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Introdução ao Brasil

UM BANQUETE NO TRÓPICO

ORGANIZADOR
Lourenço Dantas Mota

2ª edição

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasilein do Lino, SP, B."asil)

Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico, 2 / Lourenço


Dantas Mota (organizador.) - 2" ed. - São Paulo: Editora
SENAC São Paulo, 2002.

Vários autores.
ISBN 85-7359-176-5

1. Brasil - História - 1500-2000 2. Brasil - Livros -


Resenhas 3. Escritores brasileiros - Livros e leitura 4. Livros
selecionados - Brasil I. Mota, Lourenço Dantas, 1944-.

00-5102 CDD-028.10981

Índices pan catálogo sistemático: EDITORA


c:::::::J
1. Brasil : História : Livros clássicos : Resenhas : senac
Ciências da informação
2. Resenhas: Livros clássicos: Brasil: História:
Ciências da informação
028.10981

028.10981
DO
sÃo PAULO
ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DO SENAC NO ESTADO DE SÃO PAULO
T
I

Presidente do Conselho Regional: Abram Szajman


Diretor do Departamento Regional: Luiz Francisco de Assis Salgado
Superintendente de Operações: Darcio Sayad Maia
Sumário
EDITORASENAC SÃO PAULO
Conselho Editorial: Luiz Francisco de Assis Salgado
Clairton Martins
Luiz Carlos Dourado
Darcio Sayad Maia
Marcus Vinicius BariliAlves

Editor: Marcus Vinicius Barili Alves (vinicius@sp.senac.br)

Coordenação de Prospecção Editorial: Isabel M. M. Alexandre (ialexand@sp.senac.br) 7 97


Coordenação de Produção Editorial: Antonio Roberto Bertelli (abertell@sp.senac.br) Nota do Editor AFONSO D'EsCRAGNOLLE TAUNAY

Preparação de Texto: J. Monteiro


História geral das bandeiras paulistas
Jussara Rodrigues Gomes
9
Wilma Peres Costa
Revisão de Texto: Katia Miaciro Introdução
Maristela S. da Nóbrega
Silvana Vieira Lourenço Dantas Mota
TiemiK. 123
Capa: João Baptista da Costa Aguiar 25 ALCÂNTARA 11AcHADO
EditoraçãoEletrônica: Fabiana Fernandes
Impressão e Acabamento: Cromosete Gráfica e Editora Ltda. SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA Vida e morte do bandeirante
Visão do paraíso
Gerência Comercial: Marcus Vinicius BariliAlves (vinicius@sp.senac.br) Laura de Mello e Souza
Administração: Rubens Gonçalves Folha (rfolha@sp.senac.br) Ronaldo Vainfas

43 143
SERAFIM LEITE OLIVEIRA Ln.iA
História da Companhia D. João VI no Brasil
de Jesus no Brasil
Guilherme Pereira das Neves
João Adolfo Hansen

75 167
Todos os direitos desta edição reservados à FRANCISCO ADOLFO DE V ARNHAGEN JOAQUIM NABUCO
Editora SENAC São Paulo
História geral do Brasil O abolicionismo
Rua Rui Barbosa, 377 - 1Q andar - Bela Vista - CEP 01326-010
Caixa Postal 3595 - CEP 01060-970 - São Paulo - SP Lucia Maria Paschoal Guimarães Marco Aurélio Nogueira
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© Editora SENAC São Paulo, 2000


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191 299
T
I

SÍLVIO ROMERO
História da literatura brasileira
OLIVEIRA VIANA
Populações meridionais do Brasil
Nota do Editor
Benjamin Abdala Junior Gildo Marçal Brandão

327
219 GILBERTO FREIRE
JOAQUIM NABUCO Sobrados e mucambos
Minha formação
Brasilio Sallum Jr.
Maria Alice Rezende de Carvalho
357
GILBERTO FREIRE
237 Ordem e progresso
o primeiro volume de Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico,
MANUEL BONFIM publicado no final de 1999, assinalou um sucesso editorial no SENAC de São
A América Latina: males de origem Elide Rugai Bastos Paulo, premiando a idéia esplendidamente realizada de reunir estudiosos para
a apresentação de obras-chave da cultura nacional. Naquele "banquete" ser-
Roberto Ventura 385
\ viu-se um conjunto de resenhas que vai dos Sermões de Vieira à Revolução
FLORESTAN FERNANDES burguesa no Brasil de Florestan Fernandes, na intenção de que esses traba-
A integração do negro na lhos criassem "elos que iluminem nossos 500 Anos".
259 sociedade de classes Assim se quis e se fez, com resultados que a acolhida do público e da
ALBERTO TORRES
Gabriel Cohn crítica plenamente aprovou.
A organização nacional Este segundo "banquete", em que entram dezessete outras resenhas ex-
Rolf Kuntz 403 tensas a partir da referente a Visão do paraíso de Sérgio Buarque de Holanda,
DARCI RIBEIRO repete os elos criados no primeiro, já agora também no propósito de que esses
Os índios e a citilização se estendam à formação de um todo dos dois volumes, como bem explica o
279 João Pacheco de Oliveira
texto introdutório do organizador Lourenço Dantas Mota.
JOSÉ VERÍSSIMO Dá-se continuidade aqui ao que se pretendia e se conseguiu no primeiro
História da literatura brasileira volume de Introdução ao Brasil: ter muitos leitores participando da "viva
423 discussão sobre este país mestiço localizado no trópico".
João Alexandre Barbosa Sobre os autores
T

Introdução

Lourenço Dantas Mota


T
,
Do sonho de se encontrar o paraíso perdido nas novas terras da América,
até o balanço da integração de negros e índios na sociedade já madura do
século XX, as dezessete obras resenhadas nesta continuação do "banquete no
trópico" lançam mais luzes sobre o que foi a trajetória do Brasil nestes cinco
séculos. Ao mesmo tempo em que se retomam temas presentes no volume
anterior, são introduzidos aqui outros igualmente indispensáveis à compreen-
são da sociedade, da economia, das instituições políticas e da cultura brasilei-
ras, como veremos nesta introdução guiada pelos resenhistas. A questões como
a miscigenação, para citar apenas uma das mais importantes discutidas no
primeiro volume, vêm se juntar, entre outras, a expansão territorial e o
bandeirismo, a originalidade de nosso processo de independência e o peso da
herança da escravidão, que impregnou a sociedade brasileira.
Os dois volumes formam um todo, não só porque Sobrados e mucambos
e Ordem e progresso completam o estudo de Gilberto Freire sobre a socieda-
de patriarcal, ou porque Populações meridionais do Brasil é necessário para
a exata compreensão de Instituições políticas brasileiras, obra mais madura
e acabada de Oliveira Viana, ou ainda porque Visão do paraíso retoma teses
importantes de Raízes do Brasil. É também, por exemplo, porque sem a inter-
pretação do Brasil contida na História da literatura brasileira, de Sílvio
Romero, que influenciou estudiosos que em seguida se ocuparam do tema,
sem a análise do problema da escravidão de O abolicionismo, de Joaquim
Nabuco, e sem A integração do negro na sociedade de classes, de Florestan
Fernandes, a discussão iniciada no primeiro volume ficaria incompleta.
"Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil", subtí-
tulo de Visão do paraíso, são o tema que abre este segundo volume. Neste
livro - que se estrutura a partir de uma sistemática comparação entre as idéias
e imagens que portugueses e espanhóis construíram sobre os espaços ameri-
canos, como explica Ronaldo Vainfas - Sérgio Buarque de Holanda retoma o
questionamento da homogeneidade da colonização ibérica presente em Raízes
do Brasil. O problema central está exposto logo no primeiro capítulo, "Expe-
riência e fantasia". Interpretando o autor, Vainfas resume o essencial do con-
traste entre portugueses e espanhóis:

Do lado espanhol, predomínio de visões edenizadoras, recuperação e recriação das


imagens paradisíacas produzidas no Ocidente havia séculos; do lado português, pre-
domínio de visões pragmáticas, pouco afeitas ao ideário edenizador e, de resto, aos
elementos maravilhosos que caracterizavam o imaginário ocidental na época das des-
cobertas.

11
INTRODUÇÃO LOURENÇO DANTAS MOTA

Assim, aos portugueses corresponde a "experiência", enquanto a "fanta- o fim principal da missão jesuítica no Brasil e no Maranhão e Grão-Pará é ser útil para
a Igreja, combatendo as heresias e convertendo a gentilidade. Da perspectiva
sia" é principalmente hispânica.
missionária, o padre é um novo apóstolo que toma sobre os ombros os pecados do
Ao fim desse livro extremamente rico, talvez o mais erudito de nossa
mundo na "conquista espiritual" das novas terras, fazendo suas as armas de Cristo,
historiografia, diz Vainfas que "é por metáfora de uma colonização genuina- segundo o imaginário do testemunho e do martírio.
mente predatória que o autor conclui". Nas palavras de Sérgio Buarque:
Um dos alvos de Francisco Adolfo de Varnhagen, em sua História geral
Teremos também os nossos eldorados. Os das minas certamente, mas ainda o do
do Brasil antes de sua separação e independência de Portugal, é justa-
açúcar, o do tabaco, de tantos outros gêneros agrícolas, que se tiram da terra fértil,
mente a ação dos jesuítas, chamados de "sectários da pseudofilantropia de
enquanto fértil, como o ouro se extrai, até esgotar-se do cascalho, sem retribuição de
beneficios. Bartolomeu de Las Casas" por protegerem os índios. Foi o tratamento dado
por Varnhagen aos índios, observa Lucia Guimarães, a razão da má vontade
A ação missionária dos jesuítas, que durou 210 anos e deixou marca com que seu livro foi recebido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
profunda na sociedade colonial- "uma obra sem exemplo na história", segun- no qual prevalecia uma visão romântica das origens da nacionalidade, de inspi-
do Capistrano de Abreu -, é estudada na História da Companhia de Jesus ração indigenista. Avaliação equivocada, pois "trata-se de uma contribuição
no Brasil, do jesuíta português Serafim Leite. No vasto painel que traça nos rara, que contrastava com a escassa historiografia nacional da época, período
dez volumes da obra, o autor mostra as práticas catequéticas e educativas da em que poucos autores conseguiam ultrapassar os limites da crônica".
Companhia de Jesus, assim como as tensões e conflitos que envolveramjesuí- Do ponto de vista interpretativo, a história do Brasil de Varnhagen apre-
tas, indígenas, colonos, a Coroa, padres seculares e membros de outras ordens senta-se como uma continuação da história da metrópole. A idéia de continui-
religiosas, governadores gerais e funcionários da administração portuguesa nos dade, diz Lucia Guimarães, é "o fio condutor da sua narrativa desde a primeira
séculos XVI, XVII e XVIII. Quem se aventura nessa obra "que assombra página da obra", e o Brasil é visto como uma criação do império português.
pela paciência e erudição prodigiosas" - adverte João Adolfo Hansen - deve Outra característica é o papel privilegiado que atribui ao Estado, "daí a sua
ter em mente que sua documentação é fundamentalmente jesuítica, ou seja, é ênfase na primazia dos fatos políticos, relativamente isolados das forças eco-
uma história jesuítica da Companhia de Jesus. E feita de uma perspectiva nômicas e sociais". Em resumo,
portuguesa.
escrito no início da década de 1850, o livro reflete a problemática do processo de
Tratando de um aspecto essencial da missão jesuítica - a forma de enca-
consolidação do Estado nacional. Se a discussão acerca das raízes da nacionalidade
rar as culturas indígenas e africanas - esclarece Hansen que na conceituação
dividia as opiniões dos letrados, não há dúvidas quanto às origens do Estado [ ... ] O
de Serafim Leite a diferença cultural dos índios catequizados ou dos negros Estado estabelecido em 1822 constituía-se no legítimo herdeiro e sucessor do império
escravizados "não é antropológica, mas religiosa". No caso da catequese dos ultramarino português. Legado que se sustentava desde o idioma de Camões até a
grupos indígenas, presença de um representante da dinastia de Bragança no trono brasileiro. E não resta
dúvida de que Varnhagen foi o autor que melhor desenvolveu essas premissas.
a cultura dos grupos aldeados pelos jesuítas sempre é dada como evidentemente
humana, em oposição às teses colonialistas que muitas vezes afirmavam a animalidade A longa e minuciosa História geral das bandeiras paulistas, em onze
dos índios como validação de seu extermínio ou escravidão, mas de uma humanidade volumes, de Afonso Taunay, integra o revisionismo histórico iniciado por
caracterizada como semelhança negativa, distante e deformada da verdade cristã.
Capistrano de Abreu e inspirado na idéia de rever e atualizar a História de
Varnhagen,1 segundo Wilma Peres Costa. Se na historiografia que tinha suas
o que explica os conflitos freqüentes que opuseram os jesuítas aos colo-
nos interessados na exploração da mão-de-obra indígena.
1 Ver Ronaldo Vainfas, "Capistrano de Abreu, Capítulos de história colonial", em Lourenço Dantas
Como parte de um projeto histórico de renovação da fé católica na situa- Mota (org.), Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico (2 1 ed. São Paulo: Editora SENAC
ção da cristandade dividida pela Reforma, afirma Hansen, São Paulo, 2000), pp. 171-189.

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INTRODUÇÃO
T
tI
LOURENÇO DANTAS MOTA

raízes em Varnhagen - diz ela - a "invenção" do território era principalmente a compreensão histórica repousa também nos atos do dia-a-dia, monótonos,
uma obra da Coroa portuguesa, e a manutenção e consolidação da unidade repetitivos, banais e até mesmo mesquinhos. Sem julgar o passado - pois não
territorial do Brasil uma obra da monarquia e da continuidade dinástica dos compete ao historiador fazê-lo -, alertou que a pobreza da capitania poderia se
Bragança, "para Taunay os fautores do território foram os colonos, isto é, os transformar em categoria explicativa da sua história, e abriu caminho para o
sertanistas paulistas", que muitas vezes agiram em franca oposição à metrópole. estudo dos mecanismos culturais e econômicos da expansão paulista". E, em-
O que melhor caracteriza a contribuição de Taunay entre os estudiosos bora essa pobreza venha sendo relativizada por estudos recentes, a contribui-
do bandeirismo, acrescenta, é a ênfase no seu aspecto geopolítico. A grande ção de Alcântara Machado continua sendo um marco.
importância das bandeiras está na "expansão do território da América portu- Ao tratar do intrincado jogo diplomático que envolve a transferência da
guesa à custa do território pertencente à Espanha pelo Tratado de Tordesilhas, Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, e da nova realidade criada
dessa maneira legando à nação brasileira parcela significativa de sua dimen- por ela, Oliveira Lima traz, com o seu D. João VI no Brasil, importantes
são continental". O que não impede Taunay de reconhecer que a principal elementos para a compreensão das condições e características peculiares do
motivação dos bandeirantes foi a escravização do índio. Estabelece assim uma processo que levou à independência do Brasil, tão diferente dos de todos os
relação entre escravidão e formação territorial - "em dimensão até então não outros países americanos. Para ele, a decisão da Corte de vir para o Brasil
tratada entre nós", observa Wilma Peres Costa - e chega a afirmar que a revelou-se mais uma inteligente e feliz manobra política do que uma deserção
escravidão foi "o preço a pagar pelo Brasil". A maior contribuição dessa obra, covarde. Segundo Guilherme Pereira das Neves, a essa percepção original da
embora isto signifique lê-la em sinal contrário, conclui ela, é "estabelecer o mudança da sede do trono o autor acrescenta a "idéia de que o estabelecimen-
nexo perverso entre colonização e escravidão e entre escravidão e construção to da Corte na América traria as condições para fundar um novo império". E
do território em nossa história". essa intenção, ao reagir com "os acontecimentos na Europa, com as condições
Muito diferente do de Taunay é o olhar - e não só o olhar, também o do Brasil e de Portugal e com as limitações políticas e sociais das tradições
estilo simples, direto, elegante - que José de Alcântara Machado de Oliveira luso-brasileiras, daria origem, como mostra Oliveira Lima, a uma série de
lança sobre o São Paulo dos sertanistas, em Vida e morte do bandeirante. antinomias, responsáveis, em última análise, pelo rompimento de 1822".
Olhar análogo ao dos pintores holandeses do século XVII, empenhados em Mas, se os acontecimentos políticos e o jogo das intrigas diplomáticas
retratar aspectos aparentemente secundários da vida cotidiana, no dizer de constituem a espinha dorsal do livro, são "as análises sociais e culturais que lhe
Laura de Mello e Souza: "Olhar capaz de revelar miudezas e destacar detalhes emprestam a profundidade e a densidade de obra-prima". Oliveira Lima re-
imperceptíveis a uma primeira visada, olhar de microscópio". Não trata da veste a estada de D. João VI no Brasil "com a dimensão de um conflito de
epopéia bandeirante e nada tem de grandiloqüente. Antecipando-se aos histo- culturas - entre a cerimônia oficial e a festa popular, entre a etiqueta cortesã e
riadores de sua época (o livro foi publicado em 1929), parte do estudo de cerca a efusão espontânea da população, entre os hissopes dos clérigos e as denta-
de quatrocentos inventários paulistas, de um período que vai de 1578 a 1700, duras nacaradas dos escravos - do qual nasceria o país independente". Na
para traçar um quadro do cotidiano de São Paulo - fortunas, hábitat, mobílias, descrição da sociedade local "mostra-se sensível aos mesmos detalhes do co-
baixelas, roupas, costumes, crenças, instituições. E mostra também as condi- tidiano que posteriormente iriam deleitar Gilberto Freire". Ou como diz Roberto
ções de vida - utensílios, armas, roupas, alimentos e costumes - dos sertanistas DaMatta - citado por Guilherme Pereira das Neves - "o que fascina neste
em suas expedições. livro é menos os meandros de uma história política e diplomática que os seus
Para Alcântara Machado, o que caracteriza a vida paulista nos primeiros subtextos sociológicos e culturais, quando ele reconstrói a sociedade local".
tempos é a pobreza. E, mesmo quando começam a aparecer os sinais de rique- Sociedade desde o início marcada pelo estigma do trabalho escravo, cuja
za em meados do século XVII, o autor mostra - diz Laura de Mello e Souza - abolição deveria completar a independência para finalmente elevar o Brasil "à
que "nada se encontra que justifique o exagero dos linhagistas ou de autores dignidade de país livre", como diz Joaquim Nabuco em O abolicionismo, pu-
como Oliveira Viana, que viram em São Paulo ambientes de luxo europeu". blicado em 1883 e que, escrito como livro de combate, de propaganda, logo
Alcântara Machado soube melhor do que ninguém no seu tempo "mostrar que mostrou ter ficado muito acima da intenção inicial do autor - uma obra de

14 15
INTRODUÇÃO LOURENÇO DANTAS MOTA

interesse pennanente e importância decisiva para a compreensão do Brasil. A dagem dos fatos literários e culturais. Do ponto de vista sociológico, sua prin-
condenação moral e ética da escravidão, explica Marco Aurélio Nogueira, cipal contribuição está na defesa da mestiçagem. Para ele, fonnou-se no Bra-
veio de par com uma justificativa teórica dos motivos que exigiam o seu fim. sil um tipo novo - no qual predomina a mestiçagem tanto do ponto de vista
Nabuco, acrescenta, desenvolveu a tese de que a escravidão ocupava o centro fisico como cultural- como conseqüência da ação de cinco fatores: o português,
do organismo social, fonnando um sistema completo, que corrompia, debilitava o negro, o índio, o meio fisico e a imitação estrangeira. Valoriza tanto a
e degradava o conjunto da nação. "O nosso caráter, o nosso temperamento, a mestiçagem que ela é tomada como padrão para avaliar um autor: quanto mais
nossa organização toda, fisica, intelectual e moral, acha-se terrivelmente afe- mestiço mais próximo do caráter nacional brasileiro. Mas, com a extinção do
tada pelas influências com que a escravidão passou trezentos anos a pennear tráfico de escravos, o gradual desaparecimento dos índios e a imigração euro-
a sociedade brasileira", afinna Nabuco. Daí por que analisá-la e conhecê-la péia, sustentava ele que poderá vir a predominar no futuro, "ao que se pode
era o mesmo que pensar o país como um todo. supor, a feição branca em nosso mestiçamento". Por causa da exaltação da
A escravidão estava "estreitamente ligada por infinitas relações orgânicas mestiçagem encontram-se fortes ecos de Sílvio Romero em Gilberto Freire.
à nossa constituição". Deu-nos um povo, construíra o país. Ainda nas palavras Mas, quando ela caminha para o ideal de branqueamento, com conotações
de Nabuco, "tudo, absolutamente tudo, que existe como resultado do trabalho racistas, é em Oliveira Viana que se faz sentir sua presença. Não é sem razão
manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de que Benjamin Abdala cita Antonio Candido, para quem "a contradição era o
doação gratuita da raça que trabalha à que faz trabalhar". Porque a escravidão seu modo próprio de viver o pensamento".
impregnou a vida do país em todos os seus aspectos, não era suficiente a sua Em Minha formação, de Joaquim Nabuco, publicado em 1900, está ex-
simples abolição, como afinal se fez. O projeto por ele proposto em O aboli- presso o "sentimento de crise que acometeu as elites imperiais no contexto
cionismo encontrou sua melhor síntese em frase de um discurso pronunciado na republicano e a mais vigorosa defesa de um futuro pautado pela tradição bra-
campanha eleitoral de 1884, um ano depois da publicação do livro: ''Não nos sileira" - diz Maria Alice Rezende de Carvalho. O programa político implícito
basta acabar com a escravidão; é preciso destruir a obra da escravidão". O que no livro é a defesa da continuidade e o elogio à tradição refonnista do Império,
deveria ser feito por meio de uma série de refonnas nunca realizadas. Só assim em oposição à intenção republicana de romper com o passado para inventar
seria possível "suprimir efetivamente a escravidão da constituição social". um outro Brasil. O livro pode ser lido "como a sugestão política do reencontro
Para Sílvio Romero, em sua História da literatura brasileira, publicada do país consigo mesmo", com Nabuco esperando "corrigir o personalismo de
em 1888 em dois volumes e depois ampliada para cinco por Nelson Romero que eram acometidos os novos líderes políticos, subordinando-os à exemplari-
com a inclusão de outros trabalhos esparsos - sendo essa a edição aqui rese- dade das gerações que os precederam para a realização de um destino nacio-
nhada -, "a literatura é um campo do conhecimento e não se limita às belas- nal esboçado no Império".
letras", como esclarece Benj amin Abdala Junior, e por isso abarca toda a história A importância desse livro não se esgota aí. Em Minha formação, está
cultural do país. Apresenta uma síntese da cultura brasileira, matizada pelos também esboçada uma "sociologia dos intelectuais periféricos, construída a
padrões e as cores de como nos imaginávamos na virada do século XIX para partir dos dilemas vivenciados pelo próprio autor". Para Nabuco, o traço ca-
o XX. É, portanto, um estudo do Brasil e não apenas da sua literatura. Para racterístico de qualquer brasileiro relativamente culto é a dualidade, a incapa-
ele, "o sistema literário seria resultante de uma interação com outros sistemas cidade de satisfazer-se exclusivamente na Europa ou no Brasil. Nas suas
e estaria ligado às condições da circulação literária de cada momento históri- palavras, "de um lado do mar, sente-se a ausência do mundo; do outro, a au-
co. Este seria detenninante, colocando a literatura como um 'produto cultural' sência do país. O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação européia". Ou,
subordinando-a assim aos fatos históricos e a detenninações de caráter polí- como afinna Evaldo Cabral de Mello em prefácio a edição comemorativa do
tico-social". centenário do livro, citado por Maria Alice Rezende de Carvalho, Nabuco
Do ponto de vista literário, sua História, segundo Benjamin Abdala, sig- encarna o "dilema do mazombo", a ambigüidade do descendente de europeu,
nificou um avanço para o pensamento crítico, pela preocupação metodológica, com um pé na América e outro na Europa. Para ele, o livro fonnula esse
que veio a constituir um marco inicial no Brasil de toda uma linhagem de abor- dilema "mais certeiramente do que qualquer outra obra de autor nacional".

16 17
INTRODUÇÃO T LOURENÇO DANTAS MOTA

Em A América Latina: males de origem, de Manuel Bonfim, publicado oferecem duas perspectivas para a visão do mundo político. A primeira é a
em 1905, a condenação do racismo e a aceitação da mestiçagem aparecem perspectiva de um poder central "modelador da vida coletiva e guardião da
sem as contradições e ambigüidades de Sílvio Romero. Ele rompe com os unidade nacional e dos objetivos permanentes do país. Esse poder é um
modelos de pensamento de seu tempo, ao afastar a hipótese de inferioridade demiurgo, não um criador: a nação pode ser uma obra de arte, mas é preciso,
racial e valorizar os tipos mestiços e as culturas cruzadas - como explica para bem realizá-la, respeitar as condições fixadas pela história do povo". A
Roberto Ventura -, antecipando posições depois adotadas por Gilberto Freire segunda perspectiva é "a dos homens, portadores de direitos substantivos".
em Casa-grande & senzala. Bonfim "atacou as teorias racistas e a crença Torres demonstra preocupação com as liberdades individuais. Mas a
na superioridade das raças ditas 'puras', por serem idéias que se ligavam aos concretização desses valores democráticos só seria possível no Brasil por meio
interesses de dominação neocolonial dos países europeus". Essas teorias, nas da atuação "de um governo muito forte, caracterizado pela presença de um
palavras duras do autor, não eram mais do que "etnologia privativa das grandes Poder Coordenador capaz de intervir em todas as questões de interesse públi-
nações salteadoras", ou "sofisma abjeto do egoísmo humano, hipocritamente co e em todos os níveis da administração". A defesa de um poder central forte
mascarado de ciência barata". inspirou pensadores autoritários e acabou sendo sua principal influência, ape-
Pensador original, Bonfim atribui os males dos países latino-americanos sar da defesa igualmente decidida dos direitos e das liberdades individuais.
- embora trate da América Latina, é sobretudo o Brasil que ele tem em mente A publicação em 1916 da História da literatura brasileira , de José
- às características sociais dos colonizadores, marcados pelo parasitismo, que, Veríssimo, o outro grande crítico da época ao lado de Sílvio Romero, completa
como diz Ventura, é um "conceito-chave em seu pensamento, que ele transpôs o balanço da produção literária até a virada do século XIX para o século XX.
da biologia". A partir dele, o autor "criou uma teoria biológica da mais-valia, Segundo João Alexandre Barbosa, com ela José Veríssimo encerrava por um
segundo a qual as elites locais, as metrópoles coloniais e as potências imperia- lado toda uma "seqüência de esforços oitocentistas em pró de uma história
listas seriam parasitas das classes trabalhadoras, tomando para si a riqueza literária brasileira, desde os primeiros indícios românticos até a contracorrente
que estas produzem". É assim, prossegue, que ele explica "a produção e apro- de Sílvio Romero", e, por outro, "iniciava a abertura para uma nova historiografia
priação do trabalho no nível interno das relações entre classes e, em termos que somente meio século depois, nos anos 50 do século XX, encontraria a sua
internacionais, a dependência entre colônias e metrópoles". real continuidade", referindo-se principalmente à publicação em 1959 de For-
Originais também - porque destoavam do pensamento dominante entre mação da literatura brasileira, de Antonio Candido. 2
os dirigentes do novo regime republicano, dos quais fazia parte - são as teses A sua noção de literatura, expressa na introdução à História, é essencial
defendidas por Alberto Torres em A organização nacional, publicado em para entender o sentido da obra e também o que a distingue da História de
1914. Trata-se de uma das críticas mais duras à Constituição de 1891, especial- Sílvio Romero. Para José Veríssimo "literatura é arte literária. Somente o es-
mente ao federalismo estabelecido por ela, vinda de homem que conhecia muito crito com o propósito ou a intenção dessa arte, isto é, com os artificios de
bem as engrenagens do novo regime republicano, tendo sido ministro da Justi- invenção e de composição que a constituem, é, a meu ver, literatura". Recusa
ça, governador do estado do Rio de Janeiro e ministro do Supremo Tribunal por ISSO a
Federal. Sua obra, observa Rolf Kuntz, se insere na preocupação de procurar
pseudonovidade germânica que no vocábulo literatura compreende tudo o que se
soluções brasileiras para problemas brasileiros, que crescia então e iria inspirar
escreve num país, poesia lírica e economia política, romance e direito público, teatro
nas décadas seguintes um amplo movimento de renovação do pensamento e artigos de jornal e até o que se não escreve, discursos parlamentares, cantigas e
social e político, da literatura, da música e das artes plásticas. Ele vê na primei- histórias populares, enfim autores e obras de todo o gênero.
ra constituição republicana uma mera cópia, uma "roupagem de empréstimo",
sem ligação profunda com a realidade brasileira.
No projeto de constituição que propõe para o Brasil, as passagens sobre
o Poder Coordenador, uma inovação, e sobre os direitos e garantias individuais 1 Ver Benjamin Abdala Junior, "Antonio Candido, Formação da literatura brasileira", em Lourenço
são, diz Kuntz, os elementos mais esclarecedores do seu pensamento. Elas Dantas Mota (org.), Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico, cit., pp. 357-379.

