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UNIMEP
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PREFACIO
CONSIDERAÇÕFS SOBRE A ETERNA JUVENTUDE
DA PSICOLOGIA: O CASO DA PSICANÁUSE
*
ÜSMYR FARIA GABBI ]R.
Em 1947, cinco anos após Politzer ter sido executado pela Gestapo, Kana-
pa publica, sob o título de "La crise de la psychologie contemporaine", dois ar-
tigos do notável pensador húngaro, escritos em 1928 e 1929, nos dois únicos
números de Revue de Psychologie Concrete. 1 A justificativa para a nova edição é
2
claramente indicada: "desde 1929, a situação não mudou". Podemos comple-
tar, passados setenta anos: os nomes são outros, os vocabulários são diferentes,
mas os pressupostos centrais da chamada psicologia clássica, nome dado por Po-
litzer para designar aquilo que é comum a todas as psicologias existentes, per-
manecem os mesmos.
A Crítica dos Fundamentos da Psicologia, escrita em 1928, permanece uma
obra atual e só se tornará um monumento histórico quando seu objetivo final
for alcançado, ou seja, quando a psicologia, tal como a conhecemos, deixar de
existir. Politzer foi demasiadamente otimista quando acreditou que, "Daqui a
cinqüenta anos, a psicologia autenticamente oficial de hoje aparecerá como
aparecem agora a alquimia e as fabulações verbais da física peripatética. Brin-
car-se-á ainda com as fórmulas retumbantes pelas quais se iniciaram os psicó-
logos 'científicos' e com as penosas teorias a que chegaram; com esquemas
•. Do~tor em Psicologia pela ~niversi~ade de São P~ulo (USP); livre docente em Epistemologia pela
Uruvers1dade Estadual de Campmas (Urucamp), onde e professor no Depto. de Filosofia do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas. É autor do livro Frr.ud: racionalidade, sentido e refúênâa (Campinas: Cen-
tro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência - Unicamp, Coleção CLE, 1994).
1
POUTZER, G. La Crise de la Psychologie Contemporaine. J. Kanapa (org.). Paris: Éditions Sociales, 1947.
2
POUTZER, G. Op. cit., p. 10.
3
Crítica dos Fundamentos da Psicologia, p. 40.
4
~m •o~ va la psychologie concrete ?", o capítulo II da coletânea La Crise de la Psychologie Contunp~
rame, P~litzer obse_rva ironi~amente: "os mais abstratos psicólogos realizaram um 'retomo sobre ele!
mesmos e descobnram subitamente que, já há muito tempo, eram partidários da psicologia concreta
(p. 92).
;YIAP~CHE, J. LE~IAI~, S. "O Inconsciente: um estudo psicanalítico". 1966. ln: O biconsciente.
'Henn. Trad. Jose Batista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969, p. 111.
VI Premeio
cologias e que uma possível unidade só existiria enquanto especialidades de
uma mesma profissão, ou seja, a unidade da psicologia não seria teórica, porém
prática. 6 Entretanto, para quem pretende realizar uma crítica essencial dos fun-
damentos da psicologia, é vital assinalar a unidade profunda que existe por trás
da suposta diversidade e da eterna querela das escolas. Nesse sentido, deve-se
compreender, antes de mais nada, que a Crítica ... inicia-se pela apreciação de três
tipos de psicologia, aparentemente, muito diferentes: a teoria da Gestalt, o
behaviorismo e a psicanálise de Freud. Não se trata de propor um lubrido cons-
truído com pedaços retirados aqui ou acolá de cada um dos três tipos. Na ver-
dade, cada um deles, por razões diversas, já apresenta - ao lado de pressupostos
da psicologia clássica - indícios evidentes de que é viável a construção de uma
outra psicologia. 7
A teoria da Gestalt é valorizada porque refuta a crença de que o psicológico
é, em sua essência última, algo elementar. Em outras palavras, a psicologia clás-
sica conjetura - isto é, antes de iniciar qualquer investigação empírica - que
a forma última do psicológico seria atomística (P1). Esse atomismo é substitu-
ído na Gestalt pela crença de que o psíquico só pode ser entendido como tota-
lidade e não enquanto elementos distintos que são posteriormente associados.
Entretanto, subsiste na Gestalt a tese de que o psicológico é aprendido de for-
ma imediata pela percepção (P2).
O behaviorismo de Watson, apesar de também partir da assertiva de que
o fato psicológico é um dado perceptivo, é saudado porque denunciou o caráter mi-
tológico de outra tese muito cara à psicologia clássica: a presunção de que exis-
ta uma vida interior (P3). A tese da vida interior, o último refúgio do animismo-
pois eqüivale a acreditar que há seres dentro de nós que agem, têm intenções
e são dotados de vida própria -, leva necessariamente a dirigir a atenção do
psicólogo para processos internos que, não sendo de natureza fisiológica -
caso contrário seriam objeto da fisiologia e não da psicologia-, têm de ser
6 G. CANGUUHEM critica a proposta de Lagache de definir a psicologia como a ªteoria geral da con-
duta, síntese da psicologia experimental, da psicologia clínica, da psicanálise, da psicologia social e da etno-
logian dizendo que ªessa unidade assemelha-se mais a um pacto de coexistência pacífica acordado entre
profissionais do que a uma essência lógica, obtida pela revelação de uma constante em uma variedade de
casosn. ªOu'est-ce que la psychologien (1956). ln: Cahiers pour l'Analyse, 1/2, Paris: Seuil, 1966, p. 78.
7 É importante atentar para o fato de que Politzer não está procurando encontrar, para cada uma das
psicologias mencionadas, aquilo que lhes falta para transformá-las imediatamente em psicologia con-
creta. Bas são usadas para evidenciar os pressupostos da psicologia clássica. Nesse sentido, os seus equí-
vocos são tão ou mais importantes que seus acertos.
VIII Prefóóo
experiência na produção do conhecimento.11 A chamada revolução copernica-
na de Kant consistiu em acreditar, com o empirismo, que somos afetados pelos
objetos e que, todavia contra o empirismo, só podemos conhecê-los à medida
que impomos a eles certas condições a priori. Ora, a primeira proeza da psico-
logia clássica consiste em transformar, apesar de todas as advertências do pró-
prio filósofo, o sujeito do conhecimento em sujeito psicológico; em seguida, ela
o despoja de qualquer papel na produção do psíquico; finalmente, o fato psico-
lógico passa a ser estudado como se fosse algo em si, ou seja, algo totalmente
exterior a qualquer sujeito. Traduzindo para um vocabulário mais simples, a
psicologia clássica transforma o sujeito em observador do psíquico, isto é, em
um sujeito capaz de realizar introspeções. O sujeito, transformado agora em
psicólogo, relata observações sobre seus estados internos, que resultam de pro-
cessos em que ele não desempenha mais qualquer papel, ou seja, o psíquico não
é considerado como um produto seu, mas, por exemplo, como resultado da
aprendizagem, da memória, do aparelho perceptivo que são, por conseguinte,
investigados como objetos em si. 12
No entanto, não é apenas o último pressuposto que seria questionado
pela psicanálise. Contra P1, Freud parece sugerir que o fato psicológico não seja
elementar e só possa ser entendido como parte de uma trama - o sonho, por
conseguinte, seria apenas o indício de um certo estado de coisas e só poderia ser
compreendido quando colocado nesse quadro mais amplo. Tampouco o psí-
quico teria uma natureza imediata e perceptiva; ao contrário, ele seria apreen-
dido através de inúmeras mediações e suporia interpretações por parte do
analista. Em relação a P3, a coisa é um pouco mais delicada. Embora Politzer,
11 Ver o artigo "Politzer dans ses écrits", de VOUTSINAS, D. (in: Bulletin de Psychologie, 408, XLV, 16-
18, Paris, 1991-1992, p. 742); em especial, o terceiro parágrafo. Kant procurou mostrar o que tornava
possível a experiência em geral e quais as condições a priori que permitiam a constituição dos fenôme-
nos físicos, tais como descritos pela física de Newton, com o objetivo de demonstrar o que justificava de
jure ela ser vista de facto como uma ciência. Politzer parte da constatação da esterilidade da investigação
psicológica e interroga-se sobre quais seriam as condições a priori supostas pelos psicólogos para consti-
tuir a experiência psicológica. A seguir, trata-se de mostrar porque tais condições justificam de jure essa
esterilidade. Da mesma forma que Kant não exigia que Newton fosse um filósofo, Politzer não requer
que os psicólogos ou Freud sejam filósofos. Mas, independentemente de sua vontade, todos eles fazem
opções de natureza filosófica quando constroem seu campo de investigação. Ver Psychology and the Philo-
sophy of Science (TURNER, M.B. New York: Appleton-Century-Crofts, 1967) para constatar a ingenui-
dade de supor que seja possível constituir fatos na ausência de quaisquer pressupostos teóricos.
12 A psicologia clássica, segundo Politzer, transforma os acontecimentos vividos pelos homens em pro-
cessos que ocorrem no interior da mente - realismo -, processos em seguida substantivados - abstracier
nismo - e tratados como classes de fenômenos psíquicos em que se perde toda significação individual -
formalismo.
15 Essa metáfora _sobre a essência .especular de nossa mente é analisada em grande detalhe por
RORTY, R., em Ph1/osophy and the Mtrror o( Nawre . New Jersey: Princenton University Press, 1979.
X P1efócio
do psicólogo estaria terminado quando ele descrevesse os mecanismos que tornam
possível O funcionamento do espelho.
Os quatro pressupostos mencionados da psicologia clássica estão todos
presentes no modelo da mente como espelho. Os objetos do mundo desper-
tam sensações que, por sua vez, geram representações na mente. Assim, o fato
psicológico é dado de forma imediata pela percepção (PJ sob a forma de sensa-
ções elementares (P1) que produzem representações internas (PJ O estudo da
ps~cologia está voltado para os processos (P4) que permitem ao agente consti-
tuir uma imagem do mundo. Uma forma interessante de descrever os equívo-
cos da psicologia clássica é presumir que ela tenha: (1) transformado a
observação de Kant, perfeitamente legítima no contexto de uma teoria do Co-
nhecimento (''Todos os nossos juízos são inicialmente apenas juízos percepti-
vos: eles têm validade apenas para nós, ou seja, para nossa subjetividade, e
somente mais tarde nós lhes damos uma nova referência, referência a um ob-
jeto, e queremos que eles sejam válidos para nós em todos os momentos e
igualmente para todas as outras pessoas ... "16), em um enunciado empírico so-
bre a gênese do próprio fato psicológico e (2) desconsiderado do enunciado de
Kant toda referência ao sujeito para reter apenas a referência ao objeto. A con-
seqüência do segundo equívoco eqüivale, em termos kantianos, a retornar a
uma teoria do conhecimento empirista, ou seja, à crença problemática de que
seria possível conhecimento sem qualquer contribuição por parte do sujeito.
Essa química da mente - a forma pela qual essas teses aparecem na história da
filosofia de uma maneira muito mais sofisticada do que aquela desenvolvida
pela psicologia clássica - pode ser estudada apropriadamente na obra de Stuart
Mill.17
16
KANT. I. (1783). "Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik, die als Wissenschaft wird
auftreten kõnen". ln: Werkausgabe, Band V. WEISCHEDEL, Wilhelm (org.). Frankfurt: Suhrkamp,
1968, p. 163.
17
Uma descrição adequada do programa de Mill para a psicologia empírica encontra-se em Psychologi-
cal Analysis and the Phi/osophy o{ John Stuart Mil/. WILSON, F. Toronto: University of Toronto Press,
1990.
18 Michel Foucault ob~erva que "a psicanálise nunca chegou a fazer as imagens falarem" (lntroduc-
tion, 1954. ln: Dtis et Ecríts, I. DEFERT, D. & EWAI.D, F. - org. Paris: Gallimard, 1994, p. 73) . No
entanto, acreditamos que Freud tampouco deixa a linguagem falar: ele considera as palavras, da mesma
forma que as imagens, como meros índices do pensamento.
19 Politzer esclarece a noção de drama por ele utilizada : ''Tornamos o termo 'drama' na sua acepção
mais inexpressiva, descolorida ao máximo de todo sentimento e de toda sentimentalismo; na acepção
que ele pode ter para um encenador; em resumo, na sua acepção cênica. O teatro deve imitar a vida?
A psicologia, para escapar de uma tradição milenar e para retomar à vida, talvez deva imitar o teatro"
(Bulletin de Psychologíe, p. 794).
20 A única razão de mencionar Wittgenstein foi indicar que a crítica feita por Politzer à psicologia
clássica pode ser realizada a partir de outros horizontes filosóficos que não passam por Hursserl, Hegel
ou Heidegger. Por exemplo, no final de Phtlosophical Jnvestigations (1953), Wittgenstein escreve: "A con-
fusão e a esterilidade da psicologia não devem ser explicadas qualificando-a de 'ciência jovem'; seu
estado não é comparável, por exemplo, com o da física nos seus primórdios. [... ] Pois na psicologia há
métodos experimentais e confusão conceituai" (trad. G.E.M. Anscombe. Oxford: Blackwell, 1972, p. 232).
XII Premeio
psicanálise, acredita que, apesar de uma série de equívocos, Freud foi capaz de
propiciar algumas interessantes explicações estéticas. 21 Para o primeiro, mais
uma vez, a inspiração é kantiana: quem sabe, abandonando essa pretensão alu-
c~ada de fazer uma ciência da coisa em si, 22 se os psicólogos não pcxierão contri-
buir para a construção de um saber empírico sobre as atividades concretas de
homens concretos, cooperando, dessa forma, para a constituição de uma antro-
pologia. Para entender o novo mcxielo, é interessante apreciar como ele substitui
cada um dos pressupostos da psicologia clássica por novos pressupostos que efe-
tivamente constituem um programa viável de investigação empírica.
Contra P1, a experiência prática dos homens23 ensinou que o fato psicológico
não é elementar. Sempre que vamos ao teatro e assistimos a uma peça constata-
mos que o conteúdo dramático não pode ser dissolvido em conteúdos elementa-
res. Cada cena revela um fragmento do conteúdo dramático, que só adquire o seu
pleno sentido quando conseguimos inseri-lo na trama tecida progressivamente
diante de nossos olhos. Por conseguinte, Politzer acredita que os ªfatos psico-
lógicos deverão ser os segmentos da vida do indivíduo particular". 24
Tampouco devemos manter P2• O fato psicológico, concebido a partir da
metáfora do teatro, não é um dado; ao contrário, é construído e supõe sempre
um ato interpretativo por parte do psicólogo concreto: ªSeu método não será,
portanto, um método de observação pura e simples, mas um método de inter-
pretação. "25
21
Wittgenstein, segundo notas de Rush Rhees (1946), comenta sobre o tipo de explicação que Freud
fornece em Traumdeutung: "Você poderia começar com qualquer um dos objetos desta mesa - que evi-
dentemente não foram postos aqui por via de sua atividade onírica - e comprovar que todos eles pode-
riam estar correlacionados numa configuração assim; e a configuração seria igualmente lógica" (Esté-
tica, Psicologia e Religião, trad. José Paulo Paes. São Paulo: Editora Cultrix, 1970, p. 87). Em outros ter-
mos, as supostas explicações de Freud apenas fornecem formas de apresentação; ele é incapaz de prever
as configurações efetivas, como ocorreria caso as explicações fossem realmente científicas.
