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Defensor Público Federal. Diretor da Escola Nacional da Defensoria Pública da União (ENADPU). Mestre em
Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Bacharel em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Membro do Núcleo de Direitos Humanos (NDH) da
UNISINOS. Co-fundador do grupo DiversoS - Educação em Direitos Humanos. Editor da Revista das
Defensorias Públicas do MERCOSUL (REDPO). Membro convidado da Comissão Especial da Verdade sobre
a Escravidão Negra da OAB/RS. Tem experiência acadêmica e profissional na área do Direito, com foco e
interesse nas áreas: Direitos humanos, Pós-colonialismo, Descolonialidade, Direito Antidiscriminatório e
Acesso à justiça.
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Mestranda em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica de Chile (PUC-Chile) e Bacharel em Direito
pela UNISINOS, com estudos parciais realizados na Université Lumière de Lyon 2 (Lyon, França) pelo
período de um ano. Atua como estagiária no Centro de Estudios de Justicia de las Américas (CEJA),
organismo independente criado pela Assembleia da Organização dos Estados Americanos (OEA). Realizou
estágio na Defensoria Pública da União entre 2019-2020. Integrou os grupos de pesquisa BIOTECJUS e
JUSNANO na UNISINOS, que desenvolveram projetos relacionados à área de direitos humanos, bioética e
novos direitos.
detriment of indigenous people and the remnant communities of quilombos, preventing the
realization of the rights provided in international norms.
Key words: Human rights; indigenous and remnant communities of quilombos; coloniality;
discrimination; racism.
1. INTRODUÇÃO
que a colonialidade do poder ainda promove práticas desumanizantes em desfavor dos povos
indígenas e das comunidades remanescentes de quilombos, impedindo a concretização dos
direitos previstos pelos documentos internacionais.
A opção descolonial não contém em si uma nova definição de humano, apta a incluir
todos os grupos de pessoas (MIGNOLO, 2009, p. 22). Ela propõe uma reflexão no sentido de
que a teoria dominante dos direitos humanos foi estruturada e utilizada para legitimar
discursos de inferiorização de não-ocidentais, de forma a justificar a violação de direitos em
nome do projeto de expansão capitalista (MIGNOLO, 2009, p. 22). Em uma segunda etapa, o
giro descolonial representa a abertura e a liberdade de pensamento de outras formas de vida
(MIGNOLO, 2007, p. 29), as quais não são hierarquicamente inferiores ao modelo
eurocêntrico.
Ao negar a validade universal da concepção eurocêntrica de humano, Barreto (2015,
p. 27) apresenta a “descolonização epistêmica” como uma alternativa possível para
estabelecer uma nova comunicação intercultural, apta a legitimar trocas de experiências entre
conhecimentos locais.
Ao lado da descolonização epistêmica, avança paralelamente a noção de
desprendimento ou de-linking, que aponta no sentido de desvincular a esfera econômica dos
demais conhecimentos adquiridos por outras epistemologias (MIGNOLO, 2010, p. 17). Trata-
se de uma outra forma de abordar criticamente o conhecimento produzido pela matriz colonial
de poder, que universaliza o saber hegemônico e promove a crença em um único padrão
mundial, orientado pelos anseios do liberalismo.
O processo de desconstrução do paradigma eurocêntrico ao mesmo tempo cria
condições para um diálogo estratégico acerca da descolonização dos direitos humanos. No
que se refere ao sistema de justiça, a aproximação do direito com esse referencial teórico é
uma opção para restabelecer o seu fundamento ético, qual seja a consolidação de um Estado
Democrático.
Com razão Flores (2009, p. 98) quando, ao reconhecer que a concepção eurocêntrica
formou a base da ideologia jurídica e política hegemônica, refere que “conhecer é saber
interpretar o mundo”. Ao se posicionar criticamente em relação à Declaração Universal dos
Direitos Humanos, destaca o valor da interpretação como forma de resistência e criatividade
cultural. Defende a superação dos condicionamentos do leitor passivo, próprio do formalismo,
em prol de um leitor interativo, que considere os contextos reais de onde surgem os textos e
para quem são dirigidos (FLORES, 2009, p. 100).
