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Prólogo
Domingo, 14 de setembro de 2008
Oleoduto Addison XL
Registro
Visão
Regulamentação Recursos de Contato
Geral
Fornecedor
Visão Geral
The Ritz
Londres, Inglaterra
— Nem pensar!
Jennifer estava sentada sobre as pernas, os cabelos
úmidos enrolados pela toalha, o celular preso entre seu
ombro e sua orelha. Estava nua, como gostava de ficar
quando sozinha, com gotículas correndo livres pelo seu
corpo.
— Se o jatinho de papai estiver ocupado, ao menos
consiga — sua voz não escondia o desgosto do que estava
por vir — um voo comercial.
— Já passamos por isso, Jenny — Caroline falou do outro
lado da linha.
— Não me chame assim.
Caroline continuou:
— Seu pai precisa de você em Paris hoje.
Jennifer estava prestes a continuar a discussão, porém
ela, de repente, se lembrou:
— Desde quando preciso discutir esses assuntos com
meu pai por intermédio de sua secretária-barra-amante?
— Em breve iremos casar e serei sua madrasta. Gostaria
que o tratamento fosse mais adequado à nossa futura
realidade, querida.
— Não me chame de querida.
Caroline suspirou do outro lado. Não era um suspiro
qualquer, no entanto. Era mais do que uma expiração
contrariada. Era uma longa expiração contrariada. Ela
sugava o ar e depois o expelia. O movimento todo durou
mais de três segundos.
— Desobedecer a seu pai é uma escolha sua.
Jennifer desligou. Cogitou atirar o celular contra a
parede, mas não era dada a gestos tão dramáticos.
Viajar de trem, refletiu, ainda sentada sobre suas
pernas. É uma humilhação que não esperava ter que
enfrentar alguma vez na vida.
Jennifer se levantou. As gotículas tomaram velocidade,
ajudadas pela gravidade, e percorreram apressadamente os
contornos de seu corpo. Ela poderia simplesmente não ir.
Para que ele precisaria dela em Paris, se a festa em
Versalhes seria apenas na noite seguinte?
Sabia do que se tratava, contudo. Não era sua
característica sentir irritação ao ir a Paris. Afinal, era Paris,
seu lugar favorito em todo o mundo. Era que seu pai estava
dado a rompantes bizarros ultimamente. Queria que ela se
casasse. Mas não com qualquer um. Com alguém que lhe
servisse algum propósito. Pretendentes escolhidos a dedo,
surgindo como mágica em eventos que Jennifer também
estava. Imaginava quanto seria seu dote. Na idade
medieval, torcia para que fosse um milhão de cabeças de
gado.
Jennifer foi ao closet. Foi obrigada a repensar a roupa
separada para a viagem do dia seguinte — um vestido Dior
curto, de organza verde, que deixava as pernas à mostra, os
seios, com um bom volume, e parte da barriga entrevista
através do tecido levemente transparente.
Quer saber? Ela usaria o vestido.
Jennifer terminou de se vestir, se pentear e se maquiar,
e desceu ao saguão.
Um dos seguranças a aguardava na saída. Não sabia seu
nome. Jennifer havia desistido de guardar nomes muito
tempo antes, quando seu pai começou a fazer um rodízio
tão grande de seguranças que ela precisaria manter uma
tabela Excel para lembrar de todos.
Londres estava cinzenta, para variar. Detestava a cidade
quase tanto quanto a amava. Lembrava, em vários
aspectos, tudo que mais odiava em relação às grandes
metrópoles que visitava, com um grande diferencial: era na
Europa. Reunia o que havia de pior na vida cosmopolita com
o melhor que havia na sofisticação cultural europeia.
O segundo segurança abriu a porta do Rolls-Royce para
ela. A uns dois metros dali, um mendigo vagava, bêbado e
desorientado, murmurando palavras sem nexo. Jennifer não
lhe deu atenção e sentou no interior, agradável e com uma
fragrância revigorante que ela não conseguiu identificar.
O segundo segurança se sentou ao lado do motorista.
Atrás, um carro partiu atrás deles. Jennifer se virou para
olhar, mas o que chamou sua atenção mesmo foi o
mendigo. Ele rodopiou na rua, com um sorriso desatinado
no rosto, como se escutasse uma música exclusiva aos seus
ouvidos.
Para sua sorte, evitando assim um vexame ainda mais
impressionante, o Rolls-Royce não era o que o hotel
disponibilizava para levar certos hóspedes ao aeroporto —
afinal, ela não estava indo ao aeroporto. Seria vergonhoso,
ela imaginava, o diálogo necessário para explicar que seu
destino não era o aeroporto, mas a estação de trem.
