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A psicoterapia em travessia:

o sofrimento, a criatividade e a esperança

Roberto Peres Veras

Resumo
A partir da inspiração em Fernando Pessoa, o artigo discorre a respeito de alguns aspectos da
condição humana, seus elementos paradoxais e como abordá-los na clínica, desdobrando-se
em algumas tarefas na relação terapêutica segundo a imagem do terapeuta como “barqueiro”
que auxilia o outro em sua travessia existencial e na busca da compreensão e aceitação do
fluxo da vida. São tratados temas como a abertura originária, o risco do fechamento frente ao
sofrimento e a impermanência. Também são abordados os sentidos e a função do sofrimento,
a criatividade e a arte como caminhos para lidar com o sofrimento. Observa-se o trabalho da
artista plástica Yayoi Kusuma sob estes aspectos. O amor e a esperança são reposicionados
com base na contribuição de Buber, Arendt e Stein, reverberando em mais uma tarefa do
terapeuta: cuidar e acompanhar a esperança na prática clínica.

Abstract
From the inspiration of Fernando Pessoa, the article talks about some aspects of the human
condition, its paradoxical elements and how to approach them in the clinic, unfolding some
tasks in the therapeutical relationship with the therapist’s image as a “boatman” that helps
the other in their existential journey and the pursuit of understanding and acceptance of the
flow of life. With topics such as the original opening, the risk of shutting off from suffering and
impermanence. It also addresses the meaning and purpose of suffering, and using creativity
and art as ways to deal with suffering. The work of artist Yayoi Kusuma is observed under these
aspects. Love and hope are repositioned based on Buber, Arendt and Stein’s contributions,
reverberating in another task for the therapist: caring and monitoring hope in clinical practice.

Palavras-chave Sofrimento. Impermanência. Criatividade. Esperança.

Key words Suffering. Impermanence. Creativity. Hope.

Este artigo teve como inspiração e pano de para o processo terapêutico: somos barqueiros,
fundo a poesia de Fernando Pessoa. O ponto estamos sempre realizando travessias. Também
de partida é uma imagem que encontrei no me recordo desta ideia nas aulas da Jean Clark
budismo e que é usada para ilustrar parte de Juliano no curso de formação em abordagem
seus ensinamentos, de seus fundamentos e de gestáltica no Sedes Sapientiae. Jean, uma
sua proposta: o budismo como um barco que das precursoras da Gestalt-terapia no Brasil,
permitirá ao praticante realizar uma travessia, citava o livro de Herman Hesse (1950), Sidarta,
atravessar o rio da vida, atravessar e superar para ilustrar a função da terapia e o papel do
o sofrimento e alcançar a outra margem, o terapeuta. Especificamente, se referia ao final
que permite redimensionar a compreensão da do livro, quando Sidarta, depois de toda sua
existência. busca pessoal, opta por trabalhar como balsei-
De uma maneira muito livre, própria e sem ro – particularmente prefiro o termo barqueiro
grande rigor, passei a transportar esta imagem – ajudando as pessoas na travessia do rio.