22 Se o leitor acha que Politzer exagera na sua crítica de que a psicologia procura realizar a impossível
tarefa de fazer a ciência da coisa em si, basta recordar a seguinte passagem de Freud em "Das
Unbewubte": "Mas com satisfação aprenderemos que a correção da percepção interna não oferece difi-
culdades tão grandes como a externa, que os objetos internos são menos incognoscíveis que os do
mundo externo" (in: Studienausgabe, Band lll. Frankfurt: S. Fischer, 1915, p. 130). O principal equívoco
da psicologia clássica, conforme já deve ter ficado patente, é transformar questões conceituais em ques-
tões empíricas.
23 Politzer acredita que a psicologia clássica seja mitológica. Para ele: "os produtos da tradição dramá-
26 Em Crítica ... , encontramos, por exemplo: "o inconsciente só representa na psicanálise a medida da
abstração que sobrevive no interior da psicologia concreta" ou "o inconsciente é inseparável dos procedimen-
tos fundamentais da psicologia abstrata e que, longe de constituir, na psicanálise, um progresso, indica
precisamente uma regressão: o abandono da inspiração concreta e a volta aos procedimentos clássi-
cos". pp. 131 e 153, respectivamente.
27
Crítica..., p. 103.
XIV Premeio
dinâmico, uma vez que a psicanálise "funda a existência autônoma do incons-
ciente [•••] nos fenômenos do recalque da resistência em última análise, na
noção de conflito, nessa dialética à qual' apela Politzer 'aqui, mas em vão, por-
que ele eliminou a distinção dos planos que lhe permitiria funcionar". 28
Iniciamos pelo final da réplica de Laplanche: o conflito é essencial para ca-
racterizar a descoberta psicanalítica, contudo só se pode expressá-lo pela distin-
ção entre dois planos; traduzindo: pela oposição entre dois sistemas - pré-
consciente e inconsciente. Em outras palavras, é preciso recorrer à idéia de in-
terioridade, caso se deseje exprimir o conflito psíquico. Ora, se nos voltarmos
para a metáfora do teatro, seremos obrigados a dizer que o conflito é sempre um
conflito que se expressa em primeira pessoa. Com essa observação queremos
dizer que os atos que nos levam a suspeitar do conflito - Politzer abomina a
idéia de que o agente seja seu próprio psicólogo - são sempre atos do indiví-
duo X e não de algo que age no interior de X. Se o agente, ao sonhar, identifica-
se com Y, W, Z, é ainda o agente que se identifica e não algo no seu interior. A
pluralidade de vozes que indivíduo X pode carregar consigo não deve ser toma-
da como o caminho real para achar que algo no seu interior padece de polifonia
aguda. Portanto, a observação de Laplanche "quando 'ça fala' no inconsciente,
encontra-se bem a unidade dramática cara a Politzer"29 é falsa, pois o que está
sendo questionada é a existência justamente de um "ça que fala" e ainda mais
no inconsciente! É exatamente esse tipo de consideração que Politzer chama
de abstração, ou seja, a substituição de atos do indivíduo por processos descritos
em terceira pessoa.
Outra maneira usual de reduzir o impacto da Crítica ... é vinculá-la, sem
atentar para sua especificidade, a uma determinada tradição filosófica; no caso
mais freqüente, à fenomenologia, uma vez que Politzer endossa a tese da ima-
nência do sentido. 30 Todavia, um dos seus exemplos contra o realismo do in-
consciente é considerar que as regras do jogo de tênis estão presentes durante
28
WIANCHE, J. & LECIAIRE, S. Op. cit., p. 116, nota 3.
29
lbid., p. 113.
30
As obseivações de alguns autores sobre a influência da fenomenologia sobre Politzer são no mínimo
curiosas. Por exemplo, Laplanche observa que: "A esse realismo da significação, Politzer opõe uma teo-
ria da imanência do sentido que, se não empresta seus elementos da doutrina fenomenológica, poderia
perfeitamente ser reivindicada por ela" (lbid., p. 114); Bento Prado constata que: "O vocabulário téc-
nico da fenomenologia husserliana não está presente na CFP (assim como não encontrei nenhuma
referência a Hursserl nos escritos de Politzer, no entanto tão familiarizado com a literatura teórica
alemã), mas um certo estilo fenomenológico parece impregnar todo o seu ensaio". ("Sessenta anos da
Crítica dos Fundamentos da Psicologia". ln: Filosofia da Psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 16).
XVI Prefácio
Politzer denominaria o realismo da psicologia clássica. Entretanto, Laplanche faz
uma distinção muito interessante entre a "atitude de tradução simultânea" e a
"atitude de atenção aos fenômenos lacunosos". 34 Sem considerar o papel que a
distinção é chamada a desempenhar na economia de sua comunicação, ela
pode ser entendida como estando baseada em duas metáforas muito distintas,
usadas por Freud para caracterizar a relação entre conteúdo manifesto e con-
teúdo latente.
A primeira atitude poderia estar apoiada na analogia dos dois conteúdos
com dois textos escritos em línguas distintas ou com duas versões de um mes-
35
mo texto. Sem dúvida ela é bastante inexata porque a idéia de tradução sem-
pre implica crer que se possa ir livremente de uma língua ou de uma versão
para outra e vice-versa. Mas se Freud descreve como o trabalho da análise des-
faz o trabalho do sonho - isto é, como o primeiro trabalho permite que se re-
cupere o conteúdo latente a partir do manifesto-, a passagem do latente para
o manifesto é, para dizer o mínimo, bastante misteriosa. No entanto, essa me-
táfora é proposta porque ela exprime a crença de que a referência última dos dois con-
teúdos seja a mesma. Por conseguinte, contra Laplanche, seria muito difícil
acreditar que Politzer de alguma maneira recorreria à metáfora da tradução.
Para este, simplesmente não há o que traduzir porque não há nada oculto ou en-
coberto. Acreditar na existência do conflito ou que existiria algo de misterioso
no homem36 não acarreta crer que, enquanto o indivíduo não se dá conta da sua
existência, o conflito estaria em uma outra dimensão. Em outros termos, o
conflito é simultâneo à produção do sentido.
A segunda atitude parece encontrar sua justificativa na metáfora da cen-
sura russa de jornais estrangeiros na fronteira. 37 Ela é privilegiada por Laplanche
34
Ibid., p. 117.
3.5 "Pensamentos e conteúdo do sonho presentificam-se para nós como duas apresentações do mesmo
conteúdo em duas línguas distintas __ou, expressando de uma forma melhor, o conteúdo do sonho apa-
rece para nós como uma versão (Ubertragung) dos pensamentos do sonho em uma outra forma de
expressão cujos caracteres e leis de ligação devemos tomar conhecimento através da comparação entre
o original e a tradução." Traumdeutung, p. 283.
36 Quando se afasta o postulado da convencionalidade do signi(,cado deve-se estar preparado para os misté-
rios que o sentido reserva para nós. Contudo, essa possibilidade sempre renovada de significar não deve
ser usada para procurar "responder a todas as perguntas que o drama faz e que levam necessariamente
à vida interior." Crítica... , p. 189.
37 "Essa censura comporta-se de maneira bastante análoga à censura russa de jornais na fronteira que
permite que os jornais estrangeiros cheguem às mãos dos leitores a proteger somente se recobertos de
traços negros." Traumdeutung, p. 534.
XVIII Prefácio
de v~as obje~ões por_ parte ~o analisando - e Politzer parece endossar ambas
- sen~os, ~da assun, obngados a aceitar, com 1.aplanche, a defesa do realis-
mo do inconsciente? Antes de responder ev!ln-.;... .,. · · d
O ali d , ~ .u.u.u.emos a expenencia mais e
°
perto. an san conta um sonho. Ele não apreende imediatamente o senti-
do do relato do sonho e reluta em aceitar algumas po ·bili"dad
d ,. ssi es que se apresen-
tam n~ curso a ~~e:
A partir de algumas indagações e de referências a outras
narrativas, sentido tntetal sofre uma expansão progressiva. Para que se possa man-
0
ter a crença de ~ue a ~nálise esteja desfaze,ndo a censura, ou seja, removendo as li-
nhas negras, e preciso supor efetivamente a realidade anterior tanto do
conteúdo latente quanto da censura. Assim, diz-se que a análise desfez o traba-
lho do sonho. Uma outra metáfora de Freud-comparando os elementos do
sonho a um quebra-cabeças-, 4° presume igualmente que só exista uma dispo-
sição adequada para as peças e anterior à sua montagem efetiva. Portanto, a teo-
ria inverte a relação temporal entre conteúdo manifésto e latente tal como ela é dada
pela experiência e imagina que a resistência atual é repetição de uma censura ante-
rior. Justamente porque Freud não consegue livrar-se de P5, ele é levado a dizer
que a análise não produziu um sentido inicialmente ausente, porém a defender
que o sentido existia e fora reprimido. Se, ao contrário, acreditarmos, contra P5,
que o sentido é aberto, a metáfora mais adequada seria a do calidoscópio, ou se-
ja, há infinitos sentidos possíveis, embora nem todos sejam igualmente interes-
santes ou significativos. Como, contra P1, não aceitamos que o fato psicológico
seja elementar, podemos perfeitamente presumir que, no curso da interpreta-
ção, algumas possibilidades de sentido não sejam imediatamente aceitas pelo
agente. Contra isso, Laplanche objeta que não se saberia qual desses sentidos é
41
0 sentido verdadeiro. Tal réplica só teria sentido no quadro de uma teoria que,
mesmo recorrendo a um novo vocabulário, à lingüística, a uma estranha álgebra
40
Traumdeutung, p. 284.
41 IAPIANCHE, J. & LECIAIRE, S. Op. cit., p. 117. Também poderia ser objetado contra. nossas
observações sobre a crença de Freud em P5 que elas desconsideram a tese de qu~ o sonho tena_ uma
· - mu'lt"1pla . No entanto, basta recordar que . mesmo antes. do apareomento 1
detenrunaçao da alidad
noçao ded
de - t
con nsaçao a ese, J •· 'á p"esente em Breuer ' de que um sintoma
1 podena
· remeter a uma p
· ur · e e
. ·
cenas dIStmtas - ocultava
nao . a crença
• de que em todas ,. e as estana
ha · presente o mesmo
· d mvanante,
d no
-
de B do hipno, 1·de Para Freud a ideia de que vena um mecanISmo e con ensaçao
caso reuer o esta · · ' b · d da ·da
no sonho tam '· uco un · pede a tese m"ior de que "Os sonhos são um pedaço so repuJa o , . men-
VI
un
cu
·
tal m t fan (,)'° ···-'
i raumaeu1ung,
PP • 572-573)
· , ou se1·a 1
os relatos de
, •
sonho remetem sempre
e1 f d anal · sen-
a um uruco d
t1.do.. o deseio· infantil·, tese que 1·á deveria_ ter ficado exphata • com566)o uso que e az a agia o
desejo infantil com o capitalista na produçao do sonho (op. Ctt., P· ·
42
lbid., pp. 137-145.
43
Traumdeutung, p. 510.
:"""'°'
~e os buracos não existissem, o queijo, no fundo não
44 ,
a tentativa frustrada de prepará-lo. '
. .
sena constderado um queijo suíço; no
. F~eud conserva a essência do método catártico· "d .
d1en uber Hysterie. ln: Gesammelte Werke Band I F fuar a p~vra ao estado afetivo" (FREUD S. Stu-
nk.
XX Preiício
em sua grande parte~ e~ três textos publicados anteriormente por Freud: Zur
Auffassung ~er Apha~ten, Ouelques considérations pour une étude comparative
des paralysies motnces organiques et hystériques" e o quarto capítulo de Studi-
en über Hysterie, "Zur Psychotherapie der Hysterie".47
Em Zur Auffassung, Freud propõe um modelo para a linguagem que está
baseado em duas noções básicas - representação de palavra e representação
de objeto, inspiradas na química mental de Stuart Mill.48 No segundo texto,
publicado originalmente em francês, apesar da presença de indícios que indi-
cam a influência do texto sobre a afasia, Freud diferencia a paralisia orgânica
- por exemplo da mão - da paralisia histérica, dizendo que a área afetada no
caso da segunda está dada pela linguagem natural e não pela anatomia. 49 Em ou-
tros termos, tudo se passa na paralisia histérica como se a representação de
objeto - uma representação complexa, indefinidamente aberta e organizada
pela imagem visual - tivesse sido formada a partir da representação da pala-
vra, uma representação complexa, fechada e organizada pela imagem acústi-
ca. Esses dois modelos, que podemos chamar respectivamente de quimismo
mental e subjetividade compartilhada, aparecem de novo em "Zur Psychothera-
pie der Hysterie" sob a forma de uma proposta para uma teoria da represen-
tação50 e do pressuposto da expectativa de normalidade. 51 Em "Entwurf..." -
uma tentativa de construir uma teoria da mente que atenda a todos os pres-
supostos examinados até aqui da psicologia clássica-, está presente igual-
mente o modelo da subjetividade compartilhada: o grito da criança que expressa
dor ou fome adquire uma função descritiva depois que a pessoa que auxilia a
47 FREUD, S. Zur Auffassung der Aphasien. Leipzig und Wien: Deuticke, 1891; "Ouelques considérations
pour une étude comparative des paralysies motrices organiques et hystériques". ln: Gesammelte Werke,
Band 1. Frankfurt: S. Fischer, 1977.
48
Zur Auffassung... , p. 80.
49
"Ouelques ... "1 pp. 50-51.
50 "Prossigo nessa última parte da apresentação com a expe~tativa de que as car~c~e~ticas psíquicas
reveladas aqui possam ter um dia certo valor enquanto matenal tosco para uma dinarruca da represen-
tação." (Studien ..., p. 290).
51 "Quando as ligações de representação dos neuróticos e, em especial, dos histéricos dão uma outra
impressão, quando aqui a relação das intensidades de di~erentes representaçõe~ parece inexplicável ape-
nas a partir de condições psicológicas, travamos conhecunento, no entanto, 1ustamente com a razão
dessa aparência e sabemos atribuí-la à existência de motivos ocultos, _inconscientes" (St'!"ien ... , p. 298~.
Essa última citação é importante porque revela que Freud procura vmcular a expectativa de normali-
dade - a expectativa de que as pessoas comportam-se sempre de acordo com certos parâmetros sociais -,
com uma teoria representativa da mente.
52 "Entwu~---~, pp. 456-457. Sílvia_Faustino assinala: "Exteriorizar é um ato de sair de si e não de vol-
tar-se pa;a s1; e um ato _que ~usca ~teraçã~, e não auto-reflexão ou auto-reconhecimento. Por isso seu
modelo e o de um ato lffie~iato, pre-refleXIvo e pré-cognitivo: ao gritar, o sujeito não reflete sobre si
mesmo; nem se conhece a s1 mesmo, mas tão-somente exterioriza-se para que O outro _ este sim _ 0
conheça e conheça o seu estado". Freud tenta conciliar os dois modelos pela suposição de que são as
outras ~ssoas que descobrem que al~o está errado no plano da minha vida interna. Assim, ele conse-
~e realizar a fa~nha de manter o m1to da vida interior ao mesmo tempo que desqualifica a intros c-
çapo enq~to via de acesso a essa suposta interioridade." (Wittgenstein _ O eu e sua gramática ~o
au1o: At1ca1 1995, p. 65). ·
53
Na metáfora do teatro a relação é ternária e nao
- bºmana:
' · estao
- presentes o espectador o ator e a fala
do ator. ,
54
RICCEUR, P. De l'Interprétation. Paris: Seuil, 1965, p. 75.
