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Neurociência e Psicopatologia

Compreendendo os fundamentos da neuropsicologia e da psicobiologia do sofrimento


psíquico

Hélio Tonelli

2016
Neurociência e Psicopatologia

Resumo

Este texto foi elaborado com base nas aulas da disciplina de neuroanatomofisiologia do
curso de pós-graduação em neuropsicologia da FAE Business School, por sugestão de
alguns alunos de sua primeira turma, em meados de 2016, a grande maioria psicólogos,
muitos deles pouco familiarizados com a neurociência, outros se sentindo
desatualizados com a matéria por diversas razões. Ele é alicerçado na anatomia e na
fisiologia do sistema nervoso central, mas é voltado à neuropsicologia e à psicobiologia
dos transtornos mentais. Prioriza, portanto, as funções corticais e a relação entre os
prejuízos a seu funcionamento e o surgimento de sintomas psicológicos e psiquiátricos.
Este enfoque psicopatológico baseia-se na premissa de que distúrbios em sistemas
neurais subjacentes ao processamento de representações mentais específicas acabam por
comprometê-las, distorcendo a visão do mundo e originando sofrimento psíquico em
suas diversas formas. O conceito de representação mental é inicialmente discutido e, em
seguida, são apresentados os princípios básicos da organização anatômica do sistema
nervoso e como diferentes “setores” do sistema nervoso central, representados por
grupos neuronais especializados, desempenham suas tarefas. Segue-se uma seção onde
são abordados diversos aspectos do trabalho dos neurônios na geração de representações
mentais e outras dedicadas à organização hierárquica do processamento da informação
pelo cérebro e a criação do comportamento e cognição, sendo discutidos os papéis
específicos dos córtices associativos frontal, parietal, temporal e límbico, e, sem que se
perca de vista a orientação neuropsicopatológica, são feitas considerações acerca da
interface mente-cérebro na produção de sintomas psíquicos. Não é preciso dizer que
este é um texto preliminar, cuja finalidade é organizar a informação básica que, por sua
vez, facilitará a aquisição de conhecimentos mais profundos por meio da leitura de
textos de maior complexidade, atualmente muito mais acessíveis tanto pelas bases de
dados tradicionais quanto pelas redes sociais acadêmicas. Também é importante
acrescentar que seu conteúdo será mais bem compreendido e assimilado se imagens ou
ilustrações de um atlas do sistema nervoso central estiverem disponíveis para consulta.
Tendo em vista que boa parte deste trabalho tem como principal orientação teórica o
livro Principles of Neural Science (5ª Edição, 2013), editado por Eric Kandel e
colaboradores, sugiro o uso de suas imagens como apoio.

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Introdução

Vivemos em um mundo em que múltiplos estímulos se sucedem ou ocorrem


simultaneamente. A todo o momento somos invadidos por uma avalanche de
informação da qual temos de selecionar a parte mais importante para nossa
sobrevivência. Nosso cérebro tem de organizar os estímulos que invadem nossos
sentidos, priorizando e selecionando alguns em detrimento de outros, a fim de que
possamos dar significados ao mundo e atuar nele da forma mais adequada.

O cérebro recebe sinais tanto do ambiente externo quanto do próprio corpo e é


capaz de selecionar os que se originam de eventos relevantes em um dado momento.
Por exemplo, quando estamos em um ambiente potencialmente hostil, é mais importante
para nossa sobrevivência prestar atenção às coisas que se movimentam – e, por
conseguinte, podem nos causar algum dano físico – do que à beleza da paisagem. Desta
forma, o cérebro organiza a percepção e coordena a ação, bem como armazena dados
perceptivos na memória para referência futura. A parte sensorial do sistema nervoso é
aquela responsável pela detecção e pela condução da informação do ambiente externo
(mas também do interno) até o cérebro, que a “processa” e engendra um
comportamento, função das partes pré-motoras e motoras do sistema nervoso. Faremos
diversas referências às partes sensoriais e motoras do sistema nervoso ao longo deste
texto. Como veremos adiante, todo este trabalho é executado pelos neurônios, células do
sistema nervoso especializadas na transmissão e processamento da informação.

Outra perspectiva interessante a respeito das funções do cérebro – e de nossa


mente – é que ele é um órgão detector de padrões. Isso significa que ele está
programado para perceber e registrar eventos que se repetem no ambiente, além de fazer
correlações entre diferentes padrões que habitualmente se sucedem, criando relações de
causa e efeito. Estes padrões são denominados em psicologia cognitiva de
representações mentais. As representações mentais, criadas a partir desta contínua
procura e extração de padrões pelo cérebro e pela mente, são valiosas porque nos
permitem fazer previsões acerca do que vai acontecer. Por exemplo, depois de um
relâmpago, segue-se o trovão e possivelmente, a chuva. Além disso, elas também nos
permitem simular situações mentalmente, o que nos protege dos possíveis riscos de
vivenciar, de fato, as situações simuladas.

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Representações mentais são cópias, mapas ou simulações do mundo

O conceito de representação mental não é novo – uma teoria representacional da mente


já era observada na obra do filósofo Aristóteles – mas ele foi aperfeiçoado pelos
teóricos computacionais da mente. Estes cientistas propõem que estados mentais e
processos cognitivos são constituídos pela ocorrência, transformação e armazenamento
no cérebro/mente de estruturas de informação de um ou de outro tipo, as quais eles
também chamaram de representações. As representações mentais são objetos mentais
com propriedades semânticas, isto é, com significados. Do ponto de vista filosófico,
pensamentos, crenças, desejos, percepções e imagens são estados mentais dotados de
intencionalidade, isto é, referem-se a coisas. Por exemplo, minha lembrança de minha
mãe é um estado mental criado por meu cérebro (uma representação mental construída a
partir de minhas percepções, memória e crenças a respeito de minha mãe), que se refere
à pessoa de minha mãe. Os filósofos da mente também discutem muito a respeito da
natureza destas representações mentais, sugerindo que existem duas variedades básicas
de representações: aquelas que têm características fenomenais, isto é, as que são mais
parecidas com as sensações (imagens, sons, cheiros, por exemplo) e aquelas que têm um
caráter mais conceitual, como os pensamentos, sendo comumente expressas através da
linguagem. O conteúdo fenomenal de uma representação mental refere-se àquilo que ela
representa; por exemplo, o azul do mar, a transparência do cristal. Todavia, muitas
representações mentais não podem ser expressas fenomenalmente e exigem mais
elementos linguísticos quando são recrutadas. Por exemplo, avalie o caráter de suas
representações mentais para “justiça” ou “decisão” e perceba que elas não são
essencialmente caracterizadas por imagens. De maneira simplista, é possível afirmar
que as representações mentais são cópias, modelos ou mapas mentais do mundo, que
nos auxiliam na navegação por ele e que são elaboradas a partir da incessante atividade
cerebral de conferir sentido ao mundo, estabelecendo relações entre diferentes
estímulos. Como afirmado acima, as representações mentais também têm a valiosa
propriedade de permitir previsões a respeito das relações entre as coisas do mundo, com
uma boa chance de acerto.

Existem diversos tipos de representações mentais, alguns mais óbvios, como as


representações mentais das pessoas que conhecemos ou dos aromas de um vinho ou do
azul do céu – estas têm muitas características fenomenais e por isso, um caráter de
imagem mental (ou um caráter imagético) – e outras não tanto, como nossas

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representações mentais dos estados mentais de outras pessoas. Este tipo de


representação mental é muito importante em nossa espécie, na medida em que somos
seres sociais e, como tal, prestamos muita atenção às outras pessoas e a seus estados
mentais. Representações mentais de estados mentais resultam de nossa habilidade
involuntária e espontânea de simularmos os eventos mentais daqueles com quem nos
relacionamos e se refletem na tendência humana para a preocupação com o que os
outros pensam, sentem, desejam e pretendem. Simulações dos estados mentais dos
outros nos permitem prever com uma boa dose de acerto como as pessoas devem se
comportar.

O processo de criação de representações mentais pelo cérebro pode ser


extremamente complexo, como na elaboração de representações mentais das ações das
outras pessoas, as quais envolvem o recrutamento tanto de áreas corticais sensoriais
(que processam, por exemplo, informações visuais veiculadas pelas faces das outras
pessoas) quanto de áreas pré-motoras e motoras do córtex cerebral, as quais criam, no
observador, mapas sensoriais e motores das ações de terceiros (que simulam suas
posturas e atitudes). Ou como nas representações mentais de nosso espaço pessoal, em
que mapas de como ocupamos o espaço com nossos corpos são configurados a partir de
informações oriundas dos receptores tácteis distribuídos por nossa superfície corporal e
de informações proprioceptivas fornecidas por nossos músculos e pela posição de
nossas articulações. No entanto, apesar da complexidade subjacente aos processos de
elaboração de representações mentais, a ciência tem progredido muito no que tange à
sua compreensão.

Neste texto estudaremos o trabalho realizado pelo sistema nervoso central na


elaboração de diversos tipos destes mapas, imagens, cópias ou simulações mentais do
mundo. Começaremos estudando um pouco da organização anatômica das estruturas
constituintes deste sistema e depois discutiremos a respeito das células que o compõem,
os neurônios e as células da glia, sempre com ênfase à compreensão da cognição e da
formação de representações e de suas perturbações, resultando em sofrimento psíquico.

O termo cognição se refere a todos os processos pelos quais a informação


sensorial é transformada, reduzida, elaborada, armazenada, recobrada e utilizada, na
forma de comportamento. Veremos que a cognição é o resultado do trabalho do cérebro,
mais precisamente do córtex cerebral, que, como afirmado acima, recebe informações

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sensoriais do meio externo e interno, as quais são processadas em regiões onde também
são integradas (não apenas a outras sensações, mas também a memórias e emoções) e
transformadas em uma percepção. Veremos que, ao observarmos algo, digamos, uma
maçã, áreas sensoriais especializadas na aquisição e transmissão de um tipo específico
de sensação (e por isso chamadas de áreas sensoriais unimodais) – por exemplo, cor,
forma, textura, movimento – acabam por convergir a informação obtida a partir da
contemplação da maçã – vermelha, arredondada, lisa e parada – a áreas sensoriais que
integram estas informações (e por isso são chamadas de áreas sensoriais multimodais),
as quais serão, em seguida, utilizadas por outras áreas cerebrais que programam um
comportamento relacionado à maçã: pegá-la, comê-la ou guardá-la. Evidentemente, a
decisão final do que fazer com a maçã também leva em conta aspectos mnêmicos
(relativos à memória), como as lembranças das experiências pregressas reforçadoras ou
não do consumo de maçãs ou as lembranças das informações adquiridas acerca das
vantagens ou desvantagens de comer estas frutas; aspectos emocionais, que abrangem
as variáveis emocionais reforçadoras ou aversivas relacionadas a comer maçãs e, por
fim, aspectos cognitivos, como as crenças sustentadas a respeito destas frutas (elas
fazem bem para a saúde?, seu consumo é seguro?, elas engordam?).

Veremos que o aprendizado a respeito das coisas no mundo baseia-se em como


nosso equipamento para percebê-lo é concebido, mas que, apesar de sua eficiência em
captar informações, nossas percepções não são réplicas fidedignas, fotográficas do
mundo. Isso porque a experiência e os sistemas de crenças também influem na maneira
como percebemos tudo à nossa volta, o que torna a percepção um processo construtivo.
Exemplos disso incluem as diferentes atitudes de pessoas religiosas e não religiosas em
relação à natureza, à morte ou à própria vida.

Boa parte da compreensão que hoje se tem a respeito do funcionamento do


cérebro deriva de observações bem conduzidas das alterações de comportamento que se
seguem a lesões cerebrais, uma metodologia de estudo inaugurada por Paul Broca, o pai
da neuropsicologia, no século XIV. Broca ficou famoso pelo pioneirismo no estudo das
afasias, alterações da linguagem causadas por lesões cerebrais. Depois dele, outros
pesquisadores estudando lesões cerebrais mostraram que danos a estruturas específicas
do cérebro levam a déficits neuropsicológicos mais ou menos previsíveis ou
estereotipados. É certo que em diversos transtornos mentais existem alterações
neuropsicológicas associadas a avarias no tecido cerebral, de múltiplas origens. Muitas

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delas ainda não foram suficientemente elucidadas por serem extremamente delicadas ou
sutis e, por estas razões, indetectáveis por nossas tecnologias. Tais alterações
comprometem a elaboração de representações mentais e, por conseguinte, a visão de
mundo e o comportamento daqueles que sofrem destas desagradáveis condições. Por
exemplo, a perspectiva da maternidade pode estar profundamente deturpada em uma
mulher com depressão pós-parto, onde ideias e crenças de ruína e de desesperança
podem, inclusive, colocar em risco a segurança do bebê e da própria mãe. Da mesma
forma, um indivíduo paranoico achará que a maioria das pessoas têm intenções
malévolas em relação a ele e uma mulher sofrendo de anorexia nervosa terá uma
autoimagem corporal incompatível com a realidade.

A neuropsicologia e a psicobiologia são ciências que estudam a mente saudável


ou doente e sua relação com o cérebro ou com o corpo. Elas têm sido valiosas não só
para gerar conhecimento essencial na identificação e classificação de muitas doenças
neurológicas e psiquiátricas, mas também para a compreensão dos mecanismos
neurofisiopatológicos subjacentes a estas condições e para a elaboração de estratégias
terapêuticas mais eficazes na reabilitação dos pacientes que delas sofrem. Graças às
contribuições da pesquisa neuropsicológica e psicobiológica, hoje em dia sabemos que
transtornos como esquizofrenia, depressão e transtorno bipolar costumam cursar com
alterações em diversos domínios cognitivos, as quais podem existir tanto nas fases
agudas quanto nos períodos de remissão destas condições. O autismo é um bom
exemplo de transtorno neuropsiquiátrico em que foram bem documentadas alterações
em um domínio cognitivo específico denominado cognição social, que diz respeito às
operações mentais realizadas pelo cérebro durante o convívio com outras pessoas.
Surpreendentemente, já foram descritos déficits cognitivos muito semelhantes afetando
os parentes mais próximos de pacientes sofrendo não só de autismo, mas também de
outros transtornos neuropsiquiátricos, como a esquizofrenia e os transtornos do humor,
mesmo aqueles que nunca manifestaram sintomas destes transtornos. Achados como
estes inquietam os pesquisadores e os clínicos, que questionam se tais alterações
cognitivas, ao acometerem parentes próximos saudáveis de indivíduos doentes, não
teriam o papel de gerar predisposição à doença em questão. Imagine que, se houver uma
relação entre estilos cognitivos disfuncionais em parentes saudáveis de portadores um
determinado transtorno mental e risco aumentado para o desenvolvimento deste
transtorno, a pesquisa neurocientífica com foco em estratégias de prevenção de

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transtornos mentais em indivíduos vulneráveis poderá auxiliar na diminuição da


ocorrência de casos novos.

Portanto, apesar de ainda estarmos muito longe de compreendermos o


funcionamento do cérebro, o conhecimento atualmente disponível a respeito da
“fisiologia da mente” já permite entendermos melhor a psicobiologia de vários sintomas
psiquiátricos. De fato, atualmente é possível encontrar uma quantidade razoável de
trabalhos científicos publicados em periódicos de impacto científico relevante a respeito
da neuropsicologia dos delírios, as principais alterações do conteúdo do pensamento
desenvolvidas por pacientes sofrendo de esquizofrenia. Muitos destes trabalhos
discutem quais vias neurais podem estar funcionando inadequadamente na produção
destes sintomas. Da mesma forma, muitos pesquisadores têm se ocupado com
metodologias de estudo que permitam compreender de que forma são distorcidas as
representações mentais geradas pelos cérebros de indivíduos severamente deprimidos,
fazendo com que eles tenham as típicas perspectivas pessimistas e niilistas que têm da
vida, das pessoas e do futuro.

Não tenho nenhuma dúvida de que o interesse pela fisiologia do cérebro e da


mente modifica inexoravelmente a maneira como um profissional de saúde mental se
comporta diante do sofrimento psíquico. E também estou certo de que este
conhecimento também esclarece a respeito de como estes profissionais não deveriam se
comportar quando trabalham com seus pacientes. Por exemplo, muitas das pessoas que
atendo me questionam, no momento em que lhes prescrevo um antidepressivo, se não
seria melhor “descobrirmos a causa” de seus sintomas, ao invés de lidarmos com eles
usando remédios. Na verdade, esta não é uma postura exclusiva dos pacientes, mas
também de muitos profissionais da área de saúde que, como os pacientes, creem que
sintomas depressivos ou ansiosos devem ser enfrentados com “força de vontade” e uma
forte motivação para buscar sua “causa”. Tenho visto muitos pacientes encontrando
“causas” para seus sintomas mentais sem melhorar deles. Sinceramente não acredito que
a ignorância a respeito da origem do sofrimento psíquico possa ser a principal razão
deste sofrimento e que seu alívio total e duradouro venha de insights sobre estas causas,
como muitos terapeutas ainda insistem em afirmar (é verdade que saber um pouco a
respeito daquilo que nos faz sofrer ajuda, mas não cura). Fosse assim, por que não
ensinar fisiologia do pâncreas àqueles que sofrem de diabetes como a parte principal de
seu tratamento? Afinal de contas, a causa desta doença encontra-se em uma disfunção

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daquele órgão. Quando uso este tipo de argumento é comum que me perguntem a razão
pela qual comparo o pâncreas – ou a insulina – com a mente. E eu respondo: por que
não? A ciência tem mostrado que a mente é produto da atividade cerebral –
evidentemente com a contribuição de outras partes do corpo – da mesma forma que a
insulina é produto da atividade de células do pâncreas. E, se não fosse produto do
cérebro ou de qualquer outra parte do corpo, seria produto de quê? De alguma estrutura
fora do cérebro? Fora do corpo? Estudar neurofisiologia pode ajudar muito em dilemas
muitas vezes enfrentados pelos psiquiatras e psicólogos não somente a respeito das
doenças mentais, mas também a respeito dos psicotrópicos, cujo uso é visto pelas
pessoas como muito mais potencialmente danoso do que quaisquer outras medicações,
pela razão de serem substâncias que modificam funções mentais. Lembro que não temos
preconceitos apenas em relação aos psicotrópicos, mas também em relação aos doentes
mentais, a quem, muitas vezes delegamos a total responsabilidade por melhorarem de
horríveis transtornos mentais quando nos propomos a buscar “as causas” de seu
sofrimento em momentos em que eles estão em crise, usando o argumento de que esta
atitude lhes proporcionará um alívio mais consistente de suas queixas do que aquele
proporcionado por um antidepressivo ou por um ansiolítico. Isso sem considerar o
próximo argumento contra os remédios, o de que eles causam uma indesejável melhora
“artificial”, afetando a “essência” psíquica do paciente. Será? Vejamos o que nos diz a
neurociência, a neuropsicologia e a psicobiologia.

Antes de começarmos a discutir o papel dos neurônios na criação de


representações mentais, vale a pena apresentar de forma sucinta como nosso sistema
nervoso está organizado anatomicamente. A seguir, tratarei das principais subdivisões
do sistema nervoso, a fim de que possam ser mais bem compreendidos os papeis dos
neurônios de cada uma delas na formação destes mapas, imagens, representações ou
simulações do mundo, as quais estão avariadas nos transtornos psiquiátricos.

