante continua
falando do intercâmbio entre a terapia comportamental e a psicanálise, entre as quais,
através da “pluralidade nosológica, da pluralidade metodológica e da pluralidade das
indicações, poderá haver uma aproximação sem aquela controvérsia confessional que
arroga incondicionalmente a exclusividade da razão” (p. 9). Parece que tal postura reflete o
objetivo de Sándor, para quem o relaxamento é “um meio condicionador que – conforme
nossa experiência comprova - permite que cada um vislumbre aquilo que está destinado a
ser e ajuda a que se prepare para cumprir sua incumbência individual como unidade dentro
de uma unidade maior” (p. 10). Tal objetivo tem forte semelhança com o conceito junguiano
de individuação, apesar do mesmo não estar referido no texto.
Adiante, ainda neste Boletim em que apresenta a calatonia, Sándor (1972b) refere
que “uma dissertação posterior tratará, em detalhes, da fundamentação teórica” (p. 93). No
artigo seguinte, que julgamos ser essa “dissertação posterior”, Sándor (1992c) faz uma
revisão da literatura em torno do tema, citando diversos teóricos da psicologia como: Freud,
Görres, Hengstmann, Heyer, Jaspers, Jung, Kretschmer, Lerner, Reich, Schultz e Wolberg.
Porém, não se observa uma adesão explicita a qualquer destes autores, a não ser no final,
quando conclui discorrendo sobre a finalidade do surgimento das imagens calatônicas que,
“como Jung diria – constelam as respectivas esferas vivenciadas, as potencialidades” (p.
110). Logo a seguir, menciona o “intercâmbio compensador e complementário (sic) entre o
consciente e o inconsciente” (p. 110), que reflete um fundamento importante do pensamento
junguiano sobre a dinâmica da psique, sem no entanto existir tal menção. A opção teórica
junguiana, para fundamentar a abordagem psicológica da calatonia, aparece mais clara e
explicitamente nos artigos que fazem parte desta mesma publicação (Sociedade de
Psicologia de São Paulo, 1972), cujos autores9 compunham o “Grupo dos Sábados”,
coordenado por Sándor e voltado para “estudos junguianos e questões atuais da psicologia
em desenvolvimento” (p. 119). Essa diferença na maneira de tratar a opção por uma
abordagem teórica nos textos analisados não quer dizer que existia uma vertente teórica do
“Grupo de Sábados”, paralela à de seu coordenador. Pelo contrário, esse grupo formado em
torno de Sándor buscava, entre outras coisas, o acesso aos conhecimentos que o mesmo
detinha sobre os conceitos junguianos. Assim como esse, vários outros grupos buscaram a
orientação do dr. Sándor para o estudo da psicologia analítica, demonstrando que mesmo
que Sándor fosse sutil na afirmação publicada de sua opção teórica, ela não era segredo
para ninguém.
Pode-se dizer que a síntese característica de Sándor representada pelo binômio Jung
e corpo já estava delineada quando deixou a Europa, porém o seu percurso profissional em
nosso país começou em outra área.
Inicialmente, após sua chegada ao Brasil em 1949, Sándor foi trabalhar como
laboratorista na Nitroquímica, sediada em São Miguel Paulista. Não pôde exercer a
profissão médica, já que o reconhecimento pelas autoridades brasileiras do seu diploma de
médico implicava em exigências que fizeram com que Sándor desistisse de atendê-las10.
Paralelamente ao seu trabalho na empresa, o imigrante recém chegado teria iniciado
diversas atividades junto à comunidade húngara em São Paulo. Seus familiares disseram
que ele deu palestras, escreveu artigos no jornal da comunidade, coordenou grupos de
escoteiros, encenou peças teatrais, entre outros11. Através deste contato, Sándor passou a

9
Os outros autores que contribuem com capítulos deste livro são: Bonilha, L.C., Ferreira, L.M., Mauro, B.H.M.,
Santis, M.I., Simões, M.L.A. e Yamakami, S.
10
Outros médicos que emigraram para o Brasil na mesma época tiveram muitas dificuldades neste processo,
como Enzo Azzi, cujo processo de validação teria levado cerca de vinte anos. O mesmo se deu com Myra y
Lopez, que só conseguiu postumamente autorização para o exercício da profissão.
11
Entramos em contato com a Associação Beneficiente 30 de Setembro e com a Casa Húngara, instituições
da comunidade húngara, para levantar material sobre essas informações, o que não foi possível. Conseguimos
localizar os números antigos da Gazeta Húngara, na biblioteca do Mosteiro São Geraldo de São Paulo, dos
quais examinamos exemplares publicados nas décadas de 1950 e 60. Nesses encontramos uma única
referencia a Pethö Sándor, nas publicações dos dias 8 e 13 de março de 1953, quando ele comunicou sua
mudança de endereço para a rua Augusta, 1840.
ser uma referência médica para seus conterrâneos, ainda que não tivesse regularizado sua
situação profissional como médico no país. Em meados de cinqüenta, já havia instalado sua
primeira clínica, localizada na rua Augusta, 1840. Sua atividade neste campo cresceu e se
direcionou para a calatonia, ficando cada vez mais caracterizada como uma abordagem
psicoterápica.
No início dos anos sessenta, Sándor já atendia pessoas ligadas à Faculdade de
Filosofia Ciências e Letras São Bento, PUC-SP. Algumas de suas clientes, no entanto,
queriam estudar e saber mais sobre o que estavam vivenciando no seu trabalho pessoal,
dando início à formação dos primeiros grupos de estudo em psicologia analítica
coordenados por dr. Sándor.
Ao final da década, “buscando atender às necessidades e solicitações do nosso
meio” (Neder, 1972a, p. 1), a Sociedade de Psicologia de São Paulo (SPSP) realizou o
primeiro curso aberto ao público sobre relaxamento, que contou com 170 participantes, entre
estudantes e profissionais da psicologia, medicina, terapia ocupacional, fonoaudiologia,
fisioterapia e outros.
O conteúdo deste curso foi publicado no Boletim de Psicologia em 1969 (nº 57 e 58),
reeditado em 1972. O único livro publicado com textos de Sándor 12 é, excluindo a
apresentação da presidente da SPSP, uma reprodução deste Boletim. Tal informação, no
entanto, não aparece na publicação da Vetor.
Consta que existem outros textos de sua autoria, inclusive diversas traduções para o
português de textos Jung13. Sándor, porém, era contrário à publicação dos mesmos
contribuindo para uma imagem de “fechamento” que existia em torno de sua pessoa.
A Sociedade de Psicologia de São Paulo, responsável pelas iniciativas acima, tinha
como presidente para o biênio 1969-1970 a dra. Mathilde Neder, que era também professora
do curso de Teoria e Prática de Psicoterapia Infantil, no 5º ano de graduação do curso de
Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras São Bento14. Ao avaliar o seu curso,
a dra. Neder constatava “o grave problema de insuficiência de informação prévia dos

12
Sándor, P., Bonilha, L.C., Ferreira, L.M., Mauro, B.H.M., Santis, M.I., Simões, M.L.A. e Yamakami, S. (1974).
13
Consta que o grupo do Sedes, que segue o trabalho de Sándor, vem reunindo o material produzido por ele
com intenção de publicá-lo.
14
A PUC-SP, criada em 1946, teve o seu Instituto de Psicologia criado em 1950, por Enzo Azzi, que criou
também, na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Bento dessa Universidade, em 1963, o curso de
Psicologia, em seguida à regulamentação da profissão de psicólogo no país. À época da chegada de Sándor
na PUC-SP, Enzo Azzi dirigia também a FFCL São Bento.
alunos... Após os entendimentos necessários, professores de disciplinas relacionadas
assumiram, embora parcialmente, responsabilidade de abordagens prévias, necessárias ao
desempenho de nosso programa" (Neder, 1972b: I/II). Em março de 1971, o dr. Pethö
Sándor foi contratado pela Fundação São Paulo, para dar aulas na Faculdade de Ciências e
Letras São Bento, abordando as disciplinas de Integração Psicofísica e Psicologia Profunda.
Nos anos seguintes sua carga horária aumentou para 30 horas semanais, e gradativamente
passou a lecionar outras disciplinas como: Teorias e Técnicas Psicoterápicas, Integração
Psicofísica e Profilaxia, Reações Neuróticas, Psicologia do Adolescente, TTP Adulto e TTP
Adolescente, Sono e Sonho e Reações Conflituais.
Suas atividades na graduação da Psicologia da PUC se estenderam até 1975,
conforme atesta sua carta de demissão de 17 de dezembro, que teria sido motivada por
conflitos internos. Sándor se sentira prejudicado na distribuição da grade horária das suas
aulas. Além disso, existia uma certa divergência de cunho político no corpo docente da
Faculdade, entre a visão de alguém que deixou o seu país invadido por tropas russas e uma
perspectiva de esquerda que predominava em alguns grupos identificados com a luta contra
a ditadura militar de direita que governava o país, conforme comentaram pessoas que
conviveram com Sándor neste período. Esse episódio não significou, entretanto, o
afastamento de Sándor da PUC, já que neste ano de 1975 teve início o Curso de
Especialização em Psicoterapia de Crianças e de Adolescentes15 nesta instituição, sob a
coordenação de Mathilde Neder.
O curso de especialização tinha como objetivo formação teórica e prática a
psicoterapeutas de crianças e de adolescentes, e abordava diferentes linhas teóricas da
psicologia: análise transacional, gestalt, psicanálise, psicodrama e psicologia analítica. Para
essa última o programa contava com dois professores: Maria Isabela de Santis e Pethö
Sándor. Inicialmente programado para dois anos, esse prazo de duração foi ampliado para
três anos em 1977, quando recebeu sua terceira turma. Na ocasião Sándor já ocupava o
papel de sub-coordenador do curso. O seu nome aparece entre os professores até 1980,
quando se deu o seu desligamento desta instituição.
A sua passagem pela PUC influenciou a constituição daquele que pode ser
considerado um dos principais centros de formação junguiana nas universidades brasileiras.

