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Museu Nacional
RIO DE JANEIRO
Fevereiro 2017
Nelly Barbosa Duarte Dollis
NOKẼ MEVI REVÕSHO SHOVIMA AWE
‘O QUE É TRANSFORMADO PELAS PONTAS DAS NOSSAS
MÃOS’ O TRABALHO MANUAL DOS MARUBO DO RIO CURUÇÁ
RIO DE JANEIRO
Fevereiro 2017
CIP – Catalogação na Publicação
Dollis, Nelly Barbosa Duarte
D665n Noke Mevi Revôsho Shovima Awe. ‘o que é
transformado pelas pontas das nossas mãos’: o
trabalho manual dos Maubo do rio Curuça / Nelly
Barbosa Duarte Dollis. -- Rio de Janeiro, 2017.
141 f.
Aprovada por:
____________________
Profª Bruna Franchetto (orientadora)
________________
Profº Carlos Fausto (PPGAS/UFRJ)
____________________
Profª Lydie Oiara Bonilla Jacobs (UFF)
____________________
Profª Luiza Elvira Belaunde Olschewski (PPGAS/UFRJ, suplente interno)
____________________
Profª Elsje Maria Lagrou (IFICS/UFRJ - suplente externo)
RIO DE JANEIRO
Fevereiro de 2017
Para Tamã-Sheta, minha mãe, que me disse as seguintes palavras, em algum momento
no final de 2014:
Mia vana yoã shomãivo aska akῖ yoãvõ yoãrivi ikῖ keme mῖ chinãi mai, yoã vana aa
mamẽ kasma. Ãtoro anopa akῖ ã yoã mῖ ikitῖpa. Mῖ kokavo aska matsawã, shõ ikiyavõ
vana, romeyavõ vana, aka mẽkῖ, atona asho atõ ikima. Askai yoãna rivara ikῖro mῖ akῖ
nĩkĩ, atoivo vosh aska vana ã yoãrinki aweskĩ yoãrai ikĩ onãtakĩ koῖro min akῖ,
ninkãki.
Você tem que escutar as palavras que são contadas do jeito que elas são. As histórias
nunca são iguais; você nunca deve dizer: “Foi ele que contou a verdadeira história”.
Como dizem seus tios (koka-vo, irmãos da mãe), nem a fala dos pajés (shõ ikiya-vo) e
dos xamãs (romeya-vo) pertence a eles mesmos. Você deve compreender a forma
específica pela qual a pessoa interpreta os acontecimentos. Preste atenção em quem é a
pessoa que narra.
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer primeiramente o meu avô João Tuxaua (Niwa Wani) que desde a
minha existência esteve presente nos meus pensamentos, protegendo-me através dos seus
peshoti-akaivo (guia) e pela inspiração e pela força que me motivaram a seguir nesta pesquisa.
Agradeço os meus familiares, amigos, colegas, professores. Agradeço as aĩvo-rasĩ (mulheres)
marubo, as principais idealizadoras deste trabalho, que além de confiarem em mim, me deram
a responsabilidade de registrar suas falas e pensamentos, ajudando no desenvolvimento desta
pesquisa; sem elas, nada teria sido possível.
A minha orientadora, Bruna Franchetto que me recebeu de braços abertos e
compreendeu os momentos de dificuldade e provação pelos quais passei. Sem o trabalho dela
nas pontas das mãos, eu não teria chegado a concluir em tempo esta dissertação.
Sem a bolsa concedida pelo CNPq e sem a dedicação da coordenação e dos
funcionários do PPGAS, não teria saído do lugar do começo. O Museu do Índio (FUNAI-RJ),
seu diretor – José Carlos Levinho – e todos os que lá trabalham foram incentivo e porto
seguro.
A todos os professores do curso de Mestrado em Antropologia Social do PPGAS
(Museu Nacional, UFRJ): Marcio Goldmam, Edmundo Pereira, Luiza Elvira Belaunde,
Carlos Fausto, que nos ensinaram esforçando-se para nos fazer entender qualidade e teorias.
A todos os colegas, em especial aqueles que me auxiliaram de alguma maneira no
desenvolvimento da pesquisa com suas sugestões, e aos demais pelo convívio durante nossa
temporada no curso, com debate e discussões teóricas e metodológicas.
Aos meus amigos Aline Moreira e João Rezende pela paciência de ter me aturado
durante meus refúgios nas suas residências, haja vista a necessidade de buscar paz para a
elaboração desta dissertação. Também agradeço meu grande amigo Irmão Nilvo que sempre
esteve presente para me encorajar nos momentos de fraqueza da jornada acadêmica. Ao meu
querido colega Gustavo Godoy e às demais pessoas que me ajudaram na formatação e na
correção ortográfica deste texto.
Finalmente, agradeço a todas as pessoas que considero importantes nessa empreitada,
de coração; desculpem-me em não citar os nomes, pois são muitos, além do que, acho, seria
injusta com os demais. Espero que todos se sintam incluídos, os que me ajudaram na
construção do pensamento durante minha estadia na universidade e fora dela, na
multidisciplinaridade, no diálogo de saberes e na constituição coletiva de conhecimentos para
melhores condições de vida em sociedade.
RESUMO
O objetivo desta dissertação é apresentar os relatos dos Marubo do rio Curuçá sobre a
importância do trabalho manual, com foco nas palavras de sete mulheres marubo, que são as
principais inspiradoras desta pesquisa e que vivem nas aldeias de Boa Vista e Nazaré do rio
Ituí e nas aldeias Maronal e São Sebastião do rio Curuçá, na Terra Indígena do Vale do Javari
(Amazônia ocidental). Enfatizo os contextos dos conhecimentos tradicionais de modo geral e
a continuidade da memória que cada artesã traz dos seus ascendentes clânicos. Para tanto,
desenvolvo uma explicação sobre os diversos subgrupos clânicos Marubo, de forma a
apresentar e ressaltar, a partir do próprio ponto de vista das mulheres Marubo, as distinções no
trabalho dos artesões de cada subgrupo clânico e a diferenciação entre mevĩsho shovima awe,
„trabalho das mãos‟, e mevi revõsho shovima awe, „produção das pontas das mãos‟. Sendo
assim, nas falas das minhas protagonistas, a diferenciação na execução do trabalho manual
(„trabalho das mãos‟ e „produção nas pontas das mãos‟), com base no pertencimento clânico,
serve para explicar e especificar o modo de ser de cada clã. A dissertação inclui um inventário
dos adornos marubo femininos e masculinos, com descrição dos processos de produção, desde
a coleta das matérias-primas, seus valores e significados, a imbricação de tradição e inovação.
Palavras chave: Marubo; cultura material; clãs marubo; mulheres indígenas; artes indígenas.
ABSTRACT
The aim of this dissertation is to present the stories and explanations told by the Marubo of
the Curuçá River on the significance of manual labor, focusing on the words of seven Marubo
women, who are the main inspirers of this research and who live in Boa Vista and Nazaré
villages on the Ituí river and in Maronal and São Sebastião villages on the Curuçá River, in
the Indigenous Land of the Javari Valley (Western Amazon). I emphasize the contexts of
traditional knowledge in general and the continuity of memory that each artisan brings from
her clan ascendants. I develop an explanation of the various Marubo clans, in order to present
and highlight, from the Marubo women's point of view, the distinctions in the work of the
artisans of each clan and the differentiation between mevĩsho shovima awe, 'work of the
hands' and mevi revõsho shovima awe, 'production with the tips of the hands'. Thus, in the
speeches of my protagonists, the differentiation in the execution of manual labor ('work of the
hands' and 'production with the tips of the hands'), based on the clanic membership, serves to
explain and specify the way of being of each clan. The dissertation includes an inventory of
male and female marubo adornments, with a description of the production processes, from the
collection of raw materials, their values and meanings, the imbrication of tradition and
innovation.
Key-words: Marubo; material culture; marubo clans; indigenous women; indigenous arts.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES (mapa, tabelas e fotos)
Foto 1: Encontros do Projeto de Extensão ' Diálogo Feminino' com mulheres indígenas do
Vale do Javari na cidade do Atalaia do Norte-AM, 2008 (foto de Lenice Tikuna) .................23
Foto 2: Meus dois professores (Gilse e Rafael) apoiadores do Projeto de extensão 'Diálogo
feminino' na CASAI de Atalaia do Norte (foto de Nelly B. D. Dollis)....................................23
Mapa 1: Terra Indígena do Vale do Javari (CTI 2011)............................................................31
Mapa 2: Vale do Javari apud Welper (2009:89).......................................................................35
Mapa 3: Sui Waka (Rio Curuçá, desenho de minha autoria) ...................................................39
Figura 1. Esquema do parentesco clânico da autora.................................................................49
Figura 2: Exemplo de esquema de parentesco clânico apresentado por Xavier Ruedas (2013:
227)...........................................................................................................................................50
Foto 3: Ino Tamashavo.............................................................................................................53
Foto 4: Satã Sheta.....................................................................................................................54
Foto 5: Sata Mashe ...................................................................................................................54
Foto 6: Tamasai ........................................................................................................................55
Foto 7: Koron Meto ..................................................................................................................55
Foto 8: Iskõ Tama.....................................................................................................................56
Foto 9: Varin Vãti.....................................................................................................................57
Foto 10: Shanen Tome..............................................................................................................58
Foto 11: Artefatos expostos na Exposição “O caminho da miçanga”, Museu do Índio,..........69
Tabela 3: adornos tradicionais e materiais usados para a sua confecção .................................70
Foto 12: maiti (coroa masculina, feita com miçangas nas laterais, desenhos dos grafismos
corporais)..................................................................................................................................72
Foto 13: maiti (coroa masculina; hoje é usada por ambos os sexos, tem grafismos próprios
para adornos) ............................................................................................................................72
Foto 14: Papiti (pingente de coroa feito de aruá; nas pontas, dentes molares de macaco) ......73
Foto 15: tewea (gargantilha de miçangas de varias voltas e amarrada nas pontas; usada por
ambos os sexos)........................................................................................................................73
Foto 16: Paoti (bandoleira de miçangas, de cor vermelha a masculina, amarela a feminina) .74
Foto 17: poyã-kiri oshe (braçadeira de PVC, modelo tradicional)...........................................74
Foto 18: mevi-oshe (pulseira feminina em PVC) .....................................................................75
Foto 19: txiviti õpia (cinto feminino com varias voltas de miçangas)......................................75
Foto 20: txiwiti mashken ikitaya (cinto feminino de miçangas)...............................................76
Foto 21: vatxi (saia feita de crochê)..........................................................................................76
Foto 22: raneshti (jarreteira de miçangas com varias voltas)...................................................77
Foto 23: tae-kiri-oshe (tornozeleira de tucum).........................................................................77
Foto 24: tae-kiri-oshe (tornozeleira de algodão com grafismo ................................................78
sheta aka „dente‟ e one aka
„movimento‟)...............................................................................78 Foto 25: maiti (coroa com
três pingentes; nas pontas, dentes molares de macaco prego).......78 Foto 26: maiti (coroa de
PVC sem pingentes)..........................................................................79 Foto 27: papiti
(pingente nas pontas com dentes de molares de macaco prego)......................79 tewea
(gargantilha): dá várias voltas e é amarrada em cada ponta...........................................79 Foto
28: tewea (gargantilha masculina de varias voltas, mas não tanto quanto a feminina)....80 Foto
29: paoti (bandoleira masculina amarrada em forma de cruz nas costas)........................80 Foto
30: paoti (bandoleira de PVC) .........................................................................................81 Foto
31: poyã-kiri-oshe (braçadeira de miçangas) ...................................................................81 Foto
32: mevin-oshe (pulseira de PVC)....................................................................................82 Foto
33: txiwiti (cinto de miçangas pretas e brancas)...............................................................82 Foto
34: txiwiti (cinto de PVC)................................................................................................83 Foto
35: shãpati (tanga masculina) ..........................................................................................83 Foto
36: raneshti (jarreteira de PVC).......................................................................................84 Foto
37: tae-kiri-oshe (tornozeleira de PVC)...........................................................................84 Foto
38: coleção da autora de colares masculinos (PVC, miçangas, disco vinil) ....................85 Foto
39: da esquerda para direita o primeiro colar feito de lascas...........................................85 de
coco de tucum, colar de osso e colar de dentes de porcão e de macacos. ...........................85
Foto 40: seke tewea (colares masculinos de uma volta com cores alternadas) ........................87
Foto 41: menshte (pulseiras masculinas de uso coditiano).......................................................87
Foto 42: tewea tetxõka (colares com várias voltas)..................................................................88
Foto 43: Novo isisi-paka keo-naya (aruá enfileirado com cipó) ..............................................89
Foto 44: novo txitxã nanea (aruá dentro de um cesto de tucum)..............................................91
Foto 45: Da esquerda para direita: novo inteiro, txaro-kitaya, tsosa-taya, michpo para o
preparo do branqueamento, osho-taya, ota-taya. .....................................................................96
Foto 46: novo inteiro, txaro-kitaya, michpo para preparo do braqueamento, osho-taya, palito
de tucum com agulha ou arame amarrado na ponta, contas furadas e linha de tucum para
enfileirar contas. .......................................................................................................................96
Foto 47: novo (aruá inteiro)......................................................................................................97
