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A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À MORADIA EM MANAUS NO CONTEXTO

DAS OCUPAÇÕES IRREGULARES

Noé Natal Magno das Chagas


Universidade Federal do Amazonas
Noenatal2010@gmail.com

Prof. Dr. Bruno de Oliveira Rodrigues


Universidade Federal do Amazonas
brunorodrigues@gmail.com

RESUMO
A Constituição Federal reconhece como fundamental o direito à moradia, um direito social, embora
aos efeitos à parcela mais vulnerável da população, não se mostre efetivo como direito-garantia,
manifesta no déficit habitacional. Ademais, sobram soluções precárias, como a invasão de terras e a
autoconstrução, que expõe estes ocupantes a riscos como o desastre, o qual como em outras
metrópoles, é também realidade em Manaus, desde a Zona Franca, perpetuando a negação do
direito à cidade às populações subalternizadas, as quais são apresentadas à "cidadania" pela ação
tardia do Estado, seja como Judiciário, ao identificar somente a turbação da posse e como garantia
os atos de reintegração de posse coletiva, seja como Poder Executivo, sendo sujeitos de uma política
de morte urbana, ao se omitir de regular o uso da terra e oferecer alternativas ineficazes. Assim,
para analisar a problemática fora realizado um estudo qualiquantitativo, utilizando fontes de dados
secundários, além de estudo de caso dos processos de reintegração de posse nas ocupações Monte
Horebe e Nova Vida, para através do método dialético capturar instrumentos contra hegemônicos,
houve identificação da potência dos movimentos coletivos em obter resultados emancipadores,
concluindo-se pelo evadir-se do Estado em reconhecer a problemática como violação de direitos
fundamentais.

Palavras-Chave: direito à moradia; reintegração de posse; necropolítica; movimentos sociais;


pandemia.

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1. INTRODUÇÃO
Conforme levantamento do projeto MapBiomas, entre 1985 e 2021, Manaus foi a cidade que
teve o maior aumento absoluto da área urbanizada por meio de aglomerados subnormais no País,
de 9549 hectares (MapBiomas, 2022, p. 18). Esses aglomerados, representam regiões que carecem
dos serviços urbanos mais básicos e em terreno irregular, manifestam a disparidade de acesso a
direitos fundamentais, especialmente da dimensão social, como a moradia, elencado no art. 6°
caput Constituição Federal, que embora dependa da edição de legislação complementar para atingir
plena eficácia, está já se encontra plenamente estabelecida no ordenamento jurídico brasileiro,
assim, legislações como Estatuto da Cidade – lei 10.257/2001 art. 2° inc. I - estabelecem a
importância do acesso à moradia e a terra, porém de forma regular, através do poder de ordenar e
regular o uso da terra, que em Manaus, pertence ao Município, conforme lei complementar
002/2014 do município de Manaus. Porém, determinações que na realidade não se efetivam, já 48%
da área urbana de Manaus é composta por aglomerados subnormais (MapBiomas, 2021).
Se na disputa pela posse da terra e acesso à moradia, são observadas violações de direitos
fundamentais, há de se considerar a dimensão de sujeitos subalternizados. Considerando a
dimensão de crise do contrato social pautado pelos valores do estado de bem-estar-social, no Sul
Global e no Brasil, em que somente uma pequena parcela realmente usufruiu desses valores, e a
parcela restante se encontra impossibilitada de acessá-los, com a virada hegemônica para o
neoliberalismo dos países do Norte (Santos, 2003, p. 16). Ainda mais, esses ocupantes, são lançados
na condição de não-cidadãos, em que “tudo se passa como se a legalidade da posse da terra se
repercutisse sobre todas as outras relações sociais” (Santos, 1974, p. 8).
Nessa relação estabelecida entre indivíduo, população e Estado, é estabelecido o biopoder,
que para Focault é um conjunto de mecanismos e funções que perpetuam esse controle exercido
(Focault, 2008, p.4). Por meio dos mecanismos de segurança atuando sobre a população,
estabelecendo parâmetros comparativos, uma técnica do meio (Focault, 2008, p. 15), porém, essa
biopolítica, direcionada ao fazer viver de uma maioria, implica permitir o morrer, ainda que nos
limites estabelecidos, como observado nos mecanismos de segurança, já que “A escassez-flagelo
desaparece, mas a escassez que faz os indivíduos morrerem não só não desaparece, como não deve
desaparecer” (Focault, 2008, p. 55).
Nesse paradigma, concepções como soberania, poder disciplinar, biopoder e biopolítica,
aparecem emaranhados, indissociáveis para o governo das populações e da vida nos mecanismos
de poder. Por meio do qual, resgata Achille Mbembe, a noção de soberania, como o poder de fazer
viver ou fazer morrer (Mbembe, 2016, p. 135), a descartabilidade de não somente o indivíduo, mas
agora de uma parcela renegada da população, num contexto pós-colonial, a qual esteve sujeito o sul
global, como aquele local habitado pelos não civilizados e, portanto, não sujeitos às normas do
contrato social – a sociedade incivil, “os que o habitam não pertencem à sociedade civil, uma vez
que são atirados para o novo estado natural” (Santos, 2003, p. 23). Portanto, no contexto da
ocupação para fins de moradia, caberia apurar a sistemática de mecanismos de sujeição à uma
política de morte e fragilização de direitos desses indivíduos.
Durante o período de pandemia, o Amazonas figurou como 3° maior perpetrador de despejos
coletivos (Habitat Brasil, 2021), em momento que exigia para garantia do direito à saúde, ter onde
morar. Porém, como afirma Mbembe, nessas regiões marcadas pela colonialidade, impera a exceção
permanente e, portanto, suspensão não temporária dos direitos, que é necessária para exerce-se o
poder de matar (Mbembe, 2016, p. 128) qual foi deslocada à ordem das preocupações do direito,
resultando na suspensão temporária de reintegrações de posse no Amazonas. De forma que permitir
a circulação era ameaça a todos ao mesmo tempo que não existia capacidade de realocação.
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Assim, os deslocados à uma periferia da cidade e dos direitos, são para quem se voltam os
processos de descartabilidade. Verificando-se na capilaridade desses instrumentos, para além do
direito como soberania homogênea, onde faticamente se exerce o poder (Focault, 2005, p. 32) –
lugar em que se manifesta como confronto – em busca de mecanismos contra hegemônicos, que
direcionem seu exercício para a inserção e garantia de direitos, ou seja da garantia da vida. Para
tanto compara-se os casos de reintegração de posse nas comunidades “Monte Horebe” e “Nova
Vida”, a primeira culminou no despejo coletivo dos moradores, já a última, composta por moradores
indígenas levou ao arquivamento da reintegração e plano para a preservação dos sítios
arqueológicos em conjunto com a manutenção dos moradores.

