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Georges Politzer

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PREFACIO
CONSIDERAÇÕFS SOBRE A ETERNA JUVENTUDE
DA PSICOLOGIA: O CASO DA PSICANÁUSE

*
ÜSMYR FARIA GABBI ]R.

Em 1947, cinco anos após Politzer ter sido executado pela Gestapo, Kana-
pa publica, sob o título de "La crise de la psychologie contemporaine", dois ar-
tigos do notável pensador húngaro, escritos em 1928 e 1929, nos dois únicos
números de Revue de Psychologie Concrete. 1 A justificativa para a nova edição é
2
claramente indicada: "desde 1929, a situação não mudou". Podemos comple-
tar, passados setenta anos: os nomes são outros, os vocabulários são diferentes,
mas os pressupostos centrais da chamada psicologia clássica, nome dado por Po-
litzer para designar aquilo que é comum a todas as psicologias existentes, per-
manecem os mesmos.
A Crítica dos Fundamentos da Psicologia, escrita em 1928, permanece uma
obra atual e só se tornará um monumento histórico quando seu objetivo final
for alcançado, ou seja, quando a psicologia, tal como a conhecemos, deixar de
existir. Politzer foi demasiadamente otimista quando acreditou que, "Daqui a
cinqüenta anos, a psicologia autenticamente oficial de hoje aparecerá como
aparecem agora a alquimia e as fabulações verbais da física peripatética. Brin-
car-se-á ainda com as fórmulas retumbantes pelas quais se iniciaram os psicó-
logos 'científicos' e com as penosas teorias a que chegaram; com esquemas

•. Do~tor em Psicologia pela ~niversi~ade de São P~ulo (USP); livre docente em Epistemologia pela
Uruvers1dade Estadual de Campmas (Urucamp), onde e professor no Depto. de Filosofia do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas. É autor do livro Frr.ud: racionalidade, sentido e refúênâa (Campinas: Cen-
tro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência - Unicamp, Coleção CLE, 1994).
1
POUTZER, G. La Crise de la Psychologie Contemporaine. J. Kanapa (org.). Paris: Éditions Sociales, 1947.
2
POUTZER, G. Op. cit., p. 10.

CRÍTICA DOS FUNDM\ENTOS DA PSICOLOGIA V


, t. os e esquemas dinâmicos, e a teologia do cérebro con .
estaus 1C . . stituirá
d. vertido como a teona antiga dos temperamentos - log ~tn estu.
do 1 ' d . . o, PGre
rá relegado à história das outnnas mcompreensíveis e estr nhar tn, tudo
se h. 1' . "ª a -se-.
persistência, como se faz" oJ_e com a as~1ca. , . a sua
A gravidade' a relevancia
.
e a pert1nenc1a da cntica foram at
. . enuada
' s a publicação do livro. Politzer entendeu mmto rapidame t s log0
apo . , n e que a
aceitação generalizada, por parte dos ps1cologos franceses, era a fo
. . . nna tnais. sua.
pida de desconsiderá-la. Seus poo,cipais representant~s apressaram-se ern . ra.
·, em 1929 que eram todos psicologos concretos; assim não precis dizer,
Iª ' 4 · aram alter
uma linha de seu pensamento. Mesmo muito tempo depois, em 19601no ar
Colóquio de Bonneval, a homenagem prestada por l.aplanche e leciaii (" VI
. , C , . J r: d e Oue
a situação especial que reservamos a rtttca uos run. .amentos " .da Psicolog,a. se1a.
considerada uma homenagem a um autor [. . .] cu1a influencia sobre O fu
da psicanálise na França nao se tem su blinhado devi'damente"5) é, como vturo
mos' uma forma de descaracterizar.o essencial da crítica, de modo a perpe ere-
. tuar
a psicologia clássica sob formas mais sutls.
Nosso objetivo é triplo: descrever os pressupostos da psicologia clássica
indicar como a proposta de Politzer consiste em sugerir um novo modelo fun~
dador para a psicologia e, finalmente, apontar, de forma sumária, como a psi-
canálise Iacaniana apropriou-se, sem muito recato e talvez sem nenhuma
clareza, de algumas idéias básicas da Crítica ... , mas deu a estas uma roupagem
que tornou possível renovar homenagens como a de Bonneval.

OS PRESSUPOSTOS DA PSICOLOGIA CIÁSSICA


Sob o nome de psicologia clássica, Politzer relaciona uma série de pressupos-
tos compartilhados por diversas escolas psicológicas, que certamente não se re-
conheceriam sob esse título. Seus adeptos tampouco encontrariam quaisquer
relações de parentesco entre si; eles preferem acreditar que, de fato, existem psi-

3
Crítica dos Fundamentos da Psicologia, p. 40.
4
~m •o~ va la psychologie concrete ?", o capítulo II da coletânea La Crise de la Psychologie Contunp~
rame, P~litzer obse_rva ironi~amente: "os mais abstratos psicólogos realizaram um 'retomo sobre ele!
mesmos e descobnram subitamente que, já há muito tempo, eram partidários da psicologia concreta
(p. 92).
;YIAP~CHE, J. LE~IAI~, S. "O Inconsciente: um estudo psicanalítico". 1966. ln: O biconsciente.
'Henn. Trad. Jose Batista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969, p. 111.

VI Premeio
cologias e que uma possível unidade só existiria enquanto especialidades de
uma mesma profissão, ou seja, a unidade da psicologia não seria teórica, porém
prática. 6 Entretanto, para quem pretende realizar uma crítica essencial dos fun-
damentos da psicologia, é vital assinalar a unidade profunda que existe por trás
da suposta diversidade e da eterna querela das escolas. Nesse sentido, deve-se
compreender, antes de mais nada, que a Crítica ... inicia-se pela apreciação de três
tipos de psicologia, aparentemente, muito diferentes: a teoria da Gestalt, o
behaviorismo e a psicanálise de Freud. Não se trata de propor um lubrido cons-
truído com pedaços retirados aqui ou acolá de cada um dos três tipos. Na ver-
dade, cada um deles, por razões diversas, já apresenta - ao lado de pressupostos
da psicologia clássica - indícios evidentes de que é viável a construção de uma
outra psicologia. 7
A teoria da Gestalt é valorizada porque refuta a crença de que o psicológico
é, em sua essência última, algo elementar. Em outras palavras, a psicologia clás-
sica conjetura - isto é, antes de iniciar qualquer investigação empírica - que
a forma última do psicológico seria atomística (P1). Esse atomismo é substitu-
ído na Gestalt pela crença de que o psíquico só pode ser entendido como tota-
lidade e não enquanto elementos distintos que são posteriormente associados.
Entretanto, subsiste na Gestalt a tese de que o psicológico é aprendido de for-
ma imediata pela percepção (P2).
O behaviorismo de Watson, apesar de também partir da assertiva de que
o fato psicológico é um dado perceptivo, é saudado porque denunciou o caráter mi-
tológico de outra tese muito cara à psicologia clássica: a presunção de que exis-
ta uma vida interior (P3). A tese da vida interior, o último refúgio do animismo-
pois eqüivale a acreditar que há seres dentro de nós que agem, têm intenções
e são dotados de vida própria -, leva necessariamente a dirigir a atenção do
psicólogo para processos internos que, não sendo de natureza fisiológica -
caso contrário seriam objeto da fisiologia e não da psicologia-, têm de ser

6 G. CANGUUHEM critica a proposta de Lagache de definir a psicologia como a ªteoria geral da con-
duta, síntese da psicologia experimental, da psicologia clínica, da psicanálise, da psicologia social e da etno-
logian dizendo que ªessa unidade assemelha-se mais a um pacto de coexistência pacífica acordado entre
profissionais do que a uma essência lógica, obtida pela revelação de uma constante em uma variedade de
casosn. ªOu'est-ce que la psychologien (1956). ln: Cahiers pour l'Analyse, 1/2, Paris: Seuil, 1966, p. 78.
7 É importante atentar para o fato de que Politzer não está procurando encontrar, para cada uma das

psicologias mencionadas, aquilo que lhes falta para transformá-las imediatamente em psicologia con-
creta. Bas são usadas para evidenciar os pressupostos da psicologia clássica. Nesse sentido, os seus equí-
vocos são tão ou mais importantes que seus acertos.

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA VII


pensados como de natureza representativa. Contudo, o behaviorismo, por
não conseguir recusar totalmente essa mitologia, fica condenado ou a realizar
estudos fisiológicos ou a introduzir sob uma forma disfarçada aquilo mesmo
que rejeita. Esta aporia é expressa de forma exemplar por Greco: "É a infelici-
dade do psicólogo: nunca está certo de que 'faz ciência'. Mas se a faz, nunca
está certo de que seja a psicologia. "8 Assim, para ficarmos em exemplos mais
recentes, o behaviorismo de Skinner, que explicitamente rejeita a opção pela
fisiologia, acaba por cair na própria mitologia que condena, quando julga que
a psicologia deveria estudar o que ocorre fora da caixa preta, ou seja, os estímu-
los e respostas do organismo. 9 Ora, abandonar totalmente o mito da vida in-
terna é começar por acreditar na inexistência de qualquer modalidade de caixa
preta e que a linguagem não é e nem nunca será relato de estados subjetivos. As va-
riantes ainda mais recentes - não se pode jamais falar em progresso em psi-
cologia sem ser um pouco irânico-, que consideram que a mente é o software
enquanto o cérebro é o hardware, apenas modificam o vocabulário: continu-
am presas dentro dos mesmos parâmetros que paralisaram a investigação de
Watson.
Entretanto, é a psicanálise de Freud, tal como exposta principalmente em
Traumdeutung, 10 que Politzer usa para ilustrar ao mesmo tempo a forma de
pensar da psicologia clássica e os indícios de que seus dias estariam contados.
A psicanálise é apreciada porque parece romper com o quarto pressuposto da
psicologia clássica: a crença de que o psíquico resulte de processos e não de atos
de pessoas concretas (P4).
Para começar a entender esse aspecto central da Crítica ... , é preciso empre-
ender uma rapidíssima excursão pelas paisagens de uma outra crítica, muito
mais fundamental, a Crítica da Razão Pura, de Kant. Politzer não esconde que
sua Crítica ... é parte de seu projeto filosófico de restaurar, contra o neokantis-
mo dominante no cenário francês da década de 20, aquilo que ele acredita ser
o elemento mais significativo da obra de Kant: o papel essencial do sujeito e da

8 GRECO, P. "Epistémologie de Ia psychologie". ln: PIAGET, J. Logique et connaissance scientifique. Paris:


Gallimard, 19õl, p. 937.
9 O artigo "Critique of psychoanalytic concepts and theories", de B.F. SKINNER, é extremamente
esclarecedor e merece ser lido. ln: Minnesota Studies in the Philosophy o{ Science, FEIGl, H. & SCRIVEN,
M. (orgs.). Minnesota: University of Minnesota Press, 1956, pp. 77-87.
io FREUD, S. (1900). Die Traumdeutung. ln: Cesammelte Werke, II/III. Frankfurt: S. Fischer, 1976. Daqui
por diante, Traumdeutung.

VIII Prefóóo
experiência na produção do conhecimento.11 A chamada revolução copernica-
na de Kant consistiu em acreditar, com o empirismo, que somos afetados pelos
objetos e que, todavia contra o empirismo, só podemos conhecê-los à medida
que impomos a eles certas condições a priori. Ora, a primeira proeza da psico-
logia clássica consiste em transformar, apesar de todas as advertências do pró-
prio filósofo, o sujeito do conhecimento em sujeito psicológico; em seguida, ela
o despoja de qualquer papel na produção do psíquico; finalmente, o fato psico-
lógico passa a ser estudado como se fosse algo em si, ou seja, algo totalmente
exterior a qualquer sujeito. Traduzindo para um vocabulário mais simples, a
psicologia clássica transforma o sujeito em observador do psíquico, isto é, em
um sujeito capaz de realizar introspeções. O sujeito, transformado agora em
psicólogo, relata observações sobre seus estados internos, que resultam de pro-
cessos em que ele não desempenha mais qualquer papel, ou seja, o psíquico não
é considerado como um produto seu, mas, por exemplo, como resultado da
aprendizagem, da memória, do aparelho perceptivo que são, por conseguinte,
investigados como objetos em si. 12
No entanto, não é apenas o último pressuposto que seria questionado
pela psicanálise. Contra P1, Freud parece sugerir que o fato psicológico não seja
elementar e só possa ser entendido como parte de uma trama - o sonho, por
conseguinte, seria apenas o indício de um certo estado de coisas e só poderia ser
compreendido quando colocado nesse quadro mais amplo. Tampouco o psí-
quico teria uma natureza imediata e perceptiva; ao contrário, ele seria apreen-
dido através de inúmeras mediações e suporia interpretações por parte do
analista. Em relação a P3, a coisa é um pouco mais delicada. Embora Politzer,

11 Ver o artigo "Politzer dans ses écrits", de VOUTSINAS, D. (in: Bulletin de Psychologie, 408, XLV, 16-
18, Paris, 1991-1992, p. 742); em especial, o terceiro parágrafo. Kant procurou mostrar o que tornava
possível a experiência em geral e quais as condições a priori que permitiam a constituição dos fenôme-
nos físicos, tais como descritos pela física de Newton, com o objetivo de demonstrar o que justificava de
jure ela ser vista de facto como uma ciência. Politzer parte da constatação da esterilidade da investigação
psicológica e interroga-se sobre quais seriam as condições a priori supostas pelos psicólogos para consti-
tuir a experiência psicológica. A seguir, trata-se de mostrar porque tais condições justificam de jure essa
esterilidade. Da mesma forma que Kant não exigia que Newton fosse um filósofo, Politzer não requer
que os psicólogos ou Freud sejam filósofos. Mas, independentemente de sua vontade, todos eles fazem
opções de natureza filosófica quando constroem seu campo de investigação. Ver Psychology and the Philo-
sophy of Science (TURNER, M.B. New York: Appleton-Century-Crofts, 1967) para constatar a ingenui-
dade de supor que seja possível constituir fatos na ausência de quaisquer pressupostos teóricos.
12 A psicologia clássica, segundo Politzer, transforma os acontecimentos vividos pelos homens em pro-

cessos que ocorrem no interior da mente - realismo -, processos em seguida substantivados - abstracier
nismo - e tratados como classes de fenômenos psíquicos em que se perde toda significação individual -
formalismo.

CRÍTICA DOS FUNDNAENTOS DA PSICOLOGIA IX


sem dúvida, julgue que os exemplos de interpretação onírica de Freud em Trau-
mdeutung indiquem claramente que não se seria obrigado a crer na existência
de uma vida interna; todos os fatos apresentados durante a análise referem-se
a situações em que a subjetividade é compartilhada. Nestas, a relevância recai
sobre os atos do sujeito e não sobre processos internos, o que nos leva de novo
à rejeição de P4.
Contudo - Politzer é o primeiro a reconhecer - 1 se Freud aparentemen-
te combate os quatro pressupostos da psicologia clássica durante os capítulos
iniciais de Traumdeutung, no sétimo, "Zur Psychologie der Traumvorgãnger",
temos uma recaída completa. 13 Tudo se passa como se os primeiros capítulos
descrevessem a experiência analítica e o sétimo tentasse reintroduzi-la à força no
interior da psicologia clássica. Sem dúvida o leitor já se deu conta de que foi Po-
litzer quem inaugurou a idéia de que haveria na obra de Freud algo de muito
valioso recoberto por uma camada grosseira, que deveria ser retirada de modo
a podermos recuperar a sua essência. Antes de estudar se essa leitura é possível
- e acredito firmemente que Politzer seja o comentador que menos deturpa a
letra freudiana nessa empreitada digna de Sísifo -, convém investigar mais de
perto o modelo que parece orientar a própria psicologia clássica.

DO ESPEIHO INTERNO AOS ATOS DRAMÁTICOS


Koyré descreveu um dos aspectos da revolução científica do século XVII
como a passagem de um modelo do mundo concebido como fechado para um
modelo que entende o universo como infinito. 14 Da mesma maneira, é possível
tentar esboçar o modelo que nortearia as crenças da psicologia clássica. Ela con-
15
cebe a mente como um espelho interno que reflete os objetos externos. Nesse sen-
tido, a tarefa primeira do psicólogo é pedir ao agente que descreva os reflexos no
espelho. Esses relatos são em seguida comparados com a realidade. O trabalho

13 •E' prec1SO· acrescentar que Freu d se expnme


. em termos de 'representações', de 'estados efetivos'
etc., e essa linguagem o leva para o campo de influência da psicologia clássica. Isso é particularmente
visível na 'Psicologia dos processos do sonho'. A análise desse capítulo em que veremos Freud como
dilacerado entre a psicologia abstrata e a psicologia concreta será instrutiva ao mais alto grau." Crí-
tica... , p. 112.
14 KOYRÉ, A Du Monde Cios à /'Univers lnfini. (1957). Trad. Raissa Tarr. Paris: Gallirnard. 1973, p. 12.

15 Essa metáfora _sobre a essência .especular de nossa mente é analisada em grande detalhe por
RORTY, R., em Ph1/osophy and the Mtrror o( Nawre . New Jersey: Princenton University Press, 1979.

X P1efócio
do psicólogo estaria terminado quando ele descrevesse os mecanismos que tornam
possível O funcionamento do espelho.
Os quatro pressupostos mencionados da psicologia clássica estão todos
presentes no modelo da mente como espelho. Os objetos do mundo desper-
tam sensações que, por sua vez, geram representações na mente. Assim, o fato
psicológico é dado de forma imediata pela percepção (PJ sob a forma de sensa-
ções elementares (P1) que produzem representações internas (PJ O estudo da
ps~cologia está voltado para os processos (P4) que permitem ao agente consti-
tuir uma imagem do mundo. Uma forma interessante de descrever os equívo-
cos da psicologia clássica é presumir que ela tenha: (1) transformado a
observação de Kant, perfeitamente legítima no contexto de uma teoria do Co-
nhecimento (''Todos os nossos juízos são inicialmente apenas juízos percepti-
vos: eles têm validade apenas para nós, ou seja, para nossa subjetividade, e
somente mais tarde nós lhes damos uma nova referência, referência a um ob-
jeto, e queremos que eles sejam válidos para nós em todos os momentos e
igualmente para todas as outras pessoas ... "16), em um enunciado empírico so-
bre a gênese do próprio fato psicológico e (2) desconsiderado do enunciado de
Kant toda referência ao sujeito para reter apenas a referência ao objeto. A con-
seqüência do segundo equívoco eqüivale, em termos kantianos, a retornar a
uma teoria do conhecimento empirista, ou seja, à crença problemática de que
seria possível conhecimento sem qualquer contribuição por parte do sujeito.
Essa química da mente - a forma pela qual essas teses aparecem na história da
filosofia de uma maneira muito mais sofisticada do que aquela desenvolvida
pela psicologia clássica - pode ser estudada apropriadamente na obra de Stuart
Mill.17

Essa forma de apresentação do modelo do espelho interno permite estu-


dar um quinto pressuposto (P5) da psicologia clássica, denominado por Politzer
"postulado da convencionalidade do significado", que reza que os relatos têm
apenas um sentido convencional. Não é difícil entender a sua necessidade, da-
dos os pressupostos anteriores. Para que se possa verificar em que medida a

16
KANT. I. (1783). "Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik, die als Wissenschaft wird
auftreten kõnen". ln: Werkausgabe, Band V. WEISCHEDEL, Wilhelm (org.). Frankfurt: Suhrkamp,
1968, p. 163.
17
Uma descrição adequada do programa de Mill para a psicologia empírica encontra-se em Psychologi-
cal Analysis and the Phi/osophy o{ John Stuart Mil/. WILSON, F. Toronto: University of Toronto Press,
1990.

CRÍTICA DOS FUNDM\ENTOS DA PSICOLOGIA Xl


m en te reflete adequadamente os objetos externos, é preciso presumir que a
função básica da linguagem seja denotar as representações produzidas pelas sensa-
ções. Em outros termos, o pensamento tem de ser concebido como uma asso-
ciação complexa de representações cuja tarefa primordial é espelhar de forma
apropriada a realidade externa. A única maneira de acesso ao pensamento, pro-
cesso interno, é expressá-lo em palavras, manifestação externa. Por conseguin-
t~ "os relatos do sujeito não só pressupõem o pensar como são ao mesmo
tempo o seu índice". 18 Para que essa série de relatos subjetivos possa ser consi-
derada objetiva, os relatos devem comunicar todas as vezes algo comum e
constante; caso contrário, não haveria como diferenciar alucinação de repre-
sentação apropriada da realidade. Nesse sentido, para a psicologia clássica, o so-
nho não constitui um fato psicológico, pois não só ele não parece refletir
nenhuma realidade externa como é impossível comprovar seu sentido co-
mum. Por conseguinte, o sonho é entendido como resíduo de um processo fi-
siológico, ou seja, como uma manifestação sem sentido. As tentativas de
diversos pesquisadores para encontrar uma fonte para o sonho são apenas a
tentativa de buscar uma referência externa e objetiva. Até mesmo para a psico-
logia clássica deve ter soado estranha a tese de que a mente seria capaz de gerar
produtos espontâneos.
No lugar do modelo baseado no espelho, Politzer propõe que a psicologia
tome o teatro como sua metáfora fundamental. 19 Não devemos pensar que ele
esteja sugerindo que o psicólogo deixe de ser um desajeitado aprendiz da ativi-
dade científica para se transformar em uma espécie de esteta. Longe disso: Polit-
zer não é Wittgenstein. 20 Este último, em suas esparsas observações sobre a

18 Michel Foucault ob~erva que "a psicanálise nunca chegou a fazer as imagens falarem" (lntroduc-
tion, 1954. ln: Dtis et Ecríts, I. DEFERT, D. & EWAI.D, F. - org. Paris: Gallimard, 1994, p. 73) . No
entanto, acreditamos que Freud tampouco deixa a linguagem falar: ele considera as palavras, da mesma
forma que as imagens, como meros índices do pensamento.
19 Politzer esclarece a noção de drama por ele utilizada : ''Tornamos o termo 'drama' na sua acepção
mais inexpressiva, descolorida ao máximo de todo sentimento e de toda sentimentalismo; na acepção
que ele pode ter para um encenador; em resumo, na sua acepção cênica. O teatro deve imitar a vida?
A psicologia, para escapar de uma tradição milenar e para retomar à vida, talvez deva imitar o teatro"
(Bulletin de Psychologíe, p. 794).
20 A única razão de mencionar Wittgenstein foi indicar que a crítica feita por Politzer à psicologia
clássica pode ser realizada a partir de outros horizontes filosóficos que não passam por Hursserl, Hegel
ou Heidegger. Por exemplo, no final de Phtlosophical Jnvestigations (1953), Wittgenstein escreve: "A con-
fusão e a esterilidade da psicologia não devem ser explicadas qualificando-a de 'ciência jovem'; seu
estado não é comparável, por exemplo, com o da física nos seus primórdios. [... ] Pois na psicologia há
métodos experimentais e confusão conceituai" (trad. G.E.M. Anscombe. Oxford: Blackwell, 1972, p. 232).

XII Premeio
psicanálise, acredita que, apesar de uma série de equívocos, Freud foi capaz de
propiciar algumas interessantes explicações estéticas. 21 Para o primeiro, mais
uma vez, a inspiração é kantiana: quem sabe, abandonando essa pretensão alu-
c~ada de fazer uma ciência da coisa em si, 22 se os psicólogos não pcxierão contri-
buir para a construção de um saber empírico sobre as atividades concretas de
homens concretos, cooperando, dessa forma, para a constituição de uma antro-
pologia. Para entender o novo mcxielo, é interessante apreciar como ele substitui
cada um dos pressupostos da psicologia clássica por novos pressupostos que efe-
tivamente constituem um programa viável de investigação empírica.
Contra P1, a experiência prática dos homens23 ensinou que o fato psicológico
não é elementar. Sempre que vamos ao teatro e assistimos a uma peça constata-
mos que o conteúdo dramático não pode ser dissolvido em conteúdos elementa-
res. Cada cena revela um fragmento do conteúdo dramático, que só adquire o seu
pleno sentido quando conseguimos inseri-lo na trama tecida progressivamente
diante de nossos olhos. Por conseguinte, Politzer acredita que os ªfatos psico-
lógicos deverão ser os segmentos da vida do indivíduo particular". 24
Tampouco devemos manter P2• O fato psicológico, concebido a partir da
metáfora do teatro, não é um dado; ao contrário, é construído e supõe sempre
um ato interpretativo por parte do psicólogo concreto: ªSeu método não será,
portanto, um método de observação pura e simples, mas um método de inter-
pretação. "25

21
Wittgenstein, segundo notas de Rush Rhees (1946), comenta sobre o tipo de explicação que Freud
fornece em Traumdeutung: "Você poderia começar com qualquer um dos objetos desta mesa - que evi-
dentemente não foram postos aqui por via de sua atividade onírica - e comprovar que todos eles pode-
riam estar correlacionados numa configuração assim; e a configuração seria igualmente lógica" (Esté-
tica, Psicologia e Religião, trad. José Paulo Paes. São Paulo: Editora Cultrix, 1970, p. 87). Em outros ter-
mos, as supostas explicações de Freud apenas fornecem formas de apresentação; ele é incapaz de prever
as configurações efetivas, como ocorreria caso as explicações fossem realmente científicas.
22 Se o leitor acha que Politzer exagera na sua crítica de que a psicologia procura realizar a impossível

tarefa de fazer a ciência da coisa em si, basta recordar a seguinte passagem de Freud em "Das
Unbewubte": "Mas com satisfação aprenderemos que a correção da percepção interna não oferece difi-
culdades tão grandes como a externa, que os objetos internos são menos incognoscíveis que os do
mundo externo" (in: Studienausgabe, Band lll. Frankfurt: S. Fischer, 1915, p. 130). O principal equívoco
da psicologia clássica, conforme já deve ter ficado patente, é transformar questões conceituais em ques-
tões empíricas.
23 Politzer acredita que a psicologia clássica seja mitológica. Para ele: "os produtos da tradição dramá-

tica: a literatura o teatro, e a praktische Menscherkenntnis [o conhecimento prático do homem] (...)


representam no ~u conjunto a verdadeira psicologia pré-científica". la Crise ..., p. 70.
24 enuca
, . ..., p. 67.
25
/bid., p. 68.

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOOA XIII


O palco é o lugar em que os atores desempenham seus papéis e, para nós,
esse cenário é suficiente e, na realidade, o único relevante para entender a vida
de cada um dos personagens. Não recorremos à vida pessoal do ator para com-
preender o motivo de Hamlet hesitar diante de seus próprios desígnios. Da
mesma maneira, o psicólogo concreto abandona P3, ou seja, o mito da vida in-
terior. Os atos do agente são suficientes, não há necessidade de recorrer a uma
outra cena.
O objeto de nossa atenção é sempre o personagem e não algum processo
transformado em objeto. Assim, por exemplo, o que nos impressiona é ociúme
de Otelo e não o ciúme; a ambição de Ricardo III e não a ambição. A psicologia
concreta está voltada para o estudo do agente e, portanto, abandona P4, ou se-
ja, a investigação dos processos que ocorreriam no interior do indivíduo.
Finalmente - e acredito que este seja o ponto nuclear da crítica de Polit-
zer a Freud, como veremos a seguir-, a psicologia concreta renuncia à crença
no postulado da convenciona/idade do significado. Para entender o sentido dessa re-
núncia e iniciar a resposta sobre o que tomou possível a leitura que Politzer fez
de Traumdeutung, é suficiente examinar a homenagem prestada por l.aplanche.

O INCONSCIENTE EA PSICOLOGIA CONCRETA


Para Politzer, é possível nomear a tentativa de Freud de coagir a experiên-
cia analítica a submeter-se aos pressupostos da psicologia clássica recorrendo a
um único termo: o inconsciente. 26 A descoberta maior de Freud não teria sido a
descoberta de processos inconscientes ou mesmo do próprio inconsciente, mas
deslocar: "o interesse das entidades espirituais para vida dramática do indiví-
duo" e poder passar "da investigação da realidade interior para ocupar-se ape-
nas com a análise do 'drama"'. 27 Ora, a noção de inconsciente-e isto é, para
muitos, quase uma trivialidade - traz para o primeiro plano a vida interior.
Assim, l.aplanche procura responder às objeções contra o inconsciente, formu-
ladas por Politzer, tentando mostrar que elas apenas se aplicariam a uma con-
cepção de inconsciente entendido enquanto latente mas não no sentido

26 Em Crítica ... , encontramos, por exemplo: "o inconsciente só representa na psicanálise a medida da
abstração que sobrevive no interior da psicologia concreta" ou "o inconsciente é inseparável dos procedimen-
tos fundamentais da psicologia abstrata e que, longe de constituir, na psicanálise, um progresso, indica
precisamente uma regressão: o abandono da inspiração concreta e a volta aos procedimentos clássi-
cos". pp. 131 e 153, respectivamente.
27
Crítica..., p. 103.

XIV Premeio
dinâmico, uma vez que a psicanálise "funda a existência autônoma do incons-
ciente [•••] nos fenômenos do recalque da resistência em última análise, na
noção de conflito, nessa dialética à qual' apela Politzer 'aqui, mas em vão, por-
que ele eliminou a distinção dos planos que lhe permitiria funcionar". 28
Iniciamos pelo final da réplica de Laplanche: o conflito é essencial para ca-
racterizar a descoberta psicanalítica, contudo só se pode expressá-lo pela distin-
ção entre dois planos; traduzindo: pela oposição entre dois sistemas - pré-
consciente e inconsciente. Em outras palavras, é preciso recorrer à idéia de in-
terioridade, caso se deseje exprimir o conflito psíquico. Ora, se nos voltarmos
para a metáfora do teatro, seremos obrigados a dizer que o conflito é sempre um
conflito que se expressa em primeira pessoa. Com essa observação queremos
dizer que os atos que nos levam a suspeitar do conflito - Politzer abomina a
idéia de que o agente seja seu próprio psicólogo - são sempre atos do indiví-
duo X e não de algo que age no interior de X. Se o agente, ao sonhar, identifica-
se com Y, W, Z, é ainda o agente que se identifica e não algo no seu interior. A
pluralidade de vozes que indivíduo X pode carregar consigo não deve ser toma-
da como o caminho real para achar que algo no seu interior padece de polifonia
aguda. Portanto, a observação de Laplanche "quando 'ça fala' no inconsciente,
encontra-se bem a unidade dramática cara a Politzer"29 é falsa, pois o que está
sendo questionada é a existência justamente de um "ça que fala" e ainda mais
no inconsciente! É exatamente esse tipo de consideração que Politzer chama
de abstração, ou seja, a substituição de atos do indivíduo por processos descritos
em terceira pessoa.
Outra maneira usual de reduzir o impacto da Crítica ... é vinculá-la, sem
atentar para sua especificidade, a uma determinada tradição filosófica; no caso
mais freqüente, à fenomenologia, uma vez que Politzer endossa a tese da ima-
nência do sentido. 30 Todavia, um dos seus exemplos contra o realismo do in-
consciente é considerar que as regras do jogo de tênis estão presentes durante

28
WIANCHE, J. & LECIAIRE, S. Op. cit., p. 116, nota 3.
29
lbid., p. 113.
30
As obseivações de alguns autores sobre a influência da fenomenologia sobre Politzer são no mínimo
curiosas. Por exemplo, Laplanche observa que: "A esse realismo da significação, Politzer opõe uma teo-
ria da imanência do sentido que, se não empresta seus elementos da doutrina fenomenológica, poderia
perfeitamente ser reivindicada por ela" (lbid., p. 114); Bento Prado constata que: "O vocabulário téc-
nico da fenomenologia husserliana não está presente na CFP (assim como não encontrei nenhuma
referência a Hursserl nos escritos de Politzer, no entanto tão familiarizado com a literatura teórica
alemã), mas um certo estilo fenomenológico parece impregnar todo o seu ensaio". ("Sessenta anos da
Crítica dos Fundamentos da Psicologia". ln: Filosofia da Psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 16).

