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CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 1

CONHECIMENTO
E CONSCIÊNCIA




CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 3



OLAVO DE CARVALHO



CONHECIMENTO
E
CONSCIÊNCIA

Uma Breve Introdução à Filosofia










RIO DE JANEIRO


INSTITUTO DE ARTES LIBERAIS
1995
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 5





NOTA PRÉVIA


Este texto compõe-se de duas de aulas que, no
curso “Introdução à Vida Intelectual”, dei a alunos do Rio e
de São Paulo, em julho de 1989. Gravadas em fita, foram
transcritas por Stella Caymmi, Luiz Cláudio Lima
Amarante, Guilherme Motta, Maria Elisa Ortemblad, Meri
Angélica Harakawa e Ana Célia Rodrigues. Não acrescentei
nada, e procurei, sempre que possível, conservar a
informalidade da exposição oral, de modo que o leitor,
lendo este texto, se sentisse participante do curso.
Explicação do título: “Momento de Lucidez” é o
objeto material destas aulas, que começam pelo estudo
descritivo de uma experiência vivida, na qual o homem
toma consciência do conjunto da sua vida como um trajeto
dotado de sentido no rumo geral da existência histórica e
cósmica. Esta experiência já aconteceu algum dia a todos
— ou deveria ter acontecido, se não vivessem
entorpecidos por um “cotidiano” que hoje os imbecis
idealizam por mera falta de imaginação — e é o objeto que
me serviu de amostra para começar um estudo sobre a
fenomenologia da consciência — objeto formal destas
aulas.
6 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

“Introdução” quer dizer que o texto trata apenas do


começo do assunto, sem desenvolvê-lo sistematicamente,
como num tratado; e é “uma” para mostrar que esta via de
entrada não é a única possível, embora seja lisonjeira a
meu amor próprio de professor a convicção de que é uma
via interessante, hábil e frutífera.
Como se verá, pelo tratamento que dou ao tema, ela
dá acesso ao estudo da Fenomenologia do Conhecimento
em geral — abrindo, é claro, muito mais caminhos do que
percorre — e pode, portanto, servir de Introdução Geral à
Filosofia.

Olavo de Carvalho
São Paulo, setembro de 1989






á, na vida, momentos privilegiados em que o universo
parece iluminar-se, em que nossa vida nos revela sua
significação, em que queremos o destino que nos cabe,
“H
como se nós mesmos o tivéssemos escolhido. Depois, o
universo se fecha: tornamo-nos novamente solitários e
miseráveis, caminhando às apalpadelas por um caminho
obscuro em que tudo se torna obstáculo a nossos passos. A
sabedoria consiste em salvaguardar aqueles momentos
fugitivos, em saber fazê-los reviver, em transformá-los na
trama da nossa existência cotidiana e, por assim dizer, na
morada habitual do nosso espírito.”

Louis Lavelle, Témoignages, 1951.



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TAREFA


A tarefa que aqui proponho aos alunos consiste em:
Primeiro, responder às perguntas abaixo. Cada aluno deve
fazê-lo individualmente, sem perguntas ou consultas de
espécie alguma ao professor e aos colegas. Redigir as
respostas com a máxima fidelidade e clareza, traduzindo o
seu pensamento mais sincero. Segundo, ler as respostas
dadas por outros colegas e fazer a sua crítica, do ponto de
vista: (a) da sinceridade e da autenticidade; (b) da clareza
e da coerência do pensamento.


PERGUNTAS


1. Você se lembra claramente de ter vivido
momentos de lucidez como os mencionados por Lavelle?
Eles foram freqüentes ou raros?
2. O que os motivou, na maior parte das vezes? Um
acontecimento? Uma leitura? Uma conversa com alguém?
O quê, afinal?
3. Em que consiste, segundo a sua própria
observação de si mesmo, a diferença de tom vital entre
estes momentos privilegiados e os outros?
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4. Qual é, no seu entender, a diferença entre uma


atitude séria e profunda e uma atitude banal ante a vida?
5. De que é que você mais necessita para que os
momentos de lucidez se tornem mais freqüentes? De que
depende, na prática, para obter isto?
6. Quando está imerso na banalidade de um
cotidiano opaco, como você se comporta?
a) Diz a si mesmo que as coisas banais que ocupam
o seu cérebro são as coisas verdadeiramente importantes
da vida, e que o resto é poesia?
b) Busca alívio assistindo a filmes, escutando
músicas populares, procurando alguém para conversas ou
uma festa para ir?
c) Procura rejeitar a banalidade, fazendo algum
gesto que rompa o cotidiano?
d) Procura em seu interior o fio silencioso da
lucidez?
e) Bebe? Droga-se?
f) Faz sexo?
g) Outras opções.








I.
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CONSCIÊNCIA1

Já mencionei aqui, em outra ocasião, o tema da
consciência, a propósito de um texto de Maurice Pradines
extraído do Tratado de Psicologia Geral. No entanto, creio
que o estudo deste tópico, como aliás de muitos outros
num curso de filosofia, não está satisfatório ao esgotar-se
no plano de mero conceptualismo, do conhecimento
meramente por conceitos. Conhecer o enunciado de um
conceito não é o mesmo que conhecer uma coisa real. Uma
coisa é saber o conceito de mãe, outra é ser capaz de
reconhecer a própria mãe.2 Alguém que tenha sido
afastado da mãe quando criança e nunca mais a tenha
visto sabe perfeitamente o que é mãe, mas isto não quer
dizer que reconheceria a sua se a visse.
No curso habitual do pensamento, não nos
podemos sempre reportar às coisas pela intuição: seria
muito complicado. Usamos, então, os conceitos, esquemas
mentais que permitem que nos refiramos às coisas por
uma espécie de abreviatura lógica. No entanto, muitas
1
Aula de 22 de junho de 1989 (Rio de Janeiro).
2
Também é certo que sermos capazes de reconhecer nossa própria mãe
não nos dá de imediato um conceito claro do que é mãe em geral e
essencialmente. Notem bem, aliás, a distinção: o conceito, quando o é
em sentido pleno, não se distingue do conhecimento empírico do singular
só por mostrar a generalidade de certos traços, mas sim aquilo que no
objeto faz com que ele seja o que é, ou seja, por destacar aquilo que
nele, enquanto ele mesmo, é principal. A operação de conceptualizar não
se confunde portanto com a mera “generalização”, que pode ter algo de
mecânico. Ela é uma operação qualitativa e hierarquizante.
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 11

vezes usamos conceitos não para expressar o que são as


coisas que conhecemos, mas como instrumentos para
chegar a conhecê-las. Às vezes conhecemos primeiro as
coisas e depois seu conceito, que nos serve, então, para
esclarecer o conhecimento que já temos delas. Porém, às
vezes, trata-se de coisas que não podemos conhecer
diretamente, e então elaboramos primeiro o conceito,
como um instrumento para depois chegarmos às coisas.
Neste caso, a operação fica incompleta se nos detemos no
conceito e nos iludimos pensando que com isto já
conhecemos as coisas. Pior ainda, como no conhecimento
cotidiano raramente expomos os conceitos
extensivamente, atualizando-os na nossa consciência com
todas as notas que os definem, mas, ao contrário, os
substituímos pelos meros termos, pelas palavras que os
designam, muitas vezes não chegamos sequer a conhecer
os conceitos — conhecemos somente os termos. Em volta
do termo pintamos então em cores vagas uns sentimentos
nebulosos e, como não sabemos expressar em palavras o
conteúdo dos conceitos correspondentes, iludimo-nos
pela força dos sentimentos e acreditamos ter das coisas
um conhecimento mais direto e vivo que o conceptual,
quando na verdade estamos mais longe do que nunca de
ter qualquer conhecimento que seja a respeito da coisa e
temos somente a expressão confusa de nossas próprias
emoções. A intensidade de uma emoção funciona muitas
vezes como um simulacro de conhecimento, pelo
sentimento de certeza que a acompanha. Mas a emoção
pode ter nada ou quase nada que ver com o objeto que lhe
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serve de causa ou pretexto. Afinal, não nos emocionamos


diretamente com as coisas, mas com aquilo que
imaginamos a respeito delas: uma sombra de tigre, se a
tomamos por um tigre, nos assusta como um tigre; um
sorriso que simula mil promessas ilude o apaixonado, que
nele vê a projeção de seus desejos. A emoção nada nos diz
sobre o objeto, mas apenas sobre nós mesmos. Se a
tomamos como retrato fiel do objeto, fechamo-nos num
subjetivismo que nos afasta do objeto e ainda adornamos
esse solipsismo com o nome de “intuição”, proclamando
que é um conhecimento superior ao conhecimento por
conceitos. Na verdade, se essa mera auto-expressão está a
léguas do puro conhecimento conceptual, está mais
distante ainda da verdadeira intuição, na qual o objeto se
mostra diretamente a nós: diretamente e não envolto num
véu de projeções. Mas, como nesse tipo de ilusão cotidiana
os termos substituem os conceitos e os conceitos
substituem as coisas, tomamos um conhecimento de
palavras por um conhecimento de coisas reais.
Principalmente quando a palavra evoca em nós uma forte
emoção.
Um mero conhecimento por conceitos já é algo
melhor do que isso, mas também não deve ser confundido
com o conhecimento efetivo. Um conceito é como uma
nota de banco: não vale por si, mas pela quantidade de
mercadoria pela qual pode ser trocada. Um conceito vale
pelas coisas reais que contém, isto é, pelas intuições por
que podemos trocá-lo.
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 13

Faz parte, então, da higiene do estudo rever os


conceitos aprendidos, exigindo que se preencham de
coisas, com a ajuda da memória, da imaginação e dos
sentidos. Contudo, nem sempre o aluno se lembra de fazer
isto. Neste caso, o professor deve introduzir uma correção
periódica, exigindo o preenchimento dos conceitos como
um credor exige o pagamento em dinheiro de uma nota
promissória.
Todo o mundo aqui tem alguma idéia do que seja,
conceptualmente falando, a consciência, até porque já
estudamos o texto de Pradines a respeito. No entanto, será
que quando nos referimos à consciência estamos
plenamente conscientes da consciência, ou apenas do
conceito de consciência? No caso de um conhecimento
meramente conceptual e que em conceitos se esgota, o
grande perigo é o de nos enganarmos a nós mesmos,
supondo que estamos no real, quando nos encontramos
somente no mundo das possibilidades lógicas. Não
esqueçam nunca que o conceito de uma coisa expressa a
essência dela e que a essência é aquilo que a coisa é
independentemente de existir ou não. Por exemplo, um
dragão é um animal com corpo de jacaré, cara de leão, asas
de águia e que solta fogo pelas narinas, apesar de não
existir. Ainda que não exista, ele é isso. O quadrado
redondo é uma figura plana de quatro lados iguais e
quatro ângulos iguais e que tem todos os pontos
eqüidistantes de um centro — isto é o quadrado redondo,
embora este não exista; este é o conceito de quadrado
redondo. O conhecimento do conceito é, então, o
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conhecimento de uma essência como tal e não de uma


coisa enquanto realmente existente. No caso do quadrado
redondo, a sua existência é manifestamente impossível,
porque sua essência implica uma impossibilidade lógica,
uma autocontradição. Porém o conceito de dragão não
implica nenhuma contradição lógica, e o dragão é tão
inexistente quanto o quadrado redondo. Não há
contradição lógica em um bicho ter corpo de jacaré,
cabeça de leão e soltar fogo pelas narinas; há apenas uma
impossibilidade biológica. O dragão não é absolutamente
impossível; é menos impossível do que o quadrado
redondo e, no entanto, é tão inexistente quanto ele. Do
ponto de vista da impossibilidade, há uma diferença entre
eles, mas, do ponto de vista da realidade, ambos estão fora
dela. Por aí vocês podem ver a enorme diferença que há
entre conhecer conceitos e conhecer coisas.
Há objetos que não podemos conhecer diretamente
por causa a uma limitação do nosso aparato cognitivo,
como por exemplo as partículas subatômicas. Outros não
podemos conhecer por causa de uma limitação intrínseca
da forma mesma da existência humana, como por exemplo
aquilo que se deu num passado remoto ou se dará num
futuro distante. Outros, ainda, não podemos conhecer por
causa de uma limitação deles mesmos: sua
impossibilidade física, no caso do dragão, ou sua
impossibilidade lógica, no do quadrado redondo.
Aqueles cujo conhecimento direto nos é
impossibilitado por uma limitação nossa podemos no
entanto conhece de maneira semidireta, ou seja, através
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da imaginação, o que ocorre por exemplo quando lemos


uma biografia de Napoleão Bonaparte ou uma história de
ficção científica sobre o século XXIII. Porém aqueles cujo
conhecimento direto nos é vedado por uma deficiência
deles mesmos, pela sua impossibilidade lógica ou física, só
os podemos conhecer através de seus conceitos, isto é,
deles só conhecemos o esquema de sua possibilidade
lógica, o qual é, nos dois casos citados, o esquema de uma
possibilidade ausente, de uma impossibilidade. Uma
intuição de quadrado redondo não existe nem sequer
como possibilidade imaginativa.


A memória, fonte dos dados
em Psicologia Reflexiva

Mas, quando as coisas que se trata de conhecer são
coisas que dizem respeito à nossa própria experiência
individual, onde devemos buscar essas coisas? Na nossa
memória. O conhecimento das coisas relativas à psicologia
se faz predominantemente através do apelo à memória,
onde estão depositadas as experiências, as vivências, os
desejos, os símbolos, os valores que cada um de nós
conhece. Antes de examinar conceptualmente o que é a
consciência, devemos buscar na memória o dado a que
chamamos “consciência”. Em todo e qualquer
conhecimento há a parte dada e a parte construída. A
parte construída é aquela que nós mesmos vamos fazendo,
por obra do raciocínio ou da imaginação. Por exemplo, os
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conceitos são construídos por nós, mas o assunto, a


matéria, é dada — ela já estava aí — ou pela experiência
externa ou pela experiência interna. Se vou fazer a
fisiologia dos elefantes, todos os conceitos e os raciocínios
que eu use, vou construí-los; também os aparelhos que eu
utilize para abrir a barriga do elefante, separar os vários
tecidos, tudo isso é construído, tudo isso são instrumentos
intelectuais. No entanto, o próprio elefante não é
construído, é dado. Dado é aquilo que já estava aí.
Construído é aquilo que eu pus. Todas as ciências contêm
dois aspectos, os dados e as construções ou contructos,
coisas construídas mentalmente.
No caso do elefante, os instrumentos com que
vamos abrir sua barriga e, caso ele tenha sorte, costurá-la
de novo provêm da nossa própria inteligência. E o elefante
provém de onde? Temos de pegar elefantes onde os há —
talvez no jardim zoológico, mas, se lá não houver, temos
de buscá-los na selva.
Se vamos estudar a psicologia, onde estão os
dados? Estão em mim mesmo, mas onde? Se vou estudar a
psicologia das emoções, onde vou buscá-las? Em mim
mesmo, mas não posso estudar as emoções na hora
mesma em que as sinto, nem produzi-las artificialmente
em classe. Se se tratar de uma emoção extremada, de um
acesso de raiva, não posso ter um acesso de ira em plena
aula para poder estudá-lo. Se vou estudar um aspecto da
psicopatologia, não posso ficar esquizofrênico para
estudar a esquizofrenia. Nos casos das paixões e dos
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desejos, estão todos em mim, porém não no momento em


que reflito sobre eles. E onde estão? Na minha memória.