Aspectos essenciais da anatomia do sistema nervoso

O sistema nervoso está dividido em sistema nervoso central e sistema nervoso


periférico. O sistema nervoso central é composto pelo cérebro e pela medula e o sistema
nervoso periférico, pelos nervos, gânglios nervosos e pelos órgãos terminais. Os nervos
podem ser vistos como “fios”, que conduzem informações “de fora para dentro” do
sistema nervoso, na forma de percepções visuais, auditivas, tácteis, olfativas e

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gustatórias, e dele “para fora”, na forma de comportamento. Estes “fios” contêm


axônios de neurônios, que são prolongamentos do corpo celular destas células que,
apesar da espessura microscópica, podem ter uma extensão de vários centímetros.

Os órgãos terminais estão situados na periferia do organismo e se enquadram em


dois grupos: o grupo dos órgãos sensoriais, especializados na captação de estímulos
sensoriais (visão, audição, olfato, paladar e tato, por exemplo) e o grupo dos órgãos
efetores, relacionados à contração de músculos (voluntária ou involuntariamente) e à
secreção glandular. O sistema nervoso periférico supre o sistema nervoso central com
informações sobre o meio interno (dentro do corpo) e o meio externo (o ambiente) e
também conduz à periferia os impulsos nervosos provenientes do sistema nervoso
central, a fim de promover toda a gama de fenômenos fisiológicos que podem ser
agrupados sob o termo genérico “comportamento” e que abrangem não apenas a
contração dos músculos que podem ser acionados voluntariamente (eles são chamados
de músculos estriados esqueléticos), quando andamos ou lutamos, por exemplo; mas
também a secreção glandular e a contração da musculatura involuntária presente no
trato gastrintestinal e no coração (estes músculos são chamados, respectivamente, de
músculo liso e estriado cardíaco). O sistema nervoso periférico pode, ainda, ser
subdividido em uma parte somática (que inclui os nervos sensoriais, os quais recebem
informação da pele, músculos e articulações e os nervos motores, que enviam
informação à musculatura estriada esquelética) e uma parte autonômica (que medeia a
sensação e o controle motor das vísceras, sistema cardiovascular e glândulas exócrinas,
através da contração da musculatura lisa e estriada cardíaca).

O sistema nervoso central está dividido em sete partes: a medula espinhal, a


medula oblonga, a ponte, o cerebelo, o mesencéfalo, o diencéfalo e o telencéfalo (ou
hemisférios cerebrais). Excluindo-se a medula espinhal, todas as outras subdivisões são
consideradas partes do cérebro.

A medula espinhal se estende da base do crânio até a primeira vértebra lombar e


um corte transversal dela nos mostra um desenho peculiar, que reflete a organização das
estruturas microscópicas que compõem o tecido nervoso. No sistema nervoso são
descritos dois tipos de substâncias ou matérias: a cinzenta e a branca. A substância
cinzenta é composta de corpos celulares de neurônios e a branca, pelos axônios dos
neurônios. Na medula espinhal a substância cinzenta dispõe-se centralmente e a

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substância branca, perifericamente, ao contrário do que acontece nos hemisférios


cerebrais. A substância cinzenta central medular tem um formato de “H”, composto
pelos cornos anteriores e posteriores da medula. No corno posterior são encontrados
neurônios sensoriais, os quais recebem informação sensorial da periferia. No corno
anterior localizam-se neurônios motores e interneurônios (estes controlam os disparos
dos neurônios motores). A substância branca é composta por tratos ascendentes e
descendentes, que são “caminhos” por onde transitam fibras nervosas que se dirigem
para o cérebro, trazendo informação sensorial (as vias ascendentes) ou para a periferia,
levando informação motora (as vias descendentes). Sua coloração branca se deve à
presença de mielina, um lipídeo que compõe uma bainha em torno dos axônios,
importante na regulação da velocidade de propagação da informação pelos neurônios
através dos impulsos nervosos. Da medula espinhal partem 31 pares de nervos
espinhais, os quais, invariavelmente, têm uma subdivisão sensorial e uma subdivisão
motora. A medula espinhal tem 8 segmentos cervicais, 12 torácicos, 5 lombares e 5
sacrais, de onde emergem os nervos que conduzem as informações sensoriais e motoras
para as respectivas regiões.

A medula ou medula oblonga é uma extensão da medula espinhal e lembra


muito sua estrutura em termos anatômicos e funcionais. Contém grupos neuronais que
regulam a pressão arterial e a respiração e também os primeiros componentes das vias
que medeiam o paladar, a audição, o equilíbrio e o controle dos músculos faciais e do
pescoço. Juntamente da ponte e do mesencéfalo, constitui o tronco cerebral.

Na ponte são encontrados os núcleos pontinos, os quais retransmitem


informação sobre sensação e movimento do córtex ao cerebelo, uma região importante
do cérebro relacionada ao controle dos movimentos, ao aprendizado motor e também a
alguns aspectos da cognição. Aqui também existem grupos neuronais envolvidos no
controle da respiração, paladar e sono.

O mesencéfalo conecta componentes do sistema motor, particularmente o


cerebelo, os gânglios da base e os hemisférios cerebrais e também contém componentes
dos sistemas visual e auditivo, além de vias neurais conectadas aos músculos oculares,
os quais controlam os movimentos dos olhos. No mesencéfalo, mais precisamente na
formação reticular ascendente, também são encontrados núcleos de neurônios
especializados na liberação de substâncias como a dopamina, a noradrenalina e a

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serotonina, que são muito importantes tanto na compreensão das alterações do


funcionamento do cérebro que estão por trás das doenças mentais, quanto do
mecanismo de ação de boa parte das medicações utilizadas no tratamento destas
doenças. Discutiremos com um pouco mais de profundidade a função destes núcleos
mais adiante.

Como já foi dito acima, medula oblonga, ponte e mesencéfalo constituem o


tronco cerebral, cujas funções poderiam ser resumidas da seguinte forma: no tronco
cerebral são coordenadas as sensações que chegam ao pescoço, face e cabeça através de
12 pares de nervos cranianos, bem como são controlados os movimentos destas regiões
do corpo. O tronco é, ainda, a porta de entrada para estímulos auditivos e gustativos e
também conduz informações para o controle do equilíbrio, além de servir de via por
onde transitam sistemas ascendentes e descendentes de informação sensorial e motora,
já que está localizado entre o cérebro e a medula espinhal. O tronco medeia reflexos
autonômicos de regulação da frequência cardíaca, da pressão arterial e dos movimentos
das vísceras do aparelho digestório e ainda contém a formação reticular ascendente, que,
conforme foi afirmado acima, consiste de uma série de grupos neuronais
interconectados que se distribuem por todas as estruturas que compõem o tronco
cerebral. Estes grupos de neurônios recebem um “resumo” da informação sensorial que
chega ao sistema nervoso, regulando, assim a vigília e os níveis de consciência.

O cerebelo contém o maior número de neurônios de todas as partes do sistema


nervoso central, inclusive os hemisférios cerebrais. Contudo, por não apresentar grande
variedade celular, sua circuitaria é razoavelmente entendida. Recebe informação
somatossensorial da medula espinhal (isto é, todas as sensações cuja origem é o próprio
corpo: por exemplo, tato, dor e informações sobre articulações e posição dos membros –
ou propriocepção), informação motora do córtex cerebral através de células dos núcleos
pontinos e informação sobre o equilíbrio dos órgãos vestibulares do ouvido interno. O
cerebelo é importante tanto para manutenção da postura quanto para a coordenação dos
movimentos dos olhos e da cabeça, bem como para o controle motor fino e aprendizado
de tarefas motoras.

O diencéfalo compõe-se de duas grandes subdivisões: tálamo e hipotálamo. O


tálamo é uma importante estação para a transferência da informação sensorial (exceto a
olfatória) dos receptores sensoriais periféricos para regiões de processamento sensorial

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nos hemisférios cerebrais. Grosso modo, o tálamo é responsável por selecionar quais
sensações serão “percebidas”, por permitir que algumas delas cheguem ao córtex e
outras não. Desta forma, o tálamo não funciona apenas como um retransmissor, mas
também como um filtro sensorial. O tálamo também participa da coordenação da
informação motora que chega do cerebelo e dos gânglios da base, transmitindo esta
informação para as regiões dos hemisférios cerebrais envolvidas com a produção de
movimento.

O hipotálamo participa de vários processos essenciais para a manutenção da


homeostase e reprodução, como a regulação do apetite, da sede e do ritmo sexual. Ele
também regula a glândula hipófise e suas secreções, incluindo o controle do
crescimento, da alimentação, da ingestão líquida e do comportamento materno.

Os hemisférios cerebrais (ou telencéfalo) abrangem o córtex cerebral (que é uma


“capa” de substância cinzenta envolvendo toda a superfície dos hemisférios cerebrais), a
substância branca subjacente, os núcleos da base, a amígdala e a formação hipocampal,
que são núcleos de substância cinzenta (portanto, contém corpos celulares de neurônios)
localizados fora do córtex. Lembre-se de que a distribuição das matérias cinzenta e
branca nos hemisférios cerebrais é oposta àquela observada na medula espinhal. Os
hemisférios cerebrais processam informações perceptuais, motoras e cognitivas, além da
emoção. Os dois hemisférios estão conectados por uma estrutura chamada de corpo
caloso e são divididos anatomicamente em quatro lobos: parietal, temporal, frontal e
occipital, cada um com suas sub-regiões funcionais. O córtex do cíngulo circunda toda a
superfície dorsal do corpo caloso e é envolvido na regulação da emoção e da cognição.
A amígdala é um núcleo subcortical com forma de amêndoa, cujo papel é a análise do
significado emocional, motivacional ou aversivo dos estímulos sensoriais; portanto,
uma parte importante dos sistemas sensoriais envia informações à amígdala, que, após
analisá-las, abastece com informações o neocórtex, os gânglios da base, o hipocampo, o
hipotálamo e o tronco cerebral. Através dos outputs enviados ao tronco cerebral, a
amígdala modula as respostas somáticas e viscerais da emoção, as quais, em última
análise, constituem a principal matéria prima para a formação de sentimentos
emocionais, como discutiremos adiante.

O hipocampo tem por incumbência a formação de memórias de longo prazo,


mas não é o local onde estas memórias ficam definitivamente armazenadas, razão pela

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qual uma lesão hipocampal não “apaga” memórias pré-existentes, mas impede a
formação de novas memórias episódicas, como frequentemente observamos em
indivíduos portadores de demências, que se esquecem de coisas que acabaram de
acontecer, mas mantém lembranças de eventos ocorridos há décadas.

Os gânglios da base regulam os movimentos e também contribuem com funções


cognitivas. São compostos pelo núcleo caudado, putamen, globo pálido, núcleo
subtalâmico e substância negra e são as principais estruturas comprometidas, por
exemplo, na doença de Parkinson, cujos sintomas mais conhecidos são de natureza
motora, como os tremores e o andar característico, em passos curtos. Entretanto,
portadores de Doença de Parkinson costumam apresentar sintomas afetando a cognição,
que nesta doença pode ficar dificultada ou “truncada”, da mesma forma que os
movimentos. Pacientes com Parkinson também têm problemas emocionais.

Vista a organização anatômica essencial do sistema nervoso, podemos começar a


discutir a fisiologia dos neurônios, células que representam a unidade funcional do
sistema nervoso, e de seu papel na formação de representações mentais. Também
discutiremos rapidamente sobre as funções das células da glia, outros grupos celulares
presentes no sistema nervoso. Novos aspectos relacionados à anatomia do sistema
nervoso também serão acrescentados a seguir.

Como os neurônios criam as representações mentais

Como vimos, o cérebro é capaz de selecionar, dentre a profusão de sinais que recebe
continuamente, aqueles que provêm de eventos importantes para nossa sobrevivência.
Desta forma, ele organiza a percepção, separando uma parte dela para armazenamento
na memória, a fim de poder utilizá-la como referência futura e utiliza a outra parte para
construção do comportamento. Todo este trabalho é feito por células nervosas
interconectadas de forma organizada, as quais conduzem informações umas às outras se
servindo das propriedades elétricas de suas membranas e também de substâncias
químicas que liberam. O sistema nervoso não é constituído apenas de neurônios. Outros
grupos celulares, denominados conjuntamente de glia, incluem diferentes tipos
celulares, os quais desempenham papéis de suporte e proteção às células neuronais.

14
Neurociência e Psicopatologia

Neurônios

Nosso cérebro tem cerca de 100 bilhões de neurônios e cada um deles está conectado
com milhares de outros neurônios. Imagine, a partir destes números, o quão complexo é
o estudo da resultante de toda a atividade destas células.

Ramón e Cajal, um cientista espanhol, foi quem descobriu, no final do século


XIX e meados do século XX, que os neurônios não estão continuamente ligados, como
em uma rede, mas que existem espaços entre eles, as sinapses, onde a transmissão da
informação ocorre através da ação de substâncias produzidas e liberadas pela célula que
transmite um impulso nervoso em estruturas receptoras localizadas na membrana celular
da célula que recebe a informação. O principal papel dos neurônios é gerar e transmitir
informação para outros neurônios e estas células se organizam em sistemas
especializados em elaborar representações mentais de diversos tipos. O neurônio que
transmite uma informação é denominado de neurônio pré-sináptico e o que a recebe,
neurônio pós-sináptico.

Um neurônio tem 4 regiões morfologicamente distintas: o corpo celular, os


dendritos, os axônios e os terminais pré-sinápticos. Os dendritos recebem sinais de
outros neurônios (pré-sinápticos), o corpo celular é o centro metabólico da célula e
contém o núcleo e as organelas, que poderiam ser comparadas aos “órgãos internos do
neurônio”; o axônio conduz sinais elétricos ou potenciais de ação (um potencial de ação
é um sinal através do qual o neurônio recebe, analisa e conduz a informação) e os
terminais pré-sinápticos são regiões por onde os sinais são transmitidos para outra
célula (pós-sináptica). Os sinais elétricos que caracterizam o potencial de ação fluem em
uma única direção em um neurônio, isto é, dos sítios de recepção – normalmente os
dendritos – para o axônio e seus terminais.

Já vimos que no sistema nervoso central os corpos celulares dos neurônios são
encontrados na substância cinzenta e seus axônios, na substância branca, bem como que
existe uma distribuição diferente das substâncias cinzenta e branca no cérebro e na
medula espinhal. No cérebro, a substância cinzenta é encontrada perifericamente, no
córtex cerebral e em núcleos subcorticais (a amígdala, o hipocampo e os gânglios da
base). Na medula espinhal a substância cinzenta assume o formato de um “H”
circundado pela substância branca.

15
Neurociência e Psicopatologia

Neurônios sensoriais “trazem” informação sensorial da periferia para o sistema


nervoso central e chegam ao neuroeixo através do corno posterior da medula e
neurônios motores “levam” comandos motores do cérebro – mais precisamente do
córtex motor primário – à musculatura esquelética e partem do corno anterior da
medula.

A comunicação entre dois neurônios é feita através das sinapses, que são espaços
ou fendas onde importantes eventos acontecem para que seja possível a transmissão da
informação de uma célula para outra. Nos terminais sinápticos do neurônio pré-
sináptico são encontradas as vesículas sinápticas, reservatórios carregados de
neurotransmissores, como a dopamina, a noradrenalina e a serotonina, os sinalizadores
químicos da informação. Os neurotransmissores são substâncias produzidas dentro dos
neurônios a partir de nutrientes de nossa dieta e liberados para a fenda sináptica em um
processo em que a membrana da vesícula se funde com a membrana celular dos
terminais axônicos. Estas substâncias, quando liberadas para a fenda sináptica, ligam-se
a proteínas receptoras, localizadas na superfície do segundo neurônio, promovendo nele
uma série de efeitos celulares que permitirão a continuidade da propagação da
informação através daquela segunda célula. A maioria dos remédios utilizados em
psiquiatria – e também as drogas de abuso – atuam de forma a alterar as ações celulares
de diferentes neurotransmissores. Por exemplo, os antidepressivos aumentam mais ou
menos seletivamente a quantidade de serotonina, noradrenalina e dopamina na fenda
sináptica, a cocaína e as anfetaminas aumentam a ação da dopamina na fenda sináptica e
os antipsicóticos, fármacos utilizados no tratamento da esquizofrenia e outras psicoses,
bloqueiam a ação da dopamina na fenda sináptica.

Os neurônios podem ser classificados de diversas formas. Do ponto de vista


funcional, eles são categorizados em neurônios sensoriais, neurônios motores e
interneurônios. Os neurônios sensoriais conduzem informações dos órgãos dos sentidos
ao cérebro. Eles trazem informações captadas pelos órgãos dos sentidos para o cérebro,
que fará o trabalho de elaborar percepções e representações mentais, as quais criam
nossa visão de mundo e organizam um comportamento compatível. Os neurônios
motores enviam comandos para os músculos, fazendo-os se mexerem, por exemplo,
quando corremos, lutamos ou falamos. Os interneurônios conectam-se entre outros
neurônios, por exemplo, entre neurônios sensoriais e motores, regulando sua atividade.

16
Neurociência e Psicopatologia

Células da Glia

No sistema nervoso existem de 2 a 10 vezes mais células da glia (ou, simplesmente,


glia) do que neurônios. As células gliais, como também podem ser chamadas,
distribuem-se em torno dos neurônios e são diferentes deles do ponto de vista
morfológico, além de não terem as mesmas propriedades de membrana das células
nervosas. A glia pode ser subdividida em micróglia e macróglia.

A micróglia é composta de células imunes, mobilizadas por antígenos em


situações de lesão, infecção ou doenças degenerativas, tendo propriedades inflamatórias.
Atualmente a inflamação é vista como um importante “vilão” por trás de muitas
condições psiquiátricas; assim, pacientes deprimidos poderiam sofrer de um processo
inflamatório subagudo subvertendo a função cerebral (Anisman e cols., 2005). É
possível que a inflamação do sistema nervoso interfira no adequado processamento da
informação, alterando, por exemplo, processos cognitivos e a regulação das emoções.
Indivíduos obesos também parecem sofrer de processos inflamatórios cerebrais
induzidos por substâncias químicas liberadas pelas células gordurosas, o que produziria
sintomas comumente reportados por estes pacientes e que incluem depressão, alterações
da concentração e, principalmente, alterações da sensação de saciedade ao alimento.

A macróglia compõe 80 % das células cerebrais e é composta por três tipos de


células: os oligodendrócitos, os astrócitos e as células de Schwann. Os oligodendrócitos
e as células de Schwann são pequenas células formadoras de uma bainha, chamada de
bainha de mielina, a qual envolve os axônios dos neurônios. A função da bainha de
mielina (uma substância de natureza lipídica) é aumentar a velocidade de condução do
impulso nervoso e, como já foi dito acima, é ela quem confere a cor esbranquiçada à
substância branca. A diferença é que os oligodendrócitos são encontrados no sistema
nervoso central e as células de Schwann, no sistema nervoso periférico.

Os astrócitos têm um formato de estrela e suas funções, embora ainda não sejam
totalmente esclarecidas, incluem diversas atividades de suporte aos neurônios. Por
exemplo, os astrócitos parecem atuar como verdadeiros “faxineiros”, recolhendo restos
de neurotransmissores depois que estas substâncias são liberadas para a fenda sináptica;
auxiliam na nutrição neuronal e regulam as concentrações iônicas dos espaços
extracelulares, que, como veremos adiante, são essenciais na configuração dos

17
Neurociência e Psicopatologia

potenciais de repouso e de ação, os quais estão por trás da atividade de propagação da


informação do sistema nervoso.