Foto 48: Txaro-kitaya (lasca de aruá).......................................................................................98
Foto 49: tsosaya (fazendo contas de aruá)................................................................................98
Foto 50: txitxã ne nanea novo (aruá inteiro em cesto feminino)..............................................99
Foto 51: novo tsosaya, michpo, novo-oshoya (contas de aruá, cinzas e contas de aruá branco)
................................................................................................................................................100
Foto 52: novo otama, sheo txiriya, novo otaya (contas de aruá não furadas,.........................100
palito de pupunha com arame na ponta, contas de aruá furadas) ...........................................100
Foto 53: pani maia, novo otaya (novelo de tucum e contas de aruá furadas) ........................101
Foto 54: novo keõ-naya (aruás enfileirados) ..........................................................................101
Foto 55: shakia (aruá após o polimento)................................................................................102
Figura 3: homem com conjunto completo de adornos (desenho da autora)...........................102
Foto 56: pane-eshe (caroço de tucum) ...................................................................................104
Foto 57: tovoin txaro-kitaya (lascas de tucum) ......................................................................105
Foto 58: pĩtxo eshe (caroços de murumuru)...........................................................................105
Foto 59: pĩtxo tsosaya (contas de murumuru)........................................................................106
Foto 60: Pĩtxo txaro-taya (lascas de murumuru)....................................................................106
Foto 61: wanin eshe (caroços de pupunha) ............................................................................107
Foto 62: pĩtxo eshe (caroços de murumuru)...........................................................................107
Foto 63: Da esquerda para direita: caroços de tucum inteiro, contas prontas para serem
enfileiradas. linha de tucum para enfileirar as contas, contas já enfileiradas e já no formado de
colar. .......................................................................................................................................108
Foto 64: Pane txaro-ka (fazendo lascas de caroço de tucum)................................................108
Foto 65: pane eshe txaro-kita shasho matxi (fazendo lascas de caroço de tucum em cima da
pedra)......................................................................................................................................109
Foto 66: Tsosa-taya (contas cortadas)....................................................................................109
Foto 67: ota-taya (contas furadas)..........................................................................................110
Foto 68: pane txeshe ota (contas sendo furadas)....................................................................110
Foto 69: pane keõ-naya (contas de tucum enfileiradas).........................................................111
Foto 71: Da esquerda para direita: Echta sem casca, txaro-taya, tsosa-taya e já com furos. 112
Foto 72: echta txaro-ka (echta em lascas)..............................................................................113
Foto 73: tsosa-taya (echta em contas)....................................................................................113
Foto 74: Echta ota-ya (contas de echta furadas)....................................................................114
Foto 75: Contas de echta enfileiradas.....................................................................................114
Foto 76: shakiya (feito o polimento) ......................................................................................115
Foto 77: shata wesha (raspando o plástico) ...........................................................................117
Foto 78: shata shatea (cortando o plástico em contas) ..........................................................117
Foto 79: shata ota (furando as contas de plástico).................................................................118
Foto 80: shata tsista-ka ou txishoa (cortando o biquinho criado com furo de agulha)..........118
Foto 81: shata tsista-ka ou txishoa (cortando o biquinho criado com furo de agulha)..........119
Foto 82: shata otaya (contas furadas prontas para serem enfileiradas)..................................119
Foto 83: shata keõ-naya (contas enfileiradas)........................................................................120
Foto 84: shata shakia (contas enfileiradas sendo polidas).....................................................120
Foto 85: toati-rasĩ (peneira) ...................................................................................................122
Foto 86: txitxã (cesto de folha nova de tucum) ......................................................................122
Foto 87: txitã-rasin (cestos de folhas de tucum de vários tamanhos) ....................................123
Foto 88: wekoti e pichin (abanador e esteira feitos de folha nova de palmeira).....................123
Foto 89: Varin Vãti fazendo esteira com grafismo one-ka.....................................................124
Foto 90: Fibras de tucum e três novelos de tucum .................................................................124
Foto 91: rede de tucum...........................................................................................................125
Foto 92: Saia feminino feito de crochê (kene sheta aka „grafismo
dente‟)............................126 Foto 93: Saia em
processo......................................................................................................126 Foto 94:
tornozeleira unissex..................................................................................................126 Foto 95:
Tornozeleira unissex com grafismos „dentes‟ e „calango‟.......................................127 Foto
96: wachmen resisi teriska (fiando algodão) .................................................................127 Foto
97: resisi pani (rede de algodão)....................................................................................128 Foto
98: resisi shoko, tirik-kitaya (novelos e linha de algodão enrolada no fuso).................128 Foto
99: mapo yoa-aka (prepando as panelas de barro).........................................................129 Foto
100: Recepção pelo diretor do Museu do Índio, José Carlos Levinho (13/09/ 2011)....130
LISTAS DE SIGLAS
O título deste trabalho, Nokẽ mevi revõsho shovima awe, é uma das expressões que
escutei várias vezes das mulheres quando comentavam sobre seu trabalho manual1:
Uma tradução para o português poderia ser a seguinte: „O que é transformado pela
ponta das nossas mãos‟, embora o verbo desta frase signifique, entre outras coisas, „criar‟ e
„fazer existir‟.
Outra frase que poderia servir de título seria Nokẽ mevĩsho shovia awe.
1
O leitor precisa saber que há diferença entre os sentidos de duas frases. Mevῖ shovima awe significa „trabalho das
mãos‟, como o trabalho da roça, a construção da maloca, a fabricação da canoa, capinar ao redor da casa, todas tarefas
masculina. Mevi revõsho shovima awe significa „trabalho das pontas das mãos‟, como, para os homens, arco e flechas,
cestaria, pentes, chapéus de penas e, para mulheres, os cestos feitos de tucum, peneiras, abanadores, esteiras, saias de
algodão, redes de tucum, redes de algodão e indumentárias ou adornos.
16
Se tomarmos cada palavra desta frase, chegamos a uma aproximação: nukẽ (pronome
pessoal) é uma marca de primeira pessoa plural, „nós‟ ou „nosso‟; mevĩ-sho, palavra com dois
morfemas, „mão-movimento‟, ou seja, fazer/trabalhar com as mãos em movimento;
surgir/começar, surgimento/começo; awe, tudo aquilo que alguém faz e lhe pertence; sho
(sufixo genitivo); shovi-a (verbo transitivo), criar, fabricar, produzir 2.
O problema está na tradução da frase inteira, onde se conectam as palavras. Fazer é
saber, saber fazer as coisas, conhecimento que faz com que as coisas sejam feitas. Fazer é
com as mãos, é o saber das mãos. É um saber-fazer total, incorporado, para cada pessoa que
sabe-faz. É um saber-fazer que „pertence‟ a quem sabe-faz, assim como as coisas que passam
a existir pelo seu trabalho. Das mãos o saber entra na pessoa, é interiorizado e é exteriorizado.
E o saber pela escrita, escrevendo, escrito, que é o meu caso? A mesma frase se aplicaria
quase naturalmente, já que escrever passa pelas mãos, ou, melhor, é conhecimento que a mão
faz existir, materializa, conhecimento que se move sempre de fora para dentro e vice-versa, e
que faz crescer a pessoa.
Para entender um pouco melhor este „saber fazer‟, costumo lembrar o que ouvi
muitas vezes do segundo irmão mais velho da minha mãe – Ivinipapa, pai de Ivini, conhecido
como Alfredo ou Alfredão. Perguntou-me, uma vez: “O que o médico faz para ele ter o seu
conhecimento?”. Respondi: “No estudo ele busca determinadas situações sobre as quais ele
quer aprender.” Meu tio comentou: “Enquanto faço uma maloca ou um cesto, eu tenho todo o
conhecimento que está na minha cabeça, não estou fazendo somente uma maloca ou um cesto;
cada contexto, cada objeto, é um saber total, não é somente fazer uma coisa e deixá-la
pronta”.
Isso é importante para compreender o que vou dizer. Produzir com as mãos e é um
conhecimento total. O leitor verá que escolhi traduções, traduções atalho, que sempre deixam
um amargo na boca: „trabalho manual‟, „artesanato‟, „artesãs‟, „artesão‟. Daqui em diante,
2
Meu avô, João Tuxaua, dizia: “ẽa shovima yora”, „eu fiz gente‟, já que ele se definia como responsável das „novas
gerações‟, através da fertilização xamânica de mulheres que não podiam mais ter filhos por ter sido vítimas também de
ações ou eventos xamânicos. João Tuxaua se dizia responsável pela „criação‟ de um povo, que seria denominado de
„Marubo‟. Voltarei a esses momentos mais adiante, neste mesmo capítulo.
17
cada uma destas palavras em português deve ser pensada como tendo atrás dela tudo o que
tentei explicar anteriormente.
As mulheres dizem “nokẽ mevi revõsho shovima awe” com um tom de satisfação
diante de suas próprias ações e feitos. Os bens que manufaturam são a base sobre a qual se
eleva a sua autoestima, como prova do seu valor e de seu conhecimento.
Para as mulheres, o que se transfoma nas pontas das mãos são cestas de folhas novas
de tucum (txitxã), abanadores (wekoti), peneiras (toati), saias (vatxi) e pintura corporal (kene).
Cada um destes „objetos‟ tem um grafismo específico, chamado de kene, mesmo nome da
pintura corporal. Não se produzem estas coisas à toa, apenas para fins utilitários, mas para
conseguir realizar o desenho e conhecer a história dos objetos. Há uma grandeza em saber
transformar algo em padrões de desenhos.
Meu pai tinha o sonho que eu virasse professora ou alguém na área da saúde. Eu nunca sonhei
com isso; gostava de contar histórias, estando ali no meio de adultos, e de ouvir o que as
freiras e os padres contavam.
Todas as vezes que eu voltava para a aldeia, nas férias, tinha que contar aos meus
pais o que tinha feito. Até uma música que ouvida na cidade e cantarolada por mim sem
querer, tomando banho, meu pai pedia para eu cantar na frente de todo mundo. Sentia muita
vergonha. Tudo o que eu aprendia, meus pais cobravam e queriam que eu expusesse na frente
da comunidade. Ele queria que eu me tornasse uma liderança, porque não teve filho homem.
Como eu era quem estava aprendendo a vida de duas sociedades, seria uma porta-voz.
Comecei a sentir que tanto na minha família, como na sociedade nawa, não poderia
viver normalmente. Ficava me perguntando o tempo todo quem eu era (porque me sentia
estrangeira na minha própria família): “e aí, vocês gostam de mim ou me fizeram só para eu
ter essa responsabilidade? Por que as minhas irmãs não podem ter essa mesma
responsabilidade?”. Depois, sai do convento e terminei o ensino médio em Manaus. Dei um
tempo sozinha, sem ter contato com ninguém da aldeia, por dois anos. Neste período, fiz
curso de auxiliar de administração, trabalhei na empresa Panasonic, da Zona Franca. Sentia me
livre de cobranças, não precisava explicar quem eu era.
Dei-me conta que deveria voltar. Meu pai não precisou me chamar, eu mesma senti a
necessidade de retomar o contato com a minha família. Voltaram as cobranças: “O que você
vai fazer, vai voltar, não vai voltar?”, Acabei voltando, aceitando uma proposta para trabalhar
na UNIVAJA, uma ONG, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari. Após mais uma
fuga para Manaus, voltei de novo para trabalhar na FUNASA, no estoque de remédios, depois
como auxiliar de dentista. Não via nada que eu pudesse fazer além disso.
Soube de um curso de Antropologia Aplicada em Manaus, organizado pelo CIMI
(Conselho Indigenista Missionário). Não consegui fazer o curso; o coordenador, que tinha que
dar uma declaração, falou um monte de coisas absurdas para minha família, disse que eu tinha
fugido e que estava indo “atrás de macho”, coisas assim.
Acabei ficando doente, três meses no hospital com tuberculose. Não sabia o que
tinha, nunca tinha ouvido falar. Nesse tempo, meus dois irmãos morreram de hepatite delta
(uma menina de 14 anos e um menino de 10 anos). Senti naquele momento que tinha que
ajudar meus pais, mergulhados numa crise profunda. Voltei para Manaus para trabalhar de
novo na Panasonic, mas logo pedi demissão e voltei para Atalaia do Norte. Comprei casa na
cidade e acolhi meus pais que estavam sem condições emocionais e mesmo materiais de
19
sobrevivência e sem saber viver na cidade. Convivi com eles em depressão, mãe e pai dos
meus próprios pais. Chegaram quatro crianças, meus sobrinhos, trazidos por minha mãe para
que estudassem na cidade, apesar de ter escola na aldeia. A responsabilidade foi aumentando.
Comecei a trabalhar com os Maristas que davam palestras nas escolas. Em 2006, vim
para o Rio de Janeiro, onde os Maristas têm uma escola, na Barra da Tijuca. Em 2008, entrei
na Universidade Federal do Amazonas, campus de Benjamin Constant.
Escolhi estudar Antropologia. Minha mãe teve a terceira recaída de câncer, cuidei
dela mesmo fazendo curso e consegui acabar. Naquela época, conheci as mulheres marubo da
aldeia Boa Vista, do Rio Ituí. Elas trabalham com artesanato e se queixavam por ninguém
querer mais aprender essas artes. Eu trabalhava na FUNAI de manhã e de tarde estudava. Um
dia cheguei em casa à noite e as mulheres estavam lá, querendo falar comigo.