Ela chegou à estação St. Pancras; o lugar destinado à
expiação de todos os seus pecados. O lugar consistia em
uma multidão de homens suados e apressados, crianças
animadas gritando a plenos pulmões, e mães com o
desapontamento materno insculpido em seus semblantes
cansados.
Jennifer pôs seus óculos escuros, um detalhe que lhe
passou batido na hora de escolher a roupa. Não combinava.
Mas a não ser que uma comentarista de moda estivesse
perdida ali, pronta para captar sua falta de juízo em
escolher um acessório que não combinasse com sua roupa,
achava que sobreviveria sem ser levada à corte da moda,
julgada e sentenciada a nunca mais entrar em uma loja da
Dior.
Ela caminhava, ladeada por seus seguranças. Esquecera
de levar esse detalhe em conta, também. Isso servia apenas
para que as pessoas se sentissem atraídas à sua presença
ali. Seria ela uma atriz famosa, uma modelo? As
ponderações poderiam ser múltiplas, mas ninguém jamais
acertaria. Era apenas uma mulher sacaneada pelo próprio
destino.
Afinal, devia ser uma pegadinha. Não era possível que
um dos homens mais poderosos do Canadá não pudesse
oferecer alternativas a uma viagem de trem. C'est la vie,
refletiu, expressão que significava "me dei mal, mas não há
nada que eu possa fazer, então falarei uma expressão em
francês para provar quão pouco eu me importo".
Parte de seu martírio chegou ao fim ao cruzar a porta
que separava a estação do Business Premier Lounge, um
termo mais sofisticado e atual à obsoleta Sala VIP. Era um
salão amplo, como as salas dos aeroportos, com bar, área
de lounge, serviços à disposição.
Blerg. Daria tudo pelo serviço de bordo do jatinho de seu
pai. Champagne. Hors d’oeuvres. Ceviche de caranguejo e
abacate com pimenta jalapeño. Sanduíches de lagosta do
Maine.
Ah, o que não faria para estar agora bebericando
Perrier-Joüet, relaxada em uma poltrona de couro, em
altitude de cruzeiro. Mas ela deveria se submeter à
abdicação involuntária de seus privilégios por um dia, uma
vez que, zelosa como era de seus privilégios, dispunha-se a
suportar essa humilhação.
Jennifer atravessou o corredor, indisposta demais com
sua situação para ficar parada. Homens sem graça
levantavam os olhos ao vê-la passar, com olhos que
pareciam queimar sua pele, medrosos em excesso para
tentar alguma coisa, porém desocupados o bastante para
não buscarem outra forma de distração que não fosse
ocupar suas cabeças com devaneios, sobre ela, impossíveis
de se concretizar.
Ela seguia em frente, consciente de que, em algum
momento, chegaria ao fim do corredor e teria que ou buscar
outra forma de passar o tempo ou dar meia-volta e seguir
pelo caminho que veio.
— Jennifer?
Seu nome surgiu da boca de um homem. O coração
bateu mais rápido. Ela fechou os olhos com força por trás
das lentes escuras dos óculos. É um pesadelo, é apenas um
pesadelo. Siga em frente até você acordar.
Mas ela não acordaria. Pois o dono da voz se apressou a
alcançá-la. Tocou suavemente seu braço, e a acompanhou
por um instante andando de costas.
— Sou eu, Mike.
Ela parou. Foi obrigada a parar. Pois o nome a remeteu
ao som tênue das marolas, empurradas pelo vento, contra
os seixos brancos da praia.
Jennifer removeu seus óculos para observá-lo. Era alto,
com cabelos negros como petróleo, a pele branca
contrastando com os olhos de um azul-marinho espetacular.
Vestia uma camisa preta, de gola em V, sob uma jaqueta
caban de camurça, da mesma cor, com a gola alta. Ele
possuía pernas um tanto finas, delineadas pela calça skinny
de denim. O mocassim era claramente um Donald J. Pliner.
— Eu sei que faz muito tempo — ele continuou, abrindo
um meio sorriso em seu rosto que não era desagradável de
contemplar. — Como você...
Ela o interrompeu, fazendo uma pergunta cuja resposta
ela tinha:
— Oito anos, não é mesmo?
Mike parou, sem saber como proceder diante do seu tom
de voz. Ele, por sua vez, adotou um tom preocupado.
— O que aconteceu com você?