Transmissão da informação entre os neurônios: potenciais de ação e de repouso

Os sinais gerados em um neurônio, importantes para o cumprimento de sua função, são


determinados pelas propriedades elétricas de sua membrana. Toda a célula neuronal
mantém uma diferença de potencial elétrico em seu interior em relação ao exterior
quando está em repouso. Na situação de repouso as cargas elétricas estão dispostas com
negatividade dentro da célula e positividade fora dela, um estado que é garantido pela
ação de bombas iônicas, proteínas de membrana especializadas em bombear íons
(átomos carregados eletricamente) contra uma diferença de concentração. Este estado é
chamado de potencial de repouso. Não fossem as bombas iônicas, as cargas elétricas se
igualariam dentro e fora da célula. A bomba de sódio e potássio bombeia íons sódio
para o meio extracelular e potássio para o meio intracelular, ambos contra diferenças de
concentração que distribuiriam aqueles íons de outro modo, fosse o transporte passivo
de íons o único processo envolvido. O efeito da bomba de sódio e potássio é garantir
que haja mais sódio no meio extracelular e mais potássio no meio intracelular. A
negatividade intracelular é, ainda, proporcionada por proteínas não difusíveis carregadas
negativamente ali presentes. A concentração extracelular de cálcio e cloro no potencial
de repouso também é maior.

Em meio à intensa atividade elétrica do cérebro, sempre haverá neurônios


“ligados” e neurônios “desligados”, jamais sendo encontrados neurônios “meio-ligados”
ou “meio-desligados”. Os neurônios “preferem” estar desligados, isto é, ficar em seu
estado de repouso. Neurônios “ligados” estão trabalhando, isto é, propagando um
potencial de ação e eles iniciam esta atividade após terem recebido um sinal químico de
outro neurônio. Como disse logo acima, o sinal químico é um neurotransmissor liberado
pelo neurônio pré-sináptico que se liga a receptores específicos de membrana no
neurônio pós-sináptico, promovendo abertura de canais iônicos e entrada de cargas
positivas para dentro da célula. É importante lembrar que quando a célula está em
repouso ela está com seu interior repleto de cargas negativas. Quando as cargas
positivas entram para o meio intracelular de um neurônio em repouso através do
acionamento de canais permeáveis a íons, iniciou-se o processo de despolarização
neuronal e o movimento das cargas começa nos dendritos e no corpo celular e só se

18
Neurociência e Psicopatologia

alastrará pelo axônio e terminais axônicos caso haja carga positiva suficiente para este
processo “sensibilizar” uma região da célula situada entre o corpo celular e a
emergência do axônio, denominada cone de implantação ou zona de disparo – o que
normalmente ocorre quando o neurônio é massivamente ou constantemente estimulado
por outros neurônios pré-sinápticos. A zona de disparo é “quem vai decidir” se aquele
neurônio levará o processo de despolarização adiante; ela parece representar, portanto,
uma primeira função neuronal integrativa, ao permitir ou não a ocorrência do sinal de
disparo (ou a propagação daquela informação). Mais precisamente, a chegada de um
potencial excitatório (ou despolarizante) de membrana faz com que haja entrada de
sódio, cálcio e cloro para o meio intracelular e saída de potássio para o meio
extracelular, tornando o meio interno temporariamente positivo. A entrada suficiente de
cargas positivas para o meio extracelular, ao longo do axônio e, finalmente, para os
terminais axônicos, deflagra uma liberação de neurotransmissores das vesículas onde
são armazenados nesta região (as vesículas sinápticas). Lembre-se que imediatamente
após o potencial de ação, as cargas negativas são restabelecidas no interior do neurônio
por ação das bombas iônicas, fazendo com que o neurônio reassuma a condição de
“desligado”. Porém, existem neurotransmissores inibitórios, como o ácido
gamaminobutírico (ou Gaba), que provocam hiperpolarização ou aumento da
negatividade intracelular dos neurônios, impedindo a liberação de neurotransmissores
pela célula pós-sináptica e, consequentemente, a transmissão da informação. Muitos
interneurônios regulam a atividade de outros neurônios inibindo-os através de uma ação
hiperpolarizante.

Efeitos imediatos e tardios da neurotransmissão e regulação da expressão de


neurotransmissores

A ligação de um neurotransmissor com seu receptor na célula pós-sináptica faz com que
ocorram dois efeitos, um imediato e outro mais tardio. O efeito imediato caracteriza-se
pela permissão da entrada de íons para dentro da célula pós-sináptica (promovendo
despolarização/estímulo ou hiperpolarização/inibição) e o efeito tardio se dá sobre o
genoma, isto é, a ativação de um fator de transcrição que pode gerar vários efeitos, entre
eles o aumento ou a diminuição da produção de canais iônicos ou receptores celulares,
aumentando ou diminuindo, respectivamente, a capacidade da membrana de um
neurônio de responder àquele neurotransmissor. Desta forma, o efeito tardio da
neurotransmissão pode, através do estímulo ou do bloqueio da síntese de proteínas

19
Neurociência e Psicopatologia

receptoras, que, em última análise são os “órgãos sensoriais” dos neurônios,


respectivamente, aumentar ou diminuir a capacidade de um neurônio responder a um
estímulo trazido por outros neurônios. Sabemos, por exemplo, que havendo uma
pequena quantidade de um neurotransmissor na fenda sináptica, ocorre um mecanismo
de favorecimento da síntese de proteínas componentes dos receptores dos
neurotransmissores, o qual promove tanto o aumento da quantidade de receptores
daquele neurotransmissor ou de sua expressão (um fenômeno denominado de
“regulação para cima” ou up-regulation de receptores), como da capacidade do receptor
de responder ao neurotransmissor, a fim de que não haja prejuízos na propagação da
informação. Acredita-se que na depressão aconteça algo parecido: a carência de aminas
cerebrais (dopamina, noradrenalina e serotonina) na fenda sináptica acabe por
determinar um estado de regulação para cima dos receptores celulares para estas
substâncias. Isso, por si, não seria um problema, não fosse o fato de que também são
regulados para cima receptores específicos denominados de autorreceptores, localizados
na célula pré-sináptica, cuja função é inibir a produção de monoaminas por esta célula.
Quando os autorreceptores estão ligados a monoaminas, eles enviam sinais à célula, que
“entende” que há quantidade suficiente destas substâncias na fenda sináptica e que,
portanto, não precisa liberar mais. Se há regulação para cima de autorreceptores, a
“eficiência” deste mecanismo de interrupção de liberação de monoaminas aumenta.
Lembre-se de que na depressão já existe pouco neurotransmissor na fenda, portanto,
aumentar a eficiência do mecanismo de diminuição da liberação destas substâncias só
piora o problema. Os antidepressivos entram em ação bloqueando outras proteínas
localizadas na membrana pré-sináptica, denominadas de bombas de recaptação de
monoaminas. Quando bloqueadas, estas bombas deixam de retirar os excedentes de
monoaminas da fenda, aumentando seu tempo de ação, o que acaba por reverter a
regulação para cima dos autorreceptores.

Voltemos aos neurônios. Tendo em vista que eles são células com propriedades
de membrana que permitem a propagação de um impulso elétrico que, em última
análise, conduz uma informação, identificamos nestas células quatro regiões funcionais.
Uma zona de input, representada pelos dendritos, os quais recebem a informação de
outros neurônios; uma zona integrativa, representada pelo cone de implantação ou zona
de disparo, a qual delibera se uma informação vai ou não ser “levada adiante” na
dependência do quanto o neurônio em questão é “provocado” por outros neurônios; uma

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Neurociência e Psicopatologia

zona condutiva, o axônio, e uma zona de output, representada pelos terminais


sinápticos, onde acontece a “fase química” da transmissão da informação.

O trabalho dos neurônios

De que forma a atividade dos neurônios gera representações mentais? Este é um


dos pontos de maior controvérsia em neurociência e em filosofia e muitos pesquisadores
acreditam que esta pergunta jamais poderá ser completamente respondida. Mas é
possível esboçar algumas respostas preliminares, as quais exigem a compreensão de
mais alguns aspectos da fisiologia destas células. Neurônios têm diferentes funções no
sistema nervoso e isso se reflete funcionalmente pela disposição de algumas destas
células dispararem (entrarem no estado “ligado”) frente a alguns estímulos e não a
outros. Portanto, existem populações de neurônios que ficam mais ativos diante de tipos
bem específicos de estímulos, por exemplo, estímulos visuais, tácteis ou auditivos.
Todavia, este tipo de “especialização” parece ir além das meras modalidades sensoriais,
existindo neurônios sensíveis a diferentes domínios de uma modalidade sensorial.
Considere a visão, o sentido mais bem estudado na neurociência: neurônios do córtex
visual primário, que fica localizado no lobo occipital, parecem se especializar no
processamento de um único domínio sensorial visual, seja cor, forma ou movimento.
Isto significa que neurônios especializados em cor ficam ativos diante de um estímulo
colorido, neurônios especializados em formas ficam ativos quando confrontados com
diferentes formatos das coisas e neurônios especializados em movimento ficam ativos
quando há coisas se mexendo. Informações mais simples, decodificadas por neurônios
especializados em ficarem ativos por elas, serão integradas com outras informações da
mesma modalidade sensorial em níveis corticais hierarquicamente superiores e
completamente transformadas em percepções nos córtices associativos, onde ocorre um
nível muito sofisticado de integração da informação com diferentes modalidades
sensoriais, bem como com material emocional e mnêmico, dando origem a
representações mais elaboradas. Assim, neurônios de uma região específica do córtex
associativo temporal, o sulco temporal superior, uma área onde há maior integração de
várias modalidades sensoriais na elaboração de representações de faces humanas,
parecem ficar mais ativos quando estimulados por uma ou por outra região de um rosto.
A especialização parece acontecer dentro de uma área associativa: existem neurônios
que disparam frente à observação da região dos olhos e adjacências de outras pessoas e
neurônios mais especializados e sensíveis à região da boca. Não obstante, já foi

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Neurociência e Psicopatologia

sugerido que alguns neurônios responderiam a categorias gnósticas de alta


complexidade, como os populares e controversos “neurônios da avó” (grandmothers
cells), que só entrariam em atividade mediante a visão da avó do indivíduo, mas este
suposto e sofisticadíssimo nível de integração é questionável.

Mais alguns exemplos: neurônios localizados no córtex pré-motor disparam


especificamente mediante a observação de outras pessoas executando determinadas
ações, como agarrar, puxar, alcançar, mas não à observação de ações motoras mais
ordinárias. Estes neurônios são chamados de neurônios espelho e eles estão envolvidos
na elaboração de representações mentais das ações de outras pessoas, as quais nos
permitem compreender o sentido de determinados movimentos corporais dos outros e,
portanto, de suas intenções. Estas representações mentais são importantes na
configuração de nossas capacidades cognitivas sociais. Outros neurônios do córtex pré-
motor, denominados neurônios canônicos, geram representações de “oportunidades de
manipulação” que diferentes objetos, como canetas, xícaras raquetes nos proporcionam.
Como discutiremos adiante, estes neurônios transformam informação sensorial em
intenções de ação.

Neurônios do córtex pré-frontal têm um padrão de disparo cujas características


nos permitem compreender a que funções eles servem. Eles ficam particularmente
ativos em tarefas denominadas tarefas de resposta atrasada (ou, em inglês, delayed
response tasks), em que um determinado cenário é mostrado a um sujeito experimental
– seja ele um ser humano, seja um animal – do qual uma informação será solicitada
após um breve período em que este cenário é retirado do campo visual do sujeito. Um
cenário comum mostrado a macacos experimentais é o de dois recipientes em que num
deles é deixado um alimento, que estará disponível somente após aquele breve período
de tempo em que este cenário ficará inacessível visualmente. O desempenho desejável
neste tipo de teste exige que seja mantida na memória uma informação relevante (a
localização do alimento) durante o período em que ela não está sensorialmente
disponível. Neurônios do córtex pré-frontal ficam particularmente ativos durante o
intervalo de tempo entre a supressão da informação e sua disponibilização, como que
garantindo que ela permaneça acessível na mente para guiar o comportamento,
concluídas as condições de obstáculo sensorial. O trabalho destes neurônios pré-frontais
configura o que é chamado em neuropsicologia de memória de trabalho, isto é, um tipo
de memória altamente volátil, cuja principal utilidade é manter uma informação na

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Neurociência e Psicopatologia

mente a fim de que seja realizada uma tarefa, como anotar um número de telefone que
nos é ditado. No cenário experimental exemplificado acima, até que se possa ter acesso
ao alimento. A memória de trabalho, portanto, permite a sustentação, a manipulação e o
processamento da informação, mas de forma temporária. Assim, as representações
mentais da memória do trabalho abrangem “mapas” ou “cópias” mentais de coisas que
já estiveram disponíveis em um momento imediatamente anterior, não estão agora, mas
precisam ocupar nossa mente até que finalizemos a resolução de um problema no qual
estamos concentrados e que envolve o uso destas cópias. Depois disso, elas
desaparecem. Estas representações têm duração efêmera, e, como disse acima,
representam um tipo de memória de curta duração que é completamente diferente das
memórias de longa duração, como a memória episódica, a memória semântica e a
memória procedural, cujos aspectos representacionais são processados por outros
neurônios. William James, o pai da psicologia americana, definiu as memórias de longa
duração como lembranças de estados mentais experimentados no passado. Esta é uma
diferença fundamental entre a memória de trabalho e as memórias de longa duração:
representações geradas pela memória de trabalho são descartadas após terem sido
utilizadas e não são recobráveis, ao passo que as representações das memórias de longo
prazo são reativáveis voluntariamente, na medida em que elas estão associadas a um
traço mnêmico duradouro. Além disso, a memória de trabalho é altamente restrita em
termos de capacidade de armazenagem, enquanto a memória de longo prazo parece ter
uma capacidade ilimitada. Os neurônios que processam a memória de trabalho parecem
ser especializados em informações verbais, espaciais ou em informações a respeito de
objetos; alem disso, existem neurônios especializados em promover a repetição
daquelas representações enquanto precisamos delas. Os neurônios especializados em
material verbal parecem se dividir em duas categorias, alguns processam conhecimento
fonológico, isto é, grosso modo, geram imagens de coisas a partir de sons (mas também
codificam conceitos no caso de representações menos fenomenais), outros neurônios
são responsáveis por ficar repetindo aquela informação enquanto ela ainda for
necessária. Os neurônios do subsistema visuoespacial da memória de trabalho lidam
com a criação de imagens a respeito de objetos e de sua localização espacial. Também é
possível que existam neurônios da memória de trabalho especializados em objetos e
neurônios especializados em posição no espaço. É importante acrescentar que os
sistemas constituintes da memória de trabalho estão localizados em diversas regiões do
cérebro: por exemplo, os neurônios responsáveis pelo processamento de material verbal

23
Neurociência e Psicopatologia

localizam-se nos córtices parietais posteriores e os repetidores de informação


dependem, pelo menos em parte, de processos articulatórios localizados na área de
Broca. Já os neurônios visuomotores da memória de trabalho estão distribuídos nos
córtices parietal, temporal, frontal e pré-motor.

Diversos transtornos psiquiátricos podem causar comprometimento das


representações mentais geradas pela memória de trabalho. É, inclusive, possível afirmar
que todos eles podem comprometer esta função, ao menos em momentos em que os
sintomas psicológicos são mais severos. Por exemplo, pacientes gravemente deprimidos
e ansiosos costumam se queixar de que facilmente se esquecem de coisas triviais ou de
que têm muita dificuldade em se concentrar para resolverem os menores problemas. Da
mesma forma, indivíduos sofrendo de esquizofrenia ou de transtorno de déficit de
atenção e hiperatividade (ou TDAH) também têm problemas na memória de trabalho.
Juntamente de outras funções cognitivas, como a atenção, a inibição cortical, o
planejamento e a seleção de estímulos relevantes e irrelevantes, a memória de trabalho
faz parte de um grupo de processos cognitivos chamado de funções executivas, as quais
costumam estar comprometidas, portanto, em diversas doenças mentais.

Os neurônios do córtex cerebral estão organizados de uma forma peculiar, o que


aumenta a capacidade computacional do cérebro e, consequentemente, sua capacidade
representacional. O neocórtex, ou a parte filogeneticamente mais recente do córtex
cerebral, mais desenvolvida nos primatas antropoides e mais ainda nos seres humanos, é
organizado em camadas neuronais. A primeira camada, contada a partir da superfície
pial (a parte mais externa do córtex, revestida pela pia mater, uma das membranas que
constituem as meninges, membranas que revestem o cérebro), é chamada de camada
molecular e contém principalmente dendritos e axônios de outras camadas. A segunda
camada contém pequenos neurônios de forma esférica e de forma piramidal e é
chamada de camada granular externa. A terceira camada, a camada piramidal externa,
é composta essencialmente por neurônios com formato piramidal, um pouco maiores do
que os neurônios piramidais da camada anterior, embora contenha poucas células
esféricas. A quarta camada contém apenas neurônios esféricos e por isso é conhecida
como córtex granular, apesar de também ser chamada de camada granular interna. A
quinta camada é formada por grandes neurônios piramidais e recebe o nome de camada
piramidal interna. A sexta camada tem uma população celular heterogênea e por esta
razão é conhecida como camada multiforme. É interessante que diferentes regiões

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Neurociência e Psicopatologia

funcionais do cérebro apresentam camadas corticais mais ou menos proeminentes. Por


exemplo, o córtex motor primário tem uma camada piramidal interna mais acentuada
em relação às demais e os córtices sensoriais primários têm o córtex granular mais
saliente. Isso nos diz muito a respeito do trabalho executado pelas populações celulares
que compõem cada camada. Portanto, as células esféricas que caracterizam as camadas
moleculares têm um papel predominantemente receptivo, sensorial, e as células
piramidais das camadas piramidais, um caráter mais efetor, motor, por assim dizer. O
que poderíamos esperar do arranjo citoarquitetônico de uma área cerebral associativa,
como o córtex pré-frontal, levando em conta o fato de que áreas associativas processam
informação não essencialmente motora ou sensorial? Que em áreas como estas
encontraríamos um córtex em que haveria proeminência da camada contendo tanto
células receptivas (esféricas) quanto células efetoras (piramidais), isto é, a terceira
camada, ou camada piramidal externa.

Um anatomista alemão chamado Korbinian Brodmann mapeou o cérebro em 47


áreas distintas do ponto de vista citoarquitetônico, que hoje são denominadas áreas de
Brodmann. Assim, o córtex motor primário ou M1 (a área cortical de onde “partem” as
fibras neuronais que “acionam” os músculos voluntários) é a área 4 de Brodmann, o
córtex somatossensorial primário (a área cortical para onde convergem as fibras que
“trazem” informações sobre o tato e sobre a propriocepção ou sensações do próprio
corpo) é a área 3 de Brodmann (apesar desta região funcional do córtex também
abranger as áreas 1 e 2 de Brodmann), a área de Broca (relacionada à fala) abrange as
áreas 44 e 45 de Brodmann, a área de Wernicke (relacionada à compreensão do
significado das palavras), as áreas 39 e 40 de Brodmann e o córtex visual primário é
representado pela área 17 de Brodmann, por exemplo.

Como foi dito mais acima, no cérebro existem áreas de substância cinzenta que
estão localizadas fora do córtex, onde os neurônios se organizam em núcleos na
substância branca subcortical, chamados de núcleos subcorticais, os quais têm uma
organização citoarquitetônica característica (lembre-se de que os corpos celulares dos
neurônios estão localizados na substância cinzenta e seus axônios na substância branca)
e que incluem a amígdala, o hipocampo e os gânglios da base (os quais, por sua vez, são
compostos pelo globo pálido, pelo núcleo lentiforme e pelo núcleo caudado). As
funções destes núcleos abrangem, respectivamente e de maneira sintética, a análise do
significado emocional e/ou motivacional dos estímulos ambientais, a consolidação da

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Neurociência e Psicopatologia

memória de curto prazo em memória de longo prazo e a regulação do movimento e


funções cognitivas.