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Durante o curso de formação, esta metáfora me Esta também é uma das tarefas da terapia:
chamou a atenção, ao ponto de permitir acolher auxiliar o cliente a sustentar sua busca manten-
essa semente (me despertando o interesse pelo do a abertura originária nos momentos em que
tema), no entanto, não teve a força e o impacto o sofrimento e a dor podem favorecer fecha-
que vivi ao reencontrá-la muitos anos depois no mento, fixação e rigidez. Cabe lembrar que,
solo budista. como tudo na vida, o sofrimento também apre-
senta aspectos paradoxais, uma vez que em
Explorando um pouco mais o contato com
determinadas circunstâncias pode gerar fecha-
essa metáfora e o romance de Hesse (1950),
mento, mas, ao mesmo tempo, no sofrimento
podemos encontrar alguns aspectos impor-
também habita a possibilidade de se enxergar
tantes para refletirmos a respeito da condição
a poesia da vida, a capacidade de renovação
humana e, principalmente, sobre como abor-
e superação. Nesta perspectiva, o sofrimento
dá-la. Quando Sidarta reencontra o Barqueiro pode ter uma função iniciática. É por meio dele
após trilhar parte significativa de sua jornada que podemos alcançar um maior conhecimento
na busca pela verdade, pelo sentido último das de nós mesmos, nos lembra Rubens Alves em
coisas, poderíamos assim dizer, este o ensina seu livro Sobre o tempo e a eternaIdade (2002).
a compreender o fluxo do rio no qual navegam, Para o budismo, aquilo que nos fere, nos enve-
que em última instância é a metáfora da vida nena e gera sofrimento em algum momento
ou a compreensão do sentido ou dos senti- precisará se transformar no remédio que permi-
dos da vida. Resumidamente, Sidarta agora, tirá a cura, a superação desta situação.
após a integração de muitos elementos de sua
Trazendo um pouco deste tema para o
história na busca pela verdade, pelo sentido da
universo das artes, como pequena pausa para
vida a partir da negação do corpo e de toda
uma reflexão, podemos pensar que a poesia
corporeidade e a busca a partir da afirmação, a
e as artes como um todo são possibilidades
satisfação dos desejos, alcança o caminho do
de manter a memória do humano e esta ajuda
meio. Uma nova compreensão de si e da vida,
o ser humano a não adoecer. No entanto, a
uma união com o todo. Assim, se apropria de
arte também pode se tornar um facilitador e
sua vocação: ser barqueiro, auxiliar as pessoas
auxiliar no enfrentamento dos processos de
a realizarem a travessia do rio, auxiliá-las a
adoecimento, na medida em que auxilia o ser
compreender o sentido do rio da vida. Penso
humano a resgatar e não perder sua natureza, a
que esta imagem revela parte do nosso ofício busca pela beleza, pela verdade, pelo mistério.
como terapeutas, de acompanhar e auxiliar o Podemos pensar que a missão do escritor e dos
outro neste momento de travessia. Desta forma artistas em geral é emoldurar a dimensão do
é possível descobrir e compreender o fluxo da real; eles se tornam os guardiões da memória
vida, quando aprendemos a seguir, acompa- do humano, do ethos humano, a morada do
nhar e aceitar seu tempo e ritmo. humano. Assim, os artistas podem furar o véu
Sidarta (Hesse, 1950) nos presenteia com a do sonambulismo que a demanda do cotidiano
ideia de que procurar significa ter uma meta, no pode instalar facilmente em nossas existên-
entanto, o achar exige estar aberto, livre, abrir- cias, revelando novamente o brilho, a beleza e
-se a tudo sem ter meta alguma. Penso que esta poesia do existir.
é uma das tarefas e desafios do humano – após Parte do processo criativo, afirmam alguns
ser lançado ao mundo dentro da perspectiva autores como Gilberto Safra e Rubem Alves, é
Heidggeriana –; criar um projeto, criar senti- fruto do sofrimento. Desta forma, o ser humano
dos para sua existência e, ao mesmo tempo, cria a beleza também como um remédio para
manter-se aberto, uma vez que o ente humano seu adoecimento, como um alento para seu
é sempre abertura. O espírito humano e a vida medo da finitude (Alves, 2002). A morte de
são sempre imprevisíveis. Fernando Pessoa passa a ser o selo final de sua