18 19
LOURENÇO DANTAS MOTA
INTRODUÇÃO

com uma extraordinária minúcia, ancorado sempre em enorme riqueza de documen-


Poucas obras suscitaram e continuam a suscitar até hoje tanta polêmica
tos, que incluem relatórios oficiais, livros, memórias, relatos de viagem, anúncios de
quanto Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Viana, composta por jornal [ ... ] Cada capítulo retoma o patriarcalismo de um ângulo diferente e segue o seu
dois volumes - o primeiro (1920) dedicado às populações rurais do centro-sul desdobrar no tempo desde o século XVIII, mas quase sempre indo a período anterior,
(paulistas, fluminenses e mineiros) e o segundo (publicado postumamente em até o auge do Império,já na segunda parte do século XIX.
1952) ao "campeador riograndense", sendo o primeiro o mais conhecido, im-
portante e bem realizado. O seu objetivo, explica Gildo Marçal Brandão, era E O resultado, tal como no primeiro livro da trilogia, é "deslumbrante tanto
estudar "essas obscuras gentes de nosso interior", que teriam feito o Brasil, para o olhar do analista da sociedade como para o apreciador da beleza da
mas eram desprezadas pelos intelectuais e políticos cuja "fascinação magnéti- linguagem" .
ca" pelos modelos políticos estrangeiros levara-os a dar as costas ao "país Sobrados e mucambos não conclui, limitando-se o autor a e~cerrá-Io
real". E, com base nesse estudo, formular o projeto de um novo Estado e de com um capítulo em que discute o caráter e a dinâmica da miscigenação da
uma nova diretriz política capaz de criar uma nação solidária, retomando a cultura e da sociedade brasileiras e sua vinculação com as raças formadoras.
obra interrompida dos "reacionários audazes" que salvaram o Império. O ponto-chave da argumentação de Gilberto Freire, nas suas palavras, é que
"o característico mais vivo do ambiente social brasileiro parece-nos hoje o da
A imagem do Brasil que emerge de Populações meridionais é a de um país fragmentado, reciprocidade entre as culturas". Apesar do domínio da cultura portuguesa, já
atomizado, amorfo e inorgânico, uma sociedade desprovida de laços de solidariedade mestiça mas principalmente branca, e da europeização do país a partir do sé-
internos e que dependia umbilical mente do Estado para manter-se unida [ ... ] A predomi- culo XIX, afirma Brasilio Sallum interpretando o autor, "a cultura de origem
nância da autoridade sobre a liberdade resultava da inorganicidade da sociedade civil. A africana teve uma importância enorme na formação da cultura nacional, vem
liberdade não sobreviveria sem um Estado forte, qualificado, imune aos particularismos,
resistindo à desafricanização e, segundo Freire, nunca perderá sua substância
capaz de subordinar o interesse privado ao social [ ... ] Direitos civis e unidade nacional
africana através de toda nossa formação e consolidação em nação". A
garantidos pela centralização política, eis o programa de Oliveira Viana.
interpenetração cultural vem acompanhada de uma intensa mobilidade verti-
cal, entre classes, e horizontal, entre regiões. Nas palavras de Gilberto Freire,
O seu pé-de-chumbo, como diz Gildo Marçal Brandão, é a utilização de
"talvez em nenhum outro país seja possível a ascensão de uma classe a outra:
teorias e argumentos racistas para avaliar o papel da mestiçagem e explicar a
do mucambo ao sobrado. De uma raça a outra: de negro a 'branco' ou a
desigualdade na sociedade e na política brasileiras. E também a apologia do
'moreno' ou 'caboclo'. De uma região a outra: de cearense a paulista".
papel desempenhado pelo latifúndio feudal e a aristocracia rural, a qual para
Ordem e progresso trata da última década do século XIX e das três
ele era o verdadeiro sujeito de nossa história até o momento em que a estuda.
primeiras décadas do século XX - período que compreende a Primeira Repú-
Mas, acrescenta, "jogadas no lixo as velharias racistas", o que mantém o inte-
blica -, analisando a desintegração da sociedade patriarcal no quadro da tran-
resse pelo livro são os "problemas de organização e direção da sociedade e do
sição do trabalho escravo para o trabalho livre. O material de base do livro é
Estado que sua reflexão pretendia resolver".
um inquérito com 183 brasileiros nascidos entre 1850 e 1900. A motivação
Sobrados e mucambos, publicado em 1936, e Ordem e progresso, em
principal do trabalho, explica Elide Rugai Bastos, está em duas perguntas:
1959, completam a Introdução à história da sociedade patriarcal no Bra-
como, na mudança do regime monárquico para o republicano, se mantêm a
sil, de Gilberto Freire, iniciada com Casa-grande & senzala,3 em 1933. So-
organicidade da sociedade e a unidade nacional? Se no Império a simbiose
brados e mucambos, como informa seu subtítulo, trata da "decadência do
monarquia e patriarcado favoreceu uma ordem de certa forma democrática ,
patriarcado rural e o desenvolvimento do urbano", do final do século XVIII até
no momento republicano o que possibilitará a sua continuidade?
a segunda metade do século XIX. Ele reconstrói o processo de transformação
A dupla explicação contida na resposta a essas perguntas, prossegue,
do patriarcalismo, diz Brasilio Sallum Ir., constitui o arcabouço do livro:

J Ver Elide Rugai Bastos, "Gilberto Freire, Casa-grande & senzala", em Lourenço Dantas Mota Forças simultaneamente de equilíbrio e de conflito atravessam a sociedade: de um
(org.), Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico, cit., pp. 217-233. lado a permanência de certos ritos que compõem a legitimidade do sistema e permi-

20 21
INTRODUÇÃO LOURENÇO DANTAS MOTA

tem a sua reprodução; de outro, mudanças resultantes da decadência do patriarcado e A frase que ao final de sua resenha Gabriel Cohn diz ser a mais pungente
da alteração da composição étnica da população como produto da vinda de imigrantes do livro - "O negro prolonga assim o destino do escravo" - faz lembrar a
alteram afacies da sociedade brasileira. Assim, as transformações de caráter cultural, advertência de Joaquim Nabuco de que era preciso "destruir a obra da escra-
econômico, social e político -linguagem, crenças, moda, higiene, sanitarismo, urbani-
vidão".
zação, instituições, deslocamento regional da economia - alteram profundamente o
perfil da comunidade nacional. Retomando a proposta do tempo tríbio, da articulação
Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas
passado, presente, futuro, já desenvolvida em trabalhos anteriores, Gilberto mostra no Brasil moderno, de Darci Ribeiro, publicado em 1970, ajuda a compreen-
como nas diferentes regiões do país essas transformações ganham arranjos diversos. der, segundo João Pacheco de Oliveira, qual é e como foi gerada a condição
Misturam-se várias ordens e vários progressos. presente das populações indígenas brasileiras. Para o autor, explica ele, o "nú-
cleo tribal" das etnias indígenas, apesar das graves perdas populacionais e
A integração dos negros e índios na sociedade já madura do século XX, socioculturais, não se fundiu jamais no segmento neobrasileiro da população,
como foi dito acima, completa o quadro cuja primeira pincelada foi a discussão tendo diante de si a alternativa: a) a desaparição por extinção; b) a reelaboração
sobre o papel dos motivos edênicos, a "visão do paraíso", no descobrimento e de suas práticas e costumes, promovendo uma adaptação relativa ao meio
colonização do Brasil. Em A integração do negro na sociedade de classes, ambiente natural e humano em que estão inseridas, mantendo, no entanto, uma
publicado em 1964, no qual estuda esse problema tendo como foco São Paulo, identidade própria.
centro urbano exemplar a esse respeito, Florestan Fernandes sustenta que só Essa última opção está ligada ao que Darci Ribeiro chama de "transfigu-
há um modo de plena integração para o negro - o da classe social. Mas isso -
~ação étnica" e é o foco principal do livro. Um processo de adaptação que se
explica Gabriel Cohn interpretando o autor - depende de duas coisas dificeis: Impõe aos grupos indígenas que sobreviveram ao extermínio, e que faz com
primeiro, da abertura de espaços mediante a plena constituição de uma socie- que eles permaneçam indígenas - porém, nas palavras do autor, ')á não nos
dade de classes na qual se possa inserir e, segundo, da sua própria capacidade seus hábitos e costumes, mas na auto-identificação como povos distintos do
para em primeiro lugar organizar-se a ponto de afirmar-se como raça, no sen- brasileiro e vítimas de sua dominação". Quanto ao destino das populações
tido de uma identidade social. Coube aos negros o pior ponto de partida na
indígenas, João Pacheco de Oliveira comenta que
disputa histórica pelas posições sociais mais favoráveis. Um dos grandes pro-
blemas com que se defrontaram é que para isso lhes faltava o essencial: o Darci Ribeiro revela com clareza - e essa é uma de suas principais contribuições
preparo para a rápida aquisição e domínio do que o autor chama "técnicas teóricas e políticas - que a condição última do índio no Brasil não é em qualquer
sociais e culturais do ambiente" em que se moviam. hipótese a sua "descaracterização cultural", a sua completa assimilação aos padrões
Depois de lembrar que o livro não reserva espaço para a apresentação modernos da sociedade brasileira (meta que nunca chegou a se realizar em qualquer
de conclusões, Gabriel Cohn seleciona uma passagem que dá acesso ao que o um dos grupos indígenas considerados), mas sua integração em condição econômica
subordinada e na qualidade de "índios genéricos", isto é, "que quase nada conservam
autor identifica como "o âmago da estrutura e dinâmica da situação de contato
do patrimônio original mas permanecem definidos como índios e identificando-se
racial predominante em São Paulo". Florestan Fernandes chama a atenção como tais".
para
Ao fim desta introdução, não é demais repetir o que foi dito quando da
uma faceta deveras instrutiva da nossa realidade racial. Ela sugere que assiste razão
aos que apontam o Brasil como um caso extremo de tolerância racial. Entretanto, publicação do primeiro volume: que essa reunião de obras tem os defeitos
também evidencia o reverso da medalha, infelizmente negligenciado: a tolerância racial inevitáveis de toda seleção. Deve-se esclarecer ainda que foi tomada a deci-
não está a serviço da igualdade racial e, por conseguinte, é uma condição neutra em sã~ de não incluir obras de autores vivos, com três exceções incluídas no pri-
face dos problemas humanos do "negro", relacionados com a concentração racial da meIro volume - Formação económica do Brasil, de Celso Furtado, Formação
renda, do prestígio social e do poder. Ela se vincula claramente, de fato, à defesa e à
da literatura brasileira, de Antonio Candido, e Os donos do poder, de
perpetuação indefinida do status quo racial, através de efeitos que promovem a pre-
~aymundo Faoro - que nestes quarenta anos decorridos de sua publicação se
servação indireta das disparidades sociais, que condicionam a subalternização perma-
nente do negro e do mulato.
Impuseram entre os especialistas como obras de referência obrigatória. Não é

22 23
INTRODUÇÃO

demais também insistir em que essa Introdução ao Brasil tem um duplo ob- SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA
jetivo - estimular o contato com os textos originais e facilitar o acesso dos não-
especialistas ao diálogo desses autores.
Deve-se registrar que, embora a responsabilidade pela organização des-
te livro nos caiba exclusivamente, ele tem uma dívida com Benjamin Abdala Visão do paraíso
Junior, Maria Victória Benevides, Walnice Nogueira GaIvão, Carlos Guilherme
Mota, Ronaldo Vainfas, Lúcia Lippi Oliveira, Elide Rugai Bastos, Brasilio Sallum
Jr., Marco Aurélio Nogueira, Isabel Alexandre e Celso Ming.

Ronaldo Vainfas

24
VISÃO DO PARAÍSO: BIOGRAFIA DE UMA IDÉIA

Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e coloniza-


ção do Brasil foi o título da tese que levou Sérgio Buarque de Holanda à
cátedra de história da civilização brasileira, em 1958, na Universidade de São
Paulo. O livro seria publicado no ano seguinte, mais de 20 anos depois, portan-
to, do célebre Raízes do Brasil (1936), ensaio que incluiria Sérgio Buarque na
galeria de nossos principais historiadores. A década de 1940 e sobretudo a de
1950 seriam, sem dúvida, as mais férteis na carreira desse grande historiador
brasileiro. Em 1945 publicara Monções e, em 1957, Caminhos e fronteiras,
reunindo ensaios e pesquisas realizadas em parte nos anos 1940, em especial
"Índios e mamelucos".
É possível identificar nessas obras o cerne da contribuição de Sérgio
Buarque para nossa historiografia. É verdade que Sérgio Buarque organizaria
e redigiria boa parte da História geral da civilização brasileira, entre 1960
e 1977, no caso os volumes relativos aos períodos colonial e imperial, sem falar
de diversos ensaios históricos ou de crítica literária, especialmente dos Capí-
tulos de literatura colonial, obra póstuma - falecido Sérgio Buarque em
1982, aos 80 anos - preciosíssima antologia preparada por Antonio Candido
nos anos 1990. Mas o cerne da obra encontra-se basicamente nos anos 1940-
1950. Por meio dessas obras Sérgio Buarque se afirmou como historiador das
totalidades sociais, empenhado em desvendar os aspectos econômicos, sociais
e políticos de nossa história, entrelaçando-os sempre, sem descurar dos aspec-
tos imaginários ou do que se poderia chamar, para usar uma expressão "conci-
liatória", de história intelectual.
Visão do paraíso, que muitos consideram o livro mais erudito da
historiografia brasileira e talvez tenha sido a principal obra de Sérgio Buarque,
é certamente o melhor exemplo da contribuição de Sérgio Buarque de Holanda
a uma história das "representações mentais" produzida no Brasi1.! Publicado
em 1959 o livro não alcançou a merecida ressonância numa década, a de 1960,
onde as preocupações da historiografia brasileira, ainda muito ensaística, liga-
vam-se às preocupações do momento, especialmente à crise que levaria ao
movimento militar de 1964 e à cristalização do regime, em 1968-1969. Livros
prestigiados eram, então, o Formação económica do Brasil, de Celso Furtado,

1 Abordei esse aspecto de Visão do paraíso em "Sérgio Buarque de Holanda: historiador das
representações mentais", em Antonio Candido (org.), Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil
(São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998), pp. 49-58.

27
VISÃO DO PARAÍSO RONALDO VAINFAS

ou O Formação histórica do Brasil, de Nelson Werneck Sodré, ambos con- do Renascimento e o mundo ibero-americano da expansão atlântica. Paren-
cebidos nos anos 1950 e reeditados na década seguinte. Mas a segunda edição tesco no tocante à eleição de fontes literárias como base de investigação histó-
de Visão do paraíso sairia exatamente em 1969, ano fúnebre de nossa histó- rica, o que faz de ambos, Sérgio Buarque e Febvre, a um só tempo, historiadores
ria, passados pouco mais de dez anos de sua aparição na forma de tese univer- e críticos literários. Parentesco no que toca à rebeldia intelectual: Febvre a
sitária. enfrentar o mito de um Rabelais ateu e Sérgio Buarque a questionar o mito de
Esse livro de Sérgio Buarque, sempre muito festejado e reconhecido, um Brasil paradisíaco. Mas as semelhanças param por aí. Em Febvre, cujo
custaria porém a irrigar nossa historiografia, embora tenha recebido uma ter- título da obra fala em descrença, procura-se antes demonstrar o contrário, isto
ceira edição em 1977. Reeditado em 1994, estava já inserido na voga da "his- é, a impossibilidade que tinha o homem quinhentista de descrer ou de seculari-
tória das mentalidades" que marcou parte de nossa historiografia na década de zar o mundo. Em Sérgio Buarque, cuja obra trata do imaginário do paraíso
1980 e prevalece hoje com alento, ainda que sob outros rótulos ou enqua- terreal na colonização ibérica, procura-se demonstrar, para o caso português,
dramentos, como no caso da "nova história cultural". Por isso mesmo é difun- um precoce desencantamento do mundo, uma espécie de "realismo pedestre"
dida a idéia de que Sérgio Buarque fazia "história das mentalidades" avant la que cedo abandonou as motivações edênicas presumidamente presentes na
lettre , isto é, antes de sua difusão na França dos anos 1960-1970 com as obras descoberta do Novo Mundo. Sérgio Buarque é muito claro a esse respeito:
de Robert Mandrou, Georges Duby, Jacques Le Goff e muitos outros. Obras
preocupadas com o que Pierre Chaunu chamou de "terceiro nível" da estrutu- A obsessão de irrealidades é, com efeito, o que menos parece mover aqueles homens
ra social, ou seja, os fenômenos ligados às religiosidades, às crenças coletivas, em sua constante demanda de terras ignotas. E, se bem que ainda alheios a esse "senso
os sentimentos, os códigos de comportamento consagrados pelo uso. Fenôme- do impossível", por onde, segundo observou finamente Lucien Febvre, pode distin-
guir-se a nossa da mentalidade quinhentista, nem por isso mostravam grande afã em
nos de longa duração, cuja percepção, em parte inspirada pela antropologia
perseguir quimeras. Podiam admitir o maravilhoso, e admitiram-no até de bom grado,
estruturalista, voltava-se para o nível de frialdade presente nas sociedades mas só enquanto se achasse além da órbita do saber empírico.2
históricas, petrificando-as, por vezes, ao menos no tocante a essa dimensão
algo incerta das representações. A rivalizar com a presença da "nova história social francesa" no pensa-
O suposto pioneirismo de Sérgio Buarque no que toca à história das men- mento de Sérgio Buarque, quando não superando-a, estaria a filosofia, a socio-
talidades se refere, obviamente, ao livro Visão do paraíso, obra que, de fato, logia e a historiografia alemãs, como bem indicou Maria Odila da Silva Dias
tratou de aspectos que depois caracterizariam muitos estudos daquele movi- 3
em texto de 1985. Nesse campo de afinidades intelectuais poder-se-ia incluir
mento historiográfico francês. Mas é de todo modo dificil, para não dizer ine-
o próprio Ranke, estudado por Sérgio Buarque, especialmente quanto à con-
xato, relacionar o Sérgio Buarque de Visão do paraíso com a historiografia
vicção no que deveria ser a capacidade essencial do historiador isto é a de
francesa, sobretudo ao movimento que ali se desenvolveu a partir de fins dos "discernir as grandes unidades de sentido no emaranhado de acon~ecime~tos e
anos 1960. Aliás, a historiografia francesa só muito pontualmente é menciona- fatos do passado". A presença da historiografia alemã no autor de Visão do
da ou citada no livro. paraíso se pode perceber na importância da obra de Ernst Curtius, Europaische
Encontram-se citados en passant o Fernand Braudel do Mediterrâneo Literatur un Lateinisches Mittlealter (1948).4 Sérgio Buarque o reconheceu
e o mundo mediterrânico; seu discípulo Pierre Chaunu, de Sevil/e et explicitamente, escrevendo o prefácio à segunda edição da obra, em 1968,
I 'Atlantique; e sobretudo Lucien Febvre, um dos fundadores da escola dos
sublinhando o recurso a uma tópica capaz de articular a pesquisa heurística de
Annales, nome da revista fundada quando Sérgio Buarque atuava como jorna- textos literários com a investigação propriamente histórica. Pois é com base
lista na Alemanha, onde permaneceu de 1929 a 1935.
No que toca à obra de Lucien Febvre - e é dele o conceito de outi/lage
mental presente no livro sobre Rabelais, A época da descrença (1942) -, 1 Sérgio Buarque de Holanda, VIsão do paraíso (3 1 ed. São Paulo: Nacional. 1977), p. 5.
1 Maria Odila da S. Dias, "Sérgio Buarque de Holanda, historiador", em Sérgio Buarque de Holanda
talvez se possa estabelecer algum parentesco entre os autores. Parentesco (São Paulo: Ática, 1985).
temático, ou seja, as crenças ou descrenças de sociedades coevas - a França 4 Literatura européia e Idade Média latina.

28 29
VISÃO DO PARAÍSO RONALDO VAINFAS

na reconstituição do processo de transmissão dos arquétipos do paraíso terres- .1?30, sobre "a compa~ação como varinha de condão da história". Sérgio Buarque
tre que se constrói Visão do paraíso, definido por Sérgio Buarque, literalmen- Ja fizera com maestna uso da comparação entre a América portuguesa e a
te, como "a biografia de uma idéia". Uma biografia construída sobre os diversos espanhola em Raizes do Brasil, sobretudo em "O semeador e o ladrilhador"
topoi do imaginário edênico, a exemplo da Juventa, do Jardim das Delícias ou, texto capital que relativiza a unidade de uma colonização ibérica ao indica:
para citar o próprio Sérgio Buarque, "o da perene primavera e invariável tem- diferenças de estilo: o estilo civilizador do espanhol, arriscando-se no interior,
perança do ar que prevaleceria naquele horto sagrado". 5 ordenando sua ocupação com base em cidades planificadas, sonhando em fa-
Além disso, é caso de realçar o forte diálogo que Sérgio Buarque man- zer da ~érica uma Nova Espanha, uma Nova Granada; o estilo feitorial do
tém com a historiografia do século XIX, ao menos com alguns historiadores- ~ortugues, por outro lado, sempre nostálgico do reino, a cultivar a terra no
chave, como Jacob Burckhardt, autor do clássico A civilização da l~toral, a ;nercadejar nos portos, arranhando a praia como caranguejo. E volta-
Renascença italiana, obra de 1864. No entanto, Sérgio Buarque dele discor- na a faze-lo com notável sistemática em Visão do paraiso, no qual retomaria
da num ponto central, a saber, quanto à existência de uma fratura radical entre seu questionamento da homogeneidade da colonização ibérica.
a Idade Média e o Renascimento. Renascimento que, para Sérgio Buarque,
era menos otimista do que se supunha, assim como muito afeito às magias,
fábulas e maravilhas medievais. A crença na "produtividade inexaurível, quase PARAÍSO TERREAL VERSUS REALISMO PEDESTRE
orgiástica, do homem e da Natureza é ainda", no Renascimento, "ou já é, diz
Sérgio Buarque, sofreada por titubeios e hesitações [oo.]. É nesses momentos O l~v~~ se e.strutura, portanto, a partir de uma sistemática comparação
situados na infância, tanto quanto na agonia, de uma era de otimismo, que entre as IdeiaS e Imagens que portugueses e espanhóis construíram sobre os
iremos deparar com expressões indecisas entre a do abatimento da criatura e eS~,aços ~eri.canos. E o. p;,oblema central se explicita logo no primeiro capítu-
a de sua exaltação".6 E para acrescentar um derradeiro exemplo do diálogo de lo ExpenencIa e fantaSia ,no qual Sérgio Buarque expõe o essencial do con-
Visão do paraíso com a historiografia oitocentista, vale mencionar o italiano tras~e: ~o lad~ espanhol, predomínio de visões edenizadoras, rycuperação e
Arturo Graf, autor de livro hoje muito revisitado, o Mitos, legendas e supers- recnaçao das Imagens paradisíacas produzidas no Ocidente havia séculos; do
tições na Idade Média, originalmente publicado em 1886. Livro que trata lado português, predomínio de visões pragmáticas, pouco afeitas ao ideário
exatamente do tema de Visão do paraíso em outro contexto, ou seja, o pro- edenizador e, de resto, aos elementos maravilhosos que caracterizavam o ima-
blema da busca do paraíso terreal na literatura medieval de viagens, fossem ginário .~ci~ental na .época das descobertas. É aos portugueses que corresponde
reais, como a de Marco Polo, fossem fictícias, como a de Jean de Mandeville. a expenenCia enunCiada no título do capítulo, ao passo que a fantasia é sobre-
Dificil, portanto, relacionar diretamente Visão do paraíso com a história tudo hispânica. A primeira frase do livro não deixa dúvida sobre a tese: "O
das mentalidades francesa, seja como precursor da chamada Nova História gosto da maravilha e do mistério, quase inseparável da literatura de viagens na
dos anos 1970, seja como autor afinado com as mentalidades já divisadas pelos era dos grandes descobrimentos, ocupa espaço singularmente reduzido nos
fundadores dos Annales, a exemplo do Febvre, que estudou Rabelais, ou do escritos quinhentistas portugueses sobre o Novo Mundo". 7
Marc Bloch, que publicou Os reis taumaturgos no meado da década de 1920. Sérgio Buarque atribui o quase desdém português com as terras ameri-
Curiosamente, Marc Bloch não é citado por Sérgio Buarque em Visão do ~anas descobertas antes de tudo à experiência das navegações na África e na
paraíso, como também não o fora em Raízes do Brasil de 1936. Entretanto, Asia. Já calejados com o encontro de outros povos e civilizações, os portugue-
pode-se dizer que é como Marc Bloch que trabalha Sérgio Buarque no tocante ses: que navegavam havia quase um século, não teriam se impressionado com
à perícia da comparação histórica, a comprovar o que escrevera Bloch, em maiS uma descoberta, entre outras. Daí a rarefação de imagens maravilhosas
as mirabilia, tão recorrentes nas crônicas de viagens, desde as crônicas anti~

, Sérgio Buarque de Holanda, "Prefácio à segunda edição", em Visão do paraíso, cit., p. XX.
• Ibid., p. 182. 7 Ibid., p. 1.