A amígdala é altamente sensível a quaisquer sinais ambientais de perigo e


recompensa e parece “percebê-los” muito antes de termos plena consciência de que
estamos diante perigo ou de uma oportunidade de recompensa. Alguns neurônios da
amígdala são os primeiros a “perceber” pistas ambientais de risco ou de recompensa e
dão início a respostas do organismo para reagir prontamente a ameaças ou
oportunidades hedônicas antes mesmo que tenhamos consciência delas. Seres humanos
obtêm informações relevantes para sua sobrevivência a partir da contínua observação e
do escrutínio das emoções de outros seres humanos. De fato, somos muito competentes
para, muito rápida e espontaneamente, interpretarmos o significado emocional de
diversas expressões faciais das pessoas ao redor, mesmo as mais sutis. Lembre-se de
que existem neurônios especializados em analisar partes específicas da face humana e
saem do estado “desligado” diante de mínimas mudanças na configuração destas partes
do rosto das pessoas. Neurônios da amígdala detectam primeiro as expressões faciais de
medo em pessoas que estão à nossa volta, por exemplo. Perceber que alguém está
amedrontado pode significar que há algo perigoso ao redor; assim, certos neurônios da
amígdala ficam muito ativos diante da presença de alguém com medo, colaborando para
a deflagração de alterações do ritmo cardíaco, da pressão sanguínea e da respiração, que
preparam nosso corpo para enfrentar uma eventual ameaça. Um aspecto interessante
disso tudo é que, ao contrário do que diz nossa experiência subjetiva, não ficamos com
medo só depois de percebermos conscientemente que alguém muito próximo está
apavorado, ou seja, nossa reação de medo não é uma consequência da constatação de
perigo, mas ela resulta das alterações físicas que se seguem à percepção inconsciente do
perigo por neurônios da amígdala. Só temos consciência do medo quando certos
neurônios da amígdala já detectaram pistas de perigo há algum tempo e acionaram
respostas em nosso corpo, preparando-nos para a luta ou para a fuga. Da mesma forma,
não temos medo somente depois de termos visto uma serpente – ou quando temos
consciência de ter visto uma – porque muito antes de termos consciência de que a
vimos, aqueles neurônios da amígdala já a tinham “visto” e acionado respostas
corporais que, em última análise, são a “matéria prima” para a emoção medo. Só depois
disso é que teremos consciência de estarmos com medo da serpente. Sentir medo e todo
o arsenal de pensamentos que ele determina é o resultado do tratamento que o córtex

26
Neurociência e Psicopatologia

cerebral dá àquela emoção, que, em última análise, pode ser definida como “construída”
a partir dos sinais da periferia, como aumento dos batimentos cardíacos, da pressão e da
frequência respiratória, que chegam ao cérebro. A conscientização de uma emoção –
também chamada de sentimento emocional – é a resultante do trabalho cortical de
criação de representações mentais carregadas cognitivamente.

Muitos transtornos ansiosos, como a fobia social, uma condição em que os


pacientes têm desconforto social incapacitante em razão de temores exagerados de
serem avaliados negativamente pelos outros, parecem resultar de disfunção na amígdala.
Estes aspectos do papel da amígdala no processamento emocional põem em xeque
nossas crenças a respeito de como funciona a mente, pois intuitivamente acreditamos
que temos o pleno poder de controlar emoções através da razão. Esta psicologia
intuitiva da mente abrange uma ideia de que as emoções se sucedem ao pensamento, ou
a eles estão submissas, quando na verdade parece que são nossas emoções que
configuram nossos pensamentos, pelo menos em princípio. Este é o dilema de muitos
pacientes ansiosos que, por conta de hiperatividade de alguns neurônios da amígdala,
não conseguem mudar determinados pensamentos e perspectivas a respeito das outras
pessoas, que por eles são vistas como exageradamente críticas ou interessadas nos erros
e defeitos dos outros e, portanto, estariam sempre prontas para criticá-los. No caso dos
fóbicos sociais, é possível que neurônios da amígdala, responsáveis por elaborar
representações mentais das expressões faciais das outras pessoas, hiperdetectem nelas
sinais de hostilidade ou de má vontade; enfim, de quaisquer estados mentais que possam
favorecer ou confirmar os temores que estes pacientes têm de estarem continuamente
sendo mal avaliados. Problemas no tratamento emocional de estímulos externos pela
amígdala parecem também explicar a razão pela qual as perspectivas de mundo de
portadores de outros transtornos ansiosos além da fobia social estejam tão avariadas.
Pessoas que sofrem de transtorno de ansiedade generalizada (ou TAG) veem o mundo
como um local ameaçador, perigoso, onde eventos catastróficos estão por acontecer a
todo o momento.

Falamos logo acima que, ao contrário da memória de trabalho, as memórias de


longo prazo podem ser reativadas voluntariamente porque elas estão associadas a um
traço duradouro de memória. Para que isso aconteça, é preciso que informações da
memória de trabalho sejam “transferidas” dela para a memória de longo prazo. Os
estudos de lesão cerebral mostram que quem faz isso é o hipocampo, pois indivíduos

27
Neurociência e Psicopatologia

com injúrias a esta região do cérebro passam a não conseguir reter informações de longo
prazo após a lesão, embora retenham as lembranças de longo prazo que tinham antes
dela. Mas a expressão “memória de longo prazo” é muito genérica e, embora nos faça
pensar em lembranças de passagens de nossa vida (um tipo de memória chamada de
memória autobiográfica), ela envolve uma série de processos mnêmicos distintos. De
fato, memórias de longo prazo podem ser adquiridas com e sem grande participação da
consciência. As primeiras incluem memórias chamadas de explícitas e elas podem,
ainda, ser subdivididas em memórias episódicas e memórias semânticas; as últimas são
chamadas conjuntamente de memórias implícitas. Memórias episódicas são nossas
memórias sobre experiências pessoais e também podem ser chamadas de memórias
autobiográficas e memórias semânticas dizem respeito ao armazenamento de conceitos
e significados. Quando nos lembramos de fatos que aconteceram durante os anos em
que vivemos junto de nossos avós, por exemplo, utilizamos a memória episódica e
quando refletimos sobre o conceito de mortalidade, recrutamos nossa memória
semântica. Apesar de estudos de lesão cerebral sugerirem que as memórias de longo
prazo dependam da integridade de processamento de neurônios dos lobos temporais
mediais, região onde está localizado o hipocampo, sabe-se também que pacientes com
lesões de estruturas localizadas nesta região não perdem memórias adquiridas
previamente à lesão. Qualquer pessoa que já tenha convivido com alguém apresentando
uma demência do tipo Alzheimer, em que há prejuízos na formação de novas memórias
por processos acometendo o adequado funcionamento de neurônios hipocampais, sabe
que esta pessoa se esquece de fatos recentes, como o que comeu na hora do almoço, mas
não perde a capacidade de se lembrar de coisas que aconteceram há muito tempo, como
a cerimônia de seu casamento. Isso sugere que não haja uma “central de
armazenamento” de memórias de longo prazo; ao contrário, elas são amplamente
distribuídas entre diversas regiões do córtex cerebral.

Memórias implícitas, por sua vez, são adquiridas sem esforço consciente e
servem para guiar nosso comportamento de forma inconsciente. Elas não são
comprometidas por lesões da parte medial do lobo temporal. Existem diversos tipos de
memórias implícitas. O priming é um deles e consiste na influência provocada pela
exposição prévia a um estímulo na resposta a outros estímulos. Os primeiros
experimentos com priming utilizaram como paradigma experimental o reconhecimento
de palavras após exposição a outras palavras, de forma que reconhecemos muito mais

28
Neurociência e Psicopatologia

rapidamente a palavra “rato” quando ela é precedida da palavra “gato” do que quando
ela é precedida da palavra “ambulância” ou, após a exposição à palavra “comida”,
completemos a sequência de letras e espaços “s_p_” como “sopa” e após a exposição à
palavra “animal” a completemos como “sapo”. A explicação do fenômeno priming
baseia-se no modelo de redes semânticas. Segundo ele, conceitos ou representações
mentais de palavras estão organizados como “nodos” ou “estações” em uma rede
semântica, onde conceitos muito relacionados (ou conceitos proximais), como “rato” e
“gato” estão mais próximos uns dos outros do que conceitos menos relacionados (ou
conceitos distais), como “gato” ou “rato” e “queijo”. A presença de um priming ativa a
rede semântica fazendo com que as estações mais próximas dele sejam ativadas antes
das mais distantes. O comprometimento deste tipo de memória pode estar associado ao
aparecimento de sintomas psicóticos em indivíduos vulneráveis, em razão de ativação
anômala de conceitos muito distais, o que pode gerar associações espúrias entre
significados e comprometimento da interpretação da realidade. Neurônios processando a
memória implícita do tipo priming funcionariam como máquinas de busca mental,
procurando por conceitos mais pertinentemente associados aos estímulos com os quais
nos deparamos em um determinado momento, permitindo assim o uso adaptativo das
informações previamente adquiridas para as tomadas de decisão naquele instante. O
priming, portanto, tem um papel muito importante na maneira como nos comportamos
no dia a dia e, consequentemente, em nossas decisões, porque ele não se restringe
apenas a palavras e conceitos, mas também a ideias e a emoções, sendo capazes de
“preparar” ou “conduzir” nossos próximos pensamentos e tomadas de decisão. Tendo
em mente que estrategistas de marketing já conhecem e estudaram bem o fenômeno,
imagine o quanto de efeito priming não pode, muitas vezes, ter pautado a maneira como
você gastou seu dinheiro. O fenômeno do priming parece não se restringir à ativação de
conceitos e de pensamentos, mas também de emoções e até de comportamentos, isto é,
algumas de nossas ações e emoções podem ser “formatadas” por determinados eventos,
um processo do qual na maioria das vezes não temos a menor consciência. Assim, a
mera visualização do logotipo de uma famosa cadeia de restaurantes pode deflagrar um
forte desejo por consumir um dos calóricos pratos ali oferecidos, bem como a mera
exposição prévia a conceitos associados à terceira idade, pode fazer com que você se
movimente mais lentamente do que o habitual, da mesma forma que uma pessoa idosa
(Kahnemann, 2011). O fenômeno do priming parece influenciar o gerenciamento de
representações mentais através da procura por um contexto por onde representar,

29
Neurociência e Psicopatologia

favorecendo uma atividade representacional adequada às necessidades de um dado


momento. Além do priming, existem outras formas de memória e de aprendizado
implícito, como os fenômenos de habituação, sensibilização e condicionamento.
Habituação e sensibilização são consideradas memórias implícitas não associativas, pois
envolvem o aprendizado das propriedades de um único estímulo. O aprendizado
associativo, por sua vez, abrange o aprendizado sobre as relações entre dois estímulos
ou entre um estímulo e um comportamento. A habituação é a forma mais simples de
aprendizado implícito e ocorre quando aprendemos a ignorar um estímulo identificado
como neutro. Ela se baseia por diminuição da eficiência sináptica nas vias neurais
envolvidas na interpretação daquele estímulo. A sensibilização, também denominada
pseudocondicionamento, ocorre, por exemplo, quando somos expostos a um estímulo
nocivo e passamos a responder de forma mais vigorosa não apenas àquele estímulo
nocivo, mas até mesmo a estímulos neutros. O aumento da eficiência sináptica está por
trás da sensibilização. No condicionamento clássico animais experimentais aprendem
sobre as relações entre dois eventos e sua essência consiste no pareamento de dois
estímulos, um condicionado e outro não condicionado, fazendo que respostas
comportamentais que não apareceriam mediante a apresentação do estímulo
condicionado isoladamente passem a acontecer. Estímulos não condicionados não
exigem aprendizado de respostas comportamentais, pois as reações a eles são inatas. Por
exemplo, temos respostas inatas à dor, como comportamentos de esquiva a estímulos
nocivos, e à fome, como a salivação mediante à exposição a alimentos. Estímulos
condicionados não costumam provocar comportamentos, a não ser quando pareados
com estímulos não condicionados, através do condicionamento. Por isso que, por
exemplo, cães condicionados pelo pareamento de um som (um estímulo condicionado)
e de alimento (um estímulo não condicionado), salivam quando só de ouvir aquele som.
No condicionamento operante animais experimentais aprendem sobre a relação entre
seus comportamentos e suas consequências. Em experimentos com este tipo de
aprendizado, um animal faminto é deixado em um recinto onde é possível que receba
alimento através de uma ação que precisa ser aprendida, por exemplo, acionar uma
alavanca. O aprendizado se dá através da atividade comportamental aleatória daquele
animal no recinto, a qual primeiramente inclui o acionamento acidental da alavanca,
com o consequente acesso ao alimento. A partir daí o animal passa a acionar a alavanca
sempre que está com fome, em uma taxa maior que a esperada se esta ação fosse
puramente espontânea. Mais adiante discutiremos um pouco mais sobre

30
Neurociência e Psicopatologia

comportamentos condicionados e em que situações condicionamentos acidentais podem


explicar alguns sintomas psicopatológicos.

Neurônios agrupados em núcleos da formação reticular ascendente do


mesencéfalo, dos quais já falamos no início desta seção, liberam neurotransmissores
como a dopamina, a serotonina e a noradrenalina e influenciam a motivação, as
emoções e a memória, afetando assim a formação de representações mentais. Estes
neurônios não desempenham funções propriamente sensoriais ou motoras, seu trabalho
é o de regular os níveis de atenção e de vigília, domínios mentais que ficam muito
comprometidos em pacientes com lesões desta região do cérebro. Quando estamos
muito motivados, a dopamina liberada por neurônios destes núcleos em regiões do
sistema límbico e do córtex cerebral opera aumentando a atenção e a eficiência
cognitiva para buscarmos aquilo que queremos ou precisamos. Estados motivacionais
como a fome e a sede estão relacionados ao aumento do trabalho dos neurônios
dopaminérgicos mesencefálicos e são capazes de alterar drasticamente nossa visão de
mundo pelo menos até saciarmos estas necessidades fisiológicas. Lembre-se de como
fica sua mente quando você está com sede ou com muita fome: em que você pensa,
presta atenção ou o que você procura? Estados motivacionais modificam, portanto,
nossas representações mentais temporariamente (e consequentemente, nosso
comportamento); o mundo visto com fome ou com sede é completamente diferente do
mundo apreciado quando temos nossas principais demandas fisiológicas saciadas.
Transtornos por uso de substâncias ou dependências comportamentais como o jogo
patológico, o comprar patológico e até mesmo o comer compulsivo são condições
clínicas em que estes sistemas dopaminérgicos de regulação da motivação são
cooptados, respectivamente, por substâncias químicas ou por comportamentos aditivos,
fazendo com que substâncias ou comportamentos adquiram “saliência” para um
indivíduo, isto é, eles assumem um caráter daquilo que é mais importante para ele.
Drogas de abuso e comportamentos aditivos passam, então, a dominar a mente do
dependente, comprometendo severamente outras esferas de sua vida. Condições como
estas modificam as representações mentais de prazer e de desprazer, gerando cópias ou
mapas mentais disfuncionais do mundo que, mais cedo ou mais tarde, inexoravelmente
colocarão o sujeito em sérios apuros.

Boa parte das substâncias utilizadas no tratamento de diversas condições


psiquiátricas como a esquizofrenia, a depressão e a ansiedade agem aumentando ou

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Neurociência e Psicopatologia

diminuindo a atividade dos neurônios daqueles núcleos mesencefálicos. Por exemplo,


drogas antipsicóticas utilizadas no tratamento da esquizofrenia diminuem a
hiperatividade de neurônios dopaminérgicos de uma das vias dopaminérgicas do
mesencéfalo denominada via mesolímbica, hiperatividade esta que provoca surgimento
de sintomas como delírios e alucinações, característicos da doença, a respeito dos quais
discutiremos mais detalhadamente quando abordarmos os mecanismos neurais de
formação de crenças. A hiperatividade dos neurônios dopaminérgicos mesolímbicos
parece deturpar as representações mentais de alguns indivíduos fazendo com que eles
desenvolvam um tipo de saliência diferente daquela causada por substâncias químicas
em dependentes químicos. Trata-se aqui de uma saliência aberrante (Kapur e cols,
2005), em que eventos corriqueiros passam a ser vivenciados com um caráter de
novidade, devido à excessiva alocação de atenção a eles proporcionada pela atividade
dopaminérgica exacerbada. Muitos portadores de esquizofrenia percebem eventos
ordinários como carregados de significado ou de “sinais premonitórios”, normalmente
de que coisas ruins estão para acontecer ao sujeito. Estes pacientes podem ficar muito
agitados diante do ruído mais alto de um automóvel que passa na rua, ao interpretarem
que ele significa o anúncio de sua morte. Um paciente esquizofrênico em surto pode, ao
ouvir o barulho de fogos de artifício, ter certeza de que eles foram utilizados
malevolamente na comemoração de seu sofrimento pelos vizinhos. Outro pode acreditar
que as palavras ditas pelo apresentador do telejornal da noite são referências diretas à
sua pessoa.

Ao bloquearem a atividade anômala da dopamina na via dopaminérgica


mesolímbica, os antipsicóticos ajudam a aliviar este tipo de experiência, que, quase
invariavelmente leva à formação de outros sintomas muito comuns na esquizofrenia: os
delírios. Delírios são falsas crenças resistentes à argumentação lógica e, do ponto de
vista neuropsicológico, são “racionalizações” dadas pela mente frente à experiência da
saliência aberrante e serviriam como um “alívio explicativo” para ela (Corlett e cols.,
2010). Substâncias como as anfetaminas ou a cocaína podem, através de seu papel de
estimulante da ação da dopamina, induzir saliência aberrante em algumas pessoas, as
quais podem desenvolver pensamentos muito parecidos com os de esquizofrênicos em
surto. Os antidepressivos, por sua vez, exercem sua ação contra a depressão aumentando
a atividade dos neurônios serotoninérgicos, dopaminérgicos e noradrenérgicos destes
núcleos mesencefálicos, de forma mais ou menos seletiva, corrigindo a propensão à

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Neurociência e Psicopatologia

produção de representações carregadas de culpa, menos-valia e desesperança,


características dos deprimidos.

Uma grande parte dos remédios utilizados em psiquiatria age nestes sistemas de
transmissão localizados nos agrupamentos celulares mais ou menos definidos do
mesencéfalo, corrigindo disfunções no trabalho de neurônios responsáveis por controlar
os níveis de atenção e de vigília, as quais comprometem a qualidade das representações
mentais em pessoas sofrendo de doenças mentais. Por conseguinte, ao contrário do que
muitas pessoas imaginam, os remédios que prescrevemos não “criam” novas
representações, apenas devolvem a capacidade que aquelas células já tiveram, de
elaborarem imagens e mapas mentais mais funcionais e, portanto, perspectivas mais
realistas do mundo e das pessoas.

Nossa atividade mental e nosso pensamento são construídos a partir da potente


atividade representacional dos neurônios do cérebro, configuradas utilizando
ingredientes sensoriais, emocionais, mnêmicos e cognitivos, favorecendo uma
navegação segura e saudável pelo mundo. Portanto, quaisquer avarias no tecido cerebral
poderão trazer problemas na criação destas importantes bússolas, através das quais
navegamos pelo mundo. Transtornos mentais afetam esta intensa atividade
representacional através de processos ainda pouco compreendidos e atualmente
dispomos de recursos farmacológicos e psicoterapêuticos para corrigir pelo menos uma
parte destes problemas. Antes de começarmos a discutir as doenças do pensamento, vale
a pena olharmos com um pouco mais de cuidado as formas através das quais o cérebro
organiza a informação processada pelos neurônios.