CRÍTICA DOS FUNDM\ENTOS DA PSICOLOGIA


. de tênis sem que sejamos, por isso, obrigados a nos indag.ar em
uma particlda . m quando os 1·ogadores não as invocatn. Esse é o tipo de
qu e.lugar as estana
od • 'do dado por Wittgenstein e acred'1to que sena
· ncce_s-
lo que p enater s1 . ' . .
: ~: ~ma interpretação totalmente heterodoxa da sua filosofia para aprox1•
má-la da fenomenologia de Hursserl. O que os dois pensadores condenam
reconstruído no contexto em que nos colocamos, como a crença em
Pod e Ser ' · · · d' d
duas teses: (1) existe apenas o sentido convenc1onal, fixo e 1~e tato para ca a
proferimento; (2) sempre que a tese (1) for aparentemente v10lada, ela realiza·
se em outro plano.
No caso de Freud, a adoção de (1) decorre do fato de ele aceitar que a única
função da linguagem é referir-se a objetos. Ou seja, para ele, sempre há uma li-
gação profunda entre representação de palavra e representação de objeto por
trás de toda ligação superficial em que o vínculo entre esses dois termos parece-
ria estar rompido (2). 31 Em última análise, como indicamos, a palavra é tomada
como um índice do pensamento. Contra essas teses, Politzer propõe que o sen-
tido não seja nem imediato, nem fixo; o sentido convencional seria apenas um
ponto de partida. No lugar da dualidade entre conteúdo manifesto e conteúdo
latente, existiria apenas o último, mas entendido de uma forma que refuta
mais uma vez a convicção na existência de uma vida interior representativa, ou
seja, que refuta a tese do realismo do inconsciente. O conteúdo latente designa
agora o fato de a abertura do sentido e de sua apreensão não serem imediatas,
32
porém construídas de forma interpretativa durante a análise.
A alternativa oferecida por Laplanche de que ou haveria um sentido fixo
33
convencional ou um sentido totalmente novo, inédito é mais uma vez fals~
e está igualmente baseada na crença de que a única função da linguagem é de-
notar. Mantê-la é perpetuar a crença de que o "aparentemente inusitado" é 0
"convencional disfarçado", isto é, estamos diante de um ótimo exemplo do que

a1 Freud considera que: •A psicanálise das neuroses usa da f . b


domínio sobre o curso de representação, com o cancelament~r;a mais a und~nte dua~ proposições: o
passa para as representações escondidas de meta e as associaçõe::~epr~s-~~taç~s conscientes de meta,
de deslocamento para associações suprimidas mais fu d s· per c1ais sao apenas um substituto
res de sua técnica." Traumdeutung, pp. 536-537. pro n as. im, ela eleva as duas proposições a pila-

32 Poli~r ~verte a tese dominante de que só haveria o conteúd .


de que so existina o conteúdo latente na acepção d F d o marufesto para adotar a crença
~postulado~ c.onvtnâonalidade do significado em out;o rf~n~-em ou~ros te~~s, não se trata de manter
!idade das dicotomias canónicas - subjetivo e ob'etivopint ' mas Slffi de indicar, mais uma vez, a futi-
s,ca e, para ele, superadas pela psicologia concreta . 1 ' erno e externo - presentes na psicologia clás-
33 WlANCH E, J. & LECIAIRE, S. Op. cit., pp. 115-116.

XVI Prefácio
Politzer denominaria o realismo da psicologia clássica. Entretanto, Laplanche faz
uma distinção muito interessante entre a "atitude de tradução simultânea" e a
"atitude de atenção aos fenômenos lacunosos". 34 Sem considerar o papel que a
distinção é chamada a desempenhar na economia de sua comunicação, ela
pode ser entendida como estando baseada em duas metáforas muito distintas,
usadas por Freud para caracterizar a relação entre conteúdo manifesto e con-
teúdo latente.
A primeira atitude poderia estar apoiada na analogia dos dois conteúdos
com dois textos escritos em línguas distintas ou com duas versões de um mes-
35
mo texto. Sem dúvida ela é bastante inexata porque a idéia de tradução sem-
pre implica crer que se possa ir livremente de uma língua ou de uma versão
para outra e vice-versa. Mas se Freud descreve como o trabalho da análise des-
faz o trabalho do sonho - isto é, como o primeiro trabalho permite que se re-
cupere o conteúdo latente a partir do manifesto-, a passagem do latente para
o manifesto é, para dizer o mínimo, bastante misteriosa. No entanto, essa me-
táfora é proposta porque ela exprime a crença de que a referência última dos dois con-
teúdos seja a mesma. Por conseguinte, contra Laplanche, seria muito difícil
acreditar que Politzer de alguma maneira recorreria à metáfora da tradução.
Para este, simplesmente não há o que traduzir porque não há nada oculto ou en-
coberto. Acreditar na existência do conflito ou que existiria algo de misterioso
no homem36 não acarreta crer que, enquanto o indivíduo não se dá conta da sua
existência, o conflito estaria em uma outra dimensão. Em outros termos, o
conflito é simultâneo à produção do sentido.
A segunda atitude parece encontrar sua justificativa na metáfora da cen-
sura russa de jornais estrangeiros na fronteira. 37 Ela é privilegiada por Laplanche

34
Ibid., p. 117.
3.5 "Pensamentos e conteúdo do sonho presentificam-se para nós como duas apresentações do mesmo
conteúdo em duas línguas distintas __ou, expressando de uma forma melhor, o conteúdo do sonho apa-
rece para nós como uma versão (Ubertragung) dos pensamentos do sonho em uma outra forma de
expressão cujos caracteres e leis de ligação devemos tomar conhecimento através da comparação entre
o original e a tradução." Traumdeutung, p. 283.
36 Quando se afasta o postulado da convencionalidade do signi(,cado deve-se estar preparado para os misté-
rios que o sentido reserva para nós. Contudo, essa possibilidade sempre renovada de significar não deve
ser usada para procurar "responder a todas as perguntas que o drama faz e que levam necessariamente
à vida interior." Crítica... , p. 189.
37 "Essa censura comporta-se de maneira bastante análoga à censura russa de jornais na fronteira que
permite que os jornais estrangeiros cheguem às mãos dos leitores a proteger somente se recobertos de
traços negros." Traumdeutung, p. 534.

CRÍTICA DOS FUNDM\ENTOS DA PSICOLOGIA XVII


rque explicita a noção de inconsciente a partir da idéia de censura. Esta seria
Po sa'vel pela produção de lacunas, marcando asslffi que, para Freud "o in-
respün . , ,. '
consciente é rigorosamente separado do te){to manifesto . Apesar de o mesmo
ti de objeção acima pader ser transposto para a segunda atitude, afinal a cen-
s= toma lugar do indivíduo na análise, ela merece um tratamento mais longo
O
Porque permite avançar no estudo dos pressupostos da psicanálise para, mais
adiante, avaliar a leitura realizada por Politzer de Traumdeutung.

o Eo..ETISMO FILOSÓFICO DA PS!CANÁUSE DE FREUD


A metáfora da censura russa também concebe um texto acabado, o jornal
estrangeiro, que só em um segundo momento seria sujeito à censura, as linhas
negras sobre as passagens consideradas indesejáveis. Se efetivamente essa me-
táfora pudesse ser considerada aceitável, teríamos a idéia de que o conteúdo
manifesto, otexto do jornal estrangeiro lido na Rússia, é igual ao conteúdo latente,
o texto do jornal estrangeiro, mais a ação da censura, as linhas suprimidas na fron-
teira. Por conseguinte, o fato de o conteúdo manifesto ser menor do que o con-
teúdo latente é levado em conta pela metáfora em exame quando se assinala
que a censura age pela supressão de linhas. Da mesma maneira é contemplada
a hipótese do realismo do inconsciente: o te){to do jornal estrangeiro existe tan-
39
to quanto a sua versão censurada.
No entanto, mesmo que concordemos que a experiência analítica condu-
za às descobertas de que o relato do sonho é muito menor que o relato que re-
sulta da análise do sonho e de que o sentido que se produz lentamente é objeto

38 WIANCHE, J. & LECWRE, S. Op. cit., p. 118.


39
Mal~olm proc~ra mos:rar como Chomsky, ao constatar que as crianças a partir de algumas senten-
ças ouv1~as a~qu1rem a linguagem de sua comunidade, tentou encontrar um mecanismo que expli-
O
casse a dispandade,entre as duas gr~ndezas: o número de sentenças que a criança ouve e número de0
sentenças que ela e capaz de profe1:1'. 8e conclui que: "No fundo, Chomsky está maravilhado com
fato de ·que
de tanto possa resultar
1 · de tao
. . pouco"
. e que "A posição de Chomsky pode ser me1hor entend'd
1a
se co~1 rar?1os sua perp eX!dade 1ruc1al como (,losó(ica e sua solução como metafísica" (MALCO
N. W111unae,nc A ,el,g,M point o( Wew1 Ithaca, Cornell Univmity Press 1994 p 56) A d FLMJ
refenr-se ao sonho, na realidade, ele analisa relatos de sonhos O sonho' enqu'an.t tal. _pesar e_ .re~
alucinada t · • · , · o e uma vivencia
consciênc: ~:q:;av;:~: :urut~e:~:~::i~ie:tr:vés da palavra ("memória e qualidade para a
vão os sonhos, qual o seu destino etc e' um - es - Traumdeutung, p. 545). Saber para que lugar
- • • a questao tao sem sentid0 .
tao em relaçao ao tempo Mas sem dúvid F d . quanto repetir a mesma ques-
relato do conteúdo manifesto' e o relat d reu igualment_e se assombra com a desproporção entre o
solução é também metafísica e como taol o ~uposto ~onteudo latente (Traumdeutung, p. 284ss.). Sua
. suscita questoes sem r 5t
que mecarusmos a censura selecionaria as pala . . espo a como, por exemplo: através de
vras mais mocentes?

XVIII Prefácio
de v~as obje~ões por_ parte ~o analisando - e Politzer parece endossar ambas
- sen~os, ~da assun, obngados a aceitar, com 1.aplanche, a defesa do realis-
mo do inconsciente? Antes de responder ev!ln-.;... .,. · · d
O ali d , ~ .u.u.u.emos a expenencia mais e
°
perto. an san conta um sonho. Ele não apreende imediatamente o senti-
do do relato do sonho e reluta em aceitar algumas po ·bili"dad
d ,. ssi es que se apresen-
tam n~ curso a ~~e:
A partir de algumas indagações e de referências a outras
narrativas, sentido tntetal sofre uma expansão progressiva. Para que se possa man-
0

ter a crença de ~ue a ~nálise esteja desfaze,ndo a censura, ou seja, removendo as li-
nhas negras, e preciso supor efetivamente a realidade anterior tanto do
conteúdo latente quanto da censura. Assim, diz-se que a análise desfez o traba-
lho do sonho. Uma outra metáfora de Freud-comparando os elementos do
sonho a um quebra-cabeças-, 4° presume igualmente que só exista uma dispo-
sição adequada para as peças e anterior à sua montagem efetiva. Portanto, a teo-
ria inverte a relação temporal entre conteúdo manifésto e latente tal como ela é dada
pela experiência e imagina que a resistência atual é repetição de uma censura ante-
rior. Justamente porque Freud não consegue livrar-se de P5, ele é levado a dizer
que a análise não produziu um sentido inicialmente ausente, porém a defender
que o sentido existia e fora reprimido. Se, ao contrário, acreditarmos, contra P5,
que o sentido é aberto, a metáfora mais adequada seria a do calidoscópio, ou se-
ja, há infinitos sentidos possíveis, embora nem todos sejam igualmente interes-
santes ou significativos. Como, contra P1, não aceitamos que o fato psicológico
seja elementar, podemos perfeitamente presumir que, no curso da interpreta-
ção, algumas possibilidades de sentido não sejam imediatamente aceitas pelo
agente. Contra isso, Laplanche objeta que não se saberia qual desses sentidos é
41
0 sentido verdadeiro. Tal réplica só teria sentido no quadro de uma teoria que,
mesmo recorrendo a um novo vocabulário, à lingüística, a uma estranha álgebra

40
Traumdeutung, p. 284.
41 IAPIANCHE, J. & LECIAIRE, S. Op. cit., p. 117. Também poderia ser objetado contra. nossas
observações sobre a crença de Freud em P5 que elas desconsideram a tese de qu~ o sonho tena_ uma
· - mu'lt"1pla . No entanto, basta recordar que . mesmo antes. do apareomento 1
detenrunaçao da alidad
noçao ded
de - t
con nsaçao a ese, J •· 'á p"esente em Breuer ' de que um sintoma
1 podena
· remeter a uma p
· ur · e e
. ·
cenas dIStmtas - ocultava
nao . a crença
• de que em todas ,. e as estana
ha · presente o mesmo
· d mvanante,
d no
-
de B do hipno, 1·de Para Freud a ideia de que vena um mecanISmo e con ensaçao
caso reuer o esta · · ' b · d da ·da
no sonho tam '· uco un · pede a tese m"ior de que "Os sonhos são um pedaço so repuJa o , . men-
VI
un
cu
·
tal m t fan (,)'° ···-'
i raumaeu1ung,
PP • 572-573)
· , ou se1·a 1
os relatos de
, •
sonho remetem sempre
e1 f d anal · sen-
a um uruco d
t1.do.. o deseio· infantil·, tese que 1·á deveria_ ter ficado exphata • com566)o uso que e az a agia o
desejo infantil com o capitalista na produçao do sonho (op. Ctt., P· ·

CRÍTICA DOS FUN0~ENTOS DA PSICOlOOA XIX


--------
- mitológica? - ,42 ainda conserve postulados da psicologia clássica e, nesse pon-
to, a noção de verdade por correspondência, pressuposta por P5•
A metáfora da censura russa tem ainda uma outra conseqüência nociva:
ela pode levar à idéia falsa de que, se censura não existi~se, hav~ria u_ma iden-
tidade entre conteúdo latente e marufesto. Esse entendimento e erroneo por-
que contraria explicitamente a tese de ~reud de que "esquisitices e absurdos
resultam da influência da censura psíqmca que o sonho expenmentou durante a
sua formação" .43 A censura, portanto, não age após a formação do sonho, e sim
durante a própria formação.
A segunda atitude, assinalada por I.aplanche, poderia oferecer um argu-
mento melhor contra Politzer se, atentos ao ensinamento de que a censura já
age na produção do sonho, recorrêssemos a uma outra metáfora: a existência do
inconsciente está dada pela presença de lacunas na fala que são semelhantes à exis-
tência de buracos em um queijo suíço. Esses buracos são produzidos durante o pro-
cesso de fabricação do queijo; por conseguinte, não teria sentido indagar o que
aconteceria se eles não existissem. 44 No entanto, antes de saudarmos essa me-
táfora como a salvação do realismo do inconsciente, é preciso investigar se ela
requer mesmo a manutenção da crença na existência da vida interior. Para exa-
miná-la, torna-se necessário mostrar como o ecletismo filosófico de Freud per-
mitiu a leitura de Politzer.
A psicanálise freudiana pode ser descrita de forma extremamente sucinta
como a tentativa de resolver a seguinte questão: como é possível que na histeria
e~teja pe~dida a capacidade de nomear o estado afetivo responsável pela produ-
çao dos sintomas ?45 A resposta inicial foi considerar que esse estado afetivo ti-
nha sido s~bmetido à repr:ssão (Verdrdngung). Dessa maneira, o sintoma podia
ser con~eb1do como um simbolo do afeto reprimido. A primeira tentativa de
const~ir um m~elo da mente para justificar esses discernimentos encontra-
se e1;1 Entwurf e1ner Psychologie",46 que, após alguns ajustes, é o embrião do
Capitulo VII de Traumdeutung. O próprio "Entwurf.. ·", por sua vez, b ase1a-se,
·

42
lbid., pp. 137-145.
43
Traumdeutung, p. 510.
:"""'°'
~e os buracos não existissem, o queijo, no fundo não
44 ,
a tentativa frustrada de prepará-lo. '
. .
sena constderado um queijo suíço; no
. F~eud conserva a essência do método catártico· "d .
d1en uber Hysterie. ln: Gesammelte Werke Band I F fuar a p~vra ao estado afetivo" (FREUD S. Stu-
nk.

46 "E ' · ra rt: S. Fischer 1977 252) '


ntwurf einer Psychologie" (Pro'eto de . . ' ' p. .
cher. Nachtragsband, 1987. 1 uma psicologia). ln: Gesammelte Werke. Frankfurt: S. Fis-

XX Preiício
em sua grande parte~ e~ três textos publicados anteriormente por Freud: Zur
Auffassung ~er Apha~ten, Ouelques considérations pour une étude comparative
des paralysies motnces organiques et hystériques" e o quarto capítulo de Studi-
en über Hysterie, "Zur Psychotherapie der Hysterie".47
Em Zur Auffassung, Freud propõe um modelo para a linguagem que está
baseado em duas noções básicas - representação de palavra e representação
de objeto, inspiradas na química mental de Stuart Mill.48 No segundo texto,
publicado originalmente em francês, apesar da presença de indícios que indi-
cam a influência do texto sobre a afasia, Freud diferencia a paralisia orgânica
- por exemplo da mão - da paralisia histérica, dizendo que a área afetada no
caso da segunda está dada pela linguagem natural e não pela anatomia. 49 Em ou-
tros termos, tudo se passa na paralisia histérica como se a representação de
objeto - uma representação complexa, indefinidamente aberta e organizada
pela imagem visual - tivesse sido formada a partir da representação da pala-
vra, uma representação complexa, fechada e organizada pela imagem acústi-
ca. Esses dois modelos, que podemos chamar respectivamente de quimismo
mental e subjetividade compartilhada, aparecem de novo em "Zur Psychothera-
pie der Hysterie" sob a forma de uma proposta para uma teoria da represen-
tação50 e do pressuposto da expectativa de normalidade. 51 Em "Entwurf..." -
uma tentativa de construir uma teoria da mente que atenda a todos os pres-
supostos examinados até aqui da psicologia clássica-, está presente igual-
mente o modelo da subjetividade compartilhada: o grito da criança que expressa
dor ou fome adquire uma função descritiva depois que a pessoa que auxilia a

47 FREUD, S. Zur Auffassung der Aphasien. Leipzig und Wien: Deuticke, 1891; "Ouelques considérations
pour une étude comparative des paralysies motrices organiques et hystériques". ln: Gesammelte Werke,
Band 1. Frankfurt: S. Fischer, 1977.
48
Zur Auffassung... , p. 80.
49
"Ouelques ... "1 pp. 50-51.
50 "Prossigo nessa última parte da apresentação com a expe~tativa de que as car~c~e~ticas psíquicas

reveladas aqui possam ter um dia certo valor enquanto matenal tosco para uma dinarruca da represen-
tação." (Studien ..., p. 290).
51 "Quando as ligações de representação dos neuróticos e, em especial, dos histéricos dão uma outra
impressão, quando aqui a relação das intensidades de di~erentes representaçõe~ parece inexplicável ape-
nas a partir de condições psicológicas, travamos conhecunento, no entanto, 1ustamente com a razão
dessa aparência e sabemos atribuí-la à existência de motivos ocultos, _inconscientes" (St'!"ien ... , p. 298~.
Essa última citação é importante porque revela que Freud procura vmcular a expectativa de normali-
dade - a expectativa de que as pessoas comportam-se sempre de acordo com certos parâmetros sociais -,
com uma teoria representativa da mente.

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOOA XXI


criança desamparada dá a esse ato de exteriorização um sentido através de sua
nomeaçao.- 52

O modelo do quimismo mental parte de um solipsismo perceptivo, ou seja,


de um indivíduo isolado que, a partir de sensações e de representações por elas
produzidas, constrói pensamentos - longas cadeias associativas de represen-
tações - e depois, através da palavra, partilha seus pensamentos com outros
indivíduos. Assim, a linguagem é entendida como sendo posterior ao pensa-
mento, na verdade, como seu índice. Dizendo de uma outra maneira, o pensa-
mento é condição de possibilidade da linguagem.
O modelo da subjetividade compartilhada presume a existência de três ter-
mos: o indivíduo, uma outra pessoa e o relato. O primeiro externa algo - e é
fundamental entender que esse ato inicial de externar não é a comunicação de um
estado interno - e a outra pessoa interpreta essa manifestação como expressão
de um estado afetivo, como se fosse a descrição de um estado interno. A partirdes-
sa interpretação da nomeação da pessoa prestativa, a exteriorização recebe um
sentido descritivo, e não antes. Neste caso, a situação inicial de interação tor-
nou possível o pensamento, ou seja, a linguagem é entendida agora como con-
53
dição de possibilidade para o pensar.
O ecletismo filosófico é patente quando atentamos que a construção da
teoria psicanalítica pressupõe os dois modelos.As famosas dualidades, descritas
ao infinito pelos comentadores de Freud, nada mais fazem do que exprimi" sem
se dar conta, essa contradição fundamental. Para ficar em um exemplo que mar-
cou mais de uma geração: atentemos para a tese de Ricceur de que a psicaná-
lise é um discurso misto, energético e hermenêutico.54 O vocabulário da força,
do estímulo, da quantidade, do afeto etc. expressaria, para ele, a face energéti-

52 "Entwu~---~, pp. 456-457. Sílvia_Faustino assinala: "Exteriorizar é um ato de sair de si e não de vol-
tar-se pa;a s1; e um ato _que ~usca ~teraçã~, e não auto-reflexão ou auto-reconhecimento. Por isso seu
modelo e o de um ato lffie~iato, pre-refleXIvo e pré-cognitivo: ao gritar, o sujeito não reflete sobre si
mesmo; nem se conhece a s1 mesmo, mas tão-somente exterioriza-se para que O outro _ este sim _ 0
conheça e conheça o seu estado". Freud tenta conciliar os dois modelos pela suposição de que são as
outras ~ssoas que descobrem que al~o está errado no plano da minha vida interna. Assim, ele conse-
~e realizar a fa~nha de manter o m1to da vida interior ao mesmo tempo que desqualifica a intros c-
çapo enq~to via de acesso a essa suposta interioridade." (Wittgenstein _ O eu e sua gramática ~o
au1o: At1ca1 1995, p. 65). ·
53
Na metáfora do teatro a relação é ternária e nao
- bºmana:
' · estao
- presentes o espectador o ator e a fala
do ator. ,
54
RICCEUR, P. De l'Interprétation. Paris: Seuil, 1965, p. 75.

XXII Prefócio
ca da psicanálise, quando, na verdade, aponta para o modelo do quimismo men-
tal, enquanto os termos hermenêuticos - interpretação, sentido, símbolo
etc. - , que seriam o indício da face hermenêutica, traem a presença do mo-
delo da subjetividade compartilhada. A leitura de Politzer, a mãe de todas essas
leituras, é possível não porque os seis capítulos iniciais de Traumdeutung des-
crevam a experiência analítica e o último tente constrangê-la a entrar na ca-
misa de força da psicologia clássica, mas porque efetivamente Freud mistura os
dois modelos durante toda essa obra e em seus numerosos escritos de uma for-
ma bem menos visível do que aquela que a minha observação sobre Ricreur
possa ter sugerido. Como efetivamente, na análise de um sonho, parece pre-
valecer o modelo da subjetividade compartilhada, é natural que se acredite que
apenas no sétimo capítulo o modelo do quimismo mental faça a sua aparição.
No entanto, uma leitura atenta encontrará fragmentos dos dois modelos ao
longo de Traumdeutung.
A polêmica entre Laplanche - o inconsciente é a condição da linguagem
- e Lacan - o inconsciente organiza-se como uma linguagem - presente na
homenagem de Bonneval, é a sua tradução empobrecida, porque ignora a natu-
reza metafísica do debate entre os dois modelos descritos acima. 55 Todavia, é
uma boa oportunidade para mostrar como Lacan tentou construir uma psica-
nálise que abrisse mão da crença na vida interior.

O CHAMADO RETORNO A FREUD


Acreditamos que a leitura dos escritos de Lacan até "L'agressivité en
psychanalyse", de 1948, revela que ele inicialmente se aproximou da psicanáli-
se de modo a reconstruí-la de uma maneira que pudesse prescindir da noção de
inconsciente para, logo em seguida, transformar o modelo do quimismo mental,
efetivamente presente na obra de Freud e descrito de" forma notável por Polit-
zer, em um erro de leitura .
Em sua tese de doutorado de 1932, "De la psychose paranolélque dans ses
rapports avec la personalité",56 em várias passagens, Lacan busca desembaraçar
a psicanálise da noção de inconsciente, que para Politzer, conforme estudamos, era

55
Sobre o elevado nfw./ que presidiu a polêmica entre os dois psicanalistas, ver ROUDINESCO, E. (1986) .
Hist6ria da PsiumA/ise na Fra11ça, vol. 2, trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1988, pp. 33-,-338.
Enquanto ROUDINESCO, E. (1993) obsCNa que: •sem citar o nome de Georges Politzer, [LacanJ
inspirava-se nos trabalhos dele sobre a psicologia concreta e especialmente em Úl Critique des Fondemems

CRÍTICA DOS FUNOM\ENTOS DA PSICOLOOA XXIII


o caminho real para introduzir a mitologia da vida interior. Assim, lemos: "A
oposição em particular entre desejos conscientes e inconscientes, que a psica-
nálise conserva, parece-nos desaparecer quando se define o desejo de forma ob-
• • 1157 "0 ,. .
1et1va por um certo ciclo de compartamento ou propno conceito de
inconsciente responde a essa determinação puramente objetiva da finalidade do
desejo" .58 Em outros termos, o inconsciente não é entendido como entidade,
ele apenas assinala o fato de o sentido do comportamento ser aberto para o su-
jeito que age. Por outro lado, critica-se, usando um vocabulário calcado em Po-
litzer, modelo do quimismo mental: ''Vemos com efeito tratarem as
0
alucinações, as perturbações 'sutis" dos 'sentimentos intelectuais', as represen-
tações de si aperceptíveis e as próprias interpretações como se fossem fenôme-
nos independentes da conduta e da consciência do sujeito que as experimenta
e, inconscientes de seu erro, tomam esses acontecimentos como objetos 59em si
[... ] . As abstrações da análise tornam-se para eles realidades concretas.' No
lugar do inconsciente e do quimismo mental, Lacan propõe o ponto de vista social
que permitirá construir uma ciência ªdos fatos concretos da psicologia"."' A te-
oria psicanalítica das psicoses seria insatisfatória porque estaria apoiada sobre
uma noção inadequada de narcisismo; todavia, mesmo assim, ao comentar
uma passagem sobre Das /eh und das Es de Freud, ele conclui: "essa exposição
das doutrinas freudianas sobre o eu (mot) e o supereu assinalam adequadamen-
te o acesso científico de toda pesquisa a uma tendência concreta, por exemplo
a tendência de autopunição, em oposição à confusão criada por toda tentativa de
elucidar geneticamente um problema de ordem gnosiológica como o do eu (mot)
se este é considerado como lugar da percepção consciente, ou seja, como sujei-
61
to do conhecimento".

de la Psycho/ogk, publicada em 1928" Uacques Lacan, trad. Paulo Neves. Rio de Janeiro: Zahar 1994
56
p. 60), MACEY, D. as,inala, "A &ase 'em direção ao conmto' sintetiza muitas das preocupações de=,;
geração revo!ta contra um 'm~ndo _de polidez filosófica', mas em termos da evolução teórica de
Lacan a psicologia co~creta1 de_Politzer o marco essencial" (Lacan in Contexts. London: Verso, 1988, p.
100). Chamam~s de sem muito recato essa apropriação que ignora a regra que reza que as fontes
devem ser mencionadas.
57
IACAN, J. De la Psychose Paranoiaque dans ses Rapports avec la Personalité. Paris: Seuil, 1975, p. 44.
58 Jbid., p. 311.
59 Ibid. , p. 310.
ro Jbid., pp. 313-314.
61 Ibid. , p. 326.

'!XIV Preikio
Ern 1936, no congresso de Marinbad, lacan apresentou uma comuruca- .
. o intitulada "Le stade du miroir. Théorie d'un moment structurant et ge'né-
ça s . . dlaéali
tique de la con ututi~n : r -~é, ~onçu en relation avec l'expérience et la
doctrine psychanalytique · Este pnmeiro esboço do estágio do espelho perdeu-
e· no entanto, parte de seu conteúdo pode ser recuperado através do exame de
s' . p 1
ensaios postenores. or ~xemp o, em "Au-delà de 'Príncipe de Réalité"', escrito
logo após o_congres~o,_ainda e~ 193_6, lacan critica o associacionismo e procu-
ra ern seguida redefinir a noçao de imagem. Esta não deve mais ser entendida
corno sensação elementar, enfraquecida, como se fosse um estranho habitante
da mente. A noção é usada para designar um tipo de organização. Freud é elo-
giado por ter reconhecido que "uma vez que a maior parte dos fenômenos psí-
quicos no homem refere-se aparentemente a uma função de relação social, não
há lugar por isso mesmo para excluir a via que fornece o mais comum dos aces-
sos: a saber, o testemunho do próprio sujeito desses fenômenos". 62 Adiante, ele
acrescenta: "Mas o psicanalista, para não separar a experiência da linguagem
da situação que ela implica, aquela de interlocutor, refere-se ao fato simples de
que a linguagem antes de significar algo, significa para alguém. "63 Dizendo de
outra maneira, em Freud não estaria presente o modelo do quimismo mental,
somente o modelo que denominamos de subjetividade compartilhada, em que
0 papel do sujeito é ressaltado. No verbete La famille, de 1938, essas considera-

ções tornam-se mais incisivas. Na seção denominada O estágio do espelho, ele


volta-se para o processo de identificação, considerado por Politzer como um
dos indícios de que a psicanálise de Freud estava na direção da psicologia con-
creta.64 Referindo-se à comunicação de 1936, Lacan observa: "procuramos so-
lucionar o problema através de uma teoria desta identificação cujo momento
genético designamos com o termo de estágio do espelho" .65 O estágio ilustra a
forma que a realidade tem para a criança: enquanto valor afetivo seria ilusória
como a imagem; enquanto estrutura teria a forma humana. Esse estágio assi-

62
lACAN, J. Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 81.
63
lbid., p. 82.
64
"Para mostrar a psicologia concreta em ação, devemos salientar o caráter verdadeiro de um certo
número de novas noções que Freud foi levado a introduzir em conseqüência da análise dos sonhos e
das neuroses, e que desempenham um papel prepond~rante nas explicações técnicas. Consideraremos,
essencialmente, duas: a identificação e o complexo de Edipo." Crítica ..., p. 175. ·
65
lACAN, J. Op. cit., p. 52.

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA 'flj


nala o momento em que a criança toma o _a~ulto como sua própria imagem,
ou seja, o momento em que a criança identifica-se com o adulto. Dado O cará-
ter prematuro do infante, a criança, ao identifi~-se, abandona uma imagem
de si como despedaçada e vê-se como adulta. O ideal do eu, que se forma a partir
da imagem especular, não designa uma entidade interna, porém uma forma de
comportar-se da criança que se baseia em um engano a respeito de si mesma.
Em 1946, em "Propos sur la causalité psychlque", Lacan parece sugerir que
está procurando realizar o projeto de uma psicologia concreta: "Porque não de-
vemos perder de vista que, ao exigir como ele [Politzerl que uma psicologia con-
creta se constitua em ciência, só conseguimos até agora postulações formais.
Quero dizer que não pudemos enunciar ainda a menor lei em que se pauta nos-
sa eficiência."66 Na direção desse projeto, ele chega mesmo a criticar Freud: "Oue
67
me seja suficiente dizer que a consideração deles levou-me a completar o catá-
logo das estrUturas: simbolismo, condensação e outros que Freud explicitou, eu
diria, de modo imaginário; porque espero que se renunciará logo a usar a palavra
inconsciente para designar o que se manifesta na consciência. "68 O ensaio con-
tinua a desenvolver as conseqüências do estágio do espelho e a vinculá-lo a uma
tradição filosófica totalmente alheia ao associacionismo.
Os efeitos desse engano, constitutivo da subjetividade, são analisados em
detalhe em L'agressivité en Psychanalyse. Nesse ensaio encontramos mais uma
indicação da dívida de Lacan para com Politzer: •A experiência subjetiva da aná-
lise inscreve imediatamente seus resultados na psicologia concreta. n69 Em outra
passagem, ele defende que a noção de eu (je) não pode ser substantivada: "Essas
diversas fórmulas afinal referem-se à verdade do 'Eu (je) é um outro', menos ful-
70
gurante à intuição do poeta quanto evidente para o psicanalista." O pleno sen-
tido dessa tese encontra-se em "l.e stade du miroir comme forrnateur de la
fonction du je telle qu'elle est révélée dans l'expérience psychanalytique", de
71
1949, em que o estágio do espelho é descrito como um drama.

66 lbid., p. 161.
67 Ele refere-se aos fenômenos elementares da psicose paranóica.
li8 IACAN, J. Op. cit., p. 183.
e, Ibid., p. 110.
70 Jbid., p. 118.
71
lbid., p. 97.