30 31
VISÃO DO PARAÍSO RONALDO V AINFAS

gas de viagens imaginárias, como a de Mandeville, até as crônicas de viagens antes de tudo, e de maneira muito pragmática, às potencialidades econômicas
de fato realizadas, como as espanholas posteriores a 1492. A familiaridade do território e às rendas que a exploração colonial poderia proporcionar a el-rei.
leva à indiferença, disse certa vez um historiador francês (Bloch), e talvez Essa é, pois, a primeira grande tese de Visão do paraíso. Tese parado-
tenha sido esse o caso dos lusitanos no Brasil, familiarizados, por assim dizer, xal porque, no tocante à visão portuguesa, sublinha exatamente a ausência de
com o encontro de terras e povos "exóticos". elementos edenizadores ou, quando menos, admite uma presença muito "ate-
Sérgio Buarque reforça essa possibilidade explicativa, agregando que nuada" ou "adelgaçada", para usar as palavras do autor.
talvez o "fascínio do Oriente" recém-descoberto pelos portugueses ainda ab-
sorvesse em demasia as energias imaginativas dos lusitanos, empalidecendo, a
seus olhos, a exuberância da terra brasílica. Mas esta é hipótese mais frágil, MARAVILHAS DO Novo MUNDO, LOCUS DO ÉDEN
pois sugere um deslumbramento português em face do Oriente que mal se
pode divisar na crônica sobre a Índia, China ou Japão. 8 A visão do paraíso prosperou de fato nas crônicas do descobrimento e
Fosse pela experiência acumulada, fosse pela persistência da fantasia conquista castelhana, a começar pelo genovês Cristóvão Colombo, descobri-
oriental, o fato é que, para Sérgio Buarque, o "realismo pedestre" dos portu- dor da América em 1492. Mostra-nos Sérgio Buarque a verdadeira obsessão
gueses nas crônicas sobre o Brasil lembrava muito o espírito e a arte medie- de Colombo com o que julgava ser a proximidade do paraíso terreal, escreven-
vais, particularistas, pouco imaginosas, presentes em pinturas em que até os do das Antilhas aos reis católÍcos, Fernando e Isabel. Numa dessas cartas
anjos pareciam renunciar ao vôo, preferindo caminhar sobre pequenas nuvens. refere-se às terras descobertas como o "outro mundo" e como o "sítio aben~
Tudo em franco contraste com a arte renascentista, o gosto pela fantasia, as çoado onde viveram nossos primeiros pais". Como se acreditava, desde a Ida-
"induções audaciosas e delirantes imaginações" do Quatroccento. de Média, que era nas partes orientais do mundo que se localizava o Éden, de
Sérgio Buarque não fornece razões definitivas para o "realismo pedes- onde Adão e Eva foram expulsos, e como o mesmo Colombo julgava estar nas
tre" do imaginário lusitano em face dos descobrimentos americanos, limitando- cercanias de Cipango (Japão) ou Catai (China), o paraíso, segundo o almiran-
se a enunciar possibilidades no plano da especulação. Mas não resta dúvida de te, deveria estar próximo. Na sua correspondência com os reis espanhóis,
que, comparados aos registros espanhóis, os portugueses são pálidos no que ~olo~bo não deixou de reunir inúmeros indícios dessa proximidade paradisíaca,
toca aos aspectos delirantes e maravilhosos. A idéia do paraíso, em especial, mcl~mdo a presença de seres bizarros e prodigiosos que julgou ver no jovem
praticamente não aparece na crônica colonial portuguesa, com exceção de um contmente.
Simão de Vasconcelos, jesuíta que, no século XVII, defendeu a localização do A ~artir de Colombo, inúmeros cronistas espanhóis, laicos ou religiosos,
paraíso terreal no Brasil, ou de um Rocha Pita que fez o mesmo, sem nenhuma se refenram à localização do paraíso terreal na América e Sérgio Buarque
ênfase, na sua História da América portuguesa (1730). os examina um a um, cotejando narrativas, rastreando as matrizes de talou
O elogio da natureza, que Sérgio Buarque constatou na crônica quinhen- qual visão americana do Éden. Em vários capítulos do livro, a questão reapa-
tista e seiscentista, por exemplo, não desmentiria o tom monocórdio, quase rece, narrada com máxima erudição, a exemplo dos capítulos "Terras incóg-
burocrático predominante. Nem mesmo os arroubos de um Pero Vaz de Cami- nitas", "Paraíso perdido" ou "Visão do paraíso", capítulo que dá título à: obra.
nha - que viu a terra do Brasil tão fértil que, em se plantando, "dar-se-á nela Em "Paraíso perdido", embora seja ele o sétimo do livro, encontramos ver-
tudo" - rivalizaria com o registro espanhol laudatório do clima, dos ares, da dadeira exegese da temática edênica no mundo ocidental, na qual Sérgio
exuberância da flora e da fauna, tudo adornado com seres fantásticos e indícios Buarque inventaria os temas a serem checados no imaginário ibérico dos
do paraíso próximo. No caso português, mesmo o elogio da terra se referia, descobrimentos.
, Um dos maio~es propangadistas, se não o maior, da localização do para-
• É o que se percebe nos textos e documentos citados em Luís de Albuquerque et ai., O confronto ISO t~rreal na Aménca foi António de León Pinelo, conselheiro real de Castela,
do olhar: o encontro dos povos na época das navegações portuguesas (Lisboa: Caminho, cromsta-mor do reino, numismata, recopilador de "las leyes de Indias" bibliófilo
1991 ). um dos sábios mais eruditos, enfim, do Siglo de Oro espanhol. En~re 1645 ~

32 33
VISÃO DO PARAÍSO
RONALDO VAINFAS

1650 León Pinel0 escreveu sua obra magna, El paraiso en el Nuevo Mundo,
com;osto de cinco livros, um total de 88 capítulos, cujos orig~ais m~uscritos
bizarros, de sereias e dragões, pigmeus e gigantes, canibais e coprófagos9 e,
sem dúvida, monstros da mais variada espécie e gênero, como os acéfalos _
contavam com mais de oitocentos fólios. León Pinelo exammou e Impugnou
homens aos quais faltavam as cabeças - ou os cinocéfalos, figuras humanas
todas as teses que buscavam localizar o paraíso no Oriente, p~ocurando de-o
com cabeça de cão, dentre outros seres híbridos ou hipertrofiados nas orelhas,
monstrar que os rios bíblicos na embocadura dos quais ficava o Eden não eram pés ou mãos.
o Tigre, o Eufrates, o Ganges e o Nilo, senão, respectivamente, o Madalena, na
Sérgio Buarque defende, com máximo brilho e erudição"que "a conven-
atual Colômbia, o Orenoco, o Prata e o Amazonas. A localização exata ou
ção literária dos mitos edênicos, onde a narrativa bíblica se deixara contaminar
aproximada do paraíso estaria, portanto, na região amazônica, na Amazônia
de reminiscências clássicas [ ... ] e também da geografia fantástica de todas as
peruana confluente com a região andina. . .
épocas, veio a afetar decisivamente" as descrições coloniais do paraíso terres-
Mostra-nos Sérgio Buarque que León Pinelo não se lllmtou a descrever
tre. E nisso reside o miolo do livro, tarefa verdadeiramente demiúrgica a que
esses rios, traçando as analogias com os saberes edenizadores tradicionais,
se propôs o maior historiador brasileiro: cotejar narrativas da Antiguidade clás-
mas agregou pormenores tipicamente americanos à caracterização desse pa-
sica, incluindo o lendário helenístico ou mesmo oriental sobre o cosmos fantás-
raíso no Mundo Novo. A árvore do bem e do mal não daria, assim, a maçã,
tico, com as interpretações da narrativa bíblica, sobretudo no tempo da
fruto do pecado original para muitos, nem o figo, como disseram outros: mas,,~
escolástica (séculos XIII-XIV), e daí com as narrativas de aventureiroscon-
maracujá, a granadilla, em espanhol, cuja cor e sabor, segundo o cronIsta, e
quistadores e missionários que atuaram no Novo Mundo. Ho~ens que ~iram,
muito conforme ao que dizem os expositores do pomo que foi instrumento de
aqui e ali, mulheres guerreiras, rotas do Eldorado, terras de imortalidade, seres
nossa perdição e feitiço aos olhos de Eva". Prosseguindo na sua "teoria",
monstruosos, humanos, animais ou híbridos.
León Pinelo afirmou que o homem fora criado na América do Sul, razão pela
No rastreamento desses mitos, Sérgio Buarque não se contenta, porém,
qual o continente possuía "a forma de um coração". Noé teria construído .sua
em identificar as matrizes clássicas ou medievais que irrigaram o imaginário
arca na vertente ocidental da cordilheira dos Andes com cedros e madeIras
dos conquistadores da América, admitindo ingredientes fantásticos de outras
fortes da região, etc.
tradições européias, como a dos celtas, presentes, por exemplo, em tópicos da
A partir da narrativa de León Pinelo, Sérgio Buarque procura.identifi~ar
lenda de São Brandão e sua ilha encantada, ou em traços da mitologia heróica
a presença de alguns desses elementos paradisíacos em certos escntos lUSIta-
indígena, como no caso da "terra sem mal" dos tupinambás. Sérgio Buarque é
nos mormente no do padre Simão de Vasconcelos, um dos raros que defendeu
muito claro a esse respeito, ao diZer que
a l;calização do paraíso terreal'no Brasil, tendo escrito nos anos 1660. Mas a
exegese de nosso autor, Sérgio Buarque, só contribui para reforçar sua tese
a idéia de que existe na Terra, com efeito, algum sítio de bem-aventurança, só acessível
central: "pobre figura haveriam de fazer, em realidade, aqueles sete. parágra- aos mortais através de mil perigos e penas, manifestos ora sob a aparência de uma
fos de Simão de Vasconcelos", comparados à copiosa obra do crOnIsta espa- região tenebrosa, ora de colunas ígneas que nos impedem de alcançá-lo, ou então de
nhol, por sinal de remota origem judaica. . . demônios ou pavorosos monstros, pode prevalecer, porém, independentemente das
Mas as "visões do paraíso" de León Pinelo e de outros não se hmItavam tradições clássicas ou das escolásticas sutilezas.1o

a descrever ou procurar delimitar o espaço edênico primordial, a morada de


Adão e Eva antes do pecado irremissível. Nos escritos produzidos no Ocidente Entre essas tradições encontrar-se-ia a célebre Juventa, "fonte da eterna
cristão que, desde a Idade Média, se dedicaram a rastrear o paraíso terreal no juventude", cujas águas jorravam de sítio não muito distante do próprio Éden,
Oriente configurou-se uma plêiade de mitos e maravilhas, muitos deles de após seguir um percurso subterrâneo. Mandeville, que deixou no século XIV
origem ~ais remota, quer na Antiguidade ocidental, quer no próprio Oriente. urna bela narrativa de viagens ao "outro mundo" - viagem imaginária, que, na
As narrativas edenizadoras eram verdadeiramente inseparáveis do mito das
amazonas, do Horto das Hespérides ou Jardim das Delícias, do Eldorado, da
• Comed~t;es 4e fezes.
fonte da eterna juventude - a Juventa - da existência de monstros e seres
10 Sérgio Buarque de Holanda, Visão do paraíso, cit., p. 20.

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35
VISÃO DO PARAÍSO • RONALDO VAlNFAS

verdade, jamais realizou -, disse ter visto a fonte e bebido de sua água três ou entre espanhóis e índios, incluindo as mulheres guerreiras de que falavam as
quatro vezes. E na carta atribuída ao lendário Preste João, consta que a mesma antigas lendas. Ao descrevê-las, afirmou que "eram membrudas, de grande
fonte ficava a três dias de viagem do "jardim de onde Adão fora expulso". Au- estatura e brancas; tinham cabeleira muito longa, trançada e revolta no alto da
têntico apêndice do Éden, assim era a Juventa nos relatos sobre este "outro cabeça; andavam nuas, com as vergonhas tapadas". E, segundo Sérgio Buarque,
mundo fantástico" que, como indica Sérgio Buarque, foi migrando para a Améri- "uma só entre elas valia, no combate, por dez homens". Não resta dúvida de
ca na medida em que se desencantava o Oriente através da expansão marítima. que Carvajal misturou traços do antigo lendário sobre as amazonas com a
Juan Ponce de León, depois de muitos anos na América e contando já experiência vivida nos combates travados no grande rio, acrescentada por in-
com 50 anos, dispôs-se a localizar o caminho para a "sagrada fonte e para o rio formações que o próprio dominicano recolheria entre índios do lugar. 12 Mas
onde os velhos se revigoram e remoçam". Localizou a primeira na ilha de seu relato seria o primeiro de uma série acerca da existência dessa comunida-
Bimini e o rio na contígua península da Flórida. "A lenda indígena", afirma de de guerreiras frnalmente encontrada no Novo Mundo, em especial na re-
Sérgio Buarque, "viera apenas endossar velha tradição erudita sobre a exis- gião que levaria seu nome.
tência, em alguma parte do orbe, de uma fonte dotada daquelas proprie- As descrições sobre a Juventa e o país das amazonas, vizinhos do Éden
dades". II Apesar da frustração de todos com o malogro das descobertas ou apêndices dele em maior ou menor grau, são apenas dois exemplos dentre
fantásticas, sempre fugidias, o lendário não esmoreceu. O prodigioso era me- os vários estudados por Sérgio Buarque em sua obra. Nela se sucedem precio-
nos real do que aparente, alimentado por certa "disposição de espírito" próprio sas descrições de lugares onde o real e o imaginário se confundem, imbricando
de muitos soldados da conquista, que os levava, "depois de tantos espetáculos temporalidades antigas e modernas, cruzando tradições culturais múltiplas, quer
inusitados, a ver em tudo maravilhas [ .. .]". originárias do Velho Mundo, quer inspiradas nos relatos ameríndios.
Outra lenda aparentada ao mito da Juventa e, como ele, apêndice recor- Vale, porém, sublinhar que os mais abundantes e melhores relatos sobre
rente na visão do Éden, foi a das célebres amazonas, as mulheres guerreiras de temas edênicos aparecem na crônica hispânica, adelgaçando-se, pelo menos
tradição longuíssima no Ocidente e no Oriente Próximo. Colombo chegaria a nos seus aspectos mais imaginosos ou eruditos, na crônica de origem portu-
sublinhar, no seu exemplar da Historia rerum escrita pelo papa Pio II, certa guesa. Os pobres sete parágrafos de Simão de Vasconcelos ou mesmo a des-
passagem onde se mencionava urna ilha de fêmeas, isle femelle, que chegou a crição das amazonas que faria Pedro Teixeira no século XVII não chegam
ser localizada na misteriosa ilha de Matiminó. Pedro Martir d' Anghiera, cuja sequer a matizar essa constatação, comprovando a tese central de Sérgio
Décadas do Orbe Novo, escrita no início do século XVI, inspirava-se nos pri- Buarque em seu livro maior.
meiros relatos da decoberta da América, não hesitaria em mencionar as
famigeradas amazonas, mulheres que somente em certas épocas do ano se ajun-
tavam com machos, refugiando-se depois em cunículos para evitar os varões. SUMÉ: CONTRIBUIÇÃO LUS0-BRASILElRA
De continentais na origem, como indica Sérgio Buarque, as amazonas
iriam se transformar por'vezes em misteriosas mulheres insulares, para serem Edenização pálida e adelgaçada, realismo e pragmatismo fortes, nem por
enfim localizadas e vistas no grande rio-mar, por essa razão chamado posterior- isso a crônica portuguesa deixou de dar mostras de adesão ao imaginário fan-
mente de "Rio das Amazonas", o atual rio Amazonas. Sérgio Buarque conta- tástico que marcou a descoberta do Novo Mundo. O mito mais genuinamente
nos em detalhe como isso ocorreu, na altura de 1541, quando a expedição
com~dada por Francisco de Orellana partiu de Quito rumo ao imaginário País
da Canela. O autor da narrativa inaugural foi o capelão da expedição, o ., Luiz Mott viria a desvendar de vez o mistério do relato de Carvajal, que misturou tradições
dominicano frei Gaspar de Carvajal, que o fez depois de ferrenhos combates antigas com informações recolhidas entre os nativos sobre as acclacuna, as "virgens do Sol" do
império inca, de cuja existência sabiam os índios da região amazônica. Esclarece, ainda, que
Carvajal provavelmente viu em combate as mulheres guerreiras da cultura tupinambá. Cf. L.
Mott, "As. amazonas: um mito e algumas hipóteses", em Ronaldo Vainfas (org.), América em
11 Ibid., p. 21 tempo de conquista (Rio de Janeiro: Zahar, 1992), pp. 33-56.

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VISÃO DO PARAÍSO

luso-brasileiro seria a famosa lenda de Sumé, ou seja, a crença de que a Amé-


- RONALDO V AINFAS

em crenças originárias dos primitivos moradores da terra. "Que a presença


rica fora objeto do apostolado de Tomé nos primórdios do cristianismo. Lenda das pegadas nas pedras se tivesse associado, entre esses, e já antes do adven-
que, na verdade, mantém pouca relação com a idéia do paraíso terrestre, ou to do homem branco, à passagem de algum herói civilizador, é admissível, quando
com os mitos que em tomo dele gravitavam, exceto pelos ligames entre a ação se tenha em conta a circunstância de semelhante associação se achar dissemi-
desse apóstolo e a existência do lendário reino do Preste João, crença gestada nada entre inúmeras populações primitivas em todos os lugares do mundo."14
na Baixa Idade Média. De todo modo, a "lenda de Sumé" integra o imaginário No caso do Brasil esteve com certeza associada ao esforço dos jesuítas em
maravilhoso dos descobrimentos americanos e, segundo Sérgio Buarque, foi ~parar, .um pouco in~enuamente, é verdade, o esforço da catequese. Tomé
capaz de expandir-se, sob outras roupagens, pela vizinha América espanhola, fOi ~ssoclado, no Brasil, a um dos heróis da cultura tupinambá, o Sumé, e as
notadamente no Paraguai, Peru e região platina. ~fi~~ades fonéticas en~re os dois "demiurgos" jogou papel decisivo na crença
De Tomé, o apóstolo designado por Cristo, após a Ressurreição, para jesUltlca de que o Brasil sofrera um esboço de evangelização em tempos idos.
pregar o evangelho nas finisterras do mundo, as notícias datam da Idade Mé- Mas, exceto pelo frisson do meado do século XVI, quando os jesuítas de
dia. Sérgio Buarque recorda que, desde a viagem de Vasco da Gama, em 1498, fato rastrearam as pegadas do apóstolo, a lenda do Sumé-Tomé luso-brasileiro
foram recolhidos indícios dessa lenda imemorial, e, no caso dos cristãos da foi perdendo vigor com o tempo. O contrário, aliás, do que ocorreu na América
Índia, um ramo dos nestorianos era ali chamado de "cristãos de São Tomé". espanhola, onde o lendário sobre esse suposto apostolado fincou raízes mais
As ações de São Tomé, a devoção de que foi alvo, suas relíquias, tudo isso profundas e duradouras. Sérgio Buarque identifica vários percursos da lenda
aparece registrado ou mencionado na crônica portuguesa sobre o Oriente, in- n? Peru e no Paraguai e com isso reforça sua tese de que o imaginário mara-
cluindo a correspondência do insigne jesuíta S. Francisco Xavier, o livro de vilhoso no Brasil sempre foi mais atenuado do que na vizinha América hispâni-
Duarte Barbosa e muitos outros. O fato é que, como boa parte do lendário ca. Mito vago no Brasil, o São Tomé americano
ocidental acerca do Oriente, também a relativa ao apostolado de São Tomé
migrou para a América. A primeira notícia desse presumido apostolado no se vai enriquecer e ganhar mais lustre à medida que a notícia de suas prédicas se
Brasil encontra-se na Nova Gazeta Alemã, informa Sérgio Buarque, logo no expande para oeste, rumo às possessões de Castela. Sendo, como é, de fato, o único
início do século XVI, a qual menciona a "recordação de São Tomé" que pare- mito da conquista cuja procedência luso-brasileira parece bem assente, essa circuns-
ciam ter os índios brasílicos. Diz o texto: "Quiseram mostrar aos portugueses tância é o bastante, sem dúvida, para dar uma noção da mentalidade que dirigiu cada
um dos povos ibéricos em sua obra colonizadora. IS
as pegadas de São Tomé no interior do país. Indicam também que têm cruzes
pela terra adentro. E quando falam de São Tomé, chamam-lhe o Deus peque-
no, mas que havia outro Deus maior".B
Diversos outros cronistas, sobretudo os religiosos, e dentre eles os jesuí-
SALVAÇÃO ESPIRITUAL E RIQUEZA MATERIAL
tas, contribuíram para adensar a convicção ou suspeita de que Tomé havia
pregado no Brasil. E não tardou para que, no início do século XVI, os jesuítas
. Percorrendo mitos e lendas de diversas tradições culturais e variada pro-
se pusessem a rastrear as pegadas de São Tomé e outros indícios de seu
cedência, Sérgio Buarque abre um amplo leque de possibilidades para se com-
apostolado em terras brasílicas, abrindo caminho para um in~sgotável inter-
preender a riqueza do imaginário presente nos descobri~entos e conquistas da
câmbio de símbolos entre a cultura católica dos colonizadores e as tradições
ameríndias. Sérgio Buarque sublinha, com razão, que essa "espécie de
~érica pelos ibéricos. Mas não se deve entender, por isso, que se trata de um
hvro construído sobre "camadas de ar", perdido entre paraísos e fantasias,
hagiografia do São Tomé brasileiro" deveu-se sobretudo à colaboração dos
sem nenhuma conexão com a história social da colonização.
missionários católicos, de modo que se incrustaram, afinal, tradições cristãs

14 Ibid., p. 109.

13 Sérgio Buarque de Holanda, Visão do paraíso, cit., p. 108. " Ibid., p. 125.

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39
RONALDO VAINFAS
VISÃO DO PARAÍSO

No "Prefácio à segunda edição" da obra, que só veio a público em 1969, a análise dessa relação entre busca da salvação e da riqueza, quando Sérgio
Buarque afirma que os conquistadores acabariam por canonizar a própria ga-
Sérgio Buarque fez questão de advertir o leitor de que, embora não se tratasse
nância. "Ganância", afirma Sérgio Buarque, "não apenas de riquezas como
de uma "história total", pois acentuava os mitos e idéias, Visão do paraíso
não excluía considerações, ao menos implícitas, aos complementos ou supor- ainda de honrarias, aparatos e glórias do mundo, que passam a constituir a
tes materiais daquilo que, "em suma, na linguagem marxista, se poderia cha- meta constante do conquistador castelhano. E assim, até a ventura eterna vem
mar de infra-estrutura".16 A advertência e a cautela de Sérgio Buarque se a ter, muitas vezes, para ele, a cor da própria cobiça, com o que se recobre o
justificavam, então, pelo clima da época, prestígio do marxismo na historiografia paraíso, em sua imaginação, de todas as galanterias terrenas. "17
Tema-chave para se localizar essa fortíssima conexão encontra-se no
e recrudescimeno do regime militar em tempo de AI -5.
De todo modo, Sérgio Buarque ousou inovar, primeiro ao sugerir que as mito americano do Eldorado, inspirado na lenda oriental do "Príncipe Doura-
do" com sua lagoa e seus tesouros infinitos. Seria o Eldorado procurado em
idéias que estudava no livro podem ter antecipado e mesmo estimulado "pro-
cessos materiais de mudança social". E, segundo, ao dizer que essas mesmas várias partes da América: em Santa Marta, na Nova Granada, atual Colômbia;
idéias, assim como "se movem no espaço, há que acontecer que também via- no vale do Cauca, situado na mesma região; na Guiana; no país dos Omágua,
"onde mais longamente perdurou, sempre sob o fascínio que despertava o nome
jem no tempo, e porventura mais depressa do que os suportes, passando a
da resplandescente Manoa". Inúmeras expedições, portanto, se realizaram na
reagir sobre condições diferentes que venham a encontrar ao longo do cami-
nho". Em poucas linhas Sérgio Buarque foi capaz de desafiar, de um lado, o busca do Eldorado, sempre mesclando, como afirma o autor, "a religião do
esquematismo marxista, então em voga, segundo o qual as condições socio- Cristo e o culto do Bezerro de Ouro". E tamanha foi a obsessão que, na céle-
econômicas sempre determinavam as totalidades sociais; e, de outro lado, su- bre expedição amazônica de Pedro de Orsúa, a mesma que celebrizou Lope
geriu que "as mentalidades" poderiam avançar mais rapidamente do que os de Aguirre, chegou-se a nomear o chefe expedicionário, com sinete oficial, de
processos materiais - o contrário, portanto, do que começavam a afirmar, na "Governador e Capitão-General do Dourado", um país encantado e quimérico.
Vigoroso entre os conquistadores castelhanos, o mito do Eldorado iria
mesma época, os historiadores franceses da Nova História.
Seja como for, Sérgio Buarque se mostra muito atento às possíveis cone- empalidecer, também ele, entre os portugueses. A obsessiva procura de ouro
xões entre o tempo dos mitos e o tempo da colonização, o ânimo das visões que tanto animou os lusitanos desde o início da colonização, e só se viu re-
edênicas e as motivações concretas da expansão e da ação colonizadora dos compensada no final do século XVII com a descoberta dos veios das Gerais ,
povos ibéricos. E não é de admirar que assim o tenha feito, já que as próprias parece ter prescindido de elementos fantásticos. O Eldorado foi citado ape-
versões medievais do mito do paraíso terrestre jamais opuseram radicalmente nas de passagem por frei Vicente do Salvador em sua História do Brasil
a salvação espiritual e o enriquecimento material. Nos livros de viagens, reais (1627), e igualmente de modo tímido por Pero de Magalhães Gandavo (1576),
ou imaginárias, produzidos na Baixa Idade Média, juventas ou jardins das delí- ao mencionar uma serra "fermosa e resplandescente" onde se haviam en-
cias conviviam com ilhas ou lagos dourados, lugares onde os príncipes se ves- contrado umas pedras verdes. Gabriel Soares de Souza, no seu Tratado
descritivo (1587), não fez qualquer menção ao assunto, logo ele que monta-
tiam com mantos de pérolas ou pedras preciosas.
Transpostos para o cenário americano, tais mitos "áureos e argênteos" ria expedição em busca de ouro, sertão adentro, onde viria a morrer. De
iriam mobilizar inúmeras expedições de conquista e exploração territorial, mes- modo que, como diz Sérgio Buarque, esse elemento fantástico, no caso do
clando-se a procura do País da Canela ou do próprio Éden com a obsessiva Dourado brasileiro, "nenhum texto quinhentista o certifica". Reafirma-se,
busca de ouro e pedras preciosas, assunto que nosso autor desenvolve em pois, também no domínio da busca de riquezas, o "realismo pedestre" dos
diversos capítulos, a propósito de talou qual lenda, como no capítulo "Peças e portugueses em sua ação colonizadora.
pedras". O capítulo "Terras incógnitas", segundo do livro, termina preludiando

17 Ibid., pp. 32-33.


16 Ibid., "Prefácio à segunda edição", p. XIX.

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40
VISÃO DO PARAÍSO

PARAÍso AUSENTE
SERAFIM LEITE
Assim seria, quando muito, o paraíso luso-brasileiro. Na verdade, Sérgio
Buarque o considerou como ausente, tragado pelos interesses imediatos de
uma colonização predatória e pouco ligada a motivações propriamente
civilizacionais. Nosso autor retoma com essa tese, que reitera no capítulo final,
História da Companhia
"América portuguesa e Índias de Castela", aquilo que havia esboçado em Raízes
do Brasil, especialmente no capítulo "O semeador e o ladrilhador". Sérgio
Buarque procura avançar e tece considerações sobre a persistência ou dissi-
de Jesus no Brasil
pação do imaginário fantástico presente nas colonizações ibéricas e o tipo de
monarquia, o grau maior ou menor da centralização política nos dois países, a
ocorrência ou ausência de projetos imperiais que articulassem, nos dois casos,
colonização e religião. Nosso autor acrescenta, assim, outras possibilidades
explicativas para tão flagrante contraste entre as mentalidades castelhana e
portuguesa no processo de representação da conquista. Mas, a bem da verda- João Adolfo Hansen
de, apenas tangencia esses novos elementos, prevalecendo, no conjunto, a tese
de que, por serem experimentados nas lides da descoberta, os lusitanos não
viram no Brasil senão uma vasta área de exploração.
A descoberta do ouro, em fins do século XVII, contribuiria tardiamente
para uma renovação desse marasmo pouco fantasioso que marcara os primei-
ros séculos luso-brasileiros. Ao menos a miragem imperial, à moda das Índias
de Castela, iria animar os portugueses, afirma Sérgio Buarque. Uma idéia que
chegaria a estimular o governador Diogo Botelho, ainda no início dos seiscen-
tos, a reclamar para si o título de vice-rei, "como se o enfeitiçasse a esperança
de governar outro Peru ou uma segunda Índia".
Mas nada disso fez surgir, segundo Sérgio Buarque, uma visão do Brasil
paradisíaco. E é por metáfora de uma colonização genuinamente predatória
que o autor conclui o livro dizendo que, sim, "teremos nossos eldorados. Os
das minas, certamente, mas ainda o do açúcar, o do tabaco, de tantos outros
gêneros agrícolas que se tiram da terra fértil, enquanto fértil, como o ouro se
extrai, até esgotar-se do cascalho, sem retribuição de beneficios".18

'8 Ibid., p. 323.

