Você está na página 1de 20

'.

^
•' »•«.,v
i.

Artigos traduzidos de "Psychanalyse & Psychothérapie".


La Cause Freudienne, Revue de Psychanalyse, n° 22:
Psychothérapie et psychanalyse (J.-A. Miller)
Éthiqus et thérapie en psychanalyse (E. Berenguer el al.)
Symptômes de la civilisation (L. Mahjoub)
Notice sur la guerison dans lês écrits techniques de Freud (F. Kaltenback)
"Cambio psíquico" versus ewe analytique (L. Solano)
Le lien social (A. di Ciaccla)
La place_gue lê névrosé laisse à 1'analyste (C. Gallano)
j-il analyser Ie transferi? (S. Cottet)
~^:S2^—— L'intraitable (C. Soler)
(ensonge et 1'analyste (P. Naveau)
'^HSS^ZZZÏZ1 e L'Scole de la Cause Freudienne, 1992

'" ï Capa: Fernando Cornacchia


|ReO-:4^^A—....- l Foto: Rennato Testa
~Cqpídesque: Monica Saddy Martins
ln fz j.v/ji^. ._„ Rev^ão: Ana Elisa de Arruda Penteado
SUMÁRIO
If, c:::: ^ë^ ^O-ttó^.^.-- •^L
IN^JÍÜ/OO . .„„._I
R.$__ J3i OQ . ^^^lâá&Ínteâstionais de Catalogas PARTE I — INTERSEÇÃO E DIFERENÇAS
(Cânfcra Brasileira do Livro, SP, BrasilL
:.^ icoterapia / Jorge Forbes (org.) " Campinas, SP :
R
^ Ll.
((joleção Biblioteca Freudiana) y PSICOTERAPIA E PSICANÁLISE ^ 9
Vários autores. Jacqaes-Alain Miller
J^Ï ISBN 85-308-0446-5 2. RESPOSTAS AO SABER SUPOSTO 21
1. Psicanálise 2. Psicoterapia !. Forbes, Jorge, 1951- II. Série.
Carlos Augusto Nícéds
^:
3. ÉTICA E TERAPIA EM PSICANÁLISE 29
t E. Berenguer, L. D'Angelo, E. Kuffer,
97-0582 CDD-150.igS
indices para catálogo sistemático:
1. Psicanálise : Teorias : Psicologia 150.195
( V. Palomera, E. Paskevan, J. Salinas
4. O LAÇO SOCIAL 65
2. PsÍcoterapia psicanalítica 150.195 Antonio Dí Ciaccia
5. SINTOMAS DA CIVILIZAÇÃO 75
Lilia Mahjoub Trobas
Universidade Estadual de Londrina i -f 6. O MAIS-ALÉM DO TERAPÊUTICO NA PSICANÁLISE:
Sistema de Bibliotecas LACAN E FERENCZI 85
Jesus Santiago
7. NOTA SOBRE A CURA NOS ESCRITOS
TÉCNICOS DE FREUD 101
0000124806
Franz Kaltenbeck
DIREITOS RESERVADOS PARAA LÍNGUA PORTUGUESA: 8. O INTRATÁVEL 107
© h4.R. Cornacchia Livraria e Editora Ltda. — Papirus Editora Colette Soler
Matriz- F: (019) 231-3534 8231-3500 - C.P. 736 - CEP 13001-970 f

'y Campinas — Filial - F: (011) 570-2877 - São Paulo - Brasil.


l
Proibida a reprodução total ou parcial. Editora afiliada à ABDR.

-<-, ..i^*-
• -•J'--' ,-•-
JL ^ ^
y
>

kl^

^.
/
/ /
^ ^
/' ^1' 3
t'
ÉTICA E TERAPIA EM PSICANÁLISE

E. Berengii.er, L. D'Angelo, E. Kaffer,


V. Palomera^E. Paskevan, J. Salinas
A regulação da prática psicanalítica está no centro do debate
~~-,
na atualidade política europeia. Em certos países, como a Itália, o
Estado controla, sob o nome de "psicoterapias", um certo número
de práticas e tende a confundir a psicanálise com elas. Ora, esse
termo supõe uma concepção de no que devem consistir os fins de
^
uma prática e os meios fornecidos a esses fins. A terapia, a cura é
o fim da psicanálise?
Responder simplesmente sim ou não a essa questão, seni
definir os termos do debate, não faria sentido. É evidente que a
terapêutica não é estrangeira à psicanálise, mas seu estatuto preciso
deverá ser determinado com base no campo de sua experiência.
Além disso, a resposta a essa questão desenvolveu-se ao longo da
história da psicanálise, desde sua origem até nossos dias, por meio
!
dos avatares de sua transmissão.
A história do movimento psicanalítico ilustra, particularmen-
te com base no debate sobre a psicanálise laica ou "profana",
4
/
Tradução de Maria Lúcia F. Homem.
l. S. Freud, La question de V analyse profane (1926). Paris: Gallimard, 1985.

fr
29
fc
como Freud não pôde inipedir os médicos norte-amerL-anos for- considerar como um bem para o sujeito. Isso comporta riscos: de
mados pela psicanálise de impor em seus institutos oficiais o tf'
monopólio da terapêutica pela segregação dos não-médicos. Com um lado, porque toda discussão sobre a natureza de tal bem se
base nas particularidades nacionais, e depois dessa derrota, Freud encontra eludida assim como — e isso é o mais importante — toda
teve de optar por um laisser-faire. Ora, a questão não era nada consideração adequada sobre a relação do sujeito com esse bem;
menos do que a definição do psicanalista. Se, até então, era e, de outro lado, porque esse ideal terapêutico implica ter como
psicanalista aquele que simplesmente praticava a psicanálise, a único critério a existência de umstatoma ou suas modificações. O
partir dessa data, esse estado de fato foi contestado. Nessa conje- sintoma pode ser, de fato, o único parâmetro a se levar em conta?
tura, entretanto, Freud jamais deixa de afirmar sua posição doutri- Tudo o que vai.çontra ç sintoma situa-se definitivamente do lado
nal, insistindo sobre a irredutibilidade da psicanálise à terapêutica. do discurso do mestre: a todo apelo — praticamente, sempre vão
Vários anos se passaram desde então. Dez anos depois da — a um "isto deve funcionar" irá responder, do lado do sujeito
dissolução da Escola Freudiana de Paris, fundada por Jacques ";
neurótico, tudo o que poderá se erigir como obstáculo contra o
Lacan,' a questão da definição da prática psicanalítica em relação que resulta das categorias do útil e do funcional.
aos outros discursos côloca-se novamente. Como definir o psica-
nalista? Essa questão é o único ponto verídico da discussão atual, Freud questionou a pertinência, para a psicanálise, dos
que se situa num cruzamento: tempo da fundação da Escola termos que definem o campo da medicina. Isso não se limita à
m Europeia de Psicanálise de um lado e, de outro, momento de um questão da independência da psicanálise, mas afeta a própria
verdadeiro "empurra-à-regulamentação"* da especificidade profis- concepção do terapêutico, de sua especificidade e de seus limites
sional da psicanálise. no campo freudiano. A partir de um certo momento, é impossível
Para os psicanalistas, não se trata apenas de uma questão de encontrar nos escritos de Freud uma referência ao terapêutico que
regulação das práticas, mas de debater a própria concepção de sua não tenha em contrapartida a ideia de seus limites e de seus riscos,
tarefa; convém também levar em conta a influência massiva de uma assim como uma referência à investigação psicanalítica ou alguma
ideoLQgi^aecfcutilitarista — consequência social do discurso da ciência menção, mais ou menos evidente, da própria causa analítica. Na
— que tende a confundir QS fms com os resultados. Os pressupostos reposta que elaboramos para articular essa posição particular da
éticos escondem-se frequentemente sob o invólucro enganador do I psicanálise entre terapia e ética., partimos da ideia de que se trata
common sense regido pela moral do uso, que é, mais do que em outros de termos que não podemos considerar separadamente. Podemos
domínios, moeda corrente nas ciências ditas humanas. afirmar, nesse sentido, que não.háelínica sem ética.
A obra de Freud segue passo a passo as consequências da
Terapia ou ética?
experiência. Podemos verificar a passagem da posição do médico
à do psicanalista. E podemos até sublinhar, nessa perspectiva, o
que foi, desde a origem, a singularidade do desejo de Freud, único
Assim, a promoção de um ideal terapêutico recobre uma 9,
a poder autenticar a descoberta de uma nova realidade que ele
ética no sentido de que esse ideafdefíne o que se deveria nomeou o inconsciente. Se podemos deduzir da doutrina de Freud
algo de seu desejo, podemos defini-lo como ujo^ê^jiojle cyrar?_
2. A Escola Freudiana de Paris foi dissolvida em 1981. Cf. Almanach de la dissolution. .4 <
Bibliothèque dês Analytica. Paris: Navarin, 1986.
• No original, pousse-à-la-réglementatíon. (N.T.)
Lacan mostra a vertente ética do programa freudiano do
primeiro ao último texto. Desse conjunto, alguns escritos são tradicio-
ji
30
31
r