Ela o encarou, desconfiada.
— Do que está falando?
Ele respondeu, com um tom divertido:
— Seu pai não é mais o homem mais rico do Canadá?
Jennifer não gostava da forma zombeteira como ele
falava.
Ele prosseguiu, sabendo que não obteria resposta a uma
pergunta que não era respondível.
— Você, viajando de trem?
Ele riu. Ela se zangou.
— Está tentando viver como as pessoas comuns?
— Seu pai não é um dos homens mais ricos da Costa
Oeste?
— Bem... Sim. Mas eu não sou sua princesinha.
— Não? Tem certeza?
Ele gargalhou. Seu rosto se suavizava quando ria assim,
suas pálpebras se contraíam até formar nada além de duas
pequenas fissuras onde antes estavam suas órbitas.
— Venha, senta comigo. Eu acabei de pedir uma taça de
champagne. Posso pedir outra.
— São dez da manhã.
— Você desaprova.
Jennifer balançou a cabeça.
— Faça o que bem entender.
— Você desaprova, mas a seu modo especial e não-
desaprovador.
Ela não riu, o que sabia ser o objetivo de Mike. Talvez em
outra época.
— Prefiro ficar sozinha.
Ela começou a se afastar. O corredor ali era um pouco
mais estreito, o que significava que ela ou se espremeria
entre Mike e a parede, o que jamais ocorreria, ou ele teria
de sair de sua frente. O que também não aconteceu.
— Dê licença, por favor.
Ele não deu.
— Uma vez que temos uma história, seria interessante
botarmos o assunto em dia. Uma história afetuosa, se você
lembra bem.
Ela o olhou bem dentro de seus olhos. Azuis, gelados
mas acolhedores, berço de memórias calorosas, de risadas
e completa submissão.
Por um lado, gostaria de reviver aqueles dias; por outro,
sabia que uma vez já vividos, uma vez a referência
estabelecida, jamais a alcançariam outra vez, e tudo que
teriam seria uma segunda experiência muito aquém da
primeira.
Portanto, forçou a si mesma ignorar tudo que o azul de
seus olhos a remetia e aceitou a difícil decisão de que nada
em Mike lhe parecia digno de saudades.
— Nós temos uma história. Ela durou cinco dias, oito
anos atrás. Você chama de afetuosa, eu não.
Ela pôs seus óculos de volta e se afastou pelo lado
contrário, imaginando que ele, em pé no caminho que
Jennifer seria obrigada a tomar em breve, caso desejasse
embarcar no trem, dificilmente continuaria na mesma
posição.
Ela se sentou, com falta de ar. Seu segurança encarava
o vazio, com olhos serenos de quem não ouvia, mas
escutava, e que certamente a tomava por uma louca,
sentada com o estômago doendo, com vontade de vomitar.
Oito anos. Oito malditos anos.
Ela devia ter esperado por isso. Nice, nada mais do que
uma aventura desencadeada por um acaso dentre outros
mil acasos, fora o que fora, um axioma vazio que
evidenciava coisa alguma a partir de coisa nenhuma.
Mas Mike poderia ter ligado. Poderia ter se manifestado.
Eles poderiam ter continuado o que começaram. Poderiam
ter transformado um conto de cinco dias em um romance
maior, onde os cinco dias seriam não mais do que um
prólogo para os capítulos a seguir.
O que seria da aventura, caso ela tivesse se tornado o
que não se tornou, uma história em si mesma? Quão
diferentes teriam sido seus pouco mais de dois mil e
quinhentos dias por conta disso? Os cinco dias poderiam ter
se transformado em uma história a ser contada em um
jantar divertido entre amigos, o Big Bang de um universo
ainda em expansão, ou poderiam ter sido contaminados por
desavenças capazes de abalar a estrutura sem destruí-la,
mas igualmente potentes para fazê-la desabar por inteira,
levantando poeira, sujando suas roupas e suas peles, onde
seria fácil se livrar da película cinza de sujeira da implosão
em si, mas incapaz de recuperar a estrutura implodida.
Jennifer viu a hora. Precisava embarcar, mesmo
correndo o risco de cruzar o caminho de Mike outra vez. Mas
ele não estava onde estivera antes. Seu lugar estava vazio,
nada que lhe remetesse a ele podia ser encontrado, a não
ser pela taça de champanhe, intocada.
Ela entrou no trem, escolheu seu assento e se
acomodou. Deu uma espiada no corredor, mas não o
encontrou em lugar algum.