42

Publicados entre 1938 e 1950, os dez tomos da História da Companhia


de Jesus no Brasil, de padre SerafIm Leite, jesuíta português, somam cerca
de 5.136 páginas. A matéria principal da obra é a atuação missionária,
catequética e educacional, da Companhia de Jesus no Estado do Brasil, entre
29 de março de 1549, chegada à Bahia da primeira missão dirigida pelo padre
Manuel da Nóbrega, e no Maranhão, a partir de outubro de 1615, quando foi
retomada a Fortaleza de São Luís, até então em poder de franceses, pelos
portugueses, entre os quais os padres jesuítas Manuel Gomes e Diogo Nunes,
ou 13 de junho de 1622, vinda para o Estado do Maranhão e Grão-Pará, funda-
do em 13 de junho de 1621, da missão chefIada pelos padres Luiz Figueira e
Benedito Amodei, até 3-9-1759, data da expulsão da Companhia dos territórios
de Portugal por ordem de Sebastião José de Carvalho e Melo, depois marquês
de Pombal, ministro do rei D. José I.
Sobre essa linha temporal de 210 anos, o autor distribui a extensa e
variadíssima matéria da obra, compondo quadros geográfIcos onde situa as
práticas catequéticas e educativas da Companhia de Jesus, bem como tensões
e conflitos que envolveram jesuítas, indígenas, colonos, a Coroa, padres secu-
lares e membros de outras ordens religiosas, governadores-gerais e funcioná-
rios da administração portuguesa, nos séculos XVI, XVII e XVIII. Assim, os
volumes ímpares (I, III, V e VII) estabelecem a geografIa da ocupação do
território português do Brasil e do Maranhão e Grão-Pará pelas missões
jesuíticas entre 1549 e 1759. O tomo I (século XVI) trata da ação da Compa-
nhia de Jesus na Bahia, no Espírito Santo e em São Vicente; trata também da
missão jesuítica do Paraguai; da conquista da terra e da fundação do Rio de
Janeiro, além das regiões de Sergipe de El-Rei, Pernambuco, Paraíba e Rio
Grande do Norte. O tomo III (séculos XVII-XVIII) dá conta das missões
jesuíticas do Norte e do Nordeste. O tomo V (séculos XVII-XVIII) tem por
objeto a Bahia, Sergipe de El-Rei, Pernambuco e outras regiões do Nordeste.
O tomo VII (séculos XVII-XVIII) trata de assuntos gerais e conclui a Histó-
ria da Companhia de Jesus no Brasil. Nele, o autor dá conta do governo
interno da Província do Brasil, fazendo um elenco de todos os seus provinciais,
entre 1553 e 1759, além de acompanhar o desenvolvimento do ensino público
do século XVI até o XVIII. Também trata da expulsão da ordem dos territó-
rios portugueses pela lei de 3 de setembro de 1759 ou já em 1760, durante o
reinado de D. José I. Os tomos pares (II, IV e VI) expõem as atividades
catequéticas e educacionais desenvolvidas pelos padres nas missões referidas

45
HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - JOÃO ADOLFO HANSEN

Goiás, Mato Grosso, da missão do Guaporé e de assuntos relativos a São Pau-


nos tomos ímpares. Assim, o tomo II (século XVI) trata de assuntos corres-
pondentes às iniciativas missionárias vistas no tomo I, como a catequese inicial lo. O subcapítulo "Motins e desterro dos padres do colégio" trata da destruição
do gentio do litoral da Bahia, do Espírito Santo e de São Vicente e a luta contra das missões castelhanas do Guairá pelos bandeirantes paulistas, apresentando
a antropofagia, a poligamia, a nudez e o nomadismo dos indígenas. Seu capítulo o pressuposto histórico e as conseqüências gerais, canônicas e civis, da defesa
sobre a introdução do teatro trata das primeiras manifestações declamatórias dos índios pelos inacianos e do seu apresamento pelos paulistas. Com o subtí-
e cênicas, dos motivos, temas, cenários e cronologia das representações, espe- tulo "As administrações dos índios", refere nove bandeiras escravagistas; as
cificando o sentido do teatro jesuítico, principalmente os autos de José de dúvidas dos moradores de São Paulo acerca dos cativeiros justos e o famoso
Anchieta, como arte fundamentalmente utilitária, dirigida para a catequese do voto do padre Antônio Vieira, em 1694, a favor da liberdade dos aldeados.
índio e a moralização do colono. Segundo a ordem do aparecimento das obras, Também discute as administrações dos jesuítas e dos moradores, especifican-
o Auto de São Tiago foi a primeira peça a ser representada no Brasil, na do a posição do Colégio de Piratininga, no final do século XVII, em 1700,
aldeia de Santiago, na Bahia, em 25-7-1564. Em 1586, como informa o padre quando terminou a grande batalha da liberdade dos índios e iniciou-se o ciclo
Simão de Vasconcelos, o irmão Manuel do Couto preparou, na Aldeia de São mineiro. No caso, levanta indícios de uma cisão entre os partidários do padre
Lourenço (Niterói), uma comédia em louvor do santo. O Auto de São Louren- Antônio Vieira, defensor da liberdade incondicional dos índios aldeados, e os
ço é escrito em tupi, castelhano e português, achando-se no Caderno de jesuítas estrangeiros, adeptos da escravização dos mesmos, como os italianos
Anchieta, que o copiou. O que não significa que necessariamente fosse da João Andreoni (Antonil) e Giorgio Benci ou o holandês Jacob Rolland, autor de
autoria deste; Serafim Leite informa que os autos eram representados mais de uma Apologia pro paulistis, ironizada por Vieira.
uma vez, havendo acomodações dos mesmos às circunstâncias da nova repre- Os tomos VIII e IX são suplementos biobibliográficos, tratando minucio-
sentação e intervenções de mais de um autor. Alguns personagens têm nomes samente, com erudição espantosa, de escritores jesuítas que trabalharam na
de chefes indígenas que foram inimigos dos portugueses durante a Confedera- Província do Brasil e na Vice-Província do Maranhão e Grão-Pará, entre
ção dos Tamoios. É o caso de Guaxará ou Guaixará, principal de Cabo Frio, e 1549 e 1759. A bibliografia consultada por Serafim Leite é referida nas pági-
Aimbirê, que teria ameaçado matar Anchieta, quando este foi refém dos índios nas XI-XXVI do tomo VIII, constando principalmente de obras manuscritas,
em Iperoig. Como afirma Serafim Leite,l muito da correspondência dos jesu- impressas e de cartografia. Esse tomo faz um elenco de autores de A a M·, o
ítas foi perdido nas travessias atlânticas, tempestades e piratarias. Dos docu- tomo IX, de N a Z. O tomo X traz a bibliografia geral da obra. Do tomo I ao
mentos publicados e inéditos que serviram de base para a lista das peças teatrais tomo IX, índices minuciosos das matérias tratadas; listas de instituições cul-
acima, fica evidente a centralidade da Companhia de Jesus. Afinal, só na se- turais visitadas e vários apêndices documentais particularizam ricamente os
gunda metade do século XVII surgiu um autor teatral que não era membro da assuntos tratados.
Companhia - o poeta Manuel Botelho de Oliveira - que introduziu o teatro
espanhol no Brasil, com duas comédias não representadas: Amor, engano y
II
zelos e Hay amigo para amigo.
O tomo IV (Norte-2, "Obra e assuntos gerais", séculos XVII-XVIII)
tem por subtítulo A magna questão da liberdade e ocupa-se principalmente da A assombrosa multiplicidade e a enorme diversidade dos assuntos refe-
ação do padre Antônio Vieira. O tomo VI, Do Rio de Janeiro ao Prata e ao rentes a todas as regiões do Brasil e do Maranhão e Grão-Pará onde estive-
Guaporé. Estabelecimentos e assuntos locais. Séculos XVII-XVIII, trata do ram os jesuítas são interpretadas por critério~ ideológicos que as unificam
Rio de Janeiro, do Espírito Santo, das capitanias do Oeste, como Minas Gerais, segundo um sentido apologético da ação da Companhia de Jesus. Por isso,
antes de ir expondo o que o autor narra, é preciso especificar como ele o faz,
para desnaturalizar seus pressupostos, categorias e procedimentos teórico-
doutrinários e lembrar ao leitor que, assim como a matéria a que se aplicam,
1 História da Companhia de Jesus no Brasil (Lisboa/Rio de Janeiro: Portugáli~ Civilização Brasi-
também eles são históricos, pois produzidos em uma situação particular, com
leira, 1938), tomo II, pp. 605-612.

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HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL Ui JOÃo ADOLFO HANSEN

condicionamentos materiais e institucionais específicos, que implicam as re- documentos, e, principalmente, sempre favorável aos padres portugueses, sem-
frações do uso dos materiais manuscritos dos jesuítas dos séculos XVI, XVII pre caracterizados como bons, caridosos, justos e injustiçados, em compara-
e XVIII para montar seqüências narrativas de "começo-meio-fim" com ações ção com os inimigos externos da Ordem, como o cronista Gabriel Soares de
de personagens constituídas como centrais e secundárias, morais e imorais, Sousa, os colonos e os carmelitas do Maranhão e Grão-Pará, os bandeirantes
justas e injustas, etc. Não se pode positivar o que Serafim Leite propõe, enfim, de São Paulo, e, ainda, em comparação com os padres inimigos das posições
devendo-se fazer a crítica documental e teórica do seu procedimento. portuguesas tradicionais defendidas pela Ordem, caso dos padres classifica-
Inicialmente, é preciso falar dos próprios materiais usados como docu- dos por Serafim Leite como rivais de Vieira, como Andreoni e Gusmão. Ou
mentação. Sendo jesuíta, teve livre acesso a manuscritos da Companhia de seja, o autor não expõe nem constitui suficientemente as razões ou os interes-
Jesus depositados em reservas de arquivos de Portugal, Espanha, Itália, Fran- ses das partes inimigas dos jesuítas defensores dos índios, de modo que o leitor
ça, Bélgica e Holanda, além de instituições culturais do Brasil, que refere mi- corre o risco de generalizar como "verdadeira" a particularidade dos interes-
nuciosamente no tomo X da obra. Logo no início desta, informa que, dentre a ses da Companhia, entendendo as razões dos seus oponentes de maneira qua-
enorme variedade dos papéis que examinou, estabeleceu como fontes princi- se só moral, como se fossem indivíduos e grupos apenas interessados em matar
pais as cartas e os relatórios dos jesuítas que foram agentes nas missões do e escravizar índios, expulsar padres e obter lucros a qualquer custo. Obvia-
Estado do Brasil e do Estado do Maranhão e Grão-Pará entre 1549 e 1760. mente, para se fazer justiça à empresa audaciosa de escrever uma história de
Nada haveria a dizer sobre a escolha do material interno da Companhia, total- tal porte, que assombra pela paciência e erudição prodigiosas, devem-se ima-
mente necessário para a história da mesma, se não fosse documentação quase ginar as dificuldades de toda ordem superadas admiravelmente pelo padre
que exclusiva, ou seja, documentação cujo uso faz com que outras fontes con- Serafim Leite, que durante anos a fio pesquisou, selecionou e organizou milha-
temporâneas fundamentais para a história colonial e para a história da Compa- res de informações, para depois ordená-las na sua narração. Mas tem-se de
nhia de Jesus - como bandos, alvarás, ordens-régias, atas e cartas das câmaras admitir que adotou procedimentos historiográficos discutíveis. Não o seriam,
municipais, oficios de governadores, pleitos, processos, queixas, agravos, tex- talvez, se todos os manuscritos que usou como documentação fossem efetiva-
tos de ficção e não-ficção de autores não pertencentes à Companhia, etc. - mente acessíveis para o público não-religioso, pois, até agora, a maioria deles
sejam constituídas como de interesse apenas indireto e mesmo sem interesse continua de dificil e mesmo impossível acesso para leigos. Logo, quando o
para a história da Companhia de Jesus. A documentação da obra é fundamen- autor cita as cotas de manuscritos, mas não transcreve os textos dos mesmos,
talmente jesuítica, ou seja, documentação jesuítica de uma história jesuítica da afirmando não querer introduzir o leitor "[ ... ] no labirinto das citações inúteis ", 2
Companhia, podendo-se supor, por isso, que os próprios documentos usados talvez por prever que a transcrição de todos os textos que refere tomaria a
predeterminam o crivo interpretativo de Serafim Leite, pois ele os utiliza para obra materialmente inviável, o leitor fica decepcionado. Além disso, quando
dar a palavra a seus agentes dos séculos XVI, XVII e XVIII. Quando falam traduz manuscritos em latim e castelhano - mas também sem transcrever os
outra vez, pela mediação da voz do narrador, fazem-no novamente ad maiorem originais - parece supor que o leitor deva aceitar a interpretação realizada por
Dei gloriam, em defesa das posições da sua ordem no presente e no passado. sua tradução como adequada, verossímil e mesmo verídica. Afirma que a his-
O que fica nítido, por exemplo, quando narra as polêmicas que envolveram os tória que escreve, sendo história portuguesa, não é a história de Portugal; e,
inacianos e os colonos nos séculos XVI e XVII. Nos conflitos entre os padres sendo história brasileira, não é a história do Brasil; e, sendo história eclesiásti-
defensores da liberdade dos índios aldeados e os colonos escravistas - na ca, não é a história da Igreja, mas "[ ... ] história dos atos realizados pelos Jesu-
Bahia, no século XVI; no Maranhão, entre 1653-1662; em São Paulo, ao longo ítas da Assistência de Portugal no Brasil".3 Por isso mesmo, diz, como não é
de todo o século XVII, principalmente nas três décadas fmais, nos vários epi- uma história geral da Companhia de Jesus, trata do Instituto, da formação e
sódios que envolveram as famílias Garcia e Camargo, além de grandes perso- das Constituições da mesma apenas quando isso é indispensável.
nalidades da Companhia de Jesus, como Antônio Vieira, João Andreoni e
Alexandre de Gusmão - a interpretação é sempre favorável à posição dos 1 Ibid., tomo I, p. XIX.
padres contemporâneos dos eventos narrados nos papéis usados como J Ibid., "Prefácio", p. XI.

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HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL
• JOÃO ADOLFO HANSEN

Outros pressupostos historiográficos são expostos no "Prefácio" do tomo Em Portugal, reinava D. João III. O grande monarca, recusando infiltrações anglo-
V, onde propõe que a Cronologia é "[ ... ] a ciência das divisões do tempo e das saxônicas, salvou Portugal da guerra civil e manteve, nesta parte do Ocidente, as
datas históricas"; a Filosofia 'l .. ] a ciência dos seres e das causas e efeitos" tradições intelectuais, morais, religiosas e estéticas, da raça latina. A Providência
reservou à Companhia de Jesus a principal colaboração nesta obra de saneamento
e a História ''[. .. ] a narrativa dos acontecimentos dignos de registo, de que a
espiritual. Sobretudo na vastidão do Império Português, onde ela iria ser veículo de
Cronologia é subsídio e a Filosofia interpretação".4 Pressupondo que as inter- tão grandes idéias. 6
pretações se fundam em teorias e que estas variam conforme os tempos e os
dados inéditos que modificam as premissas sobre as quais a filosofia da histó- E ainda: "Partimos [ ... ] do princípio de que a civilização cristã é boa".?
ria atua, conclui que as interpretações filosóficas são precárias, em decorrên- Assim, embora reconheça que houve "excessos" e "omissões", nunca
cia da própria precariedade da teoria que as informa: põe em dúvida o próprio fundamento metafisico da ação dos missionários e da
sua escrita, a verdade divina. Como diz no tomo VII, quando refere prováveis
E, por evidente contraste, são os dados novos, historicamente adquiridos, que, uma
causas da oposição aos jesuítas no século XVIII, toda liberdade humana está
vez adquiridos, permanecem com o seu valor próprio, independente de teorias e
necessariamente subordinada a Deus:
tendências, que os podem depois interpretar no sentido A ou no sentido B, mas só
eles, os dados, permanecem em si mesmos. l
Não se trata de averiguar aqui as causas deste estado mental da Europa, lembrando
apenas que alguns as atribuem à própria Companhia de Jesus com o seu sistema
Com o enunciado, afirma que a pesquisa histórica se baseia na minúcia
filosófico-teológico do livre-arbítrio, em que defende a liberdade, princípio revolucio-
documental que aumenta o depósito das "noções certas", para incorporá-las nário fecundo, sem dúvida, mas a que logo unia outro de caráter conservador: toda a
positivamente ao conhecimento humano permanente. Obviamente, supondo a autoridade vem de Deus, todavia quem a recebe diretamente não são os Reis, senão o
objetividade dos dados, sem levar em conta que a apropriação dos materiais. Povo, onde se conserva estável.&
pelos critérios particulares do lugar institucional de enunciação do historiador
produz valores-de-uso específicos com os mesmos, Serafim Leite também re- A própria universalidade pressuposta como aval da sua enunciação é, no
corta, organiza e dispõe o material jesuítico como se fosse um "dado objetivo" entanto, um limite da validade dos seus procedimentos historiográficos, porque
ou tivesse "valor próprio, independente de teorias e tendências". Logo, se tais hoje aparece como particularidade de uma religião histórica, entre outras,
procedimentos de uso dos manuscritos como fontes são discutíveis, também é universalizada na expansão ibérica, nos séculos XVI, XVII e XVIII, e na sua
discutível a própria interpretação dos fatos e dos eventos inventados com eles. interpretação que valida, no presente da leitura, a intervenção que submete as
Sendo padre, Serafim Leite interpreta catolicamente as matérias culturas indígenas e africanas ao império português.
selecionadas e organizadas segundo o esquema narrativo de uma crônica Por isso, principalmente quando escreve sobre as culturas indígenas e as
apologética da ação da Companhia de Jesus no Brasil. Embora afirme várias africanas, sua conceituação da diferença cultural dos indios catequizados ou
vezes que se manterá neutro, pois acredita que o material tem "valor próprio, dos negros escravizados não é antropológica, mas religiosa. No caso da
independente de teorias e tendências", nunca o é efetivamente, supondo-se catequese dos grupos indígenas, a cultura dos grupos aldeados pelos jesuítas
que isso seja possível. Principalmente porque a universalidade do Deus de sempre é dada como evidentemente humana, em oposição às teses colonialistas
Roma é posta por ele como evidência positiva de verdade absoluta que funda- que muitas vezes afirmavam a animalidade dos índios como validação do seu
menta a ação missionária no passado reconstituído dos séculos XVI, XVII e extermínio ou escravidão, mas de uma humanidade caracterizada como seme-
XVIII, e no presente da sua enunciação: lhança negativa, distante e deformada da verdade cristã. Por ser inferior, deve
ser convertida à civilização superior dos agentes portugueses:

• Ibid., "Prefácio", tomo I, p. X.


• Ibid., "Prefácio", tomo V, p. X. 7 Ibid., p. XIII.

l Ibidem. I Ibid., tomo VII, p. 336.

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JOÃO ADOLFO HANSEN
HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

Que importa o debate acerca da sobrevivência de culturas e a verificação de que a vultos da Companhia e defendê-los. É o caso, no século XVI, de Manuel da
cultura inferior, posta em contacto com a superior, ou se desagrega ou morre? Não Nóbrega, agigantado em detrimento do espanhol José de Anchieta. Ou de An-
ficará sempre, como dado positivo, a maior extensão duma cultura superior?9 tônio Vieira, supervalorizado na comparação com jesuítas italianos e holande-
ses do final do século XVII e início do XVIII, como Andreoni, Benci e Rolland.
Além de pressupor tal universalidade como validação da conquista e do Lembrando que a linguagem é sempre consciência prática que independe
colonialismo ibéricos, Serafim Leite também trata muito positivamente os agen- da intenção dos agentes, pode-se dizer que a interpretação feita por Serafim
tes portugueses da colonização, sejam religiosos ou leigos, pelo simples fato de Leite dos eventos que reconstitui tende a alinhar-se objetivamente com seto-
serem portugueses, como foi dito. É um nacionalista ardoroso, afirmando que res conservadores, nacionalistas e colonialistas, de Portugal e do Brasil, nos
anos 1938-1950. Embora a obra permaneça fundamental, como magnífica sis-
[ ... ] uma das "glórias portuguesas" foi operar a substituição da cultura inferior [... ] tematização de informações sobre a Companhia de Jesus no Brasil e no
quase só pelo dinamismo latente da civilização superior, que por si mesma se impôs,
Maranhão e Grão-Pará, é necessário relativizar a interpretação que faz das
agregando a si os elementos inferiores. 10
mesmas, cruzando-a com interpretações realizadas por outros agentes históri-
cos não-jesuítas que, nos séculos XVI, XVII e XVIII, foram contemporâneos
Ou:
de eventos reconstruídos nela, além de historiadores portugueses e brasileiros
Pertencem a este período (século XVII) e a este Tomo, alguns sucessos consideráveis
não-católicos e não-religiosos que, desde o século XVIII, vêm tratando
na história do Brasil. Um deles, a violenta e pérfida pretensão dos holandeses a se polemicamente do assunto.
apoderarem de uma terra já em plena floração civilizada (o que eles encontraram por
civilizar, como a Guiana, e onde ficaram, ainda hoje é simples colônia). Felizmente
triunfou a linha que manteve ao Brasil a fisionomia e personalidade que o distingue li
hoje, segundo o germe inicial de sua vida histórica. ll

No século XVI, os assim chamados "anos heróicos" (1549-1570)


Por isso, também se opõe enfaticamente a interpretações como a de
correspondem à fase da instalação da missão no litoral brasileiro e aos primei-
Felner que, escrevendo sobre a presença jesuítica na Africa, afirma que os
ros contatos com as populações indígenas das capitanias do Nordeste, como a
padres eram amos dos sobas de Angola e que defendiam a liberdade dos índios
Bahia e Pernambuco, e do Sudeste, como o Espírito Santo e São Vicente.
americanos com fmalidades comerciais, pois obrigavam os colonos brasileiros
Nesses anos, a figura fundamental para o projeto jesuítico do século XVI e dos
a comprar escravos negros e, com isso, a se recolonizarem continuamente,
seguintes é o padre Manuel da Nóbrega. Segundo Serafim Leite, Nóbrega
como dependentes diretos da Coroa e da Companhia, que tinham o monopólio
manifesta um conceito básico de unidade na organização política da terra, pois
do tráfico. Sendo os jesuítas donos dos sobas, afirma Felner, só eles podiam
lhe parece que todo o Brasil deve estar sob a imedíàta jurisdição real. Para
vender negros, tendo lucros astronômicosY Logo, quando postula e defende a
efetivar tal unidade, Nóbrega estabeleceu um programa de "catequese e es-
suposta brandura da colonização portuguesa, em geral, e da missão jesuítica
cola", base da política dos aldeamentos indígenas e da educação dos colégios
portuguesa, em particular, falando do "[ ... ] genuíno espírito colonizador de
e seminários, no século XVI, retomado, com adaptações, pela Companhia de
Portugal, esclarecido, humano e cristão",13 Serafim Leite realça os feitos dos
Jesus nos séculos XVII e XVIII.
padres portugueses para retratar positivamente o caráter e a ação de grandes
Nóbrega chegou à Bahia com 32 anos de idade, em 29-3-1549, na esqua-
dra do primeiro governador-geral, Tomé de Sousa, com os padres Leonardo
• Ibid., "Prefácio", tomo I, p. XIII. Nunes, Aspicuelta Navarro, Antônio Pires e os irmãos Vicente Rodrigues e
10 Ibid., pp. XIII-XlV. Diogo Jácome. Na Bahia, fundou a casa de Água dos Meninos, para educar
11 Ibid., p. Xv. jovens índios. Dejulho de 1551 a janeiro de 1552, esteve em Pernambuco. Em
II Ibid., tomo II, p. 345.
13 Ibid., p. 171.
22 de junho de 1552, chegou à Bahia o bispo Pero Fernandes Sardinha.