(
nalmente excluídos por uma suposta ortodoxia, alguns cor siderados de seus efeitos. Situar a psicanálise entre as práticas supõe, por
pré-analíticos — caso de "Entwurf — e outros, especulaüvos — outro lado, que ela se separe de outras disciplinas; estas, protegidas
"Além do princípio do prazer", por exemplo. Sublinhemos também por uma suposta objetividade inspirada pela ciência, como é o caso
que Lacan não se liniita às referências já explícitas de Freud à ética de diferentes ramos da psicologia, evitam todo questionamento dos
ou à moral. Ele acentua, ao contrário, um aspecto essencial e princípios e dos fins de sua ação. Pelo contrário, a_â£ao do
intrínseco ao programa freudiano em seu conjunto. psicanalista só se sustenta se submetendo aos fundamentos da
IÏ psicanálise como elemento suplementar do dispositivo analítico.
Claro, alguns conceitos explicitam por si mesmos seu sentido
^Í£D: o desejo, o supereu, a culpa, o ideal, o prazer, o amor7"5~ôdio,
a superestimação, o rebaucamento, o recalque, a denegação. Para
outros conceitos incluídos por Lacan nesse catálogo, isso é menos Não há clínica sem ética
imediato: a Coisa, a pulsão, o fantasma. Se sublinhamos o conteúdo
ético dos conceitos, é porque a questão que nos ocupa não é Dizer que "não há clínica sem ética" iniplica situar, em toda
genérica: não se trata de uma série de preceitos morais que estrutura clínica, o problema da escolha sempre forçada em relação
poderíamos "aplicar" como um código de deontologia. De fato, à lei e ao desejo. Assim, não se trata tanto de substituir a técnica pela
toda abordagem deontológica supõe um ponto de vista exterior à
disciplina à qual ela se aplica. Isso é uma particularidade da ciência j ética, mas de intrpçluzir a ética como meio de despsicologizar a
que não comporta consideração de ordem ética em si mesma, pois psicanálise. Quando os problemas do desejo, do fantasma e da pulsão
fundada, por princípio, sobre a exclusão do sujeito. È por essa são tratados com os da lei e do bem, a experiência subjeüva pode ser
razão que não é a ciência, mas o científico, que introduz um debate esclarecida. Assini, não nos surpreenderemos ao encontrar em Lacan
sobre os limites que a aplicação técnica do saber científico deve expressões como, por exemplo, "preguiça moral", aplicada à neurose,
encontrar. Quanto à psicanálise, se seus conceitos fundamentais I ou ainda "o louco é o homem livre", verdadeiro axioma da experiência
comportam uma dimensão ética, é pela própria natureza do campo í psicanalíüca da. psicose. Se esta última expressão pode provocar escân-
—da.SSp.erien.ç-iâ da. qual se trata. Uma frase de Lacan condensa'esse dalo, é porque não temos o hábito de considerar o psicóüco como um
^ princípio que rege o campo freudiano: o estatuto que convém ao sujeito moral e responsável, um sujeito de direito, e essa atitude se reflete
inconsciente não é ôntico, mas ético. em nossa ordem jurídica, em que a loucura é considerada uma causa de
Opor terapia e ética não implica, no entanto, que nos incapacidade ou interdição. Na apresentação da tradução francesa das
distanciamos de toda consideração terapêutica, nem que converte- Memórias do Presidente Schreber, Jacques Lacan enuncia a propósito da
mos a psicanálise em um sistema ético-füosófico, mesmo se suas psicose: "O que quer dizer não considerar o louco em termos de déficit
consequências vão bastante além dos limites definidos pelo dispo- e de dissociação das funções."
sitivo analítico. A_£sicanálise é ,yma prática e, como tal, não pode Não observamos, de tanto repetir, que um texto tão manifes-
excluir de seu propósito a questão de seus fins, de seus meios e lamente técnico quanto a "Intervenção sobre a transferência" é

3. "Entumrf, título alemão frequentemente utilizado por Lacan no Seminário WJr para 5. Essa apresentação, feita por Lacan, das Memórias de um nevropata [D.P. Schreber,
designar o texto de Freud intitulado: "De 1'esquisse d'une psychologic scientifique", Mémoires d'un névrcpathe (1930). Paris: Seuü, 1975. (N.T.)] foi publicada em francês
editado no anexo de Naissance de la psycbanalyse. Paris: PUF, 1956. nos Cahierspour 1'Analyse 5 (novembro-dezembro de 1966), trabalhos do Círculo de
^ 4. S. Freud, "Au-delà du principe du plaisir" (1920). Em: Essais de psychanalyse. Paris: Epistemologia da ENS, Paris. A citação figura na p. 70.
Petite Bibliothèque Payot, 1981.
\
».
32 33
centrado sobre o problema da escolha subjetiva de Dora?6 Diante certo altruísmo feroz que conduz ao sacrifício inútil; na neurose
da posição de vítima na qual ela se apoia, Freud intervém firme- obsessiva, ele pode denunciar o egoísmo e a fobia do desejo do
mente para implicá-la na desordem do mundo da qual ela se Outro; e enfim, na psicose, a relaçïo do psicótico com a impostura
J queixa. Lacan qualificará essa operação de "retificação subjetiva . paterna; para Joyce, poderíamos acrescentar a ausência de fraque-

«t Quando Freud mostra a Dora a parte que lhe cabe na confusão que
ela denuncia, não é uma forma de,torna-la responsável por seu
fantasma? Se não agisse assim, a psicanálise levaria a uma espécie
za na sua relação com a linguagem. Lacan relaciona essa atitude
com a possibilidade de criação, central no tratamento das psicoses.
É ainda mais necessário sublinhar esses pontos na medida em que
de paranóia na qual p sujeito seria sempre vítima do significante a tradição psicologizante da IPA promove em sua clínica termos
8 do Ojjtro. A áiaïética visa, aqui, a responsabilidade ética do sujeito, como "coragem", "motivação", "mentira", cujo sentido só podemos
e a ética aparece como um freio à tendência ao delírio de situar no que ousaríamos chamar umamQra.ldoÊu(n?.oí).
^ interpretação. Essa "localização" subjetiva é, assim, um ato ético do
^:i analista, e não uma simples investigação que visa descobrir o
Se não há clínica sem ética, se o psicanalista orienta-se pelas
mesmas leis que governam o_camgo desyaexgeriência e se sua
sujeito. Trata-se, na verdade, de operar uma mudança: transformar responsabilidade está engajada na sua ação, então, não deuca de
a pessoa que vem nos consultar em um sujeito, em alguém que se ter consequência sobre os dispositivos que os psicanalistas criem
refere ao que diz, ao mesmo tempo que mantém uma certa para dar uma garantia a sua prática. O problema da garantia é,
t
distância relativa a seu dito.
assim, essencial e naa-po.de-se^resolyer cpm uma formação
Encontramos considerações de mesma ordem no "Homem dos universitária. Por isso, a questão "por que uma escola de psicaná-
ratos", especialmente na relação que o paciente mantém com seus lise?" é essencialmente ética.
superiores hierárquicos. Em nenhum momento, Freud se engaja em
interpretações que fariam deles representantes do pai. Ele indica, de
fato, a fraqueza moral de seu paciente. Isso coincide, aliás, com o que Uma ética freudiana
este pode dizer, isto é, que há muitas coisas que ele não faz"— não
•I
i1
são inibições, no sentido técnico do termo —, se bem que ele saiba
exatamente o que deve fazer, reconhecendo então que as raízes de
Não podemos limitar o exame da dimensão ética da desco-
berta de Freud às únicas partes de sua obra nas quais há referência
seu conflito se encontram no universo moral.
m explícita aos princípios, aos fins e aos limites da ação do psicana-
Essas considerações não implicam que devemos traduzir lista. Trata-se de examinar as ÇQnseqüênçias da descoberta do
sistematicamente conceitos analíticos em termos éticos, mas que inconsciente e da natureza do conflito que ele revela.
isso deveria se impor a nós cada vez que se tratar de posição Efeüvamente, todo o percurso de Freud, durante quatro déca-
subjetiva e de estrutura clínica. É também o que Lacan desenvolve das, gravita em torno da ideia de um conflito fundamental cujo caráter
quanto à perversão do Marquês de Sade, sublinhando nele um irredutível se afirma com cada vez mais intensidade, em particular a
"kantismo" inconsciente; para a ~^»--_^
^iSfëïí^a, ele pode falar de um parür da virada dos anos 20. Nesse momento, torna-se manifesto que
a maioria dos que até então tinham seguido seus ensinamentos não
6. J. Lacan, "Intervention sur lê transfert" (1951). Em: Écrits. Paris: SeuÜ, 1966. estão prontos a assumir todas as suas consequências. A despeito dos
7. S. Freud, "L"Homme aux rats" (1909). Em: Cinq psychanalyses. Paris: PUF, 1954.
8. J. Lacan, "Kant avec Sade". Em: Écrits, op.cit. diferentes tempos de ajustamento da noção de conflito radical, Lacan
i
34 35