A hierarquia do processamento cerebral da informação

A informação neural de tudo o que vemos, ouvimos ou sentimos na forma de tato,


paladar ou olfato, e trazida pelos neurônios sensoriais, deve passar por vários pontos de
retransmissão desde sua origem, os receptores sensoriais distribuídos pela periferia do
corpo, até seu destino, os córtices sensoriais primários. Existe um córtex sensorial
primário para cada modalidade sensorial, assim, temos o córtex visual primário,
localizado no lobo occipital, o córtex olfatório primário, localizado na área piriforme
(ou uncus) do lobo temporal, o córtex auditivo primário, localizado no lobo temporal, o
córtex gustativo primário, localizado no córtex insular e o córtex somatossensorial
primário, localizado no lobo parietal anterior, mais precisamente na região do giro pós-

33
Neurociência e Psicopatologia

central. Lembrando que os córtices sensoriais primários são regiões de entrada das
sensações, que ali chegam “cruas” e precisam ser mais integradas entre elas e com as
emoções e memória, o que será feito nos córtices associativos. Os principais córtices
associativos são o parietal, o temporal, o frontal e o límbico.

Pontos de retransmissão da informação e somatotopia

Em cada um dos pontos de retransmissão, a informação sensorial pode ser amplificada


ou diminuída, na dependência do nível de vigilância. A cada estágio de retransmissão,
um neurônio recebe inputs de milhares de neurônios pré-sinápticos e é a resultante
destas influências sobre o neurônio pós-sináptico que governa o output dele para o
próximo estágio de processamento. É possível dizer que, nestes pontos de “parada” a
informação pode ser reconfigurada pela influência da informação trazida e adicionada
por outros neurônios. Tendo em mente o conceito já estudado de que um neurônio só
dispara um potencial de ação quando é suficientemente “provocado” a fazê-lo pelos
neurônios que o estimulam, havendo estimulação suficiente para que a zona de disparo
“permita” a propagação do impulso por todo o axônio, pode-se pensar a respeito de
como variam estas influências de outros neurônios. Um bom palpite é que, em
condições normais, as influências pré-sinápticas a um neurônio sensorial variem de
acordo com as condições ambientais. Assim, é possível que em uma dada condição, o
input neuronal – ou a “provocação para o disparo” – seja suficiente para propagar um
impulso e, em outra, isto não aconteça. Lembre-se de que os neurônios “preferem” ficar
em um estado de repouso, pois isso é mais econômico. Por esta razão, nosso cérebro
desenvolveu a capacidade de não prestar mais atenção a coisas com as quais já esteja
habituado. Por exemplo, se seu escritório fica em uma rua barulhenta e seu isolamento
acústico não é muito bom, é bem provável que com o tempo o ruído de fora não lhe
atrapalhe tanto quanto no início. Isso ocorre porque este ruído passa a ser interpretado
por sua mente como algo familiar e como um estímulo para o qual não valha a pena
gastar energia na forma de atenção, pois ela já sabe que nada há de ameaçador ou de
gratificante por trás de todo aquele barulho. Nos pontos de retransmissão da informação
sensorial aquele sinal passa a ser gradualmente suprimido a ponto de não mais ter
acesso à consciência, ou pelo menos não com tanta força como inicialmente. Isso
porque aquele neurônio condutor de um tipo irrelevante de informação terá sua
atividade suprimida por neurônios inibitórios em pontos de retransmissão. Diz-se, em
ciência cognitiva que nestes pontos o “sinal” (conteúdo sensorial relevante) é separado

34
Neurociência e Psicopatologia

do ruído (conteúdo sensorial irrelevante). Já discutimos este fenômeno quando tratamos


da habituação.

Nos sucessivos estágios de retransmissão da informação sensorial há um arranjo


topográfico organizado a partir dos pontos de origem desta informação, isto é, áreas
vizinhas na superfície de recepção sensorial também se avizinham nos pontos de
retransmissão da informação. Este fenômeno é denominado somatotopia. Por exemplo,
células vizinhas da retina projetam para núcleos também vizinhos no tálamo, um dos
pontos de retransmissão da informação sensorial, que, por sua vez, projetam para
regiões adjacentes do córtex visual, constituindo mapas sensoriais que não refletem
apenas a distribuição de receptores visuais, mas também sua densidade na superfície
receptiva. Da mesma forma que a informação sensorial é somatotópica, a motora
também o é. Portanto, existem áreas corticais representando tanto a superfície sensorial
quanto a motora de cada parte do nosso corpo, de forma que áreas onde há muita
sensibilidade, como a face e os lábios, podem ter uma área de representação muito
maior no córtex somatossensorial do que a das costas, sabidamente menos sensíveis. Da
mesma forma, partes do corpo com maior mobilidade, como as mãos e o rosto, têm
maior representatividade no córtex motor primário do que outras áreas menos “móveis”,
como as costas, apesar de sua superfície anatômica ser maior.

Tipos de processamento cortical

Os sistemas funcionais sensoriais e motores têm, ainda, uma organização hierarquizada.


Se estimularmos diversas áreas do córtex de uma pessoa e pedirmos para que ela nos
reporte sua experiência enquanto estimulada, encontraremos diferentes relatos na
dependência da área envolvida. Algumas regiões provocariam algo parecido com uma
experiência sensorial simples, crua, sem integração, outras provocariam sensações mais
complexas, integradas com emoções e talvez com memórias. Outras regiões
provocariam movimento e outras, intenção de movimento. Tudo isso porque diferentes
regiões corticais processam a informação de forma variável em relação ao grau de
integração, como já foi discutido antes. Cada região cortical constrói um tipo distinto de
representação, na dependência de sua “especialização”. O córtex pode ser designado
como córtex primário, secundário e terciário, de acordo com o tipo de trabalho que ele
faz. Desta forma, existem córtices sensoriais primário, secundário e terciário e córtices
motores primário, secundário e terciário. A diferença é que as áreas sensoriais primárias

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Neurociência e Psicopatologia

são a parte inicial do processamento sensorial e o córtex motor primário, o estágio final
do processamento dos comandos motores.

Vejamos o que isso significa. Cada área sensorial primária é “especializada” no


processamento e na transmissão de um tipo específico de informação sensorial. Isso
significa dizer que existem áreas sensoriais primárias especializadas, por exemplo, no
processamento e transmissão de cor, ou de forma, ou de movimento, no caso das áreas
visuais primárias. Cada área sensorial primária transmite sua informação para uma área
de associação unimodal, onde ocorre uma sofisticação no tratamento dos dados
processados que passam, então, a ser mais integrados em córtices sensoriais
hierarquicamente superiores, produzindo uma informação mais completa. Assim, em
uma área sensorial unimodal as informações visuais de cor são integradas às de forma e
às de movimento. Cada área unimodal envia o produto de seu processamento para uma
das quatro áreas corticais de associação multimodal, que, por sua vez, integram a
informação de duas ou mais modalidades sensoriais – por exemplo, cor, forma e
movimento são associadas a informações olfativas e auditivas – as quais,
posteriormente serão utilizadas em planos de ação. As principais áreas corticais de
associação multimodal são o córtex associativo parietal, o córtex associativo temporal, o
córtex associativo frontal e o córtex associativo límbico. As funções de cada uma destas
áreas de associação podem ser resumidas de forma muito simplificada, da seguinte
maneira: o córtex associativo parietal está relacionado à orientação sensorial do
comportamento motor e à consciência espacial; o córtex associativo temporal relaciona-
se ao armazenamento da memória semântica ou conhecimento a respeito das coisas; o
córtex associativo frontal é responsável pela memória de trabalho e pela organização do
comportamento e o córtex associativo límbico processa aspectos emocionais e memória
episódica autobiográfica.

O córtex motor primário, também chamado de M1, medeia movimentos


voluntários dos troncos e membros e contém neurônios que projetam diretamente para a
medula espinhal. Vimos que ele é o estágio final do processamento motor, portanto,
antes de “chegar” até M1, a informação já foi processada nos córtices motores
secundário e terciário. O córtex pré-motor (ou córtex motor secundário) coordena a ação
a partir de informações recebidas do córtex pré-frontal – considerado o córtex motor
terciário – e é o local onde são elaboradas representações mentais de intenções.
Neurocientistas acreditam que tudo o que chamamos de “cognição” é gerado nos

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Neurociência e Psicopatologia

córtices sensorial e motor terciários, uma vez que, apesar dos nomes que têm, estas
regiões processam um tipo de informação que não é propriamente sensorial nem
motora. Isso porque no córtex sensorial terciário o nível de integração sensorial é muito
alto, e, em consequência, as representações mentais ali geradas são muito mais
sofisticadas e compatíveis com uma percepção, que, em última análise, é uma cópia
mental com alta capacidade preditiva. E no córtex motor terciário as ações e os
movimentos são planejados, para serem implementados pelo córtex motor primário,
após uma fase de processamento no córtex pré-motor, que dá origem às intenções de
ações e também às cognições motoras (Jeannerod, 2010) que nos permitem
compreender as ações de terceiros.

A atividade cognitiva do córtex motor terciário é muito importante na


configuração de nossa mente moderna, já que está intimamente relacionada à nossa
capacidade de manipular objetos com nossa mão preênsil, como discutiremos a seguir.
Simplificadamente, intenções corresponderiam a estados mentais muito próximos da
execução de um ato motor, embora filósofos tenham muito mais a falar a respeito delas.
De qualquer forma, se as representações mentais do planejamento de nosso
comportamento motor equivalem a nossas intenções como, por exemplo, quando
planejamos pegar uma xícara para tomar café ou sentarmos em uma mesa de trabalho
para trabalharmos no computador ou qualquer outra coisa (por esta razão, em áreas pré-
motoras são representadas as oportunidades de interação entre o corpo, normalmente a
mão, e os objetos), parece-me plausível pensar nestas representações mentais como
fenômenos cognitivos e até mesmo como pensamento. Há autores que, por conta disso,
sugerem que o pensamento seja um “ato motor” executado sem ação muscular (e,
segundo o neurologista britânico Hughlings Jackson, nosso ato motor mais complexo)
(Feinberg, 2011). De fato, em nossa espécie o pensamento é um “comportamento” em
si, isto é, ele não se resume exclusivamente ao planejamento de nossas ações, às vezes
ele é a própria ação. Pessoas que sofrem de transtorno obsessivo compulsivo sofrem de
pensamentos indesejáveis, desagradáveis e intrusivos, muitas vezes experimentados por
elas como estranhos às suas mentes ou não gerados por elas. Não seriam estes terríveis
sintomas parecidos com muitos tiques motores, os quais são executados à revelia da
intenção e da vontade e, por conseguinte, carecem de planejamento?

Falando um pouco mais sobre a função das áreas pré-motoras cerebrais, regiões
onde representações mentais de objetivos comportamentais e ações voluntárias são

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Neurociência e Psicopatologia

elaboradas: ações como alcançar, manipular, apanhar e puxar, possíveis em função de


possuirmos uma mão preênsil, têm um importante papel na configuração de capacidades
cognitivas dos primatas. A mão preênsil ajustou a maneira como estas espécies agem no
mundo, em um processo lento e gradual, caracterizado, em termos neurofisiológicos,
pela configuração de circuitos conectando sensação e ação, os quais deram origem a
movimentos adaptados à manipulação de diferentes objetos. Assim, áreas pré-motoras
regulam os movimentos da mão para que eles se ajustem à manipulação de uma caneta,
de uma xícara, de um copo ou de uma raquete de tênis. As representações mentais aqui
geradas envolvem, portanto, relações entre o corpo e um objeto no contexto de um
objetivo em particular, razão pela qual existem conexões recíprocas entre o córtex pré-
motor e o córtex parietal posterior. Quando áreas pré-motoras são eletricamente
estimuladas, há produção de movimento, da mesma forma que acontece quando o córtex
motor primário, ou M1, é eletricamente estimulado. Mas a diferença é que os
movimentos produzidos pela estimulação de alguns neurônios do córtex pré-motor
codificam tipos específicos de movimento, definíveis como movimentos objetivo-
dirigidos, como alcançar, manipular, apanhar e puxar. Existem, ainda, outros padrões de
resposta neuronal pré-motora, como a de neurônios locais, chamados de neurônios
canônicos, que ficam ativos em instantes entre a visualização de um objeto e a execução
de um comportamento diretamente ligado a ele, como se “estudassem” a melhor
maneira de interagir com aquele objeto. Em outras palavras, estas células estariam
transformando representações sensoriais em representações motoras.

Existem, também, os neurônios espelho, que disparam quando da execução e da


observação daqueles movimentos sendo executados por terceiros. Eles são importantes
para que sejamos capazes de compreender as ações das outras pessoas, na medida em
que, através do trabalho dos neurônios espelho, somos capazes de simulá-las em nosso
córtex pré-motor.

Movimentos voluntários como os executados pela mão preênsil são diferentes de


ações reflexas (que podem ser definidas como respostas estereotipadas e inflexíveis a
estímulos), permitindo uma ampla variedade de respostas frente a um único estímulo.
Por exemplo, a observação de um objeto dispara uma atividade automática e espontânea
de se avaliar as múltiplas maneiras de manipulá-lo ou das oportunidades pragmáticas
que ele propicia, uma tarefa dos neurônios canônicos.

38
Neurociência e Psicopatologia

Veremos logo a seguir que regiões do córtex parietal processam as relações entre
nosso corpo e os objetos encontrados no mundo. É possível, portanto, que neurônios
parietais criem representações mentais das relações entre nosso corpo e um determinado
objeto, enviando estas informações para neurônios pré-motores que, por sua vez, criem
representações mentais de atos motores em potencial ou oportunidades de interação
contexto-específicas com aquele objeto. Assim, antes de manipularmos uma xícara, o
córtex parietal calcula as relações espaciais entre ela e nosso corpo, informação que,
encaminhada ao córtex pré-motor, permite o planejamento de como a pegaremos, bem
como o ajuste da mão para que o façamos dentro de um determinado contexto: se pela
alça (por exemplo, para evitarmos o contato com a superfície quente do corpo da xícara)
ou se pelo corpo (por exemplo, quando queremos aproveitar para aquecer nossas mãos
em um dia frio).

Como o sistema nervoso central cria o comportamento

Como já foi exaustivamente repetido, o cérebro recebe informação sensorial do


ambiente externo e interno, organizando as ações através de uma sofisticada atividade
computacional que depende de neurônios conectados de forma muito precisa. Veremos
a partir de agora com um pouco mais de detalhe como se dá esta organização desde a
recepção dos estímulos até a elaboração e a execução do comportamento. Vamos levar
em conta a neurofisiologia do tato, que é uma modalidade sensorial muito bem
estudada, para iniciar esta discussão a partir do estudo das vias sensoriais.

Transformando informação sensorial em informação eletroquímica

O primeiro desafio do sistema nervoso central é converter os diversos tipos de


informação sensorial a que estamos expostos em informação eletroquímica. Assim,
eventos físicos como luz, pressão, sons e substâncias químicas precisam ser
transformados em eventos eletroquímicos, um trabalho que é realizado pelos receptores
sensoriais. Os receptores estão distribuídos por todo o nosso corpo e são sensíveis a
tipos específicos de eventos físicos; por exemplo, a retina é especializada em converter
energia luminosa em padrões característicos de disparo neuronal que representam as
propriedades daquele estímulo; receptores tácteis localizados na pele, chamados
mecanorreceptores, convertem a pressão exercida neles em padrões de disparos
adequados para a criação de representações tácteis, muito úteis em nossa navegação
física pelo mundo. A atividade neuronal de conversão de um evento físico qualquer em

39
Neurociência e Psicopatologia

informação eletroquímica é chamada de transdução. Depois de “convertida” de forma


que possa ser conduzida pelos neurônios, esta informação precisa seguir até o cérebro.

Vias sensoriais: o exemplo do tato

A informação transduzida pelos receptores tácteis é levada até a medula espinhal pelos
neurônios sensoriais. É importante saber que os corpos celulares destes neurônios – os
quais são classificados, de acordo com sua forma, como pseudounipolares – estão
localizados em um gânglio nervoso dorsal e que seus axônios entram na medula
espinhal pelo corno posterior da substância cinzenta. Eles podem fazer sinapses com
neurônios motores neste ponto de entrada ou então “subirem” a níveis mais elevados da
medula espinhal através de “estradas” localizadas na substância branca da medula
espinhal, mais precisamente nas colunas dorsais da substância branca adjacente aos
cornos posteriores da medula. Nas colunas dorsais, existem duas vias por onde as fibras
sensoriais transitam e elas são chamadas fascículos grácil e cuneiforme. O fascículo
grácil localiza-se mais medialmente e o fascículo cuneiforme, mais centralmente, na
região dorsal da medula espinhal. Os axônios que entram na medula na região sacral
sobem mais próximos da linha média. Já os axônios de níveis mais altos ascendem
progressivamente em posições mais laterais das colunas dorsais. Os axônios destes
neurônios sensoriais pseudounipolares ascendem pela medula pelos fascículos grácil e
cuneiforme sem cruzar a linha média até chegarem aos núcleos grácil e cuneiforme da
medula oblonga, onde fazem sinapses com os segundos neurônios da cadeia de
transmissão sensorial do tato. Agora sim, estes neurônios cruzam a linha média na
região da decussação sensorial – também localizada na medula oblonga – e seguem para
o tálamo através de outra “estrada”: o lemnisco medial. Portanto a informação táctil do
lado direito é processada pelo cérebro esquerdo e vice-versa. No tálamo existe uma
segunda sinapse, de onde um terceiro neurônio da cadeia conduz as informações até o
córtex somatossensorial.

O córtex somatossensorial, também denominado de área 3b de Brodmann, situa-


se em uma região do cérebro denominada de giro pós-central, que é o primeiro giro após
o sulco central do cérebro. Ao longo de cada ponto de retransmissão da informação
táctil repete-se o já citado fenômeno da somatotopia, isto é, a ocorrência de um mapa da
superfície receptiva, o qual inclui não apenas a localização, mas a densidade dos
receptores de uma modalidade sensorial. No córtex somatossensorial não poderia ser

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Neurociência e Psicopatologia

diferente, embora as áreas corticais representando diferentes superfícies corporais não


sejam proporcionais às regiões do corpo ali representadas. Isso acontece porque
algumas regiões do corpo são mais sensíveis ao tato: por exemplo, a ponta dos dedos
das mãos, as próprias mãos e a língua são muito mais sensíveis ao tato do que as costas,
por isso existem áreas corticais somatossensoriais muito mais extensas para mãos e
língua do que para as costas. O famoso homúnculo sensorial de Penfield, com sua
cabeça, lábios e mãos enormes e braços, troncos e pernas desproporcionalmente
pequenos, é um diagrama que ilustra convenientemente a magnitude da representação
de diferentes áreas do corpo no córtex somatossensorial.