15
Informações constam no documento “Planejamento do Curso de Especialização em Psicoterapia de
Crianças e de Adolescentes” arquivado na Secretaria Geral de Registro Acadêmico – SEGRAC da PUC-SP.
Os cursos de psicologia analítica ministrados na pós-graduação e na graduação da PUC-SP
são muito respeitados pela qualidade que seu corpo docente imprime no seu trabalho. Desta
instituição saíram muitos profissionais que têm atuação destacada na comunidade junguiana
nacional e internacional16. E o curso de pós-graduação da PUC-SP foi o primeiro de
psicologia analítica, em nível de mestrado e doutorado, que iniciou suas respectivas
primeiras turmas em 2003.
Ao deixar a PUC, Sándor passou a se dedicar mais intensamente às atividades no
Instituto Sedes Sapientiae, onde já participava em atividades ligadas à psicomotricidade,
local em que também havia o curso de Terapia Psicomotora. Esse curso vinha sendo dado
na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Sedes Sapientiae desde os anos 60 e após a
fusão com a PUC-SP continuou a ser lecionado na Faculdade São Bento, assim como se
criou uma modalidade de especialização no novo Instituto Sedes Sapientiae. Após alguns
anos de existência, esse programa de especialização optou pela orientação junguiana entre
as diferentes abordagens psicológicas representadas por seus professores, “uma linha de
psicologia profunda que permite compreender o indivíduo naquilo que lhe é mais particular
mas, ao mesmo tempo, inserindo-o como ser humano num contexto mais amplo e coletivo”
(Instituto Sedes Sapientiae, 1998, p. 61). Em meio a esse processo de reformulação, o curso
passou a “contar como professor convidado, com o dr. Pethö Sándor” (Bittencourt, 2001, p.
8).
No curso de Terapia Psicomotora, Sándor criou a disciplina intitulada Cinesiologia
Psicológica, que em 1984 se tornou um programa independente, de onde se originaram
diversas outras atividades, entre elas dois cursos oferecidos pelo Sedes em nível de
especialização: Cinesiologia Psicológica – Integração Psicofísica e Psicoterapia Junguiana
Coligada a Técnicas Corporais. O primeiro tem entre seus professores o neto de criação de
Sándor, János Andreas Geöcze. Parte do grupo ligado a esse curso lançou, em 1996, a
revista Hermes, com o objetivo de “propiciar um espaço informal para a expressão de novas
idéias, interesses e possíveis desenvolvimentos do processo de estudos e trabalho
compartilhado no Instituto Sedes Sapientiae” (Curso de Cinesiologia do Instituto Sedes
Sapientiae, 1996, p. 5).

16
A coordenadora do Núcleo de Estudos Junguianos do Programa de Estudos Pós- Graduados em Psicologia
Clínica da PUC-SP, dra. Denise Ramos, estudou com Sándor e fez parte do grupo que lecionou no Curso de
Especialização coordenado pela Dra Neder. Entre outras atividades, atualmente é profa. da PUC-SP, foi vice-
presidente da IAAP – International Association for Analytical Psychology, durante o período entre 2001-2004.
O grupo ligado ao outro curso de especialização mencionado vem publicando
anualmente, desde 2001, a revista Jung & Corpo, ano em que se iniciaram encontros de
alunos e ex-alunos e que vem se repetindo anualmente, tendo em 25 de setembro de 2004
ocorrido o IV Encontro “Jung e Corpo”, reunindo cerca de 180 participantes.
Os cursos mencionados, assim como outras atividades atualmente oferecidas pelo
Instituto Sedes Sapientiae, foram desdobramentos das atividades que Sándor desenvolvia,
tendo sido assumidas ou criadas, após o seu falecimento, por diversos profissionais que
mantinham estreita colaboração com ele.
Sándor e sua companheira Maria Luíza Simões possuíam um sítio em Pocinhos do
Rio Verde, perto de Poços de Caldas – MG, para onde iam desde o final dos anos 70,
quando tomavam o ônibus às sextas feiras à tarde, retornando no domingo, rotineiramente
por muitos finais de semana. Igualmente tal trajeto se dava durante os meses de julho e
janeiro, nesses, porém, com estadias alongadas. E naquela passagem de 1991 para 92 não
foi diferente, exceto pelo fato de Sándor ter notado a presença de Saturno em determinado
local de seu mapa astral que indicava profundas transformações para aquele janeiro que se
aproximava. Foram para Pocinhos perto do natal e, segundo Maria Luíza, passaram cinco
semanas maravilhosas. Sándor estava trabalhando em um texto onde fazia reflexões que
relacionavam Santo Inácio e Jung. Na noite de 27 de janeiro foi deitar-se um pouco mais
cedo do que era seu costume alegando certo cansaço. No dia seguinte, uma terça feira,
Pethö Sándor não atendeu ao chamado de Maria Luiza para o café da manhã. Faleceu
vitima de problemas cardiovasculares. Em meio a tristeza e surpresa diante de tal fato, uma
frase veio no pensamento de sua companheira: “Quando o coração chora pelo que perdeu,
o espírito ri pelo que encontrou”.

Referências bibliográficas

ARANTES, M.A. de A. (1998). Madre Cristina. Em Instituto Sedes Sapientiae, 1977-1997,


histórias e memórias. (pp. 11-12). Mimeo.

BITTENCOURT, M. (2001). Um pouco de história. Em Jung e Corpo, revista do curso de


psicoterapia de orientação junguiana coligada a técnicas corporais. Nº 1. 7-9.

Curso de Cinesiologia do Instituto Sedes Sapientiae (1996). Hermes nº1. 5


DELMANTO, S. (1997). Toques sutis, uma experiência de vida com o trabalho de Pethö
Sándor. São Paulo: Sumus.

FARAH, R. (s.d.). Quem foi Pethö Sándor. Artigo disponível na Internet:


http://www.geocities.com/HotSprings/Resort/8035 [1/10/2004].

NEDER, M. (1972 a) Apresentação. Em Boletim de Psicologia, órgão da Sociedade de


psicologia de São Paulo, nº 57 e 58.

_________ (1972b) Uma experiência no ensino de psicoterapia infantil. Tese de doutorado,


Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo.

SÁNDOR, P. (1972a) Introdução. Em Boletim de Psicologia, órgão da Sociedade de


Psicologia de São Paulo, nº 57 e 58, 4-10.

_________. (1972b) Calatonia. Em Boletim de Psicologia, órgão da Sociedade de Psicologia


de São Paulo, nº 57 e 58, 92-100.

_________. (1972c) Imagens e relaxamento. Em Boletim de Psicologia, órgão da Sociedade


de Psicologia de São Paulo, nº 57 e 58, 101-110.

SÁNDOR, P.; BONILHA, L.C.; FERREIRA, L.M.; MAURO, B.H.M.; SANTIS, M.I.; SIMÕES,
M.L.A. E YAMAKAMI, S. (1974) Técnicas de Relaxamento. São Paulo:Vetor.

Sociedade de Psicologia de São Paulo (1972). Colaboradores. Em Boletim de Psicologia,


órgão da Sociedade de Psicologia de São Paulo,nº 57 e 58, p.119.
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
O Rapto de Sitā

Maria Helena R. Mandacarú Guerra1

Fundamentação Teórica

Para pensarmos nosso tema quero introduzir aqui alguns conceitos advindos da
Psicologia Simbólica Junguiana, proposta por Carlos Byington. De acordo com este enfoque,
consideramos que a Consciência, tanto individual quanto coletiva, é estruturada a partir de
quatro padrões arquetípicos que constituem os pilares sobre os quais ela se edifica. Nenhum
conteúdo chega à Consciência sem que seja veiculado por um ou mais destes arquétipos,
que por isso formam o chamado Quatérnio Arquetípico Regente.
O Arquétipo Matriarcal é o responsável pelo apego, pela sensualidade, pelo prazer,
pelo imediatismo, aconchego, intimidade, proximidade. Em seu aspecto defensivo pode
conduzir à promiscuidade, ao desregramento, às adições. Seu funcionamento é insular, o
que significa que as polaridades presentes em qualquer experiência, em qualquer símbolo,
são percebidas de maneira alternada, isto é, não simultaneamente. O exemplo clássico é a
percepção que o bebê tem do seio como sendo completamente bom para, momentos
depois, ser absolutamente mau.
O Arquétipo Patriarcal tem como características centrais sua capacidade de
organização, de ordem, lei, abstração, planejamento. Defensivamente pode levar à rigidez,
autoritarismo, prepotência, ou a sintomas nos quais o controle fique exacerbado. Sua
expressão faz-se pela polarização, criando uma tensão entre os opostos, que são
percebidos simultaneamente, mas como sendo excludentes. Em seu aspecto positivo, é o
sistema binário usado na computação. Negativamente aparece na intransigência, no
dogmatismo, no moralismo. Por seu caráter polarizado, é um padrão de funcionamento que
contribui grandemente para a formação de Sombra, porque costuma buscar um bode

1
Psicóloga e psicoterapeuta junguiana. Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP.
Professora do curso de especialização em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas
Corporais.
E-mail: mhrmguerra@gmail.com
expiatório sobre quem deposita o lado não aceito, rejeitado, reprimido, antagônico àquilo que
vê como bom, certo, justo, saudável.
Estes dois padrões de funcionamento da Consciência são fundamentais para o nosso
desenvolvimento, tanto como indivíduos como quanto cultura. No entanto, estes pólos
ficariam estanques e excludentes se não tivéssemos a possibilidade de conjugá-los e
coordená-los numa mesma vivência, num mesmo símbolo, numa mesma situação. É o
Arquétipo da Alteridade que é capaz de propiciar o confronto dialético entre as polaridades,
inclusive entre o Arquétipo Matriarcal e o Arquétipo Patriarcal. É graças a ele que podemos
estabelecer uma relação simétrica entre os opostos, colocando-os como tendo o direito de
coexistirem. É ele que nos oferece a percepção de que a mesma substância que cura pode
matar, e que, portanto, o bom pode ser mau e vice-versa; é o amar ao próximo como a ti
mesmo, o dar a outra face, que pressupõe direitos iguais para o Ego e para o Outro. É, por
isso, o arquétipo da democracia, da solidariedade, da compaixão. Defensivamente, a
alteridade aparece na demagogia, na mentira, na corrupção.
O quarto Arquétipo Regente é o Arquétipo da Totalidade, que permite que tenhamos
uma visão sistêmica da experiência, um fechamento da gestalt, um todo abrangente e
satisfatório, ao menos até que a Consciência seja impulsionada para novas buscas e
elaborações. O Arquétipo da Totalidade nos permite lidar com as polaridades através da
posição contemplativa. Defensivamente, este padrão aparece como desesperança, falta de
sentido, niilismo.
Estes padrões, como já mencionei, embasam tanto a Consciência individual quanto a
coletiva, expressando-se não apenas nos mitos, nas religiões, na arte, na literatura e em
produtos culturais, mas também através da própria História, o que permitiu a formulação da
Teoria Arquetípica da História pela Psicologia Simbólica Junguiana. Em nossa reflexão
sobre a violência contra a mulher, sobre a dominação da mulher pelo homem através da
força, inclusive em duas das formas mais violentas – o rapto e estupro -, recorrerei a mitos e
a dados históricos, buscando elaborar essa experiência dentro da moldura teórica da
Psicologia Simbólica Junguiana.