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Os tratados e convenções internacionais, quando ratificados (aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional,
em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros), equivalem a emendas constitucionais, se
promulgados após a emenda constitucional nº 45 de 2004, ou adquirem status supralegal (BRASIL, 2008).
Nesse capítulo, revela-se os entraves à tutela e efetivação dos direitos humanos dos
povos indígenas e tribais no Brasil a partir de quatro casos exemplificativos, dois precedentes
dos Tribunais Regionais Federais da 3ª e 4 Região, e dois casos extrajudiciais mediados pela
Defensoria Pública da União (DPU). Identifica-se como a discriminação estrutural e histórica
contra as comunidades afrodescendentes e os povos indígenas se refletem nas ações ou
omissões do Estado brasileiro, não restando escolha a essas minorias senão buscar assistência
jurídica para garantir a tutela dos seus direitos.
Em 2015, a CIDH emitiu um informe sobre as obrigações estatais frente a atividades
de extração, exploração e desenvolvimento, considerando o forte impacto desses
“megaprojetos” sobre os povos indígenas e as comunidades remanescentes de quilombos. Sob
o prisma dos direitos humanos previstos em documentos internacionais, a CIDH concluiu que
os Estados, ao empreender obras públicas com as finalidades acima mencionadas, têm o dever
de:
A Resolução 44/2020 da CIDH (OEA, 2020) revela, contudo, que as diretrizes acima
elencadas não vêm sendo cumpridas, em especial no que se refere à situação do Quilombo
Rio dos Macacos. O mapa de conflitos envolvendo justiça ambiental e saúde no Brasil
(MAPA..., [2018?]) aponta que, inobstante comunidades remanescentes de quilombos
ocupem território tradicional em Simões Filho (BA) há cerca de 200 anos, as terras públicas
onde residem foram doadas pela Prefeitura Municipal de Salvador à Marinha na década de
1960. Desde então, esses povos vêm sendo vítimas de ameaças, intimidações e violência
constante por parte dos integrantes da Marinha, que obtêm o controle de quem entra e sai da
comunidade, além de dificultar ou, por vezes, impedir o acesso a serviços públicos básicos,
como a água potável e atendimento básico de saúde.5 (OEA, 2020). Conclui o relatório da
Resolução que:
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No relatório da CIDH aponta-se várias queixas realizadas no ano de 2011 aos órgãos estatais: “A modo de
exemplo, alegou-se que “pessoas da Comunidade foram presas sem justificativa e agredidas, seus direitos de ir
e vir foram cerceados, por terem sido impedidas de entrar e de sair. Crianças tiveram armas apontadas para
suas cabeças e têm sintomas de depressão. Mulheres grávidas foram impedidas de sair da comunidade para dar
à luz. Um bebê nasceu no barro, [...] outra mãe perdeu um bebê ao bater a cabeça no chão ao nascer. O acesso
de veículos foi impedido, incluso das ambulâncias. Uma casa de Candomblé6 teve que ser fechada porque
entravam no Terreiro e agrediam as pessoas [...]. Houve disparos contra a bacia de roupa de uma quilombola,
como forma de intimidação” (OEA, 2020, p. 4).
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Para ilustrar, vide a Instrução Normativa nº 09/2020 da FUNAI, que possibilita emissão da Declaração de
Reconhecimento de Limites (DRL) aos proprietários de imóveis rurais e possuidores privados, considerando
somente as Terras Indígenas homologadas, excluindo, por exemplo, as terras demarcadas fisicamente, com
portaria de restrição de uso, terras da União cedidas para usufruto indígena, e outros não homologados de
ocupação indígena, de modo a legitimar invasões (BRASIL, 2020a). Aponta-se também a Instrução Normativa
nº 08/2019 do IBAMA, que autoriza pedidos de licenciamento ambiental realizado por empresas, papel
anteriormente reservado a órgãos federais, e diretamente a órgãos estaduais e municipais (BRASIL, 2019).