Pediram a minha ajuda como “antropóloga”, não só materialmente: “Queremos a
história do nosso artesanato no papel; como somos as autoras das nossas falas, nós queremos
que você conte do jeito que a gente contar para você”. Até então, eu estava querendo
pesquisar os antropólogos, como é que os antropólogos brancos atuam nas aldeias, conversar
com eles e escrever sobre eles. Já que os antropólogos estudam indígenas, eu queria estudar os
antropólogos. Esse pedido das mulheres foi mais forte. Tentei fugir porque essa cobrança era
tão forte quanto as cobranças da minha família e as conversas eram sempre bem emotivas: “já
estamos morrendo, já estamos acabando e você não pode fugir, seu avô foi responsável pelo
povo, você tem que ter essa responsabilidade também”. Os Marubo mais velhos acham que a
pessoa que sai da aldeia, quando aprende com outra sociedade, tem obrigação de retornar com
aquilo que aprendeu. Não tem como fugir. Minha mãe faleceu em maio de 2015, disseram:
“ela morreu, mas você não vai desistir, você está viva! O estudo não é só para você, como
nawarasĩ ‘Branco‟ faz”.3
3
Há uma tensão entre a exigência que vém dos mais velhos (parafraseando, “você precisa trazer para nós o que
aprendeu no mundo dos nawa”) e o fato de que as mulheres não exigem de mim a aprendizagem de suas
especialidades. Elas entendem que minha vida entre elas foi curta demais para poder receber seus ensinamentos, além
de que eu já passei da idade para poder ser uma boa aprendiz. Minha dedicação ao registro de seus depoimentos e da
história oral, bem como minha atenção para os seus trabalhos tradicionais, já as deixam feliz e não deixam de ser um
exemplo para seus filhos.
20
triste se você não for. Quero que você mostre para o seu pai que você não precisou ser homem
para ser liderança.” Eu vim e é por ela que estou aqui.
É comum as mulheres indígenas não receberem apoio das lideranças das aldeias,
quando elas procuraram estudar na cidade por seu próprio interesse. Podem receber apoio de
seus parentes próximos, embora eles possam ser os primeiros a não aprovar uma decisão
dessa natureza, pois concebem as mulheres como não sendo capazes e como sendo fracas para
resistir ao envolvimento com homens não indígenas. Muitas fases dos meus estudos não
foram fáceis. Nunca tive apoio dos meus parentes ou do meu povo. Quase sempre acharam
que eu não teria a mesma competência dos homens. Meu povo costuma falar que as mulheres
só pensam em namorar, são fáceis para os homens nawa e “se estragam rápidas”. Assim, não
se pode confiar muito no seu aprendizado escolar, já que logo ficam grávidas.
De qualquer maneira, meus pais me salvaram nesta busca incessante de estudar; eles
mesmos diziam que, ainda que não gostassem do longo caminho de estudo que escolhi, o que
importava era me ver feliz, acreditando que algum dia seria alguma coisa na vida. A trajetória
dos meus estudos foi minha teimosia em focar meus objetivos, “mesmo sendo estragada”.
Alguns dos meus parentes me acusavam de não gostar dos meus próprios parentes e essas
acusações ocorriam por eu não me contentar só de querer aprender a falar, ler e escrever.
Porém, diante dessas criticas depreciativas da estudante mulher indigena, nas minhas idas e
vindas também comecei a ouvir pressões e cobranças, já que sempre me diziam: “você não é
nawa-shavo (branco-feminino), olhe, nunca se esqueça da importância dos seus avôs, eles são
yora kuῖ (gente de verdade)”. Muitas vezes os meus interlocutores faziam questão de me
contar como eram meus avôs e suas vidas no meio dos Marubo. Era para eu valorizar meu avô
João Tuxaua, por ele ter sido importante, pois ele tinha o dom especial de ajudar a sua gente
por meio dos seus peshoti-akaya, seus „guias‟, cujas orientações ele seguia fielmente.
Compreendo as cobranças dos meus interlocutores; meu avô fez o que fez graças ao dom que
recebeu dos yovevo (guias dos xamãs) a favor de seu povo. Agora é minha vez de fazer algo
para o meu povo, através dos conhecimentos adquiridos dos nawa.
Um grupo de mulheres marubo oriundas das Aldeias Boa Vista, Maronal, Nazaré e
São Sebastião, amigas da minha mãe, foram as protagonistas da minha pesquisa. A maneira
de elas entenderem o trabalho dos pesquisadores despertou o desejo de colaborarem com uma
21
pesquisa acadêmica para transmitir seus conhecimentos acerca do que se faz com as mãos.
Mulheres de outras aldeias manifestaram interesse em participar da pesquisa. Ao expressarem
o descontentamento sobre como os funcionários tratam os pacientes na Casa de Saúde
Indígena-CASAI, quando são removidos para o municipio de Atalaia do Norte-AM, onde
permanecem para fazer tratamento de determinadas enfermidades, surgiu a ideia de me pedir
para que falasse do “trabalho manual e da produção nas pontas das mãos” (mevisho shovima
awe e mevi revõsho shovima awe), para que seus filhos e netos pudessem ter acesso, mais
tarde, ao que foi contado por elas. Condividem com os mais velhos o medo de que instituições
como a FUNAI e a SESAI logrem em fazer desaparecer seus costumes e tradições: “china
keyoã”, „diluem o pensamento‟.
Há dois mundos relacionados ao „trabalho manual‟, chamado de „artesanato‟ pelos
nawa. Como diz Lagrou (2013: 11):
Fazer „artesanato‟ faz parte do que é ser uma mulher mevi yosika ou mevi revo yosika,
„que tem saber nas mãos ou tem saber nas pontas das mãos‟ e conhece a história daquilo que é
produzido com as mãos ou nas pontas destas. Além disso, depois da morte, este trabalho faz
com que uma mulher (ou um homem) seja preparada para voltar para o lugar de origem. Na
sociedade marubo, o espírito se prepara - espiritual e fisicamente - desde o nascimento, então
tudo o que fazemos tem a ver com preparar a alma para que não se perca neste mundo. Não
posso ser sovina com minha irmã, porque se eu negar uma fruta (um mamão, por exemplo) ou
qualquer outra coisa, quando eu morrer, o espírito do mamão vai fazer minha alma ter uma
morte eterna. Vivemos neste mundo uma realidade de mundo de morte; depois da morte do
corpo vivemos na outra vida eternamente voltando para a origem de onde viemos. Cada clã
tem um local de origem, ao qual os seus membros voltam, numa viagem, depois da morte. Há
vários caminhos de retorno dos clãs. Um deles viaja pela água, outro pelo ar (por cima das
árvores, caminhando). Temos uma cosmologia que é transmitida na educação. Quando
furamos um aruá ou um coquinho (para fazer um colar), que é a primeira coisa que
aprendemos quando pequenos, nossa mãe fala: “olha, fure direitinho e não deixe espalhar, se
22
não o pássaro vem e come”. Não é um pássaro visível, não é um espírito, é a forma de ensinar
às crianças como ter cuidado com suas coisas, já que se não cuidar, o que ela estiver fazendo
não rende. Para render, você tem que guardar tudo direito no recipiente, ou seja, tendo
orientação e sabendo disso, nada deixará espalhado quando levantar.
Assim, a criança aprende a ser organizada, responsável com seu trabalho, com forma
perfeita. Esse ensinamento está ligado ao trabalho manual, à arte e ao preparo da comida. As
mulheres ensinam como educar os filhos e é por isso que elas têm essa ligação forte com o
„trabalho manual‟ ou artesanato, que é onde encontram a fonte do respeito como mulheres.
Aprender histórias de trabalho manual é ter sabedoria nas mãos e na alma, para a pessoa se
tornar preparada e equilibrada. A importância do „artesanato‟, quase sempre considerado uma
espécie de „arte menor‟ pelos nawa, nunca deve ser menosprezada.
As mulheres marubo são tímidas, não têm momento de voz. As mais velhas até que
algumas vezes têm espaço. A tradição sempre dá a voz ao homem. O homem tem que estar na
reunião, tem que falar em pé, e as mais velhas tentam ter voz, mas a mulher mais nova não
tem esse momento por ter medo de poder ser objeto de comentários negativos pelos txai-rasῖ -
filhos do irmão da mãe e filhos da irmã do pai. Quando eu trouxe as mulheres marubo para
participar da Oficina de Miçangas no Museu do Índio do Rio de Janeiro, o irmão mais velho
da minha mãe disse: “Para quê que você levou as mulheres? Elas não sabem de nada”. As
mulheres marubo, contudo, querem falar de seus conhecimentos. Como minha mãe dizia,
cada um tem uma forma de contar história, não há uma história verdadeira, a verdade é
sempre “a história que minha mãe me contou”, “a história que minha avó me contou”. Os
homens não são donos das „verdadeiras‟ histórias.
A partir das explicações que ouvia das mulheres em cada encontro, de como
concretizavam seus pedidos, comecei a elaborar um projeto de pesquisa, ainda na graduação.
Confesso que fiquei temerosa de enfrentar um assunto e um contexto tão complexos. Com a
inquietação causada pelos pedidos das mulheres marubo, procurei meu professor Rafael
Pessôa São Paio, para perguntar o que achava da ideia. Ele mais do que depressa me
respondeu entusiasmado: é uma ideia ótima, eu farei questão de ser seu orientador. Ao longo
do curso, procurei compartilhar meus pensamentos com as colegas com quem mais convivia.
As cobranças das mulheres marubo foram aumentando para que visibilizasse suas falas na
universidade. Sem saber por onde iniciar, um dia a professora Gilse Eliza Rodrigues me
indicou uma oportunidade para me aproximar de outras mulheres indígenas, através do
Projeto de Extensão da universidade: o projeto “Diálogo Feminino”. Essa experiência me
23
levou a ter certeza de que eu tinha que falar sobre o que as Marubo estavam propondo: o
„trabalho manual‟ (mevῖ shovia awe), que está em suas mãos.
Nos encontros realizados durante o projeto, eu ouvia e via os depoimentos queixosos
e sensíveis das mulheres, comentando sobre seus filhos estar desvalorizando sua cultura, pois
o estudo na cidade não incentivava e nem valorizava suas culturas.
Sensibilizada com a questão, resolvi atender aos pedidos das mulheres, apesar de sentir o peso
de uma imensa responsabilidade. Por estar ciente do tamanho da confiança que estas mulheres
estavam depositando em mim e sabendo como eu serei cobrada constantemente, por ter
assumido esta responsabilidade, mantive a coragem para poder simplificar a complexidade do
assunto, que me complicava na hora da tradução para a língua portuguesa.
Foto 1: Encontros do Projeto de Extensão ' Diálogo Feminino' com mulheres indígenas do Vale do
Javari na cidade do Atalaia do Norte-AM, 2008 (foto de Lenice Tikuna)
Foto 2: Meus dois professores (Gilse e Rafael) apoiadores do Projeto de extensão 'Diálogo feminino' na
CASAI de Atalaia do Norte (foto de Nelly B. D. Dollis)
24
Indígenas. Reuniram-se para formular uma proposta, que se transformou no Projeto Ainvorasĩ
Meti, elaborado por mim. Em termos gerais, o projeto visa estimular a confecção de
artesanatos tradicionais nas aldeias e, a partir disso, fazer surgir um movimento de
transmissão de saberes das mais velhas para as mais jovens. Para tanto, as mulheres
elaboraram uma lista de materiais necessários à produção des artesanatos. O projeto foi
aprovado e o recurso descentralizado para a Coordenação Regional da FUNAI de Juruá
(AM)4, com a minha orientação e a de Shawã-Shavo Sheta (Marta Marubo, estudante de
ensino médio na época (cidade de Atalaia de Norte-AM)), para acompanhar a CRVJ na
aquisição dos materiais e na sua distribuição.
Estava para entrar no curso de mestrado. Em função do projeto mencionado, as
mulheres, com os materiais em mãos, partiram para a produção nas aldeias. Com base na
compreensão delas mesmas, aproveitaram o material para criar uma coleção a ser apresentada
ao Museu do Índio como prova do resultado do projeto e como reciprocidade ou gratidão pela
confiança depositada nelas. É importante destacar que a exibição desta coleção era
considerada pelas mulheres como uma questão de honra. À medida que o dialogo do MI com
4
A Coordenação Regional do Juruá (AM) foi restruturado como Coordenação Regional do Vale do Javari, (Decreto n.º
7.778 de 27 de julho de 2012), para atender a reivindicação das lideranças que queriam a criação de uma coordenação
regional que pudesse atender somente as demandas do Vale do Javari. Esta é a segunda maior terra indígena do país,
com uma extensão de 8,5 milhões de quilômetros quadrados e com uma população estimada em aproximadamente 5
mil pessoas.
25
Esta dissertação tem a finalidade de falar de tudo àquilo que minhas interlocutoras e
meus interlocutores tentaram transmitir sobre a importância do trabalho manual e do trabalho
feito com as pontas das mãos (mevi shovima awe e mevi revõsho shovia awe) marubo,
valorizando o conhecimento tradicional para novas gerações. Filhos e netos estão no processo
de aprendizagem do mundo ocidental e acabam não priorizando ou deixando os conteúdos e
os modos de ensinamento que levam a incorporar a cultura de seus antepassados.
Para os mais velhos, deixar de valorizar os detalhes das tradições, ou seja, deixar de
respeitar os interditos associados à cultura é deixar de seguir o “verdadeiro” jeito de existir. É
frequente ouvir nas reuniões e conversas marubo a seguinte frase dirigida aos jovens: nõ anõ
eseya tavama, nokẽ ese keyosho nõ shoko rivi, “se deixarmos de praticar aquilo que é nosso,
vivemos sem passado”. Na maioria das vezes, ouvimos a frase em português: “estamos
perdendo a cultura”.
