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H519 Henrique, Márcio Couto


Sem Vieira nem Pombal : indios na Amazônia no século
XIX
/Márcio Couto Henrique. - Rio de Janeiro :EdUERI, 2018.
260 p.

ISBN 978-85-7511-463-6

1. Índios da América do Sul- Brasil


-História. Il|Titulo.
CDU572.9(81)
Bibliotecária: Luciana Avellar CRB7/4544
INTRODUÇAO: PROTAGONISMO
INDÍGENA, SEM FORÇAR AMÃO

No BRASIL DO SÉCULO XIX, muitos acreditavam que os índios seriam ex


tintos num futuro breve. Em 1844, no trabalho vencedor do concurso
lancado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) Com o
titulo Como se deve escrever a história do Brasil, Martius defendeu a tese
da degeneração dos indios e concluiu que "osangue português, em um
poderoso rio, deveráabsorver os pequenos confluentes das racas India e
Etiópica" (1844, p. 391).
Alguns anos depois, Adolfo Varnhagen, considerado um dos fundado
res da historiografia brasileira, afirmou em sua obra História Geral do Brasil,
escritaentre 1854 e 1857,que "a gente de origem europeia posta em contato
com ada terra não a exterminou, absorveu-a: amalgamou-se com ela. Tal é
a verdadeira razão por que de nossas provincias desapareceuquase absoluta
mente o tipo indio" (1962, p. 246). Varnhagen também considerava que os
indios pertenciam a uma raça decadente, em franca e ireversível degenera
ção, condenada àextinção, tanto pela violência dos conquistadores quanto
pela mestiçagem (Ferreira, 2003, p. 106).
Apartir do contato que estabeleceu com índios da Amazônia, em me
ados do século XIX, o naturalista inglês Henry Walter Bates concluiu que
ainflexibilidade de caráter do indigena e sua total incapacidade de
se adaptar a novassituações iro causar, infalivelmente, a sua extin
çåo, àmedida que forem aumentando as levas de imigrantes - todos
Cles dorados de uma organização mais flexível - e a civilização for
avançando pela região amazônica (1979 |1863). p. 40).
I4 Sem Vicira nem Pombal: índios na Amazónia do século XIX

Segundo ainterpretação de Bates, as culturas indígenas seriam estru


turas rígidas, pouco suscetíveis a influências externas, "sociedades imóveis
na tradição", imagem alimentada por antropólogos no século XX, segun
do acrítica de Serge Gruzinski (2001, p. 30). Diante de culturas "mais
flexiveis", como a europeia, as sociedades indígenas tenderiarn a se deses
truturar e a desaparecer, tal seria sua incapacidade de se adaptar a novas
situações. Portadores de um suposto "caráter inflexível", restava aos nativos
a morte oudeixar de ser índio a partir do momento en que entravarn em
contato com acivilizaço.
Acrença na extinço dos índios apaziguava os que temiam pelo futuro
de um pais constituido em sua maioria por indios e negros. Nesse sentido,
na segunda metade do século XIX, ogeneral Couto de Magalhes refletia,
em sua obra O selvagem:

Nosso grande reservatório de população éa Europa; não continua


mos a importar africanos; os indígenas, por uma lei de seleço natu
ral, hão de cedo ou tarde desaparecer, mas se formos previdentes
humanos, eles não desaparecerão antes de haver confundido parte
de seu sangue com o nosso, comunicando-nos a imunidade para
resistirmos à ação deletéria do clima intertropical que predomina no
Brasil (1940 [1876), p. 138).

Em sintonia conm as questões de seu tempo, oautor partia do evolu


cionismo social para o biológico. Segundo ele, em mil anos não haveria mais
no sangue dos habitantes do Brasil a mais leve aparència dessa "pobre raça"
(Magalhes, 1940 (1876], p. 119). Aextinção fisica dos indios eraconsiderada
inevitávele, de certa forma, desejada, restando o consolo de ter a memória de
sua existência na língua, na poesia nacional e no sangue dos brasileiros. O de
saparecimentodos indios era apresentado como resultado de um "processo
lento, porém sábio, da natureza" (1940 |I876), p. 138), seguindo a ligica das
ideias de Charles Darwinde que só Os mais fortes sobreviverianm à evolução.
A princípiovista como unm problenma, a mestiçagem, desde que teita
Com unma "raça superior;, passou a ser vista Como a solução parao tuturo ra
cial do pais e, nesse sentido, una ideia desenvolvila por Couto deMagalhães
(entre outros) foi fundamental: a aclimatação. Foi a partir dessa ideia, poste
riormente retomada por intelectuais como Silvio Romero, Nina Rodrigues
e Euclides da Cunha, que se chegou åformulação da chamada "teoria do
Introdução: protagonismo indígena, sem forçar a mão 15