Na verdade o córtex somatossensorial não tem apenas um, mas quatro mapas
completos da superfície sensorial da pele, situados nas áreas 3a, 3b, 1 e 2 de Brodmann.
Os processos tácteis mais básicos são processados nas áreas 3 (consideradas áreas
unimodais) e, na área 2, a informação táctil é integrada à informação a respeito da
posição dos membros (também chamada de propriocepção porque ela nos dá
informações sobre nossa postura e posições utilizando de informações enviadas pelos
músculos e articulações). A área 2 também envia informações para áreas associativas
multimodais localizadas no córtex parietal posterior, onde elas são integradas com
informações auditivas, visuais e mnêmicas. Isso é importante para o reconhecimento
táctil de objetos e seu acesso e, na medida em que é integrada, a informação
somatossensorial será utilizada no controle de nossos movimentos e de sua coordenação
com a visão, bem como na memória táctil, por exemplo. Recordando o conceito de
processamento hierárquico da informação, áreas sensoriais unimodais do tato processam
um tipo específico de informação sensorial, neste caso, táctil. Áreas multimodais de
associação combinam diferentes modalidades sensoriais, por exemplo, tato e
propriocepção, e tato, propriocepção e visão, gerando uma percepção unificada, a qual
pode ser, inclusive, armazenada na memória. Um dos principais propósitos da
informação somatossensorial é coordenar o comportamento motor ou o movimento
dirigido. Por exemplo, quando apanhamos uma xícara, utilizamos deste tipo de
informação para guiar nosso comportamento, pois temos de reconhecer nossa posição
em relação à xícara, a posição espacial da xícara e a melhor maneira de pegar uma
xícara (pegar uma xícara é diferente de pegar uma colher ou um lápis), dentre outras
operações combinando aspectos sensoriais e motores (estas operações podem também
ser chamadas de sensório-motoras). É possível afirmar, portanto, que a percepção

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Neurociência e Psicopatologia

“abastece” sistemas motores de informações sensoriais fundamentais para a execução de


um movimento. Um fluxo contínuo de informação sensorial táctil, proprioceptiva e
visual é essencial para a modulação dos movimentos de apanhar uma xícara, a fim de
que eles sejam apropriadamente sequenciados.

Vias motoras

O córtex motor primário também tem organização somatotópica – portanto, também


existe um homúnculo motor – e ele foi desenhado a partir dos sinais observados quando
a área 4 de Brodmann (ou área M1) é estimulada. Os axônios dos neurônios motores de
M1 “partem” do córtex motor primário em seu trajeto descendente na direção dos
cornos ventrais ou anteriores da medula espinhal através de uma via denominada trato
córticoespinhal, passando pela cápsula interna (no telencéfalo) e pelo pedúnculo
cerebral (no mesencéfalo). Noventa por cento destas fibras cruzam a linha média na
decussação das pirâmides e continuam seu trajeto descendente pelo trato córticoespinhal
lateral, chegando aos cornos anteriores, onde fazem sinapse com um neurônio motor. O
córtex motor recebe influências reguladoras do cerebelo e dos gânglios da base, o que
aperfeiçoa suas funções. O cerebelo tem um papel de corrigir erros de movimentos,
comparando, por exemplo, o comando motor cortical com a informação somática a
respeito daquilo que, de fato, ocorreu em termos de movimento. Neste sentido, o
cerebelo exerce um papel de controle preditivo dos movimentos. A maior influência do
cerebelo sobre os movimentos se dá através de suas conexões com núcleos talâmicos
(os núcleos ventrolaterais do tálamo), os quais se conectam diretamente aos córtices
motor e pré-motor. Os gânglios da base, por sua vez, não só recebem informação de
áreas sensoriais e motoras como também de áreas importantes no processamento da
motivação, cognição e emoção, enviando informações para o córtex através do tálamo.
O tálamo, já discutido acima, é uma estrutura subcortical com formato oval que
constitui a parte dorsal do diencéfalo. Ele conduz o input sensorial de todas as
modalidades – com a exceção do olfato – para as áreas sensoriais primárias do córtex,
atuando como um verdadeiro filtro sensorial. Ele é composto por diversos núcleos bem
definidos, classificados em quatro grupos: anterior, medial, ventrolateral e posterior. O
lemnisco medial, via do sistema sensorial, termina em um destes núcleos, o núcleo
ventral pósterolateral, que contém as células que processam a informação sensorial
transmitindo-a para o córtex somatossensorial primário. O grupo anterior de núcleos
talâmicos recebe fibras provenientes do hipotálamo e do hipocampo e tem funções

42
Neurociência e Psicopatologia

relacionadas ao processamento da emoção e da memória. O grupo medial recebe fibras


dos gânglios da base, amígdala e mesencéfalo e também tem um papel de
processamento mnêmico, e o grupo ventral de núcleos do tálamo relaciona-se ao
controle motor, na medida em que eles trazem informações oriundas dos núcleos da
base e do cerebelo para o córtex motor. O grupo posterior de núcleos talâmicos inclui os
núcleos geniculados medial e lateral, o núcleo pósterolateral e o pulvinar. O núcleo
geniculado medial recebe informação do sistema auditivo que conduz para o lobo
temporal e o núcleo geniculado lateral recebe informação visual da retina, que conduz
ao lobo occipital. O pulvinar varia em importância em diferentes espécies; assim ele é
virtualmente inexistente em roedores e relativamente maior no cérebro de primatas
(Arendt e cols, 2008). Esta estrutura parece relacionar-se ao aumento de áreas
associativas parietais, occipitais e temporais, integrando funções visuais e de
movimento dos olhos. Finalmente, a cobertura externa do tálamo é denominada núcleo
reticular do tálamo, cuja imensa maioria dos neurônios utiliza o neurotransmissor
inibitório Gaba e não se conectam com o neocórtex, mas com neurônios de outros
núcleos talâmicos, o que sugere que sua função é de regular a sua atividade. Por esta
razão, talvez seja a porção do tálamo que melhor desempenhe a tarefa de filtro sensorial.

Noções de processamento cognitivo

A percepção não é uma reprodução literal do mundo

A noção intuitiva de que o produto final da percepção é algo parecido com uma
reprodução literal do mundo à nossa volta é enganosa, apesar de sermos continuamente
convencidos disso pela experiência subjetiva de que trazemos cópias de alta fidelidade a
respeito daquilo que vimos. Nossa percepção e aprendizado a respeito do mundo são
processos construtivos, isto é, eles não dependem exclusivamente dos estímulos que
chegam ao cérebro, mas também do aparato mental daquele que percebe; enfim, da
organização dos sistemas sensoriais e motores, além daqueles sistemas cerebrais
envolvidos com a emoção, motivação e recompensa. Lembre-se de que nossa visão do
mundo quando famintos é completamente diferente daquela que temos quando saciados.
Pode parecer contraintuitivo que áreas motoras do córtex participem da construção de
percepções, todavia, é importante considerarmos que ações têm um papel chave neste
processo. Áreas motoras interpretam a informação sensorial com base na experiência,
dando forma ao nosso comportamento. Considere, por exemplo, que um objeto distante

43
Neurociência e Psicopatologia

parece menor do que quando está localizado mais próximo, assim como um objeto que
se distancia nos dá a impressão de ter suas proporções gradativamente diminuídas. Este
tipo de informação vai sendo incorporado ao longo da vida, na medida em que
percebemos as relações de nosso corpo com o mundo a nossa volta. Da mesma forma,
acabamos aprendendo pela experiência que objetos com contornos nítidos parecem estar
mais próximos do que objetos com contornos mal definidos, um exemplo simples de
como uma representação visual não é configurada levando em conta exclusivamente
aspectos da realidade visual, mas também de uma heurística criada a partir da
experiência de enxergar coisas próximas e distantes. Além disso, temos conhecimentos
intuitivos a respeito das características físicas do mundo, os quais pautam não apenas o
jeito como percebemos as coisas, mas também nossas ações em relação a elas. A
tridimensionalidade dos objetos é um aspecto fundamental do mundo físico que precisa
ser adequadamente interpretado pelo cérebro para que acidentes não ameacem nossa
integridade física. Embora antigamente se achasse que o sentido de tridimensionalidade
fosse obtido através da coordenação da visão com a experiência de movimento pelo
mundo (e, consequentemente, da distância), hoje em dia se sabe que bebês muito
novinhos, e que ainda não conseguem se deslocar sozinhos, já são capazes de entender o
que é distância. Por exemplo, eles parecem se defender de objetos que se aproximem
deles e tentam alcançar, embora de forma desajeitada, objetos distantes que lhes
interessam. Bebês também parecem compreender o que é chamado de princípio da
constância de tamanho (Gopnik e cols, 2001), isto é, se você mostrar a eles uma bola e
depois mostrar a mesma bola a uma distância duas vezes maior, eles saberão que é a
mesma bola, apesar da imagem em suas retinas mostrar um objeto com metade da
dimensão inicial. De outra forma, se você mostrar uma bola e depois mostrar uma bola
semelhante a uma distância duas vezes maior, sem alteração de suas dimensões, eles
saberão que a bola foi substituída por uma maior, apesar da imagem em suas retinas
mostrar um objeto com as mesmas dimensões. Estes achados sugerem que possam
existir módulos mentais especializados em processar informações sobre o mundo físico,
os quais já estão presentes ao nascimento. Apesar de inatos, eles estão sujeitos ao
aperfeiçoamento de suas capacidades computacionais através do aprendizado,
melhorando a construção de percepções.

Conforme foi dito acima, tato e a propriocepção permitem, respectivamente, que


tenhamos informação sobre determinadas propriedades físicas dos objetos do ambiente

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Neurociência e Psicopatologia

e sobre a posição e movimentação de nosso corpo em relação a estes objetos, fazendo


com que tenhamos uma representação muito mais rica sobre sua localização em relação
aos nossos corpos, tornando nossa aproximação, distanciamento e contato com eles
muito mais precisos. A adequada integração sensório-motora permite que
comportamentos tão diferentes quanto apanhar uma xícara de café, desenhar ou jogar
tênis possam ser executados de forma precisa e automática, não sendo necessário
qualquer planejamento consciente. Para que isso funcione adequadamente, o cérebro
tem de gerar representações mentais do espaço pessoal (o espaço ocupado por nosso
corpo), do espaço peripessoal (o espaço do ambiente que está ao alcance de nossas
mãos) e do espaço extrapessoal.

O córtex associativo parietal

Vimos logo acima que o córtex somatossensorial é composto de 4 áreas, cada qual
processando um tipo diferente de informação. A área 3a de Brodmann recebe
informação de músculos e articulações, importante na propriocepção dos membros, e a
área 3b recebe informações tácteis a partir da superfície da pele. A informação táctil é
processada na área 1 e integrada com a propriocepção de membros e articulações na
área 2, uma área associativa de ordem mais alta (lembre-se: ela integra dois tipos
distintos de informação sensorial). Tato e propriocepção reúnem informações
fundamentais na geração de representações de espaço pessoal, a qual não é determinada
ao nascimento, mas vai sendo construída com a experiência e o aprendizado, podendo
também ser avariada por falta de uso ou lesões. A área 2 projeta para as áreas de
associação multimodal 5 e 7 localizadas no córtex parietal posterior que também recebe
input sensorial dos sistemas auditivo, visual e do hipocampo. Nesta área cortical
informações tácteis e proprioceptivas são integradas com outras modalidades sensoriais,
a fim de possibilitar a formação de percepções espaciais dos objetos fora do espaço
pessoal. Lesões do córtex parietal posterior, onde a maioria destas operações cerebrais é
realizada, podem levar a sintomas comportamentais curiosos, como a negação de uma
parte do corpo. Pacientes com este quadro, que, de certa forma é um distúrbio da
consciência para uma parte específica do corpo, podem não vesti-la, não higienizá-la e
até mesmo negar que ela os pertença. Tais fenômenos se devem à abolição, precipitada
por uma agressão ao córtex parietal, da capacidade de integrar a informação do espaço
pessoal geradas pelo tato e a propriocepção com outras informações sensoriais,
particularmente visuais e mnêmicas, a respeito do próprio corpo. Dependendo da

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Neurociência e Psicopatologia

extensão e da localização da lesão parietal, os pacientes podem negar até mesmo o


espaço extrapessoal mais remoto. Alguns quadros neurológicos enigmáticos, como
crises convulsivas psicogênicas (crises que têm um importante componente psicológico)
e transtornos dos movimentos corporais incaracterísticos parecem decorrer de disfunção
conjunta de diversas áreas cerebrais, as quais incluem, além do córtex parietal posterior,
áreas de regulação da emoção (de fato, muitos destes fenômenos neurológicos aparecem
em pessoas que sofrem de transtornos emocionais), do controle cognitivo e do
planejamento motor (Perez e cols., 2015). Psiquiatras frequentemente são chamados
para atender estes pacientes, os quais, por conta da atipicidade de seus quadros clínicos,
acabam sendo muitas vezes considerados simuladores. Nem sempre este é o caso.
Muitos pacientes desenvolvem o que chamamos de fenômenos dissociativos, que são
condições em que existe uma dissociação (ou uma separação estanque e inconveniente)
de processos mentais que deveriam caminhar em conjunto. Por exemplo, a memória
para determinados eventos “se isola” de demais instâncias da mente, tornando-se
inacessível, nos casos de amnésias dissociativas, ou toda a identidade do indivíduo
dissocia-se da sua mente e ele se esquece de quem é e pode acabar vagando pelo mundo
por não saber mais quem é sua família e onde fica sua casa, nos casos de fugas
dissociativas. Outros fenômenos dissociativos incluem estados de transe e possessão,
onde há dissociação transitória de elementos da mente, estados estes que nem sempre
são considerados doentios, caso ocorram exclusivamente em ambientes religiosos em
que estes comportamentos são admitidos e até mesmo estimulados. Em todas estas
situações parece haver algum tipo de “desconexão”, transitória ou duradoura, de
processos cerebrais importantes na construção de representações que, quando
integradas, dão sentido ao nosso corpo e à nossa mente como um todo, bem como à
nossa identidade. É importante reconhecer que condições como estas comprometem de
forma mais ou menos duradoura aquilo que chamamos de consciência e que engloba
não somente a autoconsciência ou consciência autobiográfica, mas também a
subjetividade, definida como a experiência de sermos o centro da experiência; a
unidade, definida como o aspecto integrativo de nossas experiências como únicas; e a
intencionalidade, que é a conexão dos eventos da experiência em direção a um objetivo.
Há perda da subjetividade em casos de transes, possessões e transtornos dissociativos da
identidade, bem como há perda da unidade em amnésias dissociativas e fenômenos de
déjà-vu e comprometimento da intencionalidade em todas estas condições. Em um dado
momento estamos conscientes de uma pequena fração dos estímulos com que nos

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Neurociência e Psicopatologia

deparamos, por isso, para alguns autores, um evento cognitivo essencial na configuração
da consciência é a atenção visual, cujo processamento está muito relacionado ao
trabalho do córtex parietal, que também está encarregado de elaborar mapas das
relações entre os objetos e eventos no campo visual. Assim, estudos dos disparos de
determinados neurônios do córtex parietal de macacos mostram que estas células entram
em atividade quando um estímulo visual entra no campo visual, independentemente do
animal estar interessado naquele estímulo. Através de suas conexões com o córtex pré-
frontal, o córtex parietal envia para ali estas informações, que podem ser cruciais no
planejamento do comportamento motor.

O córtex associativo parietal tem, portanto, um papel fundamental na orientação


visual do comportamento motor, na percepção e na cognição espacial, e lesões a esta
região do cérebro podem cursar com alterações da consciência corporal (por exemplo,
pacientes que negam que um de seus braços seja seu ou que barbeiem somente um dos
lados do rosto, bem como alguns casos um pouco diferentes, de pessoas que relatam
experiências de estarem fora de seus corpos – alguma dúvida de que existem alterações
da consciência por aqui?), do controle motor (por exemplo, pacientes que passam a ter
dificuldades para alcançar objetos ou o fazem de forma disfuncional e meio atrapalhada,
em alterações do comportamento motor chamadas de apraxias) e da capacidade de
perceber ou prestar atenção a eventos ou objetos localizados no campo visual contrário
ao lado de suas lesões (lembre-se que a informação sensorial de um lado do corpo é
processada pelo lado oposto, pois as fibras cruzam a linha média em seu trajeto em
direção ao cérebro). Problemas no processamento do córtex associativo parietal podem
abranger ainda dificuldades com cálculo ou quaisquer atividades que envolvam
manipulação de dígitos, como a escrita e a leitura. Isso porque quando fazemos contas e
quando escrevemos e desenhamos, manipulamos espacialmente números, letras e
formas. As representações mentais geradas pelo córtex associativo parietal têm um
caráter visual e somatossensorial, isto é, envolvem a integração de informações
provenientes da visão, do tato e da propriocepção, as quais, depois de integradas,
acabam por configurar mapas de nosso espaço pessoal e extrapessoal, permitindo que
executemos tarefas como calcular adequadamente a distância de um objeto e nosso
corpo ou a distância e as relações entre dois objetos no campo visual, coordenando,
assim, aquilo que vemos com nossos movimentos.

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Neurociência e Psicopatologia

O córtex associativo temporal

As principais funções do córtex associativo temporal incluem o armazenamento da


memória e o conhecimento semântico, ou do significado das coisas. Como uma área
associativa, aqui, informações de diversas modalidades são integradas a fim de que
sejam geradas representações mentais adequadas para nossa navegação pelo mundo.
Neurônios de áreas inferiores do córtex temporal, as mais estudadas e compreendidas
desta região, são muito ativos diante de formas, cores e texturas, independentemente do
comportamento motor do indivíduo e, portanto, do tamanho da imagem e de sua
localização, o que sugere que estas células não estão envolvidas com a orientação do
comportamento motor, como os neurônios parietais. Lesões em regiões associativas
temporais podem causar agnosias, que são déficits perceptuais onde há prejuízo da
compreensão de estímulos sensoriais devido a problemas na integração da informação
no processo de construção de uma percepção. Pacientes com déficits cognitivos
decorrentes de lesão ao córtex associativo temporal não terão nenhum problema em
copiar o desenho de um cachorro, por exemplo, embora tenham dificuldade em saber o
que estão desenhando. Ao contrário de pacientes com lesão parietal, que teriam extrema
dificuldade na execução deste tipo de tarefa porque sofrem de limitações na
manipulação espacial de formas, embora consigam reconhecer que o desenho que têm
de copiar é de um cachorro, pacientes com lesão temporal até são capazes de copiar, na
medida em que não sofrem de problemas de coordenação entre a visão e os
movimentos, mas, ao serem perguntados a respeito de qual animal estão desenhando,
podem dar uma resposta muito vaga, como “poderia ser um gato, um boi, ou qualquer
outro bicho”. Outro tipo bastante peculiar de agnosia é a prosopagnosia, que consiste de
um prejuízo específico do reconhecimento de faces (por isso ela é também chamada de
cegueira para faces). A prosopagnosia parece surgir em decorrência de lesões de uma
região temporal chamada de giro fusiforme, mas ela também pode ser congênita ou
hereditária.

No lobo temporal esquerdo da maioria das pessoas é encontrada a área de


Wernicke, localizada na região mais posterior do giro temporal superior e representada
pela área 22 de Brodmann. Trata-se de uma importante área cerebral associada à
linguagem que, quando lesada, causa um tipo muito específico de afasia ou distúrbio da
linguagem de origem cerebral. Pacientes com afasia de Wernicke, provavelmente a mais
debilitante das condições decorrentes de lesão do córtex associativo temporal, têm

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Neurociência e Psicopatologia

dificuldade para compreender o significado das palavras faladas ou escritas, embora


consigam falar de forma fluente, mas incompreensível. Isso porque na área de Wernicke
são armazenados os “templates” auditivos e visuais da linguagem falada e escrita,
respectivamente. Observe que nesta região a função primordial do córtex associativo
temporal é mantida, isto é, integrar informações de ordem sensorial (visão e audição)
com informações de ordem semântica, ou seja, o “significado” daqueles símbolos e
sons. As afasias de Wernicke são sempre discutidas conjuntamente com as afasias de
Broca, decorrentes de prejuízo às funções da área de Broca, localizada no lobo frontal
esquerdo da maioria das pessoas e representada pelas áreas 44 e 45 de Brodmann, cujas
lesões comprometem a capacidade de expressar a linguagem escrita e falada, mas não a
capacidade de compreender significado das palavras. A área de Broca também reflete o
papel do córtex associativo em que está localizada (o córtex frontal), que é o de
organização da atividade motora ligada à expressão da linguagem.