^
pôde demonstrar que ela está mipressa na própria "strutura do ^ytSL E desse ponto de vista que Lacan retoma o conceito
aparelho psíquico freudiano. O conflito não pode, então, ser consi- freudiano de defesa, a fim de mostrar como seu valor foi deslocado
derado contmgente. É ponto de partida e não resultado de uma na literatura analítica posterior a Freud.
elaboração. As diferentes etapas da teoria são tanto formalizações No primeiro capítulo do Seminário WI, A ética dapsicanáli-
sucessivas para centrar o mesmo ponto quanto ensaios repetidos para se, Lacan indica que a abordagem düreaÍ 'efetua-se pela via de
ultrapassar as dificuldades precedentes. Ê nesse sentido que Lacan uma defesa priniária. Ela é. constituída como tal antes mesmo que
pode fazer uma leitura ética do "Entwurf, texto que permanece as condições do recalque sejam formuladas. Assini, a defesa dá
singularmente próximo de "Além do princípio do prazer", apesar conta da posição com base na qual o sujeito aborda o real. Desse
dos 25 anos que os separam. fato, pode-se compreender porque Lacan assinala que essa desco-
Por que podemos qualificar de ético o CQnflito.fundamentaldo berta situou Freud, imediatamente, numa dimensão ética.
sujej.tp? O conflito que Freud isola na sexualidade engaja a relaçap_dp Desde o começo, Freud percebeu que o que poderíamos
sujeito na satisfação e, em última análise, em qualquer bem. Se é a caracterizar como o nó estrutural da neurose ou da psicose corres-
própria natureza da satisfação que está em jogo, e conseqüentemente pondia a yrn^ conflito de^rdem moral. Foi o que ele colocou no
tudo o que é suscetível de ser definido como bem para o homeni, prmieiro plano da patologia de seus pacientes e da direção do
então, não poderia haver lugar para uma ação que fixasse como tratamento. Essas dificuldades se apresentavam no trataniento do
objeüvo uma harmonia qualquer, incompatível com a realidade paciente como uma inércia, uma força que se opunha à dinâmica do
psíquica. Os fins do tratamento não podem se encontrar fora dos tratamento e à assunção de certas representações para o paciente.
princípios dedutíveis da descoberta do inconsciente. É tudo isso que orienta Freud para a via que o levará a construir
Encontramos no ensinamento de Lacan uma articulação do o modelo formal conhecido sob Q nome de Entwurf. Entre 1894 e
conceito freudiano de defesa. Essa articulação é solidária com o 1896, Freud centra sua elaboração estrutural das neuroses e das
instmmento que rege a lógica do significante. Para os pós-freudianos, psicoses em torno desta verdadeira pedra angular que é o conceito
o julgamento é uma função articulada ao eu (mói), isto é, há um eu de defesa, de tal forma que encontramos já articuladas, em 1894, üês
que. julga a permanência do objetç de gozo, um eu ligado a um estratégias defensivas distintas do sujeito. Isso significa que há um
objeto. De fato, isso nos leva ainda a uma teoria do conheciniento. esforço de vontade da parte do paciente e que esse esforço já implica
uma resposta, uma.esçolha. Essa escolha consiste em "nada querer
O "retorno a Freud" de Lacan poderia se resumir ao seguinte:
sa^gr" de uma representação que Freud nomeia "inconciliável". De
o escândalo da psicanálise é o da inexistência de uma síntese tal
tal forma que esse "nada querer saber" se traduz pelo tratamento da
que poderia ser escrita assim: "eu (moo Q objéto". Á imposiÏbili-
representação inconcüiável como "não chegada", como se ela jamais
dade de tal síntese é ligada à existência de ym julgamento qi^não
houvesse chegado à consciência.
e um atributo do e.u. Veremos, com efeito, que Freud articula o
julgamento em um registro diferente do registro do eu (mói): é uma Quais são as três maneiras de negar essa representação, de
operação fundamental ligada à emergência do sujeito no campo dp' considerar que ela não existe, na histeria, na obsessão e na psicose?
Nos três casos, trata-se de uma Spaltung,,ou seja, uma clivagem
9. "Entuiurf, op. cit., nota 3.
10. "Au-delà- du principe du plaisir", op. cit., nota 4. 11. J. Lacan, Leséminaire VII, Féthique de lapsychanalyse (1959-1960'). Paris: Seuil, 1986.

36 37
eotrÊ.ajrepresçiitaçâQ.e Q.afeto. Mas o destino do afet^-difere em Em 1895, Freud redige o "Esboço",13 no qual lança as bases
cada caso. Na histenà, a representação inconciliável é suscetível de de sua concepção do aparelho psíquico. Seguindo a mesma
se transformar em uma representação inofensiva, na medida em orientação, considera que há nas neuroses dos conflitos forças que
que o afetâ, isto é, a excitação que a acompanha, separa-se para se opõem e quantidades que circulam, mas que se trata sempre,
em últinia instância, de um problema moral.
ser desviado para o nível somático. Resulta, então, um sintoma, íle
conversão. Na neujose obsessiva, existe uma clivagem entre a Na "Carta 52" a Fliess,14 Freud distingue dois tipos dejdefesa,
representação e o afeto, mas dessa vez o afeio não é desviado para uma normal e outra patológica. Estmturalmente, uma defesa nor-
o corpo, ele permanece livre. Essa quantidade livre é, em seguida, mal é apropriada ao funcionamento do aparelho psíquico, ela
funciona segundo o princípio do prazer e evita desprazer e dor. A
associada a uma outra representação qualquer, que Freud nomeia defesa patológica, ao contrário, Freud articula em termos de "não
"falsa conexão" e na qual ele localiza a representação obsessiva.
mscriçap". Haveria inscrição de recordações, mas essas recordações,
Na psicose, a defesa é bem mais enérgica, porque o sujeito exclui quando da passagem de uma sequência psíquica a outra, necessi-
a representação e o afeto; rejeita-os para o exterior e comporta-se tarn de uma reinscrição simbólica ou "reescritura" em sinais mne-
como se essa representação jamais tivesse chegado à consciência. mônicos. No entanto, certas representações, porque são dolorosas,
A elaboração de Freud da estrutura histérica, com base no não são objeto de reinscriçao em termos de traços mnemónicos: é
conceito de defesa e não mais como estado hipnótico, foi precisa- o que Freud chama dejjm defeito de tradução. -f T" p'.''.>^
mente o ponto de ruptura com Breuer, que recusou essa nova É aqui que o conceito de recalque é introduzido pela
conceitualização. Os capítulos de Estudos sobre a histeria escritos primeira vez. Acrescenta-se, além disso, que a defesa patológica,
por Freud indicam que ele foi confrontado, em sua prática, a uma condição determinante do recalque, já não é apenas uma experiên-
resistência de seus,pacientes. Essa inércia se opunha ao trabalho cia dolorosa (inerente à defeca _nornial), é uma recordação de
associativo, à tomada de consciência e ao retorno da recordação ordem sexual. Já encontramos aqui a sexualidade como causa, e
das representações patógenas. Freud interroga-se, então, sobre a sua incidência traumática se produz no curso de uma fase anterior,
natureza da força em jogo e sobre as causas de tal rejeição. Ele tendo suscitado um excesso de quantidade de afeto não traduzido
busca constantes que possam lhe dar uma indicação de ordem em termos mnemónicos. Definiüvamente,jihá um excesso de gozo,
estrutural e encontra o seguinte: em princípio, trata-se de jepre- que não chega a ser traduzidoj É por essa via que o tema da pulsão
sentaçoes que têm um elemento em comum, elas são dolorosas; é introduzido, e Freud retomará essa problemática inerente à
em seguida, são ligadas entre si por um sentimento de vergonha e, satisfação a partir de 1905.
enfim, implicam sempre remorsos, sofrimentos e prejuízos morais.
Trata-se, então, de tudo o que seria desejável esquecer por causa
dessa carga dolorosa e dessa conotação moral. Freud conclui que
isso evoca a reaçâo de defesa: "Todos os casos que acompanhei se Conflito moral e conflito pulsional
tornaram histerias de defesa"; ele deduz daí que a defesa é primária
e que é o que dá conta da clivagem entre o conteúdo da
consciência e as representações dotadas de um conteúdo moral. Os diferentes momentos da teoria das pulsões mostram
,-
como Freud se aproxima cada vez mais da ideia de um conflito
•t 12. J. Breuer e S. Freud. Etudes sur 1'hystérie (1895). Paris: PUF, 1956.
13. "Esboço", outra denominação de Entuwf, designacfc) também, às vezes, pelo termo "projeto".
14. As "Lettres a Fliess" compõem a maior parte de S. Freud, Naissance de lapsychamdyse, cp.cit.
s
(
38 39
Ïj
intrínseco à satisfação, não mais concebido como resultante de seu caráter em si paradoxal e insolúvel. Se até então era possível
obstáculos exteriores. No entanto, algumas formulações de Freud, conservar alguma esperança de paz fundada na renúncia à satisfa-
extraídas de seu contexto, puderam servir de argumento a con- cão pulsional, de agora em diante isso já não é possível. De fato,
cepções opostas à ética freudiana. Essas concepções implicam que se um sujeito, tentando encontrar um compromisso, renuncia à
a ação terapêutica e a direção do tratamento sejam definidas de satisfação, as exigências dg supereu só aumentarão.
outra forma.
Isso não debca de ter consequência sobre a forma de situar
Entre os avatares da teoria pulsional, há um que procura dar a ação terapêutica da psicanálise em seus limites e seus fins. Se tais
conta do conflito que opõe as pulsões do eu (mói) e as pulsões são os efeitos da renúncia à satisfação, como o tratamento poderia
sexuais. É o que causa, mais facilmente, uma série de falsas fbcar como objetivo tal renúncia? Ao que se acrescentará a desco-
interpretações. De fato, a ideia — freudiana — da essência confli- berta da reaçã^) terapêutica negativa, ou seja, ^manifestação mais
tual da sexualidade, ligada à noção de um eu que pode sofrer as intensa de.resistência à cuja. O delito inconsciente, do qual a
consequências desse desequilíbrio, permanecendo estrangeiro a própria doença constitui o pagamento, põe em xeque todo ideal
ele, está na base de uma certa concepção do tratamento no qual terapêutico. Podemos, então, pensar que a persistência de um ideal
se trataria de reforçar essa instância, supostamente dotada de um de saúde, como princípio da direção do tratamento, comporta o
cerne estrangeiro à discordância. Tal cerne poderia operar como risco de agravar a antinomia constitutiva do conflito neurótico.
ponto de apoio, para que o analista, com seu fermento, consiga Na virada dos anos 20, Freud, longe de alterar princípios
guiar o universo do neurótico para a direçâo carreta. teóricos, aprofunda, ao contrário, as consequências do conflito
Mas não podemos isolar a oposição eu/pulsão do conjunto psíquico que ele inscreve cada vez mais nos paradoxos da
da teoria: com efeito, tal instância permanece engajada no conflito pulsão. A dialética das instâncias psíquicas da segunda tópica
pulsional. Freud, no próprio movimento em que tenta sustentar o depende do próprio conflito pulsional: não há instância livre, e
conceito de pulsão do eu, demonstra ao mesmo tempo sua i menos ainda o eu, que Freud se compraz em representar pela
inconsistência. Efetivamente, em 1914, o conceito de narcisismo15 metáfora de um servo que não teria de servir simplesmente dois
inclui o eu na série de objetos libidinais. Desde então, a análise dos mestres, mas no mínimo três. No fim de sua obra, Freud não
ideais e o conceito de supereu procedem da mesma concepção; deixa espaço algum para a busca de uma homeostase, de um
esta contradiz, assim, toda possibilidade de considerar o eu como equilíbrio ou de um compromisso; e isso visa não só à renúncia
um árbitro apto a decidir sobre a satisfação, como um juiz agindo pulsional, mas também à sublimação, a despeito da saída que
em nome da realidade. Além disso, o princípio da realidade não é ela oferece. Ao contrário, uma hipotética liberação sexual con-
claramente posto por Freud na dependência do princípio do fundiria simplesmente prazer e saüsfaçãQ_pulsionaT, que está
prazer? A problemática do gozo ocupa uma posição cada vez mais muito mais próxima da dor do sintoma.,
central no aparelho psíquico freudiano. A despeito disso tudo, é possível captar o que é a finalidade
A conceitualização do supereu está estreitamente ligada, em do dispositivo analítico? Se descartamos a ideia do tratamento
Freud, a um aprofundamento da natureza do conflito psíquico, de como fim em si para apreendê-lo como resultado, qual outro fim
pode orientar a direção freudiana do tratamento? E, de acordo com
15. S. Freud, "Pour introduire Ie narcissisme" (1914). Em: La vie sexuelle. Paris: PUF, 1969. esse fim, de quais meios dispõe o psicanalista? Neste ponto,
I

