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XI CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO URBANÍSTICO

GT 09 – FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE, DESMONTE DA ORDEM JURÍDICO-


URBANISTA E EFETIVIDADE DOS INSTRUMENTOS DE POLÍTICA URBANA

CIDADE DO ESTATUTO E A CIDADE DOS DESPEJOS: UMA REFLEXÃO SOBRE


O DIREITO À MORADIA NA PANDEMIA E O ESTATUTO DA CIDADE

Mariana Guimarães de Carvalho1


Mariana Dallalana Trotta Quintans2
Matheus de Oliveira Nascimento3
Viviane Carnevale Hellmann4

O Estatuto da Cidade surge como produto de uma disputa entre grupos de interesses
antagônicos quanto ao desenvolvimento do espaço urbano em um momento de agudização
das carências urbanas mediante o crescimento das cidades no final do século XX. Enquanto
regulamentador do capítulo de política urbana da Constituição Federal 5, estabelece diretrizes
e instrumentos para a formulação dos Planos Diretores pelos municípios, que por sua vez,
recebem a responsabilidade de regulamentar os instrumentos urbanísticos na forma de leis, a
serem aplicados a fim de garantir os direitos constitucionais e o cumprimento da função social
da propriedade, prevista na constituição federal.
Diante da centralidade do isolamento social no combate e prevenção contra a
contaminação pelo Coronavírus, o direito à moradia ficou evidenciado como elemento chave
para a garantia do direito à saúde e à vida, positivados no artigo 196 da Constituição Federal.
O direito à moradia e à saúde são entendidos como direitos fundamentais desde a Declaração
Universal dos Direitos Humanos em 1948 e reconhecido na Constituição Federal brasileira de
1988, pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos e no Estatuto da Cidade. Contudo, os
dados da Campanha Despejo Zero 6 apontam para um aumento exponencial do déficit
habitacional e das ações de despejos em todo o território nacional. Nos últimos dois anos,
houve um aumento de 333% no número de famílias despejadas, sendo de 602% o aumento
no número de famílias ameaçadas de despejo, no país. O Estado do Rio de Janeiro foi o

1
Graduanda em Arquitetura pela FAU/UFRJ e Bolsista de Extensão PROFAEX pelo NAJUP Luiza Mahin. E-
mail: mariana.guimaraes@fau.ufrj.br
2
Professora Adjunta da FND/UFRJ e Coordenadora do NAJUP Luiza Mahin. E-mail:
marianatrottafnd@gmail.com
3
Graduando em Direito pela FND/UFRJ e Bolsista de Extensão PROFAEX pelo NAJUP Luiza Mahin. E-mail:
matheusdeoliveiranascimento@gmail.com
4
Graduanda em Direito pela FND/UFRJ e Integrante do NAJUP Luiza Mahin. E-mail: vivianech@gmail.com
5
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado
Federal: Centro Gráfico, 1988.
6
Dados do monitoramento de março de 2022 realizado pela Campanha Despejo Zero.

1
segundo estado com mais famílias despejadas (5560), atrás apenas de São Paulo (6017).
Prática comum desde a chegada da família real ao Brasil, no século XIX, a retirada
forçada de famílias de suas residências atravessa os períodos históricos e, hoje, serve aos
interesses do mercado imobiliário, que busca garantir a propriedade privada aos agentes
capitalistas em detrimento das necessidades básicas dos segmentos mais pobres da classe
trabalhadora. Nessa dinâmica em que a moradia é vista como mercadoria, os grupos incapazes
de arcar com seus custos não configuram demanda e ficam excluídos do mercado formal,
obtendo acesso à habitação através do mercado informal ou das ocupações. Estas, por sua
vez, símbolo da luta popular contra a lógica do capital, são criminalizadas pelos agentes
capitalistas, que promovem as remoções, muitas vezes por meio da força policial.
Apesar do caráter progressista do texto legislativo, onde encontramos um grande rol
de direitos positivados e a previsão de instrumentos e diretrizes para que sejam garantidos, o
Brasil é historicamente regido por uma lógica patrimonialista em relação à propriedade da terra,
o que, aliado à uma órbita jurisdicional centrada na defesa da propriedade privada, pilar do
sistema capitalista, se manifesta como uma tendência à defesa da propriedade em detrimento
da posse. Diante disso, este trabalho propõe uma análise da atuação do poder público na
efetivação do direito à moradia à luz das normas existentes na legislação, nas esferas do
Executivo, do Legislativo e do Judiciário, por meio da investigação de casos de despejos e de
políticas públicas de moradia de interesse social realizados no estado do Rio de Janeiro no
contexto da pandemia da Covid-19, a fim de observar a efetividade das normativas frente à
cultura institucional brasileira de defesa da propriedade.
Para este estudo, analisaremos casos de ameaças de despejos e despejos
concretizados no estado do Rio de Janeiro, tanto por ação dos poderes executivos municipais
quanto por decisões judiciais, no período da pandemia da Covid-19 (de março de 2020 até o
momento atual). Nos debruçamos sobre os dados sistematizados pela Campanha Despejo
Zero no estado do Rio de Janeiro, em uma articulação entre pesquisa e extensão universitária
que se deu no bojo do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (NAJUP) Luiza
Mahin. Promovemos uma investigação qualitativa de quatro desses casos: por um lado, os dois
primeiros – das ocupações Vila Canaã e Novo Horizonte – relativos à tentativa de despejo. Por
outro, os dois casos em que o despejo foi realizado – nas ocupações do Campo de Refugiados
do 1º de Maio e do Catete. Procuramos observar a presença ou falta de observância dos
dispositivos do Estatuto da Cidade em tais casos. Além da análise desses casos emblemáticos
de ameaça e despejos, promovemos revisão bibliográfica e reflexão sobre os dados coletados
e sistematizados pela Campanha Despejo Zero.
No que concerne às tentativas de despejo, a análise processual da ocupação da Vila
Canaã, feita em agosto de 2018 por aproximadamente 120 famílias sem alternativa à moradia
digna que decidiram ocupar um terreno, há anos abandonado, perto da barreira do Vasco, no
bairro de São Cristóvão, revela como a argumentação da parte autora se ampara, de modo