Para o estudo da consciência
não basta o apelo à memória

Aqui, vamos estudar a consciência, mas a
consciência tem ainda uma peculiaridade que a diferencia
dos outros fatos psíquicos: não posso estudar a
consciência somente na memória, porque, se não tiver
consciência — e consciência da consciência — no
momento em que a estou estudando, não adianta tê-la na
memória. Se tive consciência no ano passado e não a tenho
neste momento, então neste momento não posso estudar a
consciência. O estudo do elefante tem as suas
peculiaridades, e também as têm o estudo das paixões e o
estudo da consciência. A peculiaridade da consciência é
que eu preciso tê-la no instante mesmo em que a estou
estudando. Se quero estudar a própria consciência,
preciso ter consciência de ter consciência. Quando? Agora
mesmo. Eis aí já um traço peculiar do nosso objeto: a
consciência não pode ser estudada in absentia, por signos
ou vestígios deixados na memória. Mais ainda: não posso
separar-me dela, objetivá-la, tratá-la como coisa externa e
alheia; não posso instalar-me em outra faculdade
cognitiva, na memória ou na imaginação por exemplo,
para desde aí, desde fora da consciência, examinar a
consciência, exatamente como o neurologista louco que
18 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

arrancasse o próprio cérebro para estudá-lo em


laboratório.
Neste caso, porém, a coisa se complica ainda mais,
porque nossa proposta foi estudar a consciência a partir
de um máximo de consciência. Denominamos este máximo
de consciência, mencionado no texto de Louis Lavelle,
como “o momento de lucidez”. É evidente que tenho
consciência no momento atual, mas me recordo de ter tido
alguma vez muito mais consciência e, também, consciência
da consciência. Para que eu possa ter este dado na mão,
preciso reatualizá-lo, torná-lo atual; preciso puxar da
memória o meu momento de consciência e produzir outro,
aqui e agora, e ainda mais claro e patente do que o
primeiro — aí temos o dado. Foi para isto que lhes dei o
texto de Lavelle e as perguntas — para realizar o dado,
que no caso só pode ser realizado mediante uma repetição
intensificada, mediante um acréscimo de consciência
atual. O texto de Lavelle e o questionário serão para nós o
gatilho que vai disparar nosso estudo da consciência,
trazendo à atualidade o dado de que necessitamos, ao
tomarmos consciência de que a consciência que tivemos
outrora se reatualiza agora, não como objeto, mas como
estado.
Tendo o dado da consciência, sabemos que ele não
é um conceito fornecido pelo professor ou criado pelo seu
raciocínio no momento; é realmente um dado, isto é, um
fato acontecido a cada um de nós. O momento concreto,
real, que foi recordado é um para cada um, diferente do
que é para o vizinho. A única coisa que os une é o fato de
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que todos coincidem, em mais ou em menos, com a


descrição dada por Lavelle, como um instante privilegiado,
no qual tenho consciência da minha vida inteira e
consciência de tudo quanto sei a respeito da minha vida
inteira e consciência de tudo quanto sei a respeito do
universo, da vida humana, e, juntando tudo isso, tenho a
idéia de que forma um todo coerente, dotado de sentido e,
mais ainda, de sentido bom, e o aprovo. Não importa quais
foram os conteúdos concretos e particulares das
recordações pessoais de cada um; cada qual terá a sua,
sabendo que, apesar de ser diferente da do vizinho, com
ela coincide pelas características que descrevemos, tiradas
do texto de Lavelle. Isso significa que temos aqui um
material vivo, o que introduz, nesta aula, uma grande
diferença em relação a todas as outras aulas. A maior
parte das aulas até agora tem sido conceptual e expositiva,
mas esta aula tem um material dado pelo próprio aluno. É
importante ver, primeiro, que este dado não foi inventado,
não foi elaborado; é um dado de memória, atualizado aqui
e agora. Em segundo lugar, é um dado pessoal, não
podendo ser trocado pelo de outrem. Em terceiro lugar,
não é só um dado de memória, mas um dado atual, um
estado vivido agora. Isto nos permitirá fazer um estudo
que não corre o risco de cair no conceptualismo e, muito
menos, no verbalismo, isto é, de lidar apenas com termos.
Isso porque cada um avivou sua memória, tornou presente
este momento de consciência, tomou consciência atual de
ter tido um momento de consciência que deve ser
reavivado, pelo menos em parte, para que possa lembrá-
20 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

lo. Como cada um fez isso, então cada um de nós está em


condições de se reportar ao seu próprio material e
conferir nele cada coisa que eu vá falando. Nas outras
vezes, raciocinamos sobre conceitos de coisas ausentes;
agora, vamos raciocinar sobre coisas presentes. Porém,
pela própria conformação do nosso intelecto, nunca
raciocinamos diretamente sobre coisas, e sim sobre
conceitos — e sobre as coisas por meio deles. Temos,
então, de extrair do dado o conceito, tendo, porém, a
certeza de estar trabalhando sobre um material real. Ao
seguirem a exposição que farei agora, reportem-se às suas
recordações e, quando não houver correspondência,
avisem.


Obtendo o conceito
do objeto em estudo

A primeira operação para elaborar o conceito é
tentar observar o dado naquilo que tem de essencial. O
que é o essencial? É aquilo que algo deve ter para ser o
que é. Designamos aqui o dado presente pelo nome
provisório de “momento de lucidez”. Temos, por um lado,
um nome, que é o mesmo para todos, e por outro lado a
recordação, que é uma para cada qual. Mais ainda, vimos
por experiência que a descrição esquemática dada por
Lavelle é apta a suscitar uma recordação em cada pessoa,
tanto que, após ler o texto, cada um pôde responder a
perguntas pessoais relativas à sua recordação, sem trocar
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 21

idéias com os outros. Portanto, o texto de Lavelle lembrou


algo diferente a cada um, mas estes vários “algos”
diferentes que foram lembrados têm algo em comum,
porque foram suscitados pela mesma pergunta, logo cada
qual sabe algo do que Lavelle está falando. Trata-se, agora,
de elaborar este algo num conceito que se possa aplicar,
não vaga e genericamente como as sentenças de Lavelle,
porém, precisamente, à descrição de todas as vivências
individuais aqui recordadas.
Vamos, então, começar destacando as notas, os
caracteres desta recordação que chamamos de “momento
de lucidez”. O primeiro traço, obviamente, é o fato de ser
consciente. A nossa primeira operação, repito, consiste em
trabalhar o dado e dele extrair o conceito. O que é o
conceito? É o esquema de idéias que pode revestir
igualmente qualquer das experiências individuais aqui
recordadas. O conceito é o mesmo que serviria para contar
a experiência individual de cada um, porém que se
ajustasse a cada uma perfeitamente e não vagamente. A
sentença de Lavelle não é um conceito, é uma noção vaga,
um lembrete. Lendo a sentença, cada um se lembrou de
alguma coisa. Agora, vamos obter um conceito, um
esquema no qual possa caber, indiferentemente, qualquer
dessas experiências recordadas por cada um dos alunos.
Ao fazer isto, estou introduzindo-os no método da
fenomenologia. O que é a fenomenologia? É o estudo do
fenômeno. E o que é o fenômeno? É o dado, o que aparece,
não o que está oculto. Se você tem uma recordação, é
porque ela apareceu na sua memória. Se não aparecesse,
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estaria oculta. Vamos descrever, então,


esquematicamente, o que aconteceu ou o que se
manifestou, isto é, o fenômeno. Que fenômeno é esse? A
minha recordação do momento de lucidez. Não vamos
julgá-lo nem verificar se estávamos realmente lúcidos ou
se imagináramos estar, se foi um momento de muita ou de
pouca lucidez, ou se o momento de um abarcou mais do
que o do outro. Vamos tão-somente descrever, sem,
entretanto, perder de vista uma coisa: vamos perguntar o
que este momento de lucidez tem de lucidez, o que tem de
característico, o que é especificamente dele. Em outras
palavras, de que este momento de lucidez precisou para
ser o que é, o que o define; não as causas, ou seja, o que foi
preciso para que acontecesse — isto não sabemos ainda.
Não vamos quantificar, qualificar, comparar ou relacionar
— vamos conceptuar. Conceptuar como? Descritivamente,
e não comparativamente. O que é isto que se está
manifestando? No momento em que surgiu, o que surgiu?
Sabemos que este momento de lucidez não está
perfeitamente, plenamente, à nossa disposição, mas sim
indiretamente, através de um submomento de consciência
que cada um teve agora mesmo, ao refletir sobre si
mesmo. Você, ao responder às perguntas, refletiu sobre si
mesmo e, refletindo, recordou. Onde está este momento
de lucidez? Está na sua memória, porém está parcialmente
repetido aqui, porque você, ao recordá-lo, teve consciência
de que o viveu. A vantagem deste método é nos manter
próximos ao dado, ao real, e não permitir que entremos
num verbalismo oco. Este método é corretivo para a falsa
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 23

facilidade de raciocínio, a qual produz o falso aprendizado,


que é o grande mal do brasileiro em geral. Todo brasileiro
é muito esperto, raciocina rápido, mas, à medida que isto
acontece, o raciocínio, que é leve, vai ficando cada vez
mais rarefeito, cada vez mais sem substância vivida, real.
Isso porque, se a pessoa conhece uma quantidade de
termos, é fácil combiná-los; as idéias voam e as palavras
mais ainda. Entretanto, as recordações reais não voam tão
depressa. Quando raciocinamos, as idéias voam como na
música do Caetano Veloso: “A gente voa quando começa a
pensar”. Pensar é fácil, o difícil é pensar o real e não
apenas o possível. O pensar, por si mesmo, só nos dá o
possível. Para que este possível seja real, temos de
amarrá-lo ao dado. Quando o amarramos ao dado, o
pensamento fica difícil. Isto vocês podem escrever com
letras de 30 cm. de altura no seu quarto: O CONHECIMENTO
É A IDÉIA DA COISA. Conhecer é conhecer o real, não é só
pensar. Temos idéias e conhecemos coisas, mas
geralmente as nossas idéias não dizem respeito às coisas,
e as coisas aparecem à nossa frente como meros dados
empíricos, que não nos suscitam nenhuma idéia O
conhecimento não é idéia e também não é coisa — é a
idéia da coisa, é a idéia na coisa e a coisa mesma
idealizada.
O que é a idéia da coisa? É saber, primeiro, o que
ela é. Em segundo lugar, é saber se a coisa existe. Todos
sabem o que é o Abominável Homem das Neves e o
Monstro do Lago Ness, mas quem sabe se eles existem?
Ninguém. E o que sabemos deles? Tão-somente a sua
24 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

essência. Conhecer apenas a essência e conhecer nada são


coisas quase idênticas. Conhecer a essência é saber o que
uma coisa poderia ser se existisse. Enquanto manipulamos
somente as essências, estamos no reino da facilidade. Na
hora em que queremos dar existência à essência, a coisa se
complica. Quando, por exemplo, discutimos a causa de um
fenômeno (Qual é a causa da situação econômica do
Brasil? A corrupção, por exemplo, ou a burocracia), a
causa é uma essência. A corrupção, enquanto causa da
pobreza nacional, é uma essência, é um conceito de
alguma coisa. Notem que a corrupção também pode ser a
causa da riqueza! Pergunto, então: Como é que esta
essência adquire existência, isto é, qual o encadeamento
real de causas através do qual a corrupção vai criando a
pobreza? Neste ponto, já ninguém sabe responder. O que
sei, então, a respeito da pobreza e da corrupção? Nada. Só
sei que, teoricamente, a corrupção pode ser uma causa da
pobreza; mas, se ela é ou não, eu não sei. Uma mente
informada mas que não tenha uma formação correta
satisfaz-se facilmente com as essências e acredita que são
reais. Por exemplo, quando alguém diz: “A causa da
desonestidade é a falta de religião “, isto é um conceito.
Mas como é que a falta de religião causa a desonestidade?
Qual o encadeamento real? Como uma coisa vai
encadeando na outra até redundar em desonestidade? O
indivíduo não sabe dizer — conhece as essências mas não
conhece a existência, isto é, não conhece o processo. Ou,
no caso de um assalto a banco: Quem assaltou? Foi fulano.
Mas qual foi o processo, como ele fez isso? Se você não
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 25

sabe como ele o fez, não sabe efetivamente se foi ele ou


não. Só podemos estabelecer uma relação real entre dois
eventos quando sabemos não apenas a essência de cada
um mas também o encadeamento das causas que unem
um a outro. Isto já é conhecer o real.
Primeiro, vamos tentar conhecer a essência do
momento de lucidez, depois a sua forma de existência. A
essência é, evidentemente, o ponto de partida sem o qual
nada podemos fazer, porém só ela não basta. Vamos
descrever, do ponto de vista fenomenológico, esta
experiência, para sabermos o que ela é. No caso, já
sabemos que ela existiu, apenas não sabemos como e
porquê existiu, o que investigaremos depois.
De que precisa este momento de lucidez para ser o
que é? Em primeiro lugar, deve ser necessariamente um
momento consciente. Quando compreendemos algo
inconscientemente, nem todos os elos entre a vivência
interna e a externa são claros. Fazemos isto a toda hora. O
inconsciente funciona sempre assim: percebemos algo,
mas não percebemos o conjunto das conexões. O que
solicitamos aqui, entretanto, é que cada um se recorde
justamente do momento em que foi capaz de captar o
conjunto das causas, em que captou um sistema de todas
as relações, em que captou sua vida inteira. Este momento
tem de ser consciente.
Quando digo que este momento não poderia ser
inconsciente, não o digo por análise lógica, mas pelo
exame daquela experiência. Não posso tomar consciência
da totalidade de minha vida inconscientemente. Em certo
26 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

momento, tomei consciência de que estava consciente, e


agora estou novamente tomando consciência daquele
momento.
O que há de mais difícil neste tipo de estudo é o
sujeito sair da mera combinatória lógica e puxar de dentro
de si o dado, a realidade que ele já conhece. Puxar o dado,
em si, é fácil, já que, em muitos momentos, estamos tendo
recordações e, em outros momentos, estamos
raciocinando, mas quase nunca raciocinamos com as
recordações, quase nunca pensamos o dado. Quando
conhecemos as coisas, não conseguimos pensar sobre elas,
ter idéias, e, quando temos idéias, normalmente não as
temos sobre coisa alguma. Quando conseguimos unir
idéias e dados, conhecemos algo. Às vezes, é fácil fazer isto
em domínios muito simples da realidade. Quando se trata
de domínios um pouco mais complexos, que ultrapassam
um pouco nossa experiência cotidiana, da inteligência
prática mais elementar, já tudo se complica. Sempre que
pensamos idéias abstratas, a coisa está longe de nós e as
idéias voam sozinhas. E, quando nos lembramos de coisas,
quando temos a experiência real, trata-se de um dado
bruto que não inteligimos. Vivemos, então, a maior parte
do tempo, nesta divisão: temos uma inteligência para
pensar idéias, provavelmente eficiente e hábil, mas temos
outra inteligência, grosseira, lenta e preguiçosa, com a
qual lidamos com o dado, o real. Todas as vezes que
dizemos: “Eu sei como é, mas não sei fazer”, é exatamente
isso o que se está passando. Sabemos o que é um sapato,
mas não sabemos fazer um sapato; isso porque a nossa
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 27

idéia de sapato está desligada do material do sapato e da


seqüência de operações que o produzem. Trata-se, então,
de um sapato abstrato. Já o sapato do sapateiro não é
abstrato; cada operação que ele pensa corresponde a um
fato efetivo que ele de fato faz, porque, caso ele apenas
pense, não fará sapato algum; e, se ele apenas possuir o
material mas não pensar, também não fará sapato algum.
Portanto, o sapato do sapateiro é uma coisa real, que é
formada a partir de um conceito que ele conhece, não
apenas abstratamente mas em todo o encadeamento das
causas que produzem a existência daquele objeto. Isso
significa que sempre erramos por concretismo (ou seja,
ver, cheirar, sentir, vivenciar, sem conhecer o conceito e as
causas de uma coisa) e por abstratismo (isto é, conhecer
conceitos e possíveis causas lógicas sem ligação com o
dado real, sem conseguir visualizar o encadeamento
concreto que produz a existência do fenômeno). Este é o
grande desafio para qualquer aprendizado, desafio que,
em geral, não conseguimos transpor. Quando o
transpomos, conhecemos realmente algo. Se examinarmos
sob este critério, veremos que o número de coisas que
realmente conhecemos é mínimo, mas o número de coisas
sobre as quais sabemos falar e sobre as quais
raciocinamos abstratamente é grande. Por exemplo, se
falamos de música, pensamos o nome das notas e
sabemos, talvez, até reconhecê-las. Entretanto, as notas
não existem em si mesmas, são apenas sons produzidos
por objetos materiais vibrados por um ser humano. É
somente aí que adquirem existência. Fora disso, trata-se
28 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

de notas abstratas, possíveis, e não de notas concretas.