Um lado de Jennifer sempre nutriu esperanças de que o
que não aconteceu, acontecesse. Ela desejava que fossem o
Big Bang de um universo em expansão, pois não concebia
nada mais romântico do que uma história sobre romance.
Jennifer se considerava uma mulher romântica. Ela se
lembrava de escrever carta atrás de carta, todas elas
escritas com belas letras de uma garotinha que havia
treinado a caligrafia até a mão arder insuportavelmente.
Escrevia página atrás de página, para Cooper, os dois
jovialmente perdidos no amor, contendo frases apaixonadas
e, às vezes, loucas, sentimentalismo barato e raras
segundas intenções. Cada frase era repleta de pontos de
exclamação, trechos sublinhados e pequenos corações nas
bordas. Isso quando não assinava a carta com um beijo,
depois de passar o batom da nova namorada do pai.
Era muito mais do que apenas cartas. Às vezes, eram
cartões postais de capitais europeias, com ideias
fantasiosas e românticas. Ou horas ao telefone sem falar
coisa alguma, com grau algum de profundidade, mas que
terminavam sempre com um "ah" apaixonado. Sem contar
os maços de incontáveis fotografias, cada momento
daqueles anos registrados, com extremo zelo e carinho,
todos eles guardados na gaveta de baixo do armário.
Ela não teve muitas experiências nessa área de sua
vida; portanto, quando encontrou Mike, nas circunstâncias
que o conheceu, não imaginou outra coisa que não fosse
uma inclinação romântica, pois o que compartilharam foi
muito além do físico. Ou era o que ela pensava.
Ela suspirou, sentindo-se tola. As coisas eram o que
eram; outro axioma vazio. Pois nada aconteceu. As semanas
se tornaram meses, que acabaram se tornando anos.
Florianne Saint-Yves, sua melhor amiga, a alertara sobre a
verdade. Lembrava perfeitamente de suas palavras, mesmo
depois de tantos anos: “É preciso que ponha esses sonhos
de lado, só vão partir seu coração”. Logo ela, que nunca
pusera os seus.
Por outro lado...
Ela poderia ter ligado. Ela poderia ter se manifestado.
Ela poderia ter se responsabilizado pela criação de novos
acasos, poderia ter dado chance ao destino, poderia ter
aberto a porta em vez de esperar que ela se abrisse. Mas,
não. Encarregou-se de depositar seus sonhos e desejos em
uma manjedoura enquanto ela mesma morria de fome,
desejosa pelo que depositara ela mesma para outro comer.
Uma voz feminina a trouxe de volta à realidade:
— Nós, mulheres, achamos que homens leem mentes.
Jennifer olhou ao redor, pensando que a mulher
estivesse falando com ela. Não estava. Sentada ao seu lado,
do outro lado do corredor, conversava com sua amiga, uma
mulher de traços suaves e comuns. Mas a que falava, vestia
trajes executivos da Gucci, de lã viscose e gola alta, e
aparentava ter quase quarenta anos. Tinha traços muito
bonitos, uma bela combinação de olhos verdes e cabelos
ruivos, presos por trás da cabeça.
— Mas eles não leem — ela concluiu. — Nós sempre
esperamos que eles façam algo que nós queremos, e
acabamos perdendo boas oportunidades assim. Veja você
com Barney, por exemplo…
Desconectou-se da conversa, antecipando uma história
entediante e sem o mesmo apelo emocional da que ela
mesma vivenciava.
Ela suspirou. Ele nunca prometeu isso, não é mesmo?
Isso era apenas Jennifer acusando-o e culpando-o por suas
esperanças desiludidas, como se ele a tivesse traído,
prometido a lua e as estrelas sem jamais entregá-las.
Jennifer abriu seu livro. Desejava perder-se nas palavras,
em outros tempos e outros lugares. Não teve dificuldade de
encontrar a página em que tinha parado, mas não valia a
pena. Deu por si lendo a mesma passagem meia dúzia de
vezes. As linhas dançavam, em um ritmo difícil de
acompanhar, quase como se fossem as notas musicais na
peça “La Campanella”, de Liszt.
Decidida, Jennifer pôs seu livro de lado e seguiu o que
achava ser o certo.
Ela o encontrou meio adormecido na poltrona. Estava
recostado, braços cruzados, os cabelos meticulosamente
arrumados para parecerem bagunçados. “É trabalhoso fingir
que eu não me importo com a minha aparência”, dissera em
uma das noites, em Nice. Sabia muito bem quão vaidoso ele
podia ser.