2
geral, nas decisões da magistrada, que dá razão aos argumentos restritivos a noção
aprofundada de função social. A ocupação Novo Horizonte em Campos dos Goytacazes, região
norte fluminense, por sua vez, possui aproximadamente 700 famílias compostas
majoritariamente por mulheres negras, mães solo e desempregadas que no contexto da
pandemia, em 2021, ocuparam o conjunto habitacional Novo Horizonte. O despejo foi mantido
pela juíza federal de primeira instância mesmo após a decisão cautelar do Ministro Barroso. A
ordem de reintegração de posse só foi suspensa após o ajuizamento da Reclamação nº 47531
MC/RJ pela Defensoria Pública da União no Supremo Tribunal Federal (STF), pelo Ministro
Edson Fachin. (Reclamação nº 47531 MC/RJ-STF).
Acerca dos despejos concretizados, no Rio de Janeiro, foi determinado o despejo da
ocupação urbana Campo de Refugiados do 1º de Maio, no Município de Itaguaí na região
Metropolitana do Rio de Janeiro, composta por mais de 3.500 famílias, com a presença de
muitas mulheres como chefes de família, sem nenhuma garantia de alternativa habitacional. A
Ocupação do Catete, no mesmo viés, constituída por cerca de 20 famílias, teve seu despejo
decretado ainda em 2020. O imóvel era particular e estava abandonado sem cumprir nenhuma
função social. Além disso, durante o processo não foi devidamente considerado o argumento
de que se tratava de momento pandêmico e, portanto, de risco aos ocupantes. Os moradores
despejados não obtiveram nenhum amparo por parte das instituições responsáveis.
Por fim, constata-se que os direitos positivados sem políticas públicas efetivas e
voltadas para os sujeitos considerando suas realidades sociais são direitos inexistentes. Isto é,
os instrumentos legais apenas em conjunto às leis por si só são insuficientes. Na garantia de
direitos sociais, a organização coletiva é extremamente importante, apesar de também ser a
conduta política dos responsáveis pela organização e gestão do espaço urbano.6

REFERÊNCIAS

ACYPRETE, Rafael de. Ações de Reintegração de Posse contra o Movimento dos


Trabalhadores Sem Teto: dicotomia entre Propriedade e Direito à Moradia. (Dissertação
de Mestrado). Brasília, UnB, 2016.

BASSUL, José Roberto. Reforma urbana e Estatuto da Cidade. Pontificia Universidad


Católica de Chile: Redalyc, 2002.

BETINA, AHLERT; MOREIRA, KARINE LIMA; LELES, KASSYA LANUSE DE OLIVEIRA. “A


moradia e a Pandemia: Habitação no Contexto de Crise Sanitária de Covid-19”. Revista
Direitos, Trabalho e Política Social. Cuiabá: Editora, Vol 7., N. 12, jan/jun 2021, P. 20-40.

6
BASSUL, José Roberto. Reforma urbana e Estatuto da Cidade. Pontificia Universidad Católica de Chile:
Redalyc, 2002.
3
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

DESPEJO ZERO, Campanha. Balanço dos dados até fevereiro de 2022. Disponível em:
<https://uploads.strikinglycdn.com/files/ebb1e782-bb8b-47f9-82d2-
1e747cb2bfdf/S%C3%ADntese%20Despejo%20Zero%20fevereiro%202022%20-
%20final.pdf>. Acesso em: 30 de março de 2022.

KELLER, Rene José. Direito, Estado e Relações econômicas: a mercantilização jurídica


como forma de privatização do Direito à Cidade. In: Curso de Direito à Cidade: teoria e
prática / Enzo Bello, Rene José Keller (organizadores). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018

MILANO, G. B. Conflitos fundiários urbanos e Poder Judiciário. 1.ed. Curitiba: Íthala,


2017.

RIBEIRO, Tarcyla. CAFRUNE, Marcelo. Direito à moradia e pandemia: análise preliminar de


decisões judiciais sobre remoções e despejos. Revista Bras. de Direito Urbanístico. RBDU,
Belo Horizonte, ano 6, n.16, p.111.

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