Existem aí três graus de conhecimento:
l — Saber o nome das notas. Sabe-se também que
qualquer nota vibrada será uma delas. O primeiro ponto é
saber reconhecê-las, mas não se pode reconhecer a nota se
ela não for tocada e se não for ouvida.
2 — Saber o nome da nota na hora em que é tocada
— este já é um segundo grau de conhecimento.
3 — Saber produzir exatamente tal nota, vibrando
o objeto certo.
Vemos, então, que a distância entre o conhecimento
abstratista e o conhecimento real é enorme. Sempre que
falamos de filosofia, política, economia ou literatura,
estamos no abstrato — não passa de conversa vazia, na
quase totalidade dos casos. Quando tentamos preencher
isso, quando tentamos instalar-nos no real, tudo parece
muito lento e difícil. A melhor coisa é irmos adquirindo
uma repugnância e uma impaciência com relação ao
conhecimento abstratista, o que nos tornará de difícil
convivência social, porque certas conversas já saberemos
que não vão dar em nada. Trata-se de falar do que não
existe, do que o sujeito não experimentou e não sabe o que
é — são apenas palavras. Quanto mais buscarmos um
conhecimento concreto das coisas, menos paciência
teremos com o abstrato vazio.
O abstratismo é o grande mal do brasileiro. Quanto
mais inteligente por natureza for o sujeito, mais tende ao
abstratismo, porque mais facilidade possui para combinar
termos e conceitos — trata-se de uma habilidade. Esta
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 29

habilidade, entretanto, ainda não tem matéria. É como o


sujeito que tem muita força física mas não a aplica a
nenhum objeto real e acaba por perdê-la. A força se
desenvolverá em confronto com obstáculos reais. Se o
sujeito que tem força física se contenta em exibi-la para si
mesmo ou imaginar o que poderia fazer com essa força,
vai acabar por desperdiçá-la. A maior parte dos
estudantes brasileiros jamais desenvolve a inteligência. O
brasileiro é esperto, e a prova disto é a facilidade com que
aprende línguas. Todo brasileiro de classe média para
cima sabe duas ou três línguas. Vão procurar na França ou
na Alemanha pessoas que saibam línguas estrangeiras —
eles apresentam muita dificuldade no aprendizado de
idiomas. Língua é combinação de sons, é a mobilidade da
mente. O brasileiro aprende facilmente várias palavras e
pode combiná-las de maneira engenhosa, mas estas
palavras nada representam. É como a pessoa que
aprendesse a pintar utilizando tintas e formas mas que
jamais tentasse pintar nada concreto. A primeira vez que
tentasse desenhar uma vaca, veria que não é fácil. Ou
como o sujeito que ganhou uma máquina fotográfica e tira
fotografias sem ajustar o foco e obtém fotos sugestivas,
mas não sabe que a máquina pode dar um retrato real de
alguma coisa existente no mundo exterior. Quando tira
várias fotos superpostas, acha ótimo, sem saber que essa
foto está defeituosa. Muitas vezes a facilidade de
raciocínio é um simples defeito, como a foto superposta,
ou o quadro da vaca sem a vaca. O difícil não é raciocinar,
o difícil não é ter idéias e combiná-las, isto o computador
30 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

faz perfeitamente bem; o difícil é raciocinar sobre o real.


Ter experiência do real também é fácil, qualquer gato
pode tê-la, já que tem sentidos e memória. Uma mistura de
gato com computador também não seria satisfatória. É
necessário um ponto intermediário, o ponto mágico que é
a raiz do conhecimento — o conhecimento do real —, e
isto apenas o homem possui. Para isto, é necessário domar
a inteligência para que ela se adapte ao real, em vez de
desfrutar de suas próprias possibilidades internas,
combinando-as sugestivamente, assim como a força física
do indivíduo teria de ser domada para se adaptar a um
objeto real, por exemplo, lutar com outro sujeito. É assim
que o homem mais forte pode perder do mais fraco — o
mais fraco sabe lidar com o adversário real e o mais forte
não. Esse é o nó que se chama de solipsismo. A inteligência
facilmente cai no solipsismo: lida apenas consigo mesma.
É como as memórias de Bob Hope, intituladas Nunca Saí
de Casa — são o relato de tudo o que nunca lhe aconteceu.
Por outro lado, existe o erro contrário, que é o
concretismo, quando o indivíduo tem experiências, dados,
sensações e sentimentos mas não dá forma inteligível a
nenhum. Se fosse uma questão de experiência, as pessoas
mais inteligentes do mundo seriam os marinheiros, que
viajam muito e conhecem muitos lugares. As prostitutas
de cais de porto seriam as maiores psicólogas, já que
conhecem homens de todas as nacionalidades, formas,
tamanhos e cores. No entanto, com toda essa experiência,
não chegam a conclusão alguma, porque se trata de uma
experiência opaca, que se esgota no plano da
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 31

particularidade. Se assim não fosse, o macaco que foi


mandado à estratosfera num foguete seria astrônomo. Não
o é porque não intelige, embora tenha a experiência. A
coisa realmente aconteceu com ele, ele realmente foi lá, e
quem o enviou nunca lá esteve. A experiência do macaco é
mais ampla, mas o conhecimento só é verdadeiro quando
a idéia se liga à coisa. A coisa se caracteriza não apenas
por ser uma essência, mas por ser também uma existência.
O conhecimento apenas da essência é mais fácil. É por isso
que as crianças inteligentes têm mais facilidade para a
matemática, porque não depende da experiência do real,
já está tudo na cabeça do sujeito. Um pensamento
exclusivamente matemático é o protótipo do não-
conhecimento. É por isso que, geralmente, a aptidão para a
matemática, na primeira juventude, nem sempre é indício
em relação à vida intelectual futura, porque:
l — a matemática é somente combinatória, não tem
referência ao real externo;
2 — o prestígio que o sujeito adquire com ela vai
fazê-lo crer que é inteligente e obstruir seu espírito crítico.
As ciências e artes que são somente combinatórias,
isto é, que têm pouca referência ao real e pouco aporte
intuitivo, são as mais fáceis de desenvolver na
adolescência. O adolescente acabou de tomar posse de sua
capacidade de raciocínio, de combinar termos, conceitos e
juízos, e, por outro lado, tem experiência quase nula da
vida. Então, joga somente com a combinatória interna. Só
conhece o possível. Está cheio de possíveis na cabeça e
pouco real. Seria preciso desenvolver nele o sentido da
32 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

pobreza da sua experiência, fazendo-o confrontar-se com


experiências reais, onde seu brilhante intelecto
fracassasse. O jovem que tenta coisas reais no mundo real
(por exemplo, um trabalho manual, construir uma
máquina), de fato se desenvolve mais do que outro que
fica fazendo contas ou apertando botões de computador.
Fazer contas é fácil. Quanto aos números, basta ser
coerente com os valores apontados e com as relações
indicadas, que tudo funciona. Porém o ferro ou a madeira
não obedecem tão facilmente quanto os números. Mais
ainda, a ação no meio humano é muitíssimo mais
complexa. É muito difícil, por exemplo, organizar uma
ação coletiva, porque nos estaremos defrontando com um
material que não apenas é mais resistente do que o ferro
mas também é imprevisível, e sobre o qual a pessoa não
tem domínio, que são as consciências e vontades alheias.
Estas coisas vão confrontando o sujeito com o real e
fazendo-o entender que nem sempre a sua brilhante
inteligência apreende o real, e que apreende apenas
possibilidades lógicas, coerentes entre si, mas que nem
sempre coincidem com o real. São possíveis, sem dúvida,
mas não necessariamente reais. O hábito adquirido na
juventude e os maravilhosos talentos que o sujeito se
convenceu de que tem podem corrompê-lo
definitivamente, ou por uma falsa facilidade, ou,
inversamente, se for o tipo do sujeito concreto e de
raciocínio lento, fazendo-o crer que é burro, porque não
sabe combinar as idéias com desenvoltura e sente os
obstáculos do real mais do que outro. Se estivesse nas
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 33

minhas mãos, eu proibiria o jogo de xadrez a todos os


indivíduos dos doze aos trinta anos, porque este jogo é
uma combinatória que faz com que o sujeito sinta o poder
construtivo de sua inteligência e exerça um falso poder
demiúrgico sobre uma situação de mentirinha, criada
sobre um tabuleiro. E mandaria todos os adolescentes
enfrentar situações reais, resolver problemas reais, pondo
a mão na massa.
Para algumas pessoas o obstáculo é que o real lhes
parece demasiado pesado e opaco, e então a inteligência
se inibe. Para outras é o contrário, a inteligência corre
fácil; afastam-se do real e ficam lidando com a inteligência.
O primeiro, em geral, é péssimo aluno, porque não
aprende nada; o outro é o primeiro da classe. Um é
estragado por falta de estímulo, e o outro é corrompido
pela lisonja do meio. De certo modo, todos somos vítimas
disso. O mal é o próprio conceito de “escola”. A escola é um
meio onde são criadas situações falsas, hipotéticas, onde
tudo é de mentirinha. Ir bem na escola significa sair-se
bem nesses desafios de mentirinha, montados pelo
pedagogo. Lembro-me de que no ginásio a única coisa que
realmente aprendi foi biologia, porque tinha um grande
professor que nos entregava o problema real na mão, e
tínhamos de nos virar. Ele nos dava um pedaço de
território e nos mandava classificar todas as plantas que
nele estavam. Tínhamos de observar a forma da planta
sem saber o nome dela e procurar alguma coisa que
coincidisse exatamente com aquilo. Estávamos então
juntando a inteligência com o real. Mas a matemática, a
34 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

geografia eram feitas inteiramente de papel, e não era


possível aprendê-las; também a história, feita toda de
nomes e conceitos inteiramente abstratos e não de
situações humanas das quais eu pudesse ter um análogo
em mim. Graças a Deus, eu tinha a arte de não prestar
atenção. Os que o faziam ficavam atormentados. Falo
sobre tudo isso visando a fazer a apologia do
conhecimento verdadeiro, que é o conhecimento do real. O
real é o dado, o que a pessoa não inventou. É lógico que
em matemática existe também uma faixa de dado, mas ela
é difícil de apreender, e, quanto melhor o sujeito for na
parte de cálculo, menos ele pegará a realidade dos objetos
matemáticos. Dilthey dizia: “Existir é resistir.” Somente é
real aquilo que resiste à inteligência. Os objetos
matemáticos são reais, e existe uma parte deles que
resiste à inteligência, porém esta parte não é estudada no
cálculo. O cálculo é exatamente a manipulação, isto é, a
facilidade de transformar algumas coisas em outras. O
cálculo é a arte de passar por cima da resistência dos
objetos matemáticos. O aprendizado do cálculo só vale a
pena quando o cálculo dá errado, porque nos mostra uma
resistência. O erro em matemática ensina alguma coisa, o
acerto não, dá idéia de falsa facilidade, criada pela força
combinatória da inteligência operando no vazio.
Qualquer conhecimento, seja de natureza prática
ou teórica, técnica ou científica, dos maiores aos mais
insignificantes, é necessariamente constituído da junção
da idéia com o real. Mais do que uma junção, é quase uma
identidade, a idéia no real e o real como idéia. Como dizia
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 35

Hegel: “Todo real é racional e todo racional é real. Este é o


conhecimento total.” A diferença, por exemplo, entre
aquele que conhece equitação e aquele que sabe montar a
cavalo está no processo, e não conceito. Está na existência,
não na essência. É o conhecimento de um encadeamento
não apenas lógico, mas também temporal e espacial, de
ações e reações, causas e conseqüências. Quando
conhecemos tudo isso, então detemos o conhecimento do
real. Entretanto, um indivíduo também pode ter o
conhecimento existencial sem ter o essencial. O essencial
pode ficar implícito, mas o indivíduo não vai ter idéia
correta do que está fazendo. Um macaco é capaz de copiar
um soneto de Camões na máquina de escrever; basta
treiná-lo para bater as teclas na ordem certa. Há até uma
famosa piada estatística segundo a qual certo número de
macacos, datilografando letras a esmo, ininterruptamente,
durante alguns bilhões de anos, acabaria por redigir a
Enciclopédia Britânica inteira. A experiência da coisa não é
conhecimento, assim como a idéia não o é — somente a
idéia da coisa, a idéia do real é conhecimento. O real pode
ser dado por experiência interna ou externa. No caso da
consciência, é por experiência interna. Também o exame
direto da coisa de nada serve se não for dirigido pela
inteligência. Sem a operação da inteligência, podemos
virar e manipular a coisa por tantos lados quantos
queiramos que não vamos compreendê-la. Aí há pura
sensação passiva. É necessário que haja a experiência
iluminada pela inteligência e a inteligência unida à
experiência.
36 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

Voltemos à descrição. Dissemos que o momento de


lucidez deve ser:
l — Consciente.
2 — Não se trata de qualquer tipo de consciência.
Por exemplo, não falamos aqui em consciência no sentido
do contrário do sono. Não é consciência como sinônimo de
vigília, simplesmente. Entendemos que é uma consciência
pessoal, humana, portanto uma consciência culta.
3 — É uma consciência ampla, porque é consciência
de muitas coisas ao mesmo tempo. Estas coisas,
entretanto, não apareciam em um amontoado
desordenado, mas perfeitamente ordenadas e dispostas
segundo uma hierarquia de importância.
4 — E, finalmente, toda esta série de dados,
presentes e ordenados, está referido a um eu, isto é, estes
dados apareciam em si mesmos, porém na importância
que tinham para você naquele momento. Apareciam,
então, como um valor para uma pessoa concreta. Tudo
isso faz deste momento o que ele é.
É um momento:
l — consciente;
2 — autoconsciente;
3 — de consciência ampla, articulada e ordenada,
hierarquizada;
4 — e o centro de convergência de todos estes
dados é um eu humano real.
Em outras palavras, ter esse momento de lucidez,
tal como o relata Lavelle, é conscientizar o sentido total da
própria vida, supondo-se que, neste momento, tenha-se
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 37

repassado, em poucos segundos, todo o trajeto da própria


vida e que, por sua vez, este trajeto foi jogado contra o
pano de fundo de tudo o que se sabia sobre o universo e a
vida humana, e que uma coisa encaixava na outra, fazendo
sentido. Aqui termina a primeira fase das nossas
investigações da fenomenologia da consciência.
Se não estudamos a fenomenologia da consciência
partindo de dados que temos dentro da psique real e, no
entanto, falamos do conhecimento, da inteligência etc.,
pode ser que tudo do que tenhamos falado até hoje fique
no domínio do pensamento conceptual, do abstrato — da
inteligência possível, do conhecimento possível, da ciência
possível, mas nunca real. Esta série de três lições foi
inventada para isto: arraigar todo o conhecimento
transmitido na alma concreta, real, de cada um. É bom que
estejam todos avisados de que todo conhecimento
aprendido, compreendido, anotado, transmitido,
trabalhado, discutido, porém não arraigado no eu, possui
apenas valor possível (como no caso do cheque, que é
dinheiro possível, mas nem sempre se efetiva). Enquanto o
aprendizado for apenas compreensão conceptual,
podemos estar lidando apenas com cheques sem que
saibamos se têm fundos. Estas aulas servem, portanto,
para que vocês aprendam a conferir o saldo.
Nas próximas aulas, vamos completar o quadro
com outros aspectos, mas procurem recordar tudo o que
fizemos hoje. Houve uma sugestão, dada de início no texto
de Lavelle; a partir desta sugestão, colhemos o dado na
memória, que é pessoal para cada um, e que estas
38 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

perguntas têm a finalidade de avivar através da


recordação, levando o sujeito a uma participação efetiva, a
um ato real. Feito isto, começamos a descrição
fenomenológica do dado e, com isto, obtivemos o conceito.
O que faremos amanhã? Assim que chegarem, sentem-se
em duplas. Cada um leia a resposta do outro e procure
fazer a crítica desta resposta, no sentido de averiguar se
ela foi suficientemente pessoal, ou seja, se o indivíduo de
fato respondeu com recordações, com fatos ou com meras
idéias gerais ou possibilidades — se recordou ou
raciocinou, imaginou. A finalidade da leitura mútua é
afinar a percepção do dado. Cada um vai criticar a
resposta do outro para ajudá-lo a montar um espelho mais
exato de si mesmo. Quando você achar que a resposta está
muito genérica, muito abstrata, muito racional, muito
raciocinada e pouco lembrada, exija que o colega recorde
mais claramente. Esta será a primeira parte da aula de
amanhã. É como se, ao ler um livro de memórias, o autor,
em vez de falar sobre os fatos, ficasse dando opiniões
sobre o acontecido, sem dizer o que aconteceu. Ao
verificar se o colega personalizou a resposta, você vai
saber se fez o mesmo.
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 39



II.
CONHECIMENTO 3




O exercício feito na primeira metade da aula visava
a duplo efeito. O primeiro era trazer o dado à consciência.
Desde que fazemos um estudo da consciência, devemos
trazer a consciência à luz da própria consciência; um
momento de consciência privilegiado é revivido na
recordação, agora, através da consciência reflexiva.
De posse deste dado, começamos, então, a
descrição fenomenológica. Nesta descrição, observamos as
características, os traços proeminentes deste momento,
descrevemos os traços sem os quais este momento não
seria o que é, os traços que fazem com que ele seja isto e
não outra coisa. Estes traços nós os definimos na aula
passada (ver quatro itens na página ...).
De posse da descrição, dela extraímos o conceito,
que é um esquema mental que, como uma fôrma, pode
recobrir todas as experiências individuais de um mesmo
tipo, ou referentes a uma mesma espécie de objetos.
No exercício feito na aula anterior, cada um teve de
rever apenas a sua própria experiência e mais nenhuma,
3
Aula de 23 de junho de 1989 (Rio de Janeiro).
40 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

sem nada comunicar ao vizinho. No entanto, ante a


descrição que demos, cada um pôde reconhecer a sua
experiência pessoal. Hoje demos um passo mais: vimos
que a experiência é, pelo menos parcialmente,
comunicável, e que é comunicável, em grande parte,
graças ao conceito. Como temos o mesmo conceito para a
sua e para a minha experiência, o conceito, além de ser um
instrumento mental que permite captar a minha
experiência na sua universalidade, é também o canal
através do qual comunico a minha experiência com a
experiência do outro. Sem o conceito, esta comunicação
seria impossível ou equívoca, porque poderíamos estar
narrando coisas diferentes às quais déssemos um mesmo
nome.
Quando não temos o conceito, quando temos
apenas o termo, sem o conceito explícito, com o mesmo
termo podemos designar uma infinidade de experiências
diferentes; e aquelas que designamos, não obstante serem
individuais, não são diferentes; é uma só e a mesma em
todos. Tanto é assim, que foi possível uma
intercomunicação muito eficiente, todos sabendo de que
estão falando.
Por aí se vê que as vivências mais íntimas do
indivíduo são em parte transmissíveis através do conceito
e da linguagem culta.
No entanto, sem o instrumento conceptual,
cairíamos em uma comunicação falsa, onde cada um
falaria com uma intenção diferente, e onde houvesse a
coincidência fortuita de termos, ou seja, onde houvesse o
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 41

cruzamento mais ou menos casual entre a intenção de um


e a intenção de outro, haveria simulação de uma
comunicação, a comunicação equívoca. O verdadeiro
entendimento entre os seres humanos só é possível,
portanto, através do instrumento conceptual e da
linguagem culta.
No próximo mês será feito um exercício para que
vocês conscientizem as condições da intercomunicação, ou
seja, do intercâmbio das consciências, da dialética das
consciências, para que aprendam a distinguir quando está
havendo comunicação real e quando há comunicação
equívoca, a falsa comunhão.