XXII Prefócio
ca da psicanálise, quando, na verdade, aponta para o modelo do quimismo men-
tal, enquanto os termos hermenêuticos - interpretação, sentido, símbolo
etc. - , que seriam o indício da face hermenêutica, traem a presença do mo-
delo da subjetividade compartilhada. A leitura de Politzer, a mãe de todas essas
leituras, é possível não porque os seis capítulos iniciais de Traumdeutung des-
crevam a experiência analítica e o último tente constrangê-la a entrar na ca-
misa de força da psicologia clássica, mas porque efetivamente Freud mistura os
dois modelos durante toda essa obra e em seus numerosos escritos de uma for-
ma bem menos visível do que aquela que a minha observação sobre Ricreur
possa ter sugerido. Como efetivamente, na análise de um sonho, parece pre-
valecer o modelo da subjetividade compartilhada, é natural que se acredite que
apenas no sétimo capítulo o modelo do quimismo mental faça a sua aparição.
No entanto, uma leitura atenta encontrará fragmentos dos dois modelos ao
longo de Traumdeutung.
A polêmica entre Laplanche - o inconsciente é a condição da linguagem
- e Lacan - o inconsciente organiza-se como uma linguagem - presente na
homenagem de Bonneval, é a sua tradução empobrecida, porque ignora a natu-
reza metafísica do debate entre os dois modelos descritos acima. 55 Todavia, é
uma boa oportunidade para mostrar como Lacan tentou construir uma psica-
nálise que abrisse mão da crença na vida interior.
55
Sobre o elevado nfw./ que presidiu a polêmica entre os dois psicanalistas, ver ROUDINESCO, E. (1986) .
Hist6ria da PsiumA/ise na Fra11ça, vol. 2, trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1988, pp. 33-,-338.
Enquanto ROUDINESCO, E. (1993) obsCNa que: •sem citar o nome de Georges Politzer, [LacanJ
inspirava-se nos trabalhos dele sobre a psicologia concreta e especialmente em Úl Critique des Fondemems
de la Psycho/ogk, publicada em 1928" Uacques Lacan, trad. Paulo Neves. Rio de Janeiro: Zahar 1994
56
p. 60), MACEY, D. as,inala, "A &ase 'em direção ao conmto' sintetiza muitas das preocupações de=,;
geração revo!ta contra um 'm~ndo _de polidez filosófica', mas em termos da evolução teórica de
Lacan a psicologia co~creta1 de_Politzer o marco essencial" (Lacan in Contexts. London: Verso, 1988, p.
100). Chamam~s de sem muito recato essa apropriação que ignora a regra que reza que as fontes
devem ser mencionadas.
57
IACAN, J. De la Psychose Paranoiaque dans ses Rapports avec la Personalité. Paris: Seuil, 1975, p. 44.
58 Jbid., p. 311.
59 Ibid. , p. 310.
ro Jbid., pp. 313-314.
61 Ibid. , p. 326.
'!XIV Preikio
Ern 1936, no congresso de Marinbad, lacan apresentou uma comuruca- .
. o intitulada "Le stade du miroir. Théorie d'un moment structurant et ge'né-
ça s . . dlaéali
tique de la con ututi~n : r -~é, ~onçu en relation avec l'expérience et la
doctrine psychanalytique · Este pnmeiro esboço do estágio do espelho perdeu-
e· no entanto, parte de seu conteúdo pode ser recuperado através do exame de
s' . p 1
ensaios postenores. or ~xemp o, em "Au-delà de 'Príncipe de Réalité"', escrito
logo após o_congres~o,_ainda e~ 193_6, lacan critica o associacionismo e procu-
ra ern seguida redefinir a noçao de imagem. Esta não deve mais ser entendida
corno sensação elementar, enfraquecida, como se fosse um estranho habitante
da mente. A noção é usada para designar um tipo de organização. Freud é elo-
giado por ter reconhecido que "uma vez que a maior parte dos fenômenos psí-
quicos no homem refere-se aparentemente a uma função de relação social, não
há lugar por isso mesmo para excluir a via que fornece o mais comum dos aces-
sos: a saber, o testemunho do próprio sujeito desses fenômenos". 62 Adiante, ele
acrescenta: "Mas o psicanalista, para não separar a experiência da linguagem
da situação que ela implica, aquela de interlocutor, refere-se ao fato simples de
que a linguagem antes de significar algo, significa para alguém. "63 Dizendo de
outra maneira, em Freud não estaria presente o modelo do quimismo mental,
somente o modelo que denominamos de subjetividade compartilhada, em que
0 papel do sujeito é ressaltado. No verbete La famille, de 1938, essas considera-
62
lACAN, J. Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 81.
63
lbid., p. 82.
64
"Para mostrar a psicologia concreta em ação, devemos salientar o caráter verdadeiro de um certo
número de novas noções que Freud foi levado a introduzir em conseqüência da análise dos sonhos e
das neuroses, e que desempenham um papel prepond~rante nas explicações técnicas. Consideraremos,
essencialmente, duas: a identificação e o complexo de Edipo." Crítica ..., p. 175. ·
65
lACAN, J. Op. cit., p. 52.
66 lbid., p. 161.
67 Ele refere-se aos fenômenos elementares da psicose paranóica.
li8 IACAN, J. Op. cit., p. 183.
e, Ibid., p. 110.
70 Jbid., p. 118.
71
lbid., p. 97.
XXVI Premo
De forma surpreendente, o termo inconsciente reaparece em "Fonction et
champ de la parole et du langage en psychanalyse", o famoso discurso de Ro-
ma, em 1953. O que aconteceu? A título de sugestão, uma vez que uma de-
monstração detalhada ultrapassaria em muito nossos objetivos, a resposta
parece estar no sentido que Lacan conferiu72 ao prefácio escrito por Lévi-
Strauss para Sociologie et Anthropologie de Marcel Maus, publicado no segundo
trimestre de 1950.73 A noção de inconsciente aparece no seguinte contexto:
"Essa dificuldade74 seria insuperável, dado que as subjetividades são, por hipó-
tese, incomparáveis e incomunicáveis, se a oposição entre o eu (mot) e o outro
não pudesse ser superada em uma esfera, em que também se reencontram o
subjetivo e o objetivo, queremos dizer o inconsciente. Com efeito, de um lado,
as leis da atividade inconsciente estão sempre fora da apreensão subjetiva (pode-
mos ter consciência delas, porém como objeto); e de outro, entretanto, são elas
que determinam as modalidades dessa apreensão."75 E um pouco mais adiante:
"Como a linguagem, o social é uma realidade autônoma (aliás, a mesma); os
símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam, o significante precede e
determina o significado. "76
Lévi-Strauss criou, dessa maneira, as condições que permitiram a Lacan
reintroduzir na sua versão da psicanálise a noção de inconsciente. Este deixava
de ser um termo que designava uma realidade interior para designar apenas a
relação entre subjetividades. A famosa fórmula o inconsciente organiza-se como
uma linguagem indica tão-somente que, apesar de o sujeito estar sempre presen-
te nos seus atos - a psicanálise pode, por conseguinte, ser construída agora como
uma psicologia em primeira pessoa - como uma psicologia concreta -, ele pode ig-
norar o sentido de suas produções, dado que elas são anteriores à própria reali-
77 "Le semmai.re
, . . sur 1La Lettre volée'" primeiro ensaio dos É .151 .
mostrar
• a viabilidade de uma psica• que abre da mao "! dpode'dser· lido
_ do m1to · como a tentativa de
ou nao novas mitologias escapa totalmente ao esco da . a v1 mtenor. Se l..acan introduz
nes etc.
Jóair'
tamente teria ótimos adjetivos para referir-se à d present~ mtroduçao. No entanto, Politzer cer-
-cr a o mconsc1ente, aos matemas, aos nós borromea-
m'I li Prefácio
1
. .
Preâmbulo
33
;-:.;t~">
Introdução 37
1 As descobertas psicológicas
na psicanálise eaorientação
para oconcreto 53
B Aintrospeção clássica eo
método psicanalítico 83
B Oarcabouço teórico da
psicanálise eas sobrevivências
da abstração 103
li Ahipótese do inconsciente
eapsicologia concreta 131
· Conclusões - As virtudes da
psicologia concreta eos problemas que levanta 181
......···················································· .................................
PREÂMBUlO
Este trab~o não é uma ex?osição. Não busca apresentar a psicanálise de
neira dogmatica, na sua totalidade ou numa das suas partes mas refletir so-
rna . '
bre ela, a partir da perspect1va em que nos situamos. Supondo, por parte do lei-
tor, conhecimento da psicanálise, deixamos de lado tudo O que é apenas
articulação técnica ou simples questão de fato, quando nada vimos de signifi-
cativo segundo nosso ponto de vista. Isso explica por que certos aspectos da
psicanálise, tal co~o a se:ualidade, que devem figurar em primeiro plano nas
expasições dogmaucas, nao aparecem neste trabalho.
Tampouco somos partidários do método que consiste em justificar os
"mas" e os "se" por citações apropriadas. Se citamos menos do que se faz habi-
tualmente em obras como a nossa, é porque a exatidão de nossa interpretação
só pode ser verificada por uma reflexão pessoal. Da mesma forma, renuncia-
mos à concepção que inspira a maioria das obras filosóficas francesas, que con-
siste em supor um leitor totalmente passivo, para não dizer estúpido, ao qual
é preciso apresentar as coisas bem mastigadas, para dispensá-lo de todo esforço
de reflexão pessoal.
Tal método é superficial e só oferece falsa clareza. Dificuldade e obscuri-
dade, clareza e facilidade não são sinônimos. Devendo a precisão da idéia bas-
tar-se a si mesma, as explanações que só se destinam a poupar o leitor do
esforço são completamente inúteis, além de absolutamente desinteressantes
para o próprio autor.
Eis por que omitimos quase tudo o que não é posição e desenvolvimento
das idéias em si. Após ter dito uma vez, do modo mais claro possível, em que
sentido censuramos os psicólogos clássicos, por considerar os fatos psicológicos
como "coisas", omitimos comparar a significação que essa censura tem para
nós com a que tem para Bergson. Sabemos, de longe, não ser o único a empre-
gar o termo "concreto", mas o sentido que ele tem em nosso texto deve preca-
~er contra qualquer confusão, embora não tenhamos examinado todas as suas
significações. Tampouco analisamos uma a uma as diversas definições do fato
1 Trata-se do projeto de construção da psicologia concreta. Os outros tomos anunciados (ver nota 9)
não foram escritos. A adesão de Politzer ao Partido Comunista Francês, um ano após a publicação do
presente ensaio, levou-0 a abandonar esse projeto. Os tomos I (Psicanálise), II (Gestalttheorie) e III
(Behaviorismo) projetados para Matériaux pour la Critique sur les FoHdements de la Psychologie deveriam
compor uma obra maior, que também não foi escrita: Essai Crítique sur les FoHdements de la Psychologie.
(Nota do revisor técnico - NRT)
:âl Preômbu~
De rnodo geral, não nos interessa
. t - saber
" ..em que medida as reflexões con-
te volume ou nos segum es sao onginais". Se levantamos essa ques-
tidas,
,. o enes_
unicamente para
- l poder
, . esclarecer- mais um ponto. Dos cotejos que se
ta alguns serao eg1t1mos, mas nao nos esqueçamos do seguinte: para
fiiere!Il~a-se essencialmente de apresentar os problemas de tal maneira que a
nós,
d tra_ sem nunca poder voltar a. essa
. cussao,
15 d psicologia que não deve . mais1existir
O
_ ara historiador, possa partir e uma nova base e segwr um p ano re-
sena~~- Se nossas fórmulas se_encontrarem em_ outros, ou se futuram:nte se
nova inadequadas, isso nao pode ter, COllSJ.derando a nossa pOS1çao, 1m-
portanc1a alguma, pois não se trata, no momento, de fórmulas, mas de uma
revel~re:11
0 ne
. ntação nova.
G.P.
2 Politzer assinala em itálico, ao longo do texto, palavras, conceitos, frases, sentenças e parágrafos. Tal
recurso enfatiza pontos essenciais de sua escrita, demarcando o estilo do autor. 8isabeth Roudinesco
obseivou: "Politzer é não somente um autêntico leitor de Freud, como tem a envergadura de um
grande teórico. Sob sua pena, a língua francesa possui urna verve e urna fineza incomparáveis. Esse
húngaro não respeita nada, nem as celebridades, a quem trata de vasos de porcelana, nem a famosa
'inteligência francesa', cujo ridículo fustiga com toda força." ln: História da Psicm1álise na França - A
batalha dos cem anos - v. 2: 1925-1985. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 76.
(NRT)
• lntroduçoo
renascer as grande~ e~peranças combalidas, mas aí só viceja a tensão e adis-
tensão de um dese1_0 unpotente, porque quimérico, e ao mesmo tempo, após
cada período de agitação "objetivista", reaparece o monstro vingativo da in-
trospecção.
4. - I.Dnge de representar um novo triunfo do espírito científico, o adven-
to da psicologia "experimental" não passava de humilhação. Em vez de se dei-
xar renovar por esse espírito e de o servir, tratava-se de utilizá-lo para dar nova
vida a velhas tradições que não a tinham mais e para as quais ele era a última
chance de sobrevivência. Isso explica o fato, hoje reconhecido, de que todas as
psicologias "científicas" que se sucederam desde Wundt não passam de disfar-
ces da psicologia clássica. A diversidade de tendências só representa os sucessi-
vos renascimentos dessa ilusão que consiste em crer que a ciência pode salvar
a escolástica. Pois, em todos os fatos, fisiológicos ou biológicos, de que se apos-
saram, os psicólogos só procuraram isso. É também o que explica a impotência
do método científico nas mãos dos psicólogos.
5. - Vistos a partir da seriedade com que concebem o método científico,
os cientistas formam uma verdadeira hierarquia. Por ser o mundo da quantifi-
cação o mundo próprio dos matemáticos, movem-se nele com naturalidade e
são os únicos a não transformar seu rigor em desfile. O uso que os físicos fazem
das matemáticas, algumas vezes, já se ressente do fato de elas representarem
para eles apenas um traje de aluguel; a pura envergadura dos matemáticos
pode ser-lhes inacessível e eles são freqüentemente bitolados. Mas tudo isso é
nada comparado ao que acontece no andar debaixo. Os fisiólogos já mergu-
lham terrivelmente na magia dos números, e o entusiasmo pela forma quanti-
tativa das leis transforma-se neles em adoração do fetiche. Todavia, esse
impedimento não pode fazer esquecer a seriedade fundamental que encobre.