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HISTORIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL JOÃO ADOLFO HANSEN

Cenfonne Serafim Leite, vinha da Índia e confundiu os índios do Brasil com os A iei que lhes hão-de dar é defender-lhes [proibir-lhes] comer carne humana e guerrear
hindus de Goa. Demonstrando-se desfavorável à catequese, criticou a integração sem licença do Governador; fazer-lhes ter uma só mulher; vestirem-se, pois têm
jesuítica das práticas gentias no ritual da missa, polemizando com Nóbrega muito algodão, ao menos depois de cristãos; tirar-lhes os feiticeiros; mantê-los em
sobre a confissão feita por meio de intérpretes. O método de Nóbrega pres- justiça entre si e para com os cristãos; fazê-los viver quietos, sem se mudarem para
outra parte senão for para entre cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem, e
crevia que os índios a serem batizados deviam provar que eram "bons cris-
com estes Padres da Companhia para os doutrinarem I4
tãos" ou afastar-se da comunidade dos padres. Não se podia batizá-Ios em
multidão; os batizados deveriam viver em aldeias separadas dos restantes. Em
Em 1556, escreveu o Diálogo sobre a conversão do gentio e um texto
São Vicente, em 1553, Nóbrega organizou juridicamente a escola, fundando a
perdido, Tratado contra a antropofagia e contra os cristãos seculares e
Confraria do Menino Jesus. Detenninou então que se ensinasse a ler e a es-
eclesiásticos que a fomentam ou consentem. Em 1561, participou da organi-
crever também aos meninos externos, que aprendiam a doutrina católica, leitu-
zação da guerra contra os tamoios de Iperoig, então aliados aos huguenotes de
ra, escrita, canto, flauta e latim. Em 22-2-1553, inaugurou-se o Colégio.
Villegagnon, na Guanabara; voltou a São Vicente, onde participou, em abril de
O ensino nos colégios fundados por Nóbrega é anterior ao aparecimento
do Ratio studiorum, em novembro de 1599, e deve ter seguido os programas 1563, da pacificação dos índios. Durante as negociações, ele e Anchieta foram
do Colégio de Évora, pertencente à Companhia de Jesus. Nóbrega pretendia reféns do chefe Cunhambeba, em Iperoig. Apoiou Estácio de Sá, sobrinho do
pennanecer em São Vicente, considerando a capitania a mais apropriada para governador Mem de Sá, na guerra contra os franceses, em 1564. Nesse ano,
a conversão do gentio, pois era a entrada para o sertão habitado por índios uma provisão real estabeleceu o Colégio de Salvador para sessenta padres da
bravos. Queria pennanecer em São Vicente para ir ao Paraguai, mas o gover- Companhia. Ainda em 1564, o rei D. Sebastião emitiu um alvará que estabele-
nador o impediu, temendo que a capitania se despovoasse com uma corrida ao cia a redízima dos dízimos do açúcar como "[ ... ] esmola para sempre para
ouro das minas descobertas através do Peru. Além disso, as terras paraguaias sustentação do Colégio da Bahia". Os jesuítas passaram a obter os recursos
pertenciam a Castela. Em 9-7-1553, quando Roma o nomeou o primeiro pro- materiais necessários para a manutenção dos seus colégios; em 1568, o bene-
vincial da recém-criada Província do Brasil, Nóbrega deixou de subordinar-se ficio foi ampliado para o Colégio do Rio; e, em 1576, para o de Olinda.
à província portuguesa da Companhia e à autoridade do bispo de Salvador. Visando a autonomia da Província do Brasil, Nóbrega delineou as bases
Continuando o duplo programa de "catequese e ensino", suas negocia- econômicas para os colégios, detenninando que os produtos da pecuária, além
ções com Brás Cubas e João Ramalho facilitaram a penetração jesuítica no do uso da dotação régia fundada nos dízimos do gado, seriam o fundamento
planalto de São Vicente. A partir de 1553, passou a contar com o auxílio do econômico da Companhia. A primeira fonte de receita dos missionários fora
padre José de Anchieta. No sertão de Santo André da Borda do Campo, par- agrícola; antes mesmo da fundação de Salvador, o governador Tomé de Sousa
ticiparam da fundação de São Paulo de Piratininga, em 1554. Em 24-8-1554, tinha saído com Nóbrega pela região, reservando um "bom vale" para os jesuí-
Nóbrega mandou três innãos para fazer as pazes entre os carijós e os tupis. tas. Em janeiro de 1550, chegaram mais quatro padres e sete meninos órfãos
Dois deles, Pero Correia e João de Sousa, foram mortos pelos carijós instiga- de Lisboa. A organização da Casa dos Meninos coincidiu, então, com o estabe-
dos por um castelhano do Paraguai. São os primeiros mártires da Companhia lecimento do subsídio régio de 400 réis (ou um cruzado) por mês para N óbrega
de Jesus na América. e os cinco companheiros, além de 5.600 réis anuais para roupas. Não havia
As Constituições da Companhia de Jesus chegaram ao Brasil em 1556. dinheiro circulante e o pagamento era feito em ferro que, depois de negociado,
Nesse mesmo ano, voltando à Bahia, Nóbrega começou a fundar aldeias no rio ficava valendo a metade. Em 1550, Tomé de Sousa efetivou a doação da
Vennelho e a proibir a confissão dos colonos que viviam em concubinato públi- sesmaria, chamada de Água dos Meninos. O Colégio recém-estabelecido era
co ou tinham escravos índios comprados sem justiça. É também na Bahia que, destinado ao ensino das crianças índias, com fins apostólicos. A partir de 1551,
movido pela morte do bispo Sardinha, devorado pelos caetés quando o navio o subsídio foi ampliado para os usos dos novos padres que iam chegando ao
que o levava para a Europa naufragou nas costas do Nordeste, sistematizou a
política da catequese em seis itens básicos; extremamente eficazes, atingem o
núcleo da organização social e cultural dos grupos indígenas: '4 Padre Manuel da Nóbrega, Carta da Bahia, 8-5-1558.

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HIST6RIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL JOÃO ADOLFO HANSEN

Brasil. Visando a manutenção dos alunos, criaram-se as confrarias do Menino Janeiro, em 17-10-1570. Desde 1549, tinha estabelecido a política dos
Jesus, que sustentavam os órfãos vindos de Lisboa, além de meninos do Brasil. aldeamentos indígenas, organizara a Província da Companhia de Jesus, funda-
O modelo dessas casas fundadas também no Espírito Santo e em São Vicente ra dois colégios de dotação régia (Bahia e Rio), mais o de Pernambuco, depois
era o Colégio dos Órfãos de Lisboa. A base econômica da confraria de também transformado em colégio real. Estabelecera residências em várias
Piratininga era o gado doado por Brás Cubas e terras de Pero Correia. Essas capitanias: na Babia, em Ilhéus e Porto Seguro; no Espírito Santo, na Vila de
confrarias não estavam previstas nas Constituições, que chegaram em 1556, Vitória e em mais três aldeias, Conceição, Guarapari e São João; na Guanabara,
e só admitiam colégios fundados pela Companhia que tivessem renda própria. o Colégio do Rio de Janeiro e as aldeias de Ibiracica e a de São Lourenço
A grande inovação de Inácio de Loyola, conforme Serafim Leite, consistiu em (atual Niterói); em São Vicente, uma residência na Vila de São Vicente, e
determinar que, para cumprir a finalidade pedagógica, o colégio não poderia cercanias como Santos e Itanhaém, e outra em São Paulo de Piratininga, e
depender de esmolas, mas ter renda fixa. A verba da redízima dos dízimos do adjacências como Santo André da Borda do Campo e Gerebatiba.
açúcar para o Colégio da Babia, em 1564, era destinada para sessenta padres;
a do Colégio do Rio, em 1568, para cinqüenta; a de Pernambuco, em 1575,
para vinte. Cada padre recebia 20.000 réis anuais. N
No caso, a noção de "colégio" não tem sentido apenas material, mas
regional, referindo-se à região da sua instalação, às aldeias e às fazendas. Em Conforme o Regimento dado por D. João III a Tomé de Sousa, em 1548,
1600, os jesuítas do Brasil eram 172; em 1760, quando foram expulsos, 317. a fórmula inicial de organização civil dos índios seriam os aldeamentos ou as
Nesse .tempo, na região Norte, Maranhão e Grão-Pará, não existia nenhum chamadas aldeias de el-rei, distintas de outros agrupamentos de índios chama-
colégio real, como os três citados, que foram os únicos no Brasil até a inter- dos de "administração particular". As aldeias de el-rei dependiam diretamente
venção' de Pombal. Assim, a grande fonte de recursos usados na Província do dos governadores, que nomeavam para elas os institutos religiosos que tinham
Brasil e na Vice-Província do Maranhão e Pará foram as fazendas de gado e as missões como vocação. Nesse sentido, os missionários eram delegados do
os engenhos de açúcar onde, a partir do século XVII, é atestado o trabalho de governador-geral ou governadores da repartição do sul ou capitães-mores. As-
índios escravizados. Nos séculos XVI, XVII e XVIII, não havia o problema da sim, as aldeias de el-rei ficavam fora da alçada das câmaras municipais locais;
legalidade da escravidão, mas sim o do seu modus faciendi. 15 No Voto do os missionários eram diretamente indicados pelos reitores dos colégios ou pro-
padre Antônio Vieira sobre as dúvidas dos moradores de S. Paulo acerca vinciais, com os poderes das leis, de modo que o missionário era ao mesmo
da administração dos índios, de 12-7-1694, Vieira advertia que os índios que tempo o pároco da aldeia e seu regente secular ou civil. As relações das câma-
viviam livres em suas terras e que tinham sido arrancados violentamente delas ras municipais com as aldeias de el-rei eram condicionadas por leis que confe-
pelos bandeirantes e trazidos para São Paulo onde eram escravos ou vendidos riam a jurisdição secular aos superiores das aldeias; às vezes, as câmaras
sofriam injustiça. Aliás, o primeiro ato legal de escravização foi a declaração, assumiam, tal jurisdição. Serafim Leite propõe que a intervenção das câmaras
em 1562, da guerra justa contra os caetés do Nordeste que tinham devorado o era legítima, quando exerciam a jurisdição por poderes especiais confiados a
bispo Sardinha. 16 Em março de 1565, Nóbrega participou da fundação da cida- elas pelos governadores; contudo, quando as câmaras se adiantavam a tais
de de São Sebastião do Rio de Janeiro, tomando-se reitor do colégio dessa poderes, passando a interpretá-los livremente, sua intervenção era ilegal, con-
cidade em 1567. Nesse ano emitiu um parecer, Caso de consciência de 1566- forme o autor, principalmente porque a finalidade do agrupamento dos indios
1567, sobre a escravidão dos indios que se vendiam a si mesmos e aos filhos nas aldeias de el-rei, como reza uma carta do governador-geral do Brasil, Afon-
durante a peste e a fome de 1562-1563. Estabelecendo os "títulos justos" da so Furtado de Castro do Rio de Mendonça, aos oficiais da Câmara da Vila de
escravidão, defendeu a liberdade dos índios aldeados. Morreu no Rio de São Paulo, da Babia, em 7 de outubro de 1671, era ''[. .. ] para Sua Alteza os ter
assim prontos a seu real serviço, que é o fim de elas se perpetuarem".17
" Serafim Leite, op. cit., tomo II, p. 232.
lO Ibld., p. 197. 17 Ibld., tomo VI, pp. 228-229.

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HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL JOÃo ADOLFO HANSEN

v maiores eram, no caso, a base da evangelização. No centro, achava-se o Co-


légio da Bahia; ao sul, os do Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo; ao
No fmal do século XVI, a Província do Brasil estava plenamente organi- norte, os de Pernambuco, Maranhão e Pará. Na Bahia, os padres entravam
zada e já se expandia para os limites do território, chegando, ao norte, até à pelo rio Real e pelo rio São Francisco. A região de.ste e a das serras de Arabó
Amazônia e ao Amapá; ao sul, até a Colônia do Sacramento, no rio da Prata; e, e Quiriris tinham grandes populações indígenas. Pelo São Francisco, o chama-
a oeste, até o rio Guaporé. Os primeiros jesuítas do século XVI chamaram de do "caminho das boiadas", chegaram ao Piauí; deste, pelo Maranhão, atingi-
"sertão" a esses lugares desconhecidos e distantes do litoral, que ainda não ram a Serra do Ibiapaba, no Ceará. Na capitania do Espírito Santo, a entrada
tinham sido povoados por europeus. Em 1550, o termo era aplicado aos arre- principal era pelo rio Doce, principalmente no primeiro quartel do século XVII,
dores de Salvador; do mesmo modo, Nóbrega dá notícia da fundação da aldeia adentrando-se o território que hoje é Minas Gerais. Do Rio de Janeiro, desde o
de Piratininga datando-a "[ ... ] deste sertão adentro". Assim, a noção relacio- século XVI e nas primeiras décadas do XVII, iam por mar até Laguna (atual
nava-se ao povoamento, não ao solo; por isso, nomeava um território sempre Santa Catarina), chegando pelo interior ao atual Rio Grande do Sul. O Colégio
cambiável, que se alterava conforme eram dilatadas as fronteiras. Pelos rios e de São Paulo ficou subordinado à influência do Colégio do Rio de Janeiro, não
por vias terrestres, os jesuítas as alargaram constantemente, quando penetra- sendo diretamente uma base para o descimento de índios. Mas os padres ti-
ram mato adentro para fazer a "conquista espiritual" dos novos territórios. A nham bases em lugares distantes de Piratininga, como Botucatu ou São José
partir de 1553, principalmente, começou a preocupação de ir para o interior dos Campos. Com o tempo, as missões do Mato Grosso passaram a depender
descobrir gentio melhor que o da costa. Assim, foram organizadas várias en- da missão de São Paulo donde, em 5-8-1750, por exemplo, saíram de Porto
tradas do sertão, como entradas de reconhecimento missionário, como as de Feliz (antigamente Arariguaba), no rio Tietê, os padres Estêvão de Crasto e
Nóbrega, em 1549, de Porto Seguro ao sul do rio do Frade; a de Leonardo Agostinho Lourenço, acompanhando o governador Antônio Rolim de Moura,
Nunes, em 1550, para o Campo de Piratininga e pelo rio Tietê; ou a de Francis- que ia fundar a capitania de Mato Grosso. Chegando ao Mato Grosso em
co Pires e meninos órfãos, em 1552, ao sertão da Bahia. Em dezembro de 12-1-1751, Estêvão de Crasto fundou uma aldeia próxima de Cuiabá; Agosti-
1553 , obedecendo a uma ordem de D. João III, uma entrada chefiada pelo nho Lourenço, outra, em território que hoje é a Bolívia. IS No Nordeste, o Co-
padre Aspicuelta Navarro avançou em direção do rio Jequitinhonha, no atual légio de Pernambuco foi o núcleo das entradas à Paraíba e ao Rio Grande do
estado de Minas Gerais, ultrapassando o rio de São Francisco, em busca de Norte anteriores à invasão holandesa de 1630. A mais célebre delas foi a dos
ouro; em fevereiro de 1574, o padre João Pereira penetrou a atual chapada padres Luís Figueira e Francisco Pinto, em 1607, que atingiu a serra do Ibiapaba,
Diamantina, indo pelo rio Doce em busca dos índios paranaubis (mares ver- no Ceará. Em 1636, o mesmo padre Luís Figueira saiu por mar do Colégio do
des), com licença régia de fazer o descobrimento das esmeraldas. Em 1578, os Maranhão para entrar no rio Xingu. Na Amazônia, a base das missões era o
padres entraram no sertão do rio Paraíba (Rio de Janeiro), donde desceram Colégio do Pará; em 1653, o padre Antônio Vieira entrou no rio Tocantins.
600 índios depois de pacificá-los. Entre 1575-1576,20 mil índios foram desci- Inúmeras outras entradas foram feitas entre 1659, data da redução dos índios
dos do sertão de Arabó (ou Orobó); em 1583, praticamente todos eles estavam nheengaíbas por Vieira, e 1752, entrada de Manuel dos Santos e Luís Gomes
mortos, o que foi interpretado como "castigo de Deus". Falava-se então que ao rio Javari.
eram "infmitos" e que os índios aldeados em tomo das vilas eram um escudo
contra os negros, os franceses é os aimorés. Já no século XVII, novas entra-
das foram realizadas, como a dos padres Luís Siqueira e Vicente dos Banhos. VI
A Ânua de 1679 informa sobre padres do Espírito Santo que foram ao sertão.
O resultado prático das entradas jesuíticas do século XVI foi o descimento de Serafim Leite chama de "serviços públicos" os que foram prestados pela
índios que foram catequizados e aldeados no litoral; já no século XVII, os Companhia à cultura das letras, artes e ciências, como a constituição de biblio-
padres começaram a fazer entradas não mais para descê-los, mas para cris-
tianizá-los e agrupá-los em missões no interior do território. Os colégios .1 Ibid., pp. 216-224.

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HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL JOÃO ADOLFO HANSEN

tecas nos vários colégios. O Missal, o Breviário e as Regras do Colégio de cultos sincréticos; 4) O tema do "clero" e os subtemas da ignorância t< maus
Coimbra, feitos pelo padre Simão Rodrigues, companheiro de Inácio de Loyola costumes dos padres regulares, dos conflitos com bispos e das práticas dos
e de Francisco Xavier, além dos Exercícios espirituais, de Loyola, do Manual, inacianos no cotidiano da missão.
de Aspicuelta Navarro, de algum exemplar da Imitação de Cristo e métodos Os fundamentos teológico-políticos da catequese dos índios sistemati-
para alfabetizar meninos foram provavelmente os primeiros livros que os pa- zada por Nóbrega, no século XVI, foram retomados em todas as missões
dres tiveram no Brasil. Já em agosto de 1549, Nóbrega escrevia ao Reino jesuíticas, até à expulsão da Companhia de Jesus, com adaptações práticas
pedindo obras de teologia moral e de direito para a resolução de casos de às várias conjunturas coloniais e algumas discordâncias internas, conforme
consciência. Antes do fim desse ano chegaram à Babia duas caixas de livros. Serafim Leite, no caso dos padres "estrangeiros", como Andreoni e Rolland,
Todos os colégios tiveram bibliotecas, maiores ou menores. No final do século no final do século XVII, favoráveis aos paulistas escravagistas. São funda-
XVII, a biblioteca do Colégio da Babia possuía cerca de 3 mil livros; por volta mentos ortodoxos, que reafirmam os dogmas católicos estabelecidos em bu-
de 1760, 12 mil. A biblioteca do Colégio do Rio começou em 1567, com Nóbre- las papais e no Concílio de Trento, como o da presença da luz natural da
ga; em 1775, quinze anos depois da expulsão dos padres, possuía cerca de Graça inata no indígena e no africano, combatendo-se a afirmação, corrente
5.435 volumes, tendo-se perdido cerca de 734. Os colégios de São Paulo, Es- no século XVI, de que a conquista da nova terra era feita de direito porque
pírito Santo, Recife e Pará também tinham muitos livros. A biblioteca do Colé- os índios não tinham/, nem I, nem r (nem fé, nem lei, nem rei) ou porque
gio do Maranhão começou com os livros do padre Antônio Vieira. 19 Em 1760, eram ilegítimas as leis de suas sociedades, pois não conheciam a palavra de
°°
a do Colégio da Vigia, do Pará, possuía 1. 1 volumes. 20 O leitor poderá infor- Deus e, portanto, não se baseavam na Revelação. Defendido por Roma con-
mar-se sobre os títulos das obras nos tomos IV, VIII e IX. tra Lutero e Maquiavel, o dogma da luz natural da Graça inata é nuclear no
Em 1547, informa, o padre Inácio de Loyola e seu secretário de Roma, o projeto de "catequese e escola". Segue fielmente a interpretação acerca dos
padre Polanco, determinaram que as missões passassem a enviar relatórios selvagens americanos adotada pelo Concílio de Trento, reunido em Valladolid
minuciosos para Roma. A correspondência de Nóbrega e a de outros jesuítas na sessão de 1550, contra a tese da "servidão natural" dos mesmos que
dos séculos XVI, XVII e XVIII cumprem a determinação, aplicando os dois então era defendida na América pelos coloniais e na Espanha pelo grande
gêneros da carta, o familiar e o negocial. Apresentam quatro grandes recor- teólogo dominicano, Juan Ginés de Sepúlveda. A doutrina tridentina adotada
tes temáticos: 1) o tema do "índio" e os subtemas da antropofagia, poligamia, pelos jesuítas no Brasil retoma a bula encíclica Sublimis Deus, de 1537, que
inconstância, falta de Deus, nudez, guerras intertribais, guerras justas, determina que os índios são humanos. Assim, Nóbrega e os jesuítas, em
aldeamento, escravidão, feiticeiros, ensino de orações e leitura; 2) o tema do geral, afirmam que as leis positivas das sociedades indígenas são legais e
"colono" e os subtemas da imoralidade sexual e político-econômica, mancebia que não se pode dizer que os índios são "escravos por natureza" por não
dos brancos com índias, violência dos coloniais contra índios aldeados e pa- terem leis cristãs ou não conhecerem a Revelação cristã. No entanto, como
dres, instrumentalização das ordens régias sobre a guerra justa na captura de católicos, Nóbrega e os padres fazem valer o universalismo do Deus de Roma,
mão-de-obra escrava ou no extermínio do gentio; 3) o tema do "governo" e porque entendem que as sociedades indígenas estão corrompidas por "abo-
os subtemas das medidas administrativas, econômicas e militares dos governa- minações" que devem ser extirpadas para que o selvagem tenha sua alma
dores, a edificação de colégios, o provimento de necessidades da Ordem, os salva. Por exemplo, combatem a antropofagia porque transforma o homem
conflitos dos jesuítas com governadores-gerais, como Duarte da Costa, as em meio. 21 Defendendo a tese da luz natural, no Diálogo sobre a conver-
lutas contra os franceses e o gentio tamoio, os aldeamentos e os castigos exem- são do gentio (1556) Nóbrega debate a humanidade do índio segundo os
plares de karaiba, pajés tupis do litoral avessos à catequese, e das santidades, pontos de vista de duas racionalidades representadas por Gonçalo, um padre
humanista, e Nogueira, um padre ferreiro. O Diálogo reitera a doutrina do

I' Ibid., tomo IV, p. 188.


lO Ibid., p. 399. 21 Ibid., tomo II, p. 35.

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JOÃO ADOLFO HANSEN
HISr6RIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

Concílio de Trento, reafirmando o pressuposto neo-escolástico que se en- preenchimento do vazio espiritual produzido no corpo do índio pelas práticas
contra na correspondência e sermões do padre Antônio Vieira, no século jesuíticas como um pressuposto que justifica a missão. É uma tecnologia de
XVII, e em documentos do século XVIII: os índios são humanos porque têm disciplina do corpo que substitui os padrões culturais indígenas pela memória
as três faculdades que definem escolasticamente a pessoa, memória, vonta- cristã da culpa original. Destribaliza o índio para integrá-lo como subordinado à
de e inteligência. Suas "abominações" decorrem de costumes depravados, civilização portuguesa. Deve-se dizer, no entanto, que por vezes a liberdade
não da natureza. O meio de lhes ensinar as verdades abstratas da fé é o dos índios foi admiravelmente defendida, como no caso dos jesuítas espanhóis.
exemplo visível. Como as marteladas de Nogueira no ferro aquecido na for- O grande padre Ruiz de Montoya, autor do livro Conquista espiritual, obteve
ja, a modelagem católica dos corpos selvagens é animada pelo fogo do amor licença para armar os índios do Paraguai com as armas de fogo que derrota-
de Deus. ram os mamelucos de São Paulo nas batalhas de Caaçapá-Guazu (1639) e
Mbororé (1641).22
Segundo Serafim Leite, a conversão do gentio foi a intenção principal de
Vil D. João III quando enviou a Companhia de Jesus para o Brasil. Desde o início,
dentro dela e em outros setores da Igreja, apareceram posições diferentes
Epreciso determinar historicamente o sentido dado ao termo educação acerca da natureza da devoção dos índios. Por exemplo, o bispo Pero Fernandes
por Serafim Leite quando trata de Nóbrega e de outros jesuítas, entre o século Sardinha afirmava que eram pouco aptos para serem convertidos; o padre
XVI e o XVIII. Deve-se lembrar que a missão jesuítica brasileira inclui-se na Luiz da Grã via no fato de não terem ídolos um empecilho para a conversão; o
devotio moderna contra-reformista. Fazendo parte de um projeto histórico de padre José de Anchieta afirma que a sua malícia e os seus maus costumes os
reflovação da fé católica na situação da cristandade dividida pela Reforma tomam feras que só com a espada e a vara de ferro se educam; o padre
protestante, o fim principal da missão jesuítica no Brasil e no Maranhão e Blásquez, que não são para se converter em geral, mas apenas em casos
Grão-Pará é ser útil para a Igreja, combatendo as heresias e convertendo a particulares; o padre Manuel da Nóbrega, que são humanos, pois têm as facul-
gentilidade. Da perspectiva missionária, o padre é um novo apóstolo que toma dades que definem a pessoa escolasticamente, só que embotadas ou corrompi-
sobre os ombros os pecados do mundo na "conquista espiritual" das novas das por abominações ou péssimos costumes; o padre Antônio Vieira, que são
terras, fazendo suas as armas de Cristo, segundo o imaginário do testemunho e boçais e inconstantes, e que, na relação com eles, o missionário é como um
do martírio. Nunca é demais repetir que a evangelização pressupõe a univer- jardineiro, que poda continuamente os galhos de uma escultura de murta, impe-
salidade do Deus de Roma; logo, que a determinação nuclear da catequese do dindo que a cada momento ela perca a forma original. Segundo Nóbrega, é
indígena e da educação do colono é a teologia-política que define e orienta as preciso criar duas condições que favoreçam a conversão: uma delas depende
práticas da "política católica" da monarquia portuguesa. A perspectiva do pa- dos missionários, que devem dar o exemplo das boas obras de uma vida virtu-
dre jesuíta não é antropológica, pois define o indígena como substância espiri- osa; a outra, dos índios, dos quais se espera a disposição para uma sujeição
tual ou alma que, tendo sido criada por Deus, acha-se distanciada do bem moderada aos padres e para a aceitação da catequese, que levariam à exclu-
devido às "abominações" (antropofagia, nudez, poligamia, nomadismo, são dos maus hábitos dos adultos e à educação das crianças - processo em
xamanismo). Segundo o missionário, o destino da alma selvagem é o inferno, que também concorreram os órfãos portugueses, no século XVI, e, ainda nes-
se a doutrina católica defendida pela monarquia portuguesa não lhe for se século e nos dois seguintes, a cultura difundida nos seminários e colégios.
caridosamente revelada, ensinada e imposta. É preferível que o índio seja es- De 1550 a 1555, vários meninos órfãos foram mandados para o Brasil.
cravo, mas com a alma salva, a que viva a liberdade natural do mato, mas com Serafim Leite propõe que tiveram- função "psicossocial" na catequese, pois
ela condenada ao inferno. Essa tese, também aplicada aos negros, é exposta Nóbrega os misturou com os meninos índios para "quebrar o gelo". Os órfãos
primeiramente por Nóbrega, no século XVI, e defendida por Vieira, no século logo aprenderam tupi e os meninos índios, português. Desde o início dos
XVII contra os colonos do Maranhão e os bandeirantes de São Paulo. A
catequese do índio é homóloga da ocupação do vazio do território, pois é um Z1 Ibid., tomo VI, p. 250.