Segundo passo: averiguar
as condições de existência

Hoje tentaremos dar mais um passo adiante, que já
não consistirá em ressaltar os traços que definem essa
vivência, os traços que fazem com que ela seja o que é, mas
sim as condições necessárias para que ela aconteça.
Primeiro averiguamos os traços que marcam a
essência. A palavra essência é constituída pelo sufixo -
ência, que indica um modo. Por exemplo, uma tendência. A
palavra essência deriva do latim esse. O certo, então, seria
“serência”, mas, como soa mal, produziu-se a palavra
essência. Essência, portanto, é o modo de ser.
Hoje vamos averiguar já não a essência, mas a
condição de existência, ou seja, para que um ente exista,
42 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

não basta que tenha essência, porque os dragões e o


quadrado redondo também a possuem: o quadrado
redondo “é” uma figura plana de quatro lados e quatro
ângulos iguais, com todas as partes eqüidistantes do
centro. Isto é um quadrado redondo, mas a sua essência é
autocontraditória, isto é, impossível. O impossível é aquilo
cuja essência é autocontraditória, mas nem por isto ele
deixa de ter essência; se acabamos de descrever a sua
essência, é porque ela existe; sua essência é esta
autocontradição. Outro exemplo de autocontradição é a
“medida do infinito”, que, no entanto, possui essência,
tanto que pode ser designada por um termo. Qualquer
coisa que possa ser designada por uma palavra, por um
termo, tem essência, ou seja, sabe-se o que é. Se falamos
na “medida do infinito”, isto não se confunde com o
“regulamento do Esporte Clube Corinthians”, não se
confunde com “vaca” ou com a “rua Almirante
Alexandrino”; sabemos o que a coisa é, portanto esta tem
uma essência.
A palavra essência às vezes é tão carregada, é uma
palavra que às vezes parece tão importante, parece que
tem tanto peso, que nos inclinamos a conferir existência a
tudo aquilo que possui essência. Por outro lado, às vezes,
ao descobrirmos que a coisa não existe, dizemos que não é
nada. Não é assim. Tudo o que pode ser designado por um
termo, quer exista, quer não, tem essência. Caso esta
essência seja contraditória, a coisa não tem existência.
Portanto, conhecer uma coisa não é apenas conhecer a
essência, porque, por exemplo, podemos ter a
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 43

denominação e, portanto, a definição de coisas que jamais


poderemos conhecer, que estão fora da nossa capacidade
de conhecimento.
O conhecimento verdadeiro, portanto, é o
conhecimento da essência de um ser existente, ou seja, é o
conhecimento do que a coisa é e do que possibilita, e, em
seguida, determina a sua existência ou suprime esta
existência.
Para conhecermos o ente, então, devemos primeiro
saber o que é; depois, devemos saber quais as condições
que possibilitam ou impossibilitam a sua existência, em
que condições é possível que isso exista e em que
condições é impossível a sua existência; devemos, ainda,
saber se as condições estão dadas ou não, isto é, se
existem ou não e se, caso existam, a coisa existe; em
quarto lugar, devemos conhecer o modo de existência, isto
é, se a coisa existe atualmente, se existe potencialmente
etc.
Em outras palavras, conhecer um ser é:
l — conhecer a sua essência;
2 — conhecer as condições que possibilitam ou
vetam a sua existência;
3 — saber se estas condições se dão efetivamente
ou não e quais são as condições das condições, ou seja, em
que condições estas condições se verificam.
Resumindo: a essência, a condições da existência e
a realidade ou irrealidade desta existência atual. Só assim
podemos saber alguma coisa sobre o ente, sobre a coisa,
sobre o real. Não basta conhecer o conceito. O conceito é
44 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

uma armadura lógica de certo ente ou fenômeno, mas não


sei se ele existe ou não. Então, só com o conceito,
raciocinamos como que no plano. O conhecimento
puramente lógico é um conhecimento que se dá no plano,
no papel. Não é tridimensional, não tem corpo, não tem
profundidade. Além do conhecimento puramente lógico,
do conhecimento conceptual, é necessário também o
conhecimento de experiência. Poderíamos dizer que o
conhecimento é como se fosse a planta de uma casa e que
a experiência por si mesma, sem o conceito, é como se
fosse um monte de barro. Para fazer a casa é preciso dar a
este monte de barro uma forma de casa.
O conhecimento verdadeiro é o conhecimento do
real. Existe o conhecimento verdadeiro da essência, mas
este não é o conhecimento propriamente dito. O
conhecimento das meras possibilidades formais não é o
conhecimento propriamente dito; é apenas uma potência
de conhecimento.
Como já foi dito, a facilidade que tenhamos para o
raciocínio nos induz falsamente a crer que aquilo que
consideramos lógico é real, quando é apenas possível. O
momento de lucidez de que falamos não é apenas possível,
é real; ele aconteceu, já tinha acontecido antes que vocês
chegassem aqui. Eu lhes pedi que recordassem, e não se
pode recordar o que não se conheceu. Já dizia Chico
Buarque de Holanda: “Quem não conhece não pode
reconhecer.” Reconhecemos na nossa própria memória
algo que já conhecíamos. O momento de lucidez é um
dado, algo que não foi construído agora. Por isso, seu
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 45

conhecimento não é um conhecimento puramente lógico,


mas é o conhecimento de uma coisa real.
Entretanto, até ontem vocês só tinham a
experiência, não tinham o conceito, tinham um monte de
barro sem a planta da casa; portanto, não tinham o
conhecimento, mas apenas o dado. O conceito por si só
não é conhecimento, assim como o dado por si só também
não o é. Isso deve ficar bem claro.
O conhecimento começa do conceito para cima.
Ontem, portanto, vocês já obtiveram o conceito, porém
não sabemos ainda em que condições esta experiência
pode acontecer e em que condições não pode acontecer.
A definição da essência, o conceito, expressa as
condições que o objeto ou o ser deve necessariamente
possuir para ser ele mesmo. É, então, evidente, que estas
já são, de certo modo, algumas das condições de
existência. Aquilo que não é ele mesmo não pode existir de
maneira alguma, porém as condições da essência, os
traços da essência, não bastam para que ele exista.
Tudo isso significa que o conhecimento da
existência é o conhecimento de um processo. Não do
processo inteiro, mas do esquema do processo. Não do
processo inteiro, porque todo processo temporal é
constituído por um número quase infinito de momentos,
alguns dos quais são perfeitamente indiferentes.
Para conhecer a existência, portanto, é preciso
conhecer os momentos-chaves de um processo, sem
excluir que este processo coincidirá no tempo com uma
46 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

infinidade de outros processos indispensáveis à existência


em geral, porém não diretamente relacionados a isto.
O conhecimento da existência é o conhecimento da
estrutura de um processo causal. Todo processo causal,
toda linha de causas está entremesclada com outras linhas
que vão produzir outros efeitos. Nenhum processo causal
é isolado, porém os outros processos causais simultâneos,
entremesclados, podem não estar diretamente
relacionados a este, mas são igualmente necessários. O
conhecimento de uma coisa real pode ser enormemente
complexo. É muito mais fácil operar apenas no nível dos
conceitos e ainda mais fácil no nível dos termos, ou seja,
jogando apenas com palavras que pareçam ter coerência
lógica. Isso é apenas simulacro de conhecimento.
Como dissemos a respeito do sapato: para quem
não é sapateiro o sapato é abstrato, pois é concebido
apenas em sua forma final e independentemente de toda a
cadeia de causas e conseqüências necessárias a ir do couro
da vaca até a existência do objeto chamado sapato. É
evidente que o sapato não existe sem tudo isso. Também é
evidente que toda essa linha de causas e efeitos, que vai da
morte da vaca, do retirar-lhe o couro, secar o couro, cortar
o couro, até o costurar e montar o sapato, todo esse
processo é concomitante e entremesclado com muitos
outros processos. Por exemplo: a vaca não morre no
mesmo dia em que vira sapato; passa-se um tempo; é
preciso curtir o couro. Então, entre o momento em que a
vaca morre e o momento em que se transforma em sapato,
acontecem muitas coisas: o homem do curtume almoça,
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 47

dorme, paga contas, fica resfriado, o sapateiro também.


Acontecem muitas coisas, porém todos esses processos
nada têm que ver, diretamente, com o sapato. Entretanto,
pode haver um cruzamento entre os dois processos
causais desligados entre si, onde um impeça a consecução
do outro. O curtume pode pegar fogo. O que isto tem que
ver com a fabricação do sapato? O que isto tem que ver
com a vaca? Nada. E, no entanto, devido a esta
coincidência, a esta contingência, o processo causal que
leva da vaca ao sapato será interrompido. O conhecimento
do mundo real, portanto, prolonga-se até mesmo ao
conhecimento das contingências que podem influir no
processo.
A coisa, portanto, não é tão fácil quanto parece. Não
basta saber o que é; é preciso saber muito mais, conhecer
até mesmo as causalidades que podem interferir no
processo. Agora veremos que condições são necessárias
para que aconteça a experiência mencionada por Louis
Lavelle em seu texto.
Antes de entrarmos nisto, porém, é preciso abrir
um parêntese: quando não nos contentamos com o
conhecimento conceptual, mas mergulhamos na nossa
experiência real, não somente para recordá-la (o que
qualquer pessoa faz) mas para conceptuá-la, para extrair a
sua essência, elevamos a qualidade dessa experiência.
Quando recordar a experiência do momento de lucidez e a
descrevemos para chegar ao seu conceito, abstraímos a
sua essência e, neste momento, elevamos a qualidade
dessa experiência, que antes era uma experiência obscura,
48 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

misturada a outras experiências e confundível com outras,


portanto perdível.
Agora vamos descrever e conceptuar esta
experiência, isto é, vamos limpá-la, separá-la do resto e
reduzi-la a uma essência. É como colocar uma planta de
molho durante muito tempo no álcool, extraindo dela uma
tintura. Esta tintura poderá ser guardada por dez, vinte,
cem anos. Quando conceptualizada, a experiência é
reduzida à essência, portanto é uma experiência limpa,
sem mesclas. A experiência é tão conservável quanto a
tintura da planta. A tintura da planta conserva o potencial
de ação da planta; ingerir a planta ou ingerir algumas
gotas de sua tintura cem anos depois é a mesma coisa. A
abstração das essências é uma verdadeira maravilha.
Isso acontece no domínio farmacológico do mesmo
modo que acontece no domínio do pensamento. Da mesma
forma que as substâncias da natureza, submetidas à
operação que extrai a sua tintura, ficam em estado puro,
sem mesclas, e ainda são conserváveis durante muito
tempo, mantendo seu potencial de ação, da mesma
maneira a experiência pessoal vivida, o dado vivido,
quando examinado, descrito, conceptualizado, conserva
seu potencial por muitos anos à frente. Isso significa que
toda a força vivificante da experiência vivida pode ser
conservada em seu conceito e abreviada em um termo,
bastando em seguida este termo para fazer reeclodir em
nós toda a riqueza daquela experiência. No entanto, nem
todos os conceitos têm esta virtude; somente aqueles
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 49

conceitos que nós mesmos obtivemos mediante o exame


do real, vivido e experimentado por nós mesmos.
Até a aula passada, quando falávamos em
momento de lucidez, este termo nada evocava de
particular, ou poderia evocar algo diverso na mente de
cada um. Como fizemos, porém, esse trabalho de abstração
da essência, a experiência vivida agora está clara, definida,
separada das outras, e adquiriu forma fixa, como a tintura
da planta. Mas, como já foi dito, o conceito só possui este
poder quando nós mesmos fazemos o esforço de abstração
ou quando, tendo ele sido feito por outro, o refazemos por
nossa conta. Esta é a diferença entre a abstração de
essência no domínio farmacológico e no domínio lógico.
No domínio farmacológico, qualquer substância cuja
essência tenha sido abstraída e guardada em um vidro
pode ser usada por qualquer pessoa, porque vai
desencadear sempre o mesmo efeito; não é só o
farmacêutico quem pode obter tal efeito. No domínio
lógico, porém, os conceitos de que disponho exercem sua
ação vitalizante, vitamínica, sobre a mente, quando são
conceitos que eu mesmo fabriquei a partir da realidade
que eu mesmo vivi, ou, pelo menos, da realidade vivida
por outro e reimaginada por mim, segundo uma forma
compatível com a forma lógica de seu conceito. Isso
significa que a simples menção do termo não exerce, por
si, o efeito mágico que exerce a tintura de erva-cidreira
comprada na farmácia. No domínio lógico, cada um deve
ser o seu próprio farmacêutico, o seu próprio abstrator da
50 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

quintessência, o seu próprio alquimista. Trata-se de algo


intransferível; cada um é seu próprio médico.
Doravante, portanto, vocês possuem um conceito
de uma coisa real vivida. Têm guardado no bolso um pote
de comprimidos de momento de lucidez, bastando cada
qual mencionar o termo para si mesmo, para que todo este
conteúdo claro, distinto e separado volte à consciência.
Por conseguinte, o estudo fenomenológico do
momento da consciência, do momento de lucidez, não tem
apenas alcance cognitivo, científico, mas tem alcance
psicológico; não apenas teórico, mas teórico-prático.
Estudar assim a consciência é tornar-se consciente.
Portanto, fiquem conscientes de que um instrumento
conceptual também pode ser um instrumento vitamínico
sobre a consciência.