Os Mitos

O Ramāyana é um dos dois grandes épicos hindus, ao lado do Mahābhārata. Nele é


relatada a história de Rama, considerado um dos avatares de Vishnu. Herdeiro do reino de

2
Ayodya, antes de assumir o trono cumpre voluntariamente um exílio na floresta durante 14
anos, período em que vive inúmeras peripécias e durante o qual deve realizar o propósito de
sua vida: lutar contra o Mal, personificado por Rāvana, o soberano dos demônios.
Sitā é a esposa de Rama. Nasceu de um sulco da terra, de onde foi retirada por seu
pai. Acumula qualidades que são muito valorizadas na Índia, e que não são diferentes de
outras culturas: é bela, amorosa, doce, fiel, dedicada, companheira. É dada em casamento a
Rama depois de ele vencer uma prova – armar um arco gigante – e, com isso, revelar, além
de sua beleza e caráter nobre, também seu vigor, sua força e bravura. Estão ainda
envolvidos pela paixão quando Rama é exilado e Sitā decide acompanhá-lo, mostrando-se
disposta a qualquer sacrifício para permanecer ao lado do esposo.
É neste contexto amoroso que se desenrola o drama. Depois de um período na
floresta, no qual o casal adentra nela cada vez mais, Sitā é raptada por Rāvana. A partir
desse momento, Rama não tem outro objetivo em mente, nem outro desejo no coração, que
não seja resgatar Sitā. Auxiliado por seu irmão, que também o acompanhara no desterro,
por um exército de macacos e ursos, por algumas águias e outros animais, Rama termina
por localizar Sitā presa no reino de Rāvana.
Raptada, submetida, impotente, desamparada, Sitā ficou exposta aos mais diferentes
ataques de Rāvana, que tentava de todas as maneiras persuadi-la a tornar-se sua mulher.
Prometia-lhe fazer dela senhora de todo o reino, cobri-la de jóias, recebê-la como a primeira
de suas esposas. Reconhecendo a inutilidade de sua abordagem sedutora, agia com
truculência, ameaçando-a de morte, ou criando artimanhas mágicas para iludi-la e fazê-la
crer na morte de Rama, torturando-a emocionalmente. Nessas condições de abandono e
sofrimento, buscando suas últimas forças no amor que sentia pelo marido e na esperança de
unir-se novamente a ele, é que Sitā foi localizada.
Inicia-se a última e a mais terrível das batalhas. Rama sagra-se vencedor, e Sitā vai ao
seu encontro. Rama a recebe friamente. Diz a ela que tudo que fizera havia sido pela honra
de seu reino. Não poderia tê-la outra vez a seu lado como esposa, pois ela co-habitara com
Rāvana. Sitā é tomada por sentimentos de decepção, frustração, incredulidade, ódio. Em
nenhum momento havia deixado de amar Rama e ansiar por regressar a seus braços.
Decidida, Sitā manda erguer uma pira e anuncia que prefere morrer a viver longe de Rama.
Corajosamente, entrega-se às chamas. Porém Agni, o deus do fogo, reconhece sua

3
inocência e gentilmente a devolve para Rama, que, diante de tal prova de integridade, a
acolhe e declara a ela o seu amor.
Vindo da Grécia, um mito ilustra também o rapto e estupro de outra mulher. Deméter, a
mãe, e Koré, a filha virgem, viviam numa relação simbiótica, na qual a filha era
impossibilitada de se desenvolver como uma mulher adulta porque não conseguia se
separar da mãe. Esta, por sua vez, pensa que morrerá sem a filha, entrando numa terrível
depressão quando Hades, o deus do mundo subterrâneo, rapta Koré num momento em que,
distraída, admira extasiada um narciso. Após Koré permanecer alguns dias com Hades,
Demeter consegue que a filha lhe seja devolvida, mas esta, antes de voltar para a mãe,
come uma romã oferecida por Hades. Com isso, Koré transforma-se em Perséfone, torna-se
a rainha do mundo subterrâneo e passa a dividir seu tempo entre o mundo da superfície e o
reino abissal das profundezas.
Estes resumos brevíssimos têm a finalidade de nos auxiliar na reflexão sobre o
significado da violência contra a mulher e as complexidades envolvidas em sua elaboração,
seja por ela própria, por pessoas próximas a ela (companheiro, irmãos, pais) e pela
sociedade em geral. Antes, porém, quero acrescentar aos elementos míticos alguns dados
históricos.

A História

Desde os primeiros grupos de hominídeos, provavelmente os do sexo masculino


destacavam-se pela força física. Como a natureza humana traz consigo, em várias e
freqüentes circunstâncias, uma tendência a dominar o mais fraco, já naquela época subjugar
o sexo oposto deve ter sido o mais comum. Temos, ainda hoje, introduzidos nos nossos
costumes, elementos vindos da época em que mulheres eram raptadas e tornadas
propriedade dos homens. Possivelmente origina-se desse ato o costume de “perseguir” os
noivos e de o noivo carregar a noiva ao entrar na nova casa. Infelizmente, porém, muito
pouco do que é proveniente deste domínio pode ser reconhecido em seu aspecto lúdico. Ao
contrário.
Em seu livro História do Estupro, Vigarello (1998) faz um estudo bastante detalhado
sobre a violência sexual e sua história na França, entre os séculos XVI e XX. Vemos, então,
como a história da violência contra a mulher é inseparável da história do desenvolvimento do
lugar da mulher na sociedade e na cultura, bem como do desenvolvimento da própria

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Consciência. Farei, a seguir, referência ao que ocorria até meados do século XVIII, segundo
Vigarello, porque isso nos ajudará a contextualizar o que observamos hoje.
A recusa à mulher do status de sujeito é um elemento fundamental para
compreendermos o tratamento dado a ela através dos séculos. Sem ser respeitada como
pessoa, ela não tinha voz nem credibilidade e, menos ainda, recebia qualquer consideração
por seu mundo interno. Isto se refletia nos julgamentos de casos de estupro, nos quais a
vítima deveria gritar, quebrar coisas, lutar furiosamente para que fosse vista ou ouvida e o
ato testemunhado, pois eram as testemunhas que dariam credibilidade à sua queixa. Caso
contrário, a queixa se transformava em mentira ou em suspeita de conivência, de sedução,
de não ter feito o possível para evitar o ataque, o que anularia ou minimizaria a importância
do ato, com a conseqüente liberação do estuprador ou, nos poucos casos em que havia
punição, o risco de esta recair também sobre a mulher.
O estupro era também considerado um ato pecaminoso, contra a moral e os costumes,
pertencendo mais ao universo do impudor do que ao da violência, mais associado ao gozo
ilícito do que ao ferimento ilícito, mais à luxúria do que à violência. Assim, a mulher que dele
participava era envolvida no mesmo pecado, e ficava irremediavelmente implicada na
imagem do ato e, portanto, também condenada por sua transgressão. Afirmava-se, inclusive,
naquela época, que a honestidade que sucumbe é meia honestidade, e que à natureza da
mulher era inerente a condição para resistir, e que se ela não o fazia, é porque não queria.
Não era claramente delimitada a fronteira entre os atos de consciência e os atos físicos,
supondo-se, portanto, a equivalência entre o que se pensa e o que se faz, ou entre a
Consciência livre e a oprimida.
O espaço mental raramente ou nunca era evocado, e as marcas causadas pela
violência deveriam ser visíveis no corpo da mulher, mas apenas nos órgãos sexuais, pois
arranhões, hematomas, ferimentos em outros locais não eram considerados significativos.
Acrescenta-se a isso o fato de a mulher ser considerada mais propensa a mentir, enganar,
seduzir, e possuidora de um grande desejo de iludir.
Do ponto de vista social, a punição, quando existia, era maior quando a vítima
pertencia a uma classe mais alta do que o criminoso. Se o estuprador fosse nobre ou um
homem de poder, e a mulher, sua escrava, empregada ou pertencente a uma classe
socialmente mais baixa, o ato freqüentemente era esquecido. Num contexto no qual a
mulher não tinha autonomia e nem sequer reconhecimento como pessoa, passa a ser mais

5
importante o homem a quem a mulher “pertencia” do que ela própria, e por isso o estupro
causava mais dano a seu “dono” do que a ela. Quanto maior fosse o status do seu pai,
marido ou irmão, mais protegida ficaria a mulher. A mulher “sem dono” ficava mais
vulnerável, a ponto de o estupro não ser considerado violência se a mulher fosse prostituta.
A qualidade das pessoas envolvidas no ato aumentava ou diminuía o crime, legitimando
assim uma relação de poder entre classes e gêneros, fundamentada na hierarquia e não na
equivalência entre os sujeitos.
Vigarello relata que no final do século XVIII tem início uma mudança na opinião pública,
que começa a se amargurar diante da impunidade. Idéias, crenças e valores começam a ser
discutidos. A crueldade dos grandes senhores começa a ser estigmatizada; sua devassidão
e libertinagem adquirem uma importância que não possuíam anteriormente. Acompanha
essas mudanças a transformação na imagem do pai e da criança. Há sinais de mudança
cultural, nascendo um ideal igualitário e a percepção de que só a abertura das instituições
judiciárias e políticas poderia garantir um tratamento igual para todos.