Diante de todo esse questionamento, as mulheres me propuseram trazer a descrição e
as explicações dos seus costumes, tais como relatadas pelos mais velhos e pelas protagonistas,
escritas por mim, pois, por eu se yora shavo (mulher marubo), parente e falante da língua,
teria facilidade para compreender o que elas (mulheres marubo) falam. Os nawa-rasῖ não
podem ter a mesma perspectiva com relação a relatos e narrativas contados pelas mulheres
marubo: anõ pakῖ yoã tῖpa,„não contariam de modo adequado‟ (como uma roupa que veste
bem ou como um homem que combina com sua esposa).
26
Os nawa-rasῖ não têm a mesma vivência; nawã meki akῖ noke nõ yoã natõ akatῖpa,
„os nawa não fariam a mesma reflexão correta como nós fazemos‟. Isso fará uma grande
diferença para filhos e netos, hoje estudantes na escola, no momento em que poderão
compreender nokẽ na ese, „o contexto que faz parte da gente‟ (cultura?), no futuro, ao terem
acesso aos resultados desta pesquisa.
Em termos gerais, meus interlocutores apresentam seus relatos enfatizando que eles
são ditos a partir do seu verdadeiro ponto de vista, para que a sociedade não indígena entenda
os processos de aprendizagem e o modo de saber tradicionais. Segundo eles, falar da produção
manual e da cultura em geral do seu povo não é simplesmente „história‟, mas tudo aquilo que
engloba os conhecimentos que dão sentido a sua existência, o que tem a ver com o contexto
histórico dos seus antepassados, a importância deste contexto para poder identificar a
memória e a herança dos clãs nos processos do trabalho manual. Dessa forma, é possível
conduzir “a conhecimentos acerca de contextos e, portanto, as produções indígenas devem ter
uma apreciação que não se retrinja às formas concretas, mas que englobe igualmente outras
expressões culturais que compartilham de um mesmo modelo de experiência coletiva”, nas
palavras de Van Velthem (2003:44).
Para meus protagonistas, isso remete aos padrões de trabalho manual dos clãs, o
modo como vêm sendo desenvolvidos ao longo da trajetória de cada clã. Portanto, eles acham
necessário exigir da pesquisadora um olhar atento dirigido aos trabalhos manuais de cada
artesã e sua relação com cada clã, já que é assim que é avaliado o produto, com referência a
um „protótipo‟ do fazer bem feito ou mal feito.
Dessa forma, a exigência imposta a uma pesquisadora marubo faz com que sejam
explicitados os modos de ensinamento para filhos e filhas: a pesquisadora é necessariamente
aprendiz. Se eu estivesse presente na aldeia durante esse percurso de aprendizagem, teria
recebido esses conhecimentos, através das minhas avós e de minha mãe, praticando junto com
elas todos os trabalhos manuais, e não seria uma pesquisadora recebendo os ensinamentos
tradicionais através do nawa wicha, „riscos do branco‟5.
Tio Alfredo contava que ao mesmo tempo em que se aprendem as coisas com as
pontas das mãos, apreendem-se com o chinã, o pensamento localizado no peito-coração.
Quando se ensina o chinã, ensina-se também a alma (vaka), preparando-a para o percurso no
5
Wicha significa traçar/traçado, riscar/riscado. É um termo usado, por exemplo, para se referir ao traçar/traçado dos
grafismos da pintura corporal.
27
caminho dos mortos (veivai). Perguntei a ele se isto funciona. Ele retrucou a minha pergunta:
“Como alguém faz para virar médico?” Expliquei que ele aprende através dos livros, depois
escrevem, essa escrita são avaliados pelos seus chefes (kakaya-rasĩ), para se tornar médico.
Ele disse: “Essas coisas que você segue não estão longe do que estamos falando,
principalmente você, que está tendo o conhecimento do nawa-rasĩ e através dos riscos
incorporados. Você usa o objeto de trabalho deles (laptop) para criar a nossa fala, faz isso
com seus dedos, fazendo seus dedos aprenderem você incorpora nosso conhecimento”.
De tudo isso deriva o meu modo de apresentar o trabalho manual das mulheres
marubo, numa conjugação de perspectivas tradicionais com a maneira pela qual as
protagonistas entendem a pesquisa realizada por antropólogos. Procurei ressaltar o dilema
vivenciado por elas no cotidiano das aldeias, particularmente, quanto às mudanças de práticas
e de concepções a respeito de um tema tão íntimo quanto difuso dentro do próprio povo
marubo. Daí surgiu o convite e a confiança para que fosse realizada uma etnografia por uma
aĩnvo marubo.
Nesse sentido, fica evidente o afeto que atravessa a prática e os ensinamentos
envolvidos no trabalho manual marubo, que faz parte do cotidiano das aĩvo-rasĩ shavo
yomemavo-rasĩ (mulheres mais idosas), descritos pelas histórias de vida, onde aparecem as
memórias dos seus antepassados, ao mesmo tempo em que buscam uma desconstrução de
certas visões diante da atual realidade, trazida pela sociedade nawa, implicando num
redimensionamento intelectual. As novas gerações constroem outras perspectivas da cultura
material, a partir da uma experiência de convívio com a sociedade não indígena e até mesmo
com as aĩvo-rasĩ kani-vena-rasĩ (mulheres mais jovens) de outras etnias.
A contribuição da minha dissertação vem de minha aceitação das propostas das
mulheres marubo, para serem autoras desta pesquisa. A razão foi dada por elas, uma vez que
não têm total liberdade para se expressarem em público, fazendo com que seu valor
(feminino) fique em segundo plano, o que se reflete nas etnografias feitas por pesquisadores
nawa. Qualquer exposição perante os txai-rasῖ (os filhos dos irmãos da mãe e os filhos das
irmãs do pai), segundo elas, é o risco dos txai-rasῖ ficarem de olho em qualquer ato falho que
elas possam cometer, gerando chacotas nas brincadeiras das festas (txai-võ anõ waka anea6,
„seu ato servirá para dar nomes aos igarapés‟).
6
txai-võ anõ waka anea é uma brincadeira festiva que acontece em alguns momentos dos rituais ligados às atividades
de caça. Iniciativa dos txai-rasĩ (filhos do irmão da mãe), é muitas vezes uma brincadeira agressiva (com intenção de
desmoralizar), quando se tem ressentimento decorrente do sentimento de posse em relação à pano, a filha da irmã do
pai, por não poder casar com ela. A brincadeira em si faz parte da tradição entre os
28
Vale a pena dar um exemplo. Imaginemos que uma jovem mulher tenha a coragem
de falar publicamente diante de seus txai-rasῖ anunciando que ela irá para a cidade de Atalaia
estudar, argumentando retoricamente, em seu discurso, que ela será diferente dos homens, que
vão para a cidade estudar e acabam fazendo tudo menos estudar (casam, por exemplo). A
jovem irá para a cidade, mas, ao invés de estudar, acaba casando. A chacota a espera na
primeira festa da qual ela participará. Numa pantomima de caça, o txai falará: “eu fui caçar
queixada no igarapé „disse que ia estudar, mas casou‟”. As mulheres morrem de medo dessas
chacotas.
Para não expor os conhecimentos femininos, os homens, em geral, justificam:
Aῖvorasῖ rake veyasma, yoini anipa rake china kima veya yavoma, pasnã
chtavo venẽ kasma ashõki yoῖni yama mashoῖ, ato weta shoῖ, ato wai ashoῖ,
askakῖ kashma ashõki yoma nai ewe mesteã ivoro vene ato kashama
ashõrivi.
„As mulheres não enfrentam o perigo, são vistas como não capazes de agir
sem medo diante dos animais ferozes, são frágeis e dependentes dos homens
na caça, na pesca, na roça, tudo o que exige esforço maior é dos homens, que
precisam facilitar para elas‟.
7
Outros temas entram, hoje, nas discussões entre as mulheres, como, sobretudo, a mistura de ideias de outros povos,
que, segundo elas, traz problemas mentais e físicos, bem como o impacto cultural (o distanciamento dos mais jovens
da “cultura”).
31
2 OS MARUBO DO RIO CURUÇÁ
2.1 A REGIÃO
ser um rio em que não se podia tomar banho, o que causaria febres. Era chamado de ino
nawavõ waka, isto é, „rio do clã dos jaguares‟.
Encontramos mais informações na introdução da tese de Welper (2009:13):
Para enriquecer os dados oferecidos por Welper, relato a seguir uma narrativa mítico
histórica marubo, contada para mim pelos meus avôs (minha avó paterna Iraci e meu avô
materno, João Tuxaua) e pelos meus pais, de modo a compreender os processos de maea dos
meus antepassados e a origem dos diversos povos que aconteceu em noa tava. O significado
de maea é de um processo-deslocamento do ponto de surgimento noa tava, „rio abaixo‟, onde
o rio fica grande, Manaus, Rio de Janeiro, entre outras grandes cidades na beira do mar, para
as cabeceiras dos rios, noa revo.
O povo Marubo foi adquirindo sua sabedoria ao longo dessa caminhada, que
atravessou as moradas de diversas gentes-animais, onde descobriram e aprenderam as artes de
se alimentar, de plantar, de colher o que plantam, do xamanismo, entre outras sabedorias que
foram aprimoradas na viagem até a cabeceira dos rios. Contam que, assim, foram
responsáveis por rate-ni-tivo (acordar, assustado-conhecer-fazer existir) outros povos;
conforme suas descobertas, fizeram existir outras espécies de seres.
As narrativas sobre maea falam de deslocamentos no espaço, que continuaram, como
os que aconteceram na década de 1940. Ao longo de toda a trajetória dos Marubo, sempre
houve a divisão de um rio para outros rios. Os mais velhos dizem que, antes da década de
1940, os Marubo habitavam próximos uns aos outros, que cada maloca ou oca era
representada por um cacique (kakaya) importante. O princípio do desmembramento do povo
Marubo ocorreu na época dos seringueiros e quando houve o rapto de quatro mulheres pelo
povo Mayoruna. Os Marubo, numa vingança xamânica, amaldiçoaram o rio Curuçá, além de
massacrar os Mayoruna. Os pajés haviam falado que essa maldição provavelmente podia
33
afetar aquele que frequentasse o rio, de modo que, para evitar a maldição, os Marubo
passaram a frequentar menos as suas margens e mais os seus igarapés. Além disso, houve
desentendimentos e conflitos internos por causa de mulheres, o que levou ao deslocamento
definitivo de alguns Marubo para o rio Ituí. Missionários evangélicos (Novas Tribos)
acompanharam a mudança para o Ituí e lograram converter parte destes Marubo.
Os velhos do Curuça comentam intensamente que os jovens de Ituí daquela época
foram e ficaram afastados de suas origens, e são considerados pessoas sem sabedoria na alma
e mais ainda sem sabedoria nas mãos. Até hoje, os Marubo do Ítui são vistos como tendo
incorporado ou misturado pensamentos dos missionários com conhecimentos marubo. 8 Não
são estas apenas acusações ou críticas dos do Curuça direcionadas aos do Ituí; observei
atitudes de vergonha ou silenciamento dos segundos na presença dos primeiros quando se
trata da transmissão de conhecimentos tradicionais.
8
Um exemplo de revisão cultural missionária: para os Marubo é proibido comer carne e em seguida mamão (o mamão
amolece a carne e causa tumores ou inchaços). Uma mulher marubo evangelizada, digamos, diz para seus filhos que
pode comer mamão depois da carne se beber água pensando em Yose (Deus ou Jesus). Já exixtem traduções de partes
do Velho e do Novo Testamento para o Marubo, em diferentes suportes.
34
quando os Marubo moravam nas cabeceiras dos rios, com os poucos contatos que tinham com
os nawa-rasῖ suas vidas foram se modificando em pequenas coisas, os homens começaram a
fazer roças grandes com artefatos dos nawa-rasῖ, adquirindo facas, facões, enxadas,
machados, e as mulheres ficaram sem tempo para fazer panelas de barros e saias de algodão
por quererem acompanhar os maridos nas cidades dos nawa-rasῖ, quando começaram a dar
importância às panelas de alumínio, canecos, pratos, agulhas, tecidos industrializados, rede de
tecido, até o omomento em que começaram a gostar de consumir sal.9
Tamã Sheta fez um relato da sua vida, no dia 6 de maio de 2014:
Quando casei com teu pai e conheci a família dele, que fazia parte dos clãs rane
nawavo e ni-nawavo, considerados em constante contato com os nawa-rasῖ, eu tive
a oportunidade de ver de perto outro aspecto da vida marubo: as suas mulheres
acordavam mais tarde, tomavam banho em plena luz do dia, se preocupavam
menos com as refeições do dia, produziam confecções sem se preocupar com as
horas do dia. Tudo isso era o contrario da minha vida na maloca dos meus pais,
onde cresci com minha mãe me acordando cedo, quando aparecia a estrela d‟alva
ela já me chamava para sentar no chão e esfriar o traseiro, acabar de acordar e
pentear os cabelos. Em poucos minutos, meu pai começava a chamar meus irmãos
e as noras com os nomes mais carinhosos que ele achava, e ela mesma começava a
preparar os alientos. Depois saiamos para tomar banho, quando começava a clarear
o dia; meu pai, os filhos e outros meninos saiam para tomar banho juntos. Assim
que chegavam do banho, faziam a primeira refeição do dia e, enquanto comiam,
meu pai perguntava sobre a terefa de cada um dos homens que viviam na mesma
maloca. Conforme a resposta, meu pai os orientava. Minha mãe fazia o mesmo
com as mulheres, mas ela não era muito de dar ordens, gostava mais de dar
exemplos.