Filosofia e ideologia

A segunda observação é a seguinte: existem,
basicamente, duas formas de pensamento, às quais
podemos ter acesso, que são as formas de pensamento
coletivas e as individuais. Esta que está sendo ensinada é
estritamente individual; é pessoal e intransferível, e cada
um deve fazer, por si, todo o trabalho. De modo que um
mesmo sujeito tem o dado, ele mesmo o conceptua, ele
mesmo raciocina e ele mesmo se beneficia de seu trabalho.
Ele torna-se senhor deste território e ele mesmo pode
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 51

averiguar a veracidade ou falsidade do que ele mesmo


pensou, porque tem, de um lado, a estrutura lógica do
pensamento e, do outro, a experiência.
Nas formas coletivas, entretanto, isto não acontece.
Recebemos apenas o produto final, o conceito, ou, às
vezes, nem isto, mas apenas o termo, e não temos jamais
condições de averiguar sua veracidade. As formas de
pensamento coletivas são basicamente as seguintes: a
religião e a ideologia. A forma mais extremamente
individual que existe é a filosofia. Em filosofia nada
podemos receber do outro sem fazer tanta força quanto
ele. Se lemos as obras de Aristóteles ou de Hegel, somos
obrigados a nos esforçar tanto quanto eles o fizeram. Não
existe filosofia em pílulas, onde, dado o termo, tudo já
funciona imediatamente. Dado o termo, temos de
desdobrá-lo no conceito; dado o conceito, temos de
desdobrá-lo na existência, e assim por diante. Em suma,
temos de realizar uma operação com a mesma estrutura
da que fizemos ontem e hoje.
Nas formas de pensamento coletivo, entretanto, os
termos são dados de maneira a funcionar
automaticamente, mediante associações de idéias que
evocam reações no indivíduo, sem que ele precise
repensá-los. Neste caso, portanto, o indivíduo não tem
controle algum do que está sucedendo. Nas formas de
pensamento individuais, a distinção entre verdade e
falsidade torna-se patente, pois é a pessoa mesma quem
está realizando cada passo da operação; ela está ali, como
dona do território. Nas formas de pensamento coletivo,
52 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

não apenas não é necessário verificar a verdade ou


falsidade de cada afirmativa, de cada crença, de cada juízo,
de cada sentença, como de fato é impossível fazê-lo, na
prática. No caso da religião, isso se dá por certas razões e,
no caso da ideologia, por outras razões. Há também a
mescla: a ideologia religiosa e a religião ideológica.
No caso da religião, a impossibilidade de um
indivíduo fazer por si mesmo a operação vem do fato de
que a religião se oferece como revelação, como uma
sentença que veio ou teria vindo de Deus a um indivíduo
em particular e que não se repete para nós exceto por
meio d’Ele. Consideremos, por exemplo, a religião cristã:
Vocês estavam no Monte Calvário no dia em que Jesus foi
crucificado? Viram quando Ele realizou o milagre da
multiplicação dos pães? Estavam presentes quando Ele
proferiu o Sermão da Montanha? Subiram ao Céu para
verificar se lá existem os anjinhos do Paraíso como a
religião diz que existem? Já morreram para saber se vão
para o Paraíso ou para o inferno? A resposta,
naturalmente, é não. Portanto, a religião exige, de saída,
que a pessoa acredite sem questionar, sem ter controle
algum do que está sucedendo. Toda e qualquer religião é
assim; seja verdadeira ou falsa, ela não se coloca sob o
exame do indivíduo. Isso significa que o motivo da adesão
ou da recusa de uma religião não está na esfera do
conhecimento, mas na esfera da afetividade ou da
preferência. É claro que pode haver, depois, uma série de
raciocínios destinados a justificar a opção, a justificar a
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 53

crença ou o ateísmo, mas aceitar ou rejeitar uma religião


nunca é algo que pertença, em si, à esfera cognitiva.
Por outro lado, as ideologias também são formas de
pensamento coletivo e não podem ser verificadas, porque
não são constituídas de afirmações explícitas sobre a
realidade, mas de um jogo verbal destinado a mostrar
algumas coisas e esconder outras ao mesmo tempo. A
filosofia, quando coloca um objeto em exame, quer saber o
que é este objeto em sua totalidade essencial, um todo que
seja significativo. O raciocínio ideológico nunca faz isto.
Dado o objeto, ele tornará evidentes alguns dos seus
aspectos importantes e invisíveis outros, igualmente
importantes. O raciocínio ideológico opera uma ação
teoricamente injustificada, dividindo sempre os objetos
em duas partes: uma conveniente e outra inconveniente, e
tem o dom de tornar invisível o lado inconveniente.
Portanto, é importante sabermos que ideologia não
existe somente nos partidos políticos, não existe somente
nos movimentos religiosos, sociais, não existe apenas nos
meios de comunicação de massa. Existe na nossa mente,
na nossa alma, no nosso comportamento, ou seja: cada um
de nós é em parte filósofo e em parte ideólogo. Há em nós
uma parte que deseja saber a verdade, saber o que a coisa
é, e há uma parte que deseja que algo seja verdade e que o
contrário deste algo seja mentira. É um desejo quase
instintivo, uma recusa de ver algo que temo e que vai
colocar-me em uma situação difícil. Onde quer que
operemos, de modo consciente ou mais ou menos
consciente, uma seleção visando a ver algo, tornar algo
54 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

evidente, manifestar algo ao mesmo tempo que ocultamos


outro aspecto essencial, isto é pensamento ideológico.
Quer procedamos consciente ou inconscientemente,
voluntária ou involuntariamente, no sentido de ressaltar
um aspecto da coisa e de fazer desaparecer dos nossos
próprios olhos outro aspecto, isto é pensamento
ideológico. A ideologia nada tem que ver com a mentira
intencional consciente, mas com o auto-engano total e
profundo. A ideologia não é mentira: é falsa consciência.
A religião e a ideologia têm um caráter comum:
satisfazem o indivíduo, dão-lhe autoconfiança, esperança,
firmeza de caráter e boa consciência, isto é, fazem com que
o indivíduo se sinta bom, veraz, ao passo que o
pensamento filosófico freqüentemente gerará no
indivíduo a má consciência, a consciência de estar no erro,
de estar mentindo, de estar na falsidade, de não saber, de
ser fraco, a consciência de ser falso. Entre o pensamento
filosófico e o pensamento ideológico, portanto, não há
meio termo: ou é um, ou é outro. O pensamento ideológico
dá segurança de si; o pensamento filosófico dá
insegurança até a obtenção da certeza, o que pode
demorar e às vezes não vem.
Onde está presente o pensamento ideológico? Que
ele está presente na política todos sabemos; sabemos que
os vários partidos dizem a verdade que lhes convém e
ocultam a outra parte. Mas isto, em geral, não é sequer
ideologia, é mentira pura e simples. A ideologia começa
onde a mentira é involuntária e o desmascaramento da
mentira faria com que o indivíduo se sentisse nu, inseguro,
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 55

desesperado. Sempre que o indivíduo crê em uma


ideologia e ela cai, ele desmonta junto com ela, ao passo
que, em filosofia, se um filósofo acredita em uma tese e ele
mesmo consegue derrubá-la, ele se dá por satisfeito, pois
afastou uma falsidade mais.
Há um terceiro caráter que permite precisar a
distinção: um filósofo pode crer em alguma coisa, mas
sempre crê em pouca coisa. No pensamento ideológico,
acredita-se em muita coisa; isto não só no pensamento
ideológico, mas no pensamento coletivo de modo geral.
Por exemplo: o homem religioso acredita explicitamente
nas partes da religião que ele conhece, mas implicitamente
tem de acreditar em tudo quanto não conhece ainda. Se ele
é católico, por exemplo; o dogma católico tem dois mil
anos de evolução, é extenso e inabarcável. Mas não basta o
sujeito acreditar em uma parte. Ele deve implicitamente
admitir como verdadeira, previamente, até a parte que
não conhece ainda. Ora, como posso crer em uma verdade
futura que desconheço? É evidente que não posso fazê-lo
em sã consciência e com pleno critério intelectual, mas
somente por um ato de fé e de devoção; é uma espécie de
tiro no escuro. Mais ainda: um homem religioso deve
acreditar que a sua religião tem não apenas algumas
respostas sobre o sentido geral do universo, da vida, mas
tem respostas verdadeiras para todas as questões e uma
solução verdadeira para cada situação humana, até
mesmo para situações humanas que ainda não
aconteceram.
56 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

Portanto, as formas de pensamento coletivo


implicam uma adesão total, profunda e antecipada a uma
imensidão de verdades ou falsidades, muitas delas ainda
desconhecidas. No pensamento ideológico, por exemplo,
se o sujeito é marxista, comunista, deve acreditar que
haverá uma resposta marxista adequada a todas as
questões que se coloquem e até às que vierem a se colocar
no futuro. Então, mediante adaptações, esta ideologia
poderá estender-se indefinidamente sem nunca perder a
identidade, ao passo que o filósofo pode acreditar em
alguma coisa, pode pelo menos acreditar em Deus, mas de
maneira alguma acreditará que todas as questões já estão
resolvidas de antemão, ou que possam ser resolvidas por
uma simples extensão automática da sua crença atual.
Isso significa que a crença de um filósofo só resolve
um único problema, o problema particular a que esta
crença se refere. Se acredito em Deus, se sei que Deus é
real, esta é a minha crença. Agora, por exemplo, como
devo proceder na vida é algo que é necessário examinar,
caso por caso, aos quais a minha crença em Deus não
responde antecipadamente. Até mesmo quando um
filósofo adere a uma religião, tende a aderir
filosoficamente. Um filósofo religioso é um homem que
encara com boa vontade as teses da sua religião, mas sabe
que não pode aderir sinceramente a todas por
antecipação, e que terá de examiná-las para que possa crer
nelas com sinceridade. Então, a religião também pode ser
seguida filosoficamente ou ideologicamente.
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 57

Ora, na última aula também foi dito que todo e


qualquer conhecimento que temos se esgota no
conceptualismo e no abstratismo se não estiver arraigado
na nossa experiência pessoal. Porém existe diferença
entre o modo de arraigamento do conhecimento filosófico
e o do conhecimento coletivo (ideológico ou religioso). O
conhecimento coletivo tem uma espécie de arraigamento
automático. Ele vai fundo na pessoa através do jogo de
símbolos, do apelo emocional e das analogias, das
associações de idéias. Por exemplo: a linguagem do mito
que as religiões usam fala de muito perto ao coração
humano. Tão logo narrado o mito, ele já penetra no
indivíduo, já mexe em sua alma e cria uma disposição
favorável.
O pensamento filosófico não se arraiga tão
facilmente. Por sua própria natureza ele tende a esgotar-
se no nível do conceptual e não entrar profundamente nas
camadas mais íntimas do sujeito. Por isso, muitas vezes
acontece de o estudante de filosofia ser filósofo nas horas
em que está estudando filosofia e ser ideólogo em todas as
outras. Ele pensa como filósofo ao estudar filosofia, mas as
únicas crenças que estão arraigadas dentro dele são
aquelas que vieram através do pensamento coletivo:
ideológico ou religioso. Isso vai criar um estranho ser de
duas cabeças que crê em algumas coisas em certos
momentos e em outras coisas em outros momentos.
O exercício que foi dado é para ensinar a maneira
de arraigar na alma o pensamento filosófico, até extirpar a
última raiz de ideologia que exista. Esta é uma guerra de
58 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

toda a vida. O homem, quando segue o caminho da


filosofia, o faz porque crê na inteligência, na inteligência
dele mesmo; crê na possibilidade do conhecer e decreta
que sua inteligência, sua capacidade de receber evidência,
é o único juiz. O juiz não é a comunidade, não é a
hierarquia religiosa, não é nem sequer Deus. O próprio
Deus não tem autoridade para forçar um homem a crer na
não-evidência. Isto é muitíssimo importante. Santo Tomás
de Aquino dizia: “Deus não tem autoridade para revogar
as leis da lógica.” Isso porque a própria existência de Deus
se identifica com uma lei da lógica: o princípio de
identidade. Se for revogado o princípio de identidade,
então tanto faz existir um Deus ou muitos deuses; se Deus
revogar esta lei, Ele está liquidado.
Isso significa que em filosofia a evidência
intelectual é o único juiz. No entanto, a maior parte das
pessoas, quando estuda filosofia, não faz este exame de si,
como foi feito aqui, no exercício proposto. Não busca o
arraigamento do raciocínio num dado real. Então, seu
conhecimento filosófico ou científico fica como se fosse
dos olhos para cima; é uma superfície, é apenas uma tela
luminosa onde se vê alguma coisa, mas que não tem
densidade, não tem profundidade; é superficial e leviano.
Não podendo basear-se, na vida, em conhecimentos
superficiais e levianos, o homem então necessita crer em
alguma coisa. Como não encontra esta coisa na filosofia,
ele a busca na ideologia ou aceita aquilo que a ideologia
lhe dá. Isto é o meio-caminho filosófico, o caminho do
meio-filósofo. O meio-filósofo é um tipo detestável, porque
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 59

o homem coletivo não tem pretensões de conhecer a


verdade; ele pouco liga para a verdade e só quer saber o
conveniente, estuda e lê não para descobrir a verdade,
mas para encontrar conforto, para encontrar felicidade,
para acalmar a sua alma, confirmar as suas crenças mais
queridas, confirmar suas ilusões. E o meio-filósofo nutre a
pior das ilusões, que é a de não ter ilusões: é um homem
coletivo que se ignora e que se toma por filósofo.
Nesse sentido, um sujeito pode ser muito estudioso
e não ter buscado a verdade um único dia de sua vida. Se é
para ser um homem ideológico, então é melhor que seja
inculto. Se é para cultivar a ilusão, não é necessário tanto
esforço; liga-se a TV no programa da Xuxa, e lá se encontra
ideologia suficiente. (A ideologia de certos programas
infantis é a ideologia da inocência da sacanagem: a
“inocência primaveril” das crianças permite tudo: sexo,
cocaína etc. É tudo lindo porque é “inocente”). Quem vê o
programa acredita nessas coisas, não claramente, não
conscientemente, pois basta conscientizar que se acredita
nisso para perceber que é uma asneira, mas acredita-se
implicitamente, no plano do hábito. Então, pode-se
erotizar indefinidamente o comportamento da criança,
vestir a criança como uma prostituta, e é bonito porque é
“inocente”. São todos anjinhos, todos irmãozinhos. Se
somos irmãos posso enfiar a mão no seu bolso e roubar
todo o seu dinheiro. Este é um dado ideológico, esta é uma
lei de uma ideologia que está presente em nossa
sociedade, a ideologia da inocência da malícia: tudo o que
é malicioso pode ser feito, desde que inocentemente; e,
60 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

para ser inocente, basta não examinar nunca o que se está


fazendo: jamais suspeite de si mesmo, jamais suspeite de
que você também pode ser malicioso. Esta lei formula-se
assim: tudo o que você fez sem saber que é mau, e sem
querer saber se é bom ou mau, então é bom. Esta lei
determina a abolição da consciência moral: são ruins
apenas as coisas feitas por pessoas que têm consciência
moral, porque estas suspeitam de si; os outros, não. Só é
ruim quem vê o mal. A pessoa boa não vê o mal em nada.
Vê um homem de quarenta anos estuprando uma
criancinha e não acha nada de mais, acha que é uma
“demonstração de amor”; vê o nazista torturando o judeu
e acha que ele faz isto por amor, diz que ele tem tanto
amor pelo judeu que quer destruí-lo e consumi-lo, e que
apenas um sujeito de mente perversa vê o mal nessas
coisas. Esta é uma ideologia nazista. A inocência da malícia
é o mal do bem e o bem do mal. Muitas pessoas acham que
isto é cristão: “o verdadeiro cristão jamais vê o mal, vê o
bem em todas as coisas”. Quantas vezes agimos assim,
baseados nisto, acreditando que se não suspeitamos que
algo é mau então podemos fazê-lo em sã consciência? Mas
isto também é o culto da ignorância, a inocência fingida.
Muitas vezes fazemos uma coisa ruim e não
queremos pensar se é ruim ou boa, porque pensar dá
trabalho. Se não penso, ajo “inocentemente”; faço tudo
com “boas intenções”. Esta é outra lei da ideologia: toda
intenção é sempre boa intenção. Entretanto, ninguém
jamais tem uma intenção acreditando que ela é má; se
achar que é má, já não é intenção. Por exemplo: o sujeito
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 61

que estupra uma menininha de quatro anos com a boa


intenção de dar prazer à menininha, ou o que toma o
dinheiro do outro para aliviá-lo dos seus pecados. Esta é
uma ideologia que está bastante arraigada nos hábitos da
nossa sociedade e principalmente entre jovens de classe
média e alta.
Faço essa advertência quanto às formas de
pensamento coletivo porque, quanto mais fraca é a
transmissão da cultura verdadeira, quanto mais tênue é o
conhecimento da herança cultural da humanidade, menos
condições temos de desenvolver convicções pessoais
baseadas no experiência social, ou seja, menos condições
temos de ter opiniões razoáveis e de resistir ao
automatismo de crenças coletivas, por mais
manifestamente aberrantes que sejam.
Entretanto, não podemos viver sem opiniões,
devemos ter pelo menos algumas, devemos tomar
decisões e agir. Então, enquanto não temos condições de
fazer um exame racional das evidências, agimos de uma
maneira ou de outra, baseados nas ideologias, e
finalmente, quando nos decidimos a estudar filosofia, já é
tarde, já estamos tão viciados que acreditamos que tudo o
que pensamos é bom, que tudo o que fazemos é bom, e
que todas as nossas opiniões são sempre verdadeiras.
Estamos acostumados a viver em um mundo de certezas,
no mundo de tranqüilidade do homem ideológico.
É bom saber que a filosofia, por um lado, é
incompatível com o pensamento coletivo, e que somente o
estudo da filosofia nos textos ou nas aulas não adianta
62 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