XXVI Premo
De forma surpreendente, o termo inconsciente reaparece em "Fonction et
champ de la parole et du langage en psychanalyse", o famoso discurso de Ro-
ma, em 1953. O que aconteceu? A título de sugestão, uma vez que uma de-
monstração detalhada ultrapassaria em muito nossos objetivos, a resposta
parece estar no sentido que Lacan conferiu72 ao prefácio escrito por Lévi-
Strauss para Sociologie et Anthropologie de Marcel Maus, publicado no segundo
trimestre de 1950.73 A noção de inconsciente aparece no seguinte contexto:
"Essa dificuldade74 seria insuperável, dado que as subjetividades são, por hipó-
tese, incomparáveis e incomunicáveis, se a oposição entre o eu (mot) e o outro
não pudesse ser superada em uma esfera, em que também se reencontram o
subjetivo e o objetivo, queremos dizer o inconsciente. Com efeito, de um lado,
as leis da atividade inconsciente estão sempre fora da apreensão subjetiva (pode-
mos ter consciência delas, porém como objeto); e de outro, entretanto, são elas
que determinam as modalidades dessa apreensão."75 E um pouco mais adiante:
"Como a linguagem, o social é uma realidade autônoma (aliás, a mesma); os
símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam, o significante precede e
determina o significado. "76
Lévi-Strauss criou, dessa maneira, as condições que permitiram a Lacan
reintroduzir na sua versão da psicanálise a noção de inconsciente. Este deixava
de ser um termo que designava uma realidade interior para designar apenas a
relação entre subjetividades. A famosa fórmula o inconsciente organiza-se como
uma linguagem indica tão-somente que, apesar de o sujeito estar sempre presen-
te nos seus atos - a psicanálise pode, por conseguinte, ser construída agora como
uma psicologia em primeira pessoa - como uma psicologia concreta -, ele pode ig-
norar o sentido de suas produções, dado que elas são anteriores à própria reali-

n. ROUSTANG, F. (1986) assinala a influência desse prefácio de Lévi-Strauss sobre a composição do


discurso de Roma, mas o seu motivo é indicar que "essas quarenta páginas de Lévi-Strauss contêm
tudo o que Lacan esperava para desenvolver o seu projeto de fazer da psicanálise u~a ciência". Nosso
objetivo é sugerir que Lacan encontrou uma forma de recuperar a noçao de mconsc1ente sem ter ~ue
aderir à tese da vida interior. Usamos a expressão "talvez sem nenhuma clareza" porque, se efetiva-
mente ele tinha esse projeto, a própria constatação de sua existência está longe de ser óbvia (Lacan do
Equívoco ao Impasse, trad. Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Campus, 1988, p. 25) .
73 LÉVI-STRAUSS, C. "lntroduction a l'ceuvre de Marcel Mauss". 1950, ln : MAUSS, M. Sociologie et

Anthropologie. Paris: PUF, 1968, pp. IX-UI.


74 A dificuldade reside no fato de o úrúco elemento comum entre o indígena e o antropólogo ser a
própria subjetividade.
7s ,
LEVI-STRAUSS, C. Op. ctt· ., p. XXX.
76
lbid., p. XXXII.

CRÍTICA DOS FUNDM\ENTOS DA PSICOLOOA XXVII


zação do sentido. Dizendo de outra maneira, os atos do agente são entendidos
todas as vezes como significantes e, assim, estão abertos a receberem possíveis
significados. A motivação para propor perguntas que induzem à criação do
mito da vida interior perdem sua razão de ser. O significado não está em ne-
nhum lugar antes de sua realização concreta. Ele só passa a existir quando apa-
rece no curso da análise.
Se a reconstrução esboçada aqui não é delirante, a falta de consenso em re-
lação às teses discutidas pode ser atribuída basicamente a pelo menos quatro fa-
tores: (1) Lacan não deixa patente a sua dívida para com Politzer; no máximo, ele
parece estar oferecendo mais uma alternativa à psicologia concreta; (2) úuan rea-
lizou a proeza de transformar omodelo do quimismo mental de Freud em um erro de
leitura dos intérpretes da obra freudiana; (3) Lacan superou-se quando transfor-
mou o retorno aFreud na tarefa hercúlea de ler as ocorrências do termo inconsciente
em Freud com o sentido novo que ele lhe conferiu após sua leitura de Lévi-
Strauss; aliás - o que parece ter se tomado um hábito difícil de ser abandonado
-, de novo sem o devido reconhecimento; (4) Lacan não deu indicações claras
de que a sua preocupação com a lógica era apenas uma forma de evitar a mito-
77
logia da vida interior.
Agrande ironia reside no fato de que desde a Crítica... Politzer havia dei-
xado para os técnicos a construção de uma psicanálise que fosse efetivamente
uma psicologia concreta. 78 Aquele que mais ficou próximo de realizá-la ignorou
solenemente os preceitos de Descartes a respeito de clareza e distinção. O re-
sultado é essa estranha mistura de matemas, vida interior e significantes. A psi-
c~logi~, tal como_ a ~onhecemos, se chegar a morrer, morrerá como sempre
vIVeu: Jovem, muito 1ovem.

77 "Le semmai.re
, . . sur 1La Lettre volée'" primeiro ensaio dos É .151 .
mostrar
• a viabilidade de uma psica• que abre da mao "! dpode'dser· lido
_ do m1to · como a tentativa de
ou nao novas mitologias escapa totalmente ao esco da . a v1 mtenor. Se l..acan introduz
nes etc.
Jóair'
tamente teria ótimos adjetivos para referir-se à d present~ mtroduçao. No entanto, Politzer cer-
-cr a o mconsc1ente, aos matemas, aos nós borromea-

•o abandono do inconsciente levanta o problema da revisão • .


lise - mas o fato de sermos levados a reconsiderar a r a1 das noçoes fundamentais da psicaná-
al • b• rorma atu de noç- J' •
rec que nao nos o nga a encontrar uma nova sol - E , oes c asSicas como a censura e o
saber o que os fatos por eles conhecidos são ca uçaod ssa _e tarefa para os técnicos; só eles podem
vista concreto. A crítica não pode e na·o d !pazes e ensmar se forem considerados do pont d
· - • en//ca
onentaçao. ,. ... , p. 132. eve u trapassar a demonstraçao
• da necessidade dessa nova
o e

m'I li Prefácio

1
. .

• • • • . t.,,,t. • •- !. • ! • '-~ -~ ---• ... ., t,•:! ,L ~ .. ! ~·~,,j •. =-,::,__,.,.,_,

Preâmbulo
33
;-:.;t~">
Introdução 37
1 As descobertas psicológicas
na psicanálise eaorientação
para oconcreto 53

B Aintrospeção clássica eo
método psicanalítico 83

B Oarcabouço teórico da
psicanálise eas sobrevivências
da abstração 103

li Ahipótese do inconsciente
eapsicologia concreta 131

Adualidade do abstrato edo


concreto na psicanálise eo
problema da psicologia concreta 163

· Conclusões - As virtudes da
psicologia concreta eos problemas que levanta 181
......···················································· .................................

PREÂMBUlO
Este trab~o não é uma ex?osição. Não busca apresentar a psicanálise de
neira dogmatica, na sua totalidade ou numa das suas partes mas refletir so-
rna . '
bre ela, a partir da perspect1va em que nos situamos. Supondo, por parte do lei-
tor, conhecimento da psicanálise, deixamos de lado tudo O que é apenas
articulação técnica ou simples questão de fato, quando nada vimos de signifi-
cativo segundo nosso ponto de vista. Isso explica por que certos aspectos da
psicanálise, tal co~o a se:ualidade, que devem figurar em primeiro plano nas
expasições dogmaucas, nao aparecem neste trabalho.
Tampouco somos partidários do método que consiste em justificar os
"mas" e os "se" por citações apropriadas. Se citamos menos do que se faz habi-
tualmente em obras como a nossa, é porque a exatidão de nossa interpretação
só pode ser verificada por uma reflexão pessoal. Da mesma forma, renuncia-
mos à concepção que inspira a maioria das obras filosóficas francesas, que con-
siste em supor um leitor totalmente passivo, para não dizer estúpido, ao qual
é preciso apresentar as coisas bem mastigadas, para dispensá-lo de todo esforço
de reflexão pessoal.
Tal método é superficial e só oferece falsa clareza. Dificuldade e obscuri-
dade, clareza e facilidade não são sinônimos. Devendo a precisão da idéia bas-
tar-se a si mesma, as explanações que só se destinam a poupar o leitor do
esforço são completamente inúteis, além de absolutamente desinteressantes
para o próprio autor.
Eis por que omitimos quase tudo o que não é posição e desenvolvimento
das idéias em si. Após ter dito uma vez, do modo mais claro possível, em que
sentido censuramos os psicólogos clássicos, por considerar os fatos psicológicos
como "coisas", omitimos comparar a significação que essa censura tem para
nós com a que tem para Bergson. Sabemos, de longe, não ser o único a empre-
gar o termo "concreto", mas o sentido que ele tem em nosso texto deve preca-
~er contra qualquer confusão, embora não tenhamos examinado todas as suas
significações. Tampouco analisamos uma a uma as diversas definições do fato

CRÍTICA DOS FUNDM\ENTOS DA PSICOI.OOA f'Í t


Jsicológico e as críticas clássicas da introspecção, para mostrar que as primeiras
mplicam a abstração e as últimas esqueceram o essencial. Também não eter-
11iz.amos a idéia do drama nela mesma; não mostramos, de cada uma das cons-
truções teóricas de Freud, a maneira pela qual a abstração permite gerá-las a
partir de um fato concreto e a maneira como esse fato concreto pode ser en-
contrado ao se refazer, em sentido inverso, o caminho da abstração. Podería-
mos citar muitas outras passagens em que evitamos as explanações.
Todos esses desenvolvimentos não teriam sido inúteis. Porém, o leitor que
aceitar fazer o esforço necessário saberá achá-los; para os que se recusam a qual-
quer esforço do gênero, todas as explanações do mundo seriam insuficientes.
Não queremos, contudo, encobrir com essa consideração o que há de im-
preciso e de provisório neste estudo. Nosso trabalho é ponto de partida; primei-
ro, por ser o tomo I dos Matériaux, depois, porque faz parte de uma série de
escritos preliminares. 1 Se, por exemplo, não desenvolvemos a idéia de significa-
ção e a de drama até o ponto em que sua dualidade, um pouco embaraçosa no
presente escrito, cedesse lugar a uma concepção clara das suas relações, é por-
que os elementos desse desenvolvimento pertencem já ao tomo II dos Maté-
riaux, o qual tratará da Gestalttheorie. Pela mesma razão, não aprofundamos a
idéia de forma, embora nos sirvamos dela algumas vezes. Outros pontos, co-
mo, por exemplo, a análise da noção de consciência ou o estudo sistemático de
todos os procedimentos clássicos que mencionamos ao longo deste estudo, só
podem ser desenvolvidos no Essai que virá após osMatériaux.
Se tivermos a sorte de encontrar críticos bastante esclarecidos para não
nos resservir, sob pretexto de que arrombamos portas abertas, exatamente
aquilo a partir de que queremos encetar a discussão, perceber-se-á, talvez, que
ao fazer este trabalho não podíamos encontrar muitos pontos de apoio - pelo
menos na literatura psicológica francesa. Poder-se-á aceitar a idéia de que que-
remos a psicanálise exposta em termos de Gestalt e de behavior. Todavia, não
se esqueça que nossa posição ante a Gestalttheorie e o behaviorismo não poderá
ser exposta com clareza a não ser nos estudos que pretendemos dedicar-lhes.

1 Trata-se do projeto de construção da psicologia concreta. Os outros tomos anunciados (ver nota 9)
não foram escritos. A adesão de Politzer ao Partido Comunista Francês, um ano após a publicação do
presente ensaio, levou-0 a abandonar esse projeto. Os tomos I (Psicanálise), II (Gestalttheorie) e III
(Behaviorismo) projetados para Matériaux pour la Critique sur les FoHdements de la Psychologie deveriam
compor uma obra maior, que também não foi escrita: Essai Crítique sur les FoHdements de la Psychologie.
(Nota do revisor técnico - NRT)

:âl Preômbu~
De rnodo geral, não nos interessa
. t - saber
" ..em que medida as reflexões con-
te volume ou nos segum es sao onginais". Se levantamos essa ques-
tidas,
,. o enes_
unicamente para
- l poder
, . esclarecer- mais um ponto. Dos cotejos que se
ta alguns serao eg1t1mos, mas nao nos esqueçamos do seguinte: para
fiiere!Il~a-se essencialmente de apresentar os problemas de tal maneira que a
nós,
d tra_ sem nunca poder voltar a. essa
. cussao,
15 d psicologia que não deve . mais1existir
O
_ ara historiador, possa partir e uma nova base e segwr um p ano re-
sena~~- Se nossas fórmulas se_encontrarem em_ outros, ou se futuram:nte se
nova inadequadas, isso nao pode ter, COllSJ.derando a nossa pOS1çao, 1m-
portanc1a alguma, pois não se trata, no momento, de fórmulas, mas de uma
revel~re:11
0 ne
. ntação nova.

G.P.

CRÍTICA 005 FUNDAMENTOS DA PSICOI.OOA _,,


............................................
·· · 1·N·Tiõ.õütlõ
1. -
Se ninguém pensa.em protestar contra a afirmaça-O geral de que as te-
,. . , pod
·" sao
- mortais e que a ciencia so e avançar sobre suas pr6pnas
. rumas,
,
·: 35 , ossível fazer com que seus representantes constatem a m rt d
., ao e P . . d . . _ o e e uma
,.corta . atual· A maiona os cientistas compoe-se de pesquisadores que, nao - ten-
do O sentido da vida nem o da. verdade,
t
. _ só podem trabalhar
. à sombra de pnn-

reconhecidos. nao se pode pedir que reconheç
cíp1.os oficialmente
_ , 2 . . am uma
.dência que nao e dada, mas a ser cnada. Seu papel histórico é outro: consis-
eVl trabalho de aprofundamento e de exploração; é por meio deles que os
te no . . al .
"princípios" gastam sua energia Vlt, ; mstrumentos respeitáv~is da ciência, são
. azes de renovar-se e de renova-la. Reconhecem a mortalidade de todas as
1ncap , . , b
·as mesmo das propnas, mas sono a strato: parece-lhes sempre inverossí-
teon ,
rnil que O momento da morte tenha chegado.
__ Épor isso que os psicólogos ficam escandalizados quando lhes fala-
2
os da morte da psicologia oficial, dessa psicologia que se propõe estudar os
;rocessos psicológicos", ~eja quere~do :ª_ptá-los_ em si m~smos, ~ja em seus
concomitantes ou determmantes psicologicos, se1a por meio de metades "mul-
ticolores".
Não é porque a psicologia esteja de posse de resultados fecundos e positi-
vos que só se pode duvidar negando o próprio espírito científico: sabe-se que,
por um lado, só existem, no momento, pesquisas "perdidas" e, por outro, pro-
messas, eque tudo está ainda na expectativa de um misterioso aperfeiçoamen-

2 Politzer assinala em itálico, ao longo do texto, palavras, conceitos, frases, sentenças e parágrafos. Tal
recurso enfatiza pontos essenciais de sua escrita, demarcando o estilo do autor. 8isabeth Roudinesco
obseivou: "Politzer é não somente um autêntico leitor de Freud, como tem a envergadura de um
grande teórico. Sob sua pena, a língua francesa possui urna verve e urna fineza incomparáveis. Esse
húngaro não respeita nada, nem as celebridades, a quem trata de vasos de porcelana, nem a famosa
'inteligência francesa', cujo ridículo fustiga com toda força." ln: História da Psicm1álise na França - A
batalha dos cem anos - v. 2: 1925-1985. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 76.
(NRT)

CRÍTICA DOS FUNDM\ENTOS DA PSICOLOOA tlÍt


to que o futu~o deve tr~~er-nos generosamente. Não há, tampouco, pelo
menos a respeito do que Jª se fez, um acordo unânime entre os psicólogos
acordo que pode desencorajar de saída os "energúmenos": sabe-se que a histó~
ria da psicologia, nestes últimos cinqüenta anos, não é senão uma epopéia de
desilusões e que, ainda hoje, novos programas são lançados a cada dia para fixar
as esperanças tomadas disponíveis.
Se os psicólogos protestam, e se podem protestar com certa aparência de
boa fé, é porque conseguiram abrigar-se numa posição cômoda. Com as suas
necessidades científicas satisfeitas pelo manejo, mesmo estéril, dos aparelhos e
com a obtenção de alguns dados estatísticos que não têm por hábito sobreviver
à sua publicação, proclamam que a ciência é feita de paciência e rechaçam todo
controle e toda crítica sob pretexto de que a "metafísica" nada tem a ver com
a ciência.
3. - Essa história de cinqüenta anos, da qual os psicólogos tanto se orgu-
lham, não é senão a história de um charco de rãs. Incapazes de descobrir a ver-
dade, os psicólogos a esperam cotidianamente, de qualquer um e de qualquer
lugar, mas como não têm idéia alguma da verdade, não sabem reconhecê-la
nem captá-la: vêem-na em qualquer coisa e se tornam vítimas de todas as ilu-
soes.
Wundt aparece primeiro para preconizar a psicologia "sem alma" e então
começa a migração dos aparelhos dos laboratórios de fisiologia para os dos psi-
cólogos. Quanto orgulho! Quanta alegria! Os psicólogos têm laboratórios e pu-
blicam monografias ... Acabam-se as disputas verbais: calculemos! Puxam-se os
logaritmos pelo cabelo e Ribot calcula o número de células cerebrais para saber
se podem abrigar todas as idéias. Nasce a psicologia científica.
De fato, porém, que miséria: o mais insípido formalismo vence protegido
por uma complacência universal e aplaudido por todos aqueles que só conhecem
da ciência os lugares comuns da metodologia. Aparentemente, é claro, esses psi-
cólogos prestaram serviço à psicologia combatendo as velharias eloqüentes da
"psicologia racional", quando, na realidade, só lhe construíram um refúgio onde,
ao abrigo da crítica, ela ainda tinha possibilidades de sobrevivência.
Quando se conseguiu medir as associações ao milésimo de segundo, fez-se
sentir a lassidão. Felizmente, os "reflexos condicionados" chegaram para reani-
mar a fé. Que descoberta! Aos psicólogos maravilhados, Bechtherev apresenta
a "psicoreflexologia". Mas esse movimento adormece logo. A seguir, ora é a afa-
sia, ora a teoria fisiológica das emoções, ora as glândulas endócrinas que fazem

• lntroduçoo
renascer as grande~ e~peranças combalidas, mas aí só viceja a tensão e adis-
tensão de um dese1_0 unpotente, porque quimérico, e ao mesmo tempo, após
cada período de agitação "objetivista", reaparece o monstro vingativo da in-
trospecção.
4. - I.Dnge de representar um novo triunfo do espírito científico, o adven-
to da psicologia "experimental" não passava de humilhação. Em vez de se dei-
xar renovar por esse espírito e de o servir, tratava-se de utilizá-lo para dar nova
vida a velhas tradições que não a tinham mais e para as quais ele era a última
chance de sobrevivência. Isso explica o fato, hoje reconhecido, de que todas as
psicologias "científicas" que se sucederam desde Wundt não passam de disfar-
ces da psicologia clássica. A diversidade de tendências só representa os sucessi-
vos renascimentos dessa ilusão que consiste em crer que a ciência pode salvar
a escolástica. Pois, em todos os fatos, fisiológicos ou biológicos, de que se apos-
saram, os psicólogos só procuraram isso. É também o que explica a impotência
do método científico nas mãos dos psicólogos.
5. - Vistos a partir da seriedade com que concebem o método científico,
os cientistas formam uma verdadeira hierarquia. Por ser o mundo da quantifi-
cação o mundo próprio dos matemáticos, movem-se nele com naturalidade e
são os únicos a não transformar seu rigor em desfile. O uso que os físicos fazem
das matemáticas, algumas vezes, já se ressente do fato de elas representarem
para eles apenas um traje de aluguel; a pura envergadura dos matemáticos
pode ser-lhes inacessível e eles são freqüentemente bitolados. Mas tudo isso é
nada comparado ao que acontece no andar debaixo. Os fisiólogos já mergu-
lham terrivelmente na magia dos números, e o entusiasmo pela forma quanti-
tativa das leis transforma-se neles em adoração do fetiche. Todavia, esse
impedimento não pode fazer esquecer a seriedade fundamental que encobre.
Os psicólogos, por sua vez, recebem a matemática de terceira mão: dos fisiólo-
gos que a receberam dos físicos, que, só eles, as herdam dos matemáticos. Em
cada etapa, o nível do espírito científico sofre uma queda e quando, no final, a
matemática chega aos psicólogos, é "um pouco cobre e vidro" que eles imagi-
nam ser "ouro e diamante". O mesmo se dá com o método experimental. É o
físico que detém uma visão séria dele; só ele não brinca com ela, é só nas mãos
dele que ela é uma técnica racional que não degenera em magia. O fisiólogo já
tem forte tendência para a magia: nele, o método experimental degenera fre-
qüentemente em pompa experimental. O que dizer, então, do psicólogo? Nele,
tudo é pompa. Apesar de todos os seus protestos contra a filosofia, ele só vê a

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA •


ciência mediante lugares-comuns a respeito dos quais esta lhe ensinou C
foi-lhe dito que a ciência é feita de paciência, que foi sobre pesquisas de · orno
. . ,. porrne-
nore~ que se edificaram as grandes hipóteses, cre que a paciência é um método
em s1 e que basta procurar detalhes cegamente para atrair o Messias sintétic
Atrapalha-se, então, no meio dos aparelhos, ora se lança na fisiologia, ora n:
química, na biologia; acumula médias estatísticas e está seguro de que, para ad-
quirir a ciência, como para adquirir a fé, é preciso tomar-se estúpido.
Entenda-se: os psicólogos são tão cientistas como os selvagens evangeli-
zados são cristãos.
6. -A negação radical da psicologia clássica, introspeccionista ou experi-
mental, encontrada no behaviorismo de Watson, é uma descoberta importan-
te. Significa, precisamente, a condenação desse estado de espírito que consiste
em crer na magia da forma sem compreender que o método científico exige
uma radical "reforma do entendimento". Não se pode, qualquer que seja a sin-
ceridade da intenção e a vontade da precisão, transformar a física de Aristóteles
em física experimental. Sua natureza recusa-se a isso e seria totalmente ilegíti-
mo, numa tentativa do gênero, confiar nos aperfeiçoamentos do futuro.
7. - A história da psicologia nos cinqüenta últimos anos não é, portanto,
como se costuma afirmar no início dos manuais de psicologia, a história de uma
organização, mas a de uma dissolução. Daqui a cinqüenta anos, a psicologia au-
tenticamente oficial de hoje aparecerá como aparecem agora a alquimia e as fa-
bulações verbais da física peripatética. Brincar-se-á ainda com as fórmulas
retumbantes pelas quais se iniciaram os psicólogos "científicos" e com as peno-
sas teorias a que chegaram; com esquemas estatísticos e esquemas dinâmicos, e
a teologia do cérebro constituirá um estudo divertido, como a teoria antiga dos
temperamentos - logo, porém, tudo será relegado à história das doutrinas in-
compreensíveis e estranhar-se-á sua persistência, como se faz hoje com a esco-
lástica.
Compreender-se-á, então, o que parece incrível agora, que o movimento
psicológico contemporâneo não é senão a dissolução do mito da dupla natureza
humana.
O estabelecimento da psicologia científica supõe exatamente essa disso-
lução. Todas as articulações que uma elaboração nocional introduziu nessa
crença primitiva devem apagar-se uma a uma, e a dissolução deve proceder por
etapas: hoje ela já deveria estar terminada. Sua duração foi consideravelmente

ti lntroduçoo
prolongada, apena~ pela possibilidade que se ofereceu às teses mortas de renas-
cer graças ao respeito que cerca os métodos científicos.
8. - Enfim chegou o momento da liquidação definitiva de toda essa mito-
logia. Hoje a dissolução não pode mais afetar a forma da vida e pode-se, agora,
reconhecer com segurança o fim no fim. Atualmente, a psicologia está no es-
tado em que se encontrava a filosofia no momento da elaboração da Crítica da
RazãoPura. Sua esterilidade é óbvia, seus procedimentos constitutivos dão nas
vistas, e enquanto uns confinam-se numa escolástica impressionante por sua
apresentação, mas que não progride de forma alguma, outros lançam-se em so-
luções desesperadas. Mas um sopro novo faz-se sentir: há o desejo de que toda
essa história tenha acabado, mas recai-se constantemente nas fantasias esco-
lásticas. Portanto, falta alguma coisa: o reconhecimento claro de que a psicologia
clássica nada é senão a elaboração nocional de um mito.
9. - Esse reconhecimento não deve ser uma crítica semelhante às que lo-
tam a literatura psicológica: estas mostram ora o fracasso da psicologia subje-
tiva, ora o da psicologia objetiva, e preconizam periodicamente o retorno da
tese à antítese e da antítese à tese. Conseqüentemente, não se deve encetar
uma disputa que, novamente, permaneça no interior da psicologia clássica e
cujo benefício se restringe a fazer a psicologia voltar-se sobre si mesma. É ne-
cessária uma crítica renovadora, uma crítica que, pela liquidação clara do que
tem sido, ultrapasse o ponto morto em que se acha a psicologia e crie essa gran-
de evidência que é preciso comunicar.
10. - Contrariamente a toda expectativa, não é do exercício do método
objetivo que vem essa visão da psicologia nova que a crítica em questão supõe.
O resultado desse exercício é inteiramente negativo: de fato, desembocou no beha-
viorismo. Watson reconheceu precisamente que a psicologia objetiva clássica
não é objetiva no verdadeiro sentido da palavra, pois afirmou que, após cin-
qüenta anos de psicologia científica, já era tempo de a psicologia tornar-se uma
ciência positiva. Ora, o behaviorismo marca passo ou, melhor, desgraça muito
maior lhe sobreveio. Inicialmente encantados pela noção de behavior, os beha-
vioristas acabaram por descobrir que o behaviorismo conseqüente, o de Wat-
son, não tem saída e, chorando as panelas da psicologia introspectiva, voltam,
sob pretexto de "behaviorismo não-fisiológico", a noções francamente intros-
pectivas ou limitam-se a traduzir em termos de behavior as noções da psicologia
clássica. Tem-se, então, o pesar de constatar que, em alguns, pelo menos, 0

CRÍTICA DOS FUN0~ENTOS DA PSICOLOGIA (j{t


3
behaviorismo só serviu para dar forma nova à ilusão da objetividade. o beha-
viorismo apresenta, então, o seguinte paradoxo: para afirmá-lo sinceramente é
preciso renunciar a desenvolvê-lo e, para desenvolvê-lo, é preciso renunciar a
sua afirmação sincera; o que, então, despoja-o de toda razão de ser.
Aliás, isso não é de se estranhar. A verdade do behaviorismo é constituída
pelo reconhecimento do caráter mitológico da psicologia clássica e a noção de
behavior só é válida quando considerada no seu esquema geral, anteriormente
à interpretação que os watsonianos e os outros lhe dão. Cinqüenta anos de psi-
cologia científica só conseguiram chegar à afirmação de que a psicologia cien-
tífica está apenas começando.
11. - A psicologia objetiva clássica não podia chegar a outro resultado.
Nunca passou da impossível vontade da psicologia introspectiva de vir a ser
uma ciência da natureza e só representa a homenagem desta última ao gosto
da época. Houve um momento em que a própria filosofia, inclusive a metafí-
sica, pretenderam fazer-se "experimentais", mas não se levou a intenção a sé-
rio. A psicologia conseguiu enganar.
De fato, nunca houve psicologia objetiva diferente dessa psicologia que se
fingia negar. Os psicólogos experimentais nunca tiveram idéias próprias, sem-
pre utilizaram o velho estoque da psicologia "subjetiva". Cada vez que sedes-
cobriu que certa tendência havia sido vítima dessa ilusão, recomeçou-se em
outra direção, crendo que se podia fazer melhor partindo dos mesmos princí-
pios. Eis por que esses pesquisadores, a quem o método científico devia dar
asas, sempre estiveram atrasados em relação aos psicólogos introspeccionistas,
pois enquanto os primeiros ocupavam-se em formular "cientificamente" as
idéias dos últimos, esses nada mais tinham a fazer a não ser reconhecer as pró-
prias ilusões. Agora, a psicologia experimental só consegue reconhecer seu pró-
prio vazio e a psicologia introspeccionista continua com suas maravilhosas e
emocionantes promessas, enquanto entre psicólogos que abandonam o inte-
resse pela fisiologia das sensações, pelos laboratórios clássicos e pelo "devir mo-

3 O manual de Warren é muito significativo a esse respeito.


(WARREN, Haward Crosby - 1869-1934. Précis de Psychologie. Paris: Marcel Riviére, 1923. Trata-se de
um compêndio de psicologia traduzido da 2ª edição norte-americana por Louis Cunault e Étienne Mai-
gre, publicado na coleção übrairie des Sciences Politiques et Sociales. Este "manual" marcou a introdu-
ção do behaviorismo em solo francês. Sistematizava os ternas de estudo da neurofisiologia aplicada aos
problemas psicológicos. NRT)

• Introdução
.............

vente" da consciência surgeI com uma visao · - clara dos erros1a indicação de uma
direção realmente fecunda.
12. - Éà luz .das
_ tendências
. que . procuram subtrarr-se · a, m· fI uencia
" · dos pro-
blemas e ~as tradiçoes da psico~o~ subjetiva1assim como da objetiva1que de-
vem ser vist~s. os aspectos po~it1vo e negativo da crítica que empreendemos.
Mesmo ad~tmdo que es~ cntica não deve ser o resultado de um trabalho pu-
ramente noc1onal1 sua validade não exige que se comece "por baixo". Éo tronco
que ela irá atacar/ a ideologia central da psicologia clássica. Não se trata de desbas-
tar galhos, mas de derrubar a árvore. Tampouco é questão de condenar tudo
em bloco: há fatos que sobreviverão à morte da psicologia clássica, mas só a
nova psicologia poderá dar-lhes a verdadeira significação.
13. - O que há de mais notável em toda a história da psicologia não é a
oscilação entre os dois pólos da objetividade e da subjetividade1nem a falta de
genialidade que caracteriza o modo de os psicólogos utilizarem o método cien-
tífico, mas o fato de a psicologia clássica nem chegar a representar a forma falsa
de uma ciência verdadeira, pois é a própria ciência que é falsa, radicalmente,
fora qualquer questão de método. A comparação da psicologia com a física de
Aristóteles não é totalmente exata, pois nem é dessa maneira que a psicologia
é falsa, mas à maneira das ciências ocultas: o espiritismo e a teosofia que, tam-
bém, simulam uma forma científica.
As ciências da natureza que se ocupam do homem não esgotam tudo que
se pode aprender a respeito deste. O termo "vida" designa um fato "biológico", 4
ao mesmo tempo que a vida propriamente humana, a vida dramática do ho-
mem. Essa vida dramática apresenta todas as características que tornam uma
área suscetível de ser estudada cientificamente. Mesmo que não existisse psi-
cologia, é em nome dessa possibilidade que ela deveria ser inventada. Ora, as
reflexões sobre essa vida dramática só conseguiram encontrar lugar na literatu-
ra e no teatro, e embora a psicologia clássica afirme a necessidade de estudar os
"documentos literários", nunca houve, de fato,5 verdadeira utilização, indepen-
dente dos objetivos abstratos da psicologia. Assim, em vez de poder transmitir
à psicologia o tema concreto que se tinha refugiado nela, é a literatura que aca-

4 Enteda-se, de uma vez por todas, que designamos pelo termo "dra_ma" um fato que faze~os abstra-
ção total das ressonâncias românticas dessa palavra. Portanto, pedunos que o leitor se habitue a essa
acepção simples do termo e esqueça sua significação "emotiva".
5
Fora a psicanálise.