40 41
conviria opor terapêutica e ética. Podemos falar de uma ética levá-lo-a a tomar uma atitude de mesma ordem em Esboço de
freudiana, justamente na medida em que podemos demonstrar que psicanálise: quanto à reação terapêutica negativa, Freud conclui
existem para Freud fins que não são nem confundidos com a cura que se o paciente não se cura, no final do tratamento, é porque ele
nem subordinados ela, e também porque os princípios que orien- não merece tal cura.
tam a ação do analista não se confundem com um desejo de curar
nem se subordinam a ele.
Há um elemento da doutrina de Freud que permite determi- Da neutralidade e do desejo
nar os fins e os meios da psicanálise de um ponto de vista ético: o
desejo: Podemos, com base no desejo, considerar os princípios que É sobre o pano de fundo dessa aütude radical que devemos
regem a ação do psicanalista, os meios com os quais ele pode compreender o diálogo de Freud com seus discípulos. Esse diálogo
contar e os que não poderá usar. A.ética freudiana é uma ética do adquire a feição de conselhos técnicos, de recomendações pessoais,
desejo, ela não define simplesmente o que podemos esperar de um até mesmo de críticas, nos escritos destinados à comunidade analítica
tratamento analítico, mas também o que um psicanalista deve fazer assim como nas correspondências. Esses conselhos técnicos, saídos
ou não, seja no nível dos conselhos técnicos ou dos princípios. O de seu contexto, podem ser mal interpretados, isto é, no sentido de
problema coloca-se precisamente quando isolamos os conselhos uma neutralidade compreendida como ausência de todo desejo. Ao
técnicos dos princípios que os regem, o tratamento torna-se assim um contrário, é um desejo decidido que permite a Freud apostar na
ritual desconectado de todo sentido coerente. Os conselhos técnicos análise em suas discussões com seus alunos, cada vez que eles
de Freud são sempre parciais e não sisteniáticos, porque são subor- pareciam ceder a considerações humanitárias, terapêuticas, até mes-
dinados à orientação geral que define a ação do psicanalista. mo económicas. O conselho, explícito, de oão desejar-drar, não é
Três termos caracterizam essa ética freudiana: o desejo) seu para ser entendido como uma tendência a não desejar. A neutralidade
caráter inconsciente e a exigência de uma revelação que supõe o do analista deve ser situada apenas em relação aos termos opostos ^
do conflito neurótico e não à finalidade da análise. w
encontro com o desejo. Se a verdade do sujeito reside em seu
desejo inconsciente e se a finalidade do tratamento é conduzir a E nesse sentido que podemos considerar as_metáfQrasJbéJica5
ele, nada pode antecipar a avaliação que o analisando fará, as frequentemente empregadas por Freud para descrever o desenvol-
consequências que tirará e o que ele decidirá em relação ao que o yimento do tratamento. Não é possível aplicar uma técnica, no
tratamento lhe terá revelado. Essa margem de decisão do analisan- sentido em que se entende habitualmente. O reino da guerra é, por
do quanto a seu desejo, uma vez revelado, é preservada por Freud, um lado, o da imprevisibilidade e do artifíeio, e, por outro, o da
para quem uma atitude diferente conduziria infalivelmente à dire- articulação dos objetivos de curto prazo com as finalidades estra-
cão da consciência, isto é, à pedagogia ou à religião. A ética do tégicas. Quanto aos enganos, exceto a natureza de .compromisso e
analisando corresponde ponto por ponto à ética do analista:^ de preguiça da própria neurose, os mais perigosos são precisamen-
porque o analisando deve decidir qual destino dar a seu desejo que I te as çUadas armadas pelo analista a psicanálise, por exemplo, por
o analista deve abster-se de tomar partido. Podemos ver até que causa de seu orgulho terapêutico ou de seu esforço taumatúrgico.
ponto Freud subordina os objetivos terapêuticos do tratamento a
í'^-

M^: seus princípios. O problema do conflito neurótico e da cura 16. S. Freud, Abregé de psychanalyse (1938). 8a ed., Paris: PUF, 1975, p. 49.
I
l',;,,lï.l-;
42 43
É por essa razão que Freud adverte, em mais de uma ocasião, exigência .cuca se apresenta como a eQunciacaQ.de.um desejo, e é
contra um tratamento rápido demais dos sintomas, o que pode a versão que encontramos em Freud do desejo do analista. Lacan
comprometer, às vezes de forma irreversível, um sucesso verídico mostra até que ponto a interpretação dessa máxima, que define a
da psicanálise. Por outro lado, ele é tão radical na recusa de toda posição freudiana do analista, pôde ser alterada para se tornar
transação que não hesita em prescrever ao paciente, durante todo compatível com o ideal de harmonia fundado sobre uma hipotética
tratamento, um estado de abstinência, na tentativa de impedi-lo de supremacia do eu sobre o isso.
J
fazer um uso satisfatório das conquistas relativas obtidas com base
na luta contra o recalque. Esse uso, que o paciente não hesitaria
em considerar como um resultado terapêutico, Freud considera-o
Depois de Freud
como (uma resistência autêntica ao trabalho analítico j além do fato
de carregar sobre si uma condenação moral. C^ ?.j '~^ ;;
Lacan introduz a questão do desejo do analista com base em
Que outra razão o analista teria para aceitar esses compro- um exame do que ele chama "a situação atual da traxisferência".
missas do neurótico, senão por se sentir pago com seu próprio Sua resposta consiste em distinguir as três faces do que ele nomeia
orgulho terapêutico ou por satisfazer em si uma tendência "altruís- a l'pirâmide das heresias"; Não esqueçamos que a noção de
ta", no fundo duvidosa?
transferência é indissociável de seu manejo e as indicações dos
Sem dúvida, a exigência imposta ao analista de jenynçiar^a autores, mesmo tão pouco desenvolvidas, são essenciais. Assim, a
jCLualquer satisfação dessa prdem é muito alta. Ele deve ir contra o teoria se deduz da posição daqueles que a sustentam. Se Lacan
programa da civilização, que oferece compensações ao homem pode dizer que Abraham é uma mãe e Ferenczi um pai-filho, é
pelo preço da renúncia exigida? Certamente sim, na medida em porque podemos deduzir de suas respectivas versões desse con-
que tal programa é impossível de realizar por repousar sobre uma ceito fundamental que é a transferência como colocar a .questão
antinomia que ele tem por função ocultar. De fato, é o que se central do ser do analista.
deduz de "Além do princípio do prazer" e de Mal-estar na É importante sublinhar que, quando Lacan analisa os desvios
civilização A ciyilização não pode trazer nenhuma compensação na história do movimento psicanalítico, jamais os apresenta como
ao homem, porque a renúncia ao gozo que a funda só faz resultado da boa ou má vontade das pessoas, de seus erros ou de
aumentar as exigências do supereu. Freud denuncia, nesse sentido, sua falta de saber. Confere-lhes sempre, ao contrário, ^dignidade
o estreito laço que une os ideais aos imperativos impiedosos do de ser uma resposta a questões dirigidas aos impasses da estrutura.
supereu, de tal forma que um ideal de saúde ou de homeostase A experiência analítica é sempre estruturada, e poder analisar seus
pode também conduzir ao inverso do resultado esperado. Perante paradigmas implica uma definição da posição que cada um pode
isso, a exigência condensada no aforismo Wo Es war, soil Ich assumir nessa experiência.
werden — onde isso estava, eu devo advir — não tem nenhuma
contrapartida exterior; nenhum ponto de apoio na ordem dos bens Lacan considera, primeiramente, a resposta que propõe o
'genetismò'. Essa corrente, que tem como as outras uma origem
pode temperá-la ou garanti-la. Além de toda justificativa, essa
18. J. Lacan, "La dírecton de la cure et lês príncipes de son pouvoir" (1958). Em: Écríts,
17. S. Freud, Malaise dans la civilisation (1929). Paris: PUF, 1971. op. cit., p. 607.
;