branqueamento" (Azevedo, 1987; Schwarcz, 1993; Henrique, 2003). Funda-


mentada nas teorias raciológicas, entre 1880 e1920 atese do branqueamento
ganhouforos de legitimidade cientifica, desempenhando papel fundamental
noprocesso de misigenação OCOrrido no Brasil. Silvio Romero, por exem
plo, afirmou, em 1880, que
... a vitória na luta pela vida, entre nós, pertencerá, no porvir, ao
branco; mas que esse, para essa mesma vitória, atentas às agruras do clima,
tem necessidade de aproveitar-se doque de útil as outras duas Taças lhe podem
fornecer, máxime a preta, com que tem mais cruzado. Pela seleção natu
ral, todavia, depois de prestado o auxilio de que necessita, o tipo branco irá
tomando a preponderância atémostrar-se puro e belo como no velho
mundo. Será quando jáestiverde todo aclimatado no continente. Dois fatos
contribuirão largamente para esse resultado: de um lado, a extinção do
tráfico e o desaparecimento constante dos indios, e de outro a emigração
europeia (Romero, 1880, p. 53, grifos meus).

Afora odestaque de Romero para a "raça preta", notase a presença


dos mesmos argumentos utilizados por Couto de Magalhães para inspirar
confiança no "futuro racial" do país: o fim do tráfico, que naturalmente
diminuiria apresença numérica dos negros no Brasil; oprogressivo desapa
recimento do índio, determinado pela "seleção natural"; a pretensa supe
rioridade da raça branca e a ideia de que sua supremacia só se configuraria
- permitindo ao branco manterse "puro ebelo como noVelho Mundo"
quando ele jáestivesse "de todo aclimatado no continente" americano. Para
1SSO, era necessário ser "previdente e humano",conforme defendeu Couto de
Magalhães, não permitindo que os índios desaparecessem antes de confundir
Seu sangue com odos brasileiros, condição fundamental para a aclimatação
que garantiriao futuro civilizado doBrasil. Notese que, tanto paraCouto de
Magalhães quanto para Silvio Romero, a utilidade do indio estava restrita ao
Sangue que tornaria o branco mais preparado para consagrarse vitoriosO na
luta pela vida nos
trópicos.
Em 1882, Mello Moraes Filho publicou na Revistu du Exposição Anthro
pológica Brasileira índios". O
um artigo intitulado As causas da extinção dos
autor argumentava que "causas fisiológicas e mórbidas otornam incompatí-
vel àadaptação dos meios" (p. 23). Vese, novamente, a noção de que as cul-
es hdigenas constituem estruturas homogêneas, rígidas, tixas no tempo,
diferentes.
exigida pelo contato com culturas
Incompativeis com a adaptação
6 Sen Vicia 1cmPombal: índio% na Amazônia do século XIX

Mello Moracs Fillho prossegue: "incapazes de abandonar seus hábitos selva.