Atualidade
A forma como a mulher reage, é tratada e reintegrada à sociedade depois de um
estupro depende muito do grupo ao qual pertence. O costume, a cultura e a religião criaram
uma imagem das mulheres como portadoras da “honra” de suas comunidades. Ferir esta
“honra” gera o temor de serem condenadas ao ostracismo pela família e pela comunidade,
caso sejam identificadas publicamente como vítimas de violação. Mas isso não é o pior.
Ainda hoje, em alguns países, o estupro não é considerado um crime grave, e por isso
os homens não são castigados ou recebem apenas uma punição leve. Muitas vezes as
vítimas são vistas como tendo provocado a ação dos violentadores, e elas próprias podem
mesmo ser presas e processadas por terem tido relações extraconjugais. No Paquistão,
para que uma mulher dê queixa de estupro, quatro homens devem afirmar que
testemunharam a cena, o que é praticamente impossível. Algumas vezes as mulheres são
chicoteadas e podem ser condenadas à morte, formal ou informalmente. São inúmeros os
casos em que os homens da família matam a mulher estuprada e conhecemos também
casos em que, na Nigéria, elas foram condenadas ao apedrejamento até a morte.
Ao nos debruçarmos sobre as estatísticas referentes à violência contra a mulher
somos surpreendidos por dados que revelam índices altíssimos, presentes em inúmeros

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países, independentemente da religião, da cultura e do desenvolvimento econômico e social.
Segundo dados do Human Rights Watch, a violência doméstica é a primeira causa de injúria
e morte das mulheres européias entre 16 e 44 anos. A maioria de casos de estupro e de
violência contra a mulher ocorre por homens com quem elas convivem ou conviveram. Entre
25 e 50 % das mulheres européias são vítimas de violência. Na Alemanha, 300 mulheres
são mortas por ano – 3 a cada 4 dias – por homens com quem vivem ou viveram. Na Grã-
Bretanha, uma mulher é morta a cada 3 dias; na Espanha, uma a cada 4 dias; na França, 6
por mês.
Mas o estupro nem sempre visa agredir apenas a mulher. Por ser um ato de força e
coerção, é praticado também para denotar superioridade, e nesses casos a mulher importa
menos do que a demonstração de poder e auto-afirmação perante outros homens ou toda
uma comunidade – ela não passaria de um troféu de guerra, ou de um instrumento de
vingança. É o que acontece com a violação de mulheres e meninas por conquistadores de
todos os tempos. Dados do Human Rights Watch e da Anistia Internacional revelam que a
violação converteu-se numa arma de guerra. Faz muito tempo que as vidas e os corpos das
mulheres são vítimas não reconhecidas da guerra. “Os padrões de violência contra as
mulheres em situações de conflito não surgem de forma «natural», mas são ordenados,
aprovados ou tolerados por alguém. Persistem porque aqueles que os cometem sabem que
podem ficar impunes", declara Irene Khan, secretária geral da Anistia Internacional. Segundo
esta entidade, há um padrão sistemático de abusos que se repete nos conflitos do mundo
todo, desde a Colombia até o Iraque, passando pelo Sudão, Chechenia, Nepal e
Afeganistão, bem como em outros trinta conflitos em curso. “Menosprezar a sexualidade das
mulheres e destruir sua integridade física converteu-se num meio de aterrorizar, degradar e
«derrotar» comunidades inteiras, bem como castigar, intimidar e humilhar as mulheres",
afirma Irene Khan.

Elaboração do Tema

As conseqüências de um estupro podem ser observadas em vários âmbitos. No nível


físico, há riscos de doenças sexualmente transmissíveis e traumatismos, que em casos mais
graves podem conduzir à morte. Psicologicamente, a violência contra a mulher, e
particularmente o estupro, é algo abominável, terrível, porque a mulher é agredida através
da sexualidade, uma função estruturante que, em geral, clama por intimidade, reciprocidade,

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abertura, desejo e amor. Nesse ato, a agressividade e o exercício de domínio pela força
violentam o sentido mais profundo da sexualidade, que é a busca de união. O estuprador
subverte, em seu âmago, a expressão corpórea máxima do símbolo de conjunção de
opostos, introduzindo aí um elemento destrutivo e separador. É o diabolon – o que separa –
imiscuindo-se no símbolo de união. Este elemento diabólico, defensivo e sombrio, é, por
isso, profundamente traumático e patogênico. Emocionalmente, esta vivência traumática
pode levar a mulher a se fechar para a sexualidade, a desenvolver sintomas físicos ou
fóbicos.
A vergonha também é uma reação bastante freqüente na mulher estuprada. Ela se
sente exposta, transformada aos olhos dos outros, submetida a comentários e olhares, como
costuma acontecer quando alguém vive uma experiência transgressora limite, como uma
doença grave, um delito ou a proximidade com a morte. A vergonha é a percepção de que
algo distingue a pessoa de sua comunidade, marcando-a como diferente. Acompanha
também a noção de ter ultrapassado a barreira do permitido, do habitual e do
comportamento tido como aceitável. Em seu caráter propiciador do desenvolvimento, a
vergonha contribui para que a pessoa perceba-se como individualidade única. Quando
fixada, porém, esta função estruturante pode levar ao isolamento, à exclusão, ao sentimento
de inferioridade, de indignidade, à vivência de estigmatização, preconceito, repúdio,
discriminação e até à autodestruição. Evidentemente, esta reação encontra respaldo no
grupo social ao qual a mulher pertence. Sobretudo se ele fomentar nela sentimentos de
menos-valia, pode transformá-la num bode expiatório, ensejando um relacionamento
sadomasoquista que pode até mesmo levá-la à morte.

De volta aos Mitos

Voltemos à história de Sitā. Na Índia, para aqueles que mantêm uma tradição hindu,
Sitā é ainda hoje o modelo de esposa virtuosa, dedicada e amorosa. Porém, foi rejeitada por
Rama. Qual o significado simbólico desta rejeição, deste alijamento do seio da família e da
convivência com a sociedade e a corte?
A experiência de Sitā é a de alguém que conhece a Sombra e convive com ela. A
mulher, vista tradicionalmente como alguém que deve ser cuidada, incapaz de tomar conta
de si mesma, de se manter, ter pensamentos próprios e ser independente, é destinada a

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ficar sob a tutela de um homem, subordinada inicialmente ao pai, depois ao marido, ao filho,
ao irmão e, em algumas tradições, ao cunhado, quando viúva. Vimos também que sobre ela
recai o papel de depositária da “honra” do homem e da família.
Ao longo de todo o épico, o que percebemos é que Sitā é uma mulher ardente,
apaixonada, mas também corajosa. Não se intimida diante da permanência por 14 anos
numa floresta cheia de perigos, nem se preocupa com o desconforto ao qual estará sujeita.
Em seu amor, quer ficar junto com Rama, ser sua companheira também neste período difícil.
Sitā, como já mencionei, nasceu da própria terra, símbolo de sua natureza profunda, do
enraizamento naquilo que, tradicionalmente, é associado ao feminino e à mulher. É a terra
fértil, continente, acolhedora, o suporte e alimento para a vida, mas que também pode ser
estéril, seca, violenta e abrigo dos mortos.
Sua permanência com Rāvana, ainda que involuntária, certamente a fez conhecer
outro mundo. Aproximou-se e conviveu com o mundo da luxúria, da violência, da sedução.
Mesmo tendo permanecido fiel a Rama em seus sentimentos, Sitā ficou exposta a
experiências transgressoras, que deram a ela uma vivência não habitual à mulher
tradicionalmente considerada pura, casta e honesta. Dentre as muitas repressões impostas
à mulher, a sexualidade e a agressividade se destacam. Essas são duas dimensões nas
quais as mulheres foram impedidas de se expressar livremente na tradição patriarcal. A
esposa, a mãe dos filhos, não deveria ser confundida com uma mulher sexualmente livre,
pois isto era sinônimo de promiscuidade. A agressividade, necessária para abrir caminhos,
romper barreiras, colocar limites, também não era estimulada na mulher, cuja imagem
sempre foi associada à da mãe abnegada, gentil, carinhosa, amorosa, dócil e submissa. É
como se, com Rāvana, Sitā houvesse comido o fruto proibido e, à semelhança de Eva,
devesse pagar com a expulsão o preço do conhecimento do bem e do mal. No caso, o
banimento da corte e do papel de esposa de Rama que, no primeiro momento, não soube
como lidar com essa nova mulher, iniciada que fôra no lado escuro da vida. Talvez Rama
temesse que a experiência de Sitā pudesse torná-la bruscamente estranha a ele, gerando
distanciamento e desconforto, por ele não saber como lidar com a mulher que vivera
situações íntimas não compartilhadas com ele.
Rama reflete a dificuldade de implantação da Consciência no padrão de alteridade,
caracterizado pela possibilidade de conviver com pólos opostos, nele considerados
simétricos e passíveis de serem integrados. Por mais que tenha demonstrado seu amor por