Os psicólogos, por sua vez, recebem a matemática de terceira mão: dos fisiólo-
gos que a receberam dos físicos, que, só eles, as herdam dos matemáticos. Em
cada etapa, o nível do espírito científico sofre uma queda e quando, no final, a
matemática chega aos psicólogos, é "um pouco cobre e vidro" que eles imagi-
nam ser "ouro e diamante". O mesmo se dá com o método experimental. É o
físico que detém uma visão séria dele; só ele não brinca com ela, é só nas mãos
dele que ela é uma técnica racional que não degenera em magia. O fisiólogo já
tem forte tendência para a magia: nele, o método experimental degenera fre-
qüentemente em pompa experimental. O que dizer, então, do psicólogo? Nele,
tudo é pompa. Apesar de todos os seus protestos contra a filosofia, ele só vê a
ti lntroduçoo
prolongada, apena~ pela possibilidade que se ofereceu às teses mortas de renas-
cer graças ao respeito que cerca os métodos científicos.
8. - Enfim chegou o momento da liquidação definitiva de toda essa mito-
logia. Hoje a dissolução não pode mais afetar a forma da vida e pode-se, agora,
reconhecer com segurança o fim no fim. Atualmente, a psicologia está no es-
tado em que se encontrava a filosofia no momento da elaboração da Crítica da
RazãoPura. Sua esterilidade é óbvia, seus procedimentos constitutivos dão nas
vistas, e enquanto uns confinam-se numa escolástica impressionante por sua
apresentação, mas que não progride de forma alguma, outros lançam-se em so-
luções desesperadas. Mas um sopro novo faz-se sentir: há o desejo de que toda
essa história tenha acabado, mas recai-se constantemente nas fantasias esco-
lásticas. Portanto, falta alguma coisa: o reconhecimento claro de que a psicologia
clássica nada é senão a elaboração nocional de um mito.
9. - Esse reconhecimento não deve ser uma crítica semelhante às que lo-
tam a literatura psicológica: estas mostram ora o fracasso da psicologia subje-
tiva, ora o da psicologia objetiva, e preconizam periodicamente o retorno da
tese à antítese e da antítese à tese. Conseqüentemente, não se deve encetar
uma disputa que, novamente, permaneça no interior da psicologia clássica e
cujo benefício se restringe a fazer a psicologia voltar-se sobre si mesma. É ne-
cessária uma crítica renovadora, uma crítica que, pela liquidação clara do que
tem sido, ultrapasse o ponto morto em que se acha a psicologia e crie essa gran-
de evidência que é preciso comunicar.
10. - Contrariamente a toda expectativa, não é do exercício do método
objetivo que vem essa visão da psicologia nova que a crítica em questão supõe.
O resultado desse exercício é inteiramente negativo: de fato, desembocou no beha-
viorismo. Watson reconheceu precisamente que a psicologia objetiva clássica
não é objetiva no verdadeiro sentido da palavra, pois afirmou que, após cin-
qüenta anos de psicologia científica, já era tempo de a psicologia tornar-se uma
ciência positiva. Ora, o behaviorismo marca passo ou, melhor, desgraça muito
maior lhe sobreveio. Inicialmente encantados pela noção de behavior, os beha-
vioristas acabaram por descobrir que o behaviorismo conseqüente, o de Wat-
son, não tem saída e, chorando as panelas da psicologia introspectiva, voltam,
sob pretexto de "behaviorismo não-fisiológico", a noções francamente intros-
pectivas ou limitam-se a traduzir em termos de behavior as noções da psicologia
clássica. Tem-se, então, o pesar de constatar que, em alguns, pelo menos, 0
• Introdução
.............
vente" da consciência surgeI com uma visao · - clara dos erros1a indicação de uma
direção realmente fecunda.
12. - Éà luz .das
_ tendências
. que . procuram subtrarr-se · a, m· fI uencia
" · dos pro-
blemas e ~as tradiçoes da psico~o~ subjetiva1assim como da objetiva1que de-
vem ser vist~s. os aspectos po~it1vo e negativo da crítica que empreendemos.
Mesmo ad~tmdo que es~ cntica não deve ser o resultado de um trabalho pu-
ramente noc1onal1 sua validade não exige que se comece "por baixo". Éo tronco
que ela irá atacar/ a ideologia central da psicologia clássica. Não se trata de desbas-
tar galhos, mas de derrubar a árvore. Tampouco é questão de condenar tudo
em bloco: há fatos que sobreviverão à morte da psicologia clássica, mas só a
nova psicologia poderá dar-lhes a verdadeira significação.
13. - O que há de mais notável em toda a história da psicologia não é a
oscilação entre os dois pólos da objetividade e da subjetividade1nem a falta de
genialidade que caracteriza o modo de os psicólogos utilizarem o método cien-
tífico, mas o fato de a psicologia clássica nem chegar a representar a forma falsa
de uma ciência verdadeira, pois é a própria ciência que é falsa, radicalmente,
fora qualquer questão de método. A comparação da psicologia com a física de
Aristóteles não é totalmente exata, pois nem é dessa maneira que a psicologia
é falsa, mas à maneira das ciências ocultas: o espiritismo e a teosofia que, tam-
bém, simulam uma forma científica.
As ciências da natureza que se ocupam do homem não esgotam tudo que
se pode aprender a respeito deste. O termo "vida" designa um fato "biológico", 4
ao mesmo tempo que a vida propriamente humana, a vida dramática do ho-
mem. Essa vida dramática apresenta todas as características que tornam uma
área suscetível de ser estudada cientificamente. Mesmo que não existisse psi-
cologia, é em nome dessa possibilidade que ela deveria ser inventada. Ora, as
reflexões sobre essa vida dramática só conseguiram encontrar lugar na literatu-
ra e no teatro, e embora a psicologia clássica afirme a necessidade de estudar os
"documentos literários", nunca houve, de fato,5 verdadeira utilização, indepen-
dente dos objetivos abstratos da psicologia. Assim, em vez de poder transmitir
à psicologia o tema concreto que se tinha refugiado nela, é a literatura que aca-
4 Enteda-se, de uma vez por todas, que designamos pelo termo "dra_ma" um fato que faze~os abstra-
ção total das ressonâncias românticas dessa palavra. Portanto, pedunos que o leitor se habitue a essa
acepção simples do termo e esqueça sua significação "emotiva".
5
Fora a psicanálise.
1ft
~ , Introdução
consagr: r a hipótese da vida interior.6 O velho estoque da psicologia pôde sobre-
viver'. e e s~bre ele que se abateram as exigências em voga no século XIX: expe-
riência e cálculo. Começa então a lamentável hi t, · Ca M· ·
t5 _ o lt d , ' . s ona, o rmen tserabile.
. cu_ 0 . ª e essencial para o cristianismo. O antigo tema da
percepçao Jamais tena sido suficiente para gerar a psicologia: é da religião que
~ e vem a ~or~_- Uma vez ~onstituída em tradição, a teologia da alma sobre-
viveu ao cnStlarusmo e continua vivendo dos alimentos comuns a todas as es-
colás~i~as. O respeito de_que conseguiu se cercar, graças ao disfarce científico,
p~rmiu~-lhe vegetar mais um pouco e, graças a esse artifício, conseguiu sobre-
viver a si mesma.
Mas seria erra~~ afirmar que a psicologia clássica alimenta-se apenas do
p~ss~do. ~elo contra~o, :la conseguiu alcançar certas exigências modernas: a
vida mtenor, no sentido fenomenista" da palavra, afinal conseguiu tomar-se
um "valor".
A ideologia da burguesia não teria sido completa se não tivesse encontrado
a sua mística. Após diversas tentativas, ela parece tê-la, enfim, encontrado: na
vida interior da psicologia. A vida interior convém perfeitamente a esse destino.
Sua essência é a mesma da nossa civilização, a saber, a abstração: só implica a
vida em geral e o homem em geral, e os "sábios" atuais são felizes de herdar essa
concepção aristocrática do homem com um maço de problemas de alto luxo.
Além do mais, a religião da vida interior parece ser o melhor meio de de-
fesa contra os perigos de uma renovação verdadeira. Por não comportar vincu-
lação a nenhuma verdade determinada, mas apenas um jogo desinteressado
com as formas e as qualidades, ela dá a ilusão da vida e do progresso "espiritual",
enquanto a abstração, que é sua essência, trava toda vida verdadeira; e como ela
só se comove com sua própria profundeza, é um eterno pretexto para ignorar
a verdade.
Eis por que a vida interior é recomendada por todos os que querem captar
as vontades de renovação antes que possam vincular-se a seu verdadeiro obje-
9 Introdução
ela que nos faz ver claramente os erros d . . , .
de á a nova psicolooia
1· ºd psicologia class1ca e nos mostra, des-
' o-- em V1 a e em açao.
Os Matériaux devem ser apresentados em três volumes. Depois deste, haverá um volume sobre a
9
Gestalttheorie, com um capítulo sobre a fenomenologia; o terceiro tratará do behaviorismo e das suas
diferentes formas, com um capítulo sobre a psicologia aplicada.
•:1&
\19} Introdução
e sistematicamente, deve figurar no Essai critique sur /es fondements da la psycho-
logie, o qual virá depois dos Matériaux. Esse caráter preparatório e, conseqüente-
mente, provisório dos Matériaux jamais deve ser esquecido; eles ainda não contêm a
crítica, representam apenas os primeiros instrumentos, ainda toscos, com os
quais serão fotjados os instrumentos apropriados.
21. - Evidentemente, essa pesquisa que empreendemos nos Matériaux
não pode ser feita no vazio. Não temos a mínima pretensão de examinar as
tendências em questão sem idéias preconcebidas, "ingenuamente". Afirmações
desse tipo podem ser sinceras, mas nunca verdadeiras, pois não há crítica ver-
dadeira sem o pressentimento da verdade. A questão toda consiste em saber
qual é a origem desse pressentimento.
No que nos diz respeito, é refletindo sobre a psicanálise que percebemos
a verdadeira psicologia. Isso poderia ter sido um acaso, mas não o é, pois só a
psicanálise pode, hoje e de direito, dar a visão da verdadeira psicologia, por ser,
e só ela, a sua encarnação. OsMatériaux devem, portanto, começar pelo exame
da psicanálise: tratar-se-á, buscando o ensinamento que a psicanálise compor-
ta para a psicologia, de obter esclarecimentos que nos permitirão não esquecer
o essencial no exame das outras tendências.
22. -A primeira onda de protesto que o surgimento da psicanálise levan-
tou parece, agora, suavizada, embora a tenhamos visto recrudescer com violên-
cia na França, 10 recentemente, e a situação tomou-se menos tensa entre a
psicologia clássica e a psicanálise. Essa mudança de atitude, que pode ser inter-
pretada como uma vitória da psicanálise, representa, entre os psicólogos, ape-
nas uma mudança de tática. Percebeu-se que a primeira maneira de combater a
psicanálise, em nome da moral e das conveniências, equivalia a entregar o ter-
reno, sem luta, aos psicanalistas e que é muito mais elegante, e muito mais efi-
caz, adquirir, por meio de uma prova de liberalidade - a qual consiste em dar
a Freud o lugar que lhe pertence em psicologia, no capítulo do inconsciente-,
o direito de fazer a respeito da psicanálise as reservas que a "ciência" exige. T ra-
ta-se, pois, graças a certo número de assimilações, de fazer recair sobre Freud
todo o desprezo que se tem atualmente por certas tendências, e afirma-se, en-
10
A implantação da psicanálise na França confrontou-se com as idéias de Piérre Janet e as teorias da
degenerescência e hereditariedade, entendidas como agentes etiológicos das patologias mentais, que
dominavam a psiquiatria francesa na década de 20. Foi dentro desse contexto que a tradução para 0
francês da Traumdeutung apareceu em 1926. (NR1)
. } Introdução
Piração
.
fundamental manifest
. .. '
b - •
. a-se ª ª straçao da psicologia clássica e aparece
a incompatibilidade verdadeira que não e' a d .canáli.
. • l' • ' a psi
fi
se com certa orma da
psicologia c assica, mas da psicanálise com a . 1 . lá . / .
. , . ps1co ogia c ss1ca em gera . Mais
ainda, graças nature~ dessa incompatibilidade, cada passo dado em direção
da compreensao
_ da onentaça-o
. concreta da psican
· áli.se tem, em contrapartida,
·
a revelaçao de u_m procedimento constitutivo da psicologia clássica; por isso
mesmo, a ma~e~a c?~º
Freud exprime suas descobertas na linguagem e nos
esquemas ~radic~onais apenas um caso privilegiado que nos permite observar
como a psicologia fabnca seus fatos e suas teorias.
De todo modo, não basta fazer a Freud a vaga acusação de intelectualis-
mo ou associacionismo: é necessário destacar com exatidão os procedimentos
que justificam essa acusação. Somos obrigados a reconhecer, à luz do verdadei-
ro sentido da psicanálise, que esses procedimentos, cuja falsidade foi alardeada
com tanto orgulho, não passam de procedimentos constitutivos da própria
psicologia e a acusação em foco revelar-se-á um caso particular da ilusão que
não pára de perseguir os psicólogos e que consiste em acreditar que se alterou
a essência, quando só se trocou a roupa ...
26. - Queremos investigar o ensinamento que a psicanálise comporta
para a psicologia demonstrando as afirmações anteriores. Nosso esforço será,
por um lado, libertar a psicanálise dos preconceitos comuns a partidários e ad-
versários e procurar sua verdadeira inspiração, opondo-a constantemente aos
procedimentos constitutivos da psicologia clássica, da qual implica a negação.
Por outro lado, e em nome dessa inspiração, analisaremos as construções teó-
ricas de Freud, o que nos permitirá, concomitantemente, captar os procedi-
mentos clássicos ao natural. Dessa maneira, não só obteremos uma visão
nítida da incompatibilidade de que acabamos de falar, mas indicações impor-
tantes sobre a psicologia futura.
E pelo fato de que a análise deve ser precisa e deve captar a maneira como
se elabora e constrói a psicanálise, achamos que seria melhor estudar a teoria do
sonho. Pois o próprio Freud diz: "A psicanálise baseia-se na teoria do sonho; a
teoria psicanalítica do sonho representa a parte mais acabada dessa jovem ciên-
cia."11 Por outro lado, é na Traumdeutung que melhor aparece o sentido da psica-
nálise e são mostrados com um cuidado e uma clareza extraordinários seus
procedimentos constitutivos.
11 "Einige Bemerkungen über den Begriff des Unbewussten in der Psychoanalyse", in: Kleine Schrifien
zur Neurosenlehre, IV. Viena: Folge, 1922, p. 165.
-- ta e ~ sico~ia concreta.
~\ ' explicam essa propriedade dos nomes próprios, sem suspeitar que esse proces-
so pode ser submetido a outras condições de ordem mais geral" (La Psychopa-
thologie de la Vie Quotidienne, tradução francesa, p. 3).
O que significa que o psicólogo atribuiria o esquecimento aj_ausas gerais
que, pouco importa o que se faça, só podem ser válidas para uma_generalidade,
[ não para o fato preciso do qual se trata. Ese Freud fala de condições "mais gerais"
às quais esse processo pode ser submetido, essa linguagem não deve iludir, pois
ele só se refere a fatores gerais, como censura, recalque etc., mas a explicação
que ele dá para cada caso terá a pretensão de abranger o fato a ser explicado em
.f!:!.ª particularidade. O postulado fundamental de Freud, segundo o qual todos
os fatos psicológicos são rigorosamente determinados, tem exatamente ames-
ma significação.