Assim como você, sua avó era filha de rane-nawavo e casou-se, ainda criança, com
meu pai (João Tuxaua), considerado um kakaya muito importante entre os Marubo.
A primeira mulher do meu pai foi a irmã do pai de minha mãe. Portanto, a irmã do
pai da minha mãe ensinou minha mãe sobre as tarefas que são responsabilidades
domesticas e sobre o comportamento adequado para uma mulher de chefe. Por isso
que te digo, as famílisa marubo não são todas iguais; é claro que não tem como
você perceber logo ao chegar numa aldeia, já que quem não tem conhecimento não
entende como somos realmente.
Essa fala da minha mãe aconteceu quando eu mostrei a ela a tese de Welper (2009),
que trata de João Tuxaua. Naquele momento, ela pediu para que eu incluísse nesta minha
dissertação um pouco do dia a dia vivido por ela, complementando as informações sobre a
chegada dos Marubo à margem do rio Curuçá.
9
Em “Chaquira, el inka y los blancos: las cuentas de vidrio en los mitos y en el ritual kaxinawa y ameríndio”, Lagrou
(2003) mostra o sentido das mudanças nos processos de produção como consequência do contato com o mundo não
indígena, o que me lembra o argumento oferecido por Tamã-Sheta.
35
Segundo Alfredinho (o filho mais velho de Alfredo com a sua terceira esposa), a
atual aldeia Maronal, em que ele reside, foi construída pelo pai em 1982, com a chegada dos
36
Conversando com os mais velhos, eu os escuto falar que nosso povo não é mais o
mesmo: está ficando doente e deprimido (chinã pãchῖ-kavo), era saudável (nami tono-kavo),
as mulheres e os homens eram chinã keska-pavo, mas hoje os filhos estão ficando raquíticos
(chinã keska-mavo), tudo mudou, a educação, a forma de cuidar do corpo, a preocupação que
havia com o ambiente em que vivíamos não é mais a mesma. Não seremos os mesmos; uma
das consequências por permanecer mais do que o tempo necessário em um só lugar é que uma
aldeia habitada por mais tempo atrai energias negativas, as cultivações de plantas ficam sem
vida por causa da terra que está ficando sem nutrientes.
Voltemos aos Marubo do rio Curuçá, entre os quais se move esta dissertação.
Apresento, abaixo, o mapa do rio Curuçá, desenhado por mim com a ajuda da minha tia (meia
37
irmã da minha mãe, uma das protagonistas desta pesquisa) Ino Tamã Shavo (Ilda) e da minha
irmã mais velha Isa Pei Maia (Natividade), enquanto elas contavam para mim sobre a via de
acesso ao rio Curuçá a partir da cidade de Atalaia do Norte, até as aldeias deste rio, sobre os
principais igarapés (tributários) do rio Curuçá, os igarapés denominados na língua, a
distribuição das aldeias nas margens, o número de malocas em cada aldeia, a quantidade de
pessoas que moram em cada maloca e os clãs aos quais as pessoas pertencem. Trata-se de
informações que retomarei na parte que se segue (Os “Marubo”).
Isapei-Maia (comunicação pessoal, 23 de agosto 2016):
Atalaia nawã shava nõ anõ pokeka ivo, nokẽ shenirasῖ ipawatõ iki nokẽ
shavapas noke shoko shokosma, atiãro nawa askakῖ oῖyarivi kai apawavo,
ramaro noke ichnavis voi nawa oῖnõ inã amiska, Sui revõka kãtxiya, rawe
nokẽ shenirasῖ ipawãtõ iki enema, Cruzeiro kiri taẽ võvõ matsawã, txeshẽ
avo askasivi, Atalaia kiri vei, Cruzeiro kiri voi amiska, vevõ motore yamasho
wetsa winakarã matsawã ipawa. Ramaro, noke motore ãtsaka aya, rama
yorashavo rasῖ kopῖmati yawã kavo, askasho pokei enesmavo, vevoro nõ anõ
kẽã westichtase viarivi ipawa. Atalaia namã iwãi kaa oshe westsase ipawa,
winaa tiãro, ramaro yora osha kaya ivoro, revoka ã nokoika oito shavakaiã,
vestika ikiya quatro shavapa quatro yame aka matsawã.
Atalaia é uma cidade nawa que visitamos com frequência, hoje não
somos iguais aos de antigamente, de ficar mais tempo nas nossas
aldeias, não víamos os nawas com tanta frequência como fazemos
hoje, agora até nós estamos sempre por aqui na cidade deles. São os
que moram na cabeceira do rio Curuçá que continam fazendo como
antigamente, deslocando-se para Cruzeiro a pé. Os que moram no rio
Ítui visitam tanto a cidade de Cruzeiro como a cidade de Atalaia do
Norte. Quando não tinham motor de rabeta, iam para a cidade
remando; hoje todos possuem motor, as mulheres tem dinheiro para
sacar na cidade, então eles não descem mais para comprar o que
necessitam como antes. Quando vinham para Atalaia era uma viagem
de um mês, hoje com motor, aquele que faz parada para dormir, leva
oito dias de dormida até a última aldeia, enquanto aquele que viaja dia
a noite faz quatro dias e quatro noites.
Atalaia namã itaῖ nõ vẽvẽã neska, Suῖ oma nisho katxiyavo yora Kanamari,
Sui nakika kãtxiyavo Mayoruna, Kulina e Marubo. Roe enẽ wakã karo
nawarasῖ nõ oῖ võvõa rasῖ katxia, nõ oῖ võvõtika shavapa anero Atalaia,
anosho nõ oῖ võvõka shava wetsaro Benjamin Constant, Tabatinga kopi mati
tsekai nõ anõ shokoa ẽ yoãvre, vevõ tiã atovõ rãtxa (lancha recadão) awe
vivani tachi nana matsawã ipawa, arose (arroz), avo, avo poto (sabão, sabão
em pó), sheo (agulha), resisi (linha de costura), vatxi (tecido saia), piarasῖ
vatakavo (comidas doces), pia õsi-õsipa (alimentatos de diversos tipos),
38
2.3 OS “MARUBO”
Antes de tudo, quero ressaltar que a palavra „Marubo‟ nada significa para o povo
chamado pelos não índios de „marubo‟, a não ser o fato dele ser, exatamente, um exônimo que
ficou congelado nos registros e documentos oficiais. Na realidade, os Marubo não existem
para os Marubo, já que eles se identificam internamente pelos nomes dos clãs ou subgrupos
ou famílias (a ivo nawa-rasῖ). Certa vez, eu perguntei para minha mãe porque aceitamos ser
chamados de „marubo‟. Ela me disse: “as pessoas que falam português aceitam ser chamadas
de „marubo‟. Acho que eles têm dificuldade de explicar como a gente se denomina, porque os
não indígenas (nawa-rasῖ10) não conseguiriam nos chamar pelos nomes dos clãs”.
Como dizia meu avô João Tuxaua: “quem denominou nosso povo de „Marubo‟ são os nawa-
rasῖ Txami Koro, eles falavam língua kastilhiano” (na pronuncia do meu avô, se referindo ao
castelhano). Quando chegaram à nossa terra explorando pae (látex), ao deparar se com a gente,
nos deram esse nome, talvez a gente parecia Marubo. Eu perguntei para
10
A palavra nawa denomina um grupo diferente do grupo ao qual o falante pertence: um colombiano, um brasileiro,
todos os que “surgiram depois do povo yora”, como dizia meu avô. Por isso, os Marubo a utilizam com dois
significados: (1) para designar um clã em relação ao outro; e (2) para designar os não indígenas em relação aos
indígenas. Estes últimos são chamados yora. O morfema {-rasĩ}, na palavra nawarasĩ, é uma das formas para indicar o
plural na língua marubo.
40
Keyashini (Carlos Vargas)11, que sabia falar kastilhiano, e ele me respondeu que esses nawa
disseram que a gente era yochin12”.
Ao que consta na pesquida de Melatti (1977:92);
No mito de origem dos Marubo, narrado por kẽchῖtso-rasῖ13, os surgimentos dos clãs
têm características que identificam as personalidades ruins, boas, festeiras, afetivas,
fofoqueiras, entre outras. Por exemplo: os shane-nawa, para outros clãs, por sua origem ser o
pássaro azulão, costumam ter filhos deficientes; os homens não temem guerrear e com isso
tem costume de bater nas mulheres com a justificativa de que assim serão respeitados e
temidos pelas suas mulheres. Os shawã-nawa são homens de boa fama, mas as mulheres são
causadoras de intrigas que podem resultar em guerra. Os pais repassam essas histórias a seus
filhos, para que saibam como serão seus futuros esposos ou esposas, de modo a se preparar
para o tipo de personalidade que os filhos herdarão.
Ao narrar histórias, na sociedade Marubo, o narrador, seja mulher ou homem, no
começo da narrativa, sempre deixa claro que não há semelhanças de conhecimentos já que a
sociedade é dividida em clãs ou subgrupos e cada subgrupo é dividido em famílias. O povo
Marubo entende que, quando ocorre união de dois clãs, a responsabilidade pela educação dos
filhos é essencial para não denegrir a reputação da família. Por exemplo: se um homem matar
anta e não convidar ninguém para compartilhar a sua caça, as pessoas com quem ele convive
irão questionar seu pertencimento clânico por ter aquela atitude egoísta. A sociedade em que
está espalha a sua má fama de mesquinho, seu nome será citado como exemplo negativo para
alertar as crianças no futuro. Assim, o indivíduo nunca deverá esquecer de que clã ele foi
gerado para preservar os nomes dos clãs.
11
Keyashini significa „velho alto‟, era marubo, primo de João Tuxaua, e recebeu o nome em português do caucheiro
Carlos Vargas, que o tinha adotado. Seu pai foi assassinado por parentes, que entregaram a esposa, mãe de Keyashini,
ao próprio Carlos Vargas. Keyashini-Carlos Vargas aprendeu o castelhano da região de fronteira entre Brasil e Peru.
Estamos, aproximadamente, nos anos 50 do século passado.
12
yochĩ é um termo de difícil tradução. É o duplo das coisas; televisão passa yochĩ, o que vejo numa foto é yochĩ,
minha sombra é yochĩ.
13
A palavra kẽchi-tso designa o „curandeiro‟, um dos dois tipos de xamã, aquele que faz o ritual de pajelança sobre o
doente, não entra em transe. O morfema {-tso} indica a velhice da pessoa.
41
Ser „marubo‟, então, é uma ficção interna e uma necessidade externa. A não-ficção
interna são os clãs.
casados com nawa-shavo e um casado com uma marubo do clã rovo-shavo, clã- macaco-de
cheiro. Todos os filhos de Saba trabalham em instituições indigenistas.
A aldeia São Sebastião, composta por seis malocas, é considerada a segunda aldeia
principal dos Marubo do rio Curuçá e está mudando pela segunda vez. A maloca de Iskãpa
(João Batalha), do clã rovo-nawa, abriga Iskãpa e sua esposa Itxa-Maia, do clã ino-shavo,
seus oito filhos e seu sobrinho Panã/Wasi-nawa (Fernando) casado com sua filha mais velha,
com a qual tem um filho. A segunda maloca tem como kakaya Nãkẽ-pa (Américo), do clã
colar (rane-nawa). Nela mora a esposa Ravẽ-ewa (Ilda), do clã rovo-shavo (clã macaco-de
cheiro, e eles tem seis filhos que são do clã satã-nawavo (clã-lontra). O velho mais filho de
Nãkẽ-pa é Vina/Kayã-sheni (Alciney), com duas esposas, Vena e Vô, do clã shane-isko
shavovo (japim azulão); o segundo filho só tem uma esposa, Rovo-shavo, do clã shane-isko
shavo (clã japim azulão); o terceiro filho tem duas esposas, Chori do clã koro-shavo (clã cinza)
a e a outra é nawa-shavo, peruana da comunidade de Limoeira. Das filhas de Nãkẽ-pa, uma é
mãe solteira de cinco filhos, outra têm dois filhos e vive junto com o pai destes, mas sempre
nega ter marido e a ultima filha tem apenas 12 anos.