Ela se sentou em frente a ele.
— Sem você, eu poderia ter vivido feliz, sabe?
Ele abriu um olho, curioso, deixando escapar um rápido
alongar de seus lábios.
— Eu só queria espairecer. Superar o fim do meu
relacionamento. Ou tentar, pelo menos. Ter um tempo
sozinha.
Ele se sentou direito. Apoiou os cotovelos na mesa que
os separava.
— Posso te contar um segredinho?
Ela aguardou.
— Você que se sentou do meu lado e puxou assunto.
— Eu estava bêbada!
A Colina do Castelo. Jen se recordava daquela tarde.
Mike estava sentado perto de uma cachoeira, absorto, lendo
um livro de Edgar Allan Poe, com uma garrafa de
Bannockburn ao lado. Ela se sentou por acaso ao seu lado,
sem sequer ter reparado que era um belo jovem, com um
inesquecível par de olhos azuis.
— Sem você, eu poderia ter voltado para casa e seguido
em frente com a minha vida. Com o coração tranquilo.
— É agora que eu bocejo?
Jennifer revirou os olhos.
— Você não se importa. Claro que não se importa. Por
que se importaria?
— Com o que devo me importar, exatamente?
Ela deixou o ar escapar, como que derrotada. Olhou para
fora, distanciando-se dele de propósito. Sentia que Mike
continuava a encará-la.
— Jennifer?
Ela virou apenas os olhos em sua direção.
— O que é?
Mike olhou ao redor, às poltronas vazias.
— Você ainda está aqui.
— Você quer que eu vá embora?
— Você parecia estar preparando uma saída teatral.
Ele deixou escapar um rápido sorriso. Depois, levantou
os olhos. Deus do céu! Como alguém pode ter olhos tão
bonitos?
— Você é do jeito que eu me lembro, Jen.
— Como? — perguntou, apoiando o rosto sobre uma
mão. — Linda de morrer?
Ele a olhou nos olhos, sem sorrir, e balançou a cabeça.
— Você já esteve melhor.
Ela o olhou, boquiaberta.
— Isso é simplesmente rude.
— É a verdade. Principalmente com o pijaminha de
ursinhos.
— Não eram ursinhos! — protestou, sem conseguir
evitar sorrir.
— Não? Do que você chama aqueles bichinhos peludos,
com orelhinhas, comendo potinhos de mel?
— Eram... Bem, eram...
Sentiu o rosto corar. O que estava acontecendo? Como
poderia se mostrar tão frágil diante dele?
Jennifer detestou o sorriso sabedor em seu rosto. Deixou
de corar de vergonha e passou a corar de fúria.
— Tá, eram ursinhos! Mas, do jeito que você fala, soa
pejorativo.
Mike balançou a cabeça e riu, recostando-se na poltrona.
— O que foi?
Mike se manteve quieto. Jen pôs uma mecha de cabelo
atrás da orelha.
— Como você se lembra de mim?
— Bem...
— Sem falar sacanagem.
— Levando isso em consideração...
Mike pensou por um tempo.
— Tudo que você lembra é sacanagem?
Ela revirou os olhos, evitando o pensamento incômodo
que lhe dizia que estava prestes a ser magoada.
— Claro que não. Eu lembrei do pijama...
— É verdade.
—... que você usou poucas vezes.
Jen fez um círculo com a boca, surpresa. Mas não estava
mais zangada. Na verdade, achou graça.
— Estou falando sério!
— Independente, inteligente e secretamente romântica.
— Não se esqueça de aficionada por livros.
— É uma verdadeira personagem de...
— Muriel Spark.
Ela sentiu um calor dentro de si, mas evitou que se
refletisse em seus olhos.
Quando Jen, então, lhe perguntou por qual motivo viera
a Londres, Mike contou que viajara no intuito de conhecer
uma das novas filiais da empresa da família, a McWhite
Corporation. Assunto encerrado. Quase havia se esquecido
da tendência de Mike em esconder as coisas, como se sua
vida fosse um grande mistério a ser guardado.
Mike pediu comida e bebida. Eles almoçaram,
conversando sobre tópicos prosaicos, evitando sequer
tangenciar o assunto que ambos pareciam pressurosos em
jamais voltar a tocar. Ou, talvez, apenas ela.
Restaurante Le Noir
Paris, França
Hotel George V
Paris, França
Paul
Los Angeles, Califórnia
Hotel Sezz
Saint-Tropez, França
A Democracia funciona?
Uma breve análise sobre a democracia em tempos de
divergências de opiniões.