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utopia, pois, com ela, Pessoa pode destinar sua acompanham desde a infância e que ela trans-
vida e seu sonho à humanidade. põe para suas esculturas, pinturas, instalações,
A história da artista plástica japonesa Yayoi filmes e tecidos. Segundo a artista, desenvol-
Kusuma também exemplifica esta perspecti- ver sua criatividade foi sua cura, ao transformar
va. Ela é uma das artistas mais importantes da suas alucinações e obsessões em arte. Criando
Ásia do pós-guerra. Seus trabalhos estabele- a partir de seu transtorno, conseguiu construir
cem relações com os movimentos surrealista e sua identidade visual, que se mantém até hoje.
minimalista, com a arte pop e o feminismo. Sua Suas alucinações começaram aos onze anos
criação é marcada por motivos repetitivos circu- de idade e a partir destas vivências ela inicia
lares – as bolinhas – em um uso compulsivo, todo um processo criativo no qual materializa
que remetem às suas alucinações visuais, que a suas experiências vividas.

O trabalho de Yayoi se revela como um esferas de aço inoxidável que flutuam sob
significativo ajustamento criativo, é ao mesmo um espelho d’água e que criam formas de
tempo a expressão de seu mundo e funciona acordo com o vento e outros fatores externos,
como um caminho para evitar seus sentimen- como, por exemplo, a intervenção do próprio
tos de morte, sua autodestruição, seu risco de visitante, refletindo a paisagem da água,
suicídio. Para ela, sua fonte de inspiração são o da vegetação, do céu e também do próprio
universo, a humanidade, suas ilusões e sonhos, expectador, criando “um tapete cinético”, nas
mas também os seus conflitos mentais, resul- palavras da artista. Esta obra é a expressão da
tando em sua exuberante criatividade. própria impermanência e da impossibilidade
da precisão na medida em que está em uma
A sua obra Narcissus Garden, de 1966,
constante transformação em função do movi-
criada em função da exposição de Veneza,
mento dos elementos da natureza.
teve várias versões para exposições e espaços
abertos e em 2009 chegou ao Instituto Inhotim A busca incessante pelo infinito como um tema
em Minas Gerais. O aspecto que gostaria de recorrente na obra de Yayoi, nos ajuda a desta-
destacar desta obra, que consiste em 500 car que é por meio do poético, nas artes como