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Sitā ao longo de todo o épico, curva-se, no final, aos princípios da honra e do dever, abrindo
mão do seu desejo, do apego à esposa e da alegria do reencontro. É o padrão patriarcal
dominando o matriarcal e dificultando a conjunção entre eles, que é o que permite a
alteridade. Foi preciso que Sitā passasse pela prova do fogo, que a população
testemunhasse sua honestidade e que o deus do fogo a referendasse para que fosse
inocentada em praça pública e Rama a aceitasse novamente, reintroduzindo-a na
sociedade.
O rapto de Sitā, porém, não é um evento aleatório nem isolado dentro do Ramāyana.
Sua origem está na tentativa da irmã de Rāvana seduzir Rama. Śurpanaka, tão demoníaca
quanto seu irmão, transformou-se numa mulher encantadora, de lindas formas, e tentou
convencer Rama a abandonar Sitā para casar-se com ela. Sua beleza e artimanhas, porém,
não abalaram a fidelidade de Rama à esposa, nem diminuíram seu amor por ela. Depois de
tentar exaustivamente demover Śurpanaka de suas intenções, Rama termina por cortar-lhe
as orelhas e parte do nariz. Despida dos encantos adquiridos pela magia, revela-se em sua
verdadeira natureza de demônio (raksasa). Furiosa, cheia de ódio e frustração, Śurpanaka
conta ao irmão que há na floresta uma mulher digna dele, e incita-o a possuir Sitā. Esta é a
maneira que encontrou para vingar-se de Rama.
Sensualidade e sedução encobrem a agressividade e o desejo de domínio quando
Śurpanaka busca conquistar Rama. Veremos as mesmas funções estruturantes envolvidas
quando Rāvana deseja que Sitā ceda a seus caprichos, só que, aqui, a agressividade é
explícita. Podemos, assim, equiparar sedução e estupro na coexistência entre
sensualidade/sexualidade e agressividade/desejo de poder na relação homem-mulher. De
modo algum estou sendo favorável à visão misógena que afirma que, geralmente, a mulher
é responsável pelo estupro porque foi ela quem seduziu o homem. Mesmo que isso possa
vir a acontecer, quero frisar que estou me referindo aqui à sedução, aliada ao desejo de
poder em detrimento do vínculo amoroso, como paralela ao estupro, e não como
complementar a ele, ou seja, falo da sedução que pode se expressar numa situação distinta
do estupro.
No estupro, a força agressiva é ativa e explícita, e seu veículo é a sexualidade. Na
sedução, a sexualidade também é o veículo, mas a agressividade/desejo de poder está
presente de forma velada, subreptícia, tentando encobrir a manipulação. Estamos aqui

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diante de um grave problema: um distúrbio da ética, que permeia tanto o estupro como a
sedução manipuladora.
Se o estupro choca por sua violência explícita, a sedução defensiva o faz pelo uso
maquiavélico do sexo para exercer o poder. A sedução oculta, assim, desejos escusos que,
no estupro, são expressos claramente. Hoje em dia, ao menos no Ocidente, onde cada vez
mais a mulher tem conquistado espaço no mundo profissional e lutado lado a lado com o
homem em prol do estabelecimento de seus direitos, é estarrecedor o número de mulheres
que, numa enantiodromia sociocultural, passam do pólo masoquista para o dinamismo
sádico, explorando seus companheiros, tentando aproveitar-se de seu patrimônio, sentindo-
se no direito de “depená-lo”, como se o fato de a mulher haver sido submetida por tantos
séculos lhe assegurasse o direito de ir à forra e receber polpudas somas apenas pelo fato de
existirem. Essas mulheres, verdadeiras sanguessugas, quando se separam, muitas vezes
transformam o ex-companheiro em profissão, vivendo para sempre às suas custas. A
vingança pelos séculos de opressão encontra complementaridade na culpa do homem e em
seu treino cultural para ser o provedor.
Rama, ao cortar parte do nariz e as orelhas de Śurpanaka, coloca limites naquele
dinamismo que quer seduzi-lo, controlá-lo, manipulá-lo, e que pode ser associado tanto à
sua Anima quanto a uma mulher. A necessidade de discriminação, do uso da capacidade
avaliadora, da objetividade e, por que não, muitas vezes da função sacrificial, são essenciais
para que o homem não se deixe fascinar por estas dinâmicas que, vindas do seu interior, do
mundo externo ou de ambos, buscam possuí-lo e acorrentá-lo na Sombra.
Por outro lado, ao não se deixar iludir por Śurpanaka, Rama abre caminho para o rapto
de Sitā. Podemos com isso pensar que, na medida em que Rama não se deixa envolver
pelo aspecto sombrio de sua Anima, Sitā, sua esposa, é obrigada, por sua vez, a confrontar-
se com seu Animus, também na sua dimensão sombria. Rāvana encarna este dinamismo, e
Sitā vê-se na necessidade de, sozinha, elaborar este símbolo. Seguindo esta linha de
raciocínio, tanto Rama quanto Sitā, tendo ultrapassado os desafios individuais, devem agora
enfrentar uma outra prova: levar o resultado deste processo para a relação interpessoal. Não
basta apenas confrontar a própria Sombra; agora é preciso abri-la também para o Outro e
estabelecer assim um relacionamento quaternário, no qual estão presentes o Ego e a
Sombra de cada um.

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É a dificuldade na implantação de um relacionamento quaternário, de alteridade, que
fomenta todo tipo de discriminação, inclusive o estigma da mulher estuprada. Os dados
históricos apresentados por Vigarello ilustram magnificamente a posição polarizada do
Arquétipo Patriarcal e a passagem para uma tentativa de estabelecimento de outro
funcionamento, no final do século XVIII, com a Revolução Francesa, cujo lema liberdade,
igualdade e fraternidade é um exemplo de alteridade. Ao não ser tida como pessoa, a
mulher é colocada num lugar propício a receber as projeções de tudo o que era inferior,
menor, escuso, ilícito. É do final do século XV o livro Maleus Malificarum, uma espécie de
bíblia dos inquisidores, no qual a mulher é vista como um mal necessário, até ser
considerada bruxa e queimada para que sua alma fosse salva. Mas, o que estava
acontecendo com o homem, quando ele permitia e incentivava que a mulher fosse
queimada? Onde estava sua alma, sua sensibilidade, sua delicadeza, sua empatia, sua
compaixão? Qual a conseqüência desses atos para a cultura e para a humanidade?

Que há de ser a mulher senão uma adversária da amizade, um castigo inevitável,


um mal necessário, uma tentação natural, uma calamidade desejável, um perigo
doméstico, um deleite nocivo, um mal da natureza, pintado de lindas cores. Portanto,
sendo pecado dela divorciar-se, conviver com ela passa a ser tortura necessária: ou
cometemos o adultério, repudiando-a, ou somos obrigados a suportar as brigas diárias.
(Comentário de São João Crisóstomo sobre a passagem: “É melhor não se casar”, de
Mateus 19, in Malleus Maleficarum, p. 114)

a mulher é mais carnal que o homem, o que se evidencia pelas suas muitas
abominações carnais. E convém observar que houve uma falha na formação da
primeira mulher, por ter sido ela criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma
costela do peito, cuja curvatura é, por assim dizer, contrária à retidão do homem. E
como, em virtude desta falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e
mente. Pois diz Cato: ‘Quando uma mulher chora, está a urdir uma cilada.’ E prossegue:
‘Quando uma mulher chora, trabalha para enganar um homem. (idem, p. 116)

Quanto mais uma cultura é dominada por um padrão patriarcal de Consciência, mais
ela irá estabelecer uma hierarquia entre os pólos, ao invés de percebê-los como partes
complementares do todo. Na tradição de dominância patriarcal a mulher é reprimida,
dominada, submetida e considerada inferior ao homem, quando não sua propriedade, e,
portanto, sujeita a receber castigos severos quando rompe a barreira do que se espera dela.
O árduo e longo esforço para o estabelecimento de uma sociedade mais simétrica, não
apenas no que se refere ao gênero e à raça, mas também às oportunidades de saúde,
educação, moradia, emprego, é expresso no próprio Ramayana, pois algumas versões do

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épico afirmam que, depois de certo tempo, Rama volta a rejeitar Sitā, e então ela volta
definitivamente para dentro da terra – prevalece a dificuldade imensa para elaborar e aceitar
as vivências da mulher e, com ela, o respeito à natureza. Este triste desenlace aponta para
as conseqüências a que estamos sujeitos se não houver um equilíbrio entre as polaridades –
um respeito à nossa Terra e aos seus diferentes povos, aos nossos rios, animais e florestas,
um cuidado com o ar que respiramos e com a atmosfera que nos protege de radiações.
O mito de Koré, por sua vez, nos coloca diante de uma situação de rapto, mas dentro
de um contexto bastante diverso daquele de Sitā. Apesar de terrível, doloroso e até
enlouquecedor, também o rapto, como todo símbolo, pode fomentar o desenvolvimento da
Consciência. A ruptura brusca de um estado conhecido e aparentemente estável, imaculado
e perfeito em sua ingenuidade, lança Koré num abismo. A relação simbiótica entre ela e
Demeter fixou-a na imaturidade, e foi preciso a intervenção de Hades para que Koré
crescesse e desabrochasse como mulher.
Enquanto Rāvana é descrito como lascivo, violento, manipulador, sedutor, criador de
ilusões, planejando o rapto de Sitā com requintes psicopáticos, Hades, Senhor da Morte,
administra o mundo das almas, representando o contato com aquilo que está para além do
óbvio, do mundo inocente e infantil até então habitado por Koré. Trazendo consigo o
potencial de separação entre mãe e filha, e atualizando-o, Hades auxilia na transformação
de Koré em Perséfone. A presença do dinamismo masculino, representado aqui pelo deus, é
fundamental para que a filha possa buscar sua identidade e trilhar um caminho que lhe seja
próprio, e não permanecer identificada com a mãe.
É preciso lembrar também que, quando Demeter consegue que a filha seja devolvida a
ela, Koré já havia aceitado provar da romã que lhe fora oferecida por Hades. É isso que vai
transformá-la em Perséfone e fazê-la rainha do mundo subterrâneo, unida a Hades para
sempre, permanecendo parte do ano com a mãe e parte com o esposo. Note-se que aceitar
compartilhar a fruta, e assim abrir-se para receber o Outro, é algo sintônico com a dinâmica
de Eros, o princípio de relação. É como se Perséfone intuísse que necessitava se abrir para
esse princípio, com o qual entrou em contato de forma brusca, possivelmente porque
anteriormente ela não estava receptiva para ele. Sai, por isso, transformada positivamente
da experiência. Esta vivência é análoga àquelas situações em que a vida nos força a entrar
em contato com aquilo que tentávamos de todas as maneiras evitar, ou nos arranca de uma
determinada experiência de modo tão brusco que pensamos que não iremos suportar, mas

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mais tarde, quando elaboramos o que vivemos, percebemos que outra porta se abriu e a
vida ficou mais rica do que antes.