Paul
Los Angeles, Califórnia
Luz.
Sentia luz em seu rosto.
Uma luz nada bem-vinda.
A luz não iluminava apenas, como queimava.
Por instinto, pôs a mão em frente ao rosto, o que não
ajudou em muita coisa.
O feixe de luz se expandiu, o bastante para que não
atingisse apenas seus olhos, mas seu corpo inteiro.
Richard abriu os olhos e viu uma silhueta afastando as
persianas. Além das janelas, estava o deck; além do deck, a
imensidão do mar de Malibu. Sobre ambos, o sol em todo
seu esplendor agressivo.
— Feche isso — protestou. Sentia a garganta seca, e foi
quando se deu conta de quanto tempo estava sem falar.
— Você está há muito tempo neste quarto — Beth falou.
— Quanto tempo faz?
— Dois dias.
Ele deu um muxoxo de desgosto. Virou para o outro lado
e cobriu o rosto com o travesseiro.
— Venha me chamar quando tiver passado um mês.
Para trocar os lençóis e minha roupa.
Richard escutou o barulho de garrafa de vidro contra
garrafa de vidro.
— Ah, Rick... — Beth lamentou. — Você estava indo tão
bem. Precisava mesmo beber tanto?
O barulho de arrumação prosseguiu. Ouviu o som de um
spray, em seguida um leve aroma floral chegou às suas
narinas.
Ela continuou a arrumar enquanto Richard mantinha os
olhos fechados, embora atento à governanta andando pelo
quarto. De repente, todo o barulho parou. Beth disse, depois
de alguns segundos, a voz de uma mãe preocupada que
encontra maconha na mochila do filho:
— Você deve estar pior do que imaginei.
Richard tirou o travesseiro do rosto e se virou
parcialmente em sua direção.
Beth se sentou na cama, ao lado de Richard. Em suas
mãos, ela tinha um origami. A única lembrança física de
Elise. Ele o guardara em uma gaveta com chave, e estava
surpreso por ter esquecido em seu criado—mudo.
Richard ficou de barriga para cima, ainda coberto pelo
lençol, com Beth bem ao seu lado. Ela era a governanta da
casa, uma mulher na casa dos setenta anos, que havia
trabalhado com a família de Richard desde sua infância.
Seus cabelos eram tingidos de ruivo, curtos e arrumados, e
a pele, rosada de sol. Seus olhos podiam ser amorosos e
acolhedores ou severos e gelados. Ela ainda possuía a
mania de repreendê-lo, como a uma criança, toda vez que
fazia algo que ela desaprovava. Era engraçado pensar como
isso era comum.
Naquele momento, estava apenas entristecida.
Desconfiava que algo muito ruim havia acontecido, muito
além do que havia sido noticiado pelas mídias. Ou que ele
havia mencionado, por alto, em algum momento dos
últimos dias.
— Você vai me contar o que aconteceu de verdade?
Richard deu um longo suspiro e decidiu por contar.
Depois de terminar, Beth permaneceu um tempo fitando
a imensidão do horizonte, em silêncio, absorvendo o que
acabara de ouvir.
— Dizer que considero os atos de Charles ultrajantes é
fazer pouco da noção de ultraje.
Sempre que pensava a respeito, sentia a raiva vindo,
fervendo no fundo de sua garganta até que ficasse prestes
a engasgar com o gosto.
— O que mais tem incomodado você?
— O que há para incomodar?
Além de tudo que acontecera, ainda havia Stephen. Seu
irmãozinho, seu querido irmão, uma víbora traiçoeira. Tanto
quanto Charles. Essa parte havia deixado de fora. Era
demais para Beth processar. A bem da verdade, era demais
para ele processar.
— Você perdeu outras coisas importantes antes e
sobreviveu.
Richard a olhou de baixo. O que ela queria dizer com
isso?
— Não apenas sobreviveu como prosperou. Encontrou
outra vez a felicidade e a saboreou.
— Isso não ajuda em nada.
— Você perdeu sua mãe quando tinha sete anos. Perdeu
seu pai quando tinha dezoito, sem nunca ter podido
conhecê-lo de verdade. Perdeu Elise no meio dos seus vinte
anos. Perdeu Chelsea há oito anos.
— Onde você quer chegar, afinal?
— As pessoas perdem, Richard. E as pessoas ganham.
— Por que eu sinto que só tenho perdido?
— Porque você está vendo as coisas pela ótica errada.
— Qual a ótica certa?
— Você é extremamente inteligente. É uma pessoa boa.