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA {iJ


bou por sofrer a influência da falsa psicologia: os beletristas viram-se obrigados,
em sua ingenuidade e ignorância, a levar a sério a "ciência" da alma.
De todo modo, a psicologia oficial deve seu nascimento a inspirações radi-
calmente opostas às únicas que podem justificar sua existência; mais grave ain-
da, ela se alimenta exclusivamente dessas inspirações. Com efeito, e para dizê-
lo em termos realistas, só representa uma elaboração nocional da crença geral
nos demônios, isto é, por um lado, da mitologia da alma, e por outro, do proble-
ma da percepção, tal como se apresenta à filosofia antiga. Quando os behavio-
ristas afirmam que a hipótese da vida interior representa um resto de animismo,
divisam perfeitamente o verdadeiro caráter de uma das tendências cuja fusão
deu origem à psicologia atual. Af está uma história muito instrutiva, mas cujo
relato ultrapassa os limites deste estudo. Em termos gerais, a atitude mística e
"pedagógica" diante da alma, os mitos escatológicos incorporados no cristianis-
mo sofreram, em dado momento, uma queda e se encontraram repentinamen-
te rebaixados ao nível de um estudo dogmático inspirado por um realismo
bárbaro, encontrando assim a inspiração do tratado aristotélico da alma. En-
quanto esse estudo devia, de um lado, servir à teologia, procurou, por outro,
constituir um conteúdo para si, colhendo elementos na teoria do conhecimen-
to, na lógica e na mitologia, indistintamente. Formou-se assim um tecido de te-
mas e de problemas bem delimitados para formar uma parte distinta da
filosofia. Pode-se dizer que, desde sua formação, o conjunto estava completo e,
em todo caso, não se fez, até hoje, descoberta psicológica alguma digna desse
nome: o trabalho psicológico, desde Gocklen ou, se preferir, desde Christian
Wolff, jamais foi além do nocional: trabalho de elaboração, de articulação, enfim,
a racionalização de um mito e, finalmente, sua crítica.
14. -A crítica kantiana da "psicologia racional" deveria ter arruinado defi-
nitivamente a psicologia. Poderia ter determinado imediatamente uma orienta-
ção para o concreto, para a verdadeira psicologia que, sob a forma humilhante da
literatura, foi excluída da "ciência". Mas a Crítica não produziu esse efeito. Ela
certamente eliminou a noção de alma, mas, por ser a refutação da psicologia ra-
cional apenas uma aplicação da crítica geral das coisas em si, parece que o resul-
tado, para a psicologia, foi um "realismo empírico, paralelo ao que se impõe à
ciência depois da ruína da coisa em si. Como a interpretação corrente não retém
a idéia extraordinariamente fecunda da anterioridade da experiência externa à
experiência interna, para reter apenas o paralelismo, a Crítica da razão pura parece

1ft
~ , Introdução
consagr: r a hipótese da vida interior.6 O velho estoque da psicologia pôde sobre-
viver'. e e s~bre ele que se abateram as exigências em voga no século XIX: expe-
riência e cálculo. Começa então a lamentável hi t, · Ca M· ·
t5 _ o lt d , ' . s ona, o rmen tserabile.
. cu_ 0 . ª e essencial para o cristianismo. O antigo tema da
percepçao Jamais tena sido suficiente para gerar a psicologia: é da religião que
~ e vem a ~or~_- Uma vez ~onstituída em tradição, a teologia da alma sobre-
viveu ao cnStlarusmo e continua vivendo dos alimentos comuns a todas as es-
colás~i~as. O respeito de_que conseguiu se cercar, graças ao disfarce científico,
p~rmiu~-lhe vegetar mais um pouco e, graças a esse artifício, conseguiu sobre-
viver a si mesma.
Mas seria erra~~ afirmar que a psicologia clássica alimenta-se apenas do
p~ss~do. ~elo contra~o, :la conseguiu alcançar certas exigências modernas: a
vida mtenor, no sentido fenomenista" da palavra, afinal conseguiu tomar-se
um "valor".
A ideologia da burguesia não teria sido completa se não tivesse encontrado
a sua mística. Após diversas tentativas, ela parece tê-la, enfim, encontrado: na
vida interior da psicologia. A vida interior convém perfeitamente a esse destino.
Sua essência é a mesma da nossa civilização, a saber, a abstração: só implica a
vida em geral e o homem em geral, e os "sábios" atuais são felizes de herdar essa
concepção aristocrática do homem com um maço de problemas de alto luxo.
Além do mais, a religião da vida interior parece ser o melhor meio de de-
fesa contra os perigos de uma renovação verdadeira. Por não comportar vincu-
lação a nenhuma verdade determinada, mas apenas um jogo desinteressado
com as formas e as qualidades, ela dá a ilusão da vida e do progresso "espiritual",
enquanto a abstração, que é sua essência, trava toda vida verdadeira; e como ela
só se comove com sua própria profundeza, é um eterno pretexto para ignorar
a verdade.
Eis por que a vida interior é recomendada por todos os que querem captar
as vontades de renovação antes que possam vincular-se a seu verdadeiro obje-

6 As posições de Politzer sobre a experiê~cia interna apa~ecem n~ arti?o Introdução, ~ublicado em


L'Esprit, 1º Caderno, mai? de 1?26. Esse art~go ~az um relatono da situaçao real da filosofia c~ntempo-
rânea e conduz autor a seguinte conclusao: Portanto, todos aqueles que nos cercam, racionalistas,
O
intuicionistas, bergsonianos ou antibergsonianos, id~stas, prag~ticos, neokantianos, neohe~:lia1:1os,
neorealistas realistas críticos e, com eles, todos os filosofos que bnncam com a arte, com a c1enc1a e
~om a religião, todos pe~e?cem à mesm~ cat~fo ria, ~o filósofos sem matéria. Parecem pe~encer t~os
a mesma escola: a escolasuca contemporanea. (coletanea A F,/oso(,a e os Mitos, Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, 1978, p. 28). Após analisar a filosofia contemporânea girando na órbita da Crítica da
Raz.ão Pura, Politzer apresenta sua descoberta inaugural: o homem concreto. (NRT)

CRÍTICA DOS FUNDNAENTOS DA PSICOLOGIA


to, para que a gula das qualidades tome o lugar da compreensão da verdade. Eis
também a razão pela qual todos os que são fracos demais para mostrar-se "di-
fíceis" agarram a vara estendida: essa oferta de salvar-se contemplando o pró-
prio umbigo parece irresistível...
16. - Portanto, a psicologia clássica é duplamente falsa: falsa perante a ciên-
cia e falsa perante o espírito. Quantos não se alegrariam por nos ver sozinhos
com nossa condenação da vida interior! Que prazer teriam em nos mostrar as
"bases científicas" da falsa sabedoria! Todas essas "filosofias da consciência" que
fazem malabarismo com as noções emprestadas da psicologia, todas essas sabe-
dorias que convidam o homem a aprofundar-se, quando se trata exatamente de
obrigá-lo a sair da sua forma atual, todas elas poderiam ter continuado a ver com
grande satisfação a afirmação da legitimidade do seu procedimento fundamental
na psicologia.
Mas as duas condenações encontram-se. A falsa sabedoria seguirá no tú-
mulo a falsa ciência: seus destinos estão ligados e elas morrerão juntas, porque
a abstração morre. A visão do homem concreto expulsa-a dos dois campos.
17. - Esse acordo não deve ser razão para confundir as duas condenações.
É muito mais eficaz separá-las e desligar primeiro a condenação da abstração
pela própria psicologia. Ora, essa condenação aparece na mais técnica psicolo-
gia e é afirmada por autores que tudo ignoram das nossas exigências. Mas esse
encontro nada tem de fortuito: a verdade trabalha todos os campos ao mesmo
tempo e suas diversas fulgurações acabam por se unir numa verdade única.
Por querer separar essas duas condenações, em princípio, precisamos se-
pará-las também materialmente. Eis por que é preciso começar por fixar o sen-
tido da dissolução da psicologia clássica, empenhando-nos no estudo das
tendências que, ao mesmo tempo em que acabam a dissolução, prenunciam a
nova psicologia.
18. - Três tendências podem figurar no caso: a psicanálise, o behavioris-
mo e a Gestalttheorie. Grande é o valor da Gestalttheorie, sobretudo do ponto de
vista crítico: ela implica a negação do procedimento fundamental da psicologia
clássica, que consiste em desfazer a forma das ações humanas para tentar, de-
pois, reconstituir a totalidade, que é sentido e forma, a partir de elementos insig-
nificantes e amorfos. O behaviorismo conseqüente, o de Watson, reconhece o
fracasso da psicologia objetiva clássica e traz, com a idéia de behavior, pouco im-
port~n~o a sua interpretação, uma definição concreta do fato psicológico. Mas
a mais importante das três tendências é, incontestavelmente, a psicanálise. É

9 Introdução
ela que nos faz ver claramente os erros d . . , .
de á a nova psicolooia
1· ºd psicologia class1ca e nos mostra, des-
' o-- em V1 a e em açao.

· Ao mesmo tempo ,. em qu e e1as contem


. . a verdade, essas três tendências
encerram
. , o erro .sob tres aspectos diferentes e, por isso
. mesmo, conduzem seus
d1sc1pu . 1os por vias que afastam mais · uma vez a psicologia
· • da sua direção ver-
dadeira.
A Gestalttheorie1 no sentido amp1o da palavra (ºmclumdo. Spranger), entre-
7
ga-se, por um_ lado, como Spranger, a construções teóricas e não parece, por
outro, poder libertar-se das preocupações da psicologia clássica.
O be~aviori_smo é estéril ou recai na fisiologia, na biologia, até mesmo na
introspecçao mais ou menos disfarçada, em vez de esquecer realmente tudo
para esperar apenas pelas surpresas da experiência.
Por seu lado, a psicanálise viu-se tão sobrecarregada pela experiência que,
enfim consultada, só queria falar, não teve tempo de dar-se conta de que escon-
de em seu seio a velha psicologia, que ela tem por missão suprimir, e alimenta
com sua força um romantismo sem interesse e especulações que só resolvem
problemas ultrapassados.
Por outro lado, e de modo geral, é de maneira implícita ou com certa timi-
dez que a maioria dos autores ousa condenar a psicologia clássica. Parecem
querer preparar o trabalho dos que vêem a salvação na conciliação dos contrá-
rios, sem perceber que se trata de mais uma ilusão, pois é impossível justapor
tendências que levantam, em relação uma à outra, ou às outras, a questão pré-
via.ª Quanto aos que, como Watson e seus discípulos, ousam pronunciar uma
condenação franca, suas afirmações a respeito da falsidade da psicologia clássi-
ca e as razões dessa falsidade são tão pouco articuladas que não impedem seus
próprios autores de recair nas atitudes condenadas, o que faz com que suas de-
clarações sejam para uma verdadeira crítica dos fundamentos da psicologia o
que as reflexões gerais sobre a fraqueza do "entendimento humano" são para a
Crítica da Razão Pura.
19. -Para ser eficaz, a crítica da psicologia deve fazer-se sem dó, e só deve
respeitar o que é verdadeiramente respeitável: falsas deferências, o receio de er-

7 Cf. Lebensformen, 5ª ed.; Halle, 1925.


8 Freud, por exemplo, encarrega-se ele próprio de conduzir a psicanálise à psicologia clássica, como
mais adiante veremos.

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA ti ?


~ar externando
.d todo o pensamento ou tudo o que o pensamento ·unplica so, en
rninh
:ompn am oca . o sem outra vantagem além da confu - ' -
- Essa d timidez
. explica-se
1 . facilmente
. . pelo fato de ser realmente dif'icil arran-
:,~ar-nos essa
, _ps1co, agia que nos .apns1onou
. , por tanto tempo . os esquemas que
Ja _nos_da nao sonos parecem md1spensaveis do ponto de vista pra't·1co, mas
~~tao tao profundamente ancorados em nós que ressurgem no meio dos mais
smc: ros esforços ~ue fazemos para nos livrar deles. É então possível ver uma
ev1denc1a ms~pera~el nessa ten~ci~ade ~om _que nos perseguem. Assim, por
exemplo, a afirmaçao de que a vida mtenor nao tem mais existência que os es-
píritos animais, e que as noções atribuídas à vida interior são tão escassas que
é completamente inútil traduzi-las em termos de behavior, parece-nos impossí-
vel conceber, à primeira vista.
Mas, atenção! Só há nisso a tentação própria das velhas evidências. A crí-
tica consiste precisamente em desmontá-las, peça por peça, para pôr a nu os
procedimentos que as constituem e os postulados implícitos que elas enco-
brem. Eis por que não deve, sob pena de ficar ineficaz, restringir-se a afirmações
gerais que condenam sem executar: a crítica deve chegar à execução.
Isso tampouco está isento de dificuldades. A cada passo surgirá dúvida
quanto ao direito de livrar-se de tal evidência ou de determinado problema.
Mas em momento algum se deve esquecer que nossa "sensibilidade" é falseada,
e que só prosseguindo poderemos adquirir uma visão justa que nos permitirá
reconhecer o que deve ser salvo, e veremos, então, como as evidências que, de
perto, parecem incontornáveis não o são quando olhadas à distância.
20. - Enfim, voltando às tendências de que acabamos de falar, o ensina-
mento que elas comportam para a psicologia beira a anulação por conta da
nostalgia, que chama seus partidários ao retorno, e porque uma liquidação ra-
dical da psicologia clássica não lhes permite livrar-se dela para sempre.
Eis por que, a fim de libertar o ensino em todo o seu alcance e em todo o
seu rigor, dedicaremos um estudo a cada uma das tendências que menciona-
mos. Serão estudos preliminares que devem preparar a própria crítica, esclare-
cê-la no plano das suas articulações e fornecer-lhe as peças constitutivas; esses
estudos formarão osMatériaux pour la Critique des Fondements de la Psychologie.'
A crítica em si, em que o problema que acabamos de expor será tratado em si

Os Matériaux devem ser apresentados em três volumes. Depois deste, haverá um volume sobre a
9
Gestalttheorie, com um capítulo sobre a fenomenologia; o terceiro tratará do behaviorismo e das suas
diferentes formas, com um capítulo sobre a psicologia aplicada.

•:1&
\19} Introdução
e sistematicamente, deve figurar no Essai critique sur /es fondements da la psycho-
logie, o qual virá depois dos Matériaux. Esse caráter preparatório e, conseqüente-
mente, provisório dos Matériaux jamais deve ser esquecido; eles ainda não contêm a
crítica, representam apenas os primeiros instrumentos, ainda toscos, com os
quais serão fotjados os instrumentos apropriados.
21. - Evidentemente, essa pesquisa que empreendemos nos Matériaux
não pode ser feita no vazio. Não temos a mínima pretensão de examinar as
tendências em questão sem idéias preconcebidas, "ingenuamente". Afirmações
desse tipo podem ser sinceras, mas nunca verdadeiras, pois não há crítica ver-
dadeira sem o pressentimento da verdade. A questão toda consiste em saber
qual é a origem desse pressentimento.
No que nos diz respeito, é refletindo sobre a psicanálise que percebemos
a verdadeira psicologia. Isso poderia ter sido um acaso, mas não o é, pois só a
psicanálise pode, hoje e de direito, dar a visão da verdadeira psicologia, por ser,
e só ela, a sua encarnação. OsMatériaux devem, portanto, começar pelo exame
da psicanálise: tratar-se-á, buscando o ensinamento que a psicanálise compor-
ta para a psicologia, de obter esclarecimentos que nos permitirão não esquecer
o essencial no exame das outras tendências.
22. -A primeira onda de protesto que o surgimento da psicanálise levan-
tou parece, agora, suavizada, embora a tenhamos visto recrudescer com violên-
cia na França, 10 recentemente, e a situação tomou-se menos tensa entre a
psicologia clássica e a psicanálise. Essa mudança de atitude, que pode ser inter-
pretada como uma vitória da psicanálise, representa, entre os psicólogos, ape-
nas uma mudança de tática. Percebeu-se que a primeira maneira de combater a
psicanálise, em nome da moral e das conveniências, equivalia a entregar o ter-
reno, sem luta, aos psicanalistas e que é muito mais elegante, e muito mais efi-
caz, adquirir, por meio de uma prova de liberalidade - a qual consiste em dar
a Freud o lugar que lhe pertence em psicologia, no capítulo do inconsciente-,
o direito de fazer a respeito da psicanálise as reservas que a "ciência" exige. T ra-
ta-se, pois, graças a certo número de assimilações, de fazer recair sobre Freud
todo o desprezo que se tem atualmente por certas tendências, e afirma-se, en-

10
A implantação da psicanálise na França confrontou-se com as idéias de Piérre Janet e as teorias da
degenerescência e hereditariedade, entendidas como agentes etiológicos das patologias mentais, que
dominavam a psiquiatria francesa na década de 20. Foi dentro desse contexto que a tradução para 0
francês da Traumdeutung apareceu em 1926. (NR1)

CRÍTIC4 DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA 9'


tão, que a psicanálise não passa de um renascimento da velha si 1 .
ciacionista; que se baseia por inteiro na psicologia da Vorstellun~ tco ogia ass0--
c:, e e.
23. - No que, por outra parte, diz respeito a seus adeptos só "
.d . . D e F ' veem na psi
canálise lib1 o e mconsc1ente. e 1ato1 reud é para eles o Cope'rnico d .
. por se~ o Cnst?vao
logia, . , - C. º.1ombo do ~consciente
· · e, de acordo com eles,ª PS Ion
1
co-
de fazer reviver a ps1
. colog1a mtelectualista, a psicanálise liga-se, pelo eontrano , ?e
a esse grande movunento que se esboça a partir do século XIX e que enalt '
importância da vida afetiva; com a teoria da libido, co~ a primazia do
sobre o pensamento mtelectual, enfim, com a teona do inconsciente afetivo
d;~
psicanálise é o coroamento desse movimento todo. 'ª
~4. -Nã? é d~f~cil pe~ce?er que essa image~, agora clássica, que os adep-
tos dão da psicanálise, vai diretamente no sentido dos desejos da psicologia
clássica, ajudando-a a restabelecer seu equilíbrio após o abalo recebido da psi-
canálise. Pois, atribuindo a Freud só os méritos de Colombo e de Copérnico, a
psicanálise passa simplesmente a ser um progresso dentro da psicologia clássi-
ca; uma simples inversão dos valores da antiga psicologia, inversão só da ordem
hierárquica dos seus valores; um conjunto de descobertas que as categorias da
psicologia oficial podem perfeitamente receber, contanto que se dilatem um
pouco para armazenar tanta matéria. Com efeito, o que a discussão orientada
dessa forma levanta são teorias e atitudes, não a própria existência da psicologia
clássica.
Na verdade, não há evolução, mas uma revolução um pouco mais "coper-
niciana" do que se imagina: longe de ser um enriquecimento da psicologia clássi-
ca, a psicanálise é a demonstração da sua derrota. Constitui a primeira fase da
ruptura com o ideal tradicional da psicologia, com suas ocupações e suas forças
inspiradoras; a primeira evasão da área de influência que há séculos a mantém
prisioneira, da mesma forma que o behaviorismo é o pressentimento da próxi-
ma ruptura com suas noções e concepções fundamentais.
25. - A razão pela qual os psicanalistas colaboram com seus adversários
para a canalização da revolução psicanalítica é que, em seu íntimo, conserva-
ram uma "fixação" no ideal, nas categorias e na terminologia da psicologia clás-
sica. Além do mais, é incontestável que o arcabouço teórico da psicanálise está
repleto de elementos tomados à velha psicologia da Vorstellung.
Contudo, os adeptos da psicologia clássica não deveriam ter utilizado esse
argumento. Querendo confundir o interior com a fachada, só chamaram a
atenção para a incompatibilidade, na psicanálise, entre a inspiração fundamen-
tal e as teorias em que ela se encarna, cavando a própria cova. À luz dessa ins-

. } Introdução
Piração
.
fundamental manifest
. .. '
b - •
. a-se ª ª straçao da psicologia clássica e aparece
a incompatibilidade verdadeira que não e' a d .canáli.
. • l' • ' a psi
fi
se com certa orma da
psicologia c assica, mas da psicanálise com a . 1 . lá . / .
. , . ps1co ogia c ss1ca em gera . Mais
ainda, graças nature~ dessa incompatibilidade, cada passo dado em direção
da compreensao
_ da onentaça-o
. concreta da psican
· áli.se tem, em contrapartida,
·
a revelaçao de u_m procedimento constitutivo da psicologia clássica; por isso
mesmo, a ma~e~a c?~º
Freud exprime suas descobertas na linguagem e nos
esquemas ~radic~onais apenas um caso privilegiado que nos permite observar
como a psicologia fabnca seus fatos e suas teorias.
De todo modo, não basta fazer a Freud a vaga acusação de intelectualis-
mo ou associacionismo: é necessário destacar com exatidão os procedimentos
que justificam essa acusação. Somos obrigados a reconhecer, à luz do verdadei-
ro sentido da psicanálise, que esses procedimentos, cuja falsidade foi alardeada
com tanto orgulho, não passam de procedimentos constitutivos da própria
psicologia e a acusação em foco revelar-se-á um caso particular da ilusão que
não pára de perseguir os psicólogos e que consiste em acreditar que se alterou
a essência, quando só se trocou a roupa ...
26. - Queremos investigar o ensinamento que a psicanálise comporta
para a psicologia demonstrando as afirmações anteriores. Nosso esforço será,
por um lado, libertar a psicanálise dos preconceitos comuns a partidários e ad-
versários e procurar sua verdadeira inspiração, opondo-a constantemente aos
procedimentos constitutivos da psicologia clássica, da qual implica a negação.
Por outro lado, e em nome dessa inspiração, analisaremos as construções teó-
ricas de Freud, o que nos permitirá, concomitantemente, captar os procedi-
mentos clássicos ao natural. Dessa maneira, não só obteremos uma visão
nítida da incompatibilidade de que acabamos de falar, mas indicações impor-
tantes sobre a psicologia futura.
E pelo fato de que a análise deve ser precisa e deve captar a maneira como
se elabora e constrói a psicanálise, achamos que seria melhor estudar a teoria do
sonho. Pois o próprio Freud diz: "A psicanálise baseia-se na teoria do sonho; a
teoria psicanalítica do sonho representa a parte mais acabada dessa jovem ciên-
cia."11 Por outro lado, é na Traumdeutung que melhor aparece o sentido da psica-
nálise e são mostrados com um cuidado e uma clareza extraordinários seus
procedimentos constitutivos.

11 "Einige Bemerkungen über den Begriff des Unbewussten in der Psychoanalyse", in: Kleine Schrifien
zur Neurosenlehre, IV. Viena: Folge, 1922, p. 165.

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA Ílf


········· D
Ain1roSP8(ÇõO.dóiCêi. e·o·météXfo.psiCOílãiítiCO

O capítulo II da Traumdeutung é dedicado ao "Método de interpretação


~ sonhos". Sabemos que esse méto ~onsiste essencialmente no seguinte:
l7.d~co:111põe-se o sonho em parte , 2°~ lsujeito deve relatar sem crítica e sem
reticencia tudo o que lhe vem à me éfria a respeito de cada um dos elementos
do sonho. Há motivo para nos sentir surpreendidos, e o fomos realmente, por
Freud aplicar semelhante método. De fato, ele diz não ter a menor vontade de
estudar os sonhos de acordo com os métodos fisiológicos, e por afirmar clara-
mente que quer utilizar métodos psicológicos, podia-se esperar que utilizasse a
introspecção. Ora, não é a~ ~e5@0 que ele emprega, mas um método que
só pode ser chamado de j_I;_!rospeçtivo, forçando o significado dos termos, e
que, segundo o próprio Freud, é apenas uma variante do método de decifração
(cf. p. 95).
Freud não se manteve isento de críticas quanto ao caráter arbitrário do
seu método. A essência desse método consiste em fazer com que o sujeito diga
.!_udo oque /~e eassa pela cabeça. Em contrapartida, a objeção que os psicanalistas
fazem cor_}W~ à introspecção é que, mesmo a mais refinada, não consegue
A eliminar ~ sendo que o objetivo consiste precisamente em eliminá-la,
é óbvio que se aeve substituir a introspecção por um métodç em que o pensa-
mento seja menos falseado pela censura que no estado de vigília. O métodQ
consiste essencialmente na criação de um "estado psíquico que oferece certa
analogia com um estado intermediário entre a vigília e o sono e também, sem
dúvida, com o estado hipnótico" (p. 93), e isso porque "no momento de ador-
mecermos, as representações involuntárias surgem à superfície, porque a ação
da vontade e da rítica frouxa-se" (p. 94).
De fato, Freu a asta a introspecção porque ela não poderia ser o método
de uma psicologia concreta, e a oposição entre a introspecção e o método ana-
lítico não é senão um caso particular do:.:1~!goni~IJ;2.entre~ p~icol~gia abstr~

-- ta e ~ sico~ia concreta.

CRÍTICA DOS FUN0M\ENTOS DA PSICOLOGIA lt


l
Façamos abstração de todos os argumentos clássicos contra a.
. b 1 , d ·e lntrosp
ão e suponhamo-la perfeita: so ra que e a so po e llltormar quant , ec.
Ç . E . o afor111
{ ao conteúdo do ato que mtrospectamos. . . squec1 . um nome que, na vei dade eae
nheço bem; se me introspecto, direi que smto um certo mal-estar ao ' 0-
c - . . . d be rnesino
tempo que uma tarte tensao mtenor: o sentimento e sa r sem fórmul
'nha e averbal
e sem imagem; nomes apontam na m1 mente, mas atasto-os com u
. .,., . d macer
tez.a repleta de ~es~ito, a conscienc1a es~a certeza, ao mesmo tempo ue -
da minha ignorancia, deixa-me perplexo ate o momento em que, de re q ª
" h - d al' . pente
sem poder saber o porque, ten o uma sensaçao e 1vio . como se uma .re., s1sten-
. .. '
cia cedesse subitamente e o nome proc,urado surge, afinal, acompanhado deu
sentimento de alívio e de libertação. E o que a introspecção pode ensinar- m
Mas isso só satisfaz a uma psicologia abstrata. Essa psicologia tão empenha~e.
em descrever com exatidão as mínimas_ nuanças de todos os estados que sent~
a partir do momento em que constatei o surpreendente esquecimento, até 0
outro momento em que surgiu o nome procurado, essa psicologia, repito, deixa
totalmente de fora~ t ~do fa!o f Í ef!!.sua_particula~id~d_:_, e, sem inca-
"( modar-se, atribui esse fato ao acaso.
"Se perguntarmos a um psicólogo clássico que explique como é possível
encontrar-se com tanta freqüência na impossibilidade de lembrar um nome
que temos certeza de saber, penso que se contentará em responder que os no-
mes próprios caem com maior freqüência no esquecimento que os outros con-
1\, (._ tidos na memória. Citaria razões, mais ou menos plausíveis, que, segundo ele,

~\ ' explicam essa propriedade dos nomes próprios, sem suspeitar que esse proces-
so pode ser submetido a outras condições de ordem mais geral" (La Psychopa-
thologie de la Vie Quotidienne, tradução francesa, p. 3).
O que significa que o psicólogo atribuiria o esquecimento aj_ausas gerais
que, pouco importa o que se faça, só podem ser válidas para uma_generalidade,
[ não para o fato preciso do qual se trata. Ese Freud fala de condições "mais gerais"
às quais esse processo pode ser submetido, essa linguagem não deve iludir, pois
ele só se refere a fatores gerais, como censura, recalque etc., mas a explicação
que ele dá para cada caso terá a pretensão de abranger o fato a ser explicado em
.f!:!.ª particularidade. O postulado fundamental de Freud, segundo o qual todos
os fatos psicológicos são rigorosamente determinados, tem exatamente ames-
ma significação.
,
Enatural que quem procura explicações desse tipo não possa contentar-se
com a introspecção. De fato, o que fiz no meu exemplo de introspecção? Con-

tâti Capítulo Dois


siderei o efato do esqu ecunento,
· . dizer de um ponto de vista
por assun · fiorma,/
como se 1osse o esquecunento
· de algo e além do' mais como se fosse o esquec1-.
mento de alguém Nã 1evei· em conta o' fato de que se 'tratava preasamente
. de ta /
{ nome e que eraprec· -5:....
·
_ -- --- . tsamente eu (mo,) que o-esquecera.
· -Minhas
- - per-·
constataçoes
manecem
. gerais e nadame m1ormam,
· e - na medida
• em que não sei· por que esque-

N J ( vO
' ,,;1 • 1~ c1 exatamente. esse nome nem o momento preciso . em que o esquec1.· Essa e, a
1
natureza da_ mtros~cção. Não poderia responder às perguntas da psicologia
ccrv,1i L-\ concreta
-~ . pms, para isso, e' prec1so
· cons1·derar as c1rcunstanc1as
· ,. · part1cu
· 1ares do
,,,...- esqu~cimento, 0 que o nome esquecido significa para mim; seria necessário
considerar esse esquecimento como um segmento da minha atividade particu-
lar, ~orno um ato que, vindo de mim, me caracteriza; seria preciso penetrar o
7'( L sentido desse esquecimento.
Mas só se conseguirá penetrar o sentido do esquecimento apropriando-se
dos materiais necessários a seu esclarecimento. Esses materiais, devendo indi-
car a significação que esse esquecimento tem para mim, não podem, evidente-
mente, ser fornecidos por mim. Ora, isso não podE'to com ajuda da
introspecção, mas exclusivamente com a ajuda de u relato
Freud deve substituir a introspecção pelo relato. o ser o fato psicológico
um segmento da vida de um indivíduo singular, não é a matéria nem a forma
de um ato psicológico o que interessa, mas o sentido desse atQ; e isso não pode
ser esclarecido senão pelos materiais que o sujciÜ> fornece no relato.
É preciso notar que essa maneira de Freud substituir a introspecção pelo
relato não é simplesmente a substituição do ponto de vista abstrato pelo ponto
de vista concreto, mas também a substituição do ponto de vista subjetivo pelo
ponto de vista objetivo, para empregar essa antítese clássica, e, para falar uma
linguagem mais moderna: pelo uso do método do relato, Freud substitui o pon-
{ to de vista da "intuição" pelo do "com_portamento".}
.,. -
De fato, se substituirmos a introspecção pelo relato, o trabalho psicológi-
co incidirá sobre dados "objetivos". O relato constitui um material objetivo que
pode ser estudado de fora. 32 Mas pode-se dizer que aí está apenas uma objeti-
vidade banal. O verdadeiro aspecto dessa objetividade só é dado pelo fato de o

a; H,
a na
· fnoia clássica um método que podemos ser tentados a comparar com o método freudiano:
ps1co
, d na' n'os Esse método pode fornecer efetivamente resu Itados ob'Jetlvos.
t· -o- . Mas o que faIta a
eo osques10 • . 1 . · - b
quem O emprega é precisamente uma noção concretadada p51co odgia: cálio:°1do as pes~~:~:s sao a stratas, as
respost as tam bém O são . _Esse método só conseguiu
_ _____ . • -r resu1ta os v _~ na IDl<Y!Y9.efil qu.e..-2.s.. Q~ o
utilizam estiveram concretos sem o gll~~
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------ CRÍTICA DOS FUNDM\ENTOS DA PSICOLOGIA ~
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\~:4._:{ w l-\•> ) l~) Ct:jr ~r i'JA .


r:ª
psicólogo e seu sujeito não ter~m m~s, com~ acontece introspecção, a mes-
ma função. ~ jeito psic~nalisa?o ~g~ora a mt~..!?~~açap ç fª1a ~r
do sentido que O psjça!,).alista atn_E!:!11'ª aqs !?~ten~s _que ele fome~ . O psicó-
lõgo úítrospectivo, pelo contrário, espera d~ ~eu su1e1to um ~s~udo já psicoló-
gico, e ele é sempre obrigado a supor um ps1cologo ?,.º s~u su1e1to. Está aí uma
diferença enorme com o que acontece nas outras c1enc1as: o matemático não
pede a uma função que ela seja "matemática", mas que seja simplesmente fun-
ção, e O físico não procura na bobina de Ruhmkorff outro físico, mas apenas
uma bobina de indução.
O psicanalista não pede a seu sujeito que mude, por assim dizer, sua ma-
neira de ser: pede apenas para "relaxar'' e falar. O sujeito não tem outra coisa
1
e----· e se ocupar: o trabalho psicológico é reservado ao psicólogo e o sujeito
não pode xecutá-lo.
.. m, o método do relato é objetiv<::: e__;~~sJ2_eg o é mais importante
_gue o anterior =-J2Q!CJ!.le~.•psicólogo...é_lib~rad,Q _dess~ "~ ~smo" .9u~re-
gras da introspe~@Qlh.e i!np..QW}., ~ ~,':.~~.!!Q psiçQlogo" deve__:reviver sim-
--:fatic~~~i_os.e~~do!-~ al~~_g_q -~ ~-s~i~i!<i', sem ~s~9'··ªJ9-trosp.e.cç~oE!o
~ -sentid_2iJ29i~_~ep.9~a ~:11 !~tos_~qu~ só pqdem ser ~ª.P!~~~ ~ 2r.
Não sobra ;;.,-rr~n.·~ ua marca dessa exigência a não ser no método psicana-
lítico, que qu interpreta determinar o sentido do sonho, por exemplo, com a
ajuda dos mat · ·s forn ciclos pelo sujeito. Assim como o físico não precisa
transformar-se em o ina para estudar a indução, tampouco o psicanalista
precisa ter "complexos" para reconhecer os complexos dos outros, e é-lhe mes-
mo rigorosamente proibido tê-los, pois ninguém se toma psicanalista senão
após ter passado por uma análise completa. O que há de notável é que, por só
procurar a interpretação, o psicanalista atinge a objetividade sem ser obrigado
a recorrer a "esquemas espaciais"!
Mas o método do relato não se opõe apenas ao caráter abstrato e subjeti-
vo da introspecção; ele representa também a antítese do realismo desta. Não
podendo a introspecção fornecer mais que a forma e o conteúdo de um ato psi-
cológico, só tem sentido na hipótese realista e, de fato, a psicologia clássica con-
sidera a introspecção essencialmente como forma de percepção. Portanto, faz
corresponder a seus dados uma realidade sui generis1 a realidade espiritual ou a
vida interior, e a introspecção deve fazer-nos penetrar nessa "segunda" nature-
za e informar-nos sobre seus estados. Os dados da introspecção, que são os de
uma realidade, sugerem depois hipóteses sobre a estrutura dessa realidade, e es-

IA
',J!ft Copítu~ Do~
sas hipóteses são naturalmente realistas. Pela introspecção aprendemos o que
é e O que acontece no mundo espiritual.
Ora, é óbvio que a vida psicológica de outro indivíduo só é dada sob forma
de "relato" ou de "visão". Relato, quando se trata de expressão por meio da lin-
guagem (em todos os sentidos do termo); "visão", quando se trata de gestos ou,
em geral, de ação. Estou escrevendo: há aí relato e, ao mesmo tempo, visão. Ex-
primo, por meio da escrita, meus "estados de alma" entre os quais alguns po-
dem ser adivinhados pelo visão do que faço: pela atitude que tomo escrevendo,
as expressões de minha fisionomia etc.
O relato e a visão têm função prática e social, sua "estrutura" é, por isso,
"finalista": a linguagem corresponde em mim a uma "intenção significativa" e
as ações, a uma "intenção ativa".
É primeiramente com essa forma "intencional" que o relato e a visão se
inserem na vida cotidiana. O relato propriamente dito é tomado pelo que é; à
intenção significativa em mim corresponde nos outros uma "intenção compre-
ensiva", e quanto à visão, o dia-a-dia respeita igualmente seu plano. Falo, e a
vida diária só vê a intenção significativa. Estendo a mão para pegar a garrafa de
água, alguém a apresenta. No primeiro caso, sou compreendido; no segundo,
uma "reação social" responde à minha "ação" e é só isso.
Enfim, nas relações cotidianas não se sai da "teleologia da linguagem" e
fica-se no plano das significações, compreensões e ações recíprocas. 33
A psicologia clássica começa por abandonar esse plano "teleológico" e fa-
zer abstração da intenção significativa. O que lhe interessa não é o que o sujeito
relata, mas o que se passou em sua mente enquanto falava; há necessidade,
portanto, de certa correspondência entre o relato e,.12I,ocessus sui generis.. Para en-
contrar esses processos, ela só dispõe, evidentemente, do relato, mas vence adi-
ficuldade~ ~ntão, teremos, por um lado.. ,t ex~ o e, p_or outro,
_qgp1essa~ 1_f; ta_!llb~ _çluas Qtdens de existência,..poj5-o_e~Rres.g__cj~ u112,a
maneira de ser sui generis: é espitit_µal, é o.~ nsament.9.~
-- Évisível que esse "pensamento" não traz, 4P..E,onto de vista da significafão,
algo novo: a significação da idéia e a significação da palavra são exatamente

t!J Só falaremos a seguir da maneira como a psicologia clássica trata o "relato". Mas ver-se-á facil-
nte que tudo o que dissennos a respeito aplica-se também à "visão".
la-se, outrora, muito mais longe e admitia-se um paralelismo completo entre a linguagem e o pen-
~
amento. Mas quaisquer que sejam os aperfeiçoamentos das teorias mais recentes, sempre encontrare-
mos o esquema do procedimento que descrevemos.