2. OBJETIVO GERAL
Apontar estratégias de ação que reforcem a percepção de um direito à moradia dos
ocupantes irregulares e aos ocupantes irregulares, capaz de traduzirem-se em políticas públicas e
atividade jurisdicional potencializadoras de direitos fundamentais, através da análise do quadro
atual das intervenções estatais e o resultado de suas interações com as famílias afetadas, na cidade
de Manaus.

3. METODOLOGIA
Levantamento bibliográfico, por meio do portal da capes, portal scielo e google acadêmico,
com combinações de palavras-chave: moradia, direito, reintegração de posse, Manaus, pandemia; e
seleção através de critério de relevância ao tema pesquisado. Adotando-se o método
qualiquantativo, através de artigos, dados estatísticos e fatos no curso dos processos de reintegração
de posse, referentes à “Comunidade Monte Horebe” e “Comunidade Nova Vida”, com contribuições
teóricas de Boaventura de Sousa Santos, Achille Mbembe e Michel Focault. Os processos são
analisados como estudo de caso, o referente ao Monte Horebe, devido ao seu encerramento no
despejo coletivo dos moradores, já o outro, mais recente, que culminou com o arquivamento da
ação de reintegração de posse e a manutenção dos moradores, aplicando-se o método dialético para
identificar alternativas emancipatórias a esses sujeitos.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
O déficit habitacional em Manaus manteve-se constantemente acima de 100 mil (FJP, 2019,
p. 15), enquanto programas habitacionais não foram capazes de oferecer moradias de baixo custo
na quantidade necessária a curto prazo. Mesmo assim, inclusive durante a pandemia, o Amazonas
se mantinha em 3° lugar, no ranking de despejos coletivos (Habitat Brasil, 2021) lançando essas
pessoas numa condição ainda mais precária, já que não existe habitação regular para abrigá-las,
reforçando a percepção de que no judiciário a questão é tratada meramente como litígio pela
propriedade, porém, iniciativas como a concessão de auxílio-aluguel estadual e cadastro em
programas sociais, além de normativas como a RES10 do CNDH, sem solução efetiva, mitigam essa
fragilização. Dessa forma, é necessário reconhecer a falta crônica de acesso à moradia, pela parcela
“não cidadã” da sociedade manauara, como afeta à toda sociedade.
Ademais, retomando a noção de colonialidade, esses fatores relativos à colonização que
ainda hoje influenciam e se manifestam nas relações assimétricas na sociedade, 91% do déficit
mencionado, é composto, de pessoas, pretas, pardas e indígenas (FJP, 2019, p. 51). Como no caso da
ocupação “Nova Vida”, indígenas também estão presentes na problemática, o que demanda uma
política específica, estes tiveram aumento na composição da população de Manaus – a cidade com
mais indígenas no país, 71.713 (Agência de notícias IBGE, 2023) - diferentemente do caso “Monte
Horebe”, onde não existiu uma autorrepresentação dos moradores, delegada à defensoria pública
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no processo, já naquele os indígenas organizados e com apoio de movimentos sociais, enquanto em
um todos foram despejados em nome da preservação ambiental e combate à criminalidade, nesse,
chegou-se a um acordo potencializador de direitos. Nesse confronto, o poder como a possibilidade
de dizer qual a verdade, pode ser reivindicado pelos incivis através da organização contra
hegemônica, portanto, não poderá haver emancipação relativa a direitos, e nem uma política de
vida, sem espaço e voz para que essas organizações criadas no contexto da própria reinvindicação
pela moradia se manifestem.