A terceira maloca é do chefe Maiã-papa (Said), do clã rane-nawa (clã-colar), viúvo
de duas mulheres do clã rovo-shavovo (clã-cinza), com quem teve sete filhos; casou se
novemente com duas irmãs também do clã rovo-shavovo e com elas vive nesta maloca. A
quarta maloca é liderada por Penῖ-papa-pai do Penῖ (João Macaquinho), do clã tama
iskovo/tamawa (clã-árvore-japim), casado com Penῖ-ewa, mãe da Penῖ (Rosa), do clã rane
shavo (clã-colar), com cinco filhos, que são do clã ni-nawavo (clã-mato); nesta maloca vivem
filhos e netos de Penῖ-papa. A quinta maloca da aldeia São Sebastião é liderada por Teka, do
clã sata-nawa (clã-lontra), cuja mãe é do clã rovo-shavo (clã-cinza), viúva de shane-nawa
(clã-azulão) e que se casou novamente com Américo, tornando-se sua segunda esposa; por
não ter filhos com Américo, ela vive na maloca dos seus filhos. Na sexta maloca vivem os
dois irmãos de Said, Peῖ-pa (Lauro) casado com Peῖ-ewa, do clã rovo-shavo (macaco-de
cheiro), e Romeya, casado com uma kanamari com quem teve sete filhos e que abandonou
para casar com Vonchi-Tama-shavo, com quem teve três filhas. Ainda nessa maloca vivem os
filhos do finado Vanẽ-pa (José Rufino, irmão do Clóvis Rufino, ex-coordenador do Conselho
Indígena do Vale do Javari-CIVAJA, hoje chamada de UNIVAJA). Vanẽ-pa era do clã ni
nawavo (clã-mato), tinha três esposas do clã sata-shavo (clã-lontra), sendo as duas primeiras
filhas de Said e a terceira filha da Tekã-ewa. Ainda na sexta maloca, mora a irmã de Vanẽ-pa,
Kenẽ-ewa (Marelene Rufino, do clã ni-shavo, clã-mato), casada com o filho de Said
43
(Mene/Waka-nawa, Manoel Reis), com quem ela teve três filhos; seu pai é nawa (Antonio
Rufino), casado com sua mãe (Tamã-ewa (Rita), que faleceu em 2015) e criou Tama e Vimi.
Com Tamã-ewa, Antonio Rufino teve quatro filhas (Peko, Txoko, Kama e Wã-Maia). Outro
filho de Said, Koa/Yochῖ-pa (Raimundo, do clã sata-nawa) é casado com uma Tikuna e
Rava/kevã-pa (Ivan Manoel Batalha) é casado com Vãti, filha de Lauro e do clã vari-shavo
(clã-sol). Algumas famílias dessa maloca vivem na cidade de Atalaia do Norte. A aldeia
Morada Nova é liderada pelo kakaya Vamã-pa (Alberto), do clã sata-nawa, casado com duas
mulheres. Com a primeira esposa, Sinã-ewa do clã shono-shavo, teve sete filhos; com a
segunda esposa, Vô do clã ni-shavo, teve seis filhos. Na mesma aldeia mora o casal Yoati-
Võchῖ-pa e Pasha-Aῖvo/Mashe.
Ronῖ-pa (Manelão), do clã rovo-nawa, filho de nawa fugitivo da polícia por ter
matado um sargento, é o kakaya da aldeia Matxi-Keyawai. Sua mãe se chamava Rave e era do
clã sata-shavo (clã-lontra). Manelão casou se com Peko do clã sata-shavo (clã-lontra); este
casamento é considerado pelos Marubo como “casamento que não presta”, por Manelão ter
casado com uma mulher da mesma linha do clã da mãe, o que fez com que seus filhos fossem
considerados irmãos dele mesmo, de Manelão, já que sua esposa seria a sua sobrinha. Ainda
nessa aldeia vivem mais três casais e seus filhos, com duas mulheres casadas com homens
mayoruna.
A aldeia Maronal é composta por sete malocas. A primeira maloca é do principal
kakaya Ivinῖ-papa (Alfredão), do clã tama-uavo (clã-flor-árvore). Aqui vivem os filhos mais
velhos de João Tuxaua (Ni-ua Wani/Itsã-papa), sendo o segundo deles o principal kakaya e
fundador da aldeia. Ivinῖ-papa teve três mulheres, todas do clã shane-shavo (clã-azulão), as
duas primeiras já falecidas, e vive somente com a terceira. Com as três esposas teve doze
filhos. A segunda maloca é a do seu filho mais velho, Chorῖ-pa do clã shane-iskovo (clã
azulão-japim), da esposa deste Panã-ne-ewa, e seus filhos. Na terceira maloca vive Tamã-pa
do clã sata-nawa (clã-lontra) e o genro de Memῖ-papa (Sacarias, o irmão mais velho de
Alfredão). O kakaya da quarta maloca é o patriarca da família Pekõ-pa, do clã tama-uavo
(flor-árvore); nela vivem shono-nawavo (clã-samauma), rovo-nawavo (clã macaco-de-cheiro,
sata-nawavo (clã-lontra). A quinta maloca é de Chinῖ-pa do clã rovo-nawa (clã macaco-de
cheiro) casado com Pani do clã shono-shavo (clã-samauma) e seus filhos ainda pequenos. Ao
lado, a sexta maloca é de Rave, do clã sata-shavo (clã-lontra), uma mãe solteira que resolveu
viver sozinha junto com seus filhos. A sétima maloca é dos dois irmãos mais novos de
Alfredão, o kakaya da aldeia. Tama-Saῖ-pa (Pedro) assumiu, em 2015, após a morte de seu
44
irmão Vanẽ-patxo (José), o papel de kakaya da maloca. Vanẽ-patxo era casado com duas
irmãs, Venẽ-ewa e Peῖ-ewa, do clã sata-shavovo (clã-lontra), e com elas teve onze filhos,
todos do clã rovo-nawavo (clã macaco-de-cheiro). Estes já são adultos casados, sendo que três
vivem na cidade de Atalaia do Norte com suas famílias: Manoel Chorῖ-pa é vereador, casado
com uma nawa-shavo; Kenã-pa (Paulo), coordenador da UNIVAJA, é casado com Vo/Tama
Saῖ-wa (Sônia) do clã vari-shavo (clã-sol); Vane/Vinã-wa (Amélia, pedagoga) trabalha na
Secretaria Municipal da Educação Indígena – SEMDI e é casada com o Panã/Ramῖ-pa
(Walcerley) do clã vari-nawa (clã-sol).
Na apresentação das aldeias do Sui Waka (rio Curuçá), descrevi o número de malocas
onde as pessoas residem; acho que o leitor teve dificuldade de entender a complexidade dos
clãs em que as pessoas se incluem. Chegou a hora de dar alguma explicação sobre os
subgrupos clânicos marubo, na perspectiva das minhas interlocutoras. Conversando com os
mais velhos, estes relataram sobre diversos processos de surgimento dos clãs principais e dos
que surgiram a partir de casamentos entre eles. Os pajés e os xamãs 14 marubo dizem que no
principio os clãs nãkosh wenia-rasῖ - útero brotar-PL - „brotaram do útero (de uma mulher de
um dos clãs principais)‟.
Os clãs nãko-sho wenia-rasῖ passaram a existir, com suas denominações, com o
propósito de definir regras rígidas de casamento, quem pode casar com quem. Por isso, os
filhos dos clãs principais são considerados wãsho wenia, o que significa o processo de
geração de filhos de casamentos realizados entre subgrupos clânicos. Na maioria das vezes,
nãkosh wenia é explicado como sendo vene-pavo (vene-pavo, „grande-passado‟, os clãs
maiores), para dizer que são os primeiros clãs, ou seja, os principais. Por outro lado, wãsh
wenia (flor-brotar, „brotar das flores‟), é explicado como poto-pavo (pequeno-passado, os clãs
menores), continuidade de gerações produtos de casamentos ocorridos entre os clãs. Hoje,
com a aproximação de outras sociedades não indígenas, há casamentos entre mulheres
marubo e homens não marubo, e vice-versa. Os mais velhos, pajés e xamãs, me contaram o
que acontece com esses casamentos. Quando as mulheres geram filhos de homens não
Marubo, surgem clãs como vari wa ichnatõsh wenia, „vari de flores estragadas‟ (vari „sol‟ é
14
Pajé e xamã são duas categorias distintas entre os Marubo. Pajé, segundo a explicação dos meus interlocutores, é
aquele que viaja no mundo dos seres não humanos cujas forças ele traz e une. Xamã interpreta as falas sabias dos seres
não humanos e destes recebe as suas forças.
45
∙ os pretendentes das mulheres pertencentes ao clã sata-nawavo15 provêm dos clãs ni nawa,
isko-nawa, txonavo, ino-nawa/kama-nawa e koro-nawa, mas seus filhos serão sempre
do clã rovo-nawa:
MÃE PAI FILHOS
isko-nawa
Txonavo
ino-nawa/kama-nawa
koro-nawa
∙ os pretendentes das mulheres do clã ni-nawavo provêm dos clãs satã-nawa, shawã nawa
e vari-nawa, mas seus filhos serão do clã rane-nawa:
15
O termo Sata-shavo é singular e é usado para se referir a uma mulher do clã Sata-nawa. O plural ou coletivo é
Satashavovo. Satanawa é singular e é usado para se referir a um homem, sendo que o coletivo é Sata-nawavo. Todas as
denominações de clãs que terminam com {-shavo} referem-se às mulheres do clã. Sata-nawavorasĩ se refere a uma
aldeia, um „povo‟, do clã Sata-nawa.
46
MÃE PAI FILHOS
shawã-nawa
vari-nawa
∙ os pretendentes das mulheres do clã isko-nawavo provêm dos clãs satã-nawa, shawa
nawa, vari-nawa e tsona-nawa/txonavo, mas seus filhos serão do clã shane-nawa:
MÃE PAI FILHOS
sata-nawa shane-nawa
isko-shavo
shawa-nawa
vari-nawa
tsona-nawa
∙ os pretendentes das mulheres do clã kana-nawavo provêm dos clãs satã-nawa, shawa
nawa e vari-nawa, mas seus filhos serão do clã ino-nashavo/kama-shavo:
MÃE PAI FILHOS
shawa-nawa
vari-nawa
∙ os pretendentes das mulheres do clã vari-nawa provêm dos clãs isko-nawa, ni-nawa e
kama-nawa, mas seus filhos serão do clã do tama-oavo:
MÃE PAI FILHOS
vari-shavo isko-nawa tama-oavo
ni-nawa
kana-nawa
∙ os pretendentes das mulheres do clã Shawã-nawa provêm dos clãs ni-nawa, isko nawa,
txonavo, ino-nawa/kama-nawa e koro-nawa, mas seus filhos serão do clã txashko-
nawavo:
MÃE PAI FILHOS
ni-nawa
isko-nawa
47
koro-nawa
shono-nawa
kana-nawa
Wanivo
∙ os pretendentes das mulheres do clã shane-shavo provêm dos clãs satã-nawa, shono
nawa, tama-nawa e txashko-nawavo/anakashkavo, mas seus filhos serão do clã isko
nawavo:
MÃE PAI FILHOS
tama-nawa
anakashkavo/txasko-nawavo
∙ os pretendentes das mulheres do clã tama-shavo provêm dos clãs shane-nawa, rane
nawa e ino-nawa/kama-nawa, mas seus filhos serão do clã do vari-nawa:
MÃE PAI FILHOS
rane-nawa
ino-nawa/kama-nawa
∙ os pretendentes das mulheres do clã txona-shavo provêm dos clãs shawa-nawa, isko
nawa, ni-nawa e koro-nawa, mas seus filhos serão do clã shono-nawa:
MÃE PAI FILHOS
48
isko-nawa
ni-nawa
koro-nawa
∙ os pretendentes das mulheres do clã wani-shavo provêm dos clãs rovo-nawa, rane nawa
e shane-nawa, mas seus filhos serão clã do koro-nawa:
MÃE PAI FILHOS
rane-nawa
shane-nawa
anakashka-nawa
shane-nawa
∙ os pretendentes das mulheres do clã kama-shavo/ino-shavo provêm dos clãs tama nawa,
rovo-nawa e shawa-nawa, mas seus filhos serão clã do kana-nawa:
MÃE PAI FILHOS
rovo-nawa
shawa-nawa
∙ os pretendentes das mulheres do clã rane-shavo provêm dos clãs rovo-nawa, Shawa
nawa e tama-oavo, mas seus filhos serão clã do ni-nawa:
MÃE PAI FILHOS
shawa-nawa
tama-oavo
49
∙ os pretendentes das mulheres do clã koro-shavo provêm dos clãs satã-nawa, ni-nawa e
isko-nawa, mas seus filhos serão clã do wanivo:
MÃE PAI FILHOS
ni-nawa
isko-nawa
Formulei a figura abaixo para dar um exemplo a partir das minhas relações
clânicas16: Como vari-shavo (rane-vari-shavo), baseado no casamento dos meus pais, simulei
o esquema de casamento padrão, como se tivesse me casado com meu primo cruzado (o que
não é o meu caso, de fato).
Minha mãe é tama-sha-vo Figura 1. Esquema do parentesco clânico da autora
As mulheres deste clã são tama
shavo-vo e são minhas ewa-rasῖ
(mãe/tia materna-irmã da mãe).
Os homens deste clã são tama
oavo e eles são meus koka-vo 16
Os sufixos -vo e -rasῖ são pluralizadores.
(tio materno-irmão de minha
Meu pai é rane-nawa
mãe)
Os homens deste clã são rane nawa-vo e são meus epa-vo
(tio paterno-irmão do pai).
As mulheres deste clã são
rane-shavo-vo e elas são
minhas natxi-rasῖ (tia paterna irmã de meu pai)
Eu sou vari-sha-vo
Os homens deste clão são vari
nawa-vo e são otxi-vo (meus
irmãos). As mulheres deste clã
são vari-shavo-vo e elas são
minhas txitxo-rasῖ (minhas Meu esposo (ou minha esposa) é ni-nawa.
irmãs) As mulheres deste clã são ni shavo-vo e são minhas pano-
rasῖ (primas cruzadas). Os homens deste clã são ni-nawa-
vo e eles são meus txai-rasῖ (primos cruzados)
50
Figura 2: Exemplo de esquema de parentesco clânico apresentado por Xavier Ruedas (2013: 227)
17
Segundo a professora Vinawã (Amélia Barbosa da Silva), o antropólogo Ruedas foi recebido na aldeia Maronal do
alto rio Curuçá na maloca dos dois filhos mais novo de João Tuxaua (Welper, 2009), quando foi fazer sua pesquisa de
campo. Ruedas chamava a atenção pela sua dedicação ao trabalho e pela facilidade em aprender a língua marubo.