CRÍTICA DOS FUNDM\ENTOS DA PSICOLOGIA {il


mesma coisa. Porém, quando se fala da significação da palavra, não se deixou
ainda a teleologia da linguagem, enquanto o termo idéia marca precisamente
a transformação do ponto de vista teleológico em ponto de vista realista. A psi-
: ologia clássica ~esdobra a ,filgnifi~ ~ão ~--a ra passar do pl~no das~ ~fic~çõei *
para o plano dos_ e rocessos mentais . Sai ortanto, da dialética da vida corren-
f:. f~ 2tida~es reais dag uilo_gue não p~s~a, o _ponto e vista essa d~ ~ticâ
~___s~pl~s instrumento.
Ob1etar-se-á que a introdução d~j_dé~ az algo novo, pois a palavra é só
instrumento de significação e essa significação precisa ser pensada numa cons-
ciência individual antes de poder ser expressa. Portanto, a idéia representa algo
novo: um ato psicológico que deve ser descrito e estudado. Mas essa objeção
nada mais é que a descrição do procedimento da psicologia clássica, o desdo-
bramento da significação uma vez realizada.
De fato, após o desdobramento, a psico e gia-fa-z-a ração da intenção
significativa e situa-se no ponto de vista d !ismo uncio12a , para descrever
o modo de produção do que é expresso, a maneira como é vivido; a significação
enquanto significação não tem mais importância alguma; gualquer que seja a
coisa pensada, só o "pensamento" interessa ao psicólogo. --~cí/,MAl(S ;l,,[ C

II H . l(ÍCY_AZ.
Parece-nos que o psicólogo clássico procede da seguinte maneira: desdo-
bra o relato significativo e faz do seu duplo uma realidade "interna". Em vez de
conservar a atitude ordinária que convém à teleologia das relações sociais, re-
nuncia de repente e procura no relato a imagem de não sei que realidade "inter-
na". Essa é sua atitude quando está diante do relato de outro. Mas a retoma
depois, quando diante do seu próprio relato.Toda a alteração será então repre-
sentada pelo fato de que não é à intenção "compreensiva", mas à intenção
"significativa" e "ativa" que ele deverá renunciar; e, em vez de efetuar o desdo-
bramento para um outro, o far~ JéIB~ si. Uma vez efetuado o desdobramento,
ele procurará descrever a re~~ade ~ erna do ponto de vista do formalismo
funcional. Dirá, então, que 5 introspectf .
A introspecção ou a refie g,ábandono da intenção significativa e ati-
va em proveito do formalismo funcional, e a essa alteração de ponto de vista
corres onde-um segundc-r-@!at_o, cujo ponto de partida é constituído pelo relato
si ·.fic.ativ0~v1sto a o- ponto --. . realista e formal. Objetivamente, portan-
a introspecção é um segundo relat'' resultante da aplicação do ponto de vista do
11 11

forma is ufum-ional ao rela~gnifl ativo e o que a psicologia procura é precisa-


-- -
1

- - _,,, /

9 Capítulo Dois
mente substituir O prime·
relato que nada mais t 1ro re1ato, puramente_ significativo, por um segundo
desse ponto de vista , ª ver co~ ª ~eleologia das relações humanas e que,
ão de uma realid d ' ~ ura ~nte desinteressado" e deve constituir a descri-
Ç a e ~ tgene s.
Afinal,
, é. preciso
.. ês er entre d uas hi poteses.
, .
Pode-se dizer . , .
de inicio
que o que e pnmitivo
. . é a in t rospecçao,
_ pois. são meus estados psíquicos' que co-'
n h eço em
_ pnmeiro lugar e nao - suponho estados psíquicos em meus semelhan-
te:. ~e~~~-graças à minha própria experiência interna. Se isso for verdade, é
ar i Cl izer ~ue desdobro o relato, pois só atribuo a meus semelhantes esta-
dos que, em mim, co~stituem realmente a duplicação do relato. O procedimen-
to fundamental da psicologia introspectiva não seria então o desdobramento do
relato, mas um raciocínio analógico. ' '
, . A segu~da ~pótese consiste em admitir que o que é primitivo é, pelo con-
trano, a realizaçao do relato por meio do desdobramento e não a introspecção;
esta, longe de apresentar uma atitude espontânea, só seria a aplicação a si mes-
mo de uma atitude tomada em face do relato significativo pelo "senso co-
mum". Nesse caso, não seria o raciocínio analógico, mas o desdobramento, que
caracteriza a psicologia. Contudo, esse desdobramento pode dirigir-se para os
outros, ou para nós, e é esse segundo caso que chamo de "introspecção".
Sabe-se que a psicologia adota a primeira dessas hipóteses. E é essa hipó-
tese que inspira os ataques dirigidos contra ela: é precisamente o raciocínio
analógico que os behavioristas rejeitam na psicologia clássica.
Muitas considerações orientam-nos para a segunda hipótese.
1Jt C, Primeiramente, é preciso distinguir a introspecção tal como é e~E._rincípjp~

e a introspecção tal como é de fato, pois não se deve co,:tfµndir com q_5-t!!oflssões_rj_e
~· fé a rçspe_itQda introspecção, o método introspectivo atual~ o_qu! ~e us~~a n~f?JfSS~do.
Q!:?,_é a introspecção tal como é e tal como foi que visamos, não as diversas pro-
-messas de introspecção.
~J,.~ Além do mais, é preciso distinguir :s_ '..P.:55!E~ ~internas" sil!)i;tles,..cumo
··a da dor orgânica, das necessidades orgarucas, ta1s_como se produ~m 11a conJ.~-
1 ?ª
-;uidade da vida cotidia!1q inl_!~~~ç~~si~temática tal c,~ º-em~ egada psi-
- 1 · ssa distinção é necessana, pnmeiro porque o ~ ofrimento esta ligado
coo . . , -ss b d
--- 'vida" enquanto a in ro2.P~ ção perte~_~e ao _c~nh~ 1~~0 ~ mas so retu o
1
8
porque a introspecçã método psicologico, vai mmto alem dos quadros da
(1, ,~,, ?, . (11
(} , .
--------~-r-..c;_- ifi /.) V~ (VJ{ 1/(,-; /_9 ..
35 Cf. mais adiante, capítulo IV, item IX, PP· 16qfi 1. ·. •
1'/ ' '{
V fj
-1 / / r$: i.ft..111 -i1,,1.}zlt'/Í(

CRÍTICA DOS FUN0mENTOS DA PSICOLOGIA


-
simples percepção ordinária dos nossos estados "internos". Pois o fato de falar
da "percepção dos meus estados internos" já implica a abstração. O que é ime-
__ diato é o sofrimen.t.Q,__tal.como..se_p_mg_uz no encadeamento dos ~contecime-;;_
tos da minha vida cotidiana .
.-- , Se consÍderârmos a questão -ª.§.Sim delimitada, notare~9~Jalvez~ a
introspecção não procede ao interior de maneira tão espontânea e tão sincera
-- quanto ospsicólÕgosCÕst_Umani ãfuinéll. Pois éc faroqti~p;kólog~ d~ge-
- raça.o ant erior à n·- - , ando apresentam o silogismo, no capítulo "Psicologia
do raciocínio", - nos re Iam coisa verdadeiramente "interna", pois foi a ló-
gica, a lógica de Aristóteles cujo método nada tem de introspectivo, que nos
ensinou a exist eia do silogismo. É óbvio que, se os psicólogos em questão
pensam ter inventa o á psicologia do raciocínio, é unicamente porqu€i::flesdo-
braram o relato. Por ser absurdo afirmar que o silogismo é um "dado imediato
da consciência", é claro que, pelo menos neste caso, a introspecção veio, por assim
dizer, de fora, e que o segundo relato constituiu-se pelo desdobramento puro e
simples do primeiro.
Sabe-se, aliás, que os psicólogos em foco confundiam a todo momento in-
trospecção e fabulação, que "decalcavam" suas realidades psicológicas da lingua-
gem: a demonstração de tod esses pontos não forma uma parte integrante da
doutrina de Bergson?
Só que se pensa Bergson é o primeiro a fazê-lo - que há um erro na
maneira como foi utiliza i ospecção, pois a verdadeira é outra coisa.
Mas só há uma hipótese à qual somos levados pelo caráter ingênuo do rea-
lismo psicológico. 36 Mas nada condena, e é o mínimo que se pode dizer, a idéia
segundo a qual o que é chamado de erros cometidos no uso da introspecção seja
só a revelação da sua essência verdadeira, a qual aparece tanto melhor quanto
mais simplista são os que a empregam. Não seria a primeira vez que o verdadei-
ro caráter de um procedimento científico apareceria com clareza exatamente
numa teoria já condenada.
Por outro lado, Bergson mostrou que a introspecção dos seus predecesso-
res não era sincera, que seus relatos introspectivos alimentavam-se da realiza-
ção de exigências teóricas. Mas só viu nisso um erro evitável e, tendo em vist9-
o caráter do seu empreendimento, não podia enxergar outra coisa. i:oo-avíá·, a
crítica bergsoniana poderia significar que o caráter "exógeno" g,a;futrospecção

36
Cf. adiante, p. 91.

ff} Capítulo Dois


já f~ra demo~~trado em relação a certo gênero de "segundo relato", o que faz~-
teMr no cenano personagens "estáticas". Ora, Bergson só inaugura um novo ge-
nero de segundo relato, uma nova técnica para elaborar dramas impessoais:
trab_alha com personagens "dinâmicas" e "qualitativas"; e os temas que seu for-
malismo dp,;:.e~-,m-.._ 1• agem na qual seu realismo se expressa são diferen-
tes. Mas h ignoratio e/enchi e supor que essa espécie de segundo relato escapa
da crítica que arrumou a primeira, pois a introspecção bergsoniana nunca foi
submetida a um exame semelhante àquele a que ele submeteu a introspecção
dos seus predecessores.
Mas o que mais compromete a verossimilhança da opinião clássica.é a pri-
mazia da atitudJ teleológica. Pois é a compreensão e a interpretação que estão em
primeiro lugar, a psicologia só vem depois. Ora, a expressão e a compreensão
não implicam uma experiência interna sui generis por parte de quem se expressa,
nem a projeção dos dados dessa experiência na consciência de quem é compre-
endido. Tal interpretação da expressão e da compreensão não só diz respeito ao
realismo, mas também a todos os procedimentos da psicologia clássica.
Éna atitude teleológica que o realismo se enxerta. Primeiramente, em ge-
ral: a introspecção só aparece em terceiro lugar e representa a aplicação a si
mesmo do realismo que, em princípio, se exerce inicialmente em relação aos
outros. Se considerarmos, agora, o fato de que historicamente a noção de in-
trospecção é relativamente tardia, então, a nossa hipótese não parecerá, talvez,
tão absurda - perceber-se-á, pelo menos, que o problema não é o da psicologia
pela interpretação, mas o da psicologia da introspecção.
todo modo, essas considerações ultrapassam os limites do presente es-

f tudoW:<) que importa, no momento, é o conteúdo da introspecção, a compa-


ração do conteúdo do "segundo relato" da psicologia clássica com o que a
._Jpsicanálise fornece. Ora, seja qual for a última palavra a respeito do verdadeiro
mecanismo da introspecção, ela sempre estará indissoluvelmente unida à abs-
tração e ao formalismo. E isto basta para desacreditá-la diante de uma psicolo-
\ gia que se quer concreta e fecunda.

f 37
: E no Essai que eles deverão ser retomados sistematicamente.
. .
"' [Novamente encontramos enunciado o projeto do autor que não foi realizado. Roudinesco comenta os
possíveis motivos que teriam levado Politzer a abandonar o projeto de escrever sua grande obra que sis-
tematizaria as posições, aqui desc~tas, ~obre a psicologia _concreta. yer o car ulo "Marxismo, Psican\i;-
lise e Psicologia", in: História da Ps1caná/1se na França; op. ctt., pp. 50-ST NRT

CRÍTICA DOS FUNDM'IENTOS DA PSICOLOGIA '!ll~


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· / u .
o que, pelo contrário, caracteriza o mé_todo utilizado pelos pJ;ical}aiist~
,, 1 não comporta O procedimento realista que procuramos descrever. O
e que e e . .fi _ _ .
psicanalista não deixa o plano teleológico das s1gm :aço:s, nao mventa uma
atitude nova e paradoxal, como a reflexão. -~ 3b1et1vo e oumi~uer_pmlan-
W: a atitude d~<!.4º dia-a-dia, _"t.~ o mome!)t.Q, en:i qye d a ~ ~ lco-
logia _concr~ a; _sle_nl_urocu!a trans~o~ r o plano da s1g!}lficaça_o em
·•realid ~~L~ -~P!ofu.ndá-lo, .a.fim _de enco.n1rar, no fundo. das_ s1gn,(~ s
·cole_tj_vas cq_fJ_vettfi~tJªÍ!i ~ ~es if!.!.f.viq~qj_s_Sl'1~-IlãQ.entram f!?.ôlS na teleoh-
gia o_gli,ná~_das relações ~ s1 ll}aS ~o reveladoras da _psicologia ,individual.
Portanto, o psicanalista terá, também, um "segundo relato" a opor ao relato
puramente significativo. Mas seu segundo relato não será resultado da desar-
ticulação do primeiro; ele representará o aprofundamento dele. Também nes-
se caso, só será considerada, em princípio, a intenção significativa, uma
intenção significativa que não nos conduz à região das interações sociais, mas
à psicologia do indi " ereto. Em resumo, o segundo relato da psicologia
clássica 1 ~ os ' · /izações enquanto o da psicanálise nos conduz, simples-
mente, ' •'nterpretaçãa
_ "~ teonas científicas do sonho não dão lugar ao problema da interpreta-
çao, pois para elas o sonho não é um ato psíquico mas um fenômeno orgânico
só registrado por certos sinais psíquicos" (p. 88). Para a teoria científica, que é
~bstrata, e ~ara~ qu~ as re~r~sentações têm existência própria, o problema da
mter~retaçao nao existe. P01s interpretar significa apenas ligar O fato psicológi-
c~ à vida co~creta do ~d_ivídu~. Mas, para Freud, o problema da interpretação
nao pode ~eixar ~e existir, p01s pertence precisamente a uma concepção con-
creta da psicologia.
nh Por considerar ,, o.dsonho abstratamente' a teoria "científica" restnnge. O so-
~-ao que esta contl o n~s f~rmulas verbais que constituem o seu relato. Con-
~quentemente, essa teona nao poderá completar o relato feito pelo su. .
nao ser por um relato conforme o ponto de vista formal N- . ,, f 1e1to: a
tervir a hipótese de um conteúdo manifesto e d . a~ precisara azer in-
pelo contrário, considera o sonho como "fat e u~ ~onteudo latente. Freud,
palavra•, como um segmento da vid
O 1
ps ':°!ogico,
no sentido pleno da
sário admitir que as fórmulas b co~creta 1?d1vidual; portanto, é-lhe neces-
. ver ais nao expnm 1
nam fora do sujeito mas precisam t al e?1, no reato, o que exprimi-
remontar além da ~igru'fi - en e . guma coisa do sujeito; será forçado a
nh fi caçao convencional das b' la ..
o, a m de encontrar a vida ind' 'd al ormu s utilizadas pelo so-
lVl u concreta. Precisará opor ao relato em

@ Ú!pítulo Dois
termos convencionais .. um reIato feito
. em termos de experiência individual;
. ao
relato superficial' um relat 0 pro fu ndo: se~, obrigado a fazer intervir a distmçao . . _
entre o que o sonho 1-1arec - - --- - - --
- - - - - - : : : : ~- __ _J. _ - ~ ex_2~ s~ o que ele significa realmente.
hamaorelat .- ---- --- --- - ··
° convencional de conteúdo manifesto e é traduçã
desse e1at m termos de expenenc1a •" . 1n
. d.1vidual
. que ele chama d~e~la~t~_...•
, PP· 79-104 epassim).
. Faz-se
,, . necessário aprofu ndar essa d.1st1nçao· - se quisermos
· compreendera
psicanálise
, em toda.a sua part·1cu1an·dade. Nao - basta para isso
. dizer
. que seu ca-
rat:r concre:0 consiste essencialmente na adoção do ponto de vista da signifi-
caçao. Em si, esse _ponto de vista é rico em aplicações que podem ir, como em
Spranger, numa direção muito diferente daquela que queremos indicar aqui. 38
,, . Freud gos~a de repetir que a maneira como a psicologia clássica tem por
habito caractenzar o sonho, dizendo que ele é incoerente, fantasista, ilógico,
em suma, desprovido de sentido, provém do hábito de considerar apenas o seu
conteúdo manifesto. Com efeito, após ter dado ao sonho alguns qualificativos
pouco lisonjeiros, a psicologia clássica passa imediatamente às constatações
formais e funcionais. Ela o faz, claro, conforme os procedimentos abstratos que
procuramos descrever. Na teoria do sonho, as teorias clássicas não fazem total
abstração da significação; pelo contrário, a constatação da impossibilidade de
dar um sentido a uma construção tão louca quanto o sonho determinou o es-
quema de teorias como a de Binz e a de Dugas.
Na base dessa atitude há um postulado "implícito", o de que os termos do
relato que o sujeito faz do seu sonho têm seu conteúdo ordinário; quando, por
exemplo, a palavra-chave aparece, sua significação coincide com a indicada nos
dicionários. Mas, de modo geral, os fatos psicológicos, mesmo sendo atual-
mente "psicológicos", sempre têm apenas uma significação convencional, sig-
nificação, por assim dizer, "pública". Converso com uma senhora e, de repente,
enxugo os lábios; esse gesto não tem outra significação além do "gesto-em-ge-
ral-de-enxugar-os-lábios", e tudo o que a explicação psicológica poderá ,,fazer
será um relatório conforme o ponto de vista do formalismo funcional. E esse
postulado, também, que está na base de todos os juízos sobre os fatos psicoló-
gicos que parecem ter errad? sua si~fi~~ção_convencion~. sonho não po~e
ser medido com as categonas das s1gruficaçoes convencionais, portanto, nao

38 N- · • · b se problema parque o tomo II dos Matériaux pour la Critique des Fonde-


ao insisto mais so re es
1 l p hl · d
1 ai Ge / h ·
d t r se em Spranger especificamente e, mais em ger I na sta tt eorie.
·

ments ue a syc o og1e eve e e -


.d E · um nome próprio que conheço muito bem: a psicolooia
tem senti o. squeci _ _____,.~- cr
• , ,. · , 11m ato falho portanto algo puramen~ egat1vo.
clássica so ve russo-le.6 ' ' . . ,, .
·: Estamos diante de um verdaãeiro-pe~d_?_ger~?? ~~cologia clasru.ca,
rostu~ ·-;;i convenêionãlidade da significaç~ a _inte1;7enção desse-pos u ado
qlle-Freud destaca-dizenctõqi.íe a psfcologia êlass1ca so quer considerar o con-
teúdo manifesto.
Esse postulado está intimamente ligado ao realismo e à_abstração. Indica
caminho ao realismo e abre a porta à abstração e ao formalismo. Indica o ca-
0
minho à abstração porque são as significações convencionais que são realiza-
das, enquanto o realismo procede por desdobramentos e o que é desdobrado é
a significação convencional. Digo "porquê". Para os psicólogos, há um "senti-
mento de relação". Por outro lado, uma vez realizada a significação convencio-
nal, é a abstração e o formalismo funcional que intervêm. Abstração, porque a
realização numa consciência individual determinada em nada altera essa mes-
ma significação e o fato de se encontrar nessa consciência, precisamente agora,
não tem a menor importância para a psicologia clássica; quer se trate de mim
ou de outro qualquer, a psicologia vai fazer constatações idênticas.
Essas constatações são feitas no espírito do formalismo funcional. Trata-se
de ligar a significação realizada à sua "classe": ligar o "porquê" à classe dos "sen-
timentos de relação", e descrever as circunstâncias gerais da produção e a ma-
neira como esse sentimento de relação é "vivido". Sabemos que muitos
psicólogos desenvolveram muita subtileza nesse gênero de exercício.
Compreende-se porque a psicologia clássica reivindica a qualidade e não
é ca_p~ de procu~ar individualidade dos fatos psicológicos, a não ser na irre-
dutibilidade qualitativa no qual são vividos. Assim o acontece ar la
como se todas as consciências individuais tivessem exatamente o mesmo con-
,~ -~çõ~~omose.~ gfil_cftncia inqiviêlual fosse a2enas t!!na
,-1~!ç_a2._
. de. _s1gmfig.çoes
,, . _gmpre..as mesmas; nara todo. muUQQ;_ggru
rr-_..- d . · ·fi caçoes
-
~{~mtu~ ~ captana..Lse~ -nada ~ -E evidente que, nessas condiçõ~
so a ~nteudo marufesto", !Sto é, significações convencionais, e todo o traba'.
lho efetivo está reservado ao formalismo func· . .
não f · "l O
exp11car, se assim
osse, que os ps1co ogos se desinteressam d "sentido'
nas pelo estudo abstrato e formal da significação . t- .
mteressam a~-
ta do sentido está cheio de canse üências
psicologia a descobertas psicanalíiicas De
cial que atuou em Freud uand 1 .
::ra . - . . o1s o ponto de vis-
pura e s~mpl~smente levado a
.o modo, nao foi uma graça espe-
plesmente• de ver que m't ode e ~;sc_obnu a psicanálise: tratava-se, "sim-
' e o o c ass1co da psicologia arrebentava-se no

-f j, Capítulo Dois
choque com certos casos privileD-iado .
. o· s que unpunha .

'
ereto, e esse ponto de vista teria Ievad aI m um ponto de vista con-
Que não se diga que a psicoloD-ia cla's qu quer um às mesmas descobertas
. o· sica també nh ·
em foco. Nossas afirmações anteriores _ co eceu o ponto de vista
mo muito fácil mostrar, uma vez que usaodperfeitamente justificadas. É mes-
ma escobe t ., 1, ·
do céu como um meteoro mas que ,0 - . r ª e eita, que ela não caiu
, 1, i anunciada p -
descoberta para se aperceber das "anun . _ , · or que, entao, se esperou a
., ciaçoes '?
E verdade, porém, que uma vez com 1 d . _
do sentido intervém na psicolooia cla's . p Maeta ª ª :ealizaçao o ponto de vista
o· sica. s só int , d
abstração e pelo postulado da significaça- . ervem coman ado pela
o convencional.
Comandado pela abstração quando t d
se rata e preparar ·· d
estudo psicológico. Uma vez completada a ali - os matenais o
• e - d re zaçao, procede-se a uma pri-
meira trans1.ormaçao: e acordo com suas signifi - d
- caçoes, or enam-se os termos
do relato segundo as noçoes de classe. Acabo de 1 . "Bol • .,
- d ,, " ,, . . . exc amar. as, mais um fos-
foro que nao acen _ ,, 11e!,,, -, bolas significa "estado aEetIvo · ", "de novo ,,, "senti-•
d - ". o con1unto
·
,, ""
mento 1
,, "' e,, re,, açao , 1.os1.oro_ , Imagem" ,, , "não pega", "percepçao
e um JUIZO . A . preocupaçao
,, estara
. em descobrir se houve análi·se ou smtese; ,,
que te~a havido sintese precedida de análise ou análise de síntese primitiva da
f ercepçao;, de_ qual~uer 1:11000, a significaç~o terá sumido. Sei que a psicologia
moderna nao esta mais nesse ponto; sei que recortei, que dei importância
exagerada aos elementos sólidos, mas mesmo que se diga ter havido simples
formulação verbal de uma atitude única e indivisível, ou algo do gênero, temos
de admitir que a atenção deixa o sentido e dirige-se para o estudo formal das
funções ou das atitudes: ~ó a linguagem é outrt!t_Qprocedimento éJ) mesm<J.-
b psicologia clássica também conhece significa~ões individuais Mas só Sf
referem à maneira como_g fato psicoló~ co é vivido pelo indivíduo, à sua "uni-
cidade" gl:!ª1i!ª1iva._Ora, esse ~inefável" QUe d~veria reRregütar...Q.SUnt,WUW ao,
c oncreto pertence -~q fo.rm-ª1.!snJ_o funcionaj e, de fato, não contém nenhuJlla
__determinaçãÕpropriamente indhj dual: q coE-~~eto qu~ Ie rep1esenta ~ o 2as:
sa geu.zp cÕncret oetíi"g@~ / --:~\
Mas o papel verdadeiro que o~ ~ntidof desempenha na psicologia clássica
só aparece se levarmos mais adiante a análise do postulado da significaç,,ã~ con-
vencional. Acabamos de mostrar a maneira como esse postulado esta ligado
aos procedimentos fundamentais da psicologia clássica. Mas podemos pergun-
tar qual é a origem desse postulado. . .
1st
O realismo consiste no desdobramento da significação con~enci~n~, º
, · · o
e, na sua projeção para o mtenor. problema do sentido é assim elimmado

CRÍTICA DOS FUNDIWENTOS DA PSICOLOGIA {I \


uma vez par todas, parque é precisamente à significação convencional que a
realidade psicológica pertence, pais é ela que é projetada na tela da vida interior.
Por outro lado, par que será que é exatamente a significação convencional que
é realizada?
O que é primitivo, em princípio, é, como já dissemos, a teleologia das re-
lações humanas. Mas o "senso comum" adota perante essa teleologia o mesmo
realismo ingênuo que perante "dados da percepção". A diferença está apenas
no fato de a percepção desdobrar-se para o "exterior", enquanto a significação
convencional o faz para o "interior", mas há "hipóstase" nos dois casos, e ao re-
alismo ingênuo da metafísica corresponde o realismo ingênuo da psicologia.
Vê-se facilmente que a essência desse realismo é constituída pelo "antro-
pamorfismo social•. Pois é o valor coletivo da linguagem e dos atos que é reali-
zado como fato espiritual. Esse realismo é ingênuo parque a passagem do
ponto de vista da finalidade social para a realidade atual é efetuada sem justifi-
cação alguma e com certa espantaneidade. Aliás, nem há "passagem": é a "in-
veja da Sociedade" que esse realismo expressa: o indivíduo não passa de
realização das exigências sociais, ou, em outras palavras, a categoria de "Reali-
dade" só se abre inicialmente, naturalissimamente, para o aspecto social das
coisas.Pelo emprego do pastulado dá\@g!Ú!i_cação
~ - convencion a psicologia
clássica só prolonga a atitude desse realisffio ingénuo. Essa<rtit e poderia ter
sido conveniente para a ciência. Mas não o foi, e todas as ciências livraram-se
dela. Só a psicologia a manteve. Aliás, liberta-se com imensa dificuldade das
exigências sociais, e o postulado em questão não é o único exemplo da trans-
formação dessas exigências em realidades. Se Freud teve todas as dificuldades
imagináveis para fazer admitir a sexualidade infantil, é precisamente porque
médicos e psicólogos só quiseram ver na criança o que ela deve ser, de acordo
com certas representações coletivas bem conhecidas.
De qualquer maneira, a conservação de uma atitude condenada por todos
os cientistas mostra que o espírito dos psicólogos não é, ainda, bastante "esti-
lizado" para o trabalho verdadeiramente científico. Malebranche dizia: "Nossa
p . , ._ _ _........ ___.._ .,. _ - ~----

•.