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um todo, que alcançamos o registro do eterno, O livro Memórias de um amigo imaginário
aquele instante mágico que tanto almejamos, o (Dicks, 2012), no qual Budo, o amigo imagi-
momento que a eternidade cola na realidade, e nário de Max, narra a história do próprio Max,
aí só nos resta silenciar e contemplar, pois estes um garoto com muitas dificuldades relacionais,
eventos se tornam eternidade (Veras, 2005). apresenta algumas situações que podem ilus-
Entretanto, também não podemos nos esquecer trar parte destes elementos de aprisionamento
que o ser humano pode trazer o eterno em cada no caso do Max:
experiência vivida, como o Zen-Budismo muito Max só pode tomar café da manhã até as nove horas. Depois
bem preconiza. Isto se dá sempre que conse- das nove, ele tem que esperar até o meio-dia para almoçar.
guimos viver o cotidiano com total presença e Essa é uma regra do Max. Não tem nada a ver com a mãe dele.
inteireza. Podemos também nestes momentos [...] Ele também não toma café da manhã de pijama. Essa é
desvelar o poético no cotidiano, o extraordinário também uma regra imposta pelo próprio Max. (p. 74).
no ordinário, o infinito no finito. Max gosta da casa de panquecas, um dos seus quatro restauran-
A vida para o Budismo é impermanente, tudo tes favoritos. Ele só come fora se for para ir a um destes quatro
está em constante movimento, no qual nada restaurantes. [...] Se Max vai a um restaurante diferente, ele não
permanece. Dessa forma, viver é preciso, no consegue comer. Às vezes, até trava. É difícil explicar por quê. Para
Max, as panquecas da “casa das panquecas” [...] são panquecas,
entanto, a vida não apresenta a precisão que
mas as do restaurante do outro lado da rua não são realmen-
procuramos. Nós, seres humanos na precariedade
te panquecas. Mesmo que pareçam e provavelmente tenham
do nosso existir, transitamos e nos equilibramos o mesmo gosto das outras panquecas, elas são um alimento
entre o ser e o não ser, mas sonhamos com a completamente diferente para ele. Max vai dizer que as panque-
precisão, a permanência, com as garantias e cas do restaurante do outro lado da rua são panquecas, mas não
certezas de que ealizaremos nossos projetos, são as panquecas dele. [...] é algo difícil de explicar. (p. 56).
nossos sonhos e potencialidades. Encontramos
Novos ventos propiciam o restabelecimento
dificuldade em perceber que na imprecisão, na
da mobilidade ao permitir um olhar diferen-
precariedade e desamparo, incertezas e agruras
te para a mesma situação e, assim, uma nova
de nosso existir, somos convidados a usar o
compreensão, resgatando a possibilidade de
melhor que há em nós: nossa capacidade de criar
voltar a dançar, criar, acreditar, sonhar e confiar.
– a criatividade é filha da perplexidade. Uma das
marcas do humano é, nos momentos de espanto É importante ressaltar que, quando estamos
quando vida nos surpreende, surgir espaço para falando da condição humana, transitamos
a criatividade, ajustamentos criativos e, assim, entre paradoxos. Buscamos o reconhecimen-
a descoberta de novas possibilidades existen- to como indivíduos e ao mesmo tempo como
ciais. A todo instante e na imprevisibilidade da seres humanos semelhantes aos demais.
vida somos desafiados a nos tornar os artistas Temos a tarefa de constituir nossa singularida-
de nossas existências. de sem perder a pluralidade do humano, nos
movimentamos entre o singular e o universal,
O empobrecimento ou a perda da capa-
o coletivo e o pessoal. Precisamos lidar com a
cidade de ajustamento criativo se reflete na
materialidade de nossas vidas e também com
impossibilidade de gestos e ações significati-
os anseios da espiritualidade. Temos os pés
vas no mundo, impedindo a realização do novo:
na terra e ao mesmo tempo sonhamos com os
é a criação aprisionada ao próprio corpo que só
céus. A marca da nossa condição é a finitude,
consegue criar no corpo, criando assim sinto-
no entanto, ansiamos pelo infinito em nossos
mas. Na terapia podemos ajudar o cliente a
sonhos, ideias e utopias. Somos todos mortais
fazer do seu caminhar uma dança e de sua fala,
flertando com a imortalidade. Somos seres
poesia, resgatando a poética da existência, ou
ordinários, almejando o extraordinário.
seja, na paralização e no aprisionamento em si
mesmo faz-se necessário o restabelecimento O desafio em relação a estes aspectos para-
do movimento, de novos ares. doxais é que cada ser humano tem a tarefa de