44 45
nobre, é representada por Anna Freud e sua análise das defesas. estrutura toda a série dos objetos. Lacan, em seu "retorno a Freud",
A resposta à questão do ser que implica essa teoria não tem aborda esse ponto crucial da doutrina, mostrando que a relação do
equívoco. Com efeito, o conceito de pulsão — definido por Lacan sujeito com cada um dos objetos é mediatizada pelo signifícante
como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise em O fálico.
seminário XI19 — permanece aniquilado sob um hipotético A doutrina da relação de objeto conduziu à regulação da boa
desenvolvimento em fases ao qual se atribui um substrato bioló- distância ao objeto no tratamento, g.^TOp-rio analista torna-se o
gico. Que analista emerge desses textos senão um juiz, que julga protótipo do objetp que permite estabelecer a boa relação. Lacan
o desvio de cada um pela ideia de um pattern7 É por isso que o pôs em evidência que nada na experiência dá testemunho de uma
trabalho analítico, transformou-se em uma tarefa educativa desti- relação do sujeito com um objeto total, e que é, ao contrário, a
nada a submeter os comportamentos a um progresso estandardi- ^noçao de falta de objeto que p.ermite a-estFütuFação-do.-des-e^o. Sua
za.do. Não é por acaso que, na Europa, certos adeptos dessa leitura crítica do caso de um paciente de Ruth Lebovici,2 fóbico
corrente acabaram por reencontrar o sujeito piagetiano e por depois perverso, demonstra que essa peryersão transitória resulta
perseguir juntos este trabalho, tão estrangeiro à psicanálise, de de um manejo da transferência articulado à noção de relação de
conceber a passagem de uma etapa do desenvolvimento a uma objeto na direção do tratamento. O objeto desvia Ruth Lebovici, e
outra. É nos Estados Unidos que encontramos os melhores adep- quando ela interpreta pela ideia da mãe má castradora, não se dá
tos da psicologia do eu; a interpretação dita concreta causa a conta do peso essencial do significante paterno na construção da
vitória terapêutica — success — e repousa ao mesmo tempo sobre fobia para esse paciente. Se bem que todo o tratamento, articulado
a dimensão económica da teoria freudiana.
em termos de boa ou má distância ao objeto feminino, impede a
construção do fantasma. É por isso que aquilo que, em princípio,
era um sintoma torna-se uma perversão.
Curar o incurável
Se a transferência assume sua virtude por ser levada à
A segunda face é a da "ifelação de úËjëto":» Se a precedente realidade, cujo^representante e o analista,\e se a questão é
estava fundada sobre uma ordem das emergências formais do fazer amadurecer p_Qb)etQlna estufa quente de uma situação
sujeito, esta visa "a maturação de uni pbjetq inefável". Foi Abraham confinada, nada mais resta ao analisado doque.umobjeto
que abriu essa via, que leva a uma confusão notória entre objeto [...] gara mastigar, e_e q analista^2
parcial, objeto global, objeto bom, objeto mau etc. Na verdade,
todo esse percurso se explica pelo çsquecjmen.to da castração e da Assim, a terceira resposta deduz-se logicamente da prece-
fynçao da falta na psicanálise pós-freudiana. O objeto é impensáyel dente. Trata-se de uma concepção dual do tratamento (analisando-
sgni a castração, o que os adeptos da doutrina da relação de objeto analista), que permanece presa nos limites da intersubjetividade.
esquecem, e privilegiam os assim chamados objetos pré-genitais Em última análise, não há outra saída para a análise senão a
em detrimento da função simbólica .do famoso objeto genital, que identificação, em particular.com o analista. Lacan encontra para
I
19. J. Lacan, Lê Séminaire XI, Lês quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse 20. J. Lacan, "La direction de la cure...", o^i.cff., p. 605. r
(1963-1964). Paris: PUF, 1973. 21. Ibid., p. 607.
I »
'
46 47
l

essas versões diferentes um denominador comum: ^introjeção pelo adulto que engana e seduz. O analista é agora o suporte da
subjetLva. Ela foi desenvolvida em particular por Ferenczi (introje- figura tutelar que deve corrigir as más experiências: ele responde
cão), Strachey (o analista como supereu) e Balint (o-ü"ai}se narcísi- à demanda de amor tentando colmatar a insatisfação originaL Ele
co no full do tratamento). já não frustra como antes, ele gratifica. Essa mudança radical só
Eerenczi utiliza o conceito da transferência em termos de pode ser efeito das graves dificuldades que Ferenczi encontrou em
sua práüca clínica em virtude de sua técnica ativa. Recordemos a
jntrojeção: "O termo transferência criado por Freud deve conser-
nota necrológica que Freud lhe consagra, na qual mostra de forma
var-se para designar as introjeções que se manifestam durante a
patética que consequências sua posição na psicanálise teve na vida
análise e que fazem referência à pessoa do médico, em virtude de
sua excepcional importância prática." Em sua vida e em sua obra de seu discípulo.
podemos constatar verdadeiras guinadas de 180°, tentativas — cuja Em resumo, podemos dizer que as soluções propostas do

1^) autenticidade é admirável — de evitar tropeçar nesses obstáculos.


Para Ferenczi, a_transferência é a atualização do passado sobre a
lado da introjeção intersubjetiva pretendem curar o incurável: a
divisão do sujeito.^ Seus representantes se propunham, cada um a
pessoa do analista. Trata-se de produzir a atualização desse gozo seu modo, resolver o impasse que Freud denunciou em seus
para que o analista, em posição de interditor, abra a via da últimos escritos, nos quais o analista se encontrava sem recursos
renuncia. O que é então esse analista para o analisando? É aquele para prosseguir além do "rochedo da castração".
que 2£OYQca pela sua presença a atualização de um fantasma sob De todas essas diferenças teóricas, parece-nos possível isolar
i
transferência, e que poderia, com base nisso, dizer não a esse gozo, um fator comum, que se refere à golítica^la relação cryn n_ser: é
O analisando deverá então introjetar esse não e renunciar, por uma modalidade do desejgL. do. analista que dá consistência ao
meio desse duelo analítico, às gratificações infantis. Qytro C^) e se opõe à emergência da ausência do Outro (S(^()), e
No entanto, apesar de sua técnica ativa, e até mesmo de seu isso qualquer que seja a via escolhida, do consentimento, da
ativismo transferencial, que consiste em forçar a aparição do ^ reparação ou da interdição.
fantasma,, ele tropeça nas mesmas resistências à fala com seus Ë sintomático que, no além da fala em que ela tenta consistir,
analisandos. A gressão do analista parece não ter obtido nada mais a ação do analista transforme-se na prática de um forçamento:
do que reviver o antigo traumatismo infantil: a violência que supõe? consentir, sugerir, intimar (sob a autoridade obscena e feroz do
a sedução do adulto. Assim, a parte criança do analisando viveria supereu) equivalem-se inexoravelmente, qualquer que seja a von-
de forma agressiva a paixão do analista adulto. . tade do analista de fazer o contrário.
Podemos constatar que a confusão é total nessa linguagem Balint ilustra bem esse ponto. A fim de evitar os efeitos de
teórica. Assim, depois de 1929, essa concepção do analista foi sugestão, ele considera até mesmo a hipótese de renunciar, a
ultrapassada por uma outra figura, resultante dos desenvolvimen- interpretai; Mas não compreende que quer algo do lugar do Outro
tos teóricos que Ferenczi trouxe sobre a^experiências traumáticas para alguém (gratificar, reparar, satisfazer etc.), situa-se aí como o
dq_£rjâüça,e.tïL^eu.encontro com a sexualidade. Já não se trata de Outro da demanda, aquele que tem o poder de gratificar ou de
atualizar os fantasmas, mas de r-epaiaro_ traumatismo provocado
23. S. Freud, "L'analyse avec fin et 1'analyse sans fin" (1937). Em: Résultats, idées, problem.es,
9 22. S. Ferenczi, "Transfert et introjection" (19p9). Em: Psychanalyse 1. Paris: Payot, 1975, p. 93. tomo II. Paris: PUF, 1985, p. 268.
^
48 49
r
s
frustrar. Por essa via, trata-se para o analista de ocultar a divisão 1967", quando ligará a questão dos fins da psicanálise coni a
? subjetiva e de evitar ligar a análise a uma destituição subjetiva e à psicanálise emjntenfao, já estava traçada 14 anos antes. A questão
falta a ser. Isso fica manifesto na maneira, aliás patética, como dos fins dá psicanálise depende da questão do fim do tratamento.
Balint dá conta dos fenómenos de tristeza no final do tratamento. Desde então e ao longo do ensino de Lacan, esses termos estarão
estreitamente ligados, mesmo que sua articulação varie no decorrer
dos diferentes escritos e seminários.
Lacan e o desejo do psicanalista
Essa situação de partida introduz uma circularidade incômo-
Um programa sistemático já é claramente formulado no escrito da, porque proíbe a saída fácil, que consistiria em definir o fim da
de 1953, "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise": experiência com base em uma ética exterior à psicanálise, para
determinar somente depois os meios apropriados. Só a psicanálise
Urgente, em todo caso, parece-nos a tarefa de liberar nas noções em intenção permite, ao contrário, fundar uma ética. Lacan acen-
que se amortecem em um uso de rotina o sentido que elas retomam tua ainda mais esse ponto na "Proposição", por exemplo, quando
tanto com base em um retomo sobre sua história quanto com base recusa a distinção não pertinente entre psicanálise terapêutica e
em uma reflexão sobre seus fundamentos subjetivos (...) didática; só há uma psicanálise, cujo carater didático só pode ser
Se a negligenciarmos (a função do ensino), o sentido se oblitera em estabelecido a posteriori, na medida em que ela terá conduzido o
uma ação que só tem seus efeitos do sentido, e as regras técnicas, sujeito à posição de analista.
reduzidas a receitas, retiram da experiência todo alcance de conhe-
cimento e mesmo lodo critério de realidade. A partir desse momento, fica excluído considerar separada-
mente a qualidade terapêutica da psicanálise, o que já era difícil de
Um pouco mais adiante, no mesmo texto, Lacan se interroga: sustentar na orientação freudiana. Sublinhemos até que ponto o ser
Seria muito pedir que os analistas aplicassem esses mesmos prin- do analista (que não poderíamos nos contentar em considerar
cípios a seus comportamentos e a eles mesmos? como um eu auxiliar para o analisando) é posto em questão, a
partir do momenta em que conectamos a finalidade e o fim da
.Vemos que se encontram três elementos nessa passagem: ps
análise. Pontuado apenas em 1953, esse dado do problema será,
princípios, os fins e os meios técnicos. É verdade que não há mais tarde, um elemento essencial de sua resolução.
sentido em se interrogar sobre a técnica sem passar primeiro pêlos
dois termos precedentes. Nesse sentido, o retorno a Freud de Lacan
é um retorno aos princípios e aos fins da experiência analítica. No
contexto dessa declaração do programa de "Função e campo", Uma terapêutica diferente das outras
notemos que já se encontram observações concretas relativas à
formação analítica, e em particular à análise didática. É importante I
Ë nas "Variantes do tratamento-üpa" que encontramos a
sublinhar, para avaliar até que ponto a orientação, que trará seus expressão de Lacan que introduz perfeitamente nossa reflexão: "A
frutos mais elaborados a partir da "Proposição de 9 de outubro de psicanálise não é uma terapêutica como as outras (...)". A distinção