Referências Bibliográficas

BERRY, Patrícia. The Rape of Persephone. Spring, 1975, pp. 186 a 198.

BYINGTON, Carlos A. B. (2004). A Construção Amorosa do Saber – O Fundamento e a


Finalidade da Psicologia Simbólica Junguiana. São Paulo: W11 Editores, 2004.

SPRENGER e KRAMER (1484). Malleus Maleficarum – O Martelo das Feiticeiras. Rio


de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos – Record, 1991.

VALMIKI, (ca II aC- II aD). El Ramayana. Tradução de Juan Guixé. Paris: Louis-Michaud, sd.

VIGARELLO, Georges (1998). A História do Estupro. Violência Sexual nos Séculos XVI-XX.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

Sites

www.internationalamnesty.com

www.humanrightsfoundation.com

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A ÉTICA E O FUNCIONAMENTO DO SISTEMA NERVOSO
Um Estudo da Psicologia Simbólica Junguiana

Carlos Amadeu Botelho Byington1

Fascinou-me o “Projeto” que Freud idealizou em 1896, de embasar


neurologicamente o conceito de defesa e de inconsciente reprimido. Sentia que o dia que
conseguíssemos fazê-lo, estaríamos encontrando o fundamento neurológico da ética e
“in-corporando-a”. A descrição do Complexo de Édipo, do Complexo de castração, dos
mecanismos de defesa e, principalmente, da repressão, como inerentes à normalidade,
patologizou e ofuscou sua descoberta mais genial, que foi, a meu ver, a formação da
identidade através das relações primárias. No entanto, quando consideramos o processo
de elaboração simbólica de todas as vivências como a fonte permanente da Consciência,
podemos evitar a patologização do desenvolvimento e valorizar devidamente a
Psicanálise, pois, nesse caso, os conceitos de fixação, compulsão de repetição,
resistência e das demais defesas, bem como da transferência defensiva, Complexo de
Édipo, Complexo de castração e inconsciente reprimido, passam a ser os principais
sintomas dos distúrbios do processo de elaboração simbólica normal (Byington, 2002 e
2004).
A função da ética é ainda hoje um desafio para a Ciência psicológica pela
dificuldade de a inserirmos no desenvolvimento da Consciência. Enquanto não
conseguimos fazê-lo, a Psicologia e a Ciência continuam estruturalmente aéticas,
necessitando importar a ética tradicional da Religião, dos costumes e das conjecturas dos
juristas e dos filósofos. Nesse sentido, o desafio para a compreensão científica da ética
continua até mesmo maior que para o conhecimento da religiosidade, concebida por Jung
como a projeção do Arquétipo Central, denominado por ele de Self, que coordena os
símbolos para realizar o seu potencial no processo de individuação. Apesar de haver
enfatizado a existência do Mal intensamente em sua obra, Jung não conseguiu embasá-lo
psicodinamicamente, por haver conceituado, mas não descrito, a formação da Sombra. A
formação da Sombra e sua relação com o Arquétipo Central e a Consciência são
operações fundamentais para se conceituar a ética dentro da Ciência.