No córtex associativo temporal também é processada a memória semântica, a


qual se forma através da associação de múltiplos pedaços de informação a respeito de
alguma coisa, que, em principio podem estar desconectados. Alguns autores propõem
que a memória semântica se organiza como uma rede semântica, já discutida quando
falamos de priming, na qual nodos de informação – ou representações semânticas de
palavras ou conceitos – estão distribuídos de forma tal que representações mais
relacionadas entre si situam-se mais “próximas” umas das outras. Portanto, quando
alguma coisa nova a respeito de algo é aprendida, uma nova associação entre dois nodos
é estabelecida. Do ponto de vista neuronal, tais associações de informações são
configuradas a partir de alterações de conexões sinápticas. Demências semânticas são
exemplos de condições onde processos degenerativos afetando o córtex associativo
temporal comprometem as habilidades verbais dos pacientes afetados, fazendo com que
eles tenham dificuldade para encontrar palavras, nomear objetos e compreender
conceitos. Alguns estudos correlacionam memória semântica e distúrbios do
pensamento em psicoses esquizofrênicas e sugerem que a capacidade de
compreendermos adequadamente os significados do mundo tem muito a ver com a
habilidade de contextualizar a informação. Por exemplo, nas frases O homem chegou à
lua e O homem matou a sua esposa, existem diferenças nos significados de homem, as
quais são automaticamente detectadas por indivíduos saudáveis, que são capazes de
ativar saudavelmente suas redes semânticas e encontrarem os conceitos mais

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Neurociência e Psicopatologia

apropriadamente empregáveis em cada uma das situações. Indivíduos portadores de


esquizofrenia e até mesmo pessoas com condições de vulnerabilidade às psicoses, como
os parentes assintomáticos de primeiro grau de esquizofrênicos ou indivíduos com
traços esquizotípicos de personalidade seriam susceptíveis a ativarem exageradamente
estas redes, acionando conceitos muito distais – e, portanto, descontextualizados – o que
resultaria em maior dificuldade em encontrar os sentidos mais apropriados para homem
naquelas frases. A ambiguidade semântica gerada nestas pessoas por situações
semelhantes às do exemplo acima poderia estar por trás do aparecimento de sintomas do
pensamento como os delírios, que são falsas crenças resistentes à argumentação lógica,
muito comuns em indivíduos sofrendo de psicoses esquizofrênicas (Tonelli, 2014).

O córtex associativo frontal

O córtex associativo frontal tem como principal função o controle do comportamento


motor dirigido a um objetivo. Esta área do cérebro planeja o comportamento,
priorizando e selecionando as informações mais relevantes em um determinado
momento, inibindo outras. Profissionais de saúde mental costumam dizer que um
paciente excessivamente desinibido, com comportamentos inconvenientes e impulsivo
está “desfrontalizado”, referindo-se à aparente falta de mediação do comportamento
pelo córtex frontal, o que resulta em atitudes inadequadas, indiscretas, impulsivas ou
perigosas. Estes comportamentos são inespecíficos, isto é, não são exclusivos de um ou
de outro transtorno mental e podem acontecer em pacientes portadores de demências,
esquizofrenia, TDAH ou na fase maníaca do transtorno bipolar, por exemplo.

Áreas frontais conectam-se em série, hierarquicamente; assim, o córtex motor


primário ou M1 (área 4 de Brodmann) é o ponto final do processamento frontocortical
e, como já foi dito antes, a região de onde partem os neurônios que acionarão os
músculos voluntários, produzindo movimento. Mas o córtex motor primário é regulado
por neurônios de outras áreas frontais, os quais o fazem a partir de informações
relevantes que conduzem, por exemplo, material de natureza emocional ou mnêmica.
Áreas pré-motoras conectam-se ao córtex motor primário e processam aspectos globais
do comportamento motor, como a coordenação dos membros durante a realização de
um determinado movimento. Os populares neurônios espelho estão localizados no
córtex pré-motor e são células que entram em ação quando executamos ou observamos
outras pessoas executarem determinados tipos de movimentos, mas não quaisquer

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Neurociência e Psicopatologia

movimentos. Os tipos de movimentos executados ou observados que excitam os


neurônios espelho têm um forte caráter intencional, isto é, não são simples ações, e
abrangem atos de agarrar, puxar, prender, alcançar, manipular, para citar apenas alguns.
Ao dispararem mediante a observação destas ações e não exclusivamente à sua
execução, sugerem alguns autores que estas células colaboram para que
compreendamos os comportamentos das outras pessoas, através da simulação de suas
intenções. Seria como se, por meio da representação neural destas intenções, que se
caracteriza pela simulação de um estado motor/intencional das pessoas a nossa volta,
pudéssemos nos colocar “dentro delas” e entendê-las melhor. De fato, há quem sugira
que pelo menos uma fração de nossas capacidades empáticas poderiam ser mediadas
pelos neurônios espelho, bem como que prejuízos à atividade deles poderiam estar por
trás de déficits cognitivos sociais, ou das capacidades inatas e espontâneas que temos de
decifrar as outras pessoas, déficits bem descritos em transtornos como o autismo, a
esquizofrenia e em alguns transtornos de personalidade.

Áreas corticais pré-motoras, por sua vez, recebem influências da região


dorsolateral do córtex pré-frontal, que tem um importante papel no controle cognitivo
do comportamento. É esta região que fica mais ativa quando, diante de um alimento
muito saboroso, mas altamente calórico, começamos a pensar se vale a pena consumi-
lo, haja vista o risco de ganho de peso. Quando usamos da reflexão para inibir uma
tendência comportamental, nosso cérebro está exercendo um controle cognitivo sobre os
impulsos. Como o córtex pré-frontal dorsolateral recebe informação emocional de
outras regiões do córtex frontal, principalmente da região órbitofrontal, ele acaba tendo
de regular o desejo e o impulso de consumir aquilo e, quando está saudável, é capaz de
refrear as tendências imediatistas impostas pelas emoções e motivação. Estudos de
neuroimagem funcional têm demonstrado que a atividade do córtex pré-frontal
dorsolateral está prejudicada em indivíduos sofrendo de obesidade mórbida (Carnell e
cols, 2012), fazendo com que eles percam o “freio inibitório” proporcionado por esta
região do cérebro, causando uma dificuldade de controlar adequadamente o
comportamento alimentar, por um aumento da impulsividade para consumir alimentos,
particularmente os mais calóricos. Poderíamos, portanto, afirmar, que a obesidade
mórbida “desfrontaliza” aqueles que dela sofrem. Os mecanismos envolvidos no
prejuízo do controle cognitivo em indivíduos obesos mórbidos envolvem inflamação
cerebral (Castanon e cols., 2014; Fernández-Sánchez e cols, 2011), resistência cerebral

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Neurociência e Psicopatologia

à insulina (Heni e cols, 2015) e influências da flora intestinal modificada pela obesidade
no trabalho do cérebro (Alcock e cols., 2014; Rogers e cols., 2016). Ao contrário,
acredita-se que pessoas sofrendo de anorexia nervosa, um transtorno alimentar
caracterizado por deturpações da imagem corporal e uma impressionante capacidade de
não comer, desenvolvam uma espécie de “hipercapacidade” inibitória frontocortical ou
uma “hiperfrontalização”. Outras condições psiquiátricas estão associadas a disfunções
do córtex associativo frontal, por exemplo, o TDAH e a esquizofrenia, mas atualmente
sabemos que quaisquer transtornos mentais podem afetar o funcionamento desta
importante região do cérebro, na medida em que, em todas estas condições, a atividade
de outras regiões cerebrais parece não “desligar” em momentos em que isso é
necessário, a fim de “dar licença” para que o córtex frontal funcione. Muitos pacientes
deprimidos se queixam de que não conseguem se concentrar para tomar decisões porque
seus pensamentos depressivos “invadem” sua mente, da mesma forma que muitos
ansiosos sofrem do mesmo problema. Alguns dependentes químicos dizem que, quando
“fissurados”, perdem completamente a capacidade de usar a mente para qualquer outra
atividade que não seja pensar em obter ou consumir uma droga. Portadores de obesidade
mórbida têm queixas muito parecidas com a dos dependentes químicos, relacionadas ao
consumo de alimentos calóricos, o que reforça a tese de alguns pesquisadores da
obesidade de que ela seria uma forma de dependência da comida.

Já discutimos que neurônios pré-frontais disparam em testes de resposta


atrasada, mantendo na mente informações importantes em um determinado momento,as
quais já não estão disponíveis sensorialmente, um processo cognitivo denominado
memória de trabalho. A memória de trabalho é avaliada neuropsicologicamente por
diversos testes, como o teste de Stroop e o teste Wisconsin de classificação de cartas.
No primeiro, são apresentados nomes de cores escritos com letras de cores diferentes da
cor que a palavra representa (por exemplo, a palavra “vermelho” escrita em verde), e
pede-se ao indivíduo testado que preste atenção apenas na cor daquelas palavras. Se
você fizer o teste de Stroop, perceberá que sua mente experimentará um conflito entre
duas informações que lhe são apresentadas simultaneamente (a representação verbal e a
sensorial de uma cor), precisando um pouco mais de esforço cognitivo para resolver a
tarefa do que seria necessário para simplesmente ler o que está escrito. Para a adequada
execução daquela tarefa, os neurônios do córtex pré-frontal dorsolateral terão de manter
em sua mente uma representação da tarefa, que é a de prestar atenção ao aspecto

52
Neurociência e Psicopatologia

sensorial da informação, suprimindo a tendência automática de ler, que, como também


estudamos acima, seria reforçada por neurônios da memória de trabalho especializados
no processamento de material verbal. O teste Wisconsin de classificação de cartas é um
teste em que os indivíduos avaliados têm de descobrir as regras para acertar no arranjo
de grupos de cartas, de acordo com cor, forma ou quantidade de figuras nelas
representadas. O acerto depende da capacidade do indivíduo testado de prestar atenção
em estímulos relevantes, selecionando-os e priorizando-os, para que consiga descobrir a
regra proposta pelo examinador. Indivíduos com lesões do lobo frontal tendem a
perseverar em estratégias inadequadas de resolução do teste Wisconsin.

O córtex pré-frontal dorsolateral recebe influências regulatórias da região


órbitofrontal, uma área envolvida em processos emocionais relacionados ao
comportamento e as tomadas de decisão. Pacientes com do córtex órbitofrontal falham
em testes neuropsicológicos como o Gambling Task, que mede a capacidade de escolher
as melhores cartas de um baralho com base na ponderação acerca de recompensa e
punição, representados, respectivamente, por ganhos e perdas financeiras. Indivíduos
saudáveis aprendem que o melhor desempenho nesta tarefa está relacionado ao
aprendizado de que determinados grupos de cartas são mais adequados, pois, apesar de
terem menor retorno financeiro (menor recompensa), também “punem” menos, ao passo
que indivíduos com prejuízos no processamento órbitofrontal parecem não sofrer os
mesmos efeitos aversivos da antecipação das perdas dos indivíduos saudáveis, o que faz
com que perseverem em escolhas ruins. Isso ilustra que as emoções têm um papel
definitivo em nossas tomadas de decisão, seja por seus aspectos aversivos, seja por seus
aspectos recompensadores. Portanto, a ideia compartilhada de que boas decisões são
tomadas deixando-se as emoções à parte e utilizando-se apenas da razão não somente é
inadequada como parece ser impossível do ponto de vista neuropsicológico. É verdade
que algumas pessoas têm uma impressionante capacidade de antecipar problemas e se
deixarem influenciar por pensamentos que evocam emoções desagradáveis, mesmo
quando estão passando por momentos muito favoráveis de suas vidas. Diz-se que estas
pessoas têm um alto nível de neuroticismo. Por neuroticismo subentende-se, portanto,
uma disposição variável nas pessoas de se incomodarem com pensamentos e emoções
negativos de vários tipos. Indivíduos com maiores escores em instrumentos que
“medem” este traço têm maior risco de desenvolverem transtornos mentais. Sugere-se
que indivíduos mais “neuróticos” sejam também mais criativos, por conta de sua

53
Neurociência e Psicopatologia

tendência constante a ter pensamentos autogerados (ou pensamentos estímulo


independentes) não necessariamente negativos. Pensamentos autogerados são
pensamentos que não têm uma relação imediata com a informação sensorial recebida no
momento em que eles ocorrem, razão pela qual eles podem, através de reativação de
memórias e imaginação de novas situações, tanto antecipar problemas – causando,
assim, emoções desagradáveis – quanto soluções. Diversos estudos sugerem que a
origem cerebral dos pensamentos autogerados engloba regiões mediais do córtex
frontal, como o córtex órbitofrontal ventromedial, região que faz parte da rede default,
um conjunto de estruturas cerebrais interconectadas, cuja atividade é mais evidente em
momentos em que não executamos nenhuma tarefa que exija esforço cognitivo.
Atualmente postula-se que em vários transtornos mentais existam dificuldades variáveis
de se “abaixar o volume” da rede default, a qual passa a invadir a mente de forma
indesejável com seus pensamentos carregados de emoções negativas, prejudicando a
capacidade de concentração, de resolução de problemas e de tomadas de decisão
(Perkins e cols., 2015). É muito comum que pessoas com problemas de depressão e
ansiedade se queixem de não conseguirem controlar pensamentos desagradáveis a
respeito do passado e do futuro.

As funções dos lobos frontais compreendem diferentes tipos de processamento


de informação, os quais variam desde as funções executivas – que “organizam” a
utilização das memórias, percepções e crenças dando forma ao raciocínio, ao
pensamento e à linguagem – até a regulação da expressão emocional, que está por trás
de diversos traços de personalidade e estilos de controle de impulso. Desta forma,
funções frontais costumam estar comprometidas em praticamente todos os transtornos
mentais. No transtorno bipolar do humor, este comprometimento pode resultar em
comportamentos sociais inapropriados, muito comuns nas crises maníacas, ou na
dificuldade em tomar decisões dos pacientes deprimidos. No transtorno obsessivo
compulsivo, falhas em processos executivos associados à regulação do pensamento e
das ações resultam em imagens e ideias intrusivas (obsessões) e comportamentos
compulsivos; na catatonia, um fenômeno caracterizado por imobilidade motora de
origem neurológica, que pode acontecer em portadores de esquizofrenia ou de
transtornos do humor, falhas na regulação de processos motores dão origem a estes
intrigantes sintomas.

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Neurociência e Psicopatologia

É possível, inclusive, identificar “assinaturas psicopatológicas” relacionadas a


disfunções em diferentes circuitos frontocorticais, isto é, alguns quadros
neuropsicológicos podem ser explicados a partir de prejuízos no trabalho de vias neurais
bem específicas do lobo frontal. Assim, quando disfuncional o circuito dorsolateral
origina déficits executivos, problemas no raciocínio e na solução de problemas,
aprendizado e habilidades motoras, comuns, por exemplo, no TDAH. Quando muito
severos, os déficits executivos podem causar problemas na capacidade de autocuidados,
intensa apatia, falta de iniciativa, embotamento emocional, diminuição da
espontaneidade e mutismo, sinais e sintomas que podem acometer tanto pacientes
sofrendo de esquizofrenia quanto de depressão.

O circuito frontocortical órbitofrontal tem duas subdivisões, a lateral e a medial.


Sinais e sintomas decorrentes de prejuízos na função órbitofrontal lateral associam-se a
fenômenos de desinibição, que incluem irritabilidade, instabilidade emocional e
impulsividade, característicos da fase maníaca do transtorno bipolar ou de alguns
transtornos de personalidade. O comprometimento da função órbitofrontal medial
também está associado a anormalidades na expressão emocional, porém os sinais e
sintomas mais comuns são agressividade, medo patológico e depressão, em razão de
suas conexões diretas com a amígdala (Taylor e Vaidya, 2009). Como foi estudado logo
acima, a parte medial do córtex órbitofrontal associa-se à produção de pensamentos
autogerados ou estímulo independentes, os quais podem contribuir para o aparecimento
de emoções disfuncionais em pessoas com alto grau de neuroticismo, seja através de
exageradas simulações de um futuro catastrófico, seja através de insistentes lembranças
de um passado considerado penoso.

O córtex associativo límbico

Funções tradicionalmente atribuídas ao sistema límbico, particularmente o


processamento de emoções, são atualmente reconhecidas como tarefas das porções
ventromedial e órbitofrontal do córtex frontal, áreas que também fazem parte do córtex
associativo límbico. Este córtex associativo abrange uma série de estruturas localizadas
na linha média, em torno do corpo caloso, como o córtex do cíngulo, o córtex entorrinal,
a formação hipocampal e o córtex parahipocampal, áreas mais relacionadas ao
processamento da memória do que propriamente de emoções. O sistema límbico,
primeiramente descrito por Papez, incorpora, além das regiões corticais acima descritas,

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Neurociência e Psicopatologia

núcleos subcorticais conectados entre si, como a amígdala, o hipotálamo, os corpos


mamilares, o septo, o núcleo acumbens e a área tegmental ventral mesencefálica.
Conforme discutido anteriormente, o hipotálamo tem um papel fundamental na
manutenção de processos homeostáticos, como a regulação do apetite, da sede, do ritmo
sexual, regulação das secreções da glândula hipófise e, através de suas íntimas relações
com o sistema nervoso autônomo, também regula ritmo cardíaco, pressão sanguínea,
temperatura, níveis de glicemia e funções viscerais. A íntima relação do sistema límbico
com o sistema nervoso autônomo é um aspecto chave do processamento emocional, na
medida em que as estruturas límbicas influenciam as funções autonômicas. E estas
influenciam o cérebro e, por conseguinte, a mente. Foi William James, considerado o
pai da psicologia americana, quem primeiro sugeriu, no final do século XIX, que as
emoções são configuradas a partir dos sinais corporais periféricos – alterações do ritmo
cardíaco, da pressão sanguínea e de outros parâmetros corporais – e que só são tornadas
conscientes quando estes sinais são interpretados pelo córtex e transformados em
sentimentos. O córtex também dá um tratamento cognitivo aos sentimentos, fazendo
com que determinados pensamentos acompanhem certas emoções. Para James, portanto,
as emoções são a percepção por nossa mente de alterações de condições fisiológicas
precipitadas por algum estímulo externo. As emoções têm, portanto, componentes
somáticos e cognitivos; os últimos abrangem as alterações atencionais, de memória e
pensamentos característicos que acompanham cada sentimento emocional.