,
Enatural que quem procura explicações desse tipo não possa contentar-se
com a introspecção. De fato, o que fiz no meu exemplo de introspecção? Con-
N J ( vO
' ,,;1 • 1~ c1 exatamente. esse nome nem o momento preciso . em que o esquec1.· Essa e, a
1
natureza da_ mtros~cção. Não poderia responder às perguntas da psicologia
ccrv,1i L-\ concreta
-~ . pms, para isso, e' prec1so
· cons1·derar as c1rcunstanc1as
· ,. · part1cu
· 1ares do
,,,...- esqu~cimento, 0 que o nome esquecido significa para mim; seria necessário
considerar esse esquecimento como um segmento da minha atividade particu-
lar, ~orno um ato que, vindo de mim, me caracteriza; seria preciso penetrar o
7'( L sentido desse esquecimento.
Mas só se conseguirá penetrar o sentido do esquecimento apropriando-se
dos materiais necessários a seu esclarecimento. Esses materiais, devendo indi-
car a significação que esse esquecimento tem para mim, não podem, evidente-
mente, ser fornecidos por mim. Ora, isso não podE'to com ajuda da
introspecção, mas exclusivamente com a ajuda de u relato
Freud deve substituir a introspecção pelo relato. o ser o fato psicológico
um segmento da vida de um indivíduo singular, não é a matéria nem a forma
de um ato psicológico o que interessa, mas o sentido desse atQ; e isso não pode
ser esclarecido senão pelos materiais que o sujciÜ> fornece no relato.
É preciso notar que essa maneira de Freud substituir a introspecção pelo
relato não é simplesmente a substituição do ponto de vista abstrato pelo ponto
de vista concreto, mas também a substituição do ponto de vista subjetivo pelo
ponto de vista objetivo, para empregar essa antítese clássica, e, para falar uma
linguagem mais moderna: pelo uso do método do relato, Freud substitui o pon-
{ to de vista da "intuição" pelo do "com_portamento".}
.,. -
De fato, se substituirmos a introspecção pelo relato, o trabalho psicológi-
co incidirá sobre dados "objetivos". O relato constitui um material objetivo que
pode ser estudado de fora. 32 Mas pode-se dizer que aí está apenas uma objeti-
vidade banal. O verdadeiro aspecto dessa objetividade só é dado pelo fato de o
a; H,
a na
· fnoia clássica um método que podemos ser tentados a comparar com o método freudiano:
ps1co
, d na' n'os Esse método pode fornecer efetivamente resu Itados ob'Jetlvos.
t· -o- . Mas o que faIta a
eo osques10 • . 1 . · - b
quem O emprega é precisamente uma noção concretadada p51co odgia: cálio:°1do as pes~~:~:s sao a stratas, as
respost as tam bém O são . _Esse método só conseguiu
_ _____ . • -r resu1ta os v _~ na IDl<Y!Y9.efil qu.e..-2.s.. Q~ o
utilizam estiveram concretos sem o gll~~
-
IA
',J!ft Copítu~ Do~
sas hipóteses são naturalmente realistas. Pela introspecção aprendemos o que
é e O que acontece no mundo espiritual.
Ora, é óbvio que a vida psicológica de outro indivíduo só é dada sob forma
de "relato" ou de "visão". Relato, quando se trata de expressão por meio da lin-
guagem (em todos os sentidos do termo); "visão", quando se trata de gestos ou,
em geral, de ação. Estou escrevendo: há aí relato e, ao mesmo tempo, visão. Ex-
primo, por meio da escrita, meus "estados de alma" entre os quais alguns po-
dem ser adivinhados pelo visão do que faço: pela atitude que tomo escrevendo,
as expressões de minha fisionomia etc.
O relato e a visão têm função prática e social, sua "estrutura" é, por isso,
"finalista": a linguagem corresponde em mim a uma "intenção significativa" e
as ações, a uma "intenção ativa".
É primeiramente com essa forma "intencional" que o relato e a visão se
inserem na vida cotidiana. O relato propriamente dito é tomado pelo que é; à
intenção significativa em mim corresponde nos outros uma "intenção compre-
ensiva", e quanto à visão, o dia-a-dia respeita igualmente seu plano. Falo, e a
vida diária só vê a intenção significativa. Estendo a mão para pegar a garrafa de
água, alguém a apresenta. No primeiro caso, sou compreendido; no segundo,
uma "reação social" responde à minha "ação" e é só isso.
Enfim, nas relações cotidianas não se sai da "teleologia da linguagem" e
fica-se no plano das significações, compreensões e ações recíprocas. 33
A psicologia clássica começa por abandonar esse plano "teleológico" e fa-
zer abstração da intenção significativa. O que lhe interessa não é o que o sujeito
relata, mas o que se passou em sua mente enquanto falava; há necessidade,
portanto, de certa correspondência entre o relato e,.12I,ocessus sui generis.. Para en-
contrar esses processos, ela só dispõe, evidentemente, do relato, mas vence adi-
ficuldade~ ~ntão, teremos, por um lado.. ,t ex~ o e, p_or outro,
_qgp1essa~ 1_f; ta_!llb~ _çluas Qtdens de existência,..poj5-o_e~Rres.g__cj~ u112,a
maneira de ser sui generis: é espitit_µal, é o.~ nsament.9.~
-- Évisível que esse "pensamento" não traz, 4P..E,onto de vista da significafão,
algo novo: a significação da idéia e a significação da palavra são exatamente
t!J Só falaremos a seguir da maneira como a psicologia clássica trata o "relato". Mas ver-se-á facil-
nte que tudo o que dissennos a respeito aplica-se também à "visão".
la-se, outrora, muito mais longe e admitia-se um paralelismo completo entre a linguagem e o pen-
~
amento. Mas quaisquer que sejam os aperfeiçoamentos das teorias mais recentes, sempre encontrare-
mos o esquema do procedimento que descrevemos.
II H . l(ÍCY_AZ.
Parece-nos que o psicólogo clássico procede da seguinte maneira: desdo-
bra o relato significativo e faz do seu duplo uma realidade "interna". Em vez de
conservar a atitude ordinária que convém à teleologia das relações sociais, re-
nuncia de repente e procura no relato a imagem de não sei que realidade "inter-
na". Essa é sua atitude quando está diante do relato de outro. Mas a retoma
depois, quando diante do seu próprio relato.Toda a alteração será então repre-
sentada pelo fato de que não é à intenção "compreensiva", mas à intenção
"significativa" e "ativa" que ele deverá renunciar; e, em vez de efetuar o desdo-
bramento para um outro, o far~ JéIB~ si. Uma vez efetuado o desdobramento,
ele procurará descrever a re~~ade ~ erna do ponto de vista do formalismo
funcional. Dirá, então, que 5 introspectf .
A introspecção ou a refie g,ábandono da intenção significativa e ati-
va em proveito do formalismo funcional, e a essa alteração de ponto de vista
corres onde-um segundc-r-@!at_o, cujo ponto de partida é constituído pelo relato
si ·.fic.ativ0~v1sto a o- ponto --. . realista e formal. Objetivamente, portan-
a introspecção é um segundo relat'' resultante da aplicação do ponto de vista do
11 11
- - _,,, /
9 Capítulo Dois
mente substituir O prime·
relato que nada mais t 1ro re1ato, puramente_ significativo, por um segundo
desse ponto de vista , ª ver co~ ª ~eleologia das relações humanas e que,
ão de uma realid d ' ~ ura ~nte desinteressado" e deve constituir a descri-
Ç a e ~ tgene s.
Afinal,
, é. preciso
.. ês er entre d uas hi poteses.
, .
Pode-se dizer . , .
de inicio
que o que e pnmitivo
. . é a in t rospecçao,
_ pois. são meus estados psíquicos' que co-'
n h eço em
_ pnmeiro lugar e nao - suponho estados psíquicos em meus semelhan-
te:. ~e~~~-graças à minha própria experiência interna. Se isso for verdade, é
ar i Cl izer ~ue desdobro o relato, pois só atribuo a meus semelhantes esta-
dos que, em mim, co~stituem realmente a duplicação do relato. O procedimen-
to fundamental da psicologia introspectiva não seria então o desdobramento do
relato, mas um raciocínio analógico. ' '
, . A segu~da ~pótese consiste em admitir que o que é primitivo é, pelo con-
trano, a realizaçao do relato por meio do desdobramento e não a introspecção;
esta, longe de apresentar uma atitude espontânea, só seria a aplicação a si mes-
mo de uma atitude tomada em face do relato significativo pelo "senso co-
mum". Nesse caso, não seria o raciocínio analógico, mas o desdobramento, que
caracteriza a psicologia. Contudo, esse desdobramento pode dirigir-se para os
outros, ou para nós, e é esse segundo caso que chamo de "introspecção".
Sabe-se que a psicologia adota a primeira dessas hipóteses. E é essa hipó-
tese que inspira os ataques dirigidos contra ela: é precisamente o raciocínio
analógico que os behavioristas rejeitam na psicologia clássica.
Muitas considerações orientam-nos para a segunda hipótese.
1Jt C, Primeiramente, é preciso distinguir a introspecção tal como é e~E._rincípjp~
e a introspecção tal como é de fato, pois não se deve co,:tfµndir com q_5-t!!oflssões_rj_e
~· fé a rçspe_itQda introspecção, o método introspectivo atual~ o_qu! ~e us~~a n~f?JfSS~do.
Q!:?,_é a introspecção tal como é e tal como foi que visamos, não as diversas pro-
-messas de introspecção.
~J,.~ Além do mais, é preciso distinguir :s_ '..P.:55!E~ ~internas" sil!)i;tles,..cumo
··a da dor orgânica, das necessidades orgarucas, ta1s_como se produ~m 11a conJ.~-
1 ?ª
-;uidade da vida cotidia!1q inl_!~~~ç~~si~temática tal c,~ º-em~ egada psi-
- 1 · ssa distinção é necessana, pnmeiro porque o ~ ofrimento esta ligado
coo . . , -ss b d
--- 'vida" enquanto a in ro2.P~ ção perte~_~e ao _c~nh~ 1~~0 ~ mas so retu o
1
8
porque a introspecçã método psicologico, vai mmto alem dos quadros da
(1, ,~,, ?, . (11
(} , .
--------~-r-..c;_- ifi /.) V~ (VJ{ 1/(,-; /_9 ..
35 Cf. mais adiante, capítulo IV, item IX, PP· 16qfi 1. ·. •
1'/ ' '{
V fj
-1 / / r$: i.ft..111 -i1,,1.}zlt'/Í(
36
Cf. adiante, p. 91.
f 37
: E no Essai que eles deverão ser retomados sistematicamente.
. .
"' [Novamente encontramos enunciado o projeto do autor que não foi realizado. Roudinesco comenta os
possíveis motivos que teriam levado Politzer a abandonar o projeto de escrever sua grande obra que sis-
tematizaria as posições, aqui desc~tas, ~obre a psicologia _concreta. yer o car ulo "Marxismo, Psican\i;-
lise e Psicologia", in: História da Ps1caná/1se na França; op. ctt., pp. 50-ST NRT
· / u .
o que, pelo contrário, caracteriza o mé_todo utilizado pelos pJ;ical}aiist~
,, 1 não comporta O procedimento realista que procuramos descrever. O
e que e e . .fi _ _ .
psicanalista não deixa o plano teleológico das s1gm :aço:s, nao mventa uma
atitude nova e paradoxal, como a reflexão. -~ 3b1et1vo e oumi~uer_pmlan-
W: a atitude d~<!.4º dia-a-dia, _"t.~ o mome!)t.Q, en:i qye d a ~ ~ lco-
logia _concr~ a; _sle_nl_urocu!a trans~o~ r o plano da s1g!}lficaça_o em
·•realid ~~L~ -~P!ofu.ndá-lo, .a.fim _de enco.n1rar, no fundo. das_ s1gn,(~ s
·cole_tj_vas cq_fJ_vettfi~tJªÍ!i ~ ~es if!.!.f.viq~qj_s_Sl'1~-IlãQ.entram f!?.ôlS na teleoh-
gia o_gli,ná~_das relações ~ s1 ll}aS ~o reveladoras da _psicologia ,individual.
Portanto, o psicanalista terá, também, um "segundo relato" a opor ao relato
puramente significativo. Mas seu segundo relato não será resultado da desar-
ticulação do primeiro; ele representará o aprofundamento dele. Também nes-
se caso, só será considerada, em princípio, a intenção significativa, uma
intenção significativa que não nos conduz à região das interações sociais, mas
à psicologia do indi " ereto. Em resumo, o segundo relato da psicologia
clássica 1 ~ os ' · /izações enquanto o da psicanálise nos conduz, simples-
mente, ' •'nterpretaçãa
_ "~ teonas científicas do sonho não dão lugar ao problema da interpreta-
çao, pois para elas o sonho não é um ato psíquico mas um fenômeno orgânico
só registrado por certos sinais psíquicos" (p. 88). Para a teoria científica, que é
~bstrata, e ~ara~ qu~ as re~r~sentações têm existência própria, o problema da
mter~retaçao nao existe. P01s interpretar significa apenas ligar O fato psicológi-
c~ à vida co~creta do ~d_ivídu~. Mas, para Freud, o problema da interpretação
nao pode ~eixar ~e existir, p01s pertence precisamente a uma concepção con-
creta da psicologia.
nh Por considerar ,, o.dsonho abstratamente' a teoria "científica" restnnge. O so-
~-ao que esta contl o n~s f~rmulas verbais que constituem o seu relato. Con-
~quentemente, essa teona nao poderá completar o relato feito pelo su. .
nao ser por um relato conforme o ponto de vista formal N- . ,, f 1e1to: a
tervir a hipótese de um conteúdo manifesto e d . a~ precisara azer in-
pelo contrário, considera o sonho como "fat e u~ ~onteudo latente. Freud,
palavra•, como um segmento da vid
O 1
ps ':°!ogico,
no sentido pleno da
sário admitir que as fórmulas b co~creta 1?d1vidual; portanto, é-lhe neces-
. ver ais nao expnm 1
nam fora do sujeito mas precisam t al e?1, no reato, o que exprimi-
remontar além da ~igru'fi - en e . guma coisa do sujeito; será forçado a
nh fi caçao convencional das b' la ..
o, a m de encontrar a vida ind' 'd al ormu s utilizadas pelo so-
lVl u concreta. Precisará opor ao relato em
@ Ú!pítulo Dois
termos convencionais .. um reIato feito
. em termos de experiência individual;
. ao
relato superficial' um relat 0 pro fu ndo: se~, obrigado a fazer intervir a distmçao . . _
entre o que o sonho 1-1arec - - --- - - --
- - - - - - : : : : ~- __ _J. _ - ~ ex_2~ s~ o que ele significa realmente.
hamaorelat .- ---- --- --- - ··
° convencional de conteúdo manifesto e é traduçã
desse e1at m termos de expenenc1a •" . 1n
. d.1vidual
. que ele chama d~e~la~t~_...•
, PP· 79-104 epassim).