yens, a menor mudança os abate, os entristece e a anemia, a consumpção,os
libertam pela morte, de quaisequer condiçöes que não sejam as do seu viver
primitivo" (1882, p. 24).
A partir dessa impressão generalizante sobre o futuro dos índios da
Amazònia, produziramse previsões escatológicas para poVOs indigenas espe
cificos da regiäo. Sobre os Maué, habitantes do rio Tapajós, dizia Coudreau
que "como todos os outros indígenas, estes estão em processo de absorção
pelos civilizados, ou mesmo de extinção progressiva" (1977a |1897), p. 33).
Sobre os Munduruku que habitavam amesma região, oautor se propunha a
apresentar "com todoo desenvolvimento que ela merece, a biografia de uma
grande nação indígena em vias de extinção" (1977a [1897), p. 101).
No artigo "Armas e armadilhas: história e resistência dos índios",
John Manuel Monteiro (1999) fez referência a um fato facilmente
constatado na leitura dos manuais didáticos de história do Brasil: as
populações indigenas merecem destaque nestes manuais apenas nos anos
iniciais da colonização. Falase do contato entre índios e europeus, do
escambo, da catequese jesuítica. Depois disso, 0s indios desaparecem, para
reaparecer pontualmente em alguns episódios, como aliados na guerra
Contra os holandeses, vítimas dos bandeirantes (episódios circunscritOs ao
Brasilcolônia) ou protegidos do Marechal Rondon no início do século XX
(República). Monteiro concluiu que as populações indigenas "são povos
invisíveis em grande parte da história que se ensina convencionalmente"
que
(1999, pp. 237-8) e sua crítica não se reduz aos manuais didáticOs, eis
tende a liquidar
o autor refere que ahistoriografia profissional também
rapidamente com as populações indigenas em suas narrativas.
primitivismo"
Foi durante o Oitocentos que se cOnstituiua "ilusão de
frequentemente associada aos índio:
de triunfo do evolu
Na segunda metade do século XIX, essa época
sociedades teriam ficado
cionismo, prosperou aideia de que certas
portanto, algo como fósseis
na estaca zero da evolução, e que eram,
das sociedades ocidentais. Foi
vivos que testemunhavam do passado ocidental,
tornaram, na teoria
quando as sociedades sem Estado se
Introdução: protagonismo indígena, sem forçar a mão | 17

sociedades 'primitivas', condenadas a uma eterna infância (Cunha,


1998 (1992), p. 11).

Essa ideia de que os índios constituíam a infância da humanidade é


muitopresente na documentação sobre as populações indigenas do século
VIX. Em ofício dirigido ao presidente da província do Pará, o missionário
capuchinho Miguel Angelo de Burgio dizia que
Ofuturo desses aldeamentos, Exm. Sr., depende da
autoridade que
deve exercer o missionárioentre eles, pois estão na infância, por assim
dizer, e devemos ensinar-lhes tudo o que convém aos bons costumes
e ao regime de uma vida regular e verdadeiramente crist (Oficios..,
8fev. 1874).

Sem a proteção dos "civilizados", acreditavase, os índios seriam in


capazes de superar a "estaca zero da evolucão". Assim tamnbém pensavam os
missionários, que tratavam os índios como crianças que precisavam ser pro
tegidas. Entregues a si mesmos, sozinhos pelas matas, eles seriam portadores
de umapureza que lhesera prejudicial, pois os tornava frágeis.
Ao longo do século XIX, os promotores da política de catequese e
civilizacão dos índios titubearam bastante diante da crença na possibilidade
de retirar o índio de sua vida "errante", marca de sua inserção no limiar da
escala evolutiva, e inseri-lo no grêmio da civilização. Filha de seu tempo, a
produço historiográfica acompanhava esa "ilusão de primitivismo" associa
da aos índios brasileiros, sobre os quais afirmou Varnhagen: "de tais povos
na infância não há história: hásó etnografia" (1962, p. 30).
Diante dessa herança historiográfica que relegou ao indio papel se
cundário em nossa história, definindo-o como infantil, ingênuo, vitima e
Sem história, uma das primeiras tarefas do historiador é recuperar o papel
histórico de atores nativos na formação da sociedade brasileira (Monteiro,
179>a). E preciso superar a visão de que os indios foram vitimas indefesas
da colonização ou que apenas assistiram passivamente à ação histórica dos
europeus. Os índios do passado foram, e os do presente continuam sendo,
Sueitosda história. Conforme afirmou Manuela Carneiro da Cunha, "a per
cepção de uma política e de uma consciência histórica em que os índios são
sujeitos enão apenas vítimas, só é nova eventualmente para nós. Para os in-
,ela parece ser costumeira" (1998(1992), p. 18). Importa, então,destacar
a maneira como os próprios índios interpretavam os processos históricos dos
século XIX
I8 Sem Vieira nem Pombal: índios na Amazônia do

quais eram coparticipantes, quais os critérios que pautavam suas escolhas


Sua política de alianças, entre outros aspectos.