decisões que reforçam a discriminação estrutural vivenciada por esses grupos étnicos,
consoante decisão prolatada:
A identidade dos povos tradicionais, que tem sua forma particular de viver afastada
da “sociedade civilizada”, depende da contingência estabelecida com as pessoas não
pertencentes a esses povos (BHABHA, 1998). Sob essa perspectiva, quando o indígena passa
a viver a vida destinada a “homens brancos” (com residência e labor na cidade) perderia sua
condição de indígena (BRASIL, 2020b). As dificuldades para o reconhecimento deste grupo
étnico são visualizadas, também, em casos extrajudiciais mediados pela Defensoria Pública da
União (BRASIL, 2018a). A FUNAI, a pretexto de evitar fraudes, impõe óbices à emissão de
certidão. que atesta a condição indígena desses povos, ao invés de empregar meios para
aproximar-se desses grupos, tolhendo-os de benefícios pensados às suas necessidades 7
(BRASIL, 2018a).
A criação de empecilhos sistemáticos à fruição dos seus direitos coloca os povos
tradicionais em um limbo jurídico: ora não são reconhecidos nas suas peculiaridades étnicas e
culturais e, sob o princípio da igualdade formal, não gozam da proteção especial do Estado, a
despeito da marginalização a que são submetidos (ironicamente, em razão das mesmas
peculiaridades que os distinguem); ora são reconhecidos como povos em situação de
vulnerabilidade e, no entanto, são forçados a viver sob resistência às constantes ameaças à
posse de suas terras, à manutenção das condições ambientais para sua subsistência e à sua
integridade física e mental ante a permanente insegurança gerada por conflitos fundiários.
Não poderia haver melhor descrição deste quadro que aquela pintada por Bhabha (1998, p.
75) “[...] o sujeito não pode ser apreendido sem a ausência ou invisibilidade que o constitui –
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Cita-se o caso de indígenas citadinos: pela legislação brasileira, toda pessoa indígena reconhecida pela
Fundação Nacional do Índio – FUNAI que trabalhe como artesão e utilize matéria-prima proveniente de
extrativismo vegetal é considerada segurada especial, e tem direito a benefícios previdenciários (aposentadoria,
seguro-maternidade, pensão por morte, dentre outros). A não obtenção de certidão que ateste sua condição
indígena impede a fruição destes benefícios (BRASIL, 2018a).
„pois ainda agora vocês olham, mas nunca me vêem‟ - de modo que o sujeito fala, e é visto,
de onde ele não está [...]”.
A discriminação estrutural reproduzida pelas instituições do Estado pode ser extraída
da leitura do inteiro teor de apelação cível da Caixa Econômica Federal e da União contra
decisão que declara a nulidade da desabilitação do projeto habitacional de Associação
Quilombola e obriga as apelantes a dispensar a exigência de oferecimento de garantia real
para essas comunidades (BRASIL, 2020c). O projeto de 50 unidades habitacionais
apresentado pela Comunidade foi habilitado e publicado pela Portaria 162/2018 do Ministério
das Cidades e, no entanto, foi desabilitado menos de dois meses depois. Isso ocorreu não pela
carência de requisitos de exigibilidade, e sim porque “[...] trata-se de proposta de comunidade
quilombola, considerando que a regra atual não contempla a proposta destinada a esse grupo
[...]” (BRASIL, 2020c, p. 5, grifo nosso).
O Relator do recurso, Desembargador Federal Rogério Favreto, qualificou a negativa
da contratação como injusta, desproporcional e ilegal, uma vez que “a proteção constitucional
conferida às terras quilombolas, situação de conhecimento público e notório de todos os
envolvidos na contratação, frisa-se, não pode ser empregado, neste momento, em prejuízo da
própria comunidade” (BRASIL, 2020c, p. 6, grifo do autor). Em resposta à alegada
imprescindibilidade de garantia real para integrar o Programa Minha Casa Minha Vida da
empresa pública, o Relator destaca o seguinte:
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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