Vanẽ-papa (José Barbosa) e sua cunhada Satã-Nake (Luzia Domingos) recordaram as palavras de João Tuxaua, que
dizia que em algum momento da vida deles na aldeia Maronal iria aparecer um nawa viajante de um lugar muito
distante guiado pelo rovo chai (pássaro japim do rovo-nawa, o japim associado ao clã-macaco-de-cheiro). Imaginando
que Ruedas seria o viajante, deram a ele o nome Pekõpa do clã rovo nawa (clã-macaco-de-cheiro). Ruedas chama os
clãs de „povos‟.
51
povo), que enfatiza as mudanças ocorridas nas últimas cinco décadas (ou mais): “Os Marubo
de hoje não fazem mais casamento desse tipo; por causa da mistura de casamentos clânicos,
não há mais verdadeiros panõ-anevo. Isso só acontecia no inicio da geração dos Marubo, mas
hoje não é mais assim, a partir da geração da família de João Tuxaua 18, que casou com sete
mulheres pertencentes a clãs diferentes. Hoje, os Marubo explicam o casamento panõ ane
aĩka como sendo aquele entre primos cruzados de modo geral (de qualquer clã)”.
Um clã será chamado de txaitso por uma mulher quando seus membros são seus
primos cruzados, filhos dos tios maternos (irmãos da mãe). Os demais clãs são chamados de
txais; a eles pertencem os filhos das irmãs do pai e outros que não são considerados primos
cruzados. Se houver casamento com outra etnia ou com nawa (não indígena), a pessoa “de
fora” será considerada txai, no reconhecimento do parentesco por parte dos irmãos/irmãs do
esposo/a marubo, assim como os primos cruzados do esposo/a “de fora” são considerados ave
iki-yavõ pelos primos cruzados do esposo/a marubo. Ave iki-yavõ quer dizer „que compartilha
o mesmo homem que ela ou a mesma mulher que ele‟.
19
Cacicus cela cela
20
Ara macao
52
21
Panõ anevo é traduzido como „casamento correto ou reto‟.
53
sempre sonhei para mim, me ajuda muito nos meus trabalhos de artesanato.
Foto 5: Sata Mashe
55
Foto 7: Koron
Meto
56
Isko Tama é homem. É preciso explicar a razão pela qual ele está aqui, junto com
as mulheres. Se as mulheres são responsáveis pela parte „material‟ da cultura (fazer os
artesanatos a partir dos conhecimentos que cada uma herdou e acumulou), são os
homens que podem falar desses conhecimentos. A voz é dos homens; o saber do fazer é
das mulheres. Por isso, as mulheres dizem que elas criam os homens, dão conhecimento
a eles. E dizem que são elas que controlam o jeito de ser dos homens, fazendo com que
eles gostem da família da qual suas esposas gostam. E são elas que incentivam sem
parar, em todas as situações, para que os homens ensinem aos seus filhos. Afinal, faz
sentido a expressão delas: os homens não crescem. As mulheres comuns vivem o dilema
entre o forte desejo de dar, elas mesmas, voz aos seus conhecimentos e o temor de
desafiar o poder dos homens que monopolizam essa voz. O medo de desafiar é o medo
de se tornar objeto de comentários nas festas em que mensagens de crítica são lançadas
publicamente, cantando ou falando. São as brincadeiras chamadas de waka anea, onde
essas mensagens não mencionam diretamente o alvo da crítica, mas quase todos
entendem quem é. Homens e mulheres têm medo de waka anea.
22
Sata Venepavo (considerado como clã surgido pela verdadeira rovonawa casamento sem mistura, aquele clã surgido
junto para casar nanko-sh = metáfora do utero vênia = surgir) e Sata Potopavo (considerado como clã surgido pela
mistura de casamentos de vários clãs e outros povos wã-sh = metáfora de pessoas de nova geração no sentido de flor
vênia = surgir) são subgrupos de clã; a narrativa da origem do clã contém algo que fez surgir o clã menor a partir do
clã principal. É uma explicação de como a população Marubo dar a origem de parentescos e a justificação dos
casmentos entre clãs.
57
23
As narrativas míticas muitas vezes são usadas para justificar a atribuição a uma
pessoa, homem ou mulher, de determinadas características. Vou dar um exemplo,
tomando uma narrativa reproduzida por Pedro Cesarino (2013: 129-161). Shetã
Veka era uma mulher do clã varishavo/varinawavo que teve amantes fora do grupo
Marubo, com isso não pretendia casar seus txai. Ela teve relações com outras
pessoas-gentes (Niro Kaso, Niro
58
3 OS ARTEFATOS
Washmẽ, Shanen Rono, Yora Noĩ). Ela gerou vários animais e a estrela cadente. Depois, ela casou com quem não
poderia casar, com seu „tio Ranen Tupane‟ descendente de ranenawa. Por ser considerada uma mulher desobediente,
ela não podia ter filhos-gente-de-verdade: a sogra comia os filhos para eles não dar continuidade a casamentos
inapropriados. Por isso uma mulher do clã varinawavo pode ser chamada de Shetã Veka com a implicação de que ela
tem vários amantes e casou com quem não deveria ter casado.
59
Rama kani venarasῖ vevõ ipawa keska ese rakeshoa yavo marivi, aska akaya
anõse nõ anõ anõ iki yama, aska timaki noke yorã eserivi iki marivi, aska
sivish atõ anõ ayama keskai awe sawesmavo, vevõ tiãro ravῖkaki kaya chero
nia, ramaro roaserivi nawashavõ tanati atõ ikiki, vevõ tiãro nõ seya-shoke
nẽkãi, atovõ rama oῖro roase.
Sempre ouço essas conversas entre os mais velhos, quando querem admoestar as
mulheres que ficam andando sem adornos, citando as explicações de xamãs (kenchitxo) e
pajés (rumeya).25 As mulheres que não enfeitam seus corpos são chamadas de „mulheres
minhoca‟ (noin-shavo), como as que, férteis, circulam em qualquer ambiente (escuros e
húmidos) e com qualquer homem, engravidam e concebem almas de minhocas que serão seres
gerados em forma humana. Pois, essas mulheres que andam raro-ati-yama „sem protetores‟,
sempre são vulneráveis a acontecimentos ruins; os adornos são importantes como proteção e
não são somente as mulheres que correm esse risco, os homens também. Os filhos gerados por
mulheres sem proteção dos rane-awe, „adornos‟, são criaturas que vêm ao mundo com outra
perspectiva de vida, comportamentos e atitudes, mesmo que para os pais sejam filhos
normais; são pessoas que têm dificuldades de compreender e de aprender os
ensinamentos dos seus pais acerca do mundo em que ingressam.
24
O termo kaya pode ser traduzido como „corpo‟. Ele se refere a uma parte específica do que os nawa entendem como
„corpo físico‟: o tronco, sem os braços e a cabeça. Ele é usado para se referir também ao tronco de uma árvore e à
parte central da maloca (sem a periferia que abriga as divisões ocupadas pelas famílias). Para dizer
„corpo nu‟, a expressão usada é: kaya tĩto-ka, „corpo sem nada‟.
25
Para pensar a importância dos enfeites para o povo Marubo, foi sugestiva a tese de Miller (2007), onde ela interroga
“as coisas” entre os Mamaindê (Nambiquara), as relações entre os enfeites corporais e a noção de pessoa, o que me
ajudou a entender minhas protagonistas quando dizem que os enfeites são produzidos para harmonizar o corpo e que
eles representam a pessoa-família. Os enfeites são „guias‟ protetores - raro-akaya - de quem os recebe e os usa, não
podendo ser passados adiante. Todo xamã tem seus raro-akaya.
60
Elas não agem como verdadeiras mulheres marubo (shavo kaya-pavo chinã
keskama), mas, sim, como mulheres sem sabedoria e sem habilidades nas pontas das mãos,
mulheres sem vida que não dão importância à sabedoria, não tem interesse em respeitar ou
praticar os conhecimentos tradicionais. Não são „verdadeiras‟ - shavo koῖ-rasῖ - já que não se
preocupam com o odor da pele e com a beleza, são mulheres sem cor (ainvo-koro-rasĩ),
cinzas, preparam os alimentos sem vitalidade e energia, comem para viver, são impacientes,
se irritam com facilidade e, ao querer imitar shavo koῖ, só conseguem fazer fofoca. É muito
comum ouvir estas falas no dia a dia, uma estratégia dos mais velhos diante da nova geração
marubo.
Não poucas vezes, os irmãos de minha mãe chamavam minha atenção – a de uma
antropóloga que chegou para pesquisar - para que observasse a vida das mulheres e dos
homens:
Oῖ ewa, noke venerasῖ marubo shavanã yoῖni aniti china, wai-aka, shava wenẽka
china, askavai noke vene meeti aka. Aῖvorasῖ meetiro ãtsaka keskaro, yora
vestsarasῖ oῖ ã awe onisa keska, atõ vake vesoi, atõ vene vesoi, askavai wai
matxikai, pitiki aka. Meeti ãtsakatõ imaiya waia sheni, shava venero keskama
oraka kakash mani vikai aka tõsho, meeiko kõisma aῖorasῖ, shovo vseoi atõ vari
vãkeskai.
„Olhe mãe, no nosso cotidiano, os homens têm rotinas para caçar, fazer roças,
manter limpo o terreno ao redor da casa, fazer seus artesanatos nas horas vagas. As
mulheres têm o dobro de preocupação com a responsabilidade com os seus
afazeres, o que fica parecendo que são as mais exploradas, nos cuidados dos filhos,
esposos, vão para roças trazer alimentação e preparam comida. Quando a aldeia é
nova, a rotina dos afazeres é mais fácil, mas quando a aldeia vai ficando mais
velha, as roças vão ficando mais distantes para as colheitas das mulheres que
acabam gastando mais tempo já que têm também as tarefas da casa.‟
Com a minha presença como pesquisadora na aldeia, junto com minha família, meus
tios sempre me alertavam para observar os processos de mudanças ao longo do tempo, a falta
de interesses dos jovens para com a „cultura‟. Devo dizer que, apesar de ter vivido pouco
tempo na aldeia, testemunhei muitas mudanças, tanto na forma de pensar, no cotidiano, na
forma de se enfeitar. Para os velhos Marubo, todavia, o trabalho manual ainda é habilidade e
maturidade; os artefatos feitos para enfeitar os corpos ainda representam o corpo feliz e sadio.
26
A leitura da SUMA Etnológica Brasileira, de Berta Ribeiro (Ribeiro, 1987:16) me trouxe uma citação interessante de
Deez (1967): “Artefato, tal como palavras, são produtos da atividade motora humana, produzida través da ação de
músculos guiados mentalmente sobre a matéria-prima envolvida”. Observei a semelhança com a ideia marubo de
fazer-pensamento. Lembrei também do “ensinar as mãos”, presente nas falas dos meus protagonistas, nos modos de
aprendizado do trabalho manual, já que as crianças aprendem a trabalhar de forma correta com a mão direita, são
corrigidos para não se acostumar a trabalhar com a mão esquerda.
27
Forma de tirar a sabedoria, o conhecimento foi tirado da mão.
62
(indumentárias). Algumas delas ainda buscam tucum ao redor da cidade para fazer bolsas,
redes, pulseiras e tiaras. Às vezes, simplesmente catam sacos de fibras para poder substituir o
tucum. Para essas mulheres, a cidade não faz bem para a recuperação dos doentes e elas se
sentem mais debilitadas. Quando estamos conversando, minhas protagonistas me dizem que
quem fica parada é aquela pessoa que não tem saber nas mãos, muito menos tem saber na
alma. Uma pessoa assim é apontada com vergonha e como mau exemplo para seus filhos.
3.2 TRADIÇÃO
No dia 08 de julho de 2010, conversando com Koro Metu (Nair Cruz), da aldeia Boa
Vista, no médio rio Ituí e pertencente ao clã Koronawavo, ouvi o que ela me contou:
Koro Metu (Nair Cruz), vevõ tiã noke ãivo anõ meipawa, shasho, nawa
oimakash, awen koro roeparo pani rerai, awen sapa anika ivon sheki renei,
wanin renei ati waka anusho inã, matximasõshoro nuvo txaroki, pani tseshe
txaroki aka, mevi napash tio ivoro ano nuvo tsosati, pani tseshe, tovoin
tseshe, chini tseshe aka. Sheo yamashro, nõ anõ otapawaro mashashe.
Mashashe, aĩvo katsekase onãti aka marivi, aivorisini non anon nuvo
otanoshon, tea revo pompo iki machin meki mera ipawavo. Tseshe anõ
otatiro, kapa sheta ipawa.
No dia 10 de março de 2012, Tamã Shëta, da Aldeia São Sebastião no Médio rio
Curuçá e pertencente ao clã Tama-oavo, e Satã Mashe, oriunda da aldeia Maronal no alto rio
Curuçá e pertencente ao clã Sata-nawavo, me contaram o seguinte:
28
Mashashe é um tipo de pedra esverdeada encontrada nas pequenas cachoeiras dos igarapés.
63
“eu sei fazer, então eu não vou ensinar as outras”. Os que aprendiam eram
somente os parentes próximos, para não enfraquecer o saber e o
conhecimento da artesã. Hoje nós somos muito fáceis de ensinar as outras.