Tem dois filhos maravilhosos. Viveu uma vida recheada de
prazeres, que pouquíssimas pessoas puderam ter a
oportunidade de viver. Além disso tudo, embora eu saiba
que você não se importa muito, você tem mais dinheiro que
99,9% das pessoas no mundo.
— Por que eu tenho dificuldade de enxergar isso como
uma coisa boa?
— Porque há uma espessa névoa de tristeza, ódio e
decepção em frente aos seus olhos. O tempo se encarregará
de dissipar essa névoa, mas você precisa sair dessa cama.
Precisa ir atrás do que lhe restou. Do que ainda lhe restou,
porque depois de domingo nada mais restará.
Richard se sentou na cama.
— Nunca faça palestras motivacionais. Por favor.
Elizabeth sorriu, mas prosseguiu como se não tivesse
sido interrompida:
— Você não pode deixar que se repita o que aconteceu
com Elise, há tantos anos.
Como era comum, a menção ao seu nome era como
encostar o corpo quente em uma superfície muito fria.
— Do que está falando?
— Você não foi atrás dela. Permitiu-se aceitar que você
era uma pessoa má e que merecia se internar outra vez na
reabilitação.
A afirmação dela doeu. Havia verdade demais nela.
Caso tivesse ido atrás de Elise, as coisas teriam sido
diferentes?
Tinham de ser, com certeza, com certeza...
— O que você acha que devo fazer?
— Richard, você abriu mão do legado de seu pai, a coisa
mais importante que havia lhe restado dele, por causa dela.
Porque você não queria que isso acabasse com a vida dela.
Não fora uma atitude completamente magnânima,
refletiu. Era, em boa parte, covarde.
Richard tivera tempo para refletir a respeito nos últimos
dias. Ele poderia ter lutado, poderia ter se negado, poderia
ter feito alguma jogada.
Mas não o fez. No momento em que Charles o
chantageou, Richard já sabia o que teria que ser feito. Não
fora uma decisão fácil. Inferno, fora a decisão mais difícil
que tomara em sua vida.
Mas fizera a escolha.
A escolha... certa?
— E a sua vida? O que você fará por você?
Ela sorriu, e seu sorriso possuía toda a bondade do
mundo.
— Não sei.
— Bem, eu sei, e acredito que você saiba também.
Porque, confie em minha palavra, a maioria das pessoas
teria tomado uma decisão diferente da sua. Muitas, sem
sequer pestanejar. Charles jamais teria feito a mesma
jogada com outras pessoas, meu querido Rick, porque ele
sabe exatamente quem você é. Um homem bom, um
homem que preferiria abrir mão de sua vida do que
prejudicar a de outra pessoa, sobretudo uma pessoa que
tanto ama e que tanto amou. Charles, por mais que ele seja
um filho da mãe desprezível, deu a você uma lição: o bem—
estar de quem você ama está acima do seu. Por isso você
lutou tanto pela retirada do Paracemium, porque sabia que
estava prosperando com a ruína dos outros. E isso, Richard,
é algo inconcebível para você. Depois do que fez, acha justo
consigo mesmo não ir atrás de Chelsea? Você abriu mão de
parte de sua vida por ela e você não acha justo ir atrás dela
e contar o que fez?
Richard pensou um pouco a respeito.
— Ir atrás dela? Antes do casamento? E dizer o quê, que
a amo? Não estamos vivendo em um romance do Nicholas
Sparks.
— Não é uma pena? Às pessoas, é muito fácil viver em
meio à cobiça, à raiva, ao ciúme, à inveja, ao ódio. Pessoas
matam, traem, aprisionam, estupram, guerreiam. Ninguém
nunca hesita quanto a isso, mas sobre o amor... Ah, as
pessoas pensam e repensam, hesitam, desistem, calam
suas próprias almas, mergulham dentro de si mesmas em
busca de respostas; quando não acham, dão um mergulho
vertiginoso para a depressão. Ninguém hesita antes de
assassinar e pensa: “vou ser uma pessoa má se fizer isso?”.
Porém, todo mundo que um dia já se apaixonou já se
questionou, ao ponto de sofrer um pouco agora para não
sofrer mais no futuro, como se a vida fosse feita de
balanças. A vida não tem balança. A vida é um caos
aleatório. A vida é má, a vida vai acabar com você se você
deixar. Mas a vida também é uma benção maravilhosa,
cheia de coisas boas. O amor, Rick, é uma das melhores
coisas que temos essa vida.