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construir à sua maneira a integração destes humanidade, assim descobrimos que somos
elementos. Lembrando do “ponto zero” propos- participantes dessa comunidade denominada
to pela Gestalt-terapia, não estamos falando comunidade humana. Num mundo que anda
de uma integração ideal, nem um ponto zero tão fora dos eixos, que perdeu seus laços com a
absoluto, mas sim do equilíbrio e da integração tradição e que caminha tão desumano, resgatar
possível que cada pessoa poderá realizar. esta perspectiva torna-se um aspecto funda-
Quando perdemos nossa possibilidade de mental. Alguns autores, como Safra (2009) e
nos autorregular de maneira funcional, quando Winnicott (2005), nomeiam este movimento “o
perdemos nossa possibilidade de transcendên- crescer para baixo”, a saída de si para se tornar
cia, de sempre ir além, de viajantes em nossa presença para o outro, a saída de uma perspec-
própria existência, estas facetas de nosso ser tiva individualista e utilitarista para a sustentação
podem se dar a partir do fechamento e não de projetos comuns, um sonho comum, a relação
mais a partir da abertura. entre as pessoas, a convivência. Como tão bem
nos ilustra Abreu (2014), “um amigo me chamou
Segundo Stein, como citado por Safra para cuidar da dor dele, guardei a minha no
(2010), podemos encontrar três funções trans- bolso. E Fui” (p. 55). A partir desta perspectiva,
cendentes no acontecer humano: o conhecer, ser amado é ser visto como um outro que precisa
que é sair de si em direção aos outros; o querer, ser cuidado e aí abre-se espaço para o ético,
que é ansiar por um bem; e o sentir, que é para os valores universais da vida. Aqui falo da
apreender algo para si. Para a autora, o estrei- ética do ser, de uma ética que não é aprendida
tamento existencial e o risco de adoecimento por regras de comportamento, mas que emerge
humano se dá a partir da obturação de uma do percurso do acontecer humano numa exis-
dessas funções. O fechamento para o outro e o tência compartilhada, como nos lembra Frasão
mundo, o fechamento para o sonhar e o pros- (2004). Logo, um amor que consiga alcançar sua
pectar e o fechamento para si mesmo, a fuga amplidão permite amar pelo que foi, pelo que é e
das emoções e dos sentimentos. pelo que poderá vir a ser.
Pensando no desenvolvimento da huma- Para refletir a respeito da esperança, vou
nidade, a utopia do humano que Fernando recorrer a duas pensadoras. Para Stein (2002,
Pessoa nos apresenta em sua poesia, gostaria citado por Safra, 2003), esperança é o que nos
de destacar dois outros aspectos da condição mantém caminhante em nossa jornada, está
humana que podem ser reposicionados: o amor ligada às nossas buscas, o que nos mantém em
e a esperança. movimento, o estar em direção a alguma coisa.
O ponto de partida com relação ao amor é Para a pensadora, a esperança é outorgada,
não vê-lo só como sentimento, mas sim como mas pode ser perdida. Vem com o humano.
um gesto ontológico. Buber (2010) nos lembra Nascemos esperançosos, contudo, durante a
que o homem habita em seu amor. O amor é a jornada ela poderá ser desconstituída, e nestes
morada do humano, o amor é ação, é cuidado, casos precisará de muito cuidado, atenção e
é sair de si para o outro e escapar do vértice presença humana no seu resgate.
do eu para alcançar o vértice do nós, o reco- Para Arendt (2001, 2011), toda vez que uma
nhecimento que só existe o eu do Eu-Tu, que criança chega ao mundo, a esperança se inicia,
se desvela em gesto, cuidado pelo outro, amor pois, com a chegada do novo e seu potencial
pelo outro, mas não só, o outro, todos os outros,
renovador, surge a possibilidade de respos-
todos os seres, todo o planeta, uma genuína
tas às grandes questões que coparticipam do
perspectiva holística e ecológica.
destino humano. Quando uma criança nasce,
Parte da tarefa do humano é não apenas o mundo já está estabelecido, porém, com seu
aprender a cuidar de si, mas aprender a cuidar nascimento o mundo se inicia tanto para ela
do outro, dos outros. Nisto consiste nossa como para a comunidade humana, desta forma