Sinais vindos dos estímulos ambientais são detectados por nossos órgãos dos
sentidos e, através das conexões das vias sensoriais com estruturas do sistema límbico –
particularmente a amígdala – passam a exercer influência sobre o hipotálamo e tronco
cerebral, os quais medeiam mecanismos neuroquímicos para a promoção de alterações
na atividade autonômica e liberação de hormônios do estresse, como o cortisol. Existe,
também, influência direta da amígdala sobre neurônios motores, promovendo certos
comportamentos reflexos, como o freezing (ou congelamento), em que a musculatura
esquelética é totalmente paralisada, fazendo com que o fiquemos completamente
imóveis diante de uma situação de perigo. O freezing é um comportamento útil em
situações de perigo distal, isto é, em que uma ameaça não está tão próxima a ponto de
justificar uma reação de luta e fuga, sendo melhor ficar imóvel e em silêncio,
aguardando a cessação do perigo, de forma a economizar uma enorme quantidade de
energia a ser investida em um possível enfrentamento ou fuga. Mas a amígdala também

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Neurociência e Psicopatologia

se conecta a diversas estruturas corticais, participando da regulação de aspectos


cognitivos da resposta emocional, como atenção, memória e processos de tomada de
decisão.

Como foi discutido logo acima, a amígdala está constantemente “atenta” a


estímulos ambientais sugestivos de perigo ou de recompensa. De fato, alguns estímulos
são naturalmente dotados de valência ou competência emocional positiva (reforçadora)
ou negativa (aversiva), isto é, não é necessário nenhum aprendizado para o
reconhecimento do que estes estímulos significam. Em psicologia comportamental eles
também são chamados de estímulos não condicionados. Através do aprendizado
associativo ou condicionamento somos capazes de “carregar” estímulos naturalmente
sem competência emocional de um potencial para desencadear respostas emocionais.
Estes estímulos passam, então, a ser chamados de estímulos condicionados. A amígdala
tem um papel essencial no fenômeno de condicionamento clássico (ou Pavloviano), isto
é, a capacidade de deflagramos uma resposta emocional frente a um estímulo
inicialmente sem valência emocional (por exemplo, um som ou uma luz), o qual foi
condicionado através do pareamento com um estímulo não condicionado (por exemplo,
presença de alimento ou um choque elétrico).

Vejamos com isso funciona com um pouco mais de detalhe. Suponha que
condicionemos um animal experimental pareando um som (estímulo condicionado) e
um choque elétrico (estímulo não condicionado). O animal condicionado apresentará
respostas emocionais de medo caracterizadas por alterações de sua frequência cardíaca e
respiratória, pressão arterial e liberação de substâncias relacionadas ao estresse cada vez
que ouvir aquele som, mesmo que não receba o choque em seguida, pois sua mente
aprendeu que outra experiência desagradável acompanha aquele som. É verdade que, se
não receber o choque pareado ao som outras vezes, o condicionamento se extingue, ou
seja, o animal “se esquece” da relação entre o estímulo sonoro e o estímulo doloroso.
Ainda bem que isso acontece, pois não seria conveniente que houvesse armazenamento
de todas as informações relacionadas a associações entre estímulos condicionados e não
condicionados, mesmo aqueles pouco significativos ou com baixa frequência de
ocorrência, pois isto seria um gasto desnecessário de energia. Todavia, muitos pacientes
ansiosos parecem nunca se esquecerem de determinadas associações espúrias que
acabam fazendo entre eventos não necessariamente relacionados ou meramente
coincidentes. Existem pacientes que ficam ansiosos quando, por exemplo, transitam por

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Neurociência e Psicopatologia

lugares onde anteriormente tiveram uma crise de pânico. Estas crises costumam ser
muito dramáticas, apesar de aparentemente inofensivas, e se caracterizam pelo
aparecimento súbito e inexplicável de sintomas como taquicardia, falta de ar, sensações
de formigamento em extremidades, tonturas, desconforto abdominal e sensação de
morte súbita ou de enlouquecimento. Evidentemente o quadro é bastante intenso e,
como qualquer experiência emocional dramática, nossa mente “exige” uma explicação,
nem sempre imediatamente disponível, a respeito do que aconteceu. É comum e
compreensível que quem quer que seja que sofra uma crise de pânico passe a acreditar
que teve um mal súbito cardíaco e que é necessária uma investigação médica urgente,
afinal de contas, esta seria uma explicação plausível. Quem já teve um ataque de pânico
costuma desenvolver temores recorrentes de voltar a ter outro episódio semelhante, o
que explica muitos comportamentos de esquiva. Para quem sofre de pânico
normalmente é difícil aceitar que todos aqueles sintomas foram “apenas uma crise
emocional”, por isso é comum que estes pacientes aceitem procurar um profissional de
saúde mental para se tratarem. Pois bem, em muitos dos casos descritos a amígdala
parece estabelecer uma associação entre o episódio de pânico e quaisquer estímulos
sensoriais presentes no momento daquele evento, promovendo o receio – reconhecido
pelos próprios pacientes como absurdo – de transitar por aqueles locais, achando que
assim evitam o risco de terem aqueles sintomas novamente.

Mas voltemos ao animal condicionado: o que faz com que ele se condicione? A
função de “memória” e de “aprendizado” da amígdala. Embora ela não seja um
reservatório de memórias declarativas, ela é capaz de “se recordar” ou de “aprender”.
Vejamos como a amígdala desempenha esta tarefa examinando o trajeto seguido por
cada um dos estímulos que nosso animal experimental recebeu pelo sistema nervoso
central e de que forma é feita a associação entre ambos. Conforme aprendemos acima, o
som segue suas vias sensoriais até o tálamo, uma das estações de retransmissão
sensorial e, em seguida, para o córtex auditivo primário. O choque é um estímulo
nociceptivo ou nocivo; portanto, existem receptores para estímulos dolorosos
distribuídos pela superfície do corpo e estes receptores podem ser mecânicos, térmicos e
químicos, para os diferentes tipos de dores que eles transduzem. Os sinais destes
receptores seguem por vias sensoriais até o tálamo e depois, para o córtex
somatossensorial primário. Todavia, tanto o estímulo doloroso quanto o sonoro são
tratados conjunta e diretamente pela amígdala, mais precisamente por um de seus

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Neurociência e Psicopatologia

núcleos, o núcleo lateral, antes de serem processados pelos córtices sensoriais primários.
A amígdala, ao processar conjuntamente os dois estímulos, associa-os, através de
modificações sinápticas, de forma que o som, antes um estímulo sensorial neutro, passe
a ser capaz de deflagrar respostas corporais ao estresse, como o aumento da frequência
cardíaca, respiratória e da pressão arterial, liberação de substâncias do estresse e,
quando conveniente, comportamentos motores do tipo freezing ou de luta e fuga. O
aprendizado proporcionado pela amígdala é do tipo associativo, baseado no pareamento
entre dois estímulos, onde um deles tem valência emocional negativa ou positiva. Trata-
se de um aprendizado (ou de uma memória) reflexo, implícito ou não declarativo, que
gera respostas automáticas. No entanto, nada impede que o material “aprendido” pela
amígdala adquira um caráter mais explícito e isso é possível graças às conexões que ela
tem com o hipocampo. Por esta razão é que aquelas associações “acidentalmente” feitas
pela amígdala de indivíduos ansiosos passam também a ter um caráter explícito,
tornando-os conscientes de que têm receio de passar por este ou por aquele local,
evitando-os ostensivamente, e não simplesmente disparem reações ansiosas automáticas
quando passam por ali, embora isso também ocorra.

Como o ser humano é uma espécie altamente social, somos muito dependentes
de nossa capacidade de “decifrar” as pessoas, isto é, compreender de forma espontânea
e automática, quais são seus estados mentais. Isso porque ao estarmos aptos para
reconhecer implicitamente desejos, crenças e intenções das outras pessoas, isto é, de
gerar representações mentais dos estados mentais delas, conseguimos prever seus
comportamentos com uma boa probabilidade de acerto. Estudos de neuroimagem
funcional mostram que a atividade da amígdala aumenta quando somos expostos a
expressões faciais, particularmente expressões de medo, raiva, nojo e prazer,
consideradas emoções simples ou básicas. Pois bem, sendo as expressões faciais das
pessoas com quem vivemos marcadores ambientais fundamentais em nossa espécie, é
compreensível porque a amígdala está tão atenta a elas: estas expressões podem nos dar
sinais muito confiáveis das intenções destas pessoas, mas também podem nos alertar a
respeito de perigos detectados primeiramente por elas. Suponha que você está andando
por uma trilha selvagem junto de um amigo e que ele veja uma serpente antes de você.
Por conta da sensibilidade que sua amígdala tem por faces humanas, ela será muito
rápida em captar as expressões faciais de seu amigo após ele ter visto a serpente, e de
interpretar, embora em um nível subconsciente, que ele encontrou alguma coisa

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Neurociência e Psicopatologia

ameaçadora. Lembre-se também do que acontece na mente de seu amigo. A amígdala


dele percebe a serpente em um nível pré-consciente e dispara sinais para o corpo para
que ele tome providências de fugir, congelar ou lutar antes que ele tenha consciência do
que acaba de ver.

Mas interações sociais também são pautadas por estados emocionais complexos,
os quais abrangem sentimentos como vergonha, culpa, orgulho, indignação e desprezo,
que, ao contrário de emoções mais simples, não ocorrem de forma tão automática e
incluem um viés cognitivo importante. Estas emoções são processadas em outras áreas
corticais, incluindo as regiões órbitofrontal e medial do córtex pré-frontal, cujas lesões
podem levar a comportamentos antissociais, como desobediência a regras e normas
sociais, desrespeito ao direito dos outros e falta de empatia. Como vimos acima,
disfunções em circuitos órbitofrontais laterais costumam ser acompanhados de
comportamentos impulsivos, irritabilidade e desregulação emocional, que são muito
comuns não apenas em sociopatas, mas em outros transtornos de personalidade,
causando problemas no convívio social. Mas problemas na expressão destas emoções
ocorrem em praticamente todos os transtornos mentais.

A afetividade humana é extremamente complexa e tentar estudar o repertório


emocional humano restringindo-se às emoções básicas comunicadas pelas expressões
faciais é correr o risco de empobrecer o assunto. Atualmente a compreensão
neurobiológica do grupo das emoções denominadas secundárias, morais ou sociais tem
se desenvolvido muito. E aqui, como em muitas áreas da neurociência, é difícil separar
o estudo das emoções complexas de sua relação com a cognição social. Uma evidência
desta associação é a grande superposição de áreas cerebrais que são ativadas tanto por
estas emoções quanto por outras operações mentais relacionadas ao convívio social, tais
como a percepção de pistas sociais (que ativa a junção temporoparietal, uma importante
área do cérebro social) e o conhecimento conceitual social (que recruta o córtex
temporal anterior) (Fontenelle e cols, 2015). Observadas em contextos sociais, estas
emoções podem ser categorizadas como pró-sociais e socialmente aversivas.

Emoções pró-sociais como culpa, vergonha, embaraço, compaixão e gratidão


levam à cooperação, reciprocidade e conformidade social. Algumas das emoções pró-
sociais estão presentes nas relações entre pais e filhos e entre cônjuges, por exemplo;
outras aparecem na ligação que podemos desenvolver com outras coisas, como a

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Neurociência e Psicopatologia

natureza, valores, ideias e crenças. Emoções socialmente aversivas como o desprezo, a


raiva e a indignação são experimentadas diante da observação da violação de direitos ou
regras e comumente deflagram comportamentos agressivos, punição, dissolução de
grupos sociais e sua reorganização.

É difícil descrever a essência fenomenológica das emoções. No entanto,quando


as experimentamos, sabemos muito bem a que elas servem. Por exemplo, o nojo,
considerado uma emoção básica, pode ser definido como o sentimento de repulsa
relacionado à perspectiva de se colocar na boca algo supostamente contaminado.
Todavia, a evolução parece ter selecionado mais um papel para esta emoção, em
contextos sociais, fazendo com que ela sirva tanto para a proteção do corpo (quando
sentimos o que é chamado de “nojo essencial”, por exemplo, diante da perspectiva de
ingerir comida contaminada), quanto para a proteção da “alma” em situações onde
aspectos morais estão em jogo. Situações de violação de regras e normas sociais e
crimes cometidos por outras pessoas podem nos causar fortes sentimentos de desprezo e
de indignação (“nojo moral”) dirigidos ao agente daquelas ações, como que para nos
protegermos da “contaminação” por elas. Todavia, o tipo de violação de regras que
deflagra o nojo social é predominantemente de ordem corporal, como agressão física ou
sexual. Veremos que violações de normas sociais estão mais relacionadas ao sentimento
de indignação. Regiões cerebrais simultaneamente ativadas pelo nojo essencial e moral
incluem a amígdala, os gânglios da base, o córtex órbitofrontal lateral, a ínsula, o córtex
anterior do cíngulo, o córtex temporal inferior. Embora tanto o nojo essencial quanto o
nojo moral gerem o mesmo tipo de representação, parece que eles recrutam
seletivamente diferentes regiões corticais. Assim, o nojo moral parece ativar
adicionalmente o córtex da junção temporoparital, uma das áreas relacionadas ao
processamento da cognição social. Expressões psicopatológicas do nojo costumam
aparecer nas fobias, nos temores que pacientes obsessivo-compulsivos podem ter de
contaminação e de sujeira, mas também na repulsa que alguns pacientes podem
desenvolver de si mesmos quando têm obsessões de temática violenta, sexual ou
religiosa. Algumas pacientes anoréxicas desenvolvem repulsa por alimentos calóricos.

A culpa aparece quando achamos que causamos algum tipo de dano a alguém,
mas também pode ocorrer quando transgredimos alguma regra. Estudos de
neuroimagem mostram que esta emoção complexa recruta as regiões anterior,
dorsolateral e órbitofrontal lateral do córtex pré-frontal, o córtex temporal anterior, a

61
Neurociência e Psicopatologia

ínsula, a amígdala, o córtex anterior do cíngulo e o sulco temporal superior. Logo,


lesões nestas áreas podem estar associadas a comportamentos antissociais “adquiridos”,
quando indivíduos com histórias pessoais de comportamentos adequadamente guiados
do ponto de vista ético, passam a desenvolver atitudes egocêntricas, ilícitas ou imorais
depois da lesão. Em contraste, a culpa patológica pode existir em estados depressivos,
no transtorno do estresse pós-traumático (pacientes abusadas sexualmente podem sofrer
de insuportáveis ideias de culpa e vergonha, incontroláveis através da argumentação de
que não foram responsáveis pelo que aconteceu com elas) e em colecionadores
patológicos (ao serem obrigados a se desfazerem de objetos). Sentimentos de culpa
podem, ainda, surgir nas dependências químicas, normalmente após o consumo da
substância, e, da mesma forma, em adições comportamentais, como a tricotilomania, no
transtorno de escoriação, no jogo patológico e nos transtornos de controle dos impulsos.

A raiva é um sentimento negativo frequentemente associado a algum obstáculo


na trajetória que leva à realização de um desejo e não envolve, obrigatoriamente, um
contexto moral. Mas a indignação sim. Ela costuma associar-se à percepção de
injustiças ou de violação de regras sociais e, como vimos, ao contrário do nojo social,
do qual pode compartilhar muitas características fenomenológicas, a indignação
acontece mais frequentemente diante de violação de normas sociais. Muitas vezes a
raiva e a indignação favorecem comportamentos agressivos. Áreas cerebrais como o
córtex órbitofrontal lateral, o córtex pré-frontal dorsolateral, o córtex pré-frontal
anterior, a ínsula, a amígdala e o córtex anterior do cíngulo são ativadas em indivíduos
sentindo estas emoções. Condições psicopatológicas em que estes sentimentos são
comuns incluem a mania, as psicoses, em alguns transtornos de personalidade
(particularmente os transtornos paranoide e borderline) e também em indivíduos
autistas.

A vergonha é uma emoção presente quando existe uma ameaça à reputação e


motiva a busca por reparar uma opinião positiva a nosso respeito, podendo associar-se a
sentimentos de baixa autoestima. O embaraço é um tipo mais ameno de vergonha, pois,
ao contrário desta, não precisa vir acompanhado de sentimentos de rebaixamento da
autoestima ou do status social. Uma condição psicopatológica classicamente associada à
presença de fortes sentimentos de vergonha relacionados ao escrutínio social é a fobia
social, mas ela pode acontecer em várias outras condições, como a anorexia nervosa e
os distúrbios da imagem corporal, o transtorno do estresse pós-traumático e a depressão.

62
Neurociência e Psicopatologia

Regiões comumente recrutadas em estados mentais de vergonha incluem amígdala,


ínsula, estriado ventral e o córtex pré-frontal dorsomedial.

Conclusões

O presente texto teve um enfoque psicobiológico, isto é, ele parte do princípio de que a
mente é produto da atividade cerebral, mais especificamente do trabalho dos neurônios,
que se organizam de forma peculiar em diferentes regiões do cérebro. Grande parte
deste trabalho consiste na geração de representações mentais, que, grosso modo, são
cópias, imagens ou mapas das coisas, do mundo, das pessoas e de suas mentes, de nosso
espaço pessoal, do espaço a nossa volta e até mesmo de nossa própria atividade mental.
Os transtornos psiquiátricos são condições em que existem subversões de
representações mentais derivadas de processos patológicos afetando os neurônios
responsáveis por elas. Ainda não somos capazes de identificar quais processos são estes,
apesar de já termos recursos terapêuticos eficazes e relativamente seguros para corrigi-
los. Além disso, métodos de estudo da atividade cerebral, como a ressonância magnética
funcional, já permitem a identificação de quais áreas estão mais ativas quando o cérebro
desempenha uma tarefa específica. Estes estudos podem elucidar muito a respeito do
que acontece no cérebro de pessoas sofrendo de transtornos psiquiátricos, já que muitos
deles mostram ativação anômala de regiões do cérebro em várias destas condições.
Portanto, o enfoque psicobiológico da mente normal e da mente perturbada é de imenso
valor não só na busca de tratamentos biológicos para condições como a esquizofrenia, o
transtorno bipolar, a depressão e os vários transtornos ansiosos, que tanto sofrimento
trazem para as pessoas que delas sofrem, como para a compreensão de tratamentos
tradicionalmente considerados “psicológicos”, como as psicoterapias e as reabilitações
cognitivas. Dizer que estes tratamentos não têm um viés biológico é um subproduto de
nosso dualismo intuitivo, que tem, em si, alguns riscos. Em primeiro lugar, a crença de
que, por sua essência puramente psicológica, eles seriam inócuos. Em segundo lugar,
sua aplicação “liberal”, destituída, por exemplo, de estudos de eficácia e segurança.
Juntos, a percepção de que métodos terapêuticos psicológicos são inocentes e sempre
seguros e o consequente uso indiscriminado de muitas destas técnicas, além de
potencialmente prejudiciais aos pacientes, acabam por diminuir o interesse pelo estudo
científico de seus “mecanismos de ação”, isto é, de como se dá sua ação no tecido
cerebral, de forma a aliviar o sofrimento psíquico, bem como de possíveis efeitos
indesejáveis decorrentes de sua aplicação. Como o leitor crítico certamente observou, a

63
Neurociência e Psicopatologia

discussão de muitos aspectos de neuroanatomia e neurofisiologia aqui realizada foi uma


“visão panorâmica” destes instigantes temas, cujo principal objetivo foi o de estimular o
seu interesse por buscar o aprofundamento do assunto através de textos onde há maior
aprofundamento do assunto. E há muitos textos e artigos de excelente qualidade, alguns
deles sugeridos na bibliografia a seguir. Além de uma introdução à neuroanatomia e à
fisiologia do sistema nervoso central, procurei fazer algumas correlações entre
processos subvertendo a normalidade fisiológica do sistema nervoso central e suas
resultantes psicopatológicas. Estas correlações têm como principal objetivo mostrar ao
leitor que, através do estudo das raízes biológicas do sofrimento psíquico, podemos
encontrar algumas respostas e alguns insights sobre a origem cerebral da mente.

Bibliografia

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