24. J. Lacan, "Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse" (1953). Em: 25. J. Lacan, "Proposition du 9 octobre 1967 sur lê psychanalyste de 1'ÉcoIe", Scilicet l.
Écrits, op.cit., p. 240. Paris: Seuil, 1968, pp. 14-30.

T
50 51
é bem clara algumas linhas abaixo: "Trata-se de fato de um rigor É interessante sublinhar esse enfoque do que deveria ser o
de certa forma ético, fora do qual todo tratamento, mesmo pleno desejo do analista, nesse momento do ensino de Lacan: é negativo
de conhecimentos psicanalíticos, só poderia ser psicoterapia."2 — trata-se de "privar-se" dos desejos que constituem o nó central
Mas esse rigor deve se acompanhar de uma formalização teórica do narcisismo. Só a figura da morte parece em condições de
própria, e esse termo se opõe explicitamente ao formalismo prático transcender essa perigosa dialética — forneçamos a esse termo seu
da psicanálise da IPA, denunciado por Lacan, que o parodia em acento hegeliano — entre oeu e o eu ideal, por interposição do
seu escrito pelo uso irónico da expressão "tratamento-tipo". Lem- outro imaginário.
brando-se da advertência de Freud quanto ao perigo que comporta O analista, porque dirige o tratamento, é responsável se este
o ftiror sanandi, é aos critérios terapêuticos que Lacan se refere permanece preso nessa dialética infinita e se força o sujeito a entrar
em particular. Ele dá aos efeitos terapêuticos obtidos no tratamento nesse jogo de miragens com seu próprio eu. Mas sublinhemos o fato,
o estatuto de benefício suplementar, se bem que poderíamos, por altamente significativo, de que Lacan introduz em seguida, nesse
vezes legitimamente, perguntar se ainda se trata de psicanálise. Isso texto, uma versão do fim da análise que coincide perfeitamente com
nos leva a colocar, em seguida, o problema -da extraterritorialidade o que ele acaba de desenvolver sobre a, posição do psicanalista: se
da psicanálise. Mas Lacan quer evitar riscos (pois isso dispensaria este deve suportar esse além da relação in-Lagmária que é a morte, o
os analistas de jusüficar os princípios e os efeitos de sua ação) a fim da análise consiste, para o analisando, precisamente em subjeüvar
fim de que qualquer coisa não passe por uma psicanálise. Quais a mfiiíe. Podemos concluir daí que é apenas conforme renuncia a seu
são, nesse sentido, os limites da psicanálise?
próprio narcisismo e assume a posição que lhe advém que o
Sabemos que Lacan progride examinando as variantes do analisando poderá chegar ao fim da análise.
tratamento por meio de suas variações na história do movimento
A didática é, conseqüentemente, o eixo da discussão. Quan-
psicanalítico de obediência freudiana, e que essas variações pro-
do Lacan a aborda mais adiante no texto, sublinhemos que o faz
duziram uma verdadeira alteração dos conceitos. Restituindo à
experiência freudiana seu primeiro sentido, Lacan faz do fim da também pela problemática do desejo. Não podemos deücar de
aproximar esse ponto do enfoque do desejo do analista que
psicanálise um ponto crucial, cuja responsabilidade implica antes
acabamos de citar. Trata-se, dessa vez, de situar dois obstáculos
de mais nada os psicanalistas. A transferência não poderia se
desprender dos efeitos da relação narcísica do eu (mói) com o eu, maiores com os quais a didática se depara: o desejo de saber e o
dese}o_de_poder^ essas dificuldades são da mesma ordem que o
salvo se o analista chegou, ele mesmo — e compreende-se que seja
pelo efeito de seu próprio tratamento — a limpar a imagem^ desejo de ser amado próprio do neurótico (paücão que se opõe à,
.análise). Não haveria, propriamente falando, formação do candida-
|narcísica de seu eu de todas as formas do desejo em que ela se|
to, se não pudéssemos atingir essa forma de ignorância, esse
^constituiu, para reduzi-la à única figura que a sustenta sob suas'
'máscaras: a do mestre absoluto, a morte".27 ( não-saber que Lacan qualifica de "forma mais elaborada do saber"
condição para que haja analista. Seria apenas pela via dessa
espécie de redução que obteríamos a identidade entre o ser do
analista e sua palavra; é essa identidade que seria posta à prova no
26. J. Lacan, "Variantes de la cure-type" (1955). Em: £cn», qp.cít., p. 324. fim da análise, no que é descrito como o momento no qual o
27. Ibid., p. 348. analista, tendo conduzido um tratamento até seu fim, poderia ouvir
1
52 53

^
proferir pelo sujeito palavras nas quais poderia reconhecer a lei de j *• garantia está relacionada à relação do analista com o Outro, uma
seu próprio ser (retomamos essa expressão sem deücar de assinalar questão se coloca: O que poderá operar como garantia, nessa
que uma passagem similar figura na "Proposição de 9 de outubro", mesma posição, uma vez que o Outro será barrado (S(^))? A
na qual o fim da análise é descrito em termos muito semelhantes). resposta está na "Proposição", mas supõe um desenvolvimento
Extraída de "A instância da letra",28 esta frase faz referência prévio, que podemos acompanhar em vários seminários (VII, X, XI
ao aforismo freudiano W&-& uwr, soil Ich werden. Esse fim propõe em particular) e escritos.
ao homem opor-se a todo compromisso possível, do qual Freud Por que essa questão da garantia surgiu dez anos antes da
denuncia a incompatibilidade com a essência da psicanálise. Lacan, proposição formal de Lacan? Não poderia ter sido diferente: se a
por sua vez, distingue entre o cerne da máxima freudiana e o que ética freudiana já implicava uma tão grande responsabÜidade do
ele chama "as tartufarias moralizantes do nosso tempo".2 É, na analista, e se seu desejo estava em jogo em seu ato, o que poderia
verdade, uma advertência para não dar à ética freudiana um trazer uma garantia a mais para o analisando?
sentido ou um rosto talvez mais facilmente reconhecível, mas que
não esconderia menos insidiosamente o supereu. Lacan, nesse
texto, transforma a heteronomia radical que rege a divisão do Uma ética qzie integre as conquistas freudianas'
sujeito na máxima freudiana simplesmente em uma exigência de
ordem ética. Assim entendida, a ética freudiana é essa exigência de
se confrontar sem enganação — Lacan nos fala de "desonestidade" "A direção do tratamento" começa precisamente evocando o
— com a divisão subjetiva. Se houvesse desonestidade, ela consis- analista e arrastando às gemônias aqueles que, sem o menor pudor,
tiria em tentar recobrir a heteronomia da descoberta freudiana; é dizem-se partidários da reeducação emocional do paciente. Lacan
por isso que o analista só pode se apoiar sobre o Outro como
nomeia isso uma "posição de princípio" que torna supérflua
garantidor da boa-fé, para permitir ao sujeito atingir não o conhe- | qualquer discussão sobre os conceitos. Uma vez mais, trata-se de
cimento de si mesmo, segundo o adágio da ética socrática, mas o i princípios, mas cujas consequências vão além do caso particular e
finalmente acabam por se revelar: "A impotência para sustentar
cerne de seu-sef, ao qual Lacan confere um estatuto de verdade. A autenticamente uma praxis recai sobre o exercício de um poder."
via inaugurada por Freud leva, assim, à.verdade do ser do sujeito. Contrariamente, Lacan propõe a direçào do tratamento, e esse
Atentemos para essa função de garantidor em relação à qual termo se opõe radicalmente ao que seria a direçào do paciente.
se deduz a posição do analista e lembremo-nos que Lacan critica,
em "Variantes do tratamento-tipo", o que ele chama as garantias [À questão que se coloca, então, diz respeito diretamente a
formais que a psicanálise tem a pretensão de trazer. No que nossas preocupações: no empreendimento comum que constitui a
antecipamos o fato de que a questão da garantia desempenhará própria psicanálise, o analisando e o analista têm, cada um,, seu
•dever. O anâÍisaSndo deve submeter-se à regra fundamental, ao
um papel de primeira grandeza na "Proposição", precisamente por ' passo que o analista, ele também, paga com palavras na interpre-
causa do problema do fim da análise. Se, em 1957, a função da tacão e com sua pessoa, em virtude da transferência Seu terceiro

^' -l'. Líïca"' "I-'instance de la lettle dans 1'inconsdent freudien" (1957). Em: ãrils, cp. cit., p. 524. 30. J. Lacan, "La direction de la cure et lês príncipes de son pouvoir", op. cit., p. 615.
29. Ibid. 31. Ibid., p. 585.
32. Ibid., p. 586.