Na maior parte das obras de sintese da história do Pará ouda Am


zônia, a discussão sobre a história indigenaestá geralmente associada à ati
vidade missionária e chega, no máximo, até oséculo XVII, nas amarras d.
obras d.
memória da atuação jesuítica (Reis, 1940 e 1942; Cruz, 1973). Nas
populacões indi.
síntese mais recentes, nota-se a mesma invisibilidade das
genas do século XIX (Monteiro, 2005). Nas narrativas acerca do processo
de independência, da Cabanagem ou do período áureo de extração do lá
processos?
tex, a situação é amesma. Onde estariam os índios durante esses
Como explicar que, depois de tão presentes ao longo do século XVIII, em
de obra.
que constituiram o cerne dos debates em torno da questão da mão
culminando com a expulsão dos Jesuítas, em 1759, os índios desaparecem
nas narrativas históricas sobre a Amazônia oitocentista?
Muito embora invisibilizados nos manuais didáticos, que expressam o
lugar inexpressivo que a temática indígena tem ocupado em nossa historio
grafia,os indios sempre estiveram presentes em todos os períodos da história
daAmazônia, caso específico aqui analisado. Não apenas comovítimas, mas
como sujeitos históricos, elaborando suas próprias estratégias de enfrenta
mento dos não índios, num estorço constante de se incorporar na (ou de
incorporar a) política de catequese e civilização em seus próprios termos.
Se o que se preternde é destacar o papel dos índios enquanto sujeitos de sua
própria história, importa, então, enfatizar não os modos de inclusão dos in
dios na lógica global, mas sim as estratégias por eles utilizadas para pensar,
incorporar e neutralizar essa relação (Montero, 2006, p. 49).
Trata-se de uma difícil tarefa, se pensarmos que a documentação dis
da
ponível para isso foi produzida, em sua maior parte, por presidentes
indi
província, religiosos e demais responsáveis pela aplicação da politica
aparece
genista noséculo XIX. Nessa documentação, avoz dos indios não
diretamente. Mas ela está sempre presente, pois as tontes, apesar de sua
qual
pretenso àobjetividade, sempre registram narrativa polissemica, na
interlocutora. O desafio, en
a voz do indígena também se apresentacomo
não-indios, qual a
tão, étentar perceber, nadocumentação produzida pelos Paula
fontes. Conforme
perspectiva indígena sobre os fatos narrados nas
Montero, "Inlessas condições, a perspectiva indígena aparece de maneira
ótica dos interesses de
muito sutil, nas entrelinhas e sempre filtrada pela
Introdução: protagonismo indígena, sem forçar a mão | 19

quem os documenta" (2006, p. 13). Atarefa do historiador é procurar nas


entrelinhas a dimenso etnográfica, dialógica, dessa documentação, aqui
composta principalmente por relatórios dos presidentes de província, cor
respondências dos missionários e obras de viajantes.
Tal éa dificuldade e tâo pouco estamos acostumadoS a esse exercí
oio de dar visibilidade à ação indígena na história que, ao submeter para
publicação em formato de artigo a versão inicial de um dos capítulos desse
livro, recebi dos pareceristas anônimos os seguintes comentários: oprimeiro
destacava que "a leitura que lo autor]faz do papel simbólicodas mercadorias
no circuito do comércio dos regatões e dos índios, questionando a visão de
passividade e de ingenuidade atribuída a esses últimos, demonstra um cará
ter de originalidade em sua análise e proporciona uma resposta à demanda
crescente por um diálogo mais aberto entre os campos disciplinares da histó
ria e da antropologia, no caso:a etnologia". Do segundo, recebio veredito de
que "o autor força a mão nas conclusões no afã de dar espaço para a agência
dos índios'. De fato, compartilho da opinião do primeiro parecerista. Se
necessitamos de um conceito mais dinâmico de cultura e identidade para
compreender as trocas culturais entre índios e não-indios, também precisa
mos rever nossas noções de ação política, superar a noção de "resistência",
de modo a considerar outras formas de agência, mais marcadamente sim
bólicas, mas nem por isso menos eficazes.' E, para isso, odiálogo COm a
Antropologia é fundamental.
Em texto publicado em 1998, na obra História dos indios do Brasil,
Mary Karasch expressou a dificuldade de se perceber e valorizar a pers
pectiva indígena na documentação oficial. Analisando a política indigenista de
Goiás da segunda metade do século XIX, a autora escreveu que "lal
descrição da política indigenista em Goiás éunilateral na documentação
histórica. A perspectiva indígena raramente aparece nos registrOs oficiais"
(998, p. 397). Mas, ao longo do texto, Karasch vaiapresentando situações
eIn que a perspectiva indígenaquebra a suposta unilateralidade da politica
Indigenista na documentacão oficial. Vejamos dois exemplos: referindose