------· . .,. .~ -···


---
psicólogos: fãlãffi(lã"ciê~imi!am-na, mas nio gostam dela. __
mente talvez seja cristã, mas nosso_CO!i!ÇãoJ_Qagª9,':.-0.mesmº se dá com os
... - - ·-· •

IV
O pastulado da convencionalidade da significação não tem, aliás, a míni-
ma relação com a experiência. As diferentes "dialéticas", das quais uma palavra

- Capítulo Dois
pode ser portadora, são dadas 1 li
tado das ciências; podem ser pe; nguagem por um lado e, por outro pelo es-
poder constituir esse catálo cat _ogháadas ª qualquer época. Éevidente ~ue para
. . , go nao , nece .d d d
gico, pois tudo e dado por d ssi a e e nenhum estudo psicoló-
ocumentos ob1·eti .d
termo. 0 ra, com o postulad d . vos, no senti o mais simples do
. - . o a convencionalidad d . .fi - .
gia supoe precisamente que e dºal' . e a s1gru caçao, a ps1colo-
ssas i et1cas cu· li
consulta nenhuma aos dad a1m , Ja sta podemos estabelecer sem
com razão, portanto que falos re dente subjetivos, são as únicas existentes. É
, amos e " t 1 d " .
pôde ser sugerida pela experiência sen~~s u ª os_, p01s a crença e1:1 foco não
tão nem pôde ser levant d C ' .. que, por causa da abstraçao, a ques-
uma dialética puramentª .ª·d~ dns~~12!e:nent~z a idéia de qye e_oderia haver
1
uma signi·-fi --= . --~· ~!:1~, q~ l_os atos individuais emprestãssem
c~çao puramente 1nd· ·d al , - ,- :-- :
dãssiCa:esta não càncebe or ivi_ _ u ' e tQtalment~ estranha a _p~icologia
>

-e • - d 'P exemplo, que a 2alavra situada na rede de sioni-


ucaçoes eumcontextoind· ·d al - .~-- - · -----CtlJ -·-
~-·=-- al · . ivi u possa adqumr t.Ima fu~ção sigE_!ficativa ori-
gin ' nem quando situada numa ~ede de sigru
• r • • • • _
. .ficaçoes
- -- - - - -~ela
convencionais
adquire uma sigruficaçao convencional'. · · - - . ---·-
_. Evíclé.õ.têmente, as significaçõe~ convencionais não se situam todas no
mesmo plano. Consti~ue~ ~amadas s~perpostas, que vão de significações ab-
sol~:ª°:e~te _c~nvenc~onais as que o sao menos, e supõem uma crescente ex-
penencia i" . "d~ ' . constituir, para cada termo, o que se poderia
chamar d piramide dos sentidos uma pirâmide invertida, cuja base seria re-
.prese~~~~-pe o se · avra tem para todas as pessoas _p'léttice;
pelo sentido dado graças--a expenêricia ae umurucõmclivídúo. ~nti:e º~vértice
(~JJ~s~ situam-se os seriti0o~g~~I:1fx~ra !.1.!º determinacÍo; experiência . .
de um único indivíduo, não pertencem a !odas as pessoas. Por exemplo, "dia~
pé~'-1,i~fica para t~ ~-:' 1
é:g~~'.ã!J:i2..para_asa~~~esêrlte ';-s~6·pafa~ ~ ns;
e "partes sexuaiscló marido", só para a se~º! ª çujo s2 , ~u.E.!!1àlisou :~
·r,aumdeútung. ·--·· ·
Somos forçados a interpretar na vida prática. Sem isso a adaptação recí-
proca que as relações humanas supõem é impossível. Todas as significações,
exceto a propriamente individual, nos são dadas pela experiência coletiva. Sa-
bemos que o chapéu é um agasalho para a cabeça e que podemos presentear
alguém com ele: há induções que nos fornecem os materiais das nossas inter-
pretações cotidianas. Mas essas interpretações só excepcionalmente vão além
das significações convencionais, pois assentam-s~ em in~uções es~ontân~as
que só nos revelam o que pode acontecer de maneira marufesta na vida social.
A "psicologia científica" não vai além. Pára nas induções espontâneas que nos

CRÍTICA DOS FUNDNAENTOS DA PSICOLOGIA {$)~


·<:-:-~·-·
V
' , ti\
dão as significações convencionais e não procura outra coisa: eis por que , -
. áli. e tao
pouco profu nda. A ps1can se, ao contrário, não se satisfaz com isso: é .
sarnente a significação individual que sua interpretação procura. Seu mft:l-
pode parecer fantasista e arbitrário: na realidade, só prolonga essas interpreta~
ções que praticamos todos os dias, mas em vez de fechar-se dentro dos limites
traçados pela teleologia das relações humanas e pelas induções espontâneas
qu_e só p_odem fornecer materiais para encontrar §ignificv5ão conveo.cioaj 0
psicanalista organiza uma investigação para obter os materiais necessários
para a constituição da ~i~ação individual O método psicanalítico não é,
portanto, senão uma técnica que permite aprofundar as significações de acor-
do com as exigências da psicologia concreta. Éa partir desse ponto de vista que
devem ser explicados os diversos procedimentos que a constituem.

V
Por ser a significação individual dos termos do relato o que nos interessa,
precisamos abordar o sonho como um texto a ser decifrado. Na medida em que
é significação, a estrutura da significação íntima é a mesma que a da significa-
ção convencional e, quando queremos encontrar a primeira, não precisamos
proceder de maneira diferente daquela que utilizamos quando procuramos es-
tabelecer uma significação qualquer. Precisamos de elementos e pontos de re-
ferência; enfim, de um contexto.j e existe;!l signi.(icé!Ç_õ_es fntirnas tpor_gue o
indivídl!<?_possui uma experiçn_cia se~ ta. Portanto1 ~_çisarnos penetrnLQe~
_!Xperiênciãseêr~~~ ~ e_?etrarem~s 1.::!ª, evide~~~ent~, 4me,dida qye o ~;
j~nQSfornece os materiais 9,l;!_e CQl_!_Sti~ Daí a necessidade do procedi-
mento fundamental dÕmétodo de Freud: as associações livres.
O termo "associação" pode criar um mal-entendido, ou melhor, uma ilu-
são. A ilusão existe em Freud, e isso foi explorado pelos que, imbuídos do "mo-
bilismo moderno", sobressaltam-se à simples vista da palavra "associação". Na
realidade, há bastante mesquinhez nessa maneira de insistir na superioridade
do "fluído" sobre o "sólido", e seria mais apropriado, nesse momento, abordar
problemas mais importantes, sobretudo porque só há duas versões da mesma
mitologia.
.1. De todo modo, nas "associações livres", não há nem associação nem liber-
\ · dade.
A psicologia tomou por hábito falar de associação em todo lugar onde há
uma intenção significativa conscientemente admitida e em que o sujeito não
se inspira expressamente em alguma dialética. Estou escrevendo, agora; estou

IJ Copítulo Dois
...
consciente de uma intenção significativa e sou, de alguma forma, levado por
uma dialética que é a das minhas idéias sobre a questão que estou tratando.
Mas suponhamos que eu pare de repente e renuncie ao mesmo tempo a minha
intenção significativa e a minha dialética. Minha "consciência" não se esvazia-
rá por isso, idéias suceder-se-ão, terei talvez uma grande quantidade de idéias,
mas não tenho mais nada "a dizer" e minhas idéias não são mais organizadas
por uma dessas leis que dão habitualmente "estrutura" aos nossos pensamen-
tos, quer dizer que não tenho mais "intenção significativa", e a seqüência dos
meus pensamentos não está mais em conformidade com uma das dialéticas
"clássicas", isto é, convencionais. Dir-se-á, então, que tenho associações, e ima-
gina-se que as idéias se encadeiam conforme afinidades, aliás, puramente me-
cânicas. Fica bem claro, nesse exemplo, que só se fala de associação porque não
foi possível reconhecer nenhuma das dialéticas clássicas, em virtude do postu-
lado da convencionalidade da significação. Se ignorássemos a dialética conven-
cional, o que costuro 0s"'"€ens-ià ar uma seqüência racional parecer-nos-ia,
da mesma maneira, " oeira mental como, por exemplo, quando ignorantes
chamam de "algaravia" escn os iceis de filósofos) e se, conseqüentemente, fa-
lamos de associação e de poeira mental, talvez seja porque ignoramos essa dia-
lética que age quando renunciamos a toda dialética intencional, essa é uma
idéia estranha à psicologia clássica.
As "experiências de associação" mostram que as "séries associativas" não
se dão à deriva, mas que o sujeito gira sempre em redor de certos temas ínti-
mos.
"É totalmente inexato pretender", diz Freud (p. 523, cf. p. 521, § 3, à p.
524, § 2), "que deixamos as nossas representações descontrolar-se quando, por
ocasião do trabalho de interpretação, meditamos e deixamos aparecer em nós
as imagens involuntárias. Podemos mostrar que, naquelas ocasiões, renuncia-
mos apenas às representações de objetivo que conhecemos e que, uma vez co-
nhecidas essas representações, outras, desconhecidas ou, de acordo com
expressão menos exata, inconscientes, manifestam sua força e determinam o
curso das imagens involuntárias. influência p_essoal sobre nossa-vida psí-
quica não permite imaginar um pensamento d~pJQvido de objetivo; •desco-
nneço o estado de abalo psíquico que poderi_!J~ermiti:lo."
Vê-se que Freud vai optar pela hipótese contrária à da psicologia clássica:
supõe que mesmo que tenhamos renunciado a toda intenção significativa e a
toda dialética convencional, nosso pensamento continuará sendo regido por
uma dialética e a traduzir uma intenção significativa, mas uma dialética e uma

CRÍTICA DOS FUNDM\ENTOS DA PSICOLOGIA ($


intenção originais, que deixaram de ser convencionais para ser íntimas. Portan-
to, o pensamento continua tendo significação embora, convencionalmente
não queira ter nenhuma. Ele tem uma estrutura, embora pareça ter renunciad~
a toda estrutura e, por isso mesmo, é tão rico de ensinamentos quanto quando
funciona conforme as dialéticas convencionais.
Não há nenhuma necessidade de falar de associação e nem é lógico falar
dela. Todavia, Freud o faz tanto quanto os psicólogos tradicionais. No que diz
respeito aos psicólogos, conhece-se, atualmente, o procedimento que produz
sua ilusão. Tornam-se os termos do relato e projeta-se seu conteúdo na "vida
interior" para ali realizá-lo e fazer uma idéia dele. Inverte-se, a seguir, a ordem
dos acontecimentos e imagina-se que os fatos seguiram um caminho inverso
ao da análise: a palavra expressa a idéia, e se as palavras encadearam-se, é por-
que as idéias de que são os veículos se tinham "associado" primeiro. Quando
Freud fala de associação é em virtude desse procedimento e porque, conforme
às exigências da psicologia clássica, gostaria de traduzir, conforme o texto que
acabamos de citar o mostra claramente, em linguagem associacionista, a supo-
sição, ou melhor, o fato fundamental no qual seu método se apóia.
Ora, ao optar pelo procedimento associacionista, Freud abandona a inspi-
ração do seu próprio método. Não pode interessar-se senão pelas significações
das fórmulas verbais que constituem o relato. Não deve, portanto, deixar o pla-
no teleológico para cair no realismo; deve limitar-se à interpretação comum da
linguagem, não deve ultrapassar o sentido para penetrar na vida interior.
Quando o psicanalista pede ao sujeito para dizer tudo, o que lhe vem à ca-
beça, sem crítica e sem reticência, está pedindo que ele abandone todas as mon-
tagens convencionais, livre-se de toda técnica e toda arte, para deixar-se
inspirar pela sua dialética secreta.
No que se refere ao sonho, ele representa precisamente uma criação dessa
dialética pessoal; eis por que o sonho era um mistério para a psicologia clássica
que queria abordá-lo com o postulado da convencionalidade da significação.
Sendo assim, a análise do sonho só pode utilizar estados com origem seme-
lhante, isto é, em que reencontramos a dialética pessoal. O relato que parte dos
acontecimentos do sonho deve mostrar-nos a maneira pela qual eles se inserem
na experiência do indivíduo.
Um ensinamento essencial desprende-se dessa comparação da introspec-
ção com o método psicanalítico.

e Capítulo Dois
J_ (fp;kJ&_
Há duas maneiras de utilizar "relato" o sujeito. Podemos desarticulá-lo
pela abs~raç~o e eeio f~rmalismo_para projetá-lo de uma maneira ou de outra
na vida mtenor. E a atitude da psicologia clássica.
Também podemos utilizar os dados psicológicos simplesmente como o
1 contexto de um sentido que procuramos: reconhece-se aqui a atitude da psica-
____. nálise.
O ,,, J~ R~sulta_disso ~ma cons~~üência ~u~ito importante para a ati:ude do
-~ prio ~sicanalista: sao-lhe pr01bidas as hipotes_es d.e e~ tura: Ele nao tem direi-
to, considerando o verdadeiro caráter da sua atitude, de procurar mecanismos,
pois qualquer que seja o paradoxo, nesse momento, a psicanálise orienta-nos,
atualmente, em direção a uma psicologia sem vida interior. Mas veremos adian-
te, como pudemos ver a respeito da representação que faz do mecanismo do
relato, que Freud não percebeu essa conseqüência da sua atitude.

CRÍTICA DOS FUNOM\ENTOS DA PSICOlOOA @


... . . . . . . . D
A·d·üa·iida·de ·do ·abstrafu·e·do·conaefu·na
psicanálise eoproblema da psicologia·concreta

Não sobra dúvida, portanto, que a psicanálise apresenta uma dualidade


esscnctal. Pclos problemas que levanta e pela maneira como orienta suas inves-
t 1gações, anuncia a psicologia concreta, mas a desmente a seguir pelo caráter
abstrato das noções que utthza, ou que ena, e pelos esquemas de que se serve.
Podt!n10s drz.er, scn\ pa1adoxo, que Freud é tão espantosamente abstrato em J~
suas teonas con10 é concreto e1n suas descobertas. Eis o resultado das análises
an tenorcs.
Ora, sena s1nlples demais, já o d1sscmo::,, explicar o contraste pela falta de
clareza ou pela falta de conscquênnas do pcnsan1t.:nto de Freud. Os erros desse
tipo corrt~-..pond~n1 sempre a nc:ct:s:,1J,klt::, h1stóncas e ul trapassam o poder da
lógica 1nchvtdual. Mas. por ser assim, não pode haver solução de continuidade
verdadei ra entre os erros e a verdade cm s1. após ter condenado a atitude abs-
uata. por nt~ts~idadt's metodológicas, a crítica deve mostrar, para que não
subsista rrusténo algum, que a atitude de Freud representa um etapa necessária
0d evolução que {1t!)(.'n1boca na ev1dênCLa da atitude concreta.
Podemos ser .icusado5 de fazer obra muito fácil . Não damos mostra, de
fato, de percelx-r que o própno fato da dualidade em foco amsca comprometer
o tmprt.e:.J.111e1. co todo. pdo menos enquanto apresen tamos, não um.a
psteologto conc rc.:ta que teríamos irn.iginddo a pnvn , mas a que a ps1canáhse
nos traz De fruo, a n\Jntua como inre1prrt.11nu-, a dualidade en1 foco, talvez.
não Stfcl a unH. a po:>){vd Pois t ssa duahdade pode decorrer do foro d~ mu:rprc
caimos a ps.ican..ah t Je um.a rnanc:tni que só é exata até cc:no hrrute, então, a
dualidade sena rclattvJ a un'4t mtt·tt,rl t.1,.il que, rúo sendo váltda para toda a
p dtuihx, cinde a nt..-ce:,sanJrru:ntê ~m duas parte), 4' s,:gundtt medmdo prt -
osan1ente a u1cxaudJo dl u:. q,ç,11J que h:n,o:, da J>iK.Lu,,11~· Os int érpretes
das g1and1."S doutnrw~ t:.1u::i6ft .:i por exrmplo, njo ad mittran\, munas Vi: U--S .
a dualidade deste tipo, só por causa de idéias preconcebidas e compreensões
unilaterais? Por outro lado, não é verdade que fomos obrigado, para evidenciar
o que chamamos de inspiração concreta da psicanálise, a deformar continua-
mente as fórmulas do próprio Freud? Ora, essas deformações são possíveis e
podem parecer legítimas até certo limite, mas, cedo ou tarde, o caráter artificial
de um método semelhante surge necessariamente. Deve então aparecer a ilu-
são da dualidade.
Nessas condições, não basta mostrar a necessidade histórica do que cha-
mamos os erros de Freud. Pois essa demonstração pode ser, mais uma vez, ape-
r-. nas uma paráfrase da nossa ilusão. É preciso ir mais longe: é preciso mostrar, 7

_, sem tocar, desta vez, nas próprias fórmulas de Freud, que, apesar da sua forma téc- j
nica com pendência total à abstração, as especulações freudianas implicam
uma atitude que precisa ser reconhecida e desembaraçada em sua pureza, para
ser a da psicologia concreta.
Essa demonstração é possível. Mas sua possibilidade só faz aumentar o
perigo resultante dessa dualidade que tivemos de reconhecer no interior da psi-
canálise. Pois se, por um lado, as especulações teóricas de Freud representam
apenas uma atitude concreta, mas disfarçada numa forma técnica abstrata, e
se, por outro lado, esse disfarce é necessário, não é mais a exatidão da nossa in-
terpretação que deve ser revista, mas a capacidade da concepção que temos da
psicologia concreta. Pode-se dizer que a psicologia concreta, tal como preten-
demos vê-la na base da psicanálise, é capaz de revelar-nos coisas que ficaram
inacessíveis à psicologia clássica, mas essa, em compensação, desforra-se quan-
do se trata da elaboração teórica, de tal forma que a pretensa volta à abstração
pode ser apenas ~ eJ.ação da impotência t~9ricª ) B. nossa psicologia concreta. Se
assim é, duas opções oferecem-se: a primeira é que temos adivinhado correta-
mente a essência da psicologia concreta, mas, então, a dualidade constatada
nos mostra que essa psicologia precisa recorrer ao aparelho teórico da psicolo-
gia clássica e esta, longe de ser condenada, recebe por isso uma nova vitalidade
- o que retira todo o valor à nossa tese fundamental, na medida em que a opo-
sição entre as duas formas da psicologia deixa de ser irredutível - ; a segunda
é que, se fazemos questão da morte da psicologia clássica, é a nossa concepção
da psicologia concreta que perde interesse, pois mostra-se incapaz de compre-
ender o drama que pretende estudar. Além do mais, se a psicanálise anuncia re-
almente essa psicologia concreta que temos definido, mostra-se, mesmo à luz
da nossa interpretação, bastante desprovida de interesse, pois apresenta-se
como mais uma tentativa malograda. Enfim, de qualquer lado que olhamos,

.~~ ,.
1~ Capítulo Gnco
essa dualidade, cuja constatação podia parecer, inicialmente, uma vitória do
nosso método, só representa o fracasso.
Esses argumentos só valem obviamente se a dualidade em foco for ver-
' /
<ladeiramente absoluta, isto é, se não formos capazes de mostrar a..,e&cologia
concreta, tç1.l como a definimos atuando de verdade não só quando se trata da
definição do fato e da concepção ' do método, mas da' própria compreensão do
drama humano. Mas se pudermos mostrar que, longe de sofrer uma impotên-
cia teórica, ela já começou a elaborar suas _!loções fundamentais, esses argu-
mentos caem por terra. / / {) ,,
r lti(Ol 'hlA. C{).AJC~(1 I. ( /1 tft r/ o::.' co,
1L l C ,~ - hf)/{ 4'JO'~
O contraste entre a concepção concreta do fato e do método, por um la-
do, e a atitude abstrata das explicações, por outro lado, explicam-se em Freud,
primeiramente, pela maneira como ele concebe as relações entre a psicologia e
a psicanálise. Freud parte da idéia de que a psicanálise é um procedimento par-
ticular que, ao mesmo tempo em que permite encontrar resultados novos, aos
quais os métodos da psicologia clássica nunca teriam podido levar, não chega
à "psicologia" dos fatos em questão. Sua idéia fundamental é que a psicologia
e a psicanálise estão em dois planos diferentes: a atitude psicanalítica não é a
busca da própria psicologia dos fatos e, por outro lado, a busca da explicação
psicológica implica o abandono da atitude propriamente psicanalítica.
Essa atitude traduz-se muito bem na Traumdeutung: após ter descrito os
fatos que a psicanálise permite descobrir, Freud procura sua explicação numa
seção à parte, na seção intitulada "Psicologia dos processos do sonho". Tratava-
se, até aí, de interpretar e analisar o sonho, trata-se, agora, de explicá-lo. "Até
agora, ocupamo-nos essencialmente de procurar o sentido oculto dos sonhos,
que caminho permite encontrá-lo, que meios o trabalho do sonho usa para es-
condê-lo. Eram as exigências da interpretação dos sonhos que, até agora, esta-
vam no centro do nosso interesse" (4ª ed. alemã, p. 404). 73 Trata-se agora em

73 Esta é a primeira citação da Traumdeutung que seª ref~r: à ediç~o alem~. Ela nos indica que_Poli~zer
utilizou além da tradução francesa de Meyerson, a 4 ed1çao alema, ou se1a, a de 1914. Como e sabido,
outras ~uatro edições sucederam-s~: a 5ª (~918), 6ª (1921), a 7ª (1922) a S3 (1929). Consid~ro rel:-
vante esta informação pois Freud mtrodu21u paragrafas e notas de rodape ao longo das sucessivas edi-
ções de sua obra publicada com a data de 1900._Sobretudo em 1914 e 1919 :n_contramos acréscimos
significativos no texto. Esta citação feita por Politzer, encontra-se na Nova Echçao, PUF, 1993, p. 434.
(NRT)

CRÍTICA DOS fUNO~ENTOS DA PSICOLOGIA 1~5


enveredar "por um novo caminho": compreender o sonho enquanto fenôm _
no psicológico. e
Para Freud, explicar um fato psicológico significa encaixá-lo em leis conheci-
das da psicologia. Diz-nos, a respeito da regressão: "Não temos explicado, como
se poderia pensar, o caráter do sonho, não o encaixamos em leis conhecidas da
psicologia" (p. 541). Conseqüentemente, a parte teórica do empreendimento
de Freud aparece imediatamente como uma tentativa de aproximar os fatos
psicanalíticos da psicologia clássica e o que nos pareceu ser uma mudança de
orientação absolutamente radical apresenta-se da maneira mais natural: pelo
simples fato de se procurar a explicação, estamos levados de volta à psicologia
clássica.
Nessas condições, a originalidade da psicanálise não poderá mais ser tradu-
zida no plano da explicação, senão pelo fato de não haver, -n a psicologia clássica,
nada pronto para receber os fatos novos descobertos por.Freud. "Parece-nos im-
possível", diz ele, "explicar os sonho enquanto fenômeno psicológico, p~is ex-
plicar significa trazer para o que já é conhecido; ora, at~ o_presente mom~nto,
nenhuma noção psicológica existe à qual s~ possa ligàr ~s elementos a que nos.sa
análise chegou" (p. 508) ..Jssa insuficiência não éconstjJ_l}_tiva, !1«3:9 reveJa.uma in-
capacidade original e definitiva, mas apenas umc3: t;;;;erfeição momen1.âneçz à qu!31
se pode remedia!. Mas qualquer que seja a extensão e a novidade do trabalho de
alargamento que se impõe, este deixará intactos os fundamentos da psicologia
clássica. Portanto, tudo o que resulta da novidade das descobertas psicanalíticas
é a obrigação de "levantar novas hipóteses sobre a estrutura do aparelho psíqui-
co e o jogo das suas forças".
Basta a seguir lançar um olhar sobre as "implicações" que Freud desenvol-
ve e as hipóteses que levanta para ver que se trata para ele, exclusivamente, de
fazer uma construção conforme o ideal científico dos psicólogos do final do sé-
culo XIX.
Esse ideal científico nos é bem conhecido: devaneios fisiológicos, energé-
:icos e quantitativos constituem seus principais traços. O que se procura é uma
n ecânica psíquica que se assemelhe aos esquemas utilizados pela física nas
;u as explicações, tanto é que, após o ~ vimento energetista na física, os psicó-
Jgos abandonaram os model~s mecâni~os par~ o~entar-se mais para os esqu~-
nas energetistas. ~~;i...expnme esse ideal class1co, algumas vezes, da mais
1gênua maneir 'libido , diz ele em Psicologia Coletiva e Análise do Eu (tradu-
~o francesa 1 192~ _ , "é um term? tomado da t~qrj.a da afetividac!_e. Desig-
ªI?s>s com ele a ~nergia cOOSiderada como uma grandeza quantitativa (não

6 Capítulo Gnco
,mensurável, ainda) das tendências que se incorporam ao que resumimos sob o
termo amor. " E os desenvolvimentos do nosso capítulo III mostram suficien-
temente com que engenhosidade Freud tenta realizar o ideal em questão.
Fica claro que Freud nunca duvidou do edifício central da psicologia clás-
sica. Os métodos desta podem ser imperfeitos, os psicólogos clássicos podem
ter se mostrado cheios de preconceitos e limitados sobre certas questões, mas
j tu~o is~o ~ó leva a examinar novamente as teses e não os fundamentos: a psicoi..,
/ logia classica deve, certamente, ser submetida a um trabalho, mas apenas a um j
trabalho de revisão e de ampliação.
Ora, uma vez que se tome essa atitude, é impossível interrompê-la e nun-
ca em qualquer momento poderá surgir a incompatibilidade dos fatos novos
com a psicologia antiga, pois será sempre possível levar mais adiante a articu-
lação e a ampliação das suas hipóteses e das suas noções. Eis por que Freud só
pode fazer o trabalho especulativo anunciado, sem nunca poder perceber que
está refazendo, em sentido inverso, o caminho das suas próprias descobertas.
Se ao executar esse trabalho puramente formal, que é apenas o desenvolvimen-
to mecânico de alguns esquemas, ele pode achar que explicou realmente, é que
estamos "fixados" no ideal científico da psicologia clássica.
O empreendimento de Freud, considerado em sua fase teórica, represen-
ta, portanto, o antípoda do nosso. Para nós, tra! ava-s~ de desenvolver a 2sico-
logia contida nos fatos e método p; canalíticos, enquanto que, para Freud, o
problema é inverso: encontrar a psicologia cl~ da gu~ e P..9.del!l gedup r os
fatos psicanalíticos, e, por ela não existir, é preciso inventar
.
uma.
. .
De princípio, fica evidente que a atitude de Freud é a primeira que se impõe
e o faz mesmo da maneira mais natural. Com ajuda da psicanálise, descobre-se
um certo número de fatos: eles são imediatamente considerados como fatos da
vida interior. Essa idéia é tão n~tural que existem textos em que Freud considera
a própria associação livre como forma da reflexão ou da introspeção. Claro que,
nessas condições, tudo o que a psicanálise nos traz são informações sobre essa
realidade interior que a psicologia clássica pretende estudar: todo progresso nas
descobertas psicanalíticas passam a ser, então, um motivo para levar mais adi-
ante o desenvolvimento das nossas idéias sobre "o aparelho psíquico".
Tendo em vista essa "fixação" ao ideal da psicologia clássica, geral em sua
época, Freud é necessariamente levado a tomar a atitude que acabamos de des-
crever. A única coisa que poderia tê-lo impedido era desligar-se desse ideal. Ora,
isso foi impossível, sendo que, pela sua própria posição, ele impõe à psicologia

CRÍTICA DOS FUNDNAENTOS DA PSICOLOGIA '161


-(,{
clássica um problema puramente formal que não apenas esta, mas qualquer
conjunto teórico, verdadeiro ou falso, pode facilmente resolver.
Com efeito, Freud chega à psicologia partindo da psicanálise. Ora, nesse
momento suas descobertas 1· á foram feitas e sua atitude não é mais criadora
'
mas puramente desinteressada: ele não espera da psicologia a realização de'
uma obra verdadeiramente fecunda e produtiva, apenas a inserção numa rede
de noções e de hipóteses, descobertas já feitas. De toda forma, Freud não pode
constatar a esterilidade fundamental da psicologia, ao levantar um problema
cuja solução só implica para ela uma "dilatação".
A atitude de Freud era inevitável, por dois motivos. Primeiro porque, ten-
do em vista as idéias fundamentais da época, as descobertas psicanalíticas apa-
recem imediatamente como fatos psicológicos no sentido clássico da palavra;
segundo porque, abordando a psicologia depois que a obra verdadeiramente
criadora terminou, a impotência da psicologia não pode ser vista. Em outros
termos, um psicanalista puro cuja ocupação essencial é a prática do método
psicanalítico só podia chegar a essa contradição que assinalamos na obra de
Freud.
Outro é o problema para quem vai, não da psicanálise à psicologia, mas
da psicologia à psicanálise. Pois, sendo o foco dirigido sobre a própria psicolo-
gia, não a abordamos J..epois que a obra de criação está concluída, a fim de con-
tentar-se com essa operação enganosa que consiste em elaborar hipóteses a
posteriori para explicar fatos descobertos sem que essas tenham intervindo, mas
é da psicologia em si que se espera o poder e a fecundidade. A história da psico-
logia e suas ocupações atuais estão aí para mostrar que nunca a concepção clás-
sica do fato e do método teria permitido que os problemas fossem postos dessa
maneira que levou os psicanalistas a descobertas onde os métodos clássicos ti-
nham fracassado.
É evidente, nessas condições, que as descobertas da psicanálise supõem
uma concepção da psicologia que não pode coincidir com a psicologia clássica
e que levantam um novo problema: saber, não por meio de algumas especula-
ções complementares, não como se pode reduzir os fatos novos aos esquemas
antigos, mas qual é precisamente essa psicologia nova que fez com que as des-
cobertas fossem possíveis.
Essa é a atitude que adotamos nesta obra. Mas essa atitude supõe a de
Freud e só podia vir depois dela. Pois, em primeiro lugar, foram os psicanalistas
que fizeram essas descobertas cuja análise desemboca na psicologia concreta e
deviam começar por dar, eles mesmos, uma explicação. Ora, esta não podia

(68 Capitulo Cinco


concluir, pelas razões que acabamos de ver, à dualidade entre a inspiração fun-
damental e o aparelho teórico.
Por outro lado, essa dualidade era necessária para que um empreendimen-
to como o nosso pudesse nascer. Diante do espetáculo da riqueza das descober-
tas psican~líticas e da pobreza da psicologia clássica, as especulações~
da psteanáhse oferecem um paradoxo que chama imperiosamente
as
ªO
II
Diante da maneira como o problema da explicação é encarado por Freud,
a originalidade da psicanálise só pode ser revelada, já o dissemos há pouco, pela
necessidade de ampliar as noções da psicologia clássica e introduzir nela hipó-
teses novas, porém conforme aos procedimentos fundamentais desta.
Como os trabalhos nacionais precisam moldar-se nos fatos novos trazi-
dos pela psicanálise, seria estranho que, apesar do seu semblante abstrato, não
guardassem algo dessa inspiração concreta que faz nascer as descobertas.
Até aqui, o inconsciente apareceu-nos como o cúmulo da abstração. Isso
é perfeitamente verdadeiro: deve suas origens aos procedimentos que qualifi-
camos de abstratos; são eles que o geram e sem ele não pode ter sentido algum.
Ora, na b~<:_ ~e qualqu~r teoria existe, §ÜU?da mais profundamente que .9s
procedimentos que lhe dão sua forma técnica, uma atitude geral pela qual-a te-
oria em questão pode extrapolar sua própria· significação dogmática. Ess~ é,
precisamente, o caso da hipótese do inconsdênte: quajquer que_sejai_inEo~-
patibilidade do seu aspecto técnico com a psicologia concreta, sua aceitaçªo
implica uma atitude totalmente contrária ao ideal da psicologia clássica.
O que caracteriza essencialmente o inconsciente, em geral e independen-
temente da teoria freudiana, é que ele se refere a fatos psicológicos cujo sujeito
não tem conhecimento direto, ou que não lhe são fornecidos numa intuição
.: · imediata. Conseqüentemente, a introdução do inconsciente significa o fim da
hegemonia da introspecção pois, precisamente, os fatos inconscientes, embora
sendo psicológicos, não são do domínio da consciência e, por isso mesmo, es-
capam a qualquer introspecção· ami ~ se, assim, todo um conjunto de fatos
psicológicos que não são dado? "para si:, e para a constatação e o estudo dos
quais é preciso recorrer a outros étodós.
O que há de notável nessa conseqüência da introdução do inconsciente
não é o fato de sermos obrigados a renunciar à introspecção. Os psicólogos clás-
sicos não têm dificuldades em fazê-lo e abandonam freqüentemente a intros-
pecção a favor de métodos "objetivos", fisiológicos, biológicos e outros. Mas é

CRÍTICA DOS FUNDA'v\ENTOS DA PSICOLOGIA él62


,-.:,:y•
preciso observar que nesses casos, e com o :e.stemu~o _dos ~sic_ólogo~ a quem
estamos nos referindo abandona-se o domuuo do propno psiquico. Pois, quan-
do se abandona a int~ospecção por um qualquer dos métodos "o~jetivos", é
sempre em virtude de uma definição ou de uma hipótese qu~ ~er~te dar um
lugar, ou todo O lugar em psicologia, às excitações e reações fisiologicas~ ou ao
aspecto puramente motor dos comportamentos. ~-ªº- §e-ªt,gin~o~a--:c1Jntros_-
P.~~ção..J"2ara estudar, por m ~i_p de métodos obje_tivos, os fat~s p~tcologtcos :m st,
mas apenas fatos objetivos que foi possível relacionar aos pnmeiros. Isso e ta!).-
to mais verdadeiro que, toda vez que se trata do "psíquico" em si, estamos obri-
gados, quer sim, quer não, sob um ou outro pretexto, voltar à introspeção.
r" A hipótese do inconsciente, pelo contrário, significa que a introspecção tor- )
nou-se insuficiente para a exploração do próprio psíquico. Pois, para todos os que ad- t 1.
,,- mitiram o inconsciente psicológico, este significa um conjunto de fatos que são
tão real e tão atualmente psicológicos como os fatos conscientes, "com a única
diferença", diz Freud, "que lhes falta a consciência". Não se trata, então, de re- .__,1
nunciar à introspeção porque se quer dar a fatos objetivos uma significação psi-
cológica, mas porque é o próprio psíquico que extrapola o "para si".
, c1samen essa forma que o inconsciente anuncia, em certo senti-
do, psicologia concret . Primeiramente, uma psicologia que utiliza a noção de
JnC01!S .ent~ ~ n~ à,Ain.nação integral da natureza privilegiada do
conhecimento psicológico. Não se pod~@ ~fuma~_que seja única na sura
~espécie por captar imediatamente seu qbjet9,_sendo que é precisamente nessa
"captação" que reside o ser próprio do fato psicológico, pois há fatos que, em-
bora psicológicos, estão fora do "para si". Portanto, só podem ser conhecidos de
forma mediata, seja graças à intervenção de um observador exterior, seja graças
a procedimentos de raciocínio análogos aos utilizados pelas outras ciências.
Embora o inconsciente pareça, em certo sentido, mais misterioso que o
consciente, em outro sentido, representa o primeiro passo na destruição do
mistério psicológico. Pois, pelo menos para certos fenômenos psíquicos, o su-
jeito do conhecimento não está numa situação mais privilegiada que quando
se encontra diante de qualquer objeto. Por isso os psicólogos adeptos da noção
de inconsciente perdem, necessariamente, o hábito de considerar todos os fa-
tos psicológicos como dados simples de uma percepção sui generis, pois os fatos
inconscientes devem ser construídos ou, pelo menos, reconstruídos.
Por esse caminho, chega-se, no interior da psicologia clássica, a uma dua-
lidade que constitui um .fQIUÊ~ialét~co muito poderoso. Após a introdução

:jfã Capítulo Gnco


do inconsciente, não se pode mais definir o fato psicológico pelo "para si": a de-
finição clássica do fato psicológico é reexaminada precisamente no próprio plano
do psíquico. Encontramo-nos, então, diante de duas espécies de "psíquico": um,
cujo conhecimento é uma "percepção"; outro, que não é mais que uma cons-
trução; um, que continuamos a definir pelo "para si", outro, que não pode ser
definido dessa maneira. Ora, é evidente que os fatos psicológicos, sejam eles
conscientes ou inconscientes, participam da mesma essência, e essa essência é
mais profunda que a consciência, sendo que os fatos conscientes podem, sem
perder sua essência psicológica, tornar-se inconscientes. Continuando as pes-
quisas nessa direção, somos levados, necessariamente, a definir os fatos psico-
lógicos independentemente do "para si", isto é, independentemente~
percepção sui generi{, e o problema que se põe então é o próprio p~ ma da psi-
,"' cologia concreta: deft·nir o psíquico enquanto psíquico, isto é, evitando toda con usão --)
__,, com a ft'siologra, a biologia ou qualquer outra ciência da natureza ou do homem en- /(
quanto natureza, fazendo abstração da hipótese de que o psíquico é dado numa per-
cepção sui generis. Em outros termos, admitir, simultaneamente, um psíquico J
dado e um construído, é impossível, e a idéia da existência de um psíquico
construído convida à generalização; somos então levados a procurar a origem
do psíquico em outro lugar que não nessa originalidade que podemos qualificar
de química e que está na base da definição clássica. Enfim, a ati~ude fundamen f3l
.\ _/ que está na base da hipótese do inconsciente contém a negação do realismo psicológico,
~ e odesenvolvimento conseqüente àessa hipótese teric!!vado JprocÜra de uma definição
do fato psicológico que exclui o realismo.
J>
-
Só que a psicologia clássica nunca chegou ao conhecimento do verdadeiro
sentido da hipótese do inconsciente nem ao desenvolvimento sistemático das
suas conseqüências, e, após ter abordado a dualidade em questão, pura e sim-
plesmente a manteve. Tendo em vista o caráter fundamentalmen~e abstrato
da psicologia clássica, o· realismo pôde intervir para frear o movimento que te-
ria chegado à sua destruição.
Após ter posto o inconsciente ao lado do consciente, inverteu-se a dificul-
dade, fazendo da consciência uma "qualidade" capaz de acrescentar-se ou não
ao "psíquico", e então a dualidade fica resolvida, definindo o fato psicológico,
conforme o realismo, simplesmente pelo psicológico "puro", mas cuja origina-
lidade permanece, claro, "química".

CRITICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA 'l7:'t


...:-;,}
Freud é levado, pelas razões que expusemos acima, 74 a dar ao inconsciente
um papel e um lugar muito mais importantes do que tinham para os psicól0-
gos clássicos. Conseqüentemente, encontramos em Freud, por um lado, um
desenvolvimento mais rigoroso das implicações puramente técnicas da hipóte-
se e, por outro lado, uma aproximação maior da psicologia concreta, no mesmo
sentido que indicamos há pouco.
A teoria freudiana traz, do ponto de vista técnico, duas afirmações:
1) a consciência é só um órgão superior de percepção;
2) o inconsciente é transcendente relativamente à consciência.
Uma parte da primeira afirmação, pelo menos, está implicada na própria
noção de inconsciente. De fato, só o fato de int[oquzir o inconsciente implic~
a ampliação da definição do fato psicológico, e este será _definido,~em virtude
do realismo, como sendo o psíquico em gera/75 cuja existência não req~ r, nece~-~
sariamente, a consciência. A aquisição do caráter consciente para o "psíquico"
pode, então, ser facilmente assemelhado a uma percepção porque, sendo o ser
do psíquico independente da consciência, o esquema da percepção é aplicável.
Porém, a afirmação de que a consciência é unicamente um órgão de percepção
implica já a psicanálise. Pois, na psicologia clássica, o inconsciente não desem-
penha um papel suficientemente importante para que não possamos afirmar
que, ao lado dos fatos para os quais a consciência não passa de um órgão de per-
cepção, existem outros dos quais ela constitui o próprio ser. Mas a atitude de
Freud é muito mais radical. De fato, a psicanálise foi obrigada a situar no in-
consciente todos os processos importantes e verdadeiramente determinantes,
de tal forma que, por exemplo, do sonho - se explicado em todos os seus de-
talhes por atividades pré-conscientes ou inconscientes - só resta para a cons-
ciência a percepção pura e simples do psíquico.
A segunda afirmação é baseada em considerações psicanalíticas. Das aná-
lises de Freud resulta que o psíquico só é admitido à percepção da consciência
sob certas condições. Çons~g_yen_temente, ~endo a p~x.c~pção do ,psíquico n,e-
cessariamente relativa a essas condições, o inconsciente é em si mesmo incog-
- -
nosavel. 76 _

1
Capítulo N , item VI .
-,.;i- 5
Cf. textos citados na p. 109.
76
Cf. para os textos acima, capítulo III, § 2 início, pp. 105-106; § 115 e, em geral, a última seção da
Traumdeutung.

.... Í12 Capítulo Gnco


Essas duas afirmações fundamentais da teoria freudiana do inconsciente
acentuam o progresso da psicologia abstrata em direção a uma psicologia con-
creta e, por isso mesmo, essa atitude que encontramos na base da hipótese do
inconsciente encontra-se quase inteiramente posta em evidência.
Não cabe mais dizer que, ao lado dos fenômenos conscientes, deve-se
considerar, também, os fenômenos inconscientes. As análises de Freud pro-
vam que a consciência não pode ensinar nada de verdadeiramente interessan-
te, pois tudo o que importa conhecer para a explicação pertence ou ao pré-
consciente ou ao inconsciente. Longe de poder deter-se na consciência, o psi-
canalista deve começar por extrapolá-la: se quisermos compreender o sonho,
é preciso abandonar o conteúdo manifesto e ir para o conteúdo latente. Nes-
sas condições, não se pode dizer que a introdução do inconsciente rompe,
num ponto particular, a hegemonia da introspecção. Dado o papel do incons-
ciente na análise, a introspecção não é mais um método científico no sentido
próprio da palavra, pois o que pode ser conhecido pela introspecção ainda não
é um conhecimento psicológico: o psicanalista não se detém na "introspec-
ção" do conteúdo manifesto. Dessa feita, o psicólogo não está mais diante de
duas categorias de fatos, uns conhecidos imediatamente e os outros conheci-
dos mediatamente, pois todos os fatos verdadeiramente eft·cazes encontram-
se no inconsciente. Por isso mesmo, o psicólogo não tem mais que se ocupar
dos conhecimentos que não sejam mediatos: o mistério do conhecimento psi-
cológico desapareceu por inteiro e o psicanalista deverá inventar um método
que, mesmo sem ser fisiológico ou biológico, mas exclusivamente psicológico,
seja outra coisa que não a introspecção. Esse método é a técnica psicanalítica,
"a via real que leva ao conhecimento do inconsciente".
Houve, portanto, um a revolução "copernicana": todo o interesse dos psi-
cólogos deslocou-se dos dados da percepção psicológica imediata para os dados
que não podem mais ser considerados como tais, mas que são construídos e,
por isso mesmo, toda a ideologia da psicologia clássica precisa ser retomada.
Contudo, mais uma vez, ou melhor, pela última vez, o realismo intervém
para impedir sua própria destruição. Se continuarmos a interpretar os dados
mediatos dos quais os psicólogos se ocupam como relacionados a uma realidade
e escolhendo a última possibilidade que resta para salvar o realismo, deve-se
afirmar que a realidade em questão é transcendente e que só a captamos em seus

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA (!~


"fenômenos". Efetivamente, Freud explica o sonho e as psiconeuroses, e em ge-
. .d d " . ,, 77
ral tu do, por at1v1 a es numenais .
Ora, semelhante atitude não pode ter estabilidade. A afirmação de que
uma certa realidade só nos é conhecida em seus fenômenos sempre põe em pe-
rigo a própria realidade. Cedo ou tarde, seremos obrigados a limitar_o _conheci-
mento aos fenômenos. Esse "fenomenismo" deve passar longe dos ps1cologos da
"psicologia sem alma", pois a realidade à qual nos ligamos não é simplesmente
a alma substância, mas o psíquico enquanto realidade, enfim, a vida interior.
Freud permanece "dogmático". Com a ajuda do procedimento realista,
ultrapassa os fenômenos. Mas o faz muito ostensivamente. O procedimento é
articulado com tanta nitidez que seu dogmatismo prepara a crítica a ele corres-
pondente e anuncia uma psicologia "crítica", que merece esse nome, não por-
que venha a ser uma psicologia sem alma, mas uma psicologia sem vida interior
e, apesar disso, sem o menor vestígio de r,·siologia e nem mesmo de biologia.
Pode-se mostrar, portanto, que a dualidade no interior da psicanálise, en-
tre o abstrato e o concreto, não é simples ilusão de ótica, mas traduz a natureza
particular da atitude freudiana. Não somente a volta ao abstrato devia produ-
zir-se na psicanálise, mas até as teorias que resultam dela implicam, tais como
são e apesar da sua forma técnica abstrata, a própria atitude que se encontra na
base da psicologia concreta. Enfim, não é em nós, mas em Freud, que se pode
constatar uma "ilusão de ótica".
Se a posição de Freud é, dessa maneira, determinada com uma precisão su-
ficiente, o que não parece sê-lo é a própria psicologia concreta. Poi~ tudo o que
sabemos positivamente dela, até agora, é a maneira de definir o fato psicológico
como segmento do "drama" constituído pela vida do indivíduo particular e pelo
método que pretende usar para estudá-lo. Mas ainda não vimos a maneira
como realiza suas promessas; em outros termos, ainda não vimos a psicologia
concreta atuando na análise do "drama", com noções apropriadas a seu plano e
a sua inspiração. E, para que o caráter abstrato das especulações freudianas não
possa ser considerado como a revelação da incapacidade teórica da psicologia
concreta tal como a concebemos, é preciso mostrar que, em meio a todas as no-

n Trata-se do conceito kantiano de "númeno". Politzer realizou sua leitura da obra de Freud
ce~rio domina?º pelo mov~ento _neok~tiano. Suas resenhas sobre L. Brunschivicg, J. Nabert
Robinson, publicadas na revista Pht!osoph,es, em 1924, por ocasião do segundo centenário do nasci-
n:r
mento de Kant, são exemplo_s relevantes. ~ s_ições do autor sobre o relato em primeira pessoa (psi-1..-
cologia concreta) e em terceLra pessoa (psicanálise) sustentam-se na ontolo~a moderna fu d d , ,
Kant. Cf. A Filoso(ia e os Mitos, op. cit. (NRTI -- n ª ª po~

'l14 Capítulo Cinco


ções e hipóteses que Freud foi levado a construir, há algumas que, mesmo estan-
do no mesmo plano das outras, já pertencem à psicologia concreta.

III
Pa~a mostrar a psicologia concreta em a~ão, devemos salientar o caráter
ver~ade1ro de um certo número de novas noções que Freud foi levado a intro-
du21r em conseqüência da análise dos sonhos e das neuroses, e que desempe-
nham um papel preponderante nas explicações técnicas. Consideraremos,
essencialmente, duas: a identificação e o complexo de Édipo. 78 •
A identificação consiste na fato de que "o eu absorve, por assim dizer, as
propriedades do objeto" (Psychologie Collective et Analyse du Moi, tradução fran-
cesa, p. 60). Uma criança "que teve a infelicidade de perder um gatinho declara
de repente que ele mesmo era esse gatinho, pôs-se a engatinhar e não quis mais
comer na mesa etc." (ibid., p. 63).
Não se deve confundir a identificação freudiana com a imitação da psico-
logia clássica, "a passagem imediata de uma percepção, na maioria dos casos vi-
suais, para um movimento que reproduz a causa da percepção". Embora se
possa discutir a nossa definição para substituir os termos "estáticos" por ter-
mos "dinâmicos", o que está claro é que semelhante definição que faz abstra-
ção do sentido do ato em questão é inteiramente formal: só se considera o
mecanismo geral do ato. O fato de esse mecanismo estar descrito em termos
de elementos ou em termos de atitudes não muda nada no seu caráter formal.
Além do mais, o sujeito é eliminado não só porque, na maioria dos casos, será
feito da imitação um pequeno drama em terceira pessoa cujos atores são os ele-
mentos, mas porque, levando em conta o formalismo, não há proposta de con-
siderar a imitação como sendo, no seu próprio teor, algo da vida do indivíduo
particular. Longe de orientar-nos para essa vida, a imitação nos afasta dela: apa-
rece como uma função geral, como o hábito, por exemplo, ou a memória, e
tudo o que a psicologia clássica pode fazer é procurar-lhe o mecanismo geral,
descrever-lhe o desenvolvi1 ento,g~ral, enfi~, estudá-lo em si. .
A identificação é, pelo contrano, essencialmente um ato que tem sentido:
v ata-se, para o sujeito, de ser outro ou algo outro que ele mesmo, trata-se de

78
N-ao se t ra t a de fornecer a lista de todas as noções e explicações concretas
- 1que
· -se encontram em·
F d s ou melhor modelos capazes de mostrar que noçoes e exp 1caçoes
reu , mas exemp o , 1 , " f • ·• d •· concretas
· - • exis-
tem efetivamente na psicanálise. Eis por que não falamos da trans erenaa , nem a mtroJeçao , nem
do "complexo de inferioridade" de Adler etc.

CRÍTICA DOS FUNDM\ENTOS DA PSICOLOOA :1'',


15
~onformar-se com um modelo adotando-lhe, por assim dizer, toda a dialética.
"A gênese da homossex~alidade masculina", diz Freud (op. cit., p. 62), "é, na
maioria das vezes, a seguinte: o jovem ficou muito tempo e de maneira muito
intensa ligado à mãe, no sentido do complexo de Édipo. Quando chega a puber-
dade, ele deve trocar a mãe por outro objeto sexual. Dá-se uma mudança súbita
de orientação: em vez de renunciar à mãe, identifica-se com ela, transforma-se
nela e procurar objetos suscetíveis de substituir seu próprio eu (moí) e que possa
amar e cuidar como foi amado e cuidado pela mãe. Esse é um processo de que
se pode constatar a realidade tantas vezes como se queira e que é, naturalmen-
te, totalmente independente da hipótese que se poderia formular a respeito das
razões e motivos dessa-re~ tina transformação. Ç) que impressiona nessa
identificação é sua amplidão; sob um aspecto mais importante, do pondo de
vista do caráter, principalmente, o indivíduo sofre uma transformação de acor-
do com o modelo da pessoa que, até então, lhe servira de objeto libidinoso."
Nessas condições, longe de ficar de fora, o sujeito está implicado integral-
mente na identificação que passa a ser, não só parte efetiva da sua vida, mas a
chave de toda uma série de atitudes que só se compreendem por meio dela.
Daí, a identificação nos traz sempre de volta à vida d · 1 o particular,
pois é só esta que pode permitir a reconstituição da sua i nificaç- . A identifi-
cação é, portanto, uma noção concreta: é talhada no pró ·o..d a humano;
por outros termos, é um ~eg11}ento d3 v}Aq__ do indivíduo particular.
O complexo de Édipo é uma noção muito conhecida e podemos conten-
tar-nos com uma simples alusão. O menino tem pela mãe um afeto de natureza
erótica, no sentido aliás muito amplo que este termo tem para os psicanalistas.
Depois, "o menino percebe que o pai barra-lhe o caminho para a mãe; sua iden-
tificação com o pai assume por isso um aspecto hostil e acaba por confundir-se
com o desejo de substituir o pai junto à mãe" (op. cit., p. 58).
De fato, o próprio termo "complexo" revela a psicologia da Vorstellung,
pois, para Freud, e ~ xo é uma representação cheia de grande intensidade
79
afetivf- sóexiste aí, e"sçrá inútil demo~tr~lo, ~~ma questão de e.stil~. De
. fato, complexo de Édip011ão é nem um f processo''}e menos ainda um "esta-
.. do", màs urp~ ema dramático, ou, se preferir, um compprtam! n~o humano.
Encontram-se na noção de identificação e no complexo de Edipo duas no-
ções que satisfazem à condição essencial que as noções da psicologia concreta

79
Cf. mais adiante, p. 178.

{Í& Capítulo Gnco


(J~( ,
d::em comportar: permanecem no plano do eu e são talhadas na própria ma-
te_na do dr~ humano. Por isso mesmo, não conservam vestígio algum do re-
alis;n? da psi.cologia clássica. Com efeito, nem a identificação nem o complexo
de Edipo representam dados de uma percepção original e não se referem a uma
realidade de alguma fonna química. /
, ª
r-~dade _Qual se!~cionam só é a do drama humano, a da significação
,,. que faz de um con1unto de movimentos uma ce1ta-hamana. - -
_ Nem a ide_ntificação nem~ complexo de Édii>a se assentam na considera-
çao de um con1unto de estados internos ou de mecanismos psicofisíológicos,
tam~uco são "atitudes mentais", pois representam a ocefÍilJlentos integrais e
expnmem a forma humana de l}ma cena, nada mais. Enfim, essas noções só
têm valor no plano das ações dramáticas do homem e são incompatíveis com
o realismo da "sexta essência".
A identificação e o complexo de Édipo só são complexos do ponto de vista
do ato que os constitui. Enquanto noções explicativas, são, pelo contrário, pri-
mitivas.
A psicologia introspectiva descreveria os estados internos que duplicam a
identificação; as representações, os sentimentos ou, se preferir, as atitudes
mentais e as qualidades implicadas pelo fato de viver a forma de um outro.
Chegaríamos, assim, às análises comoventes da simpatia.
A psicologia "experimental" aplicar-se-ia ao lado positivo da identificação.
Estudar-se-iam os mecanismos sensório-motores e ideomotores para elaborar
mitos fisiológicos. Chegar-se-ia, então, à imitação.
De qualquer modo, a explicação extrapolaria a identificação em si para
procurar reconstituí-la com elementos que estão acima ou abaixo dela, quer di-
zer, com elementos psicológicos ou e~ementos fisiológicos ..Para Freud, pelo
contrário, a identi(,"cação e ocomplexo de Edipo são noções elementares que devem ser-
vi0 precisamente, à análise e à reconstituiçãodo ~rama humano.
De fato a identificação e o complexo de Edipo não são apenas os segmentos
da vida de u~ indivíduo particular, mas também grandes esquemas dramáticos
que tem,
,.
por as slffi· dizer, sua dialética própria , podendo, conseqüentemente, dar
a chave de toda uma série de atitudes.
· considerar a análise dos sonhos
Nem e,, preciso . e.das psiconeuroses: a sim-
A • •

- d ·da cotidiana mostra a imensa 1mportanc1a das atitudes


L bservaçao a vi
peso ·d
ões Basta olhar ao redor de si para ver que toda a vi a
expressas por essas nOÇ · .. • • d
,, da po·r elas e que são elas que o dmgem na maioria as
do hornem e atravessa

CRfTKA 005 FUNDM\ENTOS DA PSICOlOGIA )!J


vezes para as ações que terão sobre seu destino todo uma influência determi-
nante.
Do ponto de vista técnico, a identificação explicou, há pouco, a gênese da
homossexualidade no homem. Intervém também na teoria freudiana da histe-
ria,ªº do amor, 81 na explicação que ele tentou sobre a hipnose, 82 do caráter83 etc.
No que diz respeito ao complexo de Édipo, sabemos como importante é o pa-
pel que Freud lhe atribui em suas explicações.
O que há de notável é que a identificação e o complexo de Édipo sejam
noções explicativas. Pois, com isso, Freud satisfaz a essa outra exigência da psi-
cologia concreta, de acordo com a qual as noções ma; elementares devem ser atos 1

atos do eu e segmentos da vida dramática. 84 Pois, em vez de considerá-las como


11 11

o ponto de partida de uma análise no sentido da psicologia clássica, faz delas


noções elementares com as quais se reconstituirá comportamentos tão com-
plexos como o amor, por exemplo. Ora, a identificação e o complexo de Édipo
são precisamente os atos do "eu" e segmentos da vida do indivíduo particular.
Por isso mesmo a psicologia concreta pode analisar o drama, sem transformá-
lo em drama impessoal: os "elementos" que utiliza são esquemas em primeira
pessoa.
É verdade que as noções que acabamos de considerar não são concebidas
por Freud conforme a sua essência verdadeira. Estão no mesmo plano que ou-
tras de origem perfeitamente abstrata. Tampouco a análise elementar, de acor-
do com a psicologia clássica, é completamente ausente: a expressão complexo
de Édipo, por um lado, e a definição freudiana do termo "complexo", por outro,
provam-no bastante. Embora Freud tenha sido levado, nos seus últimos traba-
lhos - como, por exemplo, Psychologie Collective et Analyse du Moi e Das lch und
das Es - , a basear sempre mais as suas explicações sobre suas noções, sem ater-
se muito à análise elementar, esta está longe de estar ausente, e a dualidade
continua subsistindo.
Mas essa dualidade é muito mais evoluída que aquela que constatamos
ao analisar a teoria do inconsciente. Com efeito, aí, a atitude fundamental que

00
Cf., por exemplo, Traumdeutung, 4ª ed. alemã, p. 114ss.
81
Zur Einleitung des Narzismus e Psychologie Colletive et Analyse du Moi.
82
Psychologie Col/etive et Analyse du Moi, capítulo VIII.
83
Das Ich und das Es, capítulo III, p. 32ss.
Cf. acima, capítulo I, item IV, pp. õ/-69.

178 Capítulo Cinco


desvenda a inspiração da psicologia concreta ainda está inteiramente recoberta
pela forma técnica produzida exclusivamente pelo abstrato. Aqui, pelo contrá-
rio, trata-se de noções que são concretas em sua própria forma técnica e sobre as
quais vem enxertar-se a atitude abstrata, apesar do fato de, aliás, serem utiliza-
das da maneira que lhes convém. Mas essas noções não têm mais poder sobre
esta e, embora estejam misturadas indistintamente na própria exposição, a ati-
tude abstrata por um lado cristalizam-se, por assim dizer, separadamente. Pois,
na verdade, nã~ é necessá~a m~i_to p~rspicácia para ver que a análise elementar
aplicada a noçoes como a 1dent1ficaçao e o complexo de Edipo desprende-se por
si mesma dessas noções e que são elas e a maneira como elas nos permitem a
análise do drama que retêm a atenção.
Sejam essas noções definitivas ou não, que tenham exatamente a impor-
tância que Freud lhes atribui, isso não tem importância alguma, do ponto de
vista da própria vitalidade de psicologia concreta. Q_essenciaj__Lque_p_adem
mostrar-nos que a psicologia concreta não só é capaz de formular. exigências
que não pode cumprir e conceber um método de que é a primeira a não poder
aplicar, mas que é apta a analisar, conforme suas próprias exigências, o drama
humano do qual faz o domínio por excelência da psicologia.
Essas noções e a maneira como Freud as utiliza em suas explicações mos-
tram que uma psicologia que só se ocupa dq drama humano, que só faz intervir
em suas explicações noções que, mesmo "elementares", representam atos huma-
nos, e que, numa palavra, nunca deixa delado esse plano, nem na investigação dos fa-
tos, nem na sua elaboração teórica, uma psicologia assim é perfeitamente viável,
pois já está viva. Resolvida a questão de princípio, todo o restante não passa de
questão técnica. l ,

CRÍTICA DOS FUNO~ENTOS DA PSICOlOGIA lij


...............................................................................................

CONCLUSOES
AS VIRTUDES DA PSICOLOGIA CONCRETA
E OS PROBLEMAS QUE. SUSCITA

1. - Estudamos a psicanálise na Traumdeutung a fim de extrair desse estu-


do um ensinamento para a psicologia. Encontramos no freudismo uma nova
inspiração, contrária à da psicologia clássica, e mostramos que a verdadeira
oposição entre a psicanálise e a psicologia oficial está em duas formas irredutí-

--
veis da psicologia: a psicologia abstrata e a psicologia concreta. Aprofundando
a maneira como Freud vê os problemas e concebe seu método,"' chegamos a des-
tacar as principais características da psicologia concreta. Uma vez de posse das
suas exigências, pudemos descobrir os procedimentos fundamentais da psico-
logia clássica, como o realismo, o formalismo e a abstração.
2. - Os esclarecimentos a que pudemos chegar, com a ajuda da psicanáli-
se, sobre as exigências da psicologia concreta revelaram-se instrumento de crí-
tica eficaz no exame da psicologia abstrata. Acontece, todavia, que a psicologia
concreta, oriunda da psicanálise, deve começar por virar-se contra a abstrata e
servir de princípio a urna crítica interna: tivemos de constatar em Freud, sobre-
tudo no momento da elaboração teórica dos fatos, aberto retomo à abstração.
Esse retorno está muito claro e estabelecemos a sua existência não só pelas nos-
sas observações a respeito das noções que Freud introduziu na Traumdeutung,
mas sobretudo mostrando que só os procedimentos clássicos permitem dar
um sentido à hipótese do inconsciente. Reencontra~ 1_?s_sirn.i_m~smo n_Q ~ -
Jerior da psicanálise, a oposição entre a psicologia concreta e a psicologia abs-_
trata.
3. - Para que a constatação dessa dualidade não se volte contra o nosso
empreendimento, mostramos não só que os "erros freudianos" representam
urna etapa necessária no desenvolvimento da psicologia concreta, mas que a
psicologia concreta, da forma como resulta da psicanálise, pode fazer muito
mais que conceber um ideal científico e formular exigências, sendo que ela já é
,atualmente viva, porque existe na própria psicanálise certo número de noções

CRÍTICA DOS FUNDM\ENTOS DA PSICOLOGIA l~J


e de explicações que, estando integralmente conforme às exigências da psico-
logia concreta, provam por isso mesmo sua vitalidade.
4. - Ao longo do estudo, expressamos nossa posição quanto a psicologia
concreta, tal como a concebemos, ser chamada a realizar o sonho já antigo de
uma psicologia positiva, pois só ela cumpre essa reforma radical do entendi-
mento que a atitude verdadeiramente científica implica e da qual os psicólogos
clássicos quiseram fazer economia, substituindo-lhe uma imitação puramente
exterior dos métodos científicos.
Essa "reforma do entendimento" consiste1 ao formular -
as exigências da
psicofog1ã científica, em ir até o fim, sem reservas e sem piedade. Pois não basta
formular exigências. Exigências às quais nenhuma realidade corresponda nada
representam, e é só mais tarde, uma vez realizadas, que quem as formulou ad-
quire o mérito de ter sonhado com a verdade. Os psicólogos clássicos confun-
dem a cada instante as exigências e sua realização. Ora, sua psicologia nunca
conseguiu cumprir as exigências de uma psicologia positiva tais como formu-
ladas por ocasião do nascimento da psicologia moderna. Eis por que a psicolo-
gia positiva só existe na psicologia oficial de hoje como um sonho.
5. - Para demonstrar esse ponto bastaria uma alusão aos nossos desenvol-
vimentos anteriores, pelos quais estabelecemos que os procedimentos da psi-
cologia clássica não podem ter sentido psicológico nenhum. Como poderíamos
qualificar de ciência psicológica um conjunto teórico ao qual nenhuma realida-
de psicológica corresponde? Essa demonstração será excelente quando se per-
ceber a verdade da psicologia concreta. Por enquanto, como ainda estamos
longe disso, pode-se tachá-la de puramente formal: por entendermos por psi-
cologia o contrário da psicologia clássica, é natural que os procedimentos desta
não possam ter sentido "psicológico" algum. Eis por que é preciso mostrar ou-
tra coisa: cabe mostrar que a psicologia concreta é a primeira psicologia positi-
va, porque conseguiu resolver o problema posto, e apesar do número. e da
divergência das tentativas, mas nunca resolvido pela psicologia clássica: atender
às c~ · ões de existência de uma psicologia positiva.
\6. Essas condições de existência são três:
) a psicologia deve ser uma ciência a posterior( quer dizer, o estudo adequado
de um grupo de fatosi
- 2) deve ser original, isto é, estudar fatos irredutíveis aos objetos das outras ciênciasi
- 3) deve ser objetiva, em outros termos, deve definir o fato e o método psicológicos,
de tal forma que sejam, de direito, universalmente acessíveis e verifi"cáveis.