nada, não nos liberta do pensamento ideológico, porque


este tem o poder de penetrar na alma, fala diretamente à
alma, às vezes sem passar pela consciência. O pensamento
ideológico comove e tem a verossimilhança, é sempre um
argumento de tipo retórico, que nos faz sentir. O
pensamento filosófico não nos faz sentir nada; só
sentiremos se, dado o conceito, dado o juízo,
desdobrarmos e analisarmos até que encontremos dentro
dele a experiência viva do real.
Feito este parêntese, vamos agora ao exame das
condições que permitem a experiência do momento de
lucidez. A primeira condição é a seguinte: se nós dissemos
que este é um momento consciente, então são necessárias
as condições que permitem a consciência. Como sair desta,
se nem sabemos o que é a consciência?
A primeira condição para que o momento de
lucidez exista é que haja consciência. O problema da
existência do momento de lucidez nos coloca, como um
passo intermediário para a sua resolução, o problema da
essência da consciência. Se não sabemos sequer o que é a
consciência, como podemos saber quais são as condições
para a sua existência? O que é necessário para que exista
algo que não sabemos o que seja? É impossível responder
a esta pergunta.
Portanto, ainda não temos o conceito de
consciência; temos apenas o conceito do momento de
lucidez. No entanto, sabemos que temos consciência
porque temos experiência da consciência, temos o dado da
existência da consciência. Cada um dos alunos verificou,
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 63

durante o exercício, que tem consciência. Entretanto, se


perguntarmos a cada um o que é consciência, cada um vai
dizer uma coisa totalmente diferente. Todas as definições
dadas pelos alunos: “uma ebulição”, “uma clareza”, “uma
percepção”, “uma noção clara” etc., tudo isso são
elementos que estão presentes no dado. Entretanto, nada
disso define, delimita o que é o ato de consciência; temos o
dado, mas não temos o conceito. Temos termos que o
designam, mas não o termo próprio. O termo é o limite, o
limite total da coisa. O limite total é feito da articulação de
limites parciais que se chamam notas. Tudo o que foi dito
são notas do conceito de consciência, notas para o
conceito de consciência. Empilhando essas notas, isto é,
observando e descrevendo aquilo que observamos,
faremos uma coleção de notas. No momento em que,
diante dessa coleção, separarmos as desnecessárias,
introduzirmos as faltantes e montarmos todas em uma
hierarquia, teremos o conceito, isto é, uma abstração da
essência. No entanto, para o que vamos fazer agora, ainda
não é necessário o conceito de consciência; é necessário
apenas que tenhamos o dado, e isto nós provamos que
temos, porque o observamos e porque a coisa nos esteve
presente.
Quando, na seqüência de uma investigação,
topamos com algo que ainda não conceptualizamos, às
vezes o raciocínio pára por falta do conceito. Neste
momento fazemos um termo provisório, ad hoc, como se
fosse um interino. Designamos então um interino, um
termo provisório, um termo ad hoc, e continuamos
64 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

trabalhando com ele, sem esquecer que é provisório. É


como colocar estacas para sustentar um teto que ainda
não tem paredes para sustentá-lo, mas depois será preciso
retirar as estacas para fazer a parede. Então, isolamos esse
problema da consciência, continuando a raciocinar na falta
do conceito, com a recordação mais ou menos difusa que é
designada por um termo provisório. Depois
completaremos.
Recapitulando: em primeiro lugar, para que haja o
momento de lucidez, são necessárias as condições que
permitem a consciência. Por enquanto devemos ficar com
as definições que possuímos: “uma ebulição”, “uma
clareza”, um “não sei quê”. Todos sabemos que este “não
sei quê” não está presente o tempo todo; às vezes não
acontece. Então, as condições para a existência da
consciência não são permanentes. Quando estas condições
faltarem, não haverá momento de lucidez.
A primeira condição para a existência do momento
de lucidez é a existência das condições que determinam a
possibilidade da consciência.
A segunda condição é a de que seja uma
consciência adulta. Explicando melhor: para que o
indivíduo perceba o sentido de sua vida no pano de fundo
de uma visão total do universo, é preciso, primeiro, que
ele conheça algo de sua vida e, segundo, que tenha uma
visão do universo. Porém dissemos que, em certo instante,
o sujeito percebe o encaixe da totalidade de sua vida com a
totalidade daquilo que ele sabe do universo. Para isso é
preciso que a vida do indivíduo já tenha alguns episódios
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 65

completos, de maneira a poder ser contada. É preciso


compreender um começo, meio e fim. Se sou adulto, minha
vida tem para mim um começo, um meio e um fim, que é o
estado atual. É preciso que a totalidade da biografia possa
ser encarada como se fosse um romance já terminado,
pelo menos em um de seus episódios. É preciso ter
narrado para si a sua própria vida. Mas isto só não basta. É
preciso que essa vida tenha um drama e um desenlace; um
drama requer um conflito, porque onde não há conflito,
onde não há contradição, não faço pergunta alguma. Se
não faço pergunta alguma, também não há solução
alguma.
O momento de lucidez responde a uma pergunta
quanto ao sentido total da minha vida. Ora, se fiz esta
pergunta, é porque algum dia aconteceu algo que não fazia
sentido, e que portanto estranhei. Então, é preciso que já
haja uma consciência madura de si e que me tenha
permitido problematizar a totalidade da minha biografia,
contar para mim mesmo a minha própria história e
verificar se existe nonsense em algum pedaço. Quem não
fez isso, não terá esse momento de lucidez.
Nem todas as pessoas já fizeram isso. As crianças,
por exemplo, não fizeram; a vida delas nunca chegou a se
problematizar no seu todo. Quando cai um dente de uma
criança, é uma coisa extraordinária, que a coloca em
dúvida, mas não sobre a totalidade da existência. Cair o
dente contraria a sua vontade, a deixa infeliz, ela se sente
nesse momento perseguida por um destino adverso que
lhe arrancou o dente contra a sua vontade, quando ele
66 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

preferiria preservá-lo. Porém isso não questiona, por si


mesmo, a validade, a utilidade e o prazer de brincar, por
exemplo. Uma parte da vida fica fora do questionamento.
Há uma série de coisas prazerosas, gostosas, que
continuam fazendo pleno sentido e que a queda dos
dentes não basta para abalar.
Podemos perceber, por exemplo, que certas coisas
prazerosas se tornam em seguida dolorosas, e nos
questionamos: Será isso realmente o prazer? Será que não
estou sendo enganado? Por exemplo, o amor: “O amor é
uma maravilha.” Acontece, porém, que depois de levarmos
umas três ou quatro vezes na cabeça começamos a nos
questionar e achar que o destino nos está fazendo de
palhaços, nos está enganando. Para aqueles que nunca
sentiram isto, este problema não existe. Então, é preciso
que haja uma vida já problematizada.
Dissemos ainda que é a comparação entre uma vida
inteira e um conceito inteiro do universo o que caracteriza
o momento de lucidez. Assim, é preciso que a pessoa tenha
uma série de idéias sobre o universo: idéias de geografia,
história, política, religião etc.; é preciso, ainda, o que é
muito importante, que, entre a narração de sua vida e a
exposição de suas idéias sobre o universo, haja uma série
de pontos de coincidência. Por exemplo, na minha vida
aconteceram muitas coisas que pareciam não ter causa
suficiente e que desembocavam em conseqüências
perfeitamente absurdas. Por outro lado, na física estudei a
teoria da indeterminação, que diz que os elétrons saltam
de uma órbita para outra sem critério ou razão.
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 67

Provavelmente essa tal indeterminação é o que preside o


curso da minha existência; estou a mercê de um bando de
elétrons doidos que pulam caoticamente de uma órbita
para outra e me arrastam junto. Esta é uma comparação
possível: um dado que diz respeito à minha biografia —
muitos eventos sem sentido — e, por outro lado, uma
teoria que diz que o comportamento da matéria de fato
não faz sentido.
Para que o indivíduo chegue a fazer este tipo de
analogia é preciso que conheça muitas coisas sobre a sua
vida e muitas outras sobre o universo; é preciso que já
tenha certa condição cultural e suficiente maturidade
biográfica. Portanto, quando Lavelle diz que todos temos
momentos de lucidez, não quer dizer todos nós
indiferentemente; quer dizer: todos nós, homens maduros,
letrados, vividos, e que pensamos, temos isto, os outros
não sabemos, não perceberam a enroscada em que estão,
permitem-se continuar felizes, como o judeu na véspera
de ser levado para a câmara de gás, achando tudo uma
maravilha, achando que tinha dinheiro e que esse tal de
Hitler não mexeria com ele. Por isso está feliz, feliz como
um idiota perfeito. Muitos estão felizes porque não têm
consciência do problematismo da consciência.
Mais ainda: as formas de pensamento ideológicas,
coletivas, conservam o sujeito nesta felicidade. Então, o
judeu acredita no poder do dinheiro, acredita em Deus; se
Deus não o proteger, o dinheiro quebrará o galho, e vice-
versa. Mas, na verdade, o dinheiro não serviu para nada e
Deus não se pronunciou, e o sujeito estava feliz, confiando
68 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

em Deus ou no dinheiro. Conheço um judeu cujo pai disse


que sairia correndo da Alemanha se Hitler ganhasse a
eleição em 1933, e realmente foi embora quando Hitler
ganhou. Toda a sua família disse que ele estava louco, e ele
foi o único da família que sobreviveu. Todos os outros
achavam que alguém quebraria seu galho na hora H; e
estavam felizes, e o pai do meu amigo estava feliz por
antecipação. Os outros foram ser felizes na câmara de gás,
virando sabão, e ele veio ser infeliz no Brasil. Chegou aqui,
prosperou, ganhou dinheiro. É um sábio este homem.
Assim, a felicidade em que nos mantém o
pensamento coletivo é uma felicidade desse tipo, é a
felicidade do avestruz. Às vezes dá certo. Nem todos os
judeus foram para a câmara de gás, alguns tiveram a
felicidade de morrer na véspera como o peru. Hitler
parece que foi eleito no dia 20 de abril de 1933. Houve
gente que morreu no dia 19 achando que ele ia perder e
morreu feliz como um idiota.
O momento de lucidez não ocorre a um idiota deste
gênero, um idiota satisfeito. Ele nunca problematizou a
sua existência e nunca obterá uma resposta global desse
tipo porque não precisa dela; a resposta parcial vale; ele
não precisará, em certo momento, colocar toda a sua vida
contra o pano de fundo de todo um conceito do universo
para ver se faz sentido ou não, porque as respostas
parciais o sossegam. Por exemplo, “temos dinheiro”, ou
“confiamos no senhor “, este tipo de resposta já o sossega.
É como a criança que se engana com qualquer besteira.
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 69

O pensamento coletivo serve para manter as


pessoas felizes, seguras de si, de maneira que possam
fazer aquilo que os seus chefes querem, sem ter de receber
ordens diretas. Entre a vida filosófica e a vida ideológica,
portanto, é difícil saber qual a mais prazerosa e qual a
mais triste. Isso porque o filósofo sofre muito em sua
mente, tem trabalho o dia inteiro, nunca está sossegado.
Porém a sua vida escapa do nonsense ou às vezes escapa
de um destino cruel. O homem de ideologia está sempre
seguro de si e, estourando de felicidade, vai para a câmara
de gás achando que está fazendo o bem e servindo o
Senhor. Portanto, as duas vidas têm os seus convenientes
e seus inconvenientes.


Terceira etapa:
conhecer a existência do objeto

Vimos, então, três condições para que exista o
momento de lucidez:
l — a presença da consciência (amanhã
investigaremos o que ela é);
2 — o conhecimento da própria biografia e sua
problematização;
3 — a existência de idéias sobre o universo, sobre a
história humana, sobre a cosmologia etc. onde haja pontos
de coincidência com a vida pessoal.
Normalmente, o conhecimento da própria biografia
e as idéias sobre o universo formam um quadro caótico,
70 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

onde o que sei sobre o universo não explica minha vida e o


que sei sobre a minha vida parece transformar o universo
em um absurdo ainda maior. Vivemos nesta luta. Em certo
momento, porém, podemos ter o privilégio da lucidez,
mediante a qual percebemos o quadro inteiro e a biografia
inteira — a biografia como se fosse um filme acelerado, e o
quadro inteiro como se fosse um diagrama único — e
percebemos a harmonia desta seqüência temporal com
este quadro, por assim dizer, espacial.
Este quadro contém tudo o que a pessoa sabe, tudo
o que estudou ao longo do tempo. Embora tenha estudado
uma coisa depois da outra, em dado momento aquilo se
monta em uma hierarquia e aparece tudo junto. Por
exemplo, seus conhecimentos de psicologia se juntam com
seus conhecimentos de física.
Existe, ainda, uma quarta condição: é
absolutamente necessário que este momento, esta
percepção, tenha uma forma, porque a pessoa percebeu
algo; este algo é definido, e esta forma, por sua vez, seria
demasiadamente complexa (a totalidade da vida sob a
totalidade do universo) e cairia em uma extensão
indefinida, se não fosse uma visão ao mesmo tempo
resumida. Então, para que este momento de consciência
exista, é necessário que certa forma seja dada ao que foi
pensado, lembrado, visto ou inteligido de alguma maneira.
A consciência, a biografia problematizada, a
extensão de conhecimentos sobre o universo e a
coincidência da visão do universo e da visão da biografia,
tudo isso não basta, porque é necessário algo mais. É
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 71

necessário que esta visão, este entendimento tenham uma


forma para a pessoa. Por exemplo, Lavelle expôs o seu
momento de lucidez desta forma: “É o momento em que
aceitamos o nosso destino como se tivesse sido inventado
por nós.” Ora, nem todo momento de lucidez toma
precisamente esta forma; Lavelle se colocou como se fosse
um Deus que fez a própria vida, fez e sofreu a vida ao
mesmo tempo, fez como Deus e sofreu como homem, mas
escolheu livremente e escolheu porque fez sentido. Esta
mesma consciência poderia ter tomado outra forma.
Quando perguntei o que é consciência, alguém disse
que é uma luz, outro disse que é uma clareza etc. É a
mesma coisa, mas tomou para cada um uma forma, um
símbolo que a resume. Se perguntássemos se é apenas
uma luz, a resposta seria evidentemente não, porque é
uma luz que ilumina algo. A consciência não é apenas uma
luz, é uma luz e mais alguma coisa. Nenhuma dessas
formas liquida ou resolve o assunto totalmente, mas o
simboliza, o resume.
Esse símbolo pode ser dado por uma sentença. A
sentença de Lavelle tem essa força de resumir de certo
modo tal evento. Pode ser uma forma física, uma estátua
que se viu e que parecia sintetizar a vida humana em geral,
o universo, tudo arrumado. Há um famoso poema de Rilke,
chamado “O Torso Arcaico de Apolo”, onde ele descreve a
forma do corpo de Apolo nesta estátua e, a certa altura,
impõe a si mesmo uma exigência de caráter nobre. Isto é
momento de lucidez. Apolo é uma perfeição arquetípica. É
apenas uma estátua, mas Rilke não viu apenas a perfeição
72 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

arquetípica em si mesma. Viu a perfeição da estátua e a


imperfeição da sua própria vida ao mesmo tempo. Viu
ainda que a sua própria vida, na sua imperfeição, tendia
ardentemente a uma perfeição que era justamente
simbolizada por esse Apolo. São o perfeito e o imperfeito,
o eterno e o contingente chamando-se um ao outro. Isto é
um momento de lucidez, que, para Rilke, ficou simbolizado
no Torso arcaico de Apolo.
O Torso arcaico de Apolo é algo que se vê com os
olhos e se toca com as mãos. Não é como a sentença de
Lavelle, que só se ouve com os ouvidos ou se vê com os
olhos mas não se pode tocar. O que importa não é que seja
mais material ou mais imaterial, alguma forma tem de ter,
e esta forma não define, isto é, não esgota. Não posso dizer
que a perfeição em si mesma é o Torso arcaico de Apolo. O
Torso arcaico de Apolo é um símbolo da perfeição e não a
perfeição mesma.
Existem outros símbolos possíveis. Um sujeito
poderia sentir a mesma coisa vendo, por exemplo, a
Acrópole de Atenas ou a Catedral de Notre-Dame, ou
ouvindo Bach. Assim, na sua autobiografia, o grande físico
Werner Heisenberg descreve um momento de lucidez
deste tipo, enquanto estava meditando sobre a ordem
física do universo e reunido com um grupo de jovens em
um debate sobre a política da Alemanha logo depois da I
Guerra Mundial. As suas preocupações físicas e
metafísicas, dentro do debate político, foram
interrompidas por um sujeito tocando uma peça de Bach,
e nesse instante ele percebeu que havia uma ordem no
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 73

caos; no caos físico e no caos político. E a resposta não


veio através da física ou da política, mas da música. Então,
esta peça de Bach tornou-se um símbolo que, para ele,
sintetizava toda a ordem que ele estava percebendo em
todas as formas do caos.
Nesse sentido, a forma pode ser qualquer uma, o
símbolo pode ser qualquer um, depende da pessoa. Para
cada qual um símbolo, mas este adquire, ao menos para
cada qual, valor universal. E, no momento em que a pessoa
percebe a forma deste símbolo, percebe também o
verdadeiro significado do símbolo, porque cada símbolo
contém implicitamente todo o momento de lucidez. Às
vezes não o percebemos porque aquilo que foi símbolo
para um sujeito pode não o ser para outro. O potencial de
significação está lá; você é que não o percebe. Podemos
dizer que a primeira pessoa que viu esta estátua de Apolo
foi Rilke, porque esta estátua continha tal força, mas foi
necessário que ele a visse em certo momento e de certa
maneira.
Trata-se do sentido e da idéia na coisa real,
sintetizados em um símbolo. Aí estamos próximos do
conhecimento do real. Temos, de um lado, a idéia e, de
outro, a experiência vivida, o dado, ambos sintetizados em
um símbolo. O único modo de conhecer o real é este.
Todo o mundo fala hoje de ampliação da
consciência, estado superior de consciência, e acredita que
é possível alcançar isto mediante exercícios, práticas
ascéticas, carregando pedra, comendo apenas comida
natural ou repetindo milhares de vezes uma palavra, e só
74 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

não pensam na hipótese de ampliar a consciência através


do uso da consciência. E esta é evidentemente a única
técnica que funciona, pois a consciência não pode
desenvolver-se inconscientemente. Somente a consciência
pode desenvolver a consciência. E o que é o
desenvolvimento da consciência? É a consciência da
consciência. A consciência da consciência será alcançada,
fortalecida, como diz Lavelle, tornada permanente, através
de seu próprio exercício, não de exercício físicos ou de
exercícios psíquicos, ou seja, não será alcançada através
de nenhuma prática física ou psicológica nem através de
nenhuma espécie de alimentação ou jejum. Nada disso
funciona, porque nada disso tem que ver com a
consciência. Se queremos desenvolver a consciência,
temos de afirmá-la negando o seu contrário, que é a
inconsciência. O bife é por acaso o contrário da
consciência? Não. Então, não será por suprimir o bife que
haverá consciência; a supressão do bife não gera
consciência, assim como comer bife não ajuda em nada,
pois o bife não é consciência.
O caminho da consciência reflexiva é o único
caminho real para a ampliação da consciência. Não é
preciso, como pretende Gurdieff, tirar a pessoa do sono,
porque, se a pessoa está adormecida, quem vai acordá-la?
Se eu a acordo, então sou eu quem está consciente. Assim,
se a pessoa não está adormecida, já tem consciência, e se
não a tivesse não poderia desenvolvê-la. Trata-se de pegar
a consciência que existe e torná-la o mais permanente
possível.
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 75