54
55
dever não é menos árduo: diz respeito ao julgamento íntimo que A frase completa que citamos é, então, a seguinte: "Deve ser
ele deve efetuar para participar de uma ação que visa ao cojação formulada uma ética que integre as conquistas, freudianas sobre o
do ser. Uma vez mais, o essencial dos deveres pertence ao analista. desejo: para colocar em seu ápice a questão do desejo do analista."
Quanta a sua ação, retomemos as metáforas bélicas que Segundo o programa traçado em "Variantes do tratamento-
Freud empregava: tatica (interpretação) e estratégia (transferência) tipo" é da análise dos desvios — coerentes — que se deduz em
encadeiam-se segundo uma gradação decrescente da liberdade do negative a teoria da transferência, e esse conceito central coincide
analista para alcançar o ponto essencial que Lacan nomeia política sempre com seu manejo no tratamento.
da análise; trata-se menos, em política, dos meios do que dos fins Há, por fim, diferentes versões do fim do tratamento: não
da psicanálise de acordo com seus princípios. O princípio que poderíamos, particularmente, considerar que a identificação com o
define a política dcypsicanalista é orientar-se com base em syajalta analista é uma forma de evitar o encontro com a falta a ser do
a ser e em de seu ser, e isso supõe a refeição de qualquer dire^ao sujeito? Trata-se de uma armadilha eficaz, precisamente na medida
do tratamento orientado pela identificação. Lenibremo-nos de que em que isso responde a uma demanda maior da neurose. Por fim,
na "Proposição" a falta a ser, bússola do psicanalista, torna-se o Q neurótico está quase sempre pronto a sofrer para ser: pabcão do
de-ser no fim do tratamento.
f^-ser e demanda de ser seguem juntas. Nesse jogo, analisando e
Quanto à interpretação e à transferência, deveriam ser subor- , analista chegariam a um compromisso próximo da perfeição: se o
dinadas ao plano conjuntural que governa em todos os momentos analisando devia se identificar com o analista, a questão da falta a
a ação do psicanalista. Com base nessa ideia fundamental, Lacan ser seria resolvida de um só golpe para os dois. Na operação, o
faz uma revisão das principais concepções da interpretação e da analista deve, assim, ganhar alguma coisa, e o analisando pode
transferência e critica-as porque desconhecem esse princípio e pagar seu ganho de ser com a moeda do sofrimento — duas vezes,
opõem-se a ele. com efeito, o texto menciona as pabcões do ser-
O desejo está intimamente ligado à falta a ser. Se a interpretação Se o analista, então, cai na armadilha dessa demanda de ser
deve visar ao advento do desejo, então, qual é o desejo em jogo .na que é o obstáculo principal no tratamento, é de forma orientada,
transferência? Ao passo que, como bem sabemos, a interpretação e a função da análise didática permanece claramente definida:
pode encontrar indícios do desejo nas formações do inconsciente ou apenas a análise oferece ao analista a possibilidade de explorar a
nos dizeres do paciente, a transferência parece, em realidade, oposta relação com o ser que apoia sua ação, e sua finalidade é na
a essa emergência por sua própria natureza. Ê o amor, cuja vertente verdade centrar as infelicidades do ser. Assim, .o desejo do
enganadora se opõe ao desejo. É por isso que, se é questão de desejo atíaltSta, pedra angular da ética da psicanálise,-defíne-senegativa-
^ rta íransferência, é do desejo do analista que se trata. Assim, quando niente em relação à pabíãodoser.O desejo do analista é que deve
Lacan se engaja na discussão sobre a transferência, começa sua permitir sustentar a cârêfK:ia de'ser que o tratamento necessaria-
argumentação pela crítica de três concepções determinadas, e quan- mente-coleea'em jogo, e isso especificamente para o que diz
do chega no desejo do analista, podemos reconhecer aí a primeira respeito a seu fim.
ocorrência escrita desse conceito.

1
33. Ibid., p. 615.

56
57
v.
^
fComo consequência da política do ser que caracteriza a de evitar. Isso conduz, como se sabe, a uma reformulação completa
psicanálise e a distingue de qualquer outra prática, o dispositivo da^transíieiência, cujo materna nos é dado por Lacan na "Proposi-
do tratamento e a intervençãq do analista convertem-se em ques- cão de 9 de outubro", operando assim um ir além de toda noção
toes que, embora técnicas, inscrevem-se necessariamente na di- de intersubjetividade. Na realidade, essa formulação definitiva é
mensão ética. Se o analista em sua operação não sabe responder a solidária da escnta_do_Qbjeto^. Mas, em 1958, ^gosiçaodoanaUsta
demanda, é precisamente porque ele deve suportá-la para levá-la p^rçQânecçjynçâ.CLdQ-Quü-D, na medida em que o ser falta a esse
aos limites do ser. É certamente um elemento de técnica, mas que Outro. O amor, na ocasião amor de transferência, apóia-se sobre a
imediatamente se funda sobre o que ousaremos nomear como um demanda ao Outro de um complemento de s^r; demanda-se-lhe,
dos deveres fundamentais do psicanalista. Essa lógica, aliás, isola então, o dom do que ele não tem. A demanda em si mesma não
um outro dever, articulado ao precedente:^? analista deve respon- oferece nenhuma saída ao que Lacan chama essa "aporia encarna-
A der. da posição que. a transferência lhe atribi i i; plp..xiev.e_5uportar_a
t'ii?' da". Trata-se de ir no sentido da estrutura do desejo como desejo
<^'t£ânsferencia. Para terminar, se devemos enumerar os deveres do do Outro, para definir em seguida essa forma especffica que se
psicanalista em razão do que ele deve suportar, a falta a ser, a chama o desejo do analista. Nesse senüdo, o analista é responsável
transferência, a demanda, é o desejo e sua forma específica que na medida em que, simando-se no lugar do Outro, ocorre-lhe não
chaniamos o desejo do psicanalista que torna isso possível. Nesse opor nenhum obstáculo à emergência do desejo. A única resistência
texto, dsSfiio-eJalía-A.ser do psiçanalista^são promovidos ao mesmo que permanece resulta do paradoxo implicado pela incomgaübüida-
tempo. Podemos entender isso como o começo de uma mudança, ^.e-5^a2232.-£9SLil P.a^ayra- Ç>0 um "homem do desejo"— tal como
que permitirá em seguida centrar a ppera£ão_4Q-âüaÜSïaj,IlêüOfi-çiQ. Lacan nos descreve Freud no fim desse texto — pode aceitar essa
^elaçaQ..ao..QutrQ (A) do que em relação ao desejo do Outro, que posição em relação ao desejo, que em princípio se define como uma
nos conduz ao S(A). j suspensão radical de todo desejo próprio.
.1