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HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL JOÃO ADOLFO HANSEN

contatos, O canto foi muito usado como meio de catequese, pois os padres logo doutrine". Segundo o jesuíta, o principal motivo da presença da Companhia no
reconheceram que os gentios eram em extremo afeiçoados à música e às Maranhão era converter e integrar os índios ao corpo místico do Império. Uma
cantorias. Além da missa, do "Padre Nosso" e da "Santa Maria" cantados, carta sua para a rainha D. Luísa, que em 1653 perdera o filho, o príncipe D.
houve motetos, salmos e cantigas devotas adaptadas aos indígenas. A música Teodósio, e a primeira das suas filhas, a infanta D. Joana, interpreta a escravi-
e o canto foram utilizados primeiramente na Bahia, depois em Piratininga. Em dão providencialmente, atribuindo a causa das mortes reais à criação de uma
São Vicente, o padre Antônio Rodrigues criou coros de flautas de curumins, lei com "[ ... ] larguezas na matéria do cativeiro dos índios". Em 23-5-1653,
meninos brasis, que em 1559 foram oficiar missas cantadas em Salvador. Os escrevendo ao provincial, relata medidas quanto aos cativeiros, declarando
meninos órfãos também dançavam e há notícia de que, indo pelo sertão ainda que uma vez por semana os padres tinham lição da língua da terra para se
habitado por índios bravos, entravam pelas aldeias dançando e entoando canta- fazerem hábeis na conversão. Duas vezes por semana, propunham-se lições
res da língua tupi. Passada a fase inicial dos meninos órfãos, as danças foram de casos de consciência, tendo ele e os outros discutido o seguinte tema: qual
restritas às noites de sábados, para impedir que o caxiri, o cauim e outras bebidas obrigação tinham os padres acerca do pecado habitual em que viviam os
alcoólicas atrapalhassem o cotidiano das aldeias. Em 1583, o padre Fernão moradores com os cativeiros dos índios?, chegando à conclusão de que
Cardim visitou as aldeias da Bahia, escrevendo sobre meninos índios que seria prudente nada lhes falar do assunto, a menos que fosse mencionado no
confessionário. Contra a resistência dos coloniais Vieira pregou vários ser-
[ ... ] fazem suas danças à portuguesa, com tamboris e violas, com muita graça como se mões extremamente audaciosos, como o do Domingo das Tentações, que toma
fossem meninos portugueses; e quando fazem estas danças põem uns diademas na
por conceito predicável a terceira tentação do diabo a Cristo: Haec omnia tibi
cabeça, de penas de pássaros de várias cores, e desta sorte fazem também os arcos,
empenam e pintam o corpo, e assim pintados e mui galantes a seu modo fazem suas
dabo. Nele, afirma que uma só alma vale todos os reinos do mundo e, tentando
festas muito aprazíveis. 2l desenganar os homens do Maranhão, demonstra-lhes que estão em condena-
ção por causa dos cativeiros injustos. Contudo, no mesmo ano (17-10-1653),
atendendo o pedido dos mesmos colonos que anteriormente tinham concorda-
do com a libertação dos índios, a Coroa revogou a ordem. Incansável, voltando
vm a Portugal, Vieira conseguiu novas regras favoráveis à Companhia, baixadas
em 9-4-1655. A primeira proibia fazer guerras contra índios sem ordem do rei;
A administração dos índios do Maranhão e Grão-Pará pela Companhia também vetava toda forma de violência contra eles, determinando que só po-
de Jesus foi confirmada pelo alvará de 25-7-1638. Desde o início, a relação diam ser resgatados os "índios de corda", prisioneiros de outros índios que
dos missionários com os colonos desse estado foi tensa e conflitiva. Os jesuí- estivessem prestes a serem comidos. Os índios cristãos que viviam nas aldeias
tas retomam a diretiva do século XVI de "pregar a toda criatura", defenden- não poderiam ser constrangidos a servir os colonos mais que no tempo e na
do a liberdade dos índios aldeados. Quando Vieira chega, em 1653, chefiando forma determinada pela lei; deviam viver livres, governados pelos seus princi-
a missão, vem também uma ordem régia, determinando a libertação de todos pais e pelos padres da Companhia. Os missionários poderiam fazer entradas
os índios cativos. A população se amotina, encabeçada por gente da burocra- ao sertão, independentemente da autorização dos governadores, que deveriam
cia e do clero, como ministros, advogados, juízes, letrados, padres regulares e dar-lhes todo o apoio, escolhendo para capitão ou comandante dos soldados
religiosos do Carmo. Em 20-5-1653, Vieira expôs ao rei D. João IV o que apenas homens julgados idôneos pelos jesuítas. Em três anos, três leis: primei-
chamou de "causas de até agora se ter feito tão pouco fruto" na missão local, ramente a liberdade plena dos índios, com motim dos colonos; depois, o cati-
dizendo escrever "[ ... ] em nome de todas as almas que nestas vastíssimas veiro dissimulado dos índios, com motim dos jesuítas; finalmente, um cativeiro
terras de V. M. estão continuamente descendo ao inferno, por falta de quem as tutelado.
Os colonos ficaram inconformados; um motim contra os jesuítas (o de
Gurupá) foi reprimido com energia pelo governador André Vidal de Negreiros,
2J Ibid., tomo II, p. 100. amigo de Vieira; em 1661, eclodiram novos motins não controlados pelo gover-

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HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL JOÃO ADOLFO HANSEN

nador D. Pedro de Melo. Em 22-5-1661, indo de Belém para São Luís, Vieira segundo o estatuto da instituição; no Brasil, o subsídio missionário não implica-
escre~e a D. Afonso VI. Tenta sensibilizá-lo falando sobre a perdição da alma va o ônus jurídico de ensinar indiscriminadamente a todos, mas o de formar
dos índios mortos sem batismo. Inutilmente. Logo depois, ele e os restantes padres para tomar a Província do Brasil autônoma quanto aos seus meios de
padres foram expulsos pelos colonos. Em Portugal, ainda t~ntaria intervir na evangelização. Segundo Serafim Leite, o ensino era público, em ambos os
questão, pregando o "Sermão da Epifania" para a corte reumda. Nele, verbera casos. Um conflito escolar acerca da admissão de estudantes pardos aos estu-
os colonos maranhenses e critica as autoridades portuguesas. Sem suce~so. A dos maiores definiu a matéria, na Bahia do século XVII, quando a Companhia,
rtir de 1663 depois de haver impedido a admissão de estudantes mestiços, de "vil e obscura
p a , novas leis passaram a regular a escravidão
. . dos ._
índIOs do
Maranhão e Grão-Pará, proibindo-se o retomo de Vieira para a reglao. origem", como se dizia então, terminou por concluir que seria a idoneidade
moral do aluno, não sua cor, o critério da admissão. 24 Ou seja: se o Colégio só
aceitasse uns alunos e excluísse outros, deixava de ser público e de fornecer
IX graus acadêmicos; para permanecer público, tinha que admitir a todos, alterna-
tiva que prevaleceu. 25 O subsídio régio era para o sustento dos padres da
Os colégios brasileiros fundados a partir de 1549 realizavam a segunda Companhia, como foi dito. Inicialmente, acreditou-se que os índios eram como
parte do programa "catequese e escola", proposto inicialmente por. Nóbrega os habitantes das Índias ou do Japão; no entanto:
para o Colégio da Bahia. Neles, havia cursos de ler e escre_ver, ,e~smando-se
latim. O estudo colegial dessa língua fazia parte da formaçao baslca de qual- A desilusão não se fez esperar no que toca à elevação dos Índios ao Sacerdócio, não
por incapacidade radical dos mesmos Índios, pois eram homens e os homens são
quer letrado e habilitava os alunos dos seminários a s~rem futuros padres. ~m
todos iguais, mas por falta de meio ambiente, ainda inculto, e é o que o P. António
1553, o Colégio de São Vicente ensinava leitura, escnta, canto, flauta e ~atlm. Vieira adverte, propondo que os Catecismos de Língua Brasílica, do P. António de
A partir de 1554, o recém-chegado José de Anchieta foi profess~r .de latim d.o Araújo para os Índios, se reduzissem a menos questões, simples e essenciais. 26
Colégio de Piratininga. Com as Constituições, de 1556, ficou prOIbida a c~abl­
tação dos meninos com os padres, criando-se externatos. No final do ~e~u~o Nos colégios, além de pública, a instrução era gratuita, diferentemente
XVII, o padre Alexandre de Gusmão criaria internatos, fundando o S~m~nano dos seminários, onde continuava a ser gratuita, mas era particular, destinada
de Belém da Cachoeira, na Bahia. Em 1568, a Congregação Provmclal da apenas àqueles que se dedicavam à carreira eclesiástica. Freqüentavam os
Bahia propôs ao Geral a conveniência do estudo de dialética no Colégio ~a colégios os filhos de funcionários da administração portuguesa, de senhores de
Bahia. O curso de artes (filosofia e ciências) começou em 1572. Serafim Leite engenho, de criadores de gado, de oficiais mecânicos e, no século XVIII, de
informa que no Brasil era lido o livro de texto Cursus Conimbricensis e que mineiros. Conforme Serafim Leite, os três estados tradicionais do Antigo Regi-
era extremamente comum o uso de manuais. Em 1593, o curso de artes da me na Europa - clero, nobreza e povo - sofreram no Brasil uma transforma-
Bahia tinha vinte alunos; em 1598, quarenta. A teologia moral, conhecida como ção em que eram representados apenas por um critério racial, brancos e filhos
"casos de consciência", foi ensinada a partir de 1556, no Colégio de São Vicente. de brancos, que mantinham o predomínio da política e da cultura, ao passo que
Teologia dogmática (ou especulativa) foi ensinada a partir de 1572 ~a~a os índios e negros, mesclando-se com os brancos, tinham a aspiração de ascen-
membros da Companhia e, a partir de 1575, para os externos. No Coleglo da der na hierarquia dos brancos com os nomes de mamelucos e moços pardos.
Bahia, havia quatro anos de leitura da Summa theologica, de Santo Tomás de O autor acredita no que chama "tendência portuguesa e católica para a atenua-
Aquino. A •
ção dos preconceitos de raça", por isso afirma que "conviviam lado a lado
O Real Colégio das Artes de Coimbra foi o padrão para as colomas de
Portugal. Como escreve Serafim Leite, o subsídio real dado ~os mestre,s de
Coimbra era a título de ensino; o subsídio dos mestres ultramannos era a titulo l4 Ibid., tomo v, pp. 76-77.

de missões. O que determinava uma obrigação diferente: em Coim~ra, o sub- " Ibid., tomo VII, pp. 141-142.
sídio escolar tinha o ônus jurídico de dar ensino a todos que o qUIsessem ter ,. Ibid., p. 142.

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HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL JOÃO ADOLFO HANSEN

todos os homens livres, quer fossem brancos quer mestiços; e abaixo deles, os normas e práticas do Ratio studiorum de 1599 é o da ortodoxia católica,
homens escravos". '2.7 seguindo-se no ensino, com a máxima fidelidade, a tradição e os textos
No Brasil e no Maranhão e Grão-Pará a educação e a instrução subordi- canônicos fixados e autorizados pela Igreja a partir do Concílio de Trento. O
navam-se, assim, à coexistência do elemento livre com o elemento servil. Os Ratio determina que os conhecimentos são adquiridos por meio do exercício
índios já integrados, quando não eram escravos no mesmo pé de igualdade de modelos ou auctoritates, autoridades, cuja repetição, feita na forma de
com os negros, viviam sob a tutela dos padres no regime dos aldeamentos. Os exemplos, acontece como um treinamento constante da ação e para a ação.
escravos negros não tinham liberdade para buscar a instrução média e supe- Os mesmos processos técnicos e intelectuais são generalizados para todos os
rior. Segundo Serafim Leite, a Companhia de Jesus tomou várias medidas de cursos, como aparece no Catálogo de 1757 do Colégio da Bahia, divididos em
amparo dos escravos negros: o padre jesuíta Pero Dias, conhecido como Após- estudos inferiores (gramática, humanidades e retórica) e faculdades superio-
tolo dos negros do Brasil, escreveu uma Arte da língua de Angola com a res (filosofia e teologia). Ao todo, o currículo ordenado pelo Ratio studiorum
finalidade deliberada de os amparar; nos colégios, foi fundado o apostolado do tinha doze classes. A aprendizagem das matérias era graduada, considerando-
mar, na chegada dos navios negreiros da África; e foram multiplicadas as se a idade dos alunos e o nível dos cursos. Desde a classe inferior de gramá-
missões discorrentes, que saíam dos colégios de cada região, em todas as tica, os alunos aprendiam as cerimônias e os ritos cristãos, sistematizados
regiões do Brasil, a favor dos negros dos engenhos e fazendas. Quanto à doutrinária e teoricamente nos cursos de artes (ou filosofia) e nos de teologia.
catequese dos índios, tratada principalmente nos tomos I e IV, não se reduzia Todos os cursos eram orientados pelo estudo de preceitos, estilos e erudição,
ao ensino religioso do catecismo, como ocorria com os adultos, pois os meninos ou seja, prescrições e regras das línguas, da retórica, das letras, da filosofia e
índios também recebiam ensino de ler e escrever, ou "elementos". Brancos e da teologia; exercícios com os vários gêneros retórico-poéticos de representa-
filhos de brancos recebiam instrução nos colégios. Os padres não tinham obri- ção das matérias das humanidades, que eram memorizadas como tópicas ou
gação de ministrar o ensino (era benemerência pública) nem os pais eram lugares-comuns já aplicados e desenvolvidos pelas várias autoridades estuda-
obrigados a enviar os filhos à escola (mais informações sobre a nomenclatura das; memorização de técnicas de falar e de escrever, além dos esquemas da
da instrução primária ministrada pelos jesuítas podem ser encontradas às pági- própria arte da memória. Os alunos já deviam saber ler e escrever quando
nas 146 e 147 do tomo VII). ingressavam na classe dos estudos inferiores para começar a aprender a infima
grammatica, os rudimentos de latim. Caso não o soubessem, uma classe obri-
gatória devia ser anteposta a todas as outras.
x Nos estudos inferiores, as classes de gramática eram divididas em três:
ínfima, em que se estudavam regras gerais da sintaxe latina, princípios de
Depois de 1599, todos os colégios brasileiros passaram a ser organizados grego e algumas das obras de Cícero julgadas "simples", como as cartas; mé-
pelo Ratio studiorum atque Institutio Societatis Jesu. O Ratio é um conjun- dia, em que havia um estudo geral da gramática latina e de obras de Cícero e
to de normas que definem saberes a serem ensinados e condutas a serem Ovídio; no grego, estudavam-se nomes contratos e verbos em mi. Na terceira,
inculcadas, e um conjunto de práticas, que permite a transmissão desses sabe- suprema, supunha-se o conhecimento de toda a gramática latina e notícias da
res e a incorporação de comportamentos, normas e práticas. A Companhia de prosódia, aprendida por exemplo com a metrificação de hexâmetros; em gre-
Jesus é uma ordem eminentemente não contemplativa e o Ratio studiorum de go, continuava o estudo das regras gramaticais; eram lidos os romanos Cícero,
1599 orienta o ensino das letras, artes e teologia para o desenvolvimento das Catulo, Virgílio, Ovídio, Propércio, Tibulo e os gregos São João Crisóstomo,
capacidades de assimilar, transferir e aplicar conhecimentos em questões ime- Agapeto, Esopo, etc. No caso, era básico o texto da Gramática latina , do
diatas do presente. Na situação contra-reformista do século XVII, a interven- padre Manuel Álvares. A Contra-Reforma insistia na oposição vida beata
ção não podia dissociar-se da prática das virtudes cristãs. Logo, o sentido das versus vida libertina, evitando-se obviamente os autores de gêneros baixos,
como os cômicos latinos Plauto e Terêncio, julgados dissolventes. O curso de
27 Ibid., p. 143. humanidades era uma classe intermediária, posta entre a de gramática e a de

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HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL
• JOÃo ADOLFO HANSEN

retórica, que fornecia exercitações do estilo. Nele, além das preleções sobre tinham demonstrado conhecimento pleno de Santo Tomás de Aquino. O pro-
Cícero, os alunos punham-se em contato com as obras de Salústio, César, Tito fessor aplicava três espécies básicas de atividades, a preleção (lectio), a repe-
Lívio, Virgílio e dos gregos Platão, Isócrates, Basílio, Gregório Nazianzeno e tição e a aplicação. A lectio consistia na exposição oral de um texto determinado.
outras autoridades imitadas por meio do exercício de composição de textos de Era feita segundo a técnica tradicional do comentário e seguia preceitos espe-
prosa e poesia. Um extenso rol dos autores e obras estudados nos colégios nas cíficos, adequando-se ortodoxamente ao tema. Assim, o professor fazia um
aulas de retórica, humanidades e na primeira, segunda, terceira e última classe resumo de partes e do todo do texto, citava as autoridades canônicas que já
de gramática é feito por Serafim Leite nas páginas 150-151 do tomo VII. Mais tinham tratado do mesmo, resumia a matéria dessas autoridades, sem nenhu-
informações sobre o ensino de matemática, fisica, história, geografia, direito, ma pretensão de inovar ou de ser original, mantendo-se rigorosamente fiel à
teologia especulativa e os ecos brasileiros das controvérsias doutrinais das versão autorizada pela Igreja conciliar. A preleção devia ser clara, breve, dis-
escolas européias - no início do século XVII, a questão de Auxiliis (de que posta em ordem lógica, do mais simples para o mais complexo, adaptando-se
graças ou auxílios sobrenaturais o homem necessita para salvar-se?) e, no ao nível intelectual dos alunos. Feita a preleção, grande parte do tempo era
início do século XVIII, a questão do Probabilismo (praticamente, a consciên- ocupada por exercícios de memorização em que a repetição tinha lugar abso-
cia se determina por um motivo provável, Probabilismo, ou é obrigada a se- lutamente central. Tratava-se de aprender um método de memorizar funda-
guir o motivo "mais" provável, Probabi liorismo) - podem ser obtidas no mesmo mentado nas antigas artes da memória gregas e romanas, como a que é exposta
tomo VII, fundamental, aliás, para a história da educação no país. na Retórica para Herênio. Os alunos recitavam de memória as lições que
Nos colégios, a retórica ocupava quatro horas por dia, duas pela manhã e tinham aprendido nas preleções para os decuriões, alunos nomeados pelo pro-
duas à tarde. Aos preceitos dos tratados de Cícero (De oratore), Quintiliano fessor para ouvirem a recitação, recolherem composições, anotarem em ca-
(Institutio oratoria), Aristóteles (Rhetorica) e Santo Agostinho (De doctrina dernos as vezes em que falhava a memória de cada um, quem não tinha feito
christiana), juntavam-se novos títulos sintetizando essas autoridades para os os exercícios ou quem não entregara cópia dupla dos mesmos. O professor
iniciantes. Os alunos portugueses e brasileiros estudavam retórica nas classes devia prever a transferência dos conhecimentos memorizados e das técnicas
das escolas menores, principalmente por meio de exercícios e de compêndios, de memorização para novas circunstâncias e novos objetos, que eram apropri-
como os de Soares e Pomey. Essa erudição era adquirida não por meio do ados ou adaptados pelos mesmos processos. Nesse sentido, os alunos sempre
estudo direto de manuais de história ou letras, mas pela leitura, explicação, aprendiam duas coisas: matérias várias, como latim, retórica, teologia, filosofia,
repetição e imitação de autores. Levando sempre em conta que a finalidade de e os modos ou procedimentos de aprendê-las, preleção, resumo, comentário,
todo ensino é a ação, a prática jesuítica da retórica aprendida como exercício repetição, memorização, etc. No curso de filosofia, em que se discutia Aristóteles,
visava a desenvolver a agilidade no manejo oral da erudição, principalmente a e no de teologia, em que o modelo era Santo Tomás de Aquino, os exercícios
doutrinária. costumavam ser de quatro gêneros: repetições diárias das preleções, disputas,
Nos estudos superiores, o curso de filosofia era dividido em três anos. No preleções e atos solenes, em que eram defendidas publicamente as conclu-
primeiro se estudava lógica, metafisica geral e matemáticas elementares, com sões. A repetição diária durava uma hora e era feita com a supervisão do
aulas em uma academia de grego. No segundo ano, estudavam-se cosmologia prefeito de estudos. Nos dias de feriado e domingo, havia disputas, em que um
e outras ciências. No terceiro, teodicéia e ética, astrologia (astronomia) e ma- ou dois alunos defendiam os argumentos de um filósofo. Todos os preceitos de
temáticas superiores. A autoridade de Aristóteles e de Santo Tomás de Aquino ensino do Ratio studiorum subordinam-se à finalidade contra-reformista de
dominava em todos os assuntos. Quanto à teologia, finalizava todos os cursos combater as heresias e converter os gentios. Assim, as normas didáticas do
anteriores. Era ministrada em quatro anos, cuja divisão seguia o sistema de ensino subordinavam-se às normas disciplinares, que pressupunham e implica-
Santo Tomás: teologia patrística ou positiva; teologia escolástica moral, por vam a virtude típica da Companhia de Jesus, a obediência irrestrita à autorida-
dois anos, com a casuística; Sagrada Escritura ou exegese; instituições de, que havia sido redimensionada a partir do Concílio de Trento.
canônicas; hebreu, siríaco e mais línguas bíblicas. O curso de teologia era dado Os dezessete colégios fundados pelos jesuítas no Brasil tinham estudos
por dois e ainda por três professores. Só podiam ensinar nele os padres que inferiores e os cursos de humanidades, destinando-se a estudantes externos;

70 71
HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL
·,114, JOÃO ADOLFO HANSEN

nos seminários, que eram internatos, estudavam os alunos destinados a serem mente no domínio temporal das Aldeias", dando um passo para a supressão do
padres da Companhia de Jesus. Os cursos de artes (basicamente, filosofia) regime missionário. Outra razão seria a execução do Tratado de Limites de
dos colégios de Portugal eram propedêuticos aos cursos da Universidade de 1750 entre Portugal e Espanha. Com a troca da Colônia do Sacramento (Por-
Coimbra, o que não ocorria com os cursos de artes dos colégios brasileiros, de tugal) com os sete povos das Missões (Espanha) foi imposta a transferência
modo que os alunos se viam obrigados a fazer o curso de novo, em Évora ou dos índios, que provocou o levantamento deles, atribuído à incitação dos jesuí-
Coimbra, ou a realizar exames de "equivalência". No final do século XVII, o tas. Segundo Serafim Leite, também foi problemática a demarcação das terras
nível dos estudos das faculdades superiores do colégio jesuítico de Salvador do Norte, na região do rio Negro, onde, segundo ele, para desviar a atenção do
parece ter sido equivalente ao ministrado nas universidades portuguesas, prin- desperdício dos dinheiros públicos pelo governador, irmão de Sebastião José de
cipalmente a de Évora. Por isso, várias vezes se pediu à Coroa, sem nenhum Carvalho e Melo, o ministro de D. José, abriu-se a perseguição contra os pa-
sucesso, que fosse transformado em uma universidade. dres da Companhia. Estes também foram acusados de participação no Motim
do Porto, contra o monopólio dos vinhos, e no atentado contra D. José, em 3-9-
1758. "E para aumentar a sugestão da participação, a lei com que são exilados
XI de Portugal e seus Domínios, faz-se datar do primeiro aniversário daquele
facto, 3 de Setembro de 1759".29
Segundo Serafim Leite, as causas da expulsão da Companhia de Jesus O padre Serafim Leite pergunta se a perseguição à Companhia foi um
dos domínios portugueses devem ser buscadas na Europa, fora do Brasil e de mal ou foi um bem, respondendo que a resposta é fácil, para quem é sincera-
Portugal. Entre os vários inimigos da ordem no século XVIII, propõe, os mente cristão e católico:
jansenistas foram os mais pertinazes, pois teriam conseguido instalar-se em
Roma, obtendo o apoio de membros do alto clero, como o cardeal Passionei. Mas como nem todos o são no mesmo grau, ou mesmo em grau nenhum, a resposta
poderá ser outra, quando se decidir se a sociedade há-de ter Religião, ou não ter
No momento da perseguição movida por Pombal contra a Companhia, triunfa-
Religião, se o Espiritual há-de prevalecer sobre o Temporal, ou, na lógica e última
vam o regalismo e o cesaropapismo. Logo, segundo o autor, quando ocorreu a conseqüência desta matéria, se a sociedade há-de ser com Deus ou sem Deus. 3o
perseguição à Companhia, já se havia produzido na Europa a ruptura entre
liberdade e autoridade: "Sucumbindo a liberdade, a autoridade régia chamava- Provavelmente, aqui o leitor partidário da total separação de Igreja e
se Absolutismo, que em breve chegou ao seu auge e foi o Despotismo".28 Estado discordará de Serafim Leite. Mas, por ser leitor democrático, certa-
Conforme o autor, as instruções públicas e secretas, de 31-5-1751, assinadas mente também não concordará com os exílios em massa e as crueldades con-
pelo secretário do Ultramar Diogo de Mendonça Corte Real, louvavam os tra os padres.
jesuítas (Instrução 22), determinando que fossem preferidos nas missões por
serem os que tratavam os índios com mais caridade. Junto com as públicas, no
entanto, duas secretas (as de números 13 e 14), trabalhavam contra a Compa-
nhia. Segundo Serafim Leite, a de número 13 abolia a ordem jurídica existente,
pois afirmava "[ ... ] poderei dispor das mesmas terras em execução da dita
lei", dando poderes ao governador para as visitar "[ ... ] sem embargo de qual-
quer Privilégio, Ordem ou Resolução em contrário, que todas hei derrogadas,
como se fizesse expressa menção delas". A Instrução 14 afirma que é conhe-
cido "[ ... ] o excessivo poder que têm nesse Estado os Eclesiásticos principal-

2. Ibid., p. 343.
28 Ibid., p. 337. ,. Ibid., p. 356.

72 73
*
FRANCISCO ADOLFO DE V ARNHAGEN

História geral do Brasil

Lucia Maria Paschoal Guimarães


14
TRAÇOS BIOGRÁFICOS

Francisco Adolfo de Varnhagen nasceu em 17 de fevereiro de 1816, na


cidade de Sorocaba, então província de São Paulo, filho do coronel Frederico
Luís Guilherme de Varnhagen e de Dona Maria Flávia de Sá Magalhães. Seu
pai, engenheiro militar formado em Freiburg, J prestava serviços à Coroa portu-
guesa na fundição de Figueiró dos Vinhos. Convocado por D. Rodrigo de Sousa
Coutinho transferiu-se para o Brasil em 1809, a fim de dar início aos trabalhos
da fábrica de ferro de São João de Ipanema, em Sorocaba. O coronel Frederico
Guilherme retomou a Portugal em 1822. A mulher e os filhos só iriam encontrá-
lo um ano depois.
Varnhagen fez os primeiros estudos no Real Colégio Militar da Luz.
Matriculou-se, em seguida, na Academia da Marinha. Integrou o 2Q Batalhão
de Artilharia, tropa de elite do ex-imperador D. Pedro I, que após abdicar da
Coroa brasileira disputou o Trono português com o irmão D. Miguel. Freqüen-
tou o Colégio dos Nobres e cursou a Academia de Fortificações, recebendo o
diploma de engenheiro em 1834. Porém, permaneceu por muito tempo na car-
reira das armas. Dedicou-se à pesquisa histórica, obtendo o reconhecimento
da Academia Real de Ciências de Lisboa, em virtude do trabalho "Reflexões
críticas sobre o escrito do século XVI impresso com o título de Notícia do
Brasil" (de Gabriel Soares de Sousa), editado em 1838. Obra que lhe serviu de
proficiência para ser admitido naquele reduto intelectual. Aos 24 anos licen-
ciou-se do exército português e viajou para o Rio de Janeiro. Veio pleitear a
nacionalidade brasileira ao governo imperiaP Indicado por Antônio Meneses
Vasconcelos de Drumond, ministro plenipotenciário do Império em Lisboa,
elegeu-se sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(lHGB).
Criado em 1838, o Instituto dava os seus primeiros passos. 3 Subsidiado
pelo governo imperial, começara a desenvolver um programa de pesquisa,

1 Frederico Guilherme de Varnhagen pertencia a uma conceituada família alemã. Seu irmão, Carlos
Augusto, além de amigo pessoal de Humboldt, fora nobilitado pelo rei da Prússia.
2 O decreto imperial de 24 de setembro de 1844 garantiu-lhe a nacionalidade brasileira.
J O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi fundado em 21 de outubro de 1838. Sobre a criação
do IHGB, ver Manuel L. Salgado Guimarães, "Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histó-
rico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional", em Estudos Históricos, 1(1), Rio
de Janeiro, 1988, pp. 5-37. Ver também Lucia M. P. Guimarães, "Debaixo da imediata proteção de
Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889)", em Revista do
Institllto Histórico e Geográfico Brasileiro, n' 388, Rio de Janeiro, 1995.