Na aula anterior, abordamos aspectos relativos à


consciência: primeiramente o dado da consciência e em
seguida a sua descrição. Destes dois aspectos resultou o
conceito de consciência. O conceito é a descrição
esquemática de uma essência. Agora, veremos se a
essência definida no conceito existe. A essência apenas
nos dá um esquema lógico, isto é, nos diz o que a coisa é.
Nada menciona sobre a existência. A prova disto é que
podemos ter conceitos de coisas inexistentes. Por
exemplo, o conceito de “quadrado redondo” como uma
figura de quatro lados iguais em que todos os seus pontos
estão eqüidistantes de um centro. Outro exemplo é o
conceito de dragão. O primeiro contém uma contradição
lógica, significando uma impossibilidade absoluta, pois
choca-se consigo mesmo. O segundo contém uma
contradição biológica, que é uma contradição relativa, já
que se choca com as leis da biologia.
Aquilo que não existe também tem essência. A
palavra “ser” apresenta dois sentidos: o primeiro diz em
que consiste o objeto (essência), o segundo indica a
existência do objeto. O conhecimento da essência é apenas
o conhecimento de metade do objeto, isto é, somente a sua
consistência. Porém falta a existência. Excetuando o Nada
e o Absoluto, para todos os demais seres a existência ou
inexistência não se deduz da essência. Essência em lógica
significa o que o ser é, independentemente de existir ou
não.
Um conceito só é verdadeiro, isto é, só é um
conceito integral, quando realmente capta o objeto. Este é
76 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

um uso peculiar que faço do termo conceito. O conceito


integral é diferente do conceito apenas no sentido lógico.
Neste curso, o termo conceito será utilizado no sentido de
conceito integral, que representa o conhecimento da
essência juntamente com o conhecimento das condições
para a sua existência. (Quando Platão se refere ao
conhecimento dos arquétipos, não se trata do
conhecimento das essências no sentido lógico. Platão se
refere ao conhecimento intuitivo das essências, isto é, o
conhecimento existencial das essências, que é ainda outro
tipo de conhecimento. Não vamos entrar neste tópico
agora).
Todo processo de existencialização é um processo
que envolve antecedentes e conseqüentes. Por outro lado,
o conhecimento das essências é um conhecimento
imutável. O devir não muda a essência, mas muda a
existência. Na ausência do conhecimento da existência, o
que sobra é um esquema de possibilidade lógica: a
essência é o que o objeto tem de seu e que o constitui
naquilo que ele é. Ela é sempre isolada, separada
logicamente da existência. O conhecimento da existência é
o conhecimento da estrutura externa, do quadro externo,
no qual a essência se encaixa. De certo modo, o
conhecimento da essência pode proporcionar o
conhecimento da existência, já que é possível deduzir do
conceito do objeto as condições para que ele exista. Mas
nada posso concluir quanto à existência ou inexistência do
objeto. Ou seja, apenas pela dedução das condições de
existências não tenho conhecimento da possibilidade de
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 77

existência. Este tipo de conhecimento apenas a


experiência fornece. A essência seria como a forma de uma
peça de um quebra-cabeça ao qual faltasse uma única
peça.
Até agora o conhecimento se dividia em dois tipos:
o conhecimento da essência e o conhecimento da
existência. Acrescentam-se mais duas faixas de
conhecimento: o conhecimento das condições necessárias
para a existencialização — deduzidas do conhecimento da
essência — e o conhecimento das condições suficientes,
isto é, da causa eficiente que traz à existência tal essência.
Assim, o conceito integral de um ente (objeto) é o
conhecimento: primeiro, da sua essência; segundo, das
condições necessárias à sua existência; terceiro, das
condições suficientes à sua existência; quarto, da sua
existência real. O primeiro diz o que ele é; o segundo, em
que condições ele poderia existir — conhecimento do grau
de possibilidade real; o terceiro fornece o processo causal;
o quarto fornece o conhecimento de que a causa
realmente se deu e de que esse ser veio a existir —
conhecimento de ente real que existencializa a essência.
Por exemplo: a essência do homem consiste em
“animal racional” — conhecimento da essência. A
existência do homem só é possível, portanto, onde exista
vida animal. Esta é uma condição necessária. Porém não
basta. É necessário que haja no homem vida interna, isto é,
sensações internas, e, ademais, que estas possam ser
organizadas e estetizadas em quadros coerentes, que
possam ser ampliadas de modo a abarcar “todo” o
78 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

universo. Tal é o conhecimento das condições necessárias


à existência do homem. Mas o homem deve surgir de
alguma coisa, em algum momento. Como, no devir, a vida
animal, em certo momento, alcançou este grau de
complexidade, seja por processo evolutivo, seja por
mutação, seja por ascensão repentina? Movido por que
causa? Ou seja, qual é a antropogênese (a causa do
homem)? Este seria o conhecimento das condições
suficientes à existência do homem. Vejo, experimento a
existência do homem; constato a sua presença, tal como
definido e balizado nas condições necessárias e suficientes
para a sua existencialização. O conhecimento da essência e
da existência, somente e separadamente, não permite o
conhecimento total do ente, não permite saber se o que
experimento se encaixa realmente na definição.
Outro exemplo: a mesa, em sua essência, é um
utensílio doméstico, com tampo e pés. Para que ele exista,
é necessário que o homem conheça a técnica do utensílio e
saiba com um utensílio fazer outro. É necessário, ainda,
existir vida doméstica que admita ou requeira um
utensílio com função de mesa, e finalmente é necessário o
material apto a tomar a forma de uma mesa (condições
necessárias). Porém é preciso, ainda, saber quais as
condições sociais e históricas que permitem o surgimento
deste utensílio doméstico, e como alguém teve a idéia da
primeira mesa, e também como ele a fez, qual foi o
processo de elaboração da mesa (condições suficientes). E,
finalmente, para conhecer realmente uma mesa, é preciso
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 79

que um homem veja uma e verifique se corresponde à


definição de mesa.
Este é o verdadeiro método de estudar e conhecer
qualquer coisa. Se souber tudo isso, o aluno terá o
conhecimento total possível do objeto. Sem isso, nada se
conhece. Um conhecimento apenas da essência e da
existência não é conhecimento real. O sujeito, neste caso,
tem apenas conhecimento de essências e conhecimento de
percepções separadamente. Todo conhecimento aqui se
reduz à nominalização. Somente com o conhecimento das
condições necessárias e suficientes, percebe-se se o que é
deve ser necessariamente, deve ser condicionalmente,
pode ser, não pode ser etc. Só assim se perceberá que este
mundo é real.
O homem, inicialmente, tem o conhecimento das
essências. Este é de fato o primeiro conhecimento que ele
adquire. Isto é evidenciado pelo fato de que os bebês
aprendem primeiro os nomes, e só aos poucos estes são
preenchidos de conteúdo existencial. O conhecimento não
é só subida ao céu das essências puras, como afirma
Platão, mas também uma descida às coisas concretas,
conforme ensinava Aristóteles.
Na aula passada descrevi e, em seguida, construí o
conceito do momento de lucidez. Em primeiro lugar, este
deve ser consciente. Em segundo, é necessário haver um
conhecimento compreensivo da autobiografia. Em
terceiro, é necessária uma cosmovisão. E, em quarto, é
necessária uma articulação da autobiografia com a
cosmovisão em torno do “eu”. Mas, para que tudo isso
80 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

aconteça, é preciso que se verifiquem realmente as suas


condições de existência. Assim, vamos investigar o que é
absolutamente necessário para que possa haver: primeiro,
a consciência; segundo, o conhecimento da autobiografia;
terceiro, uma cosmovisão; quarto, o conhecimento da
articulação da autobiografia com a cosmovisão em torno
do “eu”.
Repetindo: dada a essência do momento de lucidez
como um ato da consciência, quais as condições
necessárias que possibilitam ou impossibilitam a
autoconsciência, o conhecimento da autobiografia, a posse
de uma cosmovisão e a junção da autobiografia com a
cosmovisão em torno de um “eu” que avalia e julga.
Inicialmente, investigaremos as condições que
possibilitam a consciência. Vamos fazer abstração das
condições mais gerais, mais universais, como, por
exemplo, a necessidade de que existam homens para que
haja a consciência. Vamos ater-nos às condições de
existência do ato de consciência para um indivíduo em
particular. Isto é, nos limitaremos à seguinte questão: O
que determinado homem tem de cumprir para ter
consciência? Isso simplifica a investigação. Uma coisa é a
investigação do fenômeno da consciência em escala
antropológica, como propriedade da espécie humana;
outra, bem diferente, é a investigação de escala
psicológica, para um homem particular. Vamos colocar a
consciência em escala antropológica como pressuposto
para a sua investigação em escala psicológica.
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 81

Se a consciência é uma junção de estados, como


afirma Pradines, é necessário que não haja neste indivíduo
particular nenhum impedimento a esta junção, ou, se
houver, que possa ser derrubado. Dos impedimentos, o
mais notável é o esquecimento. A primeira condição que
se evidencia: é necessária uma memória ampla, dentro da
qual o foco da atenção possa andar livremente de um
ponto a outro. Daí surge uma conclusão prática
importante: se existe na minha autobiografia algo que não
desejo lembrar, é porque não tenho liberdade de ir e vir
no espaço da minha memória. Se nela existem gavetas
secretas e lacradas, é impossível acontecer o momento de
lucidez, de consciência. É imprescindível a liberdade para
vasculhar toda a memória.
Notem que a conclusão acima foi possível a partir
somente da definição da consciência. O que é que permite
chegar, pela análise de um conceito, a um conhecimento já
relacionado com a experiência? Este é um caso típico do
que Kant chamava “juízo sintético a priori”, ou seja,
analisando um conceito, extraímos dele algo que diz
respeito não a ele, mas a nós: se a nossa memória não
estiver livre, sem áreas obscuras, não haverá momento de
lucidez, ou então este será deficiente.
A primeira condição para o momento de
consciência é o livre trânsito dentro da memória, isto é, a
ausência de tabus na memória. O Dr. Freud provou que
todos têm tais tabus. Trata-se da censura, a ponto de o
sujeito esquecer o que lhe aconteceu. Porém o próprio
Freud demonstrou que esta censura é removível. O
82 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

método dele é, na verdade, o mesmo método que Sócrates


aplicava: perguntas bem feitas. Com a diferença, apenas,
de que um o utilizava para descobrir as idéias eternas e o
outro para descobrir mentiras esquecidas.
No homem há tanto a dispersão quanto a coesão.
Para o momento de lucidez é preciso que haja coesão e
que ele se sobreponha à dispersão. O esquecimento é uma
divisão e, portanto, uma dispersão. No momento de
lucidez é necessário que a força de coesão supere
infinitamente, anule a força de dispersão. Trata-se de um
momento de máxima atenção, com todas as funções
convergindo para um mesmo ponto. Por outro lado, a
coesão só pode ser realizada voluntariamente, pois, se é
coesão total, nada pode estar separado, menos ainda
separado da vontade. Logo, o momento de lucidez não
pode ser involuntário. É preciso desejá-lo ardentemente.
Ele pode até eclodir de repente, sem que o sujeito o deseje,
mas isto não é possível sem uma vontade anterior que o
prepare e elimine as resistências. Na realização do ato em
si, já não há resistência. É a vitória da vontade e do “eu”
sobre as forças dispersas, quando todos os instrumentos
estão harmonizados e felizes. Estas são algumas das
condições de existência do momento de lucidez, sem
querer esgotar o assunto.
É importante lembrar que a filosofia é sempre um
empreendimento individual. No máximo, pode ser
compartilhado por algumas pessoas afins, nunca em escala
maior, menos ainda em uma sociedade inteira. Outro
ponto fundamental é que o conhecimento sério deve ser
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 83

sempre especializado, não generalista, mas um


conhecimento especializado de alcance universal.
Gostaria que vocês continuassem investigando as
condições psicológicas para a existência do momento de
lucidez. Verifiquem o que o possibilita e o que o impede.
Por exemplo, os impedimentos poderiam ser os seguintes:
o desejo de não recordar um evento autobiográfico; o
desejo de fugir do trauma; o hábito arraigado de não
mexer em determinadas recordações; o medo de que a
recordação de um momento seja dolorosa (toda neurose
começa com a frase: “Acho que não vou agüentar”) etc.
Continuem pensando.
O que é necessário para o conhecimento da
autobiografia (esclarecendo que não se trata de um
conhecimento extensivo, porém intensivo, caso contrário
ele se perderia em uma multidão de fatos)? Trata-se de
uma recordação instantânea de momentos dominantes de
fatos altamente significativos.
Toda ordenação, todo sentido de ordem é uma
estilização, isto é, uma estetização, uma seleção. Não
importa se os elementos autobiográficos são agradáveis
ou não, desde que adquiram uma forma, uma estética. Esta
ordenação é estética, ainda que seu conteúdo fático nos
deprima algumas vezes, pois ela nos revela uma forma
íntegra e harmônica que significa algo sobre a
humanidade, sobre o homem. O momento mais
significativo pode ser o momento de vergonha extrema.
Por exemplo, no Gênesis o momento mais significativo é o
momento da Queda. Este momento é extremamente feio,
84 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

porém nos revela muito sobre o próprio homem. São


momentos que são modelos permanentes do destino
humano.
Aquilo que desejo esconder totalmente dos demais
e de mim mesmo, certos momentos de minha existência,
impedem o momento de lucidez. Porém, se encaro, ou
melhor, se sei que a minha humilhação, a minha vergonha
e o meu pecado são arquetípicos, que estão em todos os
homens e não somente em mim, posso então colocá-los
sob o olhar da inteligência e não mais escondê-los. A falta
de sentido estético é um grave impedimento ao momento
de lucidez. O sentido estético é a capacidade de discernir
as formas, amá-las, ter prazer em contemplá-las, ainda que
seu “conteúdo” seja feio, porque a forma reintegra no
universal o que o conteúdo separa. Este é o poder
catártico e redentor da arte.
Por que alcançamos uma felicidade estética na
leitura de livros sagrados que, no entanto, apresentam
relatos horríveis, como, por exemplo, a Bíblia? Por que
encontramos prazer estético em contemplar a dor moral?
Isso ocorre porque, pela ordem estética, foi superada a
feiúra dos atos vis. A visão estética permite que o homem
veja a sua vida com grandeza, não com o olhar mesquinho
daqueles que o julgam, que estão a seu redor. Permite ao
homem encarar a si mesmo como a uma personagem de
epopéia ou drama. A contemplação estética é purificante.
Porém, se for uma contemplação separativa, somente do
ato em si e desde fora, portanto, do quadro da vida, não
será realmente contemplação, mas uma investigação
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 85