Beth pegou sua mão e a apertou com gentileza.
— Em um mundo ideal, você já teria ido atrás de
Chelsea. Se ela, por acaso, não quiser saber de você, que
mal haveria? Você viveria o resto da vida sabendo que
Chelsea continuou sua vida por sua causa, e nenhum
dinheiro no mundo pagaria uma realidade como essa.
Ajudar pessoas, Richard, nunca deveria vir com algum tipo
de recompensa, de qualquer sorte.
Os olhos dela tornaram-se amorosos e acolhedores, o
mesmo olhar de quando ela lhe contara que sua mãe havia
fugido, e que seu pai havia morrido.
— O mundo precisa de mais pessoas como você. De
pessoas que vivam sim em romances do Nicholas Sparks,
cujas histórias terminem com “felizes para sempre”, por
mais equivocado e fora da realidade que isso seja. Levante
essa bunda da cama, faça a barba, arrume-se para a
felicidade e vá atrás de Chelsea. Aposto todas minhas fichas
que ela está pensando em você neste exato momento.
Richard olhou para a governanta, absurdamente grato.
Ela era incrível, a única pessoa com quem pudera contar
nos últimos quase trinta anos. De verdade.
Com o ânimo renovado, Richard fez o que Beth havia
sugerido: fez a barba, tomou um banho, arrumou-se. Depois
de todo esse processo, pegou um táxi para o aeroporto,
embarcando no primeiro voo para Nova York. A viagem
pareceu durar uma eternidade. Ele passou o tempo
praticando o que falaria assim que estivesse com ela.
Depois de um tempo, percebeu que não adiantava praticar.
Na hora, com tanta emoção envolvida, as palavras sairiam
de uma forma diferente.
Ele seria espontâneo. Diria a Chelsea tudo que sentia:
que não a havia esquecido, que sacrificara toda sua carreira
para que ela pudesse manter a sua; que não havia um dia
sequer em sua vida que ela não cruzasse seus
pensamentos.
Richard sabia muito bem porque a amava. Ela fora a
primeira mulher em sua vida que conseguiu encará-lo de
frente e não ficar o seguindo, como uma cachorrinha
perdida. Fizera com que ele se esforçasse, do mesmo jeito
que estava fazendo agora.
Talvez fosse isso. Era bem provável. Estava esperando
uma ação dele, uma ação que demonstrasse que ele
também não pensava naquela noite como só mais uma
aventura sexual.
Chegou a Nova York algumas horas depois, alugou um
carro e dirigiu, pela I—95, em direção a Hudson Valley, local
onde a família Fawler possuía uma propriedade colossal,
com extensos gramados e jardins, um local perfeito para
casamentos. Lugar no qual ocorrera o seu próprio
casamento com Chelsea. Isto fez com que seu coração se
apertasse no peito.
Depois de percorrer todo o caminho, em direção à
entrada, Richard se deparou com um portão de ferro, de
mais de cinco metros de altura, vigiado por apenas um
segurança.
Ele se aproximou da janela do motorista, dando dois
toques com os nós dos dedos.
— Quem é o senhor?
— Richard McWhite. Estou aqui para ver Chelsea.
Chelsea Denver Fawler.
O segurança ficou surpreso.
— A noiva?
— A mesma.
— Falta um bocado até o casamento.
— Sim, mas preciso vê-la o mais rápido possível.
Parecendo reconhecê-lo, o segurança esboçou um
sorriso e bateu, com dois dedos, em seu ombro.
— Você não é o ex-marido?
Ah, lá vamos nós. Richard fez que sim com a cabeça.
— Você não vai conseguir entrar de carro.
— Você não está entendendo…
O segurança fez um sinal com a mão, pedindo que se
calasse.
— Eu preciso pedir permissão para alguém da casa.
— Não tem outra maneira?
— De carro, não.
— A pé? — arriscou.
— Você pode tentar pular o muro. São cinco metros de
escalada.
— Posso conseguir.
— Pode. Mas, se chegar ao topo, o alarme vai soar.
Richard estava se cansando.
— Olha, eu posso entrar ou não?
— Acho que não. A única maneira é por aquele portão
menor — ele apontou na direção do portão —, e só eu tenho
acesso a ele. Mas, sabe, não há ninguém aqui quando
preciso tirar água do joelho ou algo do tipo.
O homem sorriu, mostrando sinais de empatia. Ele se
afastou do carro. Perto do portão, ele disse, para ninguém
em particular:
— Vou dar uma bela mijada agora.
Ele sumiu portão adentro.