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nossa esperança está sempre se renovando a experiência vivida que com o passar do tempo
cada geração que aporta. A partir desta condi- permitirá a entrega para ser cuidado.
ção existencial, decorre o potencial de liberdade
A esperança, por sua vez, como menciona-
do ser humano, ou seja, a capacidade de do anteriormente, já é dada, assim, parte do
iniciar algo inesperado. Cada ser humano que trabalho terapêutico, entre outros aspectos, se
chega é sempre uma novidade para o mundo mantém pela esperança. É por meio do proces-
e justamente por isso, a princípio, é capaz de so de fechamento de situações inacabadas de
transformá-lo, iniciando algo novo. ressignificação e integração que abrimos espaço
Nas palavras de (Arendt, 2011), “No nasci- para o novo e com ele renovamos a esperança,
mento de cada homem esse começo inicial é que nos mantém caminhantes. Este movimen-
reafirmado, pois em cada caso vem ao mundo to permite ao terapeuta, junto com o cliente,
já existente alguma coisa nova que continuará a sustentar a possibilidade do devir, daquilo que
existir depois da morte de cada indivíduo”. Em o cliente ainda não é, mas que poderá vir a ser.
todas as utopias parece natural o início de um A esperança abre espaço para a busca de
novo mundo com aqueles novos por nascimen- si mesmo, para a criação, o resgate da singu-
to e por natureza. Para a autora, a liberdade laridade, a utopia do humano. Podemos ser
depende, portanto, da singularidade de cada seres mais harmônicos com nós mesmos, com
pessoa, e os novos num futuro próximo, com o outro, com a natureza.
seu dom de liberdade, terão condições de
O terapeuta, na metáfora do “barqueiro”, preci-
renovar o mundo e a humanidade que herda-
sará ser um homem de fé, confiança e esperança.
ram. Parafraseando Arendt (2011), a essência da
Fé, confiança e esperança na potencialidade do
renovação é a natalidade. Assim, cabe a todos
humano, na capacidade de autorregulação do
nós a tarefa e o cuidado de apresentarmos e,
organismo, num centro organizador do psiquis-
ao mesmo tempo, de como apresentamos o
mo, na capacidade de criação e inovação.
mundo às novas gerações, para que, a partir
do desenvolvimento de suas singularidades na Para sustentar estes três elementos e permi-
pluralidade do mundo, consigam realizar seu tir a constante autoatualização de sua crença,
potencial criador e renovador. precisará estar sempre em movimento, nave-
gando por novos mares.
A esperança passa a ser um elemento
importante quando retomamos nosso ponto
de partida e pensamos a prática clínica como
travessia. Pois, na relação terapêutica, é da
costura entre a confiança e a esperança que
Referências Bibliográficas
surgirá a possibilidade do cliente acreditar, criar
coragem, correr o risco e se lançar na nova Abreu, C. F. (2014). Pequenas epifanias (4a ed.). Rio
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tecer um trabalho a dois. Portanto, é dessa Centauro.
tessitura que nasce essa possibilidade. Neste Dicks, M. (2012). Memórias de um amigo imaginário.
sentido, a confiança é constituída de uma São Paulo: Moderna.

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Frasão, L. M. (2004, agosto). Ser ético para um fazer
Sobre o autor
ético. Artigo apresentado na Conferência de Abertura
da 4ª Jornada de Temas em Gestalt-terapia: Fazendo
e Acontecendo, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 27 e 28. Roberto Peres Veras
Hesse, H. (1950). Sidarta (20a ed.). Rio de Janeiro: Psicólogo Clínico, mestre em Psicologia
Record. Clínica pela PUC-SP, possui especializa-
Safra, G. (2003). Ser finito e ser eterno: a contribui- ção em Gestalt-terapia pelo Instituto Sedes
ção da fenomenologia para clínica contemporânea Sapientiae. Professor/supervisor clínico na
[DVD]. São Paulo: Sobornost. UNISA – Universidade de Santo Amaro; profes-
Safra, G. (2009). A clínica na relação conjugal: co- sor colaborador do IGSP – Instituto de Gestalt
munidade e alteridade. Profoco – Programa de edu- de São Paulo; professor convidado do depar-
cação continuada [DVD]. São Paulo: Sobornost. tamento de Gestalt-terapia do Instituto Sedes
Safra, G. (2010). Topografias da interioridade. Profo- Sapientiae; professor convidado do curso
co – Programa de formação continuada – Módulo 11 de especialização da Escola Paranaense de
[DVD]. São Paulo: Sobornost.
Gestalt-Terapia; professor convidado do IATES
Veras, R. P. (2005). Iluminação, diálogos entre a Ges- – Instituto de Aconselhamento e Terapia do
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Winnicott, D. W. (2005). Privação e delinquência.
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