As plantações de algodão eram feitas pelas mais velhas e só elas sabiam
fazer as saias de algodão. Outras mulheres sofriam por não saber fazer saias,
porque as que sabiam fazer não facilitavam para ensinar.
No meu caso, os Matses pegaram minha mãe. Minha avó, por ser velha e
para eu não ficar andando sem fazer nada, me ensinava frequentemente tudo
o que se podia fazer com coco, tucum, algodão, como fazer peneira, cesto,
esteira, abanador, grafismos e trabalho com cerâmica. Nessa época nós não
conhecíamos direito nawã awe (as coisas dos nawa) e, para ter nawã awe,
tínhamos que extrair caucho, couro de onça e couro de porcão.
Tamã Sheta: En ewa kakaya shavosho awen meiti piti kashma akis niavre
ipaowa, mania, atsa, kari, sheki, pia wetsarasin aka, yora pimakayash, vake
an vene ninivaransh awen ave tsawa an natxi awen papani naneya ton
kashma ashon pawa, peti aki yosika ipawa en ewa. Kene, toati, pichin,
wekoti, mapo mea, panika, tseshe, nuvo aka en vavawã ea yosirivi.
Nishavovo pitiakaton txikichka menkin, meti yaõkavo ipawavo, askasho vene
pima chinasmavo, aton meti shovimaro atonavriki. Vevun tian, aĩvorasin
katsekase awe antsãwama ipawa, aĩvo meti yaõka an vene via, awen ave
nikaton, peshe kashmashon vaiki enevai-ya, awen venen nokush peti
kashmavai pari tsaush, awen vene anun neshati kashmawaki, ainvo
ruapasho an iki.
O trabalho de minha mãe, por ser kakaya shavosho (mulher chefe), era
preparar a comida com banana, mandioca, milho e outros tipos de alimentos.
O esposo a trouxe para perto dele quando ela era ainda criança e quem lhe
ensinou a preparar comida foi a primeira mulher do esposo, irmã do seu pai.
Minha mãe era talentosa em preparar comida. Grafismos, peneira, esteira,
abanador, trabalho com cerâmica, fazer rede, coco e fazer aruá, eu aprendi
com minha sogra que era ni-shavovo. As mulheres deste clã eram
consideradas preguiçosas no preparo da comida, mas habilidosas no trabalho
na ponta das mãos. Antigamente, as mulheres não tinham muita quantidade
de trabalho. O homem que casava com uma mulher habilidosa, antes de ir
caçar improvisava um tapiri para que ela continuasse o seu trabalho. Então,
ela primeiro preparava a comida do esposo e depois fazia adornos. Esta era
considerada uma mulher perfeita.
sem enfeite atrai tudo que não presta. Para nós temos muitos conhecimentos:
só por ser mulher yora, não sentamos em qualquer lugar do chão; a mulher
que tem habilidade já preparava a esteirinha no caminho para poder sentar
quando chegasse ao lugar. As mulheres de antigamente, por receberem
vários ensinamentos, eram sabias de pensamentos e isso não acontecia só
com as mulheres, os homens eram iguais.
Nos relatos das mulheres, chamou minha atenção a minúcia do processo de como
aprenderam os diversos modos de ensinamentos das suas famílias, o tanto que elas valorizam
o que para elas é o modo de vida que faz da pessoa um exemplo de vida para os jovens. Como
elas dizem: “é assim que funciona”. A família traz para cada pessoa a responsabilidade de ser
um bom exemplo na sua sociedade; a pessoa que não valoriza o conhecimento tradicional não
é considerada uma pessoa boa para se espelhar nela. Para os Marubo, o que se espera dos
filhos é que eles possam dar continuidade aos seus clãs, no futuro como chefe da sua aldeia,
se tornando filho, pai, esposo, sogro, avô. O mesmo pode ser dito das mulheres.
Essa forma de ensinamento, continuamente repetido pelas mulheres, é explicada
como conhecimento clânico. Um trecho do texto “Trançados indígenas norte-amazônicos:
fazer, adornar, usar”, de Velthem (2003: 117), me fez pensar: “A atividade humana deixa
traços materiais, de diferentes sortes. Alguns são involuntários, outros intencionais e,
portanto, artefatuais, possuindo a forma de objetos, os quais informam sobre as necessidades
de expressão e de perpetuação de determinada sociedade”. Foi isso que procurei escrever a
partir do que minhas protagonistas tentaram transmitir, quando me escolheram para falar de
seu „trabalho manual‟, que anda junto com seu saber tradicional, e onde a explicação precisa
considerar a diferenciação dos distintos „trabalhos clânicos‟. No processo de produção de
„coisas‟ através do trabalho manual, acontecem variadas formas, pois, entre as mulheres
marubo, as criatividades vão se aprimorando tendo como base as descobertas de todas as
artesãs, sendo que as técnicas de trabalho revelam estilos em que estão os traços da
descendência de cada subgrupo clânico, herdados pela artesã.29
3.3 INOVAÇÃO
29
Em sua arguição, o Prof. Carlos Fausto perguntou sobre a existência de diferenciação entre os clãs através dos
ornamentos. Os clãs marubo não se distinguem pos sinais físicos inscritos no corpo, como é o caso dos adornos, mas
por estilos, procedimentos, comportamento e conhecimentos.
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No dia 09 de junho de 2010, conforme o costume ensinado por minha mãe desde
pequena de receber as visitas com lanches, na tarde ensolarada de uma quarta feira, as
mulheres das aldeias Boa Vista e Maronal apareceram na minha casa em Atalaia do Norte
AM. Após o lanche, conversando com as mulheres sobre as novidades das produções de
artesanatos, elas me contaram o seguinte:
Nõ nawa nin mera nananin, aton anõ meiti, atõ vivaran noken anõ
meiti, noke yomen ashõ-keti.Nõ anoash nawatsõti, richkiti, senoti, roe,
sheo aka; vevo nõ meiki westsarisῖ, anõ chinã tanai pakesho china
txiwakointeki meiti.
E ainda:
Shata rasin ota iki naman askasivi, ainvo wetsaro novu aka tana
tinisen ota maiapakea ato amiska, na askamaino wetsan oivaiki txinti
arame tirivaiki ravosh akaton aki orumatsawan, aton askamaino
wetsaro sheo ioro arame shana avaikin orui, oi panteti shao ramparin
ketivaiki orua. Ainvo raveton askai meke roa akasma, roakaimisma
inan, txareka, awe yoimaka. Askamaino, onatiki taa askash aton anon
67
aka ramaro, resisi papagaio ano teeaka ivo, anosho shakia roaka
tesesma, inoimase teses, ave resisi keskama.
“Não pense que nossas descobertas pararam por aí. Nossas meninas
têm descobertas absurdas, exageradas, (rindo) elas não querem saber
do trabalho perfeito, a criatividade delas está voltada para descobrir
como chegar ao produto mais rapidamente. Nós mais velhas, a maioria
das vezes, não concordamos, não pela descoberta delas, mas por elas
fazerem o trabalho de qualquer jeito, sem valorizar. Elas são agitadas,
são diferentes da nossa realidade de juventude, elas não temem pelos
seus erros e nem pensam nas consequências dos erros. Nossas jovens
não se dedicam aos seus trabalhos. Para nós mais velhas, o que
diferencia o aruá, que é o nosso trabalho tradicional, do PVC, dos
frascos, é o fato de não sabermos as origens desses novos materiais.
Qualquer tipo de shata, trazido para nossa casa e usado para fazer
68
Vevon tia nuukë ãivake, vënë vakë këska marivi, aivake tëris imati-ma
iki nuken txichtso askatosho nukẽ ëwã anũ txitaki yusĩki tsawã tsëshë,
chini tsëshë, wanĩ tsëshë.
Antigamente, nós meninas não éramos criadas como os meninos. Não
podemos deixar que as meninas fiquem agitadas30. Nossa avó falava
assim e por causa disso nossa mãe nos ensina antes de tudo a aprender
a sentar, a trabalhar com o coquinho de tucum, de pupunha e de outro
tipo.
Nos relatos das anciãs Marubo, o que mais elas destacam das diferenças entre elas e
as mais jovens é a questão da valorização da produção do trabalho manual. Todos os Marubo
mais velhos acreditam na multiplicidade das produções dos artesanatos dependendo da
relação que a pessoa tem com a sua produção. Porém, eles acreditam que o rendimento do
trabalho manual sempre gera a reciprocidade para quem está produzindo.
Principalmente no que concerne os materiais extraídos da natureza, o processo de
preparo e produção exige o pensamento positivo ao extrai-los para que tragam energias boas
na casa ou na vida. Segundo minhas protogonistas: awe shovi manosho inã oῖkaki china
marivi pani-shãkô sanaka oῖnarvi vivakῖ oshõ ichna namãse õtxima, nuvo vitãi oshõ ikotῖse
õtxisho nõ enema, mapô vivaikῖ ichakῖse motsa motsa vaiki enetima, awe katsese anõ eseya
tirivi, „a iniciativa de produzir não se pensa só porque viu o material, por exemplo, trazer o
tucum e deixar jogado, trazer aruá e larga-lo em qualque lugar da casa, retirar barro, amassá
lo com a mão e abandoná-lo. Se a matéria prima é extraída sem necessidade, a sabedoria nas
30
A tradução da palavra tëris como „agitado/a‟ dá conta só de uma parte de seu significado; tëris é dito de uma
menina que esquece seus compromissos e passa o tempo vagabundando, que não liga para aprender, não presta
atenção, fica com os meninos fazendo o que fazem os meninos.
69
Na tabela 3, estão os adornos tradicionais marubo com os materiais usados para a sua
confecção: 31
31
A nomenclatura, os números dos „tipos‟ e a numeração na última coluna estão sendo usados na organização do
acervo de peças de cultura material marubo localizado no Museu do Índio (FUNAI-RJ).
71
raneshti Txakiri raneshti „miçanga‟ 10.5
„jarreteira‟
(grupo 10) Pani tiki-taya raneshti „tucum‟ 10.2
72
A tabela acima foi elaborada para mostrar quais são os tipos de materiais usados para
fazer adornos. Estes, hoje, encontram-se no acervo do Museu do Índio (FUNAI-RJ), tendo
sido trazidos pelas mulheres marubo (as protagonistas desta pesquisa) para a oficina realizada
em setembro 2011 na mesma instituição.
Descrevo, a seguir, as peças da indumentária feminina:
∙ Maiti (coroa): antigamente as mulheres não usavam; se tivessem que usar, faziam várias
voltas de colares de aruá PVC ou miçangas, na medida da cabeça, que depois
amarravam com o papiti (pingente longo que fica sobre a coroa nas laterais da cabeça
e na nuca).
Foto 12: maiti (coroa masculina, feita com miçangas nas laterais, desenhos dos grafismos corporais)
Foto 13: maiti (coroa masculina; hoje é usada por ambos os sexos, tem grafismos próprios para
adornos)
73
∙ Papiti pingente da coroa, feito de aruá (caramujo), PVC ou miçangas; o exemplar na
fotote respeita o padrão antigo das mulheres marubo.
Foto 14: Papiti (pingente de coroa feito de aruá; nas pontas, dentes molares de macaco)
∙ Tewea (gargantilha): era usada tanto por homens como por mulheres. Estas, para dar
charme, ainda usavam tewiti (um colar com formato de dégradé em cada ponta e
entrelaçado com osso); outras mulheres usavam, além da tewea, o tewea tetxonka, um
colar longo com varias voltas. Há diversidade de informações oferecidas pelas
mulheres: umas falam que para o homem a gargantilha não tem muito volume e que
para a mulher é com mais volume, outras falam que para a gargantilha não há regras.
Foto 15: tewea (gargantilha de miçangas de varias voltas e amarrada nas pontas; usada por ambos os
sexos)
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∙ Paoti (bandoleira): as mulheres medem com os braços abertos a quantidade desejada das
voltas da bandoleira, para poder usá-la cruzada no peito e dando volta no ombro.
Foto 16: Paoti (bandoleira de miçangas, de cor vermelha a masculina, amarela a feminina)
∙ poyã-kiri oshe (braçadeira): seu uso é obrigatório pela mulher e pelo homem, para
tornear o ombro, para não ficar com ombro reto, “parecendo poraquê (koni)”.
∙ Mevin oshe (pulseira): as mulheres a usam dando varias voltas no pulso, depois se joga
por cima uma outra cor só para realçar.
75
Foto 18: mevi-oshe (pulseira feminina em PVC)
∙ Txiwiti (cinto): as mulheres o usam sobre a medida do quadril, com varias voltas, e não
inclui os pingentes.
Foto 19: txiviti õpia (cinto feminino com varias voltas de miçangas)
76
Foto 20: txiwiti mashken ikitaya (cinto feminino de miçangas)
∙ Vatxi (saia): as mulheres usavam tecido de algodão feito manualmente por elas mesmas;
para aplicar grafismos na saia, tingiam as linhas com pigmentos extraídos de plantas;
nos dias atuais usam um tecido de algodão industrial, comprado, de um metro e meio.
A saia da manequim na foto 12 é tradicional marubo, porém feita de linha de crochê.
∙ Vene maiti (coroa masculina), feita na medida da cabeça do dono, para permanecer larga
e com o acabamento de grafismos na parte frontal, em cada lateral e na nuca.
Foto 25: maiti (coroa com três pingentes; nas pontas, dentes molares de macaco prego)