. Faz-se
,, . necessário aprofu ndar essa d.1st1nçao· - se quisermos
· compreendera
psicanálise
, em toda.a sua part·1cu1an·dade. Nao - basta para isso
. dizer
. que seu ca-
rat:r concre:0 consiste essencialmente na adoção do ponto de vista da signifi-
caçao. Em si, esse _ponto de vista é rico em aplicações que podem ir, como em
Spranger, numa direção muito diferente daquela que queremos indicar aqui. 38
,, . Freud gos~a de repetir que a maneira como a psicologia clássica tem por
habito caractenzar o sonho, dizendo que ele é incoerente, fantasista, ilógico,
em suma, desprovido de sentido, provém do hábito de considerar apenas o seu
conteúdo manifesto. Com efeito, após ter dado ao sonho alguns qualificativos
pouco lisonjeiros, a psicologia clássica passa imediatamente às constatações
formais e funcionais. Ela o faz, claro, conforme os procedimentos abstratos que
procuramos descrever. Na teoria do sonho, as teorias clássicas não fazem total
abstração da significação; pelo contrário, a constatação da impossibilidade de
dar um sentido a uma construção tão louca quanto o sonho determinou o es-
quema de teorias como a de Binz e a de Dugas.
Na base dessa atitude há um postulado "implícito", o de que os termos do
relato que o sujeito faz do seu sonho têm seu conteúdo ordinário; quando, por
exemplo, a palavra-chave aparece, sua significação coincide com a indicada nos
dicionários. Mas, de modo geral, os fatos psicológicos, mesmo sendo atual-
mente "psicológicos", sempre têm apenas uma significação convencional, sig-
nificação, por assim dizer, "pública". Converso com uma senhora e, de repente,
enxugo os lábios; esse gesto não tem outra significação além do "gesto-em-ge-
ral-de-enxugar-os-lábios", e tudo o que a explicação psicológica poderá ,,fazer
será um relatório conforme o ponto de vista do formalismo funcional. E esse
postulado, também, que está na base de todos os juízos sobre os fatos psicoló-
gicos que parecem ter errad? sua si~fi~~ção_convencion~. sonho não po~e
ser medido com as categonas das s1gruficaçoes convencionais, portanto, nao
-f j, Capítulo Dois
choque com certos casos privileD-iado .
. o· s que unpunha .
'
ereto, e esse ponto de vista teria Ievad aI m um ponto de vista con-
Que não se diga que a psicoloD-ia cla's qu quer um às mesmas descobertas
. o· sica també nh ·
em foco. Nossas afirmações anteriores _ co eceu o ponto de vista
mo muito fácil mostrar, uma vez que usaodperfeitamente justificadas. É mes-
ma escobe t ., 1, ·
do céu como um meteoro mas que ,0 - . r ª e eita, que ela não caiu
, 1, i anunciada p -
descoberta para se aperceber das "anun . _ , · or que, entao, se esperou a
., ciaçoes '?
E verdade, porém, que uma vez com 1 d . _
do sentido intervém na psicolooia cla's . p Maeta ª ª :ealizaçao o ponto de vista
o· sica. s só int , d
abstração e pelo postulado da significaça- . ervem coman ado pela
o convencional.
Comandado pela abstração quando t d
se rata e preparar ·· d
estudo psicológico. Uma vez completada a ali - os matenais o
• e - d re zaçao, procede-se a uma pri-
meira trans1.ormaçao: e acordo com suas signifi - d
- caçoes, or enam-se os termos
do relato segundo as noçoes de classe. Acabo de 1 . "Bol • .,
- d ,, " ,, . . . exc amar. as, mais um fos-
foro que nao acen _ ,, 11e!,,, -, bolas significa "estado aEetIvo · ", "de novo ,,, "senti-•
d - ". o con1unto
·
,, ""
mento 1
,, "' e,, re,, açao , 1.os1.oro_ , Imagem" ,, , "não pega", "percepçao
e um JUIZO . A . preocupaçao
,, estara
. em descobrir se houve análi·se ou smtese; ,,
que te~a havido sintese precedida de análise ou análise de síntese primitiva da
f ercepçao;, de_ qual~uer 1:11000, a significaç~o terá sumido. Sei que a psicologia
moderna nao esta mais nesse ponto; sei que recortei, que dei importância
exagerada aos elementos sólidos, mas mesmo que se diga ter havido simples
formulação verbal de uma atitude única e indivisível, ou algo do gênero, temos
de admitir que a atenção deixa o sentido e dirige-se para o estudo formal das
funções ou das atitudes: ~ó a linguagem é outrt!t_Qprocedimento éJ) mesm<J.-
b psicologia clássica também conhece significa~ões individuais Mas só Sf
referem à maneira como_g fato psicoló~ co é vivido pelo indivíduo, à sua "uni-
cidade" gl:!ª1i!ª1iva._Ora, esse ~inefável" QUe d~veria reRregütar...Q.SUnt,WUW ao,
c oncreto pertence -~q fo.rm-ª1.!snJ_o funcionaj e, de fato, não contém nenhuJlla
__determinaçãÕpropriamente indhj dual: q coE-~~eto qu~ Ie rep1esenta ~ o 2as:
sa geu.zp cÕncret oetíi"g@~ / --:~\
Mas o papel verdadeiro que o~ ~ntidof desempenha na psicologia clássica
só aparece se levarmos mais adiante a análise do postulado da significaç,,ã~ con-
vencional. Acabamos de mostrar a maneira como esse postulado esta ligado
aos procedimentos fundamentais da psicologia clássica. Mas podemos pergun-
tar qual é a origem desse postulado. . .
1st
O realismo consiste no desdobramento da significação con~enci~n~, º
, · · o
e, na sua projeção para o mtenor. problema do sentido é assim elimmado
•.
IV
O pastulado da convencionalidade da significação não tem, aliás, a míni-
ma relação com a experiência. As diferentes "dialéticas", das quais uma palavra
- Capítulo Dois
pode ser portadora, são dadas 1 li
tado das ciências; podem ser pe; nguagem por um lado e, por outro pelo es-
poder constituir esse catálo cat _ogháadas ª qualquer época. Éevidente ~ue para
. . , go nao , nece .d d d
gico, pois tudo e dado por d ssi a e e nenhum estudo psicoló-
ocumentos ob1·eti .d
termo. 0 ra, com o postulad d . vos, no senti o mais simples do
. - . o a convencionalidad d . .fi - .
gia supoe precisamente que e dºal' . e a s1gru caçao, a ps1colo-
ssas i et1cas cu· li
consulta nenhuma aos dad a1m , Ja sta podemos estabelecer sem
com razão, portanto que falos re dente subjetivos, são as únicas existentes. É
, amos e " t 1 d " .
pôde ser sugerida pela experiência sen~~s u ª os_, p01s a crença e1:1 foco não
tão nem pôde ser levant d C ' .. que, por causa da abstraçao, a ques-
uma dialética puramentª .ª·d~ dns~~12!e:nent~z a idéia de qye e_oderia haver
1
uma signi·-fi --= . --~· ~!:1~, q~ l_os atos individuais emprestãssem
c~çao puramente 1nd· ·d al , - ,- :-- :
dãssiCa:esta não càncebe or ivi_ _ u ' e tQtalment~ estranha a _p~icologia
>
V
Por ser a significação individual dos termos do relato o que nos interessa,
precisamos abordar o sonho como um texto a ser decifrado. Na medida em que
é significação, a estrutura da significação íntima é a mesma que a da significa-
ção convencional e, quando queremos encontrar a primeira, não precisamos
proceder de maneira diferente daquela que utilizamos quando procuramos es-
tabelecer uma significação qualquer. Precisamos de elementos e pontos de re-
ferência; enfim, de um contexto.j e existe;!l signi.(icé!Ç_õ_es fntirnas tpor_gue o
indivídl!<?_possui uma experiçn_cia se~ ta. Portanto1 ~_çisarnos penetrnLQe~
_!Xperiênciãseêr~~~ ~ e_?etrarem~s 1.::!ª, evide~~~ent~, 4me,dida qye o ~;
j~nQSfornece os materiais 9,l;!_e CQl_!_Sti~ Daí a necessidade do procedi-
mento fundamental dÕmétodo de Freud: as associações livres.
O termo "associação" pode criar um mal-entendido, ou melhor, uma ilu-
são. A ilusão existe em Freud, e isso foi explorado pelos que, imbuídos do "mo-
bilismo moderno", sobressaltam-se à simples vista da palavra "associação". Na
realidade, há bastante mesquinhez nessa maneira de insistir na superioridade
do "fluído" sobre o "sólido", e seria mais apropriado, nesse momento, abordar
problemas mais importantes, sobretudo porque só há duas versões da mesma
mitologia.
.1. De todo modo, nas "associações livres", não há nem associação nem liber-
\ · dade.
A psicologia tomou por hábito falar de associação em todo lugar onde há
uma intenção significativa conscientemente admitida e em que o sujeito não
se inspira expressamente em alguma dialética. Estou escrevendo, agora; estou
IJ Copítulo Dois
...
consciente de uma intenção significativa e sou, de alguma forma, levado por
uma dialética que é a das minhas idéias sobre a questão que estou tratando.
Mas suponhamos que eu pare de repente e renuncie ao mesmo tempo a minha
intenção significativa e a minha dialética. Minha "consciência" não se esvazia-
rá por isso, idéias suceder-se-ão, terei talvez uma grande quantidade de idéias,
mas não tenho mais nada "a dizer" e minhas idéias não são mais organizadas
por uma dessas leis que dão habitualmente "estrutura" aos nossos pensamen-
tos, quer dizer que não tenho mais "intenção significativa", e a seqüência dos
meus pensamentos não está mais em conformidade com uma das dialéticas
"clássicas", isto é, convencionais. Dir-se-á, então, que tenho associações, e ima-
gina-se que as idéias se encadeiam conforme afinidades, aliás, puramente me-
cânicas. Fica bem claro, nesse exemplo, que só se fala de associação porque não
foi possível reconhecer nenhuma das dialéticas clássicas, em virtude do postu-
lado da convencionalidade da significação. Se ignorássemos a dialética conven-
cional, o que costuro 0s"'"€ens-ià ar uma seqüência racional parecer-nos-ia,
da mesma maneira, " oeira mental como, por exemplo, quando ignorantes
chamam de "algaravia" escn os iceis de filósofos) e se, conseqüentemente, fa-
lamos de associação e de poeira mental, talvez seja porque ignoramos essa dia-
lética que age quando renunciamos a toda dialética intencional, essa é uma
idéia estranha à psicologia clássica.
As "experiências de associação" mostram que as "séries associativas" não
se dão à deriva, mas que o sujeito gira sempre em redor de certos temas ínti-
mos.
"É totalmente inexato pretender", diz Freud (p. 523, cf. p. 521, § 3, à p.
524, § 2), "que deixamos as nossas representações descontrolar-se quando, por
ocasião do trabalho de interpretação, meditamos e deixamos aparecer em nós
as imagens involuntárias. Podemos mostrar que, naquelas ocasiões, renuncia-
mos apenas às representações de objetivo que conhecemos e que, uma vez co-
nhecidas essas representações, outras, desconhecidas ou, de acordo com
expressão menos exata, inconscientes, manifestam sua força e determinam o
curso das imagens involuntárias. influência p_essoal sobre nossa-vida psí-
quica não permite imaginar um pensamento d~pJQvido de objetivo; •desco-
nneço o estado de abalo psíquico que poderi_!J~ermiti:lo."
Vê-se que Freud vai optar pela hipótese contrária à da psicologia clássica:
supõe que mesmo que tenhamos renunciado a toda intenção significativa e a
toda dialética convencional, nosso pensamento continuará sendo regido por
uma dialética e a traduzir uma intenção significativa, mas uma dialética e uma
e Capítulo Dois
J_ (fp;kJ&_
Há duas maneiras de utilizar "relato" o sujeito. Podemos desarticulá-lo
pela abs~raç~o e eeio f~rmalismo_para projetá-lo de uma maneira ou de outra
na vida mtenor. E a atitude da psicologia clássica.
Também podemos utilizar os dados psicológicos simplesmente como o
1 contexto de um sentido que procuramos: reconhece-se aqui a atitude da psica-
____. nálise.
O ,,, J~ R~sulta_disso ~ma cons~~üência ~u~ito importante para a ati:ude do
-~ prio ~sicanalista: sao-lhe pr01bidas as hipotes_es d.e e~ tura: Ele nao tem direi-
to, considerando o verdadeiro caráter da sua atitude, de procurar mecanismos,
pois qualquer que seja o paradoxo, nesse momento, a psicanálise orienta-nos,
atualmente, em direção a uma psicologia sem vida interior. Mas veremos adian-
te, como pudemos ver a respeito da representação que faz do mecanismo do
relato, que Freud não percebeu essa conseqüência da sua atitude.
_, sem tocar, desta vez, nas próprias fórmulas de Freud, que, apesar da sua forma téc- j
nica com pendência total à abstração, as especulações freudianas implicam
uma atitude que precisa ser reconhecida e desembaraçada em sua pureza, para
ser a da psicologia concreta.
Essa demonstração é possível. Mas sua possibilidade só faz aumentar o
perigo resultante dessa dualidade que tivemos de reconhecer no interior da psi-
canálise. Pois se, por um lado, as especulações teóricas de Freud representam
apenas uma atitude concreta, mas disfarçada numa forma técnica abstrata, e
se, por outro lado, esse disfarce é necessário, não é mais a exatidão da nossa in-
terpretação que deve ser revista, mas a capacidade da concepção que temos da
psicologia concreta. Pode-se dizer que a psicologia concreta, tal como preten-
demos vê-la na base da psicanálise, é capaz de revelar-nos coisas que ficaram
inacessíveis à psicologia clássica, mas essa, em compensação, desforra-se quan-
do se trata da elaboração teórica, de tal forma que a pretensa volta à abstração
pode ser apenas ~ eJ.ação da impotência t~9ricª ) B. nossa psicologia concreta. Se
assim é, duas opções oferecem-se: a primeira é que temos adivinhado correta-
mente a essência da psicologia concreta, mas, então, a dualidade constatada
nos mostra que essa psicologia precisa recorrer ao aparelho teórico da psicolo-
gia clássica e esta, longe de ser condenada, recebe por isso uma nova vitalidade
- o que retira todo o valor à nossa tese fundamental, na medida em que a opo-
sição entre as duas formas da psicologia deixa de ser irredutível - ; a segunda
é que, se fazemos questão da morte da psicologia clássica, é a nossa concepção
da psicologia concreta que perde interesse, pois mostra-se incapaz de compre-
ender o drama que pretende estudar. Além do mais, se a psicanálise anuncia re-
almente essa psicologia concreta que temos definido, mostra-se, mesmo à luz
da nossa interpretação, bastante desprovida de interesse, pois apresenta-se
como mais uma tentativa malograda. Enfim, de qualquer lado que olhamos,
.~~ ,.
1~ Capítulo Gnco
essa dualidade, cuja constatação podia parecer, inicialmente, uma vitória do
nosso método, só representa o fracasso.
