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SENSAÇÃO, PERCEPÇÃO, PROPRIOCEPÇÃO?

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Emerson Fachin-Martins Flora Vezzá


University of Brasília SESI - Serviço Social da Indústria, São Paulo, Brazil
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COMUNICAÇÃO SAÚDE

SENSAÇÃO, PERCEPÇÃO, PROPRIOCEPÇÃO?


SENSATION, PERCEPTION, PROPRIOCEPTION?
Flora Maria Gomide Vezzá1 e Emerson Fachin Martins2
1
Professora do Curso de Fisioterapia da Universidade Municipal de São Caetano do Sul – USCS; mestre em Engenharia de Produção,
pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo – USP.
2
Professor do Curso de Fisioterapia da Universidade Municipal de São Caetano do Sul – USCS; doutor em Psicologia, pelo Programa
de Neurociências e Comportamento do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – USP.

É comum ouvir estudantes de Fisioterapia – e somente uma pequena parte torna-se consciente. Já
vários profissionais também – estabelecerem como o termo percepção refere-se a um fenômeno de
um dos objetivos do tratamento a “propriocepção”, ordem diversa da sensação. A percepção2 é a capaci-
ou registrarem na conduta da sessão “exercícios de dade de vincular os sentidos a outros aspectos da exis-
propriocepção” – na prancha de equilíbrio ou na cama tência, como o comportamento, no caso dos animais
elástica, por exemplo. Outros dizem que é preciso em geral, e o pensamento, no caso dos seres humanos.
“dar propriocepção ao paciente” ou “melhorar a Três grandes grupos de aferências atingem o siste-
propriocepção” de uma determinada região ou grupo ma nervoso. O primeiro é o grupo das sensações que
muscular. Quando o paciente aprende um novo vêm de dentro do corpo, chamadas de sensações inte-
movimento ou postura, diz-se que ele adquiriu “cons- roceptivas, ou interocepções. O segundo grupo reúne
ciência corporal” ou percepção corporal. Quando as sensações que vêm do exterior, denominadas exte-
perguntados a respeito, a maioria dos estudantes tem rocepções, através dos cinco sentidos descritos desde
dificuldades em definir o significado destes termos, a Grécia antiga: visão, audição, tato, paladar e olfato. As
ou em diferenciar sensação de percepção. Assim, nes- exterocepções informam o sistema nervoso sobre o
ta comunicação, tentar-se-á esclarecer alguns destes ambiente em que se está, em suas várias característi-
conceitos, discutindo sua relação com a prática pro- cas: o mundo sonoro, os odores, a luz... As sensações,
fissional do fisioterapeuta. tanto de origem interna como externa, são processadas
A disseminação do uso do termo propriocepção é em níveis diferentes. Algumas provocam um estado difu-
o reconhecimento, por parte dos fisioterapeutas, da so de difícil definição, como o agradável e o desagradável.
importância deste sentido no comportamento motor, Outras sensações são muito mais objetivas, e carac-
mas sua complexidade muitas vezes dificulta a clara terizam o ambiente – forma, cor, distância dos objetos.
compreensão de sua natureza e de como ele pode
ser colocado em ação para potencializar os resultados Como já mencionado, o significado destas sensa-
do tratamento fisioterapêutico. ções é dado pelo fenômeno da percepção – a consti-
tuição de um todo significativo que sintetiza informa-
Desde Aristóteles, contam-se cinco sentidos. O ções provenientes de vários sentidos3. Este processo
sexto sentido, a propriocepção, surgiu na conta muito sempre envolve um componente motor: palpa-se o
mais tarde (pela descrição de Sherrington, na década objeto, vira-se a cabeça para ouvir melhor um som
de 1890)1. Este sentido oculto, conhecido apenas pe- ou ver melhor uma fonte de luz. A percepção é um
los iniciados, garante a “existência” de corpo humano processo ativo do indivíduo, que explora as informa-
no espaço e no tempo (durante o movimento), e no ções para dar relevo a elas: quais são os aspectos fun-
entanto dele não se tem consciência. Aliás, de todas damentais e quais os desprezíveis para obter o conhe-
as sensações – isto é, as informações captadas pelos cimento buscado. Quando o indivíduo olha à sua volta,
sentidos que atingem o sistema nervoso central – seus olhos passeiam sobre as coisas conhecidas que
o cercam, e identificam entre todos os estímulos lumi-
nosos que os atingem os traços relevantes para que
1
Citado por SACKS, O. The Disembodied Lady, in The man Who
mistook his wife for a hat. London: Picador, 1986.
2
LENT, R. Os detectores do ambiente. Receptores sensoriais e a
3
transdução: primeiros estágios para a percepção. In: LENT, R. Cem LURIA, A.R. Curso de Psicologia Geral. Vol. II: “Sensações e Percepção
bilhões de neurônos. Conceitos fundamentais de neurociência. São – Psicologia dos processos cognitivos”. Rio de Janeiro: Editora
Paulo: Editora Atheneu; 2001. p. 167-206. Civilização Brasileira, 1991.