Condusões
ora, basta lançar um olha; _sobre a história da psicologia nos cinqüenta úl-
. nos e lembrar-se das cnticas com que as tendências antagônicas se au-
nrnostruírall1
a . d.1atamente que nunca se enunciou um programa
para ver ime
tod. esl 'oico capaz de atender a essas tres " cond.1çoes ao mesmo tempo. Muito
Psicoºº~
lo contrário, tem-se procurado, geralmente, resolver o problema sacrificando
rsegunda ao _ _ erra. A demonstração precisa desse pon_w não pas-
saria de u~ de erud1ç~o. abe-se que as ps1cologias mtro~pecqorustas sa-
.fjcararn a tercemrcorn:hç e as ob1et1v1stas, a segunda, isto e, na mechda em
cn euns conseguiam salvaguardar o caráter puramente psicológico do objeto da
q~icologia, retiravam-lhe toda realidade científica; enquanto os outros só con-
;eguiarn pôr na base da psicologia_fatos _reais, sa~ficando_a própria_ psicologia.
Dessa maneira, chega-se a ps1cologias que, nao possumdo senao a metade
da sua essência, são incapazes de atender à primeira condição: não podem esta-
belecer-se a posteriori, pois são obrigadas a substituir por mitos, como fazem os
adeptos da psicologia fisiológica, essa ciência com que sonham sem poder reali-
zá-la. Por isso mesmo as psicologias em foco devem revelar-se, revezando-se, in-
suficientes, mas, como a impossibilidade de atender ao mesmo tempo as duas
condições em questão continuam persistindo, procura-se resolver o problema

r inventando ou int~ospeções ou objetividades inédita~. Eis por que a psicologia2


mostra essa oscila?º d~sesper.adora entre a mtrospeçao e a ob1et1vidade que ca-J
racteriza sua histona ha cinquenta anos.
7. -A explicação dessa incapacidade fundamental encontra-se na influên-
cia do realismo psicológico. Para a psicologia in_ygspecçionista clá~ ca1 direta-
. mente oriunda do realismo. o fato psicológico é um dado simples, re/acioniàõ tl
uma realidade perceptível chamada psíquico. O próprio dos fatos psicológicos é
· âádo pela participação dessa realidade que constitui um mundo ou uma vida'
no mesmo sentido que a natureza, mas que goza de propriedades_opostas. Os
psicólogos objetivistas, quando protestaram contra o próprio realismo psicoló-
gico, só procuraram libertar-se da forma técnica do realismo, não da atitude
fundamental que a gera: procuraram, eles também, definir o fato psicológico
como um dado simples relacionado a uma realidade perceptível e, até aceitando a
~alternativa clássica do espírito e da matéria, eles encontraram-se diante da exi-
gência de tocurar o fato psicológico nos dados da percepção externa.
~-- E preciso acrescentar que os primeiros psicólogos a preconizar a psi-
c~logia objetiva nem conseguiram eliminar a forma técnica do realismo. Acre-
ditaram ser suficiente estabelecer uma relação de correspondência qualquer
entre os fat os ps1co
· 1og1cos
, • e os fatos extenores
. para que o problema da objeti-

CRÍTICA DOS FUNDM\ENTOS DA PSICOLOGIA dBS


'•,:-:':'"
' ,-\ 1 1 t

vidade fosse resolvido. Não perceberam que uma tentativa desse gênero só po-
dia ser uma vasta ignoratio e/enchi e uma petição de princípio. lgn~a'!.:!...:!e!!..chi,
porque não se trata de saber qual é a face objetiva dos fatos da psicÕ!õgia clá~~,ica
mas, sim, qual o resultado que o estudo objetivo do psíquico em si pode propiciar;
e petição de princípio porquer antes de procurar estudar a fa~ _!Jjetiv~ dos fatos
psicológicos no sentido clássico da palavra, trata-se de saber se o estudo objeti-
vo dos fatos psicológicos não desembocará num resultado totalmente outro.
Ao procurar estudar os fatos psicológicos "de fora", os psicólogos em questão
~.!:ª~ tais e quais os dados da psicologia clássica, enquanto a psicologia
nova devia voltar a examiná-los.
De fato, houve apenas uma tentativa sincera de psicologia objetiva: o
behaviorismo, tal como resulta das idéias fundamentais de Watson. Foi preciso
cinqüenta anos e os sucessivos fracassos de Wundt, Bechtherev e outros, assim
como a revelação do caráter mitológico da psicologia fisiológica logo que extra-
pola a fisiologia das sensações, para que do estudo do comportamento animal
surgisse, enfim, uma concepção positiva no sentido rigoroso do termo.
O grande mérito de Watson, o dissemos desde o início, é ter compreendi-
do que o ideal da psicologia, ciência da natureza, implica uma renúncia absolu-
ta e sem condições à vida interior. Até a.!, as psicologias só eram objetivas nos
prefácios e tinham o hábito de rein~Üzir--ç.o texto, com mais ou menos in-
genuidade, as noções introspectivaf Watson compreendeu que a atitt!_de sin-
ceramente científica exigia que se Jize.sse tábula rasa de tudo que é introspeção
e espiritualidade, conseguindo o q_ue tinha passado despercebido aos maiores~
ca~pe~es da psicologia objeti~a: pensar a~é fi.1JJ- a ·exigênc,:a -;;;J,Útividade em
ps1colog1a. Dessa mesma maneira o behav1onsmo traz uma revelação de valor
definitiva, a saber, que seus predecessores em psicologia objetiva, WuQdt, Be-
chetherev e outros, são comparáveis a peripatéticos que querem pesar o diáfa-
no e estudar pela estroboscopia a passagem do poder ao ato.
Mesmo conseguindo apresent~-uma concepção da psicologia conforme o
ideal da objetividade, a tentativa de Watson é marcada pela mesma insuficiên-
cia das anteriores~ ~ ade, mas _p_erde~psic_~ ~ -A prova é que
apenas Watson começou a tirar as conseqüências da sua descoberta, na qual
logo os psicólogos americanos puseram-se a procurar um "behaviorismo não fi-
siológico".
De fato, só o comportamento e seu mecanismo visto de fora podem inte-
ressar a um behaviorismo no sentido próprio da palavra. Mas, então, a psicolo-
gia é tão objetiva que se afoga, por assim dizer, na objetividade, e tudo o que o

184 Condusões
behaviorismo poderi , · ar s ia da ordem da mecânica animal. Aí está mna
solução desesperada; behaviorismo suprime o enigma do homem e em seu
l~gar, precisamente por ter eliminado o que era es~c;íficodo fé!to p~i~ológico,
~ e_od~?f~rec~~ pr~~e~sas. ~ 1' .lftt ,-t': .• ·.: ·, (J, ... _l,,l>s:
Dai a 1ncapac1dade do behavionsmo enquanto psicologia e o problema do
behaviorismo não fisiológico. ',):;f, ...
9. - Aqui també~ a incapacidade é devida ao fato de, na própria posiçã~--· .r_', ,_
do problema, ser a atitude motora do realismo clássico que atua. Compreen-
dendo com precisão que a vida interior é incompatível com a objetividade,
Watson passou, simplesmente, para a percepção externa. Claro que, comove-
remos daqui a pouco, sua proposta objetiva é menos simplista que a dos seus
predecessores, mas resta que também aceitou a alternativa "dentro ou fora", a
diferença toda residindo no fato de que o "fora" está, desta vez, mais biológico
que fisiológico.
10. - O que impede a psicologia de tornar-se ciência positiva é que, não
podendo satisfazer senão parcialmente às suas condições de existência, está fe-
chada na antítese da objetividade e da subjetiviaacfe. Pfira escae~ , gi__eis çiye
sair do ecletismo vulgar que caracteriza hoje o..,esicó!9_go J11é~, precisa de um<!
síntese no sentido próprio do termo. Se a psicolggia clássica é incap~ de realizar
essa ~ntese, é porque acredita que o fato psicqkSgico deve ser um dado percepti- }
vo. Só se pode, então, escolher entre a alternativa clássica da percepção interna
ou da percepção externa ou ainda recorrer às duas ao mesmo tempo, o que, ma-
nifestamente, implica a ignorância do assunto.
Paré!_~_!:!perar a antítese d ássica,_teria.sigo necessário ~ nunciqIA~ fato
psicológico numa pe!cepção qualqu~ co_p.sen~ir em lançar na base da ciên~i~ ~ ·
psicológica u1;1 ~to de c~nhecimento numa estrut_u!..a mais eleva~a queª. s~m12les p~~- ·
cepção. Era o uruco me10 de atender, concom1t~ntemente, as conc;l1çoes de_on- \
ginalidade e de objetividade, isto é, encontrar_um campo original e objetivo,
.sem que essa originalidade fosse a de uma "ma~éria" nova e sem qu_e...e~q,bje-
tividade fosse a da matéria física, enfim, escaP.ar da alternativa çlo "dentro" e
do " --". _ -- _
11. ' Por ter abandonado o realismo f Omci atitu·d~t tlndamental que ele
im M t a, a/psicologia concreta encontrou fio drama humano} 1m grupo de fatos
mesmo como 3mr,3-
que atendem às condições g!:!,e a~ bamos de enun~ ~ pre~ n_ta-s~ Pº.!2~º
ira síntese da f?SicõlogiaJiJ.fte!iva~ dCJ,./2.SJcologiq objt1iv.iJ
Ao escolher odrama por campo de estudo, nao e mais uma percepção qual-
quer que é o ato con_stit_, ivo da ciência psicológica. Não é a percepção externa,

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA t$.j·


-~ ~\ l,;e4.t1: E vL A_ __ ~, .",V1. j -~ 1
porque seus dados ná; sã~ fatos psico~ógicos, e não é a percepção interna,
porque seus dados não são.mais/fatos psicologicos.
Com efeito, um gesto que faço é um fato psicológico, porque é um seg-
mento do drama que representa a minha vida. ~aneira como se ins~re nes~e
drama é dado ao psicólogo pelo relato que posso fazer a respeito desse gesto_.
Mas é o gesto esclarecido pelo ,:elq~_g~e é o fato psico~ógicq, e não o ge~to à p_a~te
nem o conteúdo realizado do relato. Certo, o gesto tem um mecarusmo fisio-
lógico, mas esse mecanismo nada tem de humano ainda; portanto, não pode
interessar ao psicólogo, ainda não é psicológico. Por outro lado, o conteúdo do
relato que posso fazer a respeito do meu gesto implica, visto através da psico-
logia clássica, descrições estáticas ou dinâmicas, mas essas descrições não me
interessam tampouco. Implicam o abandono do sentid9 em proveito do forma-
lismo e dos outros procedimentos que temos descrito; e se a consideração do
mecanismo puramente fisiológico do meu gesto é aquém do ponto de yista psi-
cológico, as descrições introspectivas ficam além: o ponto de vista do psicólogo é o
que coincide com o drama.
12. - De modo geral, a percepção externa só pode fornecer o arcabouço
material do drama e, mesmo assim, é preciso que o dado exterior seja definido
à maneira de Watson, isto é, pelo comportamento. Ora, o fato psi':9.lógico não
é o comportamento simples, mªs o comportamento humano, isto é, o_comportq_mento
·enquanto relacionado, por um lado, aos acontecim,.entqs dentro dos quais se desenvolve
a vida humana e por outro lado, relacionado ao indivíduo, e/ - - nto su; · esta vida.
1

Enfim, o fato psicológico é o comportamento com am sentido human Mas


para constituir esse sentido, precisa-se de dados forn~\ ~ os pelo sujeitq ' que
chegam a nós por intermédio do relato: o comportamenl:o_~ent'e mo-
tor só se torna fato psicológico depois de ter sido esclarecido~ ato.
De ~ m a que a constataç- oc portamento humano resulta, para
1
o psicólogo, nãJ de uma -~imple , percepção/ ma~ da .. p~rce~ã°:complicada de
uma compreensãb, consequentem te, o -fato ps1cologici:.t. B dado sim-
ples: ~ ~anta objeto de conhecimentõ, é essencialmen construído~,
,1~ + Mas não se pode dizer que o "sentido do dra "seja dado apenas
pela'jxperiência interna que o sujeito tenha dos seus co'm})Õrtãinentos e que,
conseqüentemente, se podemos ultrapassar a simples percepção exterior do
comportamento motor para alcançar o comportamento humano, é porque,
por assim dizer, do outro lado,.q face interna do comp_or!qmento nos é reudíz.dí:l É
óbvio que se faz aí alusão ao relato que o indivíduo pode dar a respeito do seu
comportamento. Ora, o relato em questão é essencialmente um relato signi(i-J·· l ,,
.
1# Conclusões
---~
Q ;e a psicologia só se ocupa dele na medida em que esclarece o drama. Para
~ ; n; relato algo além dos materiais destinados a esclarecer o drama, seria pre-
ciso cumprir a abstração, realizar o sentido e estudar do ponto de vista formal
0 sentido assim realizado. Ora, o que caracteriza a psicologia concreta é que
não executa esses procedimentos: não deixa o plano do drama e considera ore-
lato como simples contexto que não nos faz penetrar na vida interior, mas que
nos faz compreender um drama que se desenrola diante de nós~Jlfun, o fato
psicológico não pode resultar, tampouco, da ~rcepção interna,_ pois ~sta já im-
plica o abandono do ponto de vista propriamente psicológico, e isso é o menos
~ ue se possa dizer, sendo que ao final da análise revela-se como uma pura ilu-
são.
( 14. - Não sendo o fato psicológico um dado perceptivo, mas o resultado
de uma construção, é fácil mostrar que é original e propriamente psicológico
sem ser interior, e que é objetivo sem ser da matéria ou do movimento.
. O drama é origif!al. De fato, ele nada tem a ver com a matéria ou o movi-
mento pÜros e simples. A extensão, o movimento e mesmo a energia, com to-
dos os seus estados e todos os seus p~~?, não são suficientes para
é
constituir o drama. Pois o drama implica homem tomado em sua totalidad~ e
__considerado como o centro de um certo rnimero de acontecimentos que, por
relacionar-se a uma primeira pessoa, têm sentido.
Éo sentido relacionado a uma primeira pessoa que distingue radicalmente
o fatÕ psicológico de todos os fatos da natureza. Enfim, a originalidade do fato
--pr,cológico é dada pela própria existência de um plano propriamente humano e da vida_

-
ã'fãmática do indivíduo que nele se desenrola.
Mas o drama não é nada "interior". Na medida em que requer um lugar, , -
o drama desenrola-se no espaço como o movimento ordinário e como, ~ e-
ral, todos os fenômenos da na~ureza_. Poi~ ~l~g~r em que ~stou a_tual~e~t~
é simplesmente o lugar da minha vida fis101og1ca e da mmha vida b1ologica,
/ tããibém o lugar da minha vida dramática e, mais ainda, as ações, os ~rimes, a~
Toucuras têm lugar no espaço, assim como a respiração e as secreções internas.
- Sob outro ~sp~cto, é verdade também que o espaço só pode conter o arca-
bouço do drama: o elemento propriamente dramático deixou de ser espacial.
...Mas tampouco é interior, pois nada mais é que a significação. Ora; esta não te~
e não pode ter assento em lugar: não é interior, nem exterior; ela está além, ou
melhor, fora desses possibilidades, sem que isso comprometa de maneira algu-
ma a sua realidade.

. l ;
CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA ~;it'
15. -Se o drama não é exterior e nem interior, no sentido espacial do ter-
mo, é todavia "exterior" no sentido lógico. Pois é de fora que o psicólogo aborda
o drama e que procura compreender-lhe o sentido e o mecanismo; o drama
apresenta-se diante dele como qualquer realidade; deve explorá-lo como se ex-
plora a natureza. Sob esse aspecto, o fato psicológico é objetivo, embora essa ob-
jetividade não seja a da percepção exterior. Com efeito, se o fato psicológico é
objetivo, não é por ter extensão ou por ser mensurável, mas porque, no plano
do realismo empírico da ciência, é exterior ao ato de conhecimento que o abor-
da; sob este ponto de vista é-lhe, até, transcendente; tem sua dialética própria
e só pode ser conhecido de modo mediato pela ajuda dos dados do relato. Em
outros termos, o fato psicológico é objetivo, não por confundir-se com o objeto
das ci~nci~s da natureza e ser o que é, -mq_gporque s~ êomporta da mesma
maneira diante do ,
. Por isso mesmo, os dados { ~cologia concreta, sem serem experimen-
tais no sentido vulgar da palavra, são, de direito, :universalmente acessíveis e
~, verificáveis.Qualquer um pode empr~e!\.de1, çom ajuda do método do relato, ,. r
1
a descrição; a análise do drama. T T Í" f -.J
16. - E com razão que afirmamos que a psicologia concreta representa a
verdadeira síntese entre a psicologia objetiva e a psicologia subjetiva. Dá razão
àquela que não quis uma psicologia que não fosse objetiva e à outra por ter op-
tado pela conservação do caráter próprio da psicologia, mas condena as duas
por terem sacrificado tudo ao que só representa uma das condições de existên-
""cia da psicologia positiva. Realiza, ao mesmo tempo, o que nenhuma delas ':
pôde fazer: uma psicologia objetiva, ao mesmo tempo que propriamente psicológica. __)
A realidade do fato psicológico tal como definido pela psicologia concreta
está livre de qualquer auréola metafísica. Sua afirmação não implica a existên-
cia de uma nova essência no sentido realista do termo, mas apenas a de um
grupo de fatos que não levam, de forma alguma, à antítese clássica do espírito
- e da matéria: a psicologia não conhece nem um nem outro, só conhece o dra- ç_
,./ ma. Os fatos psicológicos levam-nos à presença de um mundo novo, mas um j
mundo de conhecimentos, não um mundo de entidades e de processos sui generis;
... a psicologia não nos libera o acesso a uma realidade que possa ser oposta ou jus-\ .,,
) ta posta à natureza. Em resumo~ a_psico/ogia concr:ta não conhece a matérw p2.qui- •/
ca ,;,,
e o que é infinitamente mais importante, nao se contenta com a negação , ,

- puramente formal da tes~, mas elimina :odo~ os ~rocedimen~~s ~ue a ~era_m \ •


ou qu~fdela derivam. rsso mesl?Jq, a ps1colog1a d~rxa de ~era cre,nqa da y1da.m- . :
teriqr. '.'- ( (l ; . _ ., \\ X-/
• ,, ,·.) (\ C, · ~- (:' 1
-, ~, 1 •. •1 l ' -. /
têà Condusões
17__ O fato de a psicologia concreta ser ,
· 1 · b. · , uma smtes
. . a e a ps1co agia su Jet1va e uma constat - . e entre a psicolooia t..
leuv . - . açao unpo o· ou-
ostrar com prec1sao sua onentaça-0 ent rtante quando se t
de 111 . , re as tendên . . rata
orânea. Mas isso e apenas uma virtude cl, . c1as da psicologia con-
tem P . . - . ass1ca. A const t -
1.to mais importante, por nao interessar só ._ a açao - que é
mu . . as cond1çoes d0 .
S a maneira como, uma vez nascida deve on· seu nascimento
ma ., . . . . , entar-se- , . .
creta e uma psicologia sem vida interior Eis a . d e que a psicologia
con . . · VIrtu e verdad ·
d mental da psicologia c_pncreta; pois esta é essenc1·a1mente uma
a11~
eiramente fun-
. .
q ue renuncia a toqos ôs procedimentos pelos quais d h psico1ogia
transformado em ' "Vl'da inteno
· ·o)nIJE., a isso que deveOsuarama at 1umanoe
pode
. ser
todo seu fu turo depe~ ' de _da coasequenc1a
.. " . e do vigor. com ua ali.ecundidade·
d ., ' e
. p . - ., dºf" ild' . O qu po era man-
ter-se nesta V1~~ 9 e_! i~ . ...J~ir o comp.Qrtamen_toJiumano.do com-
portamento simplesmente fis1ologico ou biolóoico o qu , • fi .
., , . ....,o· · e e.J!1 rutamente
ctifíêil, e o sera ate o desaparecimento desta geração criada na ideolo --:- d ._
. ., _ fu d. d _ . ... gia a psi
cõlog1a abstrata, e nao con n ir o rama com a vida interior ou melh -
= , o~nao
responder a todas as perguntas que o drama faz e que levam necessariamente
• à vida interior.
18. - }:qfg_COnhecer o sentido do drama ~ cw ecorrer ao relato do su-
@o. O conteúdo do relato, visto através da psicologia clássica, implica as céle-
- bres noções de imagens, percepção, memória, vontade, emoção etc., cuja
procura é, mesmo para um psicólogo que concebe a necessidade da psicologia
concreta, uma tentação perigosa. Fecho os olhos e vejo a praça da Concórdia
com o Obelisco no meio. A tentação de descrever essa visão e fazer dela um ob-
jeto de pesquisa é irresistível. Éa mesma tentação que surge em relação a todas
as "implicações" do relato. Ora, é nesse momento que se deverá prestar aten-
ção, pois trata-se de segurar-se na vertente dessas implicações.
Com efeito, quaisquer que sejam as questões que se levantem a respeito
do sujeito do relato, o psicólogo deve começar por interessar-se apenas pelo~
\teúc/Q, isto é, pela significação. A significação dos comportamentos humanos ~ó
pode ser conhecida porque o homem expressa-se pela palavra, ou, se prefen~,
porque pensa. Todavia, o que interessa ao psicólogo não é o pensamento e°: si,
não é o pensamento que ele deve procurar captar através das suas encar~a~oes:
para_ efetuar sua pesquisa, não deve fazer abstraçao - da s1gm,rcaçao,
· ·1; - pois e ela
que importa para a psicologia.
19- - Portanto, de modo geral, as formas do pensamento, os estado~ d~
consciência, enfim, o mundo em que atua a psicologia introspectiva constitm
urn domin10
, · situado
. além do drama. E., preciso
. que a psico
· lo01a
c,~
desconfie dele.

CRÍTICA DOS FUND~ENTOS DA PSICOLOGIA ~,i


O domínio em questão, precisamente por estar além do drama, constitui,$!!!
rela~~º 3 psicol ogia concreta, uma metapsicolog!_a em que o psicólogo, no sentido
pos1t1vo do termo, não deve deixar-se levar.
Eis um gesto que faço. Compreendo facilmente que seu mecanismo fisi-
ológico nada tem a ver com a psicologia. Mas, enquanto faço esse gesto, tenho
pensamentos que constituem como que o forro espiritual desse gesto, e grande
é a tentação de mergulhar no estudo "desinteressado" do "forro". Será preciso
com preender, então, que sou psicólogo, e não metapsicólogo. Os pensamentos, em
.-si mesmos, não podem interessar-me. Em contrapartida, posso fazer, a respeito "")
- .., desse gesto, um rela__to que me dá o se; tido do gesto, seu teor humano e indivi- -
dual: eis o que interessa ao psicólogo.. _)
A primeira obrigação do psicólogo concreto é a aquisição da moderação em
relação à metapsicologia . Ora, o ponto de vista da psicologia introspectiva é tão
fu ndo em nós que chegamos a duvidar da legitimidade do esforço necessário
--para ultrapassá-lo e resistir-lhe. É preciso saber duas coisas. A primeira é que as (
ciências que são consideradas positivas hoje só puderam chegar a isso sacrifican- \
do um certo número de grandes evidências. Assim é que a física moderna foi
obrigada a ultrapassar as evidências da visão aristotélica do mundo, e é graças a -
ensaios que duraram séculos que o físico pôde habituar-se à visão quantitativa
da natureza. O mesmo se dá em psicologia. A vitória sobre a metapsicologia da

-
alma-substância não representava nada, ou, se preferir, era apenas um começo.

--- -------
O que é preciso é a vitória sobre a metae_sicolo~ dé!._vidaj ~_ rior.
Em segundo lugar, é preciso saber que, sacrificando as evidências em
questão, só se sacrificam falsos problemas. Pois uma parte das evidências a se-
rem sacrificadas revela-se - e procuramos demonstrá-lo ao longo do presente
trabalho, assim como nos que se seguirem - como o efeito de uma "ilusão
transcendental". Claro, outras poderão ser retomadas, pois parecem ligadas a
fatos reais. Assim é, por exemplo, que o "relato" implica a "memória" e parece-
nos impossível não estudar esta. ~ s é preciso sa_~~r que _n--ª? é ~ ória ~ e
interessa ao psicólogo concreto, mas a lê'?!P~ª~ª, enquanto esclarece o drama,
este, por ser o objeto primeiro d~ psicologia - a Ipemó1ia em si só aparece
' como uma suposição longínqua. De qualquer maneira, é preciso adotar resolu-
. tamente a atitude da psicologia concreta com todas as suas conseqüências ,
abordar, só depois, certas partes da psicologia abstrata atual, cujo sacrifício apa
rece hoje como arbitrário. Só depois disso se poderá ver se os problemas en
questão podem ou não ter uma significação concreta.

l \111 Coodusões
Em resumo, para a geração que assiste a um progresso científico, a vitória
sobre as evidências clássicas parece impossível, e os que preconizam sua neces-
sidade são sujeitos a recaídas esporádicas. Éque a transforma_ção das evidência~
opera-se pouco a pouco, mas seguramentê'eia se opera, e, para a geração se-
guinte, o problema quase não existe, e tudÕãparece numa luz nova. -- . " ,'
20. - O que esta pesquisa nos ensina ã respeito da psicologia ~oncreta só
se refere à sua necessidade e à sua vitalidade, mas a idéia que fizemos dela até
agora deve ser aprofundada. Esse aprofundamento não deve ser a priori, nem
deixado ao acaso. Ele deve ser feito, por um lado, examinando, com a ajuda des-
se fio condutor que constitui nossa concepção atual da psicologia concreta,
(' aquelas tendências da psicologia contemporânea que denotam para uma orien-
tação concreta; e, por outro lado, adotando o plano que nos é dado pelos pro-J ..
blemas decorrentes da psicologia concreta, tal como a encaramos até aqui. tJ}
21 . - A psicologia concreta orienta-nos, em primeiro lugar, para o behavi-
orismo.85 Na presente obra utilizamos correntemente o termo "comportamen-
to" e nos agradou totalmente. Mais ainda, vimos desde nossa intrcx:iução que
atribuímos à tentativa de\Watson uma importância capital. É que o behavio-
rismo deve a sua existência a uma inspiração concreta.
Esqueçamos o lado sensacional e o aspecto escandaloso do behaviorismo,
isto é, a negação radical e verdadeiramente impiedosa da consciência, da intros-
peção e de todas as noções introspectivas, para nos deter nesta proposição fun-
damental: "O fato psicológico é o comportam~nto." ~ rmos depois.
abstração da interpretação de W atson que se fecha inteiramente na concepção
puramente .fisiológica da dupla "estímulo/resposta", ª~chamas que o comportf -
m ento é realmente um segmento da vida do indivíduo particular.
De fato, afirmar que o fato psicológico é o comportamento é renunciar a
reconstituir o homem pela combinação de um conjunto de conceitos de ori-

If Como Politzer anunciou no "Preâmbulo" e na "Introdução", no tomo II dos Matériaux abordaria a


Cestaluheoríe e, no III, o behaviorismo. Temos assim, ao longo do texto, algumas indicações - trilhas
mesmo _ do projeto que não foi realizado. Roudinesco ~os informa que u~ grupo de jove~s filósofos
resolveu fundar, com o dinheiro de herança de George Fnedmann, duas revistas, Revue Marx,ste e Revue
de Psycho!ogie Concrete. ~ s ideais do projeto politzeriano encontra~ ~m meio de divulgação. N~ p~-
meíro número de fevereuo de 1929, da Revue de Psyc/10/og,e Concrete, fundada a título de expenenc1a
psicológica" ~r Georges Poli~z~r, encontra~se um lon~o artigo º:1de é possível identificar os efeitos de
sua adesão ao marxismo lerurusta do Part.tdo Comurusta , Frances. Fragmentos dos artigos de Politzer
foram editados em 1947 por J. Kanapa, publicado pela Edition Sociales com o título la Crise de la
Psyd,ologie Contemporaíne. Uma edição integral dos mesmos foram editad~s por_}acques ~ ebouzy e
podem ser encontrados em Écrits 2 - Les Fondements de la Psycholog1e1 Pans: Edít1ons Sociales, 1973.
(NRTI
.-
V CRÍTICA DOS FUNDM\ENTOS DA PSICOLOGIA -{r)
ge1n mais ou menos suspeita, como sensação, memória, vontade, caráter etc.,
é afirmar a necessidade de partir do que é verdadeiramente real, pois o compor-
tamento nada mais é que um corte no desenvolvimento contínuo da vida do
homem. Em resumo, Watson também quer partir do todo e reconstituir o con-
creto com o concreto, e não com o auxílio do abstrato.
Não é isso uma interpretação arbitrária do watsonismo. Watson dá-se
perfeitamente conta do caráter concreto da noção de behavior. Sabe-se o quan-
to insiste sobre a necessidade de considerar o organismo as a whole e de renun-
ciar aos cortes tradicionais da psicologia e da fisiologia. Ora, considerar o
homem as a whole, estudá-lo em suas evoluções concretas, isto é, nos seus com-
portamentos, aplicar esse ponto de vista sem fraquejar implica, qualquer que
seja a interpretação final do termo behavior, uma reforma completa do objeto
e das noções da psicologia clássica.
22. - Édesta maneira que se justifica a aproximação inesperada que faze-
mos entre o behaviorismo e a psicanálise. Os dois correspondem a uma revolta
contra a abstração, que é o caráter fundamental da psicologia clássica: são duas
tentativas para introduzir a análise concreta numa disciplina que só conhece
até aí devaneios abstratos. Além da biologia e da psiquiatria, a psicanálise e o
behaviorismo alcançam-se na aversão ao abstrato e no esforço para repartir
aquilo que, no plano particular de cada um, lhes parece ser a vida concreta do
homem.
Claro, o comportamento humano extrapola muito a noção watsoniana
de behavior. Não só porque este ainda não é o drama, e só pode ser o arcabouço
dele, mas porque a maneira como o drama é "estruturado" comporta todos os
graus, indo de um encenação inteiramente "realista" a uma relação tão afasta-
da, que não tem interesse nenhum.
De todo modo, aí está um problema fundamental: aprofundar a noção de
comportamento humano indica com precisão seu conteúdo e seus limites.
Ora, isso não poderá ser feito senão estudando o behaviorismo e suas diferen-
tes formas do ponto de vista da psicologia concreta. Esse estudo mostrará em
que medida o que não diz respeito imediatamente ao drama pode, todavia, ser
estudado do ponto de vista da psicologia concreta. Pois há certamente na psi-
cologia contemporânea, mesmo oficial, resultados que extrapolam o realismo
e a abstração - ainda que seja só na psicologia aplicada. Mas, para reconhecê-
los de maneira precisa, seria necessário retomar todo o conteúdo da psicologia
atual e examiná-lo a partir de um novo prisma. É precisamente para essa pes-

l92 Condusões
Ili..
quisa que o exame do que há de vivo e de morto no behaviorismo será de uma
importância capital.
Essa pesquisa mostrará se é oportuno, e em que direção, constituir um.a
psicologia geral, ao mesmo tempo em que os quadros e as noções que a orienta-
ção concreta desta supõe.
23. - Da mesma maneira que as nossas análises nos levaram a utilizar a
noção de comportamento, assim também a noção de significação e mesmo a de
forma tiveram, em nossas demonstrações, um papel fundamental. É o drama
que temos dado como objeto da psicologia concreta. Ora, o drama comporta
essencialmente as noções de significação e a de forma. Por isso mesmo a nossa
pesquisa orienta-se, por um lado, para a tentativa de Spranger e, por outro lado,
para a Gestalttheorie, em geral. Af também estamos diante de uma tendência
cuja inspiração é nitidamente concreta, mesmo que seja só pela introdução do
ponto de vista do sentido e pelo abandono da análise elementar.
Mas, significação e forma, tais como intervêm na psicologia concreta, não
têm o mesmo sentido em Spranger e entre os adeptos da Gestalttheorie e, por
outro lado, é preciso ir mais longe que o abandono puro e simples da análise
elementar, pois é preciso que esse abandono seja, ao mesmo tempo, a renúncia
..,à metapsicologia .
, . Em resup:10,J)ão.aprofunda_moJ_é!._q'E._~ ~l,dª a..de significação nem a d~
drama, nem chegamos a._determinar suas re!êções com precisão.. -Ora, são essas
as noções fundamentai~ da psiçologia concret a. para precisá-las, se~á ~~cessá~
estudar a Gestaltth~orie.
24. - Esses estudos deverão trazer mais um resultado que, embora não in-
teresse diretamente o futuro da psicologia concreta, interessa à crítica da pró-
pria psicologia clássica.
O estudo da psicanálise permitiu isolar um certo número de procedimen-
tos fundamentais da psicologia clássica. Ora, a fim de que a crítica possa escla-
recer tudo a respeito desta, é indispensável estabelecer a lista completa e a análise
"total" dos seus procedimentos. Desse ponto de vista, mais uma vez, o estudo
das duas tendências de que falamos há pouco é interessantíssimo. Pois, se cada
uma delas participa, em certa medida, do concreto, este mostra-se sob outros
aspectos, que não os da psicanálise. Podemos, portanto, descobrir procedimen-
tos clássicos que o estudo da psicanálise não revelou ou aprofundar sob novo
ponto de vista os procedimentos que já conhecemos. Essa expectativa é tanto
mais legítima que a Gestalttheorie, por exemplo, está baseada na crítica desse
procedimento clássico, que é a análise elementar. Tratar-se-á, então, de saber

CRÍTICA DOS FUNDM-\ENTOS DA PSICOLOGIA l'


rocedimento na hierarquia dos procedimentos dás.
ual é o lugar exato-desse p . lagia
. . - de uma ps1co . verda.
q. , suficiente para a const1tu1çao
sicos
. e se suaf negaçao
d e que nos dará 1 ao mesmo tempo, um instrumento .
detramente
. d . ecun . a dem
- O
para i·ulgar certas tendenc1as
,. •
da Cestalttheone..
crítico e pnmc1ra or . _
__ Portanto, a presente pesquisa levanta pro~leroas ~ue só p~erao ser
resolvidos nos estudos posteriores que temos anund ªdo na mtroduçao. Desde
25

já, uma coisa está certa: com a psicologia concreta, a ps~col~~1a ingressa n1:ma
nova via: oeswdo do homemconcreto. Mas essa preocupaçao soe nova em rel~5ão
aos psicólogos oficiais; na realidade, só representa a volta da_ psicologia para
esse desejo que é a fonte primeira da confiança da qual a própna psicologia ofi
oal viveu até agora. Esse desejo é o de conhecer o homem. ~ o ace1~a.Ilazer des-
se desejo um programa científico, a psicologia concreta sistematiza a grande
tradição concreta que alimentou sempre a literatura, a arte dramática e a cícn
eia dos sábios, no sentido prático da palavra. Mas a psicologia concreta, ainda.
que tendo o mesmo objeto. oferece mais que o teatro e a literatura:_oferece a
ciê11c1a. Eé assim que cl~ gQremos a uma psicologia que não é, como a psico!o-~
gia clássica, menos, mas mais que os ensinamentos das observações vulgares do
homem. l
26. - O desenvolvimento da psicologia reserva-nos, certamente, grandes
surpresas, pois a história de uma ciência não se adivi nha a priori. A psicanálise é
um começo e é preciso, agora que se fez luz a respeito da sua essência verdadei1a,
continuar as pesquisas situando-se num novo ponto de vista. Por outro lado. o
bet'.aviorismoe a Gestalttlteorie devem também reformar-se por completo; pode-
se dizer que, do ponto de vista técnico, tudo resta por fazer. Os progresso!> t&.
nicos influirão, certamente, na maneira de conceber os fu ndamentos. Mas o
cert~ é que~ não há ~sibilidade de volta. A psicologia nunca pooerá voltar ao
re.alismo e a abstraçao: o problema está lançado num terreno completament\.'
r~~-~unca poderá retornar_à psicologia f~si~lógica, nem à íntrospectiva. dois
oostacu.os barram-lhe o cammho o behav1onsmo e a psicanálise Numa f:ÃW
vr.a, ,e ;ua!q~ ~ue seJa a imprecisAo ~()S nossas fórrnulas tt'-<:ntrJ..~ e a rcsson5n
oa
1.... . ~ 6 da . 1das• fórmulas desse gencro·. a r1icttaps1co1og1
ce~grado·1e, ' d t110UCllt CQinCÇd a
tm t na p~;co.og,.a

tf
\

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