1
Médico psiquiatra e analista junguiano. Membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica.
Membro da International Association for Analytical Psychology. Educador e Historiador. E-mail:
cabbyington@gmail.com
Na Religião, o problema da ética foi, desde sempre, um problema central. Por mais
que se considere o Mal como parte da divindade, se não conseguimos perceber a
interação de Deus com o Demônio, o tema permanece incompleto. O Cristianismo, por
exemplo, sem a luta de Cristo com o Demônio, não faz sentido. Quando a tentação e o
pecado não desafiam o Messias, qual o sentido da confissão, da absolvição e, até
mesmo, da busca de salvação? Quando concordamos que o conhecimento de Deus é
inseparável da sua relação com o Demônio, admitimos que a conceituação do Bem e do
Mal formam um todo, e percebemos que a formulação científica da religiosidade inclui
necessariamente, sempre, também a ética. Não é possível a formulação da
transcendência e da totalidade sem articular, no processo, o Bem e o Mal. O Mito
Judaico-Cristão da Criação ilustra este fato exuberantemente, ao descrever a aquisição
da Consciência pela ingestão do fruto da Árvore do Bem e do Mal, dentro da relação com
Deus, o que equivale, na Ciência, como veremos, à relação da função estruturante da
ética com o Arquétipo Central na aquisição do conhecimento.
Ao excluir o subjetivo do método científico, a Ciência Ocidental afastou-se,
também, do sentimento, da intuição, da ligação emocional com a totalidade e, por
conseguinte, da ética. Ao adotar o positivismo e o materialismo no século XIX, a Ciência
perdeu a Consciência da sua origem mítica e transformou em maldição o presságio de
Montaigne (1533-1592), três séculos antes: “Ciência sem Consciência é a ruína da alma”.
Para abordarmos a proposta de incorporar a religiosidade e a ética dentro da
Ciência, necessitamos da História do Ocidente para compreender o contexto e as razões
da sua exclusão.
Jung descreveu a realidade psicológica dos mitos como projeção dos arquétipos e
expressão do processo de individuação. Os mitos guiam a busca de desenvolvimento do
Self Individual em cada cultura pela introjeção das imagens oriundas da projeção dos
arquétipos. No seu livro Aion, porém, Jung ampliou a função do mito como formador
também da Consciência Coletiva, através da descrição do Mito Cristão durante a era
astrológica de Peixes (Jung, 1950). Esse caminho de Jung foi ampliado por Erich
Neumann, que descreveu a formação histórica da Consciência Coletiva sucessivamente
através de mitos que expressariam o Arquétipo Matriarcal e o Arquétipo Patriarcal. A partir
das obras de Jung e de Neumann, podemos então perguntar o que acontece com um
indivíduo ou uma cultura quando eles repudias o seu mito.
Continuando a criatividade de Jung e de Neumann, a Psicologia Simbólica
Junguiana descreveu o Arquétipo de Alteridade (que reúne os Arquétipos da Anima e do
Animus descritos por Jung) como a fonte da projeção do Mito do Buddha no Oriente e do
Mito Cristão no Ocidente, cuja introjeção vem, há séculos, desenvolvendo o padrão
dialético da compaixão na Consciência Coletiva. Desta maneira, podemos compreender a
relação dialética entre sujeito e objeto no método científico como a continuação da
implantação cultural do Arquétipo da Alteridade revelado no Mito Cristão. Reunimos,
assim, Mito e Ciência, e resgatamos a raiz mítica do conhecimento.
Aprofundando essa pesquisa, a Psicologia Simbólica Junguiana concebeu,
também, o conceito de Self Cultural e a Teoria Arquetípica da História, para expressarem
o desenvolvimento da Consciência Coletiva através dos mesmos arquétipos que
coordenam a diferenciação do Self Individual do início ao fim da vida (Byington, 1983).
Desta forma, a Sombra Coletiva, com as grandes disfunções históricas, pode ser
explicada pela fixação e pelas defesas que deformam a elaboração simbólica do Self
Cultural, da mesma forma que podemos fazê-lo no Self Individual (Byington, 1987).
A Teoria Arquetípica da História nos permite perceber que o desenvolvimento das
ciências, das artes e do socialismo são a expressão da projeção-introjeção do Arquétipo
da Alteridade na Consciência Coletiva. Ao mesmo tempo, esta teoria nos faz reconhecer a
grande Sombra do Cristianismo, que fixou a elaboração do Mito no Self Cultural e
deformou a sua institucionalização com a intolerância religiosa que se aglutinou na
Inquisição. Quando nos damos conta que o Cristianismo foi oficializado em 325 A.D. e
que Prisciliano foi executado como herege, na Espanha, em 375 A.D., em nome de Cristo,
concluímos que a intolerância religiosa deformou brutalmente a implantação cultural do
Mito praticamente desde a sua institucionalização. Esta deformação fixou gravemente a
integração do Arquétipo da Alteridade e da imagem de Cristo, que passou a crescer cada
vez mais na Sombra através da imagem do Demônio como Anti-Cristo. Contudo, apesar
de grandemente deformadas no Self Cultural, a função da ética e da religiosidade
continuaram a ser exercidas subjetiva e objetivamente na Consciência Coletiva. Ainda
que de maneira sombria e dogmática, a verdade manteve sua expressão dentro do
Arquétipo da Totalidade, e o corpo crucificado do Filho de Deus permaneceu como
símbolo central da luta entre o Bem e o Mal, na busca da salvação anunciada no Mito.
Todas as funções estruturantes podem ser normais e fonte de Consciência, ou
defensivas e formadoras de Sombra. Isto se aplica também à função estruturante do
aprendizado (Byington, 2004). Assim sendo, podemos compreender como foi que, lado a
lado com a repressão persecutória e moralista dentro da Igreja, os monastérios da Idade
Média acumularam e traduziram para o latim o saber da Antigüidade, atravessaram
criativamente séculos de repressão e se transformaram nas universidades. Para a Teoria
Arquetípica da História, é fundamental percebermos que o Arquétipo da Alteridade,
transmitido no Mito pela compaixão que pregava “amar ao próximo como a si mesmo” e
praticava dialeticamente o exame de Consciência na confissão e na meditação,
transformou-se paulatinamente na busca do conhecimento do método científico. De
fato, sem um respeito ético do Ego diante do Outro, do sujeito diante do objeto alvo de
pesquisa, a verdade científica não pode ser buscada. Assim sendo, o método científico
não só não é incompatível com a religiosidade, como é imprescindível para humanizar o
conhecimento através da percepção da ética a ele inerente. Um exemplo desta
formulação está no fato de os cientistas pioneiros, como Copérnico, Galileo, Kepler,
Descartes, Leibnitz e Newton terem sido todos cristãos e muito religiosos. Suas biografias
mostram que eles viviam suas geniais descobertas com o enaltecimento da Glória de
Deus. Mas, se o que estou postulando aqui é que, seguindo Jung e Neumann, os mitos
formam a Consciência, e que o Mito Cristão é a projeção do Arquétipo da Alteridade, cuja
introjeção gerou as ciências modernas, como explicar a ruptura entre o objetivo e o
subjetivo, quando a Ciência tomou o poder na Universidade no final do século XVIII?
Qualquer símbolo ou função estruturante que gera a Consciência pode, também,
gerar a Sombra se sofrer uma fixação na sua elaboração. Ao formar a Consciência, os
mitos são institucionalizados e formam as religiões que, através de rituais, mantém a
Consciência enraizada e permanentemente alimentada pelos símbolos que a formaram. A
religiosidade é uma função estruturante que cultiva a transcendência e mantém a
Consciência na posição de humildade diante dos arquétipos que a criaram e a
realimentam. Ao mesmo tempo, a religiosidade desenvolve e mantém a função ética pelo
próprio culto ao sagrado, que ensina o que deve e o que não deve ser feito. Quanto mais
as religiões convergem para a centralização monoteísta, mais o Bem é representado por
um Deus, e o seu descaminho, a sua Sombra, pelo Demônio. A fixação da religiosidade
gera a tentação de a Consciência gerenciar sua própria origem. O ser humano comporta-
se como se fosse um deus. Essa é a hybris da humanidade, expressa na cultura grega
para enfatizar a perda da medida, o desequilíbrio da Consciência, que causa a ira dos
deuses. Ela foi denominada onipotência na Psicanálise, inflação na Psicologia Analítica e
reconhecida como uma das formas de Maya, ilusão, na tradição hindu.
O Arquétipo do Amor e o Arquétipo do Poder formam a principal polaridade que
atua em toda e qualquer elaboração simbólica, coordenada pelo Arquétipo Central. O
amor abre a Consciência para a reverência e a entrega, e o poder traz a assertividade e a
dedicação para que ela integre e afirme os significados simbólicos que recebe. No caso
das fixações, o poder submete o amor e, através das defesas, assume o comando dos
símbolos afetados. O dogmatismo é a imposição defensiva e intolerante dos dogmas
religiosos quando a Consciência se apega e se apossa dos significados revelados pela
religiosidade e os literaliza, gerando o fanatismo e impedindo a continuidade da evolução
criativa do Arquétipo Central, representado pela imagem divina. O Deus vivo, capaz de
gerar a transformação permanente, converte-se num fantoche manipulado pelas
conveniências oportunistas do poder pessoal ou político. Por isso, o Demônio é
freqüentemente representado pela imagem de demiurgo ou por um anjo caído e maldito,
que tenta usurpar a supremacia de Deus. No Mito Cristão, este fato é ilustrado pela última
tentação de Jesus, na qual Ele rejeita o Demônio, que lhe oferece o poder sobre a Terra.
O pacto com o Demônio expressa, assim, a submissão ao poder, que usurpa a
transcendência e submete o amor. O pacto extremo com o Demônio é a guerra, sendo
uma de suas formas o terrorismo.
Dentro desta perspectiva, a Ciência é a expressão da posição dialética do Ego com
o Outro, coordenada pelo Arquétipo da Alteridade para elaborar os símbolos, e a verdade
é a realidade do mundo e da vida humana nele inserida, produzida e aprofundada pela
elaboração dos símbolos.
A integração progressiva do Arquétipo da Alteridade na Consciência Coletiva pelo
crescimento da Ciência colidiu de maneira intensa com o dogmatismo do mito
institucionalizado e literalizado. A partir do século XVI, o Demônio foi projetado
defensivamente cada vez mais nos cientistas, pois sua criatividade revolucionária
buscava o conhecimento através do método experimental, do amor à verdade, e não
podia curvar-se diante do controle dogmático. Travou-se, assim, uma luta histórica
durante quatro séculos, durante os quais muitos cientistas estudaram Teologia e
defenderam a religiosidade criativa dos sofismas intolerantes da religiosidade defensiva
praticada por muitos membros do Santo Ofício, que comandavam a repressão através da
Inquisição.
No final do século XIX, a Ciência venceu e expulsou da Universidade a intolerância
despótica do preconceito dogmático religioso. Comemorou-se a vitória do Iluminismo
sobre as trevas, da liberdade do saber sobre a censura religiosa, do método experimental
sobre o ocultismo, da razão sobre o obscurantismo. Infelizmente, porém, essa
transformação maravilhosa foi festejada e atribuída à cisão entre a Ciência e a Religião.
Não se percebeu que, junto com os vendilhões, expulsou-se também a religiosidade, ou
seja, junto com a intolerância dogmática baniu-se, do templo do saber, a própria
subjetividade. Como não poderia deixar de ser, a dissociação subjetivo-objetivo levou
consigo a intuição, o sentimento, a emoção, a vivência ética e a relação afetiva com o
Todo. Coroou-se a razão e expulsou-se a emoção, estabelecendo-se um rígido
patrulhamento emocional para não permitir sua volta ao altar da verdade.
Os historiadores da Ciência são, em geral, cientistas, e por isso explicam o
afastamento entre a Ciência e o humanismo pela abstração matemática ou pelo
mecanicismo. Denigrem até, mesmo a inteligência de Descartes, culpando-o pela
dissociação defensiva devido à sua descoberta genial da separação criativa subjetivo-
objetivo, res cogitans-res extensa, que comandou a implantação do método científico. Ao
buscarem as causas da dissociação materialista da Ciência em si própria, os historiadores
encobrem e racionalizam a patologia histórica que feriu o método científico e vem atuando
na Universidade como anticiência em nome da verdade. Ao examinar uma dissertação de
mestrado numa universidade, um colega de banca examinadora declarou que não
aceitava a obra de Jung porque ele não havia feito Ciência. Conhecendo de perto o
esforço com que Jung exerceu a fenomenologia, estudando o subjetivo e o objetivo dentro
da Ciência, tornou-se claro para mim o quanto esse examinador era um porta-voz da
intolerância da anticiência incrustada e arraigada dentro da Universidade.
Apesar de muitos cientistas haverem sofrido discriminação por apresentarem
características subjetivas em suas pesquisas e, por isso, terem sido acusados de não
fazerem Ciência, são raros aqueles que reconhecem uma dissociação patológica no viés
materialista do método científico. Mais raros ainda são aqueles que reconhecem nessa
patologia um complexo carregado de emoção vingativa, que construiu à sua volta,
defensivamente, um patrulhamento obsessivo recheado com a mesma intolerância
ideológica exercida pela Inquisição em nome de Deus, só que, agora, em nome da
verdade e da razão.
Do outro lado da dissociação, o humanismo religioso da Igreja Católica também
não elaborou a patologia do cisma Ciência-Religião, pelo fato de não haver reconhecido e
denunciado, até hoje, as barbaridades do Santo Ofício, que patrocinou a Inquisição e que,
infelizmente, continua cerceando a criatividade religiosa dos católicos. Um exemplo triste,
mas muito significativo, foi a condenação do teólogo Leonardo Boff a um ano de “silêncio
obsequioso”, por haver escrito o livro Igreja, Carisma e Poder, que precedeu sua exclusão
da Igreja.
O começo da volta da subjetividade à Universidade deu-se através da obra de
Pinel, que, apesar do seu extraordinário valor para o acolhimento, o estudo e a
humanização da doença mental, estabeleceu um viés perigoso que estigmatiza até hoje a
subjetividade. É que as forças defensivas estigmatizadoras, pressionadas pela
criatividade do Self Cultural, entreabriram suas portas para receber o subjetivo de volta,
mas apenas dentro da patologia.
Foi assim que, um século depois de Mesmer, a Academia de Ciências de Paris
concedeu acolher os estudos de Charcot sobre a hipnose, somente talvez graças à sua
conclusão errônea de que apenas pacientes histéricos eram passíveis de ser
hipnotizados.
Os estudos da subjetividade no século XIX foram coroados pela genialidade de
Freud com a descrição do desenvolvimento da personalidade desde o início da vida
através das relações parentais. A pujança da resistência à subjetividade, porém,
continuava muito intensa, e Freud foi levado a patologizar a descoberta estruturante do
complexo parental que descobriu como Complexo de Édipo, que descobriu em si próprio.
A seguir, deformou a relação normal pai-filho com o complexo de castração e, pior que
tudo, inseriu sua valiosíssima descoberta dos mecanismos de defesa dentro do
desenvolvimento normal e culminou sua patologização da subjetividade com a formulação
da necessidade de repressão para sublimar o Complexo de Édipo “normal” e formar o
Superego. Através de Freud, assumidamente materialista, a Ciência retomou a
subjetividade deformando-a pela patologia, da mesma forma que havia sido considerado
pecado a ingestão do fruto da árvore do conhecimento ético. É impressionante como a
sublimação pela repressão do Complexo de Édipo para formar o Superego coincide com
a Teologia Católica da purificação do pecado original pelo Batismo. A vertente “genética”
de Freud para explicar a origem do Superego e da ética pelo parricídio ancestral na horda
primeva, imaginada em Totem e Tabu, aprofunda a patologização do subjetivo pelo crime
do parricídio, mas essa versão foi abandonada quando a genética invalidou a teoria
lamarquista da transmissão hereditária dos caracteres adquiridos.
As obras de Jung e de Neumann muito nos aproximaram de um enraizamento
arquetípico e, por conseguinte, neurológico da ética. Jung enfatizou muito a importância
do reconhecimento do Mal, mas, ao mesmo tempo, formulou o conceito de Sombra de
maneira ambígua, dificultando muito a sua concepção psicodinâmica. Essa ambigüidade
está presente, por exemplo, na própria limitação da Sombra aos símbolos do mesmo
gênero que o Ego (Jung, 1950). Isso significa que os símbolos do sexo oposto não podem
fazer parte da Sombra? O que acontece então com os símbolos da Anima de um homem
quando eles se tornam patológicos? Esse símbolos se expressam fora da Sombra? A
outra questão advém da Sombra considerada “boa” porque tem símbolos preciosos para
o processo de individuação. Mas isso significa que os símbolos da Sombra “má” não
servem para o processo de individuação? Uma terceira questão é a do “Mal Absoluto”,
mencionado, mas não explicado por Jung (1950). O quarto ponto que ficou ambíguo na
sua obra foi sua crítica da doutrina católica do Summum Bonum. Jung a interpreta como a
exclusão do Mal da divindade. No entanto, quando a consideramos uma referência ao
Arquétipo Central, ela não exclui o Mal, mas significa que o Mal não é algo em si, mas um
distúrbio que prejudica a busca da Totalidade. E não é assim, que nós, junguianos, e o
próprio Jung, lida com o processo de individuação na terapia e em nossa própria
individuação? Quando seguimos os símbolos das sonhos e da vida em geral, buscando a
auto-realização, não o fazemos acreditando que essa busca da Totalidade seja o caminho
do Bem? No entanto, esse é o significado da doutrina do Summum Bonum, que Jung
tanto criticou (Byington, 1997).
Erich Neumann foi o autor junguiano que mais estudou a ética. No livro A
Psicologia Profunda e a Nova Ética, ele teve o grande mérito de conceituar a Sombra
como Mal e de diferenciar a nova ética como o confronto permanente com ela, ao
contrário da ética tradicional, que somente repudia o Mal e busca um ser humano bom,
sem Sombra, de pura luz. A nova ética postula a necessidade de se confrontar
permanentemente a Sombra que vive em nós e que a cada dia pode se renovar. Trata-se,
sem dúvida, de um grande avanço no estudo da ética. Faltou-lhe, no entanto, explicar
como se forma a Sombra e esclarecer os quatro pontos acima mencionados, que
permaneceram sem esclarecimento na conceituação da Sombra de Jung.
A Psicologia Simbólica Junguiana aborda a ética e a Sombra através dos conceitos
de símbolo e de função estruturante que expressam todos os eventos psíquicos e que
contribuem para formar a Consciência através da elaboração simbólica criada por
arquétipos e, em última análise, pelo Arquétipo Central (Byington, 2002). Nesse caso, a
Sombra é o Mal que se expressa pela fixação dos símbolo e das funções estruturantes,
inclusive da ética, que passam a ser expressos por defesas, independentemente do
gênero das pessoas. Por conseguinte, as defesas são sempre patológicas e, como
funções estruturantes arquetípicas, elas passam a ser consideradas defesas do Self e
não do Ego.
Os símbolos e funções estruturantes são bons porque são necessários para formar
a Consciência, sejam de que natureza forem. Até mesmo a função estruturante da morte
pode ser normal e criativa quando ela vem elaborar e levar os símbolos que já morreram.
Eles se tornam maus quando estão fixados e são atuados por defesas, que geram erros e
sintomas, em meio à conduta inadequada e destrutiva.
Se a Consciência é o caminho do Bem e a Sombra o caminho do Mal, falta explicar
o que acontece quando as pessoas realizam conscientemente o Mal, como no caso do
crime premeditado e do comportamento patológico. A explicação está na defesa
psicopática. No caso da defesa neurótica, o Ego da Sombra atua em grande parte
inconscientemente, mas no caso da defesa psicopática, o Ego da Sombra subjuga o Ego
da Consciência e o faz atuar o Mal. A atuação do Mal na psicopatia, como em todos os
outros casos, é defensiva, pois quando a elaboramos, encontramos sempre na sua raiz
uma fixação da função estruturante da ética.
O conceito de função estruturante arquetípica reunido ao de fixação aproxima a
Psicanálise da Psicologia Analítica. O conceito de função estruturante da ética,
participando em toda e qualquer elaboração simbólica, permite-nos perceber a formação
da Sombra nas fixações e estabelecer a relação entre o Bem e o Mal em todas as
vivências e disfunções da vida.
Os símbolos e funções estruturantes operam no sistema nervoso através dos
neurotransmissores. As neurociências identificam cada vez mais e melhor um número
crescente de neurotransmissores responsáveis pelas funções neurológicas que
correspondem às funções estruturantes. Ao invés de prescindirmos da Psicologia e da
ética quando descobrimos os correspondentes das funções estruturantes no sistema
nervoso, postulo enfaticamente que o contrário se dá. O fundamento psicológico e
neurológico desta afirmação está no fato de as funções estruturantes poderem ser
normais e fazerem crescer a Consciência, ou sofrerem fixações e formarem a Sombra.
Essa fixações podem advir de problemas genéticos ou de doenças orgânicas, ou de
problemas funcionais de natureza emocional ou cognitiva. Como argumentou Neumann,
Sombra é Sombra, e a ética consiste em saber que todos a formamos permanentemente.
Se admitimos então que a Sombra e suas defesas se formam pelas fixações, a missão do
Ego é resgatar e confrontar os símbolos e funções estruturantes fixados através da
função estruturante da ética para reintegrá-los na formação da Consciência.
A formulação do conceito de função estruturante da ética, dentro de todas as
funções vitais, também reconhecidas como funções estruturantes que, a qualquer
momento, podem sofrer fixações e formar a Sombra, é fundamental para o enraizamento
da ética no sistema nervoso. Só assim pode a Ciência resgatar a ética humanista que
afastou junto com o subjetivo quando separou-se da Religião.
Com a dissociação sujeito-objeto, a ética científica ficou centralizada e restrita ao
objetivo. O Mal, na Ciência, é combatido e identificado com o erro, o plágio e o
charlatanismo. Até aqui podemos aplicar a nova ética descrita por Neumann também à
Ciência, pois todo cientista sabe que a Sombra representada pelo erro deve ser
combatida permanentemente. No entanto, quando chegamos à subjetividade das
emoções, a Ciência ainda não desenvolveu parâmetros éticos para confrontar a Sombra.
A condição aética do humanismo científico, no que concerne o subjetivo, está
sobejamente ilustrada no livro DNA, de James Watson, cujo lançamento entre nós foi
acompanhado de uma entrevista à Revista Veja.
James Watson tem 77 anos e é um cientista proeminente no campo da genética por haver
descoberto, com Francis Crick, a estrutura do DNA, em 1953, que lhes valeu o Prêmio
Nobel. Dentro da entrevista, na qual enumerou pesquisas maravilhosas que podem
propiciar alterações genéticas para tratar e prevenir doenças dizimadoras como a AIDS e
o câncer, teceu considerações que ilustram a falta de parâmetro ético para lidar com a
Sombra na Ciência, quando ela aborda o humanismo subjetivo. Diante da pergunta do
entrevistador se há necessidade de alguma restrição legal à pesquisa genética, só falta
responder que é questão de gosto, pois responde:

Eu diria que não. Sou muito libertário. Se alguém um dia descobrir que
podemos adicionar algum gene para que as crianças nasçam mais
inteligentes, ou mais bonitas, ou mais saudáveis – bem, eu não vejo por que
não fazê-lo. Não acredito que o sofrimento faça bem a uma pessoa. Algumas
pessoas dizem: "Cristo sofreu, então os homens também precisam sofrer". Eu
não compro esse argumento. Hoje, não temos a capacidade de melhorar a
humanidade dessa forma. Se um dia pudermos, por que não? Alguns alegam
que isso favoreceria os ricos, mas não há novidade aí: os ricos sempre
compram a nova tecnologia antes dos demais. (Watson, in Veja, 2005)

Chama a atenção, em Watson, a posição libertária que não tem parâmetro ético de
humanismo subjetivo, apesar de operar lado a lado com a liberdade da ética objetiva na
pesquisa. Ele é contra o sofrimento e renega o exemplo de Jesus, de enfrentá-lo na cruz,
possivelmente porque não diferencia o sofrimento de uma doença do sofrimento moral de
quem confronta a Sombra (o crime, o erro, a doença e o pecado), buscando elaborar sua
fixação e reintegrar seus símbolos fixados através da função estruturante da ética.
Compreendo a atitude agnóstica deste e de outros cientistas, que não querem
adotar a ética humanista subjetiva das religiões, pois estas, freqüentemente, incluem
preceito que afrontam os direitos humanos de liberdade e de autodeterminação,
professados pela ética da Ciência, em função do exercício da pesquisa objetiva. Isso,
porém, não justifica a atitude aética libertária, que não reconhece a culpa e o sofrimento
moral criativo decorrentes do confronto da elaboração da Sombra na busca da auto-
realização.
Acredito que, se o conceito de Sombra, formulado pela Psicologia Analítica, incluir a
fixação e as defesas descobertas pela Psicanálise e equiparadas às funções estruturantes
descritas pela Psicologia Simbólica Junguiana, ele poderá ajudar cientistas a reintegrar o
humanismo subjetivo no método científico. De fato, a equiparação dos símbolos e das
funções estruturantes com os neurotransmissores pode contribuir para a pesquisa da
função estruturante da ética normal e defensiva no sistema nervoso e permitir a percepção
e o confronto da Sombra e do Mal nas neurociências.

Referências Bibliográficas

BYINGTON, Carlos A. B. (1983). Uma Teoria Arquetípica da História. O Mito Cristão como
o Principal Símbolo Estruturante do Padrão de Alteridade na Cultura Ocidental. Junguiana,
Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Petrópolis, 1983, no1, pgs 120-
177.

___________ (1987). Arquétipo e Patologia: Introdução à Psicopatologia Simbólica.


Junguiana, Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. São Paulo, 1987, no 5,
pgs. 79-126.

___________ (1997). Ética e Psicologia. Junguiana, Revista da Sociedade Brasileira de


Psicologia Analítica. São Paulo, 1997, no15, pgs. 102-121.

___________ (2002). Inveja Criativa – O Resgate de uma Força Transformadora da


Civilização. São Paulo: W11 Editores, 2002.

___________ (2004). A Construção Amorosa do Saber – Fundamento e Finalidade da


Pedagogia Simbólica Junguiana. São Paulo: W11, 2004.

JUNG, Carl G. (1950). Aion. C.W. 9, Parte II. London: Ed. Routledge & Kegan Paul, 1959.

NEUMANN, Erich (1949). A Psicologia Profunda e a Nova Ética. São Paulo: Paulus,1945.

WATSON, James. DNA. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

___________ Entrevista à Revista Veja. São Paulo: Editora Abril, ano 38, no. 34, Agosto,
24, 2005.

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