Nesse sentido, compartilho da reflexão de Manuela Carneiro da Cunha ao apontar para o


autores desenvolveram uma
Orto do uso da nocão de "resistência". Diz ela que "vários
certo 'resistenciocentrismo' [..] que,
D e e critica do reducionismo etnográfico de um das lógicas e formas
Oalmente, tende a ofuscar, comn sua retórica, a especificidade e sutileza
e agência' próprias dos atores sociais" (Cunha, 2002, p. 14).
| Sem Vieira nem Pombal: índios na Amazônia do século XIX

aos índios Canociros, diz a autora que "ao longo de todo oséculo XIX
recusaram-se a receber missionários ouse converteremeresistiram atodas
astentativas de conquista, continuando a atacar e matar colonos" (1998, n
400).Recusarse areceber um missionário significava negar apossibilidade
da "converso" aos principios do Cristianismo, àquela época visto como
porta de acesso à civilização. Era insistir em permanecer "pagão',seguindo
sua própria orientaço religiosa domundo. Mais do que recusar o contato,os
CanoeiroS atacavame matavam colonos,partiam para a ofensiva.Ora, o que
justificaria essa atitude dos Canoeiros se não a vontade de afirmar sua pró
pria leitura do mundo diante dos arautos da civilização? Tão ativos eram os
indios em suas ofensivas que "...] por algum tempo, parecia que os índios, e
não os goianos, iriam reivindicar Goiás aos portugueses, especialmente no
norte" (1998, p. 401), afirma Karasch.
Em artigo anterior (Henrique, 2010), relatei fato curioso narrado pelo
general Coutode Magalhães em sua obra Viagem ao Araguaia, envolvendo estes
mesmos índios. Conta ele que na década de 1840, o povo de Amaro Leite, em
Goiás, costumava se reunir na igreja matriz do povoadocom seu pároco. Certo
dia, os devotos perceberam que enquanto rezavam a ladainha dentro da igre
ja, ouviam-se vozes respondendo de fora o "ora pro nobis!". Mais espantados
ficaram quando, ao olhar fora da igreja, a fim de descobrir que vozes eram
aquelas, perceberam que "eram os Canoeiros que depois de haver cercado a
igreja, se divertiam em acudir a reza tirada pelos cristãos" (Couto de Maga
Ihãæs, 1975,p. 112). Para Coutode Magalhães, isto era uma prova do "pouco
caso com que por vezes nos tratam.Neste caso, chanmoatenção para o fato
de que os índios Canoeiros se apropriaram da linguagem dos brancos para
manifestar seu desprezo ou seu "pouco caso" pela religiosidade cristä. Em
outras ocasiões, eles costumavam dirigir "motejos aos viajantes e isso, se não
em português, pelo menosem português inteligível". Por fim, negavamse até
mesmo a pronunciar ou a falar corretamente os vocábulos de sua língua, "vis
toque entre eles écrime capital ensinarnos alingua" (Couto de Magalhäes,
1975, p. 112).
Por atitudes como estas,de ataques fisicos e simbólicos contra os não
indios, os Canoeiros receberam do presidente da provincia de Goiás, por
volta de 1880, o titulo de a gente 'mais feroz da província' (Karasch, 1995,
p. 400). As vozes dos Canoeiros diziam muito mais do que o "ora pro no
bis"; queriam mesmo quebrar o silêncio da oficina etnográfica, afirmando a
Introduço: protagonismo indigena, sem forçar a mão | 21

perspectiva indígena diante da trente de expansão que os pressionava em


Goiás. Se a perspectiva indigena aparece de maneira muito sutil na docu
mentação, cabe ao historiador estar atento a estes momentos, de forma a
valorizá-los em suas narrativas.
Olivroque ora apresento reúne, de forma mais sistemática, meu in
vestimento intelectual em pesquisa sobre a história dos índios na Amazônia
doséculo XIX, iniciado nos anos de 1990, ainda na graduação. Algumas das
discussões aqui presentes foram publicadas inicialmente em trabalhos ante
riores (Henrique, 1997; 2003; 2007; 2010; 2013; 2014).

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