Esses argumentos só valem obviamente se a dualidade em foco for ver-
' /
<ladeiramente absoluta, isto é, se não formos capazes de mostrar a..,e&cologia
concreta, tç1.l como a definimos atuando de verdade não só quando se trata da
definição do fato e da concepção ' do método, mas da' própria compreensão do
drama humano. Mas se pudermos mostrar que, longe de sofrer uma impotên-
cia teórica, ela já começou a elaborar suas _!loções fundamentais, esses argu-
mentos caem por terra. / / {) ,,
r lti(Ol 'hlA. C{).AJC~(1 I. ( /1 tft r/ o::.' co,
1L l C ,~ - hf)/{ 4'JO'~
O contraste entre a concepção concreta do fato e do método, por um la-
do, e a atitude abstrata das explicações, por outro lado, explicam-se em Freud,
primeiramente, pela maneira como ele concebe as relações entre a psicologia e
a psicanálise. Freud parte da idéia de que a psicanálise é um procedimento par-
ticular que, ao mesmo tempo em que permite encontrar resultados novos, aos
quais os métodos da psicologia clássica nunca teriam podido levar, não chega
à "psicologia" dos fatos em questão. Sua idéia fundamental é que a psicologia
e a psicanálise estão em dois planos diferentes: a atitude psicanalítica não é a
busca da própria psicologia dos fatos e, por outro lado, a busca da explicação
psicológica implica o abandono da atitude propriamente psicanalítica.
Essa atitude traduz-se muito bem na Traumdeutung: após ter descrito os
fatos que a psicanálise permite descobrir, Freud procura sua explicação numa
seção à parte, na seção intitulada "Psicologia dos processos do sonho". Tratava-
se, até aí, de interpretar e analisar o sonho, trata-se, agora, de explicá-lo. "Até
agora, ocupamo-nos essencialmente de procurar o sentido oculto dos sonhos,
que caminho permite encontrá-lo, que meios o trabalho do sonho usa para es-
condê-lo. Eram as exigências da interpretação dos sonhos que, até agora, esta-
vam no centro do nosso interesse" (4ª ed. alemã, p. 404). 73 Trata-se agora em
73 Esta é a primeira citação da Traumdeutung que seª ref~r: à ediç~o alem~. Ela nos indica que_Poli~zer
utilizou além da tradução francesa de Meyerson, a 4 ed1çao alema, ou se1a, a de 1914. Como e sabido,
outras ~uatro edições sucederam-s~: a 5ª (~918), 6ª (1921), a 7ª (1922) a S3 (1929). Consid~ro rel:-
vante esta informação pois Freud mtrodu21u paragrafas e notas de rodape ao longo das sucessivas edi-
ções de sua obra publicada com a data de 1900._Sobretudo em 1914 e 1919 :n_contramos acréscimos
significativos no texto. Esta citação feita por Politzer, encontra-se na Nova Echçao, PUF, 1993, p. 434.
(NRT)
6 Capítulo Gnco
,mensurável, ainda) das tendências que se incorporam ao que resumimos sob o
termo amor. " E os desenvolvimentos do nosso capítulo III mostram suficien-
temente com que engenhosidade Freud tenta realizar o ideal em questão.
Fica claro que Freud nunca duvidou do edifício central da psicologia clás-
sica. Os métodos desta podem ser imperfeitos, os psicólogos clássicos podem
ter se mostrado cheios de preconceitos e limitados sobre certas questões, mas
j tu~o is~o ~ó leva a examinar novamente as teses e não os fundamentos: a psicoi..,
/ logia classica deve, certamente, ser submetida a um trabalho, mas apenas a um j
trabalho de revisão e de ampliação.
Ora, uma vez que se tome essa atitude, é impossível interrompê-la e nun-
ca em qualquer momento poderá surgir a incompatibilidade dos fatos novos
com a psicologia antiga, pois será sempre possível levar mais adiante a articu-
lação e a ampliação das suas hipóteses e das suas noções. Eis por que Freud só
pode fazer o trabalho especulativo anunciado, sem nunca poder perceber que
está refazendo, em sentido inverso, o caminho das suas próprias descobertas.
Se ao executar esse trabalho puramente formal, que é apenas o desenvolvimen-
to mecânico de alguns esquemas, ele pode achar que explicou realmente, é que
estamos "fixados" no ideal científico da psicologia clássica.
O empreendimento de Freud, considerado em sua fase teórica, represen-
ta, portanto, o antípoda do nosso. Para nós, tra! ava-s~ de desenvolver a 2sico-
logia contida nos fatos e método p; canalíticos, enquanto que, para Freud, o
problema é inverso: encontrar a psicologia cl~ da gu~ e P..9.del!l gedup r os
fatos psicanalíticos, e, por ela não existir, é preciso inventar
.
uma.
. .
De princípio, fica evidente que a atitude de Freud é a primeira que se impõe
e o faz mesmo da maneira mais natural. Com ajuda da psicanálise, descobre-se
um certo número de fatos: eles são imediatamente considerados como fatos da
vida interior. Essa idéia é tão n~tural que existem textos em que Freud considera
a própria associação livre como forma da reflexão ou da introspeção. Claro que,
nessas condições, tudo o que a psicanálise nos traz são informações sobre essa
realidade interior que a psicologia clássica pretende estudar: todo progresso nas
descobertas psicanalíticas passam a ser, então, um motivo para levar mais adi-
ante o desenvolvimento das nossas idéias sobre "o aparelho psíquico".
Tendo em vista essa "fixação" ao ideal da psicologia clássica, geral em sua
época, Freud é necessariamente levado a tomar a atitude que acabamos de des-
crever. A única coisa que poderia tê-lo impedido era desligar-se desse ideal. Ora,
isso foi impossível, sendo que, pela sua própria posição, ele impõe à psicologia
1
Capítulo N , item VI .
-,.;i- 5
Cf. textos citados na p. 109.
76
Cf. para os textos acima, capítulo III, § 2 início, pp. 105-106; § 115 e, em geral, a última seção da
Traumdeutung.
n Trata-se do conceito kantiano de "númeno". Politzer realizou sua leitura da obra de Freud
ce~rio domina?º pelo mov~ento _neok~tiano. Suas resenhas sobre L. Brunschivicg, J. Nabert
Robinson, publicadas na revista Pht!osoph,es, em 1924, por ocasião do segundo centenário do nasci-
n:r
mento de Kant, são exemplo_s relevantes. ~ s_ições do autor sobre o relato em primeira pessoa (psi-1..-
cologia concreta) e em terceLra pessoa (psicanálise) sustentam-se na ontolo~a moderna fu d d , ,
Kant. Cf. A Filoso(ia e os Mitos, op. cit. (NRTI -- n ª ª po~
III
Pa~a mostrar a psicologia concreta em a~ão, devemos salientar o caráter
ver~ade1ro de um certo número de novas noções que Freud foi levado a intro-
du21r em conseqüência da análise dos sonhos e das neuroses, e que desempe-
nham um papel preponderante nas explicações técnicas. Consideraremos,
essencialmente, duas: a identificação e o complexo de Édipo. 78 •
A identificação consiste na fato de que "o eu absorve, por assim dizer, as
propriedades do objeto" (Psychologie Collective et Analyse du Moi, tradução fran-
cesa, p. 60). Uma criança "que teve a infelicidade de perder um gatinho declara
de repente que ele mesmo era esse gatinho, pôs-se a engatinhar e não quis mais
comer na mesa etc." (ibid., p. 63).
Não se deve confundir a identificação freudiana com a imitação da psico-
logia clássica, "a passagem imediata de uma percepção, na maioria dos casos vi-
suais, para um movimento que reproduz a causa da percepção". Embora se
possa discutir a nossa definição para substituir os termos "estáticos" por ter-
mos "dinâmicos", o que está claro é que semelhante definição que faz abstra-
ção do sentido do ato em questão é inteiramente formal: só se considera o
mecanismo geral do ato. O fato de esse mecanismo estar descrito em termos
de elementos ou em termos de atitudes não muda nada no seu caráter formal.
Além do mais, o sujeito é eliminado não só porque, na maioria dos casos, será
feito da imitação um pequeno drama em terceira pessoa cujos atores são os ele-
mentos, mas porque, levando em conta o formalismo, não há proposta de con-
siderar a imitação como sendo, no seu próprio teor, algo da vida do indivíduo
particular. Longe de orientar-nos para essa vida, a imitação nos afasta dela: apa-
rece como uma função geral, como o hábito, por exemplo, ou a memória, e
tudo o que a psicologia clássica pode fazer é procurar-lhe o mecanismo geral,
descrever-lhe o desenvolvi1 ento,g~ral, enfi~, estudá-lo em si. .
A identificação é, pelo contrano, essencialmente um ato que tem sentido:
v ata-se, para o sujeito, de ser outro ou algo outro que ele mesmo, trata-se de
78
N-ao se t ra t a de fornecer a lista de todas as noções e explicações concretas
- 1que
· -se encontram em·
F d s ou melhor modelos capazes de mostrar que noçoes e exp 1caçoes
reu , mas exemp o , 1 , " f • ·• d •· concretas
· - • exis-
tem efetivamente na psicanálise. Eis por que não falamos da trans erenaa , nem a mtroJeçao , nem
do "complexo de inferioridade" de Adler etc.
79
Cf. mais adiante, p. 178.
00
Cf., por exemplo, Traumdeutung, 4ª ed. alemã, p. 114ss.
81
Zur Einleitung des Narzismus e Psychologie Colletive et Analyse du Moi.
82
Psychologie Col/etive et Analyse du Moi, capítulo VIII.
83
Das Ich und das Es, capítulo III, p. 32ss.
Cf. acima, capítulo I, item IV, pp. õ/-69.
CONCLUSOES
AS VIRTUDES DA PSICOLOGIA CONCRETA
E OS PROBLEMAS QUE. SUSCITA
--
veis da psicologia: a psicologia abstrata e a psicologia concreta. Aprofundando
a maneira como Freud vê os problemas e concebe seu método,"' chegamos a des-
tacar as principais características da psicologia concreta. Uma vez de posse das
suas exigências, pudemos descobrir os procedimentos fundamentais da psico-
logia clássica, como o realismo, o formalismo e a abstração.
2. - Os esclarecimentos a que pudemos chegar, com a ajuda da psicanáli-
se, sobre as exigências da psicologia concreta revelaram-se instrumento de crí-
tica eficaz no exame da psicologia abstrata. Acontece, todavia, que a psicologia
concreta, oriunda da psicanálise, deve começar por virar-se contra a abstrata e
servir de princípio a urna crítica interna: tivemos de constatar em Freud, sobre-
tudo no momento da elaboração teórica dos fatos, aberto retomo à abstração.
Esse retorno está muito claro e estabelecemos a sua existência não só pelas nos-
sas observações a respeito das noções que Freud introduziu na Traumdeutung,
mas sobretudo mostrando que só os procedimentos clássicos permitem dar
um sentido à hipótese do inconsciente. Reencontra~ 1_?s_sirn.i_m~smo n_Q ~ -
Jerior da psicanálise, a oposição entre a psicologia concreta e a psicologia abs-_
trata.
3. - Para que a constatação dessa dualidade não se volte contra o nosso
empreendimento, mostramos não só que os "erros freudianos" representam
urna etapa necessária no desenvolvimento da psicologia concreta, mas que a
psicologia concreta, da forma como resulta da psicanálise, pode fazer muito
mais que conceber um ideal científico e formular exigências, sendo que ela já é
,atualmente viva, porque existe na própria psicanálise certo número de noções
Condusões
ora, basta lançar um olha; _sobre a história da psicologia nos cinqüenta úl-
. nos e lembrar-se das cnticas com que as tendências antagônicas se au-
nrnostruírall1
a . d.1atamente que nunca se enunciou um programa
para ver ime
tod. esl 'oico capaz de atender a essas tres " cond.1çoes ao mesmo tempo. Muito
Psicoºº~
lo contrário, tem-se procurado, geralmente, resolver o problema sacrificando
rsegunda ao _ _ erra. A demonstração precisa desse pon_w não pas-
saria de u~ de erud1ç~o. abe-se que as ps1cologias mtro~pecqorustas sa-
.fjcararn a tercemrcorn:hç e as ob1et1v1stas, a segunda, isto e, na mechda em
cn euns conseguiam salvaguardar o caráter puramente psicológico do objeto da
q~icologia, retiravam-lhe toda realidade científica; enquanto os outros só con-
;eguiarn pôr na base da psicologia_fatos _reais, sa~ficando_a própria_ psicologia.
Dessa maneira, chega-se a ps1cologias que, nao possumdo senao a metade
da sua essência, são incapazes de atender à primeira condição: não podem esta-
belecer-se a posteriori, pois são obrigadas a substituir por mitos, como fazem os
adeptos da psicologia fisiológica, essa ciência com que sonham sem poder reali-
zá-la. Por isso mesmo as psicologias em foco devem revelar-se, revezando-se, in-
suficientes, mas, como a impossibilidade de atender ao mesmo tempo as duas
condições em questão continuam persistindo, procura-se resolver o problema
vidade fosse resolvido. Não perceberam que uma tentativa desse gênero só po-
dia ser uma vasta ignoratio e/enchi e uma petição de princípio. lgn~a'!.:!...:!e!!..chi,
porque não se trata de saber qual é a face objetiva dos fatos da psicÕ!õgia clá~~,ica
mas, sim, qual o resultado que o estudo objetivo do psíquico em si pode propiciar;
e petição de princípio porquer antes de procurar estudar a fa~ _!Jjetiv~ dos fatos
psicológicos no sentido clássico da palavra, trata-se de saber se o estudo objeti-
vo dos fatos psicológicos não desembocará num resultado totalmente outro.
Ao procurar estudar os fatos psicológicos "de fora", os psicólogos em questão
~.!:ª~ tais e quais os dados da psicologia clássica, enquanto a psicologia
nova devia voltar a examiná-los.
De fato, houve apenas uma tentativa sincera de psicologia objetiva: o
behaviorismo, tal como resulta das idéias fundamentais de Watson. Foi preciso
cinqüenta anos e os sucessivos fracassos de Wundt, Bechtherev e outros, assim
como a revelação do caráter mitológico da psicologia fisiológica logo que extra-
pola a fisiologia das sensações, para que do estudo do comportamento animal
surgisse, enfim, uma concepção positiva no sentido rigoroso do termo.
O grande mérito de Watson, o dissemos desde o início, é ter compreendi-
do que o ideal da psicologia, ciência da natureza, implica uma renúncia absolu-
ta e sem condições à vida interior. Até a.!, as psicologias só eram objetivas nos
prefácios e tinham o hábito de rein~Üzir--ç.o texto, com mais ou menos in-
genuidade, as noções introspectivaf Watson compreendeu que a atitt!_de sin-
ceramente científica exigia que se Jize.sse tábula rasa de tudo que é introspeção
e espiritualidade, conseguindo o q_ue tinha passado despercebido aos maiores~
ca~pe~es da psicologia objeti~a: pensar a~é fi.1JJ- a ·exigênc,:a -;;;J,Útividade em
ps1colog1a. Dessa mesma maneira o behav1onsmo traz uma revelação de valor
definitiva, a saber, que seus predecessores em psicologia objetiva, WuQdt, Be-
chetherev e outros, são comparáveis a peripatéticos que querem pesar o diáfa-
no e estudar pela estroboscopia a passagem do poder ao ato.
Mesmo conseguindo apresent~-uma concepção da psicologia conforme o
ideal da objetividade, a tentativa de Watson é marcada pela mesma insuficiên-
cia das anteriores~ ~ ade, mas _p_erde~psic_~ ~ -A prova é que
apenas Watson começou a tirar as conseqüências da sua descoberta, na qual
logo os psicólogos americanos puseram-se a procurar um "behaviorismo não fi-
siológico".