77
HISTÓRIA GERAL DO BRASIL :Q LUCIA MARIA PASCHOAL GUIMARÃES

enviando estudiosos aos arquivos europeus, com o objetivo de coligir e extrair Francisco Adolfo de Varnhagen deixou uma extensa e variada obra, com-
cópia de documentos e diplomas para a escrita da história pátria. Entretanto, o posta por dezenas de títulos, entre livros, opúsculos, artigos e memórias. No
primeiro pesquisador comissionado, o diplomata José Maria do Amaral, pouco campo dos estudos históricos, sua obra máxima foi a História geral do Brasil
familiarizado com as práticas arquivísticas, não correspondeu às expectativas antes da sua separação e independência de Portugal. Trata-se de uma
do IHGB. Para substituí-lo, o ministro Vasconcelos de Drumond sugeriu o contribuição rara, que contrastava com a escassa historiografia nacional da
nome de Varnhagen, um jovem talentoso e promissor, que já havia realizado época, período em que poucos autores conseguiam ultrapassar os limites da
investigações por conta própria no acervo da Torre do Tombo, e que desejava crônica. Na extensa bibliografia do visconde de Porto Seguro, em parte publicada
ingressar na carreira diplomática. Ele não desapontaria tão ilustre recomenda- na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, há ainda duas
ção. Desempenhou com sucesso suas primeiras missões em Portugal e na peças de grande importância, que merecem destaque: a "História das lutas
Espanha, onde foi incumbido de levantar documentos relativos aos tratados de contra os holandeses no Brasil" (1871) e a "História da independência do Bra-
limites da América portuguesa, nos arquivos de Simancas. Regressando ao sil", concluída em 1875, mas que permaneceria inédita até 1916, quando os
Brasil em 1851, elegeu-se primeiro-secretário do Instituto Histórico. Passou, originais foram descobertos por acaso, dentre os papéis do arquivo do barão do
assim, a travar contato direto com o imperador, que freqüentava assiduamente Rio Branco. 4
as sessões do grêmio. Diligente, organizou a biblioteca e o rico acervo docu-
mental do IHGB. A par disso, a proximidade de D. Pedro II permitiu-lhe plei-
tear postos, condecorações e honrarias, além da proteção de Sua Majestade. A OBRA
Encarregado de negócios do Brasil na Espanha, no período 1852-1858,
expandiu suas investigações, examinando manuscritos nos arquivos de O livro compõe-se de 54 seções ou capítulos, cujos conteúdos se suce-
Amsterdam, Paris, Florença e Roma. Promovido a ministro residente em 1859, dem de acordo com a ordem cronológica dos acontecimentos. 5 Do ponto de
exerceu o posto no Paraguai. Passados dois anos, deslocou-se para Caracas, vista interpretativo, a História geral do Brasil apresenta-se como uma conti-
designado representante do Império perante a Venezuela, a Nova Granada nuação da história da metrópole. A formulação está delineada com clareza,
(Colômbia) e o Equador. Em 1863, foi transferido para Santiago. Durante a sobretudo na edição de lançamento do primeiro volume da obra (Madri, 1854),
permanência na capital chilena, que se alongou por cinco anos, casou-se e aberta justamente com a narrativa da viagem de Pedro Álvares Cabral. O que
constituiu família com uma jovem da sociedade local. Sem negligenciar as mereceu inúmeras censuras, sobretudo no Instituto Histórico, como iremos
atribuições do serviço diplomático, continuou dedicado às pesquisas e publica- demonstrar mais adiante, devido ao tratamento secundário dispensado aos ín-
ções. Aliás, ele inauguraria uma linhagem de historiadores diplomatas, muito dios, "os verdadeiros donos da terra". Diante das críticas recebidas, Varnhagen
produtiva por sinal, na qual se destacariam autores do porte de Joaquim Nabuco, trocou a ordem dos dez primeiros capítulos, ao preparar a segunda edição do
do barão do Rio Branco, de Manuel de Oliveira Lima e de Macedo Soares. livro, datada de 1871. Diga-se de passagem, a alteração efetuada não
Nomeado para a legação brasileira em Viena, retornou ao Velho Mundo
em 1868. Reconhecendo o mérito dos seus serviços, o imperador D. Pedro II
concedeu-lhe o título de barão de Porto Seguro (1871), elevando-o a visconde 4 Francisco Adolfo de Varnhagen, "História da independência do Brasil", em Revista do Instituto
com honras de grandeza do mesmo título, três anos mais tarde. Promovido a Histórico e Geográfico Brasileiro, 79 (133), Rio de Janeiro, 1916, pp. 23-596.
l A 21 edição, revista e ampliada pelo autor, perfazia um total de 1.200 páginas. Foi lançada em
ministro plenipotenciário, realizaria, ainda, uma derradeira viagem de estudos 1871. A 3' edição, datada de 1906, revista por Capistrano de Abreu, corresponde apenas à terça
ao Brasil em 1877, ocasião em que percorreu o interior das províncias de São parte da obra original, devido a um incêndio na oficina impressora. As edições subseqüentes
Paulo, Goiás e Bahia. Regressando à Viena, veio a falecer em 1878. O corpo foram revistas e anotadas por Rodolfo Garcia, que também incorporou ao texto notas de
Capistrano e do próprio Varnhagen. Para o presente trabalho apoiamo-nos na 5" edição integral
do historiador, por exigência da esposa, foi sepultado no Chile. Um século mais
- 61 do tomo I. cr. Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral do Brasil antes da sua
tarde, seus despojos foram trasladados para Sorocaba, onde hoje se encon- separação e independência de Portugal, 5 tomos, revisão e notas de Rodolfo Garcia (51 ed.
tram, atendendo à sua vontade expressa em testamento. integral - 6" do tomo I. São Paulo: Melhoramentos, 1956).

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HISTÓRIA GERAL DO BRASIL LUCIA MARIA PASCHOAL GUIMARÃES

provocou nenhuma revisão de caráter interpretativo. O Brasil continua a ser diplomacia ibérica, que sob as bênçãos do papado partilhou o Novo Mundo
percebido como uma "criação" do Império ultramarino português, desde a che- entre as dinastias de Avis e Castela. Varnhagen parte da premissa de que: "Os
gada da esquadra de Cabral até a "emancipação do estado de colônia, em interesses do comércio, mais que a curiosidade natural ao homem e que a sede
virtude da franquia de comércio decretada pela carta régia de 28 de janeiro de das conquistas, tem sido em geral a causa da facilidade no trato e comunica-
1808".6 ção dos indivíduos."11 Assim, identifica o comércio das especiarias do Oriente
A História geral do Brasil se inicia, pois, por uma breve explicação como o grande motor que impulsionou o movimento das navegações do início
sobre as origens da denominação por que ficou conhecida a América portugue- da era modema e que culminou com o descobrimento do Novo Continente.
sa, em decorrência do primeiro recurso natural aqui explorado - o pau-brasiI.7 Pesquisador minucioso, observa, no entanto, que a costa setentrional do conti-
Segue-se uma síntese das características do território, principais acidentes ge- nente americano já fora visitada por navegantes nórdicos, quatro séculos antes
ográficos, zonas climáticas e paisagem natural, com ênfase especial na descri- da viagem de Cristóvão Colombo.
ção da flora nativa, plena de espécies exóticas, matas virgens e florestas Se, por um lado, a menção ao meridiano de Tordesilhas reforça a idéia
exuberantes, o que certamente teria intimidado os colonizadores. Explorado o dos direitos prévios de Portugal sobre as terras situadas na parte leste do sul
meio ambiente, o autor introduz os habitantes daquelas paragens. Apresenta um do continente, por outro, o seu "feliz achado" é tributário da necessidade da
estudo aprofundado sobre as culturas indígenas que habitavam o litoral brasilei- dinastia de Avis de assegurar o comércio das especiarias. Sobretudo após a
ro à época da chegada dos portugueses. Em que pesem os julgamentos pouco bem-sucedida viagem de Vasco da Gama às Índias Orientais. Hipótese que é
lisonjeiros acerca do caráter, da religiosidade e do "estado de selvageria" da- comprovada por um testemunho até então inédito, a que Varnhagen tivera
quelas populações, 8 a exposição circunstanciada sobre o grupo de língua tupi acesso nas pesquisas que realizou na Torre do Tombo: as Instruções de via-
constitui um trabalho etnográfico cuidadoso rico de informações. 9 gem do capitão-mor Pedro Álvares Cabral. Documento da maior importância,
A partir daí, estribado em sólida pesquisa documental, Varnhagen segue cujo conteúdo demonstra que a esquadra comandada por Cabral, composta
a trilha dos fatos institucionais, conforme ele mesmo enuncia ao levantar as por treze embarcações, algumas das quais armadas por negociantes particula-
questões que constituem o objeto da sua preocupação: res, destinava-se à fundação de feitorias nas Índias. Além disso, a fonte revela
que o rumo dos pilotos da frota fora traçado de acordo com recomendações
[ ... ] como e quando Portugal se inteirou da existência do legado [ ... ] do Tratado de circunstanciadas de Vasco da Gama, em última análise o grande responsável
Tordesilhas, como o descuidou a princípio, e o beneficiou e aproveitou depois; e pela formidável descoberta.
finalmente como através de muitas vicissitudes [ ... ] veio a surgir naquele mesmo
A narrativa de Varnhagen surpreende o leitor, tal a quantidade de trans-
território um novo Império 1o
crições e comentários de testemunhos da maior importância, destacando-se a
célebre carta de Pero Vaz de Caminha. Outro aspecto interessante, que traduz
Com efeito, a América portuguesa é concebida como uma herança do
as preocupações do historiador e diplomata, pode ser percebido quando levan-
Tratado de Tordesilhas. O que leva aos antecedentes dessa convenção da
ta a discussão sobre a atuação dos navegadores castelhanos, a exemplo de
Alonso de Hojeda e Vicente Yanez Pinzón, que haviam visitado o litoral Norte
, Cf. Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral do Brasil antes da sua separação e indepen- e Nordeste brasileiro antes da chegada da esquadra de Cabral. Do ponto de
dência de Portugal, cit., tomo V, p. 102. vista do historiador, reconhece a autenticidade e veracidade das fontes que
7 Ibid., tomo I, p. 13.

8 Segundo Varnhagen, "os indígenas eram [... ) falsos e infiéis; inconstantes e ingratos, e bastante
demonstram a precedência daqueles pilotos. Porém, como homem de chance-
desconfiados. Além de que: desconheciam a virtude da compaixão". Ibid., p. 52. laria, reflete que tais empreendimentos constituíam ações sigilosas, cujos re-
• Cf. Ronaldo Vainfas, "Capistrano de Abreu, Capítulos de história colonial", em Lourenço Dantas sultados teriam sido sonegados pela Casa de Castela. Portanto, conclui que a
Mota (org.), Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico (2) ed. São Paulo: Editora SENAC
São Paulo, 2000), p. 176.
10 Cf. Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral do Brasil antes da sua separação e indepen-

dência de Portugal, cit., tomo I, p. 67. 11 Ibid., p. 59.

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HISTÓRIA GERAL DO BRASIL LUCIA MARIA PASCHOAL GUIMARÃES

passagem daqueles precursores pela costa brasileira não poderia ferir o direito armas e a mantém por suas leis [... ] reclama a compensação nas vantagens do
dos portugueses às terras encontradas por Cabral. seu comércio, com a exclusão de todas as outras nações, segundo o direito euro-
Do relato das primeiras expedições exploradoras, empreendimentos que peu ainda praticado em nossos dias".14
são relacionados com as infrutíferas tentativas de demarcação dos domínios O estudo sobre as capitanias se alonga por quatro capítulos (IX, X, XI e
de Portugal e Castela na América, depreende-se que o Brasil permaneceu XII), sendo os dois últimos dedicados a uma avaliação circunstanciada dos
num patamar secundário, no âmbito do projeto mercantil da dinastia de Avis. resultados daquela iniciativa de D. João III. Não vem ao caso esmiuçar o
Preterido em esforços e capitais investidos no comércio das especiarias, de relato exaustivo das providências tomadas pelos donatários e seus prepostos.
retomo maior e mais imediato, numa época de crise comercial na Europa. 12 A Nem tratar das alianças ou dos revezes sofridos com os índios. Ou das peripé-
metrópole, na expressão de Varnhagen, 'l .. ] limitou-se a abandonar a mesma cias ocorridas ao longo das viagens daqueles capitães-mores que vieram to-
terra à mercê dos especuladores particulares, os quais à porfia começaram a mar posse das suas terras. Basta apenas dizer que sua abordagem tomou-se
vir a esses portos principalmente a buscar cargas do tal novo pau-brasil".B clássica na historiografia brasileira, adotada inclusive nos livros didáticos: capi-
Porém, a situação iria alterar-se, progressivamente, na medida em que os por- tanias de colonização bem-sucedida e capitanias onde o sistema fracassou.
tugueses perceberam a ousadia dos navegadores franceses, oriundos de Dieppe Dentre os casos de malogro, vale lembrar a história da associação formada
e de Honfleur, que freqüentavam o nosso litoral, contrabandeando pau-brasil, por Fernão Álvares, João de Barros e Aires da Cunha para explorar as capita-
com o auxílio dos indígenas. Por conseguinte, forçado pela necessidade de nias setentrionais. Os preparativos dessa sociedade, na qual foram investidos
defender e preservar os "mares brasílicos", o Reino viu-se obrigado a despa- vultosos capitais, causaram tanta celeuma em Lisboa, que o embaixador espa-
char as expedições comandadas por Cristóvão Jacques e Martim Afonso de nhol chegou a escrever para Madri desconfiado de que a frota armada pelos
Sousa. A descrição da viagem de Martim Afonso, qualificada como o primeiro três donatários destinava-se a atacar os estabelecimentos castelhanos no rio
empreendimento de caráter colonizador promovido pela Coroa portuguesa, se da PrataPS À guisa de curiosidade, convém esclarecer que a expedição nau-
prolonga por dois extensos capítulos. Páginas de grande erudição, estribadas fragou na costa do Maranhão. Aires da Cunha perdeu a vida e João de Barros,
no Diário de Pero Lopes de Sousa, documento que fora descoberto pelo que permanecera em Portugal, foi à bancarrota. As naus que se salvaram
visconde de Porto Seguro, publicado com suas anotações em Lisboa (1839) e foram parar até nas Antilhas ...
reimpresso no Rio de Janeiro pelo IHGB (1861). O foco se desloca dos fatos institucionais para o exame da vida cotidiana
Acontecimento tributário dos sucessos de Martim Afonso de Sousa, a im- dos primeiros colonos, suas relações com os indígenas, bem como os primeiros
plantação do sistema de capitanias hereditárias é outro tema bastante explorado. investimentos aqui realizados. Apesar de tendenciosa e condescendente, a
Afora questões pontuais, como o exame dos direitos dos donatários e distribui- narrativa revela de que modo a cultura autóctone influenciou o cotidiano da-
ção dos lotes, a exposição oferece uma pista importante acerca das diretrizes da queles recém-chegados, tão desamparados que para sobreviver acabaram
política colonial portuguesa, que mais tarde seria devidamente explorada por incorporando os costumes dos bárbaros gentios. Da convivência, os portu-
outros historiadores: o sistema constituía uma alternativa de colonização alta- gueses aprenderam a construir casas de cipó, a dormir em redes e a tomar
mente vantajosa para a Coroa, pois não demandava maiores investimentos, fi- banho diariamente. Passaram a fazer uso do tabaco, a se alimentar de milho,
cando os riscos por conta dos donatários Varnhagen aproveita o ensejo e explica farinha de mandioca, taioba e tantos outros vegetais nativos, destacando-se as
as bases do que hoje em dia denominamos "pacto colonial", amparando-se na bananas-da-terra, fruto que segundo uma testemunha de época assegurava a
obra de Montesquieu. Ou seja, a idéia de que o estabelecimento de uma colônia, subsistência de um colono sem o trabalho, "pois a bananeira seria a figueira do
"[ ... ] por qualquer nação, que a funda com seus filhos, a defende com suas paraíso terreal".16 Adotaram o sistema da coivara, prática agrícola desconhe-

'4 Ibid., p. 160.


12 Ibid., p.106. " Ibid., p. 192.
13 Ibid., p. 84. 16 Ibid., p. 213.

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HISTÓRIA GERAL DO BRASIL LUCIA MARIA PASCHOAL GUIMARÃES

cida em Portugal no plantio de legumes, e que até hoje se utiliza nas áreas celebrações familiares eram as cerimônias religiosas, sobretudo o batismo e o
rurais do Brasil, apesar das advertências de agrônomos e ecologistas. Além matrimônio, ocasiões em que as pessoas envergavam trajes de gala, como se
disso, alguns colonos abraçaram a poligamia, passando a viver maritalmente estivessem na Europa. É curiosa essa menção às festas de casamento entre
com mais de uma nativa, a exemplo de João Ramalho, em Piratininga. Aliás, os colonos. Cerimônia que não deveria ocorrer com muita freqüência, pois
segundo o visconde de Porto Seguro, as índias preferiam unir-se aos europeus, sabe-se que o número de mulheres brancas solteiras era muito escasso na
a viver com os seus semelhantes. A opção, e por que não dizer, a atração pelos Terra de Santa Cruz. Tanto assim, que o padre Manuel da Nóbrega dirigiu ao
brancos seria motivada por razões de ordem cultural e fisiológica. 17 Mas dei- rei de Portugal uma carta, documento muito citado pela historiografia, solici-
xemos de mão as teorias sobre o comportamento sexual das nativas formula- tando o envio de órIaS para remediar tamanha carência.
das por Varnhagen. Voltemos à questão da poligamia. A esse respeito, o Das datas festivas, a exposição retoma ao dia-a-dia da colônia, para
historiador, tão categórico nos seus juízos, cai em contradição: condena o cos- focalizar a questão do trabalho. À operosidade dos brancos, que "[ ... ] não se
tume por motivos religiosos e logo adiante enaltece a sua adoção pelos portu- envergonhavam de roçar mato ou de cavar com a enxada", Varnhagen contra-
gueses, o que teria propiciado a fusão das duas nacionalidades. 18 Termina põe a indolência, a aleivosia e a barbárie dos nativos, que desconheciam os
suas reflexões, afirmando que o desaparecimento do "tipo índio" deve ser cre- "direitos da razão e supremacia da consciência".21 Tais argumentos servem
ditado à mestiçagem, não podendo ser atribuído à crueldade ou à violência do para trazer à tona o problema da carência de mão-de-obra nos primórdios da
colonizador branco. Pelo contrário, a presença do europeu no Novo Mundo colonização. De quebra, justificam a violência dos colonos no trato com os
contribuiu para a preservação das etnias autóctones, já que o "cruzamento índios e a defesa do emprego da força, como o único meio eficaz de convertê-
sucessivo de raça fez que a americana não se exterminasse [... ], mas antes se los à fé cristã, de incorporá-los ao mundo do trabalho, enfim de civilizá-los.
refundisse"!! !19 A discussão acerca dos métodos para submeter os indígenas desemboca
Malgrado a forte influência da cultura indígena na rotina diária dos colo- no tema da catequese. Embora reconheça a religião como um poderosíssimo
nos, sobreviveram certos padrões de comportamento europeu. Varnhagen re- instrumento de civilização e moral, Varnhagen faz um virulento ataque aos
vela, com uma ponta de surpresa, que as festas do calendário romano religiosos da Companhia de Jesus, os "sectários da pseudofilantropia de
continuaram a ser celebradas, consoante as tradições do hemisfério Norte, Bartolomeu de Las Casas", que davam guarida ao gentio. Deduz que a prote-
apesar das diferenças climáticas. Assim, a despeito do calor escaldante do ção extremada aos índios causou um mal maior ao Brasil: a introdução dos
verão, o dia de ano-bom era festejado com banquete à moda portuguesa rega- africanos. Estes, sim, submetidos ao "mais atroz cativeiro".22 Diga-se de pas-
do com muito vinho. No carnaval, época das loucas saturnálias, praticava-se sagem que a repulsa à presença jesuíta na colônia perpassa diversos capítulos
o entrudo, tal qual na metrópole. A folia espantava os nativos, que boquiabertos da obra. Culminando com o comentário de que a Companhia de Jesus consti-
assistiam àquela brincadeira de gosto duvidoso, das pessoas ficarem lançando tuía "[ ... ] já no Estado outro Estado", a propósito de aplaudir a decisão do
umas nas outras farinha, ovos e água. Em maio, era a vez da festa das flores. marquês de Pombal de expulsar os inacianos do reino. 23
Seguia-se a do Espírito Santo. Em junho, comemorava-se Santo Antônio, São O quadro dos primeiros tempos da sociedade colonial prossegue no capí-
João e São Pedro, época das grandes fogueiras e dos rojões. A par disso, tulo XIV, com a entrada em cena dos negros. Varnhagen salienta que tráfico
celebravam-se os dias santos de guarda e as datas dos padroeiros. O calendá- negreiro não se constituía numa novidade para os portugueses, que já se utili-
rio se encerrava no Natal, com seus presépios, seus autos sacros, sua missa do zavam desse bárbaro expediente para suprir a deficiência de braços nas colô-
galo e mesa farta, guarnecida por um belo leitão assado. 20 O ponto alto das nias das ilhas da Madeira e dos Açores. A cidade de Lisboa, inclusive,
transformara-se num grande entreposto de cativos devido à cobrança da sisa.

17 Ibid., p. 215.
18 Ibidem. 11 Ibid., p. 217.
19 Ibidem. [Exclamações da autora.] 12 Ibid., pp. 220-221.
20 Ibid., p. 216. 23 Ibid., tomo IV, pp. 137-138.

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Esses antecedentes, bem como o testamento de Jerônimo de Albuquerque, tidos nas capitanias. Enfim, tratava-se de uma política de povoamento pouco
levam-no a crer que os primeiros donatários certamente trouxeram alguns afri- eficiente, que prejudicou os próprios donatários, visto que ao invés de gente apta
canos, a título de precaução. Porém, a introdução em grande escala, para para o trabalho recebiam infratores de toda a ordem.
atender às demandas do cultivo do açúcar, só ocorreu depois que as autorida- O livro avança com o exame da administração colonial: a criação dos
des metropolitanas proibiram a escravidão dos índios. governos-gerais, as iniciativas em prol da conquista do território e sua expan-
O visconde de Porto Seguro mostra-se bem mais sensível à violência da são para além dos limites de Tordesilhas. Salienta, sobretudo, a preocupação
escravatura africana do que em relação às atrocidades cometidas contra os constante das autoridades metropolitanas de explorar as terras próximas ao
indígenas. Deplora as condições do tráfico. Avalia, no entanto, que os cativos Peru, na esperança de encontrar indícios das tão cobiçadas minas de prata.
receberam um tratamento mais suave no Brasil. Sobretudo quando se compa- Outro ponto a destacar é o cuidado e a minúcia com que são tratadas as
ra com a situação dos negros nos Estados Unidos, "onde o anátema acompa- investidas estrangeiras à Colônia. Varnhagen chega mesmo a afirmar que "[ ... ]
nha não só a condição de escravo, mas também a cor em todas as suas por todas as capitanias, os receios de alguma invasão estrangeira era como um
gradações".24 Reconhece o papel fundamental do trabalho servil na agricultu- sentimento público. Temiam-se franceses, temiam-se ingleses, temiam-se ho-
ra, tanto no período colonial quanto, modernamente, na cultura do café. Entre- landeses [ ... ] até mesmo mouros e turcos". 27 As incursões francesas, por exem-
tanto, ao contrário das idéias desenvolvidas sobre a mestiçagem entre brancos plo, embora diluídas nos diversos capítulos dedicados aos governos-gerais, são
e índios, que como se já viu iria permitir a preservação da raça americana, merecedoras de relatos minuciosos. 28 A aliança entre índios e franceses é
Varnhagen faz votos para que a miscigenação acabasse por eliminar a cor identificada como um dos maiores óbices enfrentados pela colonização portu-
negra na população do nascente império. 25 A esses comentários, acrescenta guesa nos seus primórdios. Nesse sentido, a expulsão dos franceses da baía de
uma breve descrição das principais influências africanas na cultura brasileira. Guanabara toma ares de uma verdadeira epopéia, fazendo jus a um capítulo
O estudo sobre a formação da sociedade colonial tem um desfecho inespe- exclusivo. O tema da presença francesa no Brasil voltaria à tona no exame da
rado. O autor abandona a sua proverbial condescendência com os brancos e conquista e ocupação do Maranhão, tópico bem explorado, a partir de uma
carrega nas tintas, ao comentar aspectos morais da vida dos primeiros povoadores. outra descoberta de Varnhagen - o texto A descrição, de Heriarte. A propó-
À primeira vista, sugere que a Colônia se constituía no paraíso dos contrabandis- sito da narrativa dos sucessos de Daniel de La Touche e sua tentativa de se
tas, degredados, viciados e criminosos. Nem mesmo os religiosos escapam des- estabelecer na ilha de São Luís, o autor também se utiliza de testemunhos
sa pecha, já que muitos "[ ... ] deixavam de cumprir os preceitos da Igreja como, franceses, os padres capuchinhos Claude d' Abbeville e Yves d'Évreux, cujas
às escâncaras, faltavam à sociedade vivendo escandalosamente em poligamia". C6 crônicas considera superiores aos textos de Gabriel Soares de Sousa e de
Lições de moral à parte, o texto deixa claro que a metrópole não dispunha de Fernão Cardim, devido à descrição dos costumes dos índios tupis. 29
gente para povoar tão extenso domínio. A Terra de Santa Cruz, por sua vez, Mas, sem dúvida, o ponto alto do estudo da defesa e preservação da
também não oferecia grandes atrativos. Mormente se comparamos a sua situa- integridade da América portuguesa está no exame das invasões holandesas,
ção com a das feitorias do Oriente, que acenavam possibilidades mais concretas contempladas com sete alentados capítulos, enriquecidos por um brilhante tra-
de fortuna fácil. A escassez de voluntários dispostos a desbravar o território balho de crítica de fontes, acrescentado ao término da narrativa daqueles acon-
desconhecido obrigou a Coroa a tomar certas atitudes contraditórias. No Reino, tecimentos. 3D Aliás, a importância dessa contribuição já foi sobejamente
estabeleceu medidas coercitivas, a exemplo do recrutamento forçado de colonos reconhecida pela historiografia, desde Capistrano de Abreu até Evaldo Cabral
e da criação da pena de degredo para o Brasil. Por outra parte, na Colônia,
afrouxou as rédeas, concedendo o direito de couto e homízio, para crimes come-
27 Ibid., tomo II, p. 160.
li Ver, por exemplo, as seções que tratam dos governos de Duarte Coelho e de Mem de Sá.
24Ibid., p. 223. ,. Cf. Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral do BraSIl antes da sua separação e indepen-
IIIbidem. dência de Portugal, cit., tomo II, p. 146.
" Ibld., p. 228. ]. Ibid., tomo III, pp. 99-107.