5. CONCLUSÕES
Afasta-se a noção de “invasor”, como é evidenciado no caso “Monte Horebe” pela dependência que
se estende das famílias retiradas, com o auxílio aluguel estadual. Do Estado, cobra-se o respeito pela
condição de sujeito de direitos humanos, buscando incluir a representação comunitária como parte,
com voz nos processo e o reconhecimento da problemática como de relevante interesse social, já o
Executivo, deverá observar os índices de déficit habitacional, fornecendo alternativas como
programas de habitação popular (com ressalvas, como localização razoável quanto o acesso aos
aparatos urbanos), e se necessário retirar moradores, como nos desastres, a inscrição em programas
sociais prioritariamente de habitação, buscando realocar estes em seu entorno habitual. Por fim,
convoca-se a realização de estudos que se aprofundem nas percepções e características dos
ocupantes, das contradições urbanas em Manaus e a violação de direitos, também da questão
indígena e as ocupações irregulares.

REFERÊNCIAS
FOCAULT, P. M. Segurança, território, população: curso dado no Collegé de France (1977-1978). São Paulo: Martins
Fontes, 2008. Coleção Tópicos.
FOCAULT, P. M. Em defesa da sociedade: curso no Collegé de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Coleção Tópicos.
Fundação João Pinheiro. Déficit habitacional no Brasil por cor ou raça 2016-2019. Diretoria de Estatística e
Informações - Belo Horizonte: FJP, 2022.
Habitat Brasil. Habitat Brasil e entidades parceiras lançam missão-denúncia contra despejos em Manaus. Habitat
Brasil, Recife 25 mar. 2021. Disponível em: https://habitatbrasil.org.br/habitat-brasil-e-diversas-entidades-parceiras-
lancam-missao-denuncia-contra-despejos-em-manaus/. Acesso em: 25 jan. 2023.
Mbembe, J. A. Necropolítica. Revista Arte & Ensaios, ppgav/eba/ufrj , n. 32, 2016.
Projeto MapBiomas. Mapeamento Anual de Cobertura e Uso da Terra do Brasil. Coleção 7. Disponível em:
https://brasil.mapbiomas.org/wp-
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2023.
Projeto MapBiomas. Crescimento das favelas no brasil entre 1985 e 2020 equivale a 11 Lisboas. Projeto MapBiomas
11 maio 2023. Disponível em: https://brasil.mapbiomas.org/2021/11/05/crescimento-das-favelas-no-brasil-entre-
1985-e-2020-equivale-a-11-lisboas/. Acesso em: 14 nov. 2023.
SANTOS, B. S. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. Disponível em:
http://www.geocities.ws/b3centaurus/livros/s/boavpassar.pdf. Acesso em: 01 fev. 2023.
SANTOS, B. S. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais, vol. 65, maio de 2003, p. 3-76.
Uberlândia Cabral; Irene Gomes. Brasil tem 1,7 milhão de indígenas e mais da metade deles vive na Amazônia Legal.
Agência de Notícias IBGE, Rio de Janeiro, 27 out. 2023. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-
noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37565-brasil-tem-1-7-milhao-de-indigenas-e-mais-da-metade-deles-vive-
na-amazonia-legal>. Acesso em: 19 nov. 2023.

AGRADECIMENTOS
Agradeço à UFAM, a FAPEAM e ao meu orientador, por permitir que me aprofunde num tema
tão relevante e presente na realidade manauara, através da pesquisa.

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