Ao Outro também falta o ser


A psicanálise exige uma revisão da ética

Como já tínhamos indicado, a questão da falta a ser conduz


ao mesmo tempo ao desejo do psicanalista e ao desejo do Outro. Em "Observação sobre o relato de Daniel Lagache", Lacan
Há solidariedade entre esses Sois terriïõs:nap_ há emergência_do descreve a operação do analista no que ela deve transcender a
desejo do sujeito sem uma operação do analista se o deseje dimensão das armadilhas do ideal. Para isso é necessário que a
^'desejo do Outro. Trata-se de centrar essa operação. E apenas por relação do desejo com o desejo do Outro seja articulada além de
I
essa via que a psicanálise poderá sair de uma dialética hegeliana toda alienação, imaginaria:. Trata-se, então, de introduzir um ele-
do reconhecimento se o lugar do analista no dispositivo se deter- mento novo, heterogéneo, além da relação I — i'(a~). O analista
mina necessariamente com base no Outro. não pode se contentar em ocupar p lu^ar do Outro, mas deve,
Mas mesmo isso supõe uma definição do desejo do analista 34. Ibid., p. 629.
que não se afaste da ilusão de simetria que se trata precisamente 35. Ibid., p. 642.
^
58 59
\
sobretudo, efetuar uma op^ragao de redução, descrita no texto È um primeiro enfoque do ob[etq_tí( como causa do desep — com
pelo modelo óptico que comporta um elemento móvel. base no que já se pode situar o objeto no lugar da causa. Qualquer
Trata-se do que Lacan define como a manobra dQ.aêyrótico que seja, a afirmação de que o desejo é o desejo do Outro deve
na transferência, e que consiste em renovar sem cessar suas ser entendida, a partir de agora, por essa fórmula do fantasma, da
identificações, apoiando-se sobre o ideal. Essa operação do ana- qual Lacan nos diz que uma parte, está no Outro: o objeto do desejo
é definido como "a escória de um fantasma".
lista é, em 1959, correlata ao objeto do desejo, objeto à antes do
estado definitivo,* se podemos ousar a expressão. Esse objeto, De passagem, Lacan nos dá uma excelente definição da
além do imaginário, é restituído ao campo do Outro com sua relação particular do sujeito neurótico com seu fantasma, que se
função de enunciador do desejo do Outro. O fim do tratamento diferencia da perversão. Para tal, ele parte do conhecido apólogo
define-se a partir daí como possibilidade para o sujeito de decidir kantiano: Ufíi homem perseverará eni seu desejo se deve pagá-k)
se ele quer o que deseja — lembremos que Freud considerava a com a-morfê? A posição do neurótico em relação a seu desejo é
^ opção sobre o desejo como o resultado primordial da análise. definida comolpreguiçai Quem lhe reprovaria, senão em nome de
Esse objeto a, chave da operação analítica, tem dois corolá- uma ética revisitada pela psicanálise, levando em consideração o
rios no texto: a ideia de que a psicanálise exige uma revisão da que Lacan acrescenta um pouco adiante, que a felicidade é
ética e a escrita do A barrado, contida no materna A (<p) do desejo
(
recusada àquele que não renuncia à via de seu desejo? Basta essa
da mulher. Podemos considerar isso ao pé da letra: se a descoberta frase para compreender que a psicanálise, que teria conduzido o
de Freud impõe uma revisão da ética, esta só será consequente a sujeito nessa via, não pode se propor a felicidade como fim.
partir da formalização desses novos elementos, o objeto a e K. Outras éticas, diante dessa aporia, propuseram renunciar ao
"Observação sobre o relato de Daniel Lagache" conclui-se com desejo, mas pagando um alto preço: o da verdade do homem. Não
uma referência a Kant, e isso nos permite antecipar o movimento 1
é necessário insistir no fato de que a_renúncia não é a via de Freud,
que se produz em O seminário VII, no qual a reformulação da ética para quem isso conduz antes à neurose do que à felicidade.
apóia-se sobre a promoção do real como impossível e sobre a Em "Kant com Sade", a escrita do fantasma segue em paralelo
rejeição dos ideais. com a possibÜidade de determinar aposição do sujeito em relação a
"Kant com Sade" contém a escrita do fantasma (^ O d), que ssiuiesqo, e essa posição pode também se modificar para um mesmo
determina o caráter do objeto. "Objeto estranhamente separado do sujeito em diferentes momentos. É o que Üustram precisamente os dois
sujeito", nota Lacan a propósito das vozes na experiência de Sade maternas do fantasma de Sade. Sade, além do mais, fornece a Lacan a
e na psicose. Parece-nos oportuno ampliar a extensão, pois a ocasião de se perguntar até onde pode ir um sujeito "além de certos
fórmula do fantasma comporta a "punção", que podemos ler como Imutes", em que o que ele sente "não tem nada a ver com o que
sinal da nao-concordância entre sujeito e objeto. O objeto, consi- suporta o desejo no fantasma, que justamente se constitui desses
derado até então na dialética da intersubjetividade e definido como limites".38 E é precisamente por esse ir além que Sade é capaz de nos
objeto do desejo, recebe o estatuto de causada divisão, do sujeito. dar em suas obras uma versão purificada — construída? — de seu

® Trocadilho com a expressão ftancesa "avant la lettre"; no original, "objet a avant la lettre". (N.T.) 37. Ibid., p. 780.
36. "Kant avec Sade". Em: Ecrits, op.cit., p. 772. 38. Ibid., p. 796.

60 61

\1
f
I

fantasma. Talvez esse passo de Sade além dos liniites de seu sobre, essa vertente do gozo-^Si transferência, a operação definida
fantasnia possa servir-nos como primeiro índice, ainda vago, do como o tornar presente esse "objeto".
que niais tarde caracterizará o fmi do tratamento, a travessia do Em "Posição do inconsciente", encontramos indicações
fantasma. técnicas muito precisas, que resultam de uma articulação da
Já sabemos, a mínima, que lo neurótico tem uma relação relação do sujeito com as duas vertentes da estrutura: significante
^ preguiçosa com seu desejo! e que se^mantém à distancia de seu e gozo. Essa articulação toma forma nas duas operações que são a
^V! fantasmaA se a psicanálise o leva ao encontro de seu desejo, sua alienacaa e a separação, que o dispositivo analítico deve levar em
1 relação com seu fantasma encontrar-se-á modificada.
conta. Definitivamente, seu ser advém para o sujeito por meio de
duas operações articuladas. Se a alienação é o lugar do sujeito com
^ o significante, a separação permite-lhe situar sua própria falta em
W relação à falta do Outro, Se na anáüse se trata de avançar na relação
do sujeito com o Outro do desejo, essa relação não é menos
Nenhuma verdade atrás
marcada pela opacidade do Outro, silencioso. A técnica introduz
um novo tipo de intervenção que deve se acomodar ao caráter
"Subversão do sujeito"39 fornece uma formalização diferente pulsátil próprio ao advento do ser do sujeito, suspenso no desejo
do Ouü-o — S(A) —, que, com a escrita do fantasma, permite do Outro: trata-se do que Lacan chama a escansão do discurso do
centrar a estrutura do desejo evitando os impasses da intersubjeü- paciente pelo analista. O analista opera assim por essa relação
vidade. A expressão "o desejo é o desejo do Outro" é definida da estrutural do desejo com o desejo do Outro por meio da separação.
seguinte forma: dado essencial para o analista que se situa em Isso vai ao encontro de toda ideia de identificação com o analista,
relação ao lugar do Outro. O motor da transferência é definido, conseqüentemente, como "a
espera do advento desse ser em sua relação com o que designamos
As consequências são imediatas: a questão da verdade e da como o desejo do analista no que ele tem de despercebido, ao
lei encontra-se definitivamente reformulada. É claro, agora, que menos até o dia de sua própria posição, eis aí o domínio último e
não há Outro do Outro, pois, em última instância, não há Outro. verdadeiro do que constitui a transferência."
A autoridade não tem outro fundamento senão se enunciar como
"Do Trieb de Freud e do desejo do analista" contém
tal: nada pode garanti-la. Paralelamente, do lado da lei emerge a numerosas indicações sobre a psicoterapia e a psicologização da
figura do impostor, como aquele que tenta suprir essa falta. Não psicanálise. A crítica da psicologia centra-se em uma acusação
faltam nesse texto considerações relativas à prática da psicanálise: concreta: a reintrodução de uma espécie de "moral na natureza"
o psicanaUsta não deve responder nem fazer-se porta-voz do Qutro que desnaturaliza os conceitos freudianos. Lacan distingue clara-
para fazê-lo existir. Concretamente, "não temos de responder por mente a psicanálise da psicoterapia. Confrontado com o problema
nenhuma verdade última". O dispositivo analítico ordena-se ago- da finalidade da psicanálise além da psicoterapia, Lacan dá a
ra com base na distinção das duas vertentes da estrutura, o psicanálise como meio de atingir essa finalidade e o desejo do
signifícante e o gozo; .o objeto a. é •a. escrita que permite operar
41. Ibid., p. 825.
42. J. Lacan, "Position de 1'inconsdent" (1960-1964). Em: Écrits, op.ctí.
39. J. Lacan, "Subversion du sujet et dialectique du désir dans 1'inconscient freudien" 43. Ibid., p. 844.
(I960). Em: Écríts, op.cit. 44. J. Lacan, "Du rneó de Freud et du désir dü psychanalyste" (1964). Em: Écrits, op. cit.
40. Ibid., p. 818. 45. Ibid., p. 851.
r

62 63
•s <c
analista como motor do tratamentj. Ele critica o uso psicologizante
dos conceitos psicanalíticos, que convertem o Édipo freudiano em
uma moral da gratificação materna, tendo por resultado uma
psicoterapia que infantiliza o adulto sem que a criança seja nele
mais bem reconhecida."
Constatamos, então, que o debate entre psicanálise e psico-
logia, psicanálise e psicoterapia, é indissociável dos preceitos
morais que disfarçadamente falsificam os conceitos. Nesse sentido,
o conceito freudiano de Trieb apresenta uma série de conseqüên-
cias éticas precisas.

4
ft O LAÇO SOCIAL

Antonio Di Ciaccia

O laço social: abordar desse ângulo a questão da psicanálise


e das psicoterapias permite-me, a propósito da lei Ossicini e dos
rios de tinta e de palavras que ela fez jorrar, dizer claramente qual
é minha posição: afirmar o quanto preferiria que o Estado aumen-
tasse sua preocupação em fazer funcionar corretamente a cadeia
dos seryiços e se abstivesse de legislar sobre o gozo que os
cidadãos retiram ou não daí. No que concerne à psicanálise, eu
teria preferido que o Estado italiano — que, como nota Freud,
felicitando-se a esse propósito em seu texto sobre a Laienanalyse,
soube escrever sobre os postes elétricos o aviso chi tocca, muore
(quem toca, morre), tão surpreendente em sua concisão — fizesse
construir as famosas pilastras de alta tensão para clarear o campo
freudiano inscrevendo: "Quem toca, está dividido para sempre."

Tradução de Maria Lúcia F. Homem.


1. S. Freud, La question de I'analyse profane (1926). Paris: GaUimard, 1985, p.118: "Nas
ruas italianas,'as pilastras de alta tensão possuem a inscrição lapidar e impressionante:
"chi tocca, muore". Isto é plenamente suficiente para ditar aos passantes a conduta a
•^ 46. Ibid., p. 852. se ter diante dos fios pendurados. As advertências alemãs correspondentes são de uma
prolixidade supérflua e ofensiva".

64 65

'NJ

Você também pode gostar