policial miserável. É preciso também olhar para o fato com


a totalidade da mente. Olhá-lo somente com uma única
função redundará em hipnose. Um ato dentro do quadro
histórico, social, filosófico etc. adquire significado, mas um
ato olhado apenas pelo “eu” empírico, só com uma parte
de si, leva à hipnose e à burrice. Por exemplo: o mito de
Perseu e a Medusa, em que o escudo de Perseu é um
espelho (a mente) para olhá-la.
O nosso momento hoje é tão perverso, que olhar os
próprios atos justamente desta maneira, depreciativa,
miserável, pequena, é considerado autoconhecimento. O
método Fischer Hoffmann, por exemplo, é assim, um
sistema de envilecimento da autoconsciência. É preciso, ao
contrário, aumentar a flexibilidade moral, isto é, ampliar o
“raio” até abarcar o humano no seu conjunto. Porém, se
cada vez que ouço falar em homossexualismo, estupro,
roubo etc. fico horrorizado com a presença destes fatos
diante de minha “alminha pura”, das duas uma: ou sou
uma criança pura — o que já não é verdade, dado que nem
as crianças o são — ou então sou um idiota completo.
É necessário vasculhar tudo: desde abaixo do
subconsciente freudiano até os anjos. “Sou homem, e nada
do que é humano reputo como indiferente a mim”, afirma
Terêncio. Ao mesmo tempo que há esta ampliação, é
fundamental o arraigamento no “eu”.
É necessário assumir totalmente a condição de
homem, membro da humanidade, indivíduo que só é
diferente dos demais existencialmente; alargar a ponto de
compreender todos os atos humanos, desde os mais vis, os
86 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

diabólicos, sem reagir como uma “alminha virgem” ou


como um “aiatollah” que quer punir os infiéis. É
necessário assumir o peso da condição humana — este é o
sentido da frase “carregar a sua cruz”. Nunca dizer “Ah, eu
jamais faria tal coisa!”, pois, nas condições existenciais de
outro, você faria tal e qual. Tal postura não é possível sem
uma atenuação, até mesmo uma suspensão do julgamento
moral, mas é preciso haver juntamente com ela o
arraigamento do “eu”, caso contrário se tratará de uma
megalomania, uma loucura. Dizer, por exemplo: “Eu,
nestas condições, faria a mesma coisa, porém eu sou eu e
não um outro.” A ampliação deve vir desde um centro, que
sou “eu “mesmo”. O sujeito torna-se “todo o mundo” e,
através disto, torna-se “ele mesmo”. Deve-se ainda olhar
as coisas desde o seu “eu” concreto, e não do alto de uma
função social etc., ou de qualquer posição que o sujeito
ocupe ou pense representar; isso é sair de si!






CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 87


APÊNDICE
CONSCIÊNCIA E INCONSCIÊNCIA


Resumo de:
Maurice Pradines, Tratado de Psicología General, t. 1, El
Psiquismo Elemental, trad. Nelly A. Furtuny y Elba B.
Roggeri, Buenos Aires, Kapelusz, 1962 (trad. de Traité de
Psychologie Générale, 3e. éd., Paris, P.U.F., 1948).



INTRODUÇÃO

OS ASPECTOS GERAIS DA VIDA MENTAL



CAPÍTULO I
Consciência e Inconsciência


I. A consciência como força de coesão

A consciência é uma atividade. Ali onde aparece a
consciência, ela surge da bruma do automatismo ou do
adormecimento, sempre com esta virtude de eficiência.
Recolhe um ser disperso: faz com que atue no presente
88 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

com toda a sua experiência, em vista de um porvir que se


estende na proporção da profundidade do olhar que é
capaz de lançar sobre seu passado. A consciência é,
sobretudo, uma memória preparada para tarefas do
porvir. Isto é que é ser consciente. É estar na tarefa
presente, com toda a alma. Pelo contrário, ser inconsciente
é esquecer, é esquecer uma parte de si, naquilo que se faz,
que se diz, que se medita ou se projeta. Esquecer é chegar
a ser incapaz de relacionar a atividade presente com a
consideração dos efeitos que inevitavelmente deve
produzir.
A consciência de um estado é uma só e mesma coisa
que a sua união com outros estados, e esta união não é
mais do que uma organização de forças, isto é, de meios
com vistas a uma intenção. Em uma palavra, a consciência
é uma coordenação, e a inconsciência uma incoordenação,
ambas dinâmicas. Um estado é consciente quando pode
ser sentido em união de intenção com outros estados (cum
scire). Textualmente, não há estado consciente; só há
grupos de estados conscientes, nos quais a luz se
desprende da sua compressão, como o calor do feno
empilhado. Um ser capaz de multiplicar-se sem dividir-se,
de estender ao longe seu olhar no espaço sem perder a
referência dos pontos percebidos no lugar onde se
encontra, de recordar igualmente seu passado na
perspectiva do presente e distingui-lo ao utilizá-la é, por
isso mesmo, consciente. Se suas percepções e suas
recordações perdem este centro de referência, se ele
recebe uma percepção sem relacioná-la com outras, com
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 89

as quais ela se amalgama sob o ponto de vista de seu


interesse ou de sua intenção, se suas recordações se
isolam umas das outras, como satélites captados por
atrações estranhas, é inconsciente, já que, por definição,
não há coerência em suas impressões, já que não se
conhecem umas às outras, já que não é consciente.
Pierre Janet (L'Automatisme Psychologique, 1889)
descreveu estados de dissociação que tinham origem no
debilitamento de um poder de síntese, cujo relaxamento
tende a pulverizar esta consciência. A pulverização é só o
último termo de desagregação: esta pode começar por
uma simples dissociação da consciência em parcelas
erráticas que, como ocorre no sonambulismo e na
sugestão, manifestam um poder de síntese limitado em um
campo de consciência restrito, incapaz de abarcar o campo
inteiro da percepção e da memória. Este estado “impede
que a pessoa apreenda qualquer sensação fora daquela
que ocupa atualmente seu espírito” (Janet). Nestes
processos de dissociação, a amnésia propaga-se com o
mesmo movimento que a anestesia. Assim, criam-se na
atividade mental estas espécies de focos de consciência
dispersos... Estas aparentes e esporádicas criações de
consciência são, na realidade, somente os sintomas de
dissolução da consciência; são manifestações de uma
consciência menos geral. No limite, a consciência se
desvanece ao mesmo tempo que alcança o termo final da
incoordenação. Esta pluralidade de sintetizações, longe de
ser uma riqueza, é sempre uma miséria mental, um
fracasso, um aborto, um “erro” do esforço único e
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exaustivo de sintetização. Sob a aparência de multiplicar-


se e estender-se, perde-se e dispersa-se. Uma parte de si
mesma é estranha ao indivíduo, que é e permanece;
aliena-se deste sujeito, isto é, de si mesma.
A consciência é a reunião da nossa ciência (cum
scire), e não se podem conceber várias reuniões de nossa
ciência. Isto seria, na verdade, um desmembramento.
A consciência aparece-nos como uma faculdade de
coordenação e de unificação das forças vitais, datada de
uma eficiência excepcional.
Entre o automatismo e a consciência, entre o ato
reflexo e o ato reflexivo, a passagem situa-se no momento
em que a ação, em vez de ser desencadeada por uma
irritação, que a provoca automaticamente, se transforme
no efeito da simples representação mental de uma
irritação possível, cuja causa conhecemos à distância, isto
é, antes do contato que lhe permitirá exercer sobre nós
um estímulo automaticamente reflexógeno.
Esta representação é o que denominamos
percepção, e inaugura o primeiro comportamento em que
a reação está determinada, não por uma excitação, mas
pela idéia ou antecipação mental de uma excitação, não
porque o ser vivo a experimente, mas porque a
compreende.
Daí conclui-se que: Primeiro: A consciência nasce
de um automatismo que, sem ser consciente, possui
alguns traços do mais autêntico psiquismo, por exemplo
sob a forma de hábito e de instinto. Para que esta
atividade se integre tão facilmente na vida consciente, é
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 91

preciso que a preforme. Segundo: Por outro lado, a


consciência se dissolve ou morre em outra forma de
inconsciência, que imita mais ainda a consciência, na qual,
ao não integrar-se (já que é antes uma desintegração),
permanece como um elemento refratário inalienável.
Existe, na vida mental, um inconsciente de
constituição, que é seu germe e permanece sendo a
condição e o elemento que consegue integrar-se. Existe
também um inconsciente de dissolução, que é a
decadência ou o resíduo, que é antes seu obstáculo do que
a condição de seu funcionamento normal. Isto é, existe um
inconsciente normal, necessário e são, e um inconsciente
anormal, evitável e morboso, e é grave erro confundi-los
deliberadamente ou por omissão. Encontramos aqui o
primeiro tipo de um erro de método que consiste em
buscar nos estados patológicos, sem reserva nem
discriminação, uma simples exageração das atividades
normais. As funções mentais nem sempre se afundam
seguindo a ordem inversa da sua formação. A
decomposição de um estado nem sempre liberta os
elementos que serviram para sua composição. A
enfermidade, a lesão ou o desgaste podem criar desordens
originais: não atuam necessariamente em prol de uma
análise genética e explicativa; nem sempre são simples
regressões que nos restituem as etapas superadas. A
enfermidade opõe-se à ontogênese como a morte ao
nascimento. A destruição pode empregar procedimentos
muito mais rápidos do que a construção, e chega a destruir
até os elementos, ou lhes impõe condições segundo as
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quais não teriam podido organizar-se para uma


colaboração funcional.


II. O inconsciente normal, ou de constituição

Exercemos nossa atividade de adaptação ao mundo
exterior, sabendo-o ou ignorando-o. Ainda quando a
ignoramos, esta atividade não carece necessariamente de
adaptação e discernimento, e, ainda quando dela
tenhamos consciência, tampouco carece necessariamente
de automatismo e impulsividade. Nossos instintos e
hábitos aparentemente cegos testemunham, amiúde,
seletividade e intencionalidade, sem prejuízo de nossas
atividades mais conscientes. Reciprocamente, nossa
atividade mais consciente não iria tão longe se uma
espontaneidade e impulsividade secretas, quase
impossíveis de distinguir do automatismo, não a
acompanhassem e auxiliassem.
Por exemplo, no funcionamento da memória,
observa-se que “os fatos e acontecimentos não nos
chegam tal como foram vividos na ocasião, porém
incidindo agudamente sobre o porvir; giram em direção a
nós face a face por onde podem ser-nos úteis, no instante
da recordação e no futuro, quando se lançassem
espontaneamente em direção à solução de que
necessitamos no momento”. (Charles Blondel, em Dumas,
Nouveau Traité de Psychologie, t. IV, pp. 428-438 da trad.
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 93

argentina, Nuevo Tratado de Psicología, 8 tomos, Buenos


Aires, Kapelusz, 1951).
Todas essas coisas que repousam comumente no
fundo inconsciente de minha memória podem estar
sempre ausentes e estranhas, ao passo que toda a minha
atividade consciente concorda com elas com a mais
perfeita exatidão, a ponto que a ausência integral dos
estímulos e inibições que emanam de cada uma delas
bastaria para dar a esta atividade o caráter de demência.
Essa atividade é um sonambulismo organizado, isto
é, em certos aspectos, o contrário do sonambulismo
propriamente dito. É um automatismo subordinado às
intenções de uma atividade dominada inteiramente pela
consciência. O inconsciente normal se reconhece por seu
caráter disciplinado e instrumental. Continua como
servidor do pensamento e da consciência e nunca é um
substituto, mas um companheiro, como o faz precisamente
o servidor.
A não ser quando se trata de estado morboso,
aquilo que se designa como inconsciente em psicologia é o
grau inferior de tensão das atividades que acompanham a
consciência em seu rendimento. A atividade inconsciente
normal imita sempre uma atividade consciente; como um
decalque estereotipado. A mecanização do pensamento é
também uma função, e o fracasso na função vem quando o
pensamento decide empreender a tarefa que pertence
normalmente a seus instrumentos mecânicos. O
inconsciente é normal até o momento em que uma
inversão dos papéis reveste um caráter patológico.
94 CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA

No entanto, este abismo do inconsciente tem fundo.


Uma atividade nunca se automatiza completamente com
impunidade. O automatismo, com relação ao pensamento,
é uma regressão, e esta regressão não pode ser
impulsionada mais além de certo grau sem chegar a ser
irreparável. Chega um momento em que a recuperação da
consciência sobre o automatismo é tão rara e tão difícil,
que chega a ser impossível. A raridade crescente destes
casos indica-nos a aproximação de um limite, não
matemático, mas absoluto, isto é, a aproximação de uma
forma de atividade mental que não pode nunca mais voltar
a entrar no campo da consciência, quer por não ter sido
instituída por ela, quer por ter sido libertada de seu
controle durante um tempo muito longo, e por completo.
Desse modo, consciência e inconsciência não
devem ser opostas, tal como não se deve opor o
pensamento ao cérebro, considerando-se este apenas
coisa “material”. É ilusório tentar ver cérebro e
pensamento como “duas formas de uma mesma energia”,
após tê-los oposto tão radicalmente, pois, neste caso, a
passagem de um ao outro é inconcebível, já que, visto
assim, o cérebro se reduz a um lugar de movimentos e de
correntes, isto é, de fenômenos puramente físicos. Dessa
forma, não somente a transformação do consciente em
inconsciente — isto é, do espírito em matéria — escapa à
intelecção, mas também a correlação de duas séries
permanece dificilmente compreensível. O cérebro mesmo
não pode colaborar inteligentemente com a vida psíquica
se não é concebido como animado, como instrumento de
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 95

uma atividade viva que o ultrapassa, a atividade de um ser


vivo total; esta atividade não pode reduzir-se ao traçado
dos deslocamentos celulares ou de correntes nervosas,
porém tem sempre um fim e um sentido, uma alma. O
funcionamento cerebral pertence à alma, tal é o primeiro
princípio de uma psicologia coerente, e é só um corolário
desta evidência: que o corpo vivo está animado: como
estaria animado o corpo, se suas partes não o estivessem?
O cérebro é instrumento de atos que, ainda que na forma
de reações reflexa ou habituais às excitações externas,
expressam finalidades de adaptação e não podem ser
inteiramente descritos em termos físico-químicos. Ainda
quando a alma pareça descer ao corpo, ela somente se
prolonga nele. Isto faz com que ela possa recuperar às
vezes as energias de consciência e de claridade que parece
haver perdido. Como o automatismo tem sua inspiração,
ela encontra ali a sua obra e a sua preformação e,
reciprocamente, à maneira do hipnotizador, pode
despertá-la completamente. Entre este inconsciente e a
consciência, não há mais que a diferença entre o implícito
e o explícito.


III. O inconsciente anormal, ou de dissolução

Existe outro inconsciente, cujo caráter constante é,
pelo contrário, estabelecer-se à margem da consciência e
trabalhar antes, em sentido inverso às suas intenções de
síntese e de unificação. É o inconsciente cujo poder
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dissociativo na libido mina, com seu trabalho de sapa, o


poder de síntese e de controle, o que destacaram muito
bem Freud e sua escola. Consideremos alguns casos:
A) Distração:
O caráter e o efeito da distração é provocar a
inconsciência. Por exemplo, na dispersão anestésica dos
histéricos. A distração, com efeito, “equivale nos histéricos
a uma anestesia ao menos momentânea” (P. Janet, loc. cit.,
p. 237). O sujeito distraído chega a ser inconsciente dos
movimentos que lhe sugerimos efetuar, por anormais que
sejam: levanta os braços, atira-se ao chão sem sabê-lo, e
logo nega que o fez. Se lhe formulamos perguntas,
responde outra coisa. Esta anestesia ameaça também aos
distraídos normais.
A distração do meditativo difere da do histérico.
Num caso, a distração é concentração; no outro, dispersão.
O distraído normal se afasta de várias excitações porque
se apresentam todas ao mesmo tempo. O histérico se
concentra em uma excitação porque não pode ordenar
várias. A distração normal expressa a força da atividade
sintética de adaptação, a capacidade de formar um plano
oportuno e submeter a ele todas as potências do
pensamento, do sentimento e da ação; a distração
histérica expressa a miséria de um ser que chegou a ser
incapaz de dominar as excitações recebidas, e que
sucumbe sob o número delas.



CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA 97











ERRATUM

Heil, mein Kommandant!

Hitler foi nomeado Chanceler do Reich a 30 de
janeiro de 1933 e não a 20 de abril, que na realidade é a
data de seu nascimento.
Mit freudlichen grüssen,

Frau Schulz (nome de guerra do Standartenführer
Von Marzien Reginen).

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