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ele tenha a percepção do conjunto. Ela é possível graças messo de um objeto em sua direção, o indivíduo pre-
ao contexto em que cada um se encontra e à sua para seu organismo (músculos, olhos, ouvidos, aten-
experiência passada – tem-se o conceito de mesa, ção...) para responder de forma precisa. É a proprio-
cadeira, chão, janela, e de várias configurações possíveis cepção que permite ao sistema nervoso adaptar a
nas quais estes elementos estão agrupados, aí incluída eferência motora, seja para investigar o ambiente (por
a configuração das sensações do corpo em contato exemplo, na exploração visual que se discutiu acima),
com estes objetos – tem-se uma memória conceitual seja para agir sobre ele. Ela é parte inseparável da
e também corporal. percepção. No entanto, quase nada deste fluxo
sensorial proprioceptivo aflora à consciência – o ser
A percepção é um processo ativo, isto é, selecio-
humano raramente dirige sua atenção ao seu corpo,
nam-se, de acordo com a tarefa, com o objetivo da
desde que aprendeu a movê-lo de forma adequada
ação, as informações relevantes em um dado contexto:
para atingir os resultados desejados. Andar não é um
ativa-se uma seqüência motora totalmente diferente
fim em si e, desde que se dominou a mecânica deste
para os movimentos de exploração visual do mesmo
gesto, por volta dos dois anos de idade, ele deixou de
cômodo de casa, caso se queira decidir de que cor
ser importante para o ser humano – foi, em grande
devem ser pintadas as paredes ou encontrar um obje-
parte, automatizado. Um atleta ou um artista pode
to perdido. Além disso, tal processo está ligado à
colocar seu corpo sob a investigação da atenção
memória e ao desenvolvimento da linguagem, da no-
quando tenta conseguir um movimento determinado,
meação de objetos e fenômenos do mundo que se
mas, uma vez dominada sua realização, o movimento
partilham com os outros.
deixa de existir em si, e passa a existir na sua relação
O terceiro grupo de aferências reúne as sensações com o resultado da ação.
que constituem a propriocepção. A propriocepção
refere-se ao fluxo sensorial ininterrupto que tem ori- Voltando ao início deste texto, o estudante que
gem em captores profundos do corpo, situados nos submete seu paciente a um exercício na prancha de
músculos e tendões (o fuso neuromuscular e o órgão equilíbrio erra ao chamá-lo de “exercício de proprio-
tendinoso de Golgi), e também de receptores situados cepção”, mesmo que ele provoque, sim, a intensi-
na pele, equipados para avaliar, por exemplo, a pressão, ficação e alteração da aferência proprioceptiva. O erro
o atrito, a temperatura. Este fluxo sensorial aferente está em considerar que apenas o trabalho em base
contínuo e inconsciente, associado a informações pro- instável tenha efeito sobre a propriocepção: qualquer
venientes do sistema vestibular e visual4, permite ao exercício (na verdade, qualquer movimento) terá este
sistema nervoso conhecer o estado de suas partes – efeito, na medida em que modifica a linha de base.
a posição e o deslocamento de cada segmento, o es- Portanto, o profissional não deveria falar em “exer-
forço que os músculos imprimem sobre as articula- cícios de propriocepção”: as modificações da proprio-
ções, e comandar seu comportamento motor, de for- cepção ocorrerão, quer o profissional se lembre ou
ma adequada e harmônica. não deste sentido.
O funcionamento deste sistema sensorial estrutu- O que interessa ao estudante é a ação deliberada
ra-se de forma complexa, e certas partes de sua fisio- sobre dois aspectos: de um lado, a melhora da pro-
logia ainda são desconhecidas. De forma muito sim- priocepção; de outro, a percepção do corpo e do
plificada, seria possível dizer que cada captor periférico movimento. A melhora da propriocepção de uma
tem um padrão de disparo que constituiria uma linha região como forma de facilitar uma determinada res-
de base. Esta linha de base pode ser afetada a partir da posta motora por parte do paciente; a percepção do
periferia – qualquer movimento, de partes do corpo corpo, da postura e dos movimentos, para a cons-
ou de seu conjunto, resulta em uma modificação da tituição de um todo significativo para o paciente, a
freqüência, da seqüência e da intensidade de disparos atribuição de caráter (desejável ou indesejável, fácil
dos captores periféricos – ou do centro – antecipan- ou difícil...) a um determinado quadro sensorial. Para
do-se a um evento no ambiente, por exemplo o arre- o primeiro aspecto, ele pode recorrer a estímulos de
natureza variada (compressão das superfícies arti-
4
culares entre si, estímulos tendíneos ou musculares,
Este conjunto de aferências constitui o sentido de cinestesia, ou
sentido do movimento. Cf. BERTHOZ, Alain. Le sens du mouvement,
por exemplo) para modificar e intensificar a freqüência
capítulo 3. Paris : Éditions Odile Jacob, 1997. de disparo de captores específicos. Para o segundo

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COMUNICAÇÃO SAÚDE

aspecto, o profissional deve propiciar a integração na REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


consciência das sensações provenientes das aferências
BERTHOZ, Alain. Le sens du mouvement. Paris: Éditions
proprioceptivas, visuais e táteis, a “nomeação” destes
Odile Jacob, 1997.
estados internos indizíveis e sua comparação com um
quadro significativo (a postura correta, o movimento LENT , R. Os detectores do ambiente. Receptores
seguro, harmônico, relaxado). Ele faz isso ao orientar sensoriais e a transdução: primeiros estágios para a
e conduzir o movimento com um comando manual e percepção. In: LENT, R. Cem bilhões de neurônios –
verbal adequados, e ao complementar estes comandos Conceitos fundamentais de neurociência. São Paulo:
com explicações que destaquem suas características Atheneu, 2001. p. 167-206.
e seus efeitos, e enriqueçam o conhecimento do LURIA, A. R. Curso de Psicologia Geral. Vol. II: “Sensações
paciente sobre seu corpo. e Percepção – Psicologia dos processos cognitivos”.
É a arte do fisioterapeuta, sua ação sobre o que é Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
possível ao paciente conseguir em função de sua SACKS, O. The Disembodied Lady, in The man Who
patologia, que “pinta” este quadro sensorial e dá a mistook his wife for a hat. London: Picador, 1986.
percepção do conjunto.

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