De fato, só o comportamento e seu mecanismo visto de fora podem inte-
ressar a um behaviorismo no sentido próprio da palavra. Mas, então, a psicolo-
gia é tão objetiva que se afoga, por assim dizer, na objetividade, e tudo o que o
184 Condusões
behaviorismo poderi , · ar s ia da ordem da mecânica animal. Aí está mna
solução desesperada; behaviorismo suprime o enigma do homem e em seu
l~gar, precisamente por ter eliminado o que era es~c;íficodo fé!to p~i~ológico,
~ e_od~?f~rec~~ pr~~e~sas. ~ 1' .lftt ,-t': .• ·.: ·, (J, ... _l,,l>s:
Dai a 1ncapac1dade do behavionsmo enquanto psicologia e o problema do
behaviorismo não fisiológico. ',):;f, ...
9. - Aqui també~ a incapacidade é devida ao fato de, na própria posiçã~--· .r_', ,_
do problema, ser a atitude motora do realismo clássico que atua. Compreen-
dendo com precisão que a vida interior é incompatível com a objetividade,
Watson passou, simplesmente, para a percepção externa. Claro que, comove-
remos daqui a pouco, sua proposta objetiva é menos simplista que a dos seus
predecessores, mas resta que também aceitou a alternativa "dentro ou fora", a
diferença toda residindo no fato de que o "fora" está, desta vez, mais biológico
que fisiológico.
10. - O que impede a psicologia de tornar-se ciência positiva é que, não
podendo satisfazer senão parcialmente às suas condições de existência, está fe-
chada na antítese da objetividade e da subjetiviaacfe. Pfira escae~ , gi__eis çiye
sair do ecletismo vulgar que caracteriza hoje o..,esicó!9_go J11é~, precisa de um<!
síntese no sentido próprio do termo. Se a psicolggia clássica é incap~ de realizar
essa ~ntese, é porque acredita que o fato psicqkSgico deve ser um dado percepti- }
vo. Só se pode, então, escolher entre a alternativa clássica da percepção interna
ou da percepção externa ou ainda recorrer às duas ao mesmo tempo, o que, ma-
nifestamente, implica a ignorância do assunto.
Paré!_~_!:!perar a antítese d ássica,_teria.sigo necessário ~ nunciqIA~ fato
psicológico numa pe!cepção qualqu~ co_p.sen~ir em lançar na base da ciên~i~ ~ ·
psicológica u1;1 ~to de c~nhecimento numa estrut_u!..a mais eleva~a queª. s~m12les p~~- ·
cepção. Era o uruco me10 de atender, concom1t~ntemente, as conc;l1çoes de_on- \
ginalidade e de objetividade, isto é, encontrar_um campo original e objetivo,
.sem que essa originalidade fosse a de uma "ma~éria" nova e sem qu_e...e~q,bje-
tividade fosse a da matéria física, enfim, escaP.ar da alternativa çlo "dentro" e
do " --". _ -- _
11. ' Por ter abandonado o realismo f Omci atitu·d~t tlndamental que ele
im M t a, a/psicologia concreta encontrou fio drama humano} 1m grupo de fatos
mesmo como 3mr,3-
que atendem às condições g!:!,e a~ bamos de enun~ ~ pre~ n_ta-s~ Pº.!2~º
ira síntese da f?SicõlogiaJiJ.fte!iva~ dCJ,./2.SJcologiq objt1iv.iJ
Ao escolher odrama por campo de estudo, nao e mais uma percepção qual-
quer que é o ato con_stit_, ivo da ciência psicológica. Não é a percepção externa,
-
ã'fãmática do indivíduo que nele se desenrola.
Mas o drama não é nada "interior". Na medida em que requer um lugar, , -
o drama desenrola-se no espaço como o movimento ordinário e como, ~ e-
ral, todos os fenômenos da na~ureza_. Poi~ ~l~g~r em que ~stou a_tual~e~t~
é simplesmente o lugar da minha vida fis101og1ca e da mmha vida b1ologica,
/ tããibém o lugar da minha vida dramática e, mais ainda, as ações, os ~rimes, a~
Toucuras têm lugar no espaço, assim como a respiração e as secreções internas.
- Sob outro ~sp~cto, é verdade também que o espaço só pode conter o arca-
bouço do drama: o elemento propriamente dramático deixou de ser espacial.
...Mas tampouco é interior, pois nada mais é que a significação. Ora; esta não te~
e não pode ter assento em lugar: não é interior, nem exterior; ela está além, ou
melhor, fora desses possibilidades, sem que isso comprometa de maneira algu-
ma a sua realidade.
. l ;
CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA ~;it'
15. -Se o drama não é exterior e nem interior, no sentido espacial do ter-
mo, é todavia "exterior" no sentido lógico. Pois é de fora que o psicólogo aborda
o drama e que procura compreender-lhe o sentido e o mecanismo; o drama
apresenta-se diante dele como qualquer realidade; deve explorá-lo como se ex-
plora a natureza. Sob esse aspecto, o fato psicológico é objetivo, embora essa ob-
jetividade não seja a da percepção exterior. Com efeito, se o fato psicológico é
objetivo, não é por ter extensão ou por ser mensurável, mas porque, no plano
do realismo empírico da ciência, é exterior ao ato de conhecimento que o abor-
da; sob este ponto de vista é-lhe, até, transcendente; tem sua dialética própria
e só pode ser conhecido de modo mediato pela ajuda dos dados do relato. Em
outros termos, o fato psicológico é objetivo, não por confundir-se com o objeto
das ci~nci~s da natureza e ser o que é, -mq_gporque s~ êomporta da mesma
maneira diante do ,
. Por isso mesmo, os dados { ~cologia concreta, sem serem experimen-
tais no sentido vulgar da palavra, são, de direito, :universalmente acessíveis e
~, verificáveis.Qualquer um pode empr~e!\.de1, çom ajuda do método do relato, ,. r
1
a descrição; a análise do drama. T T Í" f -.J
16. - E com razão que afirmamos que a psicologia concreta representa a
verdadeira síntese entre a psicologia objetiva e a psicologia subjetiva. Dá razão
àquela que não quis uma psicologia que não fosse objetiva e à outra por ter op-
tado pela conservação do caráter próprio da psicologia, mas condena as duas
por terem sacrificado tudo ao que só representa uma das condições de existên-
""cia da psicologia positiva. Realiza, ao mesmo tempo, o que nenhuma delas ':
pôde fazer: uma psicologia objetiva, ao mesmo tempo que propriamente psicológica. __)
A realidade do fato psicológico tal como definido pela psicologia concreta
está livre de qualquer auréola metafísica. Sua afirmação não implica a existên-
cia de uma nova essência no sentido realista do termo, mas apenas a de um
grupo de fatos que não levam, de forma alguma, à antítese clássica do espírito
- e da matéria: a psicologia não conhece nem um nem outro, só conhece o dra- ç_
,./ ma. Os fatos psicológicos levam-nos à presença de um mundo novo, mas um j
mundo de conhecimentos, não um mundo de entidades e de processos sui generis;
... a psicologia não nos libera o acesso a uma realidade que possa ser oposta ou jus-\ .,,
) ta posta à natureza. Em resumo~ a_psico/ogia concr:ta não conhece a matérw p2.qui- •/
ca ,;,,
e o que é infinitamente mais importante, nao se contenta com a negação , ,
-
alma-substância não representava nada, ou, se preferir, era apenas um começo.
--- -------
O que é preciso é a vitória sobre a metae_sicolo~ dé!._vidaj ~_ rior.
Em segundo lugar, é preciso saber que, sacrificando as evidências em
questão, só se sacrificam falsos problemas. Pois uma parte das evidências a se-
rem sacrificadas revela-se - e procuramos demonstrá-lo ao longo do presente
trabalho, assim como nos que se seguirem - como o efeito de uma "ilusão
transcendental". Claro, outras poderão ser retomadas, pois parecem ligadas a
fatos reais. Assim é, por exemplo, que o "relato" implica a "memória" e parece-
nos impossível não estudar esta. ~ s é preciso sa_~~r que _n--ª? é ~ ória ~ e
interessa ao psicólogo concreto, mas a lê'?!P~ª~ª, enquanto esclarece o drama,
este, por ser o objeto primeiro d~ psicologia - a Ipemó1ia em si só aparece
' como uma suposição longínqua. De qualquer maneira, é preciso adotar resolu-
. tamente a atitude da psicologia concreta com todas as suas conseqüências ,
abordar, só depois, certas partes da psicologia abstrata atual, cujo sacrifício apa
rece hoje como arbitrário. Só depois disso se poderá ver se os problemas en
questão podem ou não ter uma significação concreta.
l \111 Coodusões
Em resumo, para a geração que assiste a um progresso científico, a vitória
sobre as evidências clássicas parece impossível, e os que preconizam sua neces-
sidade são sujeitos a recaídas esporádicas. Éque a transforma_ção das evidência~
opera-se pouco a pouco, mas seguramentê'eia se opera, e, para a geração se-
guinte, o problema quase não existe, e tudÕãparece numa luz nova. -- . " ,'
20. - O que esta pesquisa nos ensina ã respeito da psicologia ~oncreta só
se refere à sua necessidade e à sua vitalidade, mas a idéia que fizemos dela até
agora deve ser aprofundada. Esse aprofundamento não deve ser a priori, nem
deixado ao acaso. Ele deve ser feito, por um lado, examinando, com a ajuda des-
se fio condutor que constitui nossa concepção atual da psicologia concreta,
(' aquelas tendências da psicologia contemporânea que denotam para uma orien-
tação concreta; e, por outro lado, adotando o plano que nos é dado pelos pro-J ..
blemas decorrentes da psicologia concreta, tal como a encaramos até aqui. tJ}
21 . - A psicologia concreta orienta-nos, em primeiro lugar, para o behavi-
orismo.85 Na presente obra utilizamos correntemente o termo "comportamen-
to" e nos agradou totalmente. Mais ainda, vimos desde nossa intrcx:iução que
atribuímos à tentativa de\Watson uma importância capital. É que o behavio-
rismo deve a sua existência a uma inspiração concreta.
Esqueçamos o lado sensacional e o aspecto escandaloso do behaviorismo,
isto é, a negação radical e verdadeiramente impiedosa da consciência, da intros-
peção e de todas as noções introspectivas, para nos deter nesta proposição fun-
damental: "O fato psicológico é o comportam~nto." ~ rmos depois.
abstração da interpretação de W atson que se fecha inteiramente na concepção
puramente .fisiológica da dupla "estímulo/resposta", ª~chamas que o comportf -
m ento é realmente um segmento da vida do indivíduo particular.
De fato, afirmar que o fato psicológico é o comportamento é renunciar a
reconstituir o homem pela combinação de um conjunto de conceitos de ori-
l92 Condusões
Ili..
quisa que o exame do que há de vivo e de morto no behaviorismo será de uma
importância capital.
Essa pesquisa mostrará se é oportuno, e em que direção, constituir um.a
psicologia geral, ao mesmo tempo em que os quadros e as noções que a orienta-
ção concreta desta supõe.
23. - Da mesma maneira que as nossas análises nos levaram a utilizar a
noção de comportamento, assim também a noção de significação e mesmo a de
forma tiveram, em nossas demonstrações, um papel fundamental. É o drama
que temos dado como objeto da psicologia concreta. Ora, o drama comporta
essencialmente as noções de significação e a de forma. Por isso mesmo a nossa
pesquisa orienta-se, por um lado, para a tentativa de Spranger e, por outro lado,
para a Gestalttheorie, em geral. Af também estamos diante de uma tendência
cuja inspiração é nitidamente concreta, mesmo que seja só pela introdução do
ponto de vista do sentido e pelo abandono da análise elementar.
Mas, significação e forma, tais como intervêm na psicologia concreta, não
têm o mesmo sentido em Spranger e entre os adeptos da Gestalttheorie e, por
outro lado, é preciso ir mais longe que o abandono puro e simples da análise
elementar, pois é preciso que esse abandono seja, ao mesmo tempo, a renúncia
..,à metapsicologia .
, . Em resup:10,J)ão.aprofunda_moJ_é!._q'E._~ ~l,dª a..de significação nem a d~
drama, nem chegamos a._determinar suas re!êções com precisão.. -Ora, são essas
as noções fundamentai~ da psiçologia concret a. para precisá-las, se~á ~~cessá~
estudar a Gestaltth~orie.
24. - Esses estudos deverão trazer mais um resultado que, embora não in-
teresse diretamente o futuro da psicologia concreta, interessa à crítica da pró-
pria psicologia clássica.
O estudo da psicanálise permitiu isolar um certo número de procedimen-
tos fundamentais da psicologia clássica. Ora, a fim de que a crítica possa escla-
recer tudo a respeito desta, é indispensável estabelecer a lista completa e a análise
"total" dos seus procedimentos. Desse ponto de vista, mais uma vez, o estudo
das duas tendências de que falamos há pouco é interessantíssimo. Pois, se cada
uma delas participa, em certa medida, do concreto, este mostra-se sob outros
aspectos, que não os da psicanálise. Podemos, portanto, descobrir procedimen-
tos clássicos que o estudo da psicanálise não revelou ou aprofundar sob novo
ponto de vista os procedimentos que já conhecemos. Essa expectativa é tanto
mais legítima que a Gestalttheorie, por exemplo, está baseada na crítica desse
procedimento clássico, que é a análise elementar. Tratar-se-á, então, de saber
já, uma coisa está certa: com a psicologia concreta, a ps~col~~1a ingressa n1:ma
nova via: oeswdo do homemconcreto. Mas essa preocupaçao soe nova em rel~5ão
aos psicólogos oficiais; na realidade, só representa a volta da_ psicologia para
esse desejo que é a fonte primeira da confiança da qual a própna psicologia ofi
oal viveu até agora. Esse desejo é o de conhecer o homem. ~ o ace1~a.Ilazer des-
se desejo um programa científico, a psicologia concreta sistematiza a grande
tradição concreta que alimentou sempre a literatura, a arte dramática e a cícn
eia dos sábios, no sentido prático da palavra. Mas a psicologia concreta, ainda.
que tendo o mesmo objeto. oferece mais que o teatro e a literatura:_oferece a
ciê11c1a. Eé assim que cl~ gQremos a uma psicologia que não é, como a psico!o-~
gia clássica, menos, mas mais que os ensinamentos das observações vulgares do
homem. l
26. - O desenvolvimento da psicologia reserva-nos, certamente, grandes
surpresas, pois a história de uma ciência não se adivi nha a priori. A psicanálise é
um começo e é preciso, agora que se fez luz a respeito da sua essência verdadei1a,
continuar as pesquisas situando-se num novo ponto de vista. Por outro lado. o
bet'.aviorismoe a Gestalttlteorie devem também reformar-se por completo; pode-
se dizer que, do ponto de vista técnico, tudo resta por fazer. Os progresso!> t&.
nicos influirão, certamente, na maneira de conceber os fu ndamentos. Mas o
cert~ é que~ não há ~sibilidade de volta. A psicologia nunca pooerá voltar ao
re.alismo e a abstraçao: o problema está lançado num terreno completament\.'
r~~-~unca poderá retornar_à psicologia f~si~lógica, nem à íntrospectiva. dois
oostacu.os barram-lhe o cammho o behav1onsmo e a psicanálise Numa f:ÃW
vr.a, ,e ;ua!q~ ~ue seJa a imprecisAo ~()S nossas fórrnulas tt'-<:ntrJ..~ e a rcsson5n
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