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de Melo, passando naturalmente por José Honório Rodrigues. Contudo, vale a O historiador apressa o compasso da narrativa, quando adentra nos fatos
pena chamar a atenção para um aspecto muito pouco explorado pelos estudio- do século XVIII. Contudo, em alguns momentos, recobra o ritmo original. Vale
sos: Varnhagen apresenta uma espécie de balanço das chamadas "guerras do a pena rever sua descrição sobre a vertigem, que tomou conta da Colônia,
açúcar". Admite que o Brasil e seus produtos ficaram conhecidos na Europa quando se espalhou a notícia da existência das minas de ouro nas Gerais.
graças aos flamengos. Percebe-os como "[ ... ] indivíduos de uma nação mais Movimento que esvaziou as cidades do litoral, roubou braços da agricultura e
ativa e industriosa". O que lhe permite conferir um valor mais expressivo à atravessou o oceano Atlântico, atraindo toda a sorte de gente para os sertões
resistência contra a presença holandesa. Finalmente, após longa reflexão, o do Brasil. A maratona desenfreada é comparada à corrida do ouro que estava
historiador faz uma pausa e se indaga: "Em definitivo: da invasão holandesa ocorrendo na Califórnia, em meados dos oitocentos. 33
resultou algum proveito para o Brasil?" Mais adiante, conclui categórico: 'l .. ] No caudal dos grandes acontecimentos também emergem episódios me-
se apresentou mais crescido e mais respeitável".31 No seu entender, a guerra nores, mas nem por isso menos importantes, reveladores das tensões que
contra o estrangeiro - o inimigo comum - assumiu o papel de elemento catali- permeavam o relacionamento entre as autoridades metropolitanas e os colo-
sador. Transformou-se na força que aglutinou as três raças. Combateram pela nos. Esse é o caso do relato sobre o tumulto do Maneta, uma rebelião que
mesma causa, brancos, índios e negros. União que seria representada, respec- estourou na capital da Colônia, em 1711, para protestar contra o aumento do
tivamente, pelas figuras emblemáticas de Vidal de Negreiros, Filipe Camarão preço do sal e a elevação de 10% do imposto sobre todos os artigos de impor-
e Henrique Dias. De quebra, a luta ainda propiciou a coesão das capitanias do tação, inclusive escravos de Angola, a pretexto de armar uma frota, para pro-
Nordeste. Vista por esse prisma, a restauração converte-se numa espécie de teger a Bahia contra os inimigos que infestavam a costa. 34
gênese do sentimento nativista. Na verdade, como avalia Capistrano de Abreu, o século XVIII encerra
A História geral do Brasil perde fôlego quando aborda o período sub- grandes transformações - "[ ... ] o Brasil é povoado de um só golpe [ ... ] é o
seqüente à expulsão dos holandeses, em que pesem as continuadas e sucessi- século das minas, das guerras espanholas, das demarcações de fronteiras, da
vas demonstrações de erudição do seu autor. Dessa parte em diante, o título e expulsão dos jesuítas, das tentativas de independência". O estudo aprofundado
a periodização dos capítulos passam a se orientar pelos diversos tratados cele- desse período, no entender de mestre Capistrano, demandaria em certas qua-
brados pela metrópole, para dirimir questões relativas aos seus domínios no lidades específicas do historiador, para compreender o alcance daqueles movi-
Novo Mundo. Ao que tudo indica, Varnhagen utilizou esse recurso para alinha- mentos, o que não era bem o caso do visconde de Porto Seguro. 35 Apesar do
var uma gama de assuntos diferentes e desarticulados. No capítulo XXXVI, trabalho e do rigor documental, o foco das suas atenções concentra-se, sobre-
por exemplo, intitulado "Desde o tratado de 1668 até a execução do de 1681", tudo, na política interna e externa de Portugal, em detrimento de uma análise
o texto principia com as negociações de paz entre Portugal e Espanha. Em das aceleradas e intensas metamorfoses que operavam na Colônia, tal como
seguida, há uma rápida menção ao movimento dos bandeirantes que devassava desejava Capistrano. Isso se percebe em diversas oportunidades, como na
os sertões. Logo adiante, aborda sucessivamente o crescimento da população seção XLV, em que se dedica a elogiar a probidade de D. José I e capacidade
dos dois estados (Maranhão e Brasil); a criação do arcebispado na Bahia; a política do seu ministro, o marquês de Pombal, para desaguar numa defesa do
transferência de colonos das ilhas dos Açores para o Pará; o quilombo de Socorro de capitais e de ouro prestados pelo Brasil, na reconstrução de Lisboa,
Palmares; a venda da capitania do Espírito Santo; a fundação da colônia do após o terremoto de 1755. 36 Ainda assim Varnhagen emite algumas aprecia-
Sacramento e o tratado provisional (1681), que obrigou os espanhóis a entre-
garem aquela colônia aos portugueses. Arrematando a miscelânea, Varnhagen l3 lbid., tomo IV, pp. 99- I Ol.
adverte os leitores de que a saga da ocupação lusa na margem esquerda do rio 14 Ibid., p. 312.
da Prata deverá prosseguir nos capítulos seguintes. 3:! " Cf. Capistrano de Abreu, "Sobre o visconde de Porto Seguro", em Ensaios e estudos, I~ série,
nota liminar de José Honório Rodrigues (Brasília/Rio de Janeiro: INLlCivilização Brasileira,
1975), pp. 135-136.
Jl Ibid., pp. 98-99. 36 Cf. Francisco Adolfo de Varnhagen, Históna geral do BraSil antes da sua separação e indepen-
32 Ibid., pp. 226-239. dência de Portugal, cit., tomo IV, pp. 234-249.

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ções muito significativas sobre o alcance de certas medidas da Coroa, na ad- Do Velho Mundo, Varnhagen desloca-se para o lado de cá do Atlântico.
ministração dos seus domínios na América. Ao se reportar ao célebre alvará No panorama intelectual da Colônia distingue duas categorias de letrados. Essa
de D. Maria I, que proibia a instalação de todas as fábricas e manufaturas no divisão tem um significado muito especial, porquanto articula-se diretamente
Brasil, afirma taxativo que o ato era "[ ... ] arbitrário e opressivo [ ... ] qualquer relacionada com a problemática da independência, como veremos mais à fren-
oposição ou rebeldia que a ele se apresentassem os povos. Em vez dessa, que te. O historiador identifica a existência de um conjunto de estudiosos - oriun-
seria justíssima, por sua origem, outra se manifestou e tomou corpo, chegando dos dos cursos da Universidade de Coimbra, homens de grande visão,
a converter-se em uma ou tal conspiração".37 Ou seja, no entender do historia- preocupados em pesquisar e propor alternativas para a prosperidade do Brasil
dor as proibições do alvará de 1785 seriam tão nocivas aos interesses da Colô- - integrado por naturalistas e políticos. Não cabe aqui uma apreciação
nia, que por si só justificariam até um movimento de caráter emancipacionista. aprofundada acerca das atividades ou da produção intelectual desses vultos.
Juízo que reduz à expressão mais simples um outro ato, igualmente arbitrário, a Por ora, basta apenas apontar os seus nomes. Dentre os naturalistas, mencio-
derrama - a cobrança forçada dos impostos atrasados sobre o ouro, que teria na Manuel de Arruda Câmara, José de Sá Bettencourt e até o antigo juiz de
motivado a Conjuração Mineira. Acontecimento, aliás, que ele insiste em dizer fora do Rio de Janeiro, Baltazar da Silva Lisboa, que por essa época estaria
que fora apenas uma conspiração,38 embora lamente o destino trágico de investigando as matas do litoral da Bahia. No âmbito dos políticos, aparecem o
Tiradentes, decorrente da sua "[ ... ] aspiração prematura em favor da indepen- bispo Azeredo Coutinho, José da Silva Lisboa, Hipólito José da Costa e um
dência do Brasil". 39 desconhecido, que se assinava com o pseudônimo Ideiador. 41
O livro se encerra com a regência do príncipe D. João e a vinda da Corte A esse rol de notabilidades, Varnhagen contrapõe um segundo grupo - o
portuguesa para o Brasil. A narrativa segue os fatos institucionais, como já era dos intelectuais subversivos, por assim dizer. Leitores dos "[ ... ] filósofos e
de esperar. Porém, destaca dois personagens: o príncipe D. João, descrito enciclopedistas do século". Obras proibidas pela Coroa, mas que clandestina-
como homem de "[ ... ] bondoso caráter, pio, dotado de felicíssima memória, e mente circulavam na Colônia, "[ ... ] infectas dos abomináveis princípios fran-
sem maiores ambições políticas".40 E o ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ceses".4" Nessa categoria estão incluídos os freqüentadores da sociedade
apresentado como um grande patriota, descendente de família brasileira pelo literária dissolvida pelo vice-rei, o conde de Resende, e que passaram a se
lado matemo, que congregava ao seu redor um grupo de intelectuais brasilei- reunir na casa do poeta e advogado Manuel da Silva Alvarenga. Acusados de
ros. A menção aos protegidos de D. Rodrigo, capitaneados por frei José Mariano conspirar contra a Coroa, esses letrados foram presos em 1794, a exemplo dos
da Conceição Veloso, serve de mote para salientar a existência de uma certa médicos Jacinto José da Silva e Vicente Gomes, do professor João Marques
intelligentsia brasileira, no eixo Lisboa-Coimbra, na virada do século XVIII Pinto e do dr. Mariano José da Fonseca,43 que mais tarde seria nobilitado com
para o XIX. Estudantes, como Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e José o título de marquês de Maricá.
Feliciano Fernandes Pinheiro. Professores, a exemplo de Vicente Coelho Seabra A divulgação das "[ ... ] chamas incendiárias da Revolução Francesa", no
(catedrático de zoologia, mineralogia, botânica e agricultura em Coimbra) e entanto, extrapolou os círculos beletristas, atingindo as camadas populares. E,
Manuel Jacinto Nogueira da Gama (lente de matemática em Lisboa). Num nesse caso, representava um perigo ainda maior, reflete Varnhagen, reportan-
patamar mais elevado, incorporados aos quadros do governo real, estavam do-se à rebelião dos negros de São Domingos. A trama inspirava-se nos prin-
José Bonifácio de Andrada, desembargador e lente de mineralogia em Coimbra, cípios de liberdade, igualdade e fraternidade. Gente perigosa "de idéias mais
inspetor de minas e do encanamento do rio Mondego, e Manuel Ferreira da socialistas do que políticas ", que estaria pretendendo estabelecer um "governo
Câmara, membro da Academia de Ciências de Lisboa. democrático", em Salvador. Denunciado o conluio, que ficou conhecido como
Conjuração dos Alfaiates ou Conjuração Baiana de 1798, o governador da
37 Ibld., p. 289.
38 Ibld., p. 313. 41 Ibld., pp. 16-20.
39 Ibld., p. 322. " Cf. D. Rodrigo de Sousa Coutinho, apud Francisco Adolfo de Varnhagen, tbid., p. 23.
4<l Ibld., p. 10. 43Ibid., p. 24.

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capitania mandou prender e executar os principais acusados, "[ ... ] nenhum dos por uma velha rivalidade local, a rixa existente entre pernambucanos e
deles homem de talento, nem de consideração; e quase todos libertos ou escra- portugueses. Opina que os revolucionários só foram adiante e ganharam o
vos, pela maior parte pardos".44 apoio popular, porque faltara pulso ao governador da capitania para segurar as
Vistas as idéias que circulavam na Colônia, segue-se um quadro das suas rédeas da situação, punindo os militares insubordinados na primeira hora. 48 E,
condições econômicas, administrativas e sociais, por ocasião da chegada do conclui, num desabafo "[ ... ] o braço da Providência, bem que à custa de la-
príncipe D. João, em 1808. Completa-se, assim, o cenário desenhado por mentáveis vítimas e sacrificios, amparou o Brasil, provendo em favor da sua
Varnhagen para anunciar a decisão que alterou definitivamente os rumos da integridade".49
América portuguesa: o decreto régio de 28 de janeiro de 1808, que "o emanci- Mas Varnhagen não poderia encerrar a sua História geral do Brasil
pou [Brasil] de uma vez da condição de colônia, e o constituiu nação indepen- com a análise de um acontecimento que contestava a idéia de continuidade, o
dente de Portugal".45 Desse ponto em diante, o autor passa a comentar as fio condutor da sua narrativa desde a primeira página da obra. Além disso, no
transformações que se dão nos antigos domínios da casa de Bragança, seu entender, a chegada da Corte portuguesa representa "[ ... ] uma nova era,
doravante convertidos na sede da monarquia. Abre, inclusive, uma brecha para onde o Brasil se tomou o centro da monarquia regida pela casa de Bragança".5O
inserir um capítulo sobre a introdução da siderurgia no país, consagrado a de- Nessa linha de raciocínio, o tema da proclamação da independência seria o
fender o pioneirismo do seu pai, o coronel Frederico Guilherme de Varnhagen, grand finale, por excelência. Entretanto, o visconde de Porto Seguro não
na primazia da fabricação de ferro. 46 Trata também da política externa desen- comete essa ousadia. Chega perto, porém, valendo-se de um artificio. Consa-
volvida por D. João, das negociações, conquistas e tratados. Considera, ainda, gra o último capítulo do livro Escritores, viajantes e imprensa ao campo das
que a elevação do Brasil a Reino Unido, em 16 de dezembro de 1815, consti- belas-letras. Dispõe-se a examinar obras e autores que tratam do Brasil no
tuiu um expediente de caráter diplomático, porquanto o pacto colonial fora período reinoI.
rompido cerca de oito anos antes, com o decreto que concedia liberdade de A seleção não poderia ser mais significativa. Cita dez trabalhos, todos
comércio. bem conhecidos. A começar do Dicionário da língua portuguesa de Antônio
Ao final da enumeração de tantas realizações e progressos, Varnhagen de Morais Silva. Prossegue com a Corografia brasílica do padre Aires do
resolve cuidar de um assunto espinhoso: "[ ... ] tão pouco simpático, que, se nos Casal, a História do Brasil de Robert Southey, os relatos de viagem do prínci-
fora permitido passar sobre ele um véu, o deixaríamos fora do quadro que nos pe Maximiliano de Neuwied, dos naturalistas Spix e Martius e assim por diante,
propusemos traçar" . Trata-se da revolução pernambucana de 1817. Varnhagen até alcançar os publicistas. Neste momento, reaparecem aquelas três figuras
simplesmente desqualifica essa revolta, de caráter emancipacionista, que co- emblemáticas da boa intelectualidade da Colônia, isto é, o bispo Azeredo Coutinho,
meçou em Pernambuco e se alastrou pelas capitanias da Paraíba, do Rio Grande José da Silva Lisboa e Hipólito da Costa. Varnhagen passa por alto sobre a
do Norte e do Ceará. Apela até para um argumento "científico", para reforçar contribuição dos dois primeiros e centra-se nos artigos de Hipólito da Costa,
sua repulsa pelo movimento: "A verdade é só uma, e há de triunfar em vista publicados no jornal Correio Braziliense. Fazendo corte e colagem dos textos
dos documentos que vão aparecendo".47 No seu entender, a rebelião que pro- de Hipólito, o historiador apresenta a sua versão sobre a independência. Em
clamou a independência de Pernambuco do governo do Rio de Janeiro, não resumo, considera que ao longo da permanência da Corte portuguesa no Rio de
passa de um motim de quartel, provocado por militares insubordinados, insufla- Janeiro, organizara-se o sistema de administração de modo que Portugal e Bra-
sil se tomassem dois Estados diversos, ainda que sujeitos ao mesmo rei. Idéia,
por sinal, muito cara a uma outra figura destacada por Varnhagen, o ministro
44 Ibidem .

., Ibid., pp. 89-90.


46 Ibid., "Minas de ferro: primeiras fundições em ponto grande", tomo V, p. 185. Outros autores

atribuem o pioneirismo da fundição do ferro no Brasil à Fábrica Patriótica, localizada em Minas .. Ibid., p. 161.
Gerais, próximo a Congonhas do Campo, dirigida por outro alemão, o barão de Eschwege. 49 Ibid., p. 177.

47 Ibid., p. 150. '0 Ibid., p. 34.

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HIST6RIA GERAL DO BRASIL

entre os dois intelectuais. O imperador D. Pedro II, inclusive, parecia incenti-


D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Mas havia fortes interesses em jogo, de ambos
var a polêmica, visto que agraciou Gonçalves de Magalhães com o título de
os lados. Por conseguinte, avalia, aquele projeto não possuía grandes chances
barão e mais tarde visconde do Araguaia, à propósito do seu indigenismo.
de ir avante, mormente se o rei regressasse para a Europa, o que parecia inevi-
Enquanto concedeu a Varnhagen a mercê de barão e depois visconde de
tável. 5! Assim, restava saber até quando o arranjo iria perdurar e, no caso da
Porto Seguro, numa alusão ao primeiro ponto do litoral brasileiro tocado pelos
emancipação da América portuguesa, que regime político viria a ser adotado?
navegadores portugueses. O certo é que apesar das inúmeras alterações e
À primeira questão, a resposta é curta e clara. A ruptura se dá em decorrência
notas acrescentadas na segunda edição da obra (1871), tentando explicar e,
da revolução do Porto e seus desdobramentos. Quanto à segunda, certamente
por que não dizer, amenizar sua postura inicial em relação aos índios, durante
não seria a república, inspirada nos abomináveis princípios franceses, fonte
um bom tempo, tanto o autor quanto a sua obra amargaram uma certa indife-
da anarquia e do despotismo que assolavam os antigos domínios espanhóis no
rença, no âmbito do Instituto Histórico. A reabilitação de ambos começaria
continente. Diante desses argumentos, Varnhagen identifica apenas uma alter-
após o necrológio que lhe dedicou o historiador Capistrano de Abreu, em 1878.
nativa viável: a monarquia representativa. Nasce o império do Brasil.
Se, por um lado, Capistrano não lhe poupou críticas, devido à "[00'] sua falta
de espírito plástico e simpático", por outro, reconheceu-lhe as virtudes inte-
lectuais e as qualidades de pesquisador incansável: "Grande exemplo a seguir
CONSIDERAÇÕES FINAIS
e a venerar".54 Seja como for, não se pode negar que o visconde de Porto
Seguro foi o maior historiador da sua época, pela extensão da obra, pelos
A História geral do Brasil antes da sua separação e independência
fatos que revelou, pelas fontes que descobriu, pela publicação de inéditos,
de Portugal, mais conhecida como História geral do Brasil, foi dedicada a
pelo seu enorme esforço e determinação. 55
D. Pedro II. Como o seu próprio título indica, a contribuição pretendia se cons-
Adepto das regras estabelecidas pelo historismo alemão, do qual Leopold
tituir numa grande síntese do passado de um "[00'] novo Império a figurar no
von Ranke é a expressão máxima, Varnhagen entendia que o historiador só
Orbe entre as nações civilizadas, regido por uma das primeiras dinastias do
pode se ater aos fatos que efetivamente aconteceram, devendo empenhar-se
nosso tempo".5~
para restabelecer a verdade sobre os mesmos. Nesse sentido, acreditava que
Lançado em Madri, em dois volumes (1854-1857), o portentoso livro
o trabalho histórico deveria apoiar-se na erudição, no rigor do tratamento dis-
não foi bem recebido no Brasil, em que pesem os calorosos elogios que arran-
pensado às fontes. Sua concepção de história apóia-se na premissa de que as
cou na Europa dos maiores brasilianistas da época, o naturalista alemão Martius
ações humanas espelham as intenções de quem as pratica e que cabe ao his-
e o bibliotecário francês Ferdinand Denis. A obra suscitou intensos protestos
toriador compreender tais intenções. Somente assim é possível construir uma
no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sobretudo por causa do trata-
narrativa lógica e coerente. Desse modo, opera com uma noção de tempo
mento dispensado aos indígenas. Cabe esclarecer que no Instituto, naquela
linear, onde os eventos se sucedem numa seqüência cronológica. Tal como
ocasião, prevalecia uma visão romântica das origens da nacionalidade de viés
Ranke, o visconde de Porto Seguro privilegia sobretudo o Estado, daí a sua
indigenista. O poeta e cronista Domingos Gonçalves de Magalhães, um dos
ênfase na primazia dos fatos políticos, relativamente isolados das forças eco-
expoentes daquela corrente, autor do épico A Confederação dos Tamoios,
nômicas e sociais. 56
escreveu a propósito uma defesa intransigente dos gentios, "Os indígenas
perante a história".53 Não vem ao caso aprofundar o áspero debate travado
,. Capistrano de Abreu, "Necrológio do visconde de Porto Seguro", em Ensaios e estudos, 1" série,
cit., p. 86.
" Ver José Honório Rodrigues, "Varnhagen: mestre da história geral do Brasil", em Revista do
l1 Cf. Hipólito da Costa, apud Francisco Adolfo de Varnhagen, lbid., p. 234.
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n" 275, Rio de Janeiro, 1967, pp. 170-196.
12 Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral do Brasil antes da sua separação e independên-
" Sobre Ranke e o historismo alemão, apoiamo-nos em George Iggers, "Introduction", em
cia de Portugal, cit., tomo I, p. 67.
Historiography in the Twentieth Century (Hanover/Londres: Wesleyan University Press, 1997),
II Domingos José Gonçalves de Magalhães, "Os indígenas perante a história", em Revista do
pp. 3-5.
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n" 23, Rio de Janeiro, 1860, pp. 3-66.

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HISTÓRIA GERAL DO BRASIL

A História geral do Brasil, com suas páginas cheias de referências AFONSO D'ESCRAGNOLLE TAUNAY
luso-brasileiras, retrata também a atmosfera de uma época. Escrito no início
da década de 1850, o livro reflete a problemática do processo de consolidação
do Estado nacional. Se a discussão acerca das raízes da nacionalidade dividia
as opiniões dos letrados, não havia dúvidas quanto às origens do Estado. Essa Históna geral das
questão já estava bem definida, sobretudo no âmbito do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, que desde 1838 vinha construindo a memória do país
recém-independente, dotando-o de um passado adequado às pretensões da bandeiras paulistas
monarquia instaurada. Memória marcada pelo traço da continuidade, em que o
Estado estabelecido em 1822 constituía-se no legítimo herdeiro e sucessor do
Império ultramarino português. Legado que se sustentava desde o idioma de
Camões até a presença de um representante da dinastia de Bragança no Tro-
no brasileiro. E não resta dúvida de que Varnhagen foi o autor que melhor
desenvolveu essas premissas.
Wilma Peres Costa

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UMA OBRA MONUMENTAL

A História geral das bandeiras paulistas, de Afonso d'Escragnolle


Taunay (1876-1958), foi, como o próprio autor nos indica no seu subtítulo "es-
crita à vista de avultada documentação inédita dos arquivos brasileiros, portu-
gueses e espanhóis". A obra é, sob todos os aspectos, fruto de um trabalho
monumental e consolida, de forma não superada até hoje, o estado dos conhe-
cimentos factuais sobre o tema do bandeirismo entre os séculos XVI e XVIII.
Em seus onze extensos volumes, publicados ao longo de 27 anos (1924 a 1950),1
estão incorporadas as contribuições dos cronistas coloniais bem como dos es-
tudiosos contemporâneos a Taunay - Alfredo Ellis Ir., Washington Luís,
Capistrano de Abreu, Oliveira Viana, Orville Derby, Teodoro Sampaio. Além
disso, Taunay sumariza na História geral seus próprios trabalhos anteriores
sobre o assunto. O estudo fundamenta-se sobre uma impressionante quantida-
de de documentos: os arquivos relativos à vida da comunidade paulista durante
o período colonial, a coleção de inventários e testamentos dos sertanistas, os
testemunhos jesuíticos sobre o assédio dos paulistas às reduções. A esse acer-
vo, que também tinha sido visitado pelos estudiosos que o precederam, Taunay
acrescentou uma documentação nova e inexplorada até então: os arquivos
ultramarinos, em particular os espanhóis.
A extensão e o caráter exaustivo da obra seriam em si mesmo surpreen-
dentes, não fosse ela produto daquele que foi, possivelmente, o mais prolífico
historiador brasileiro. No momento da publicação da edição abreviada da His-
tória geral das bandeiras,2 Taunay havia produzido nada menos de 24 títulos
de história do Brasil, dentre os quais os quinze volumes da sua História do
café, sob encomenda do Departamento Nacional do Café, cuja publicação
(1927-1937) correu, em parte, paralelamente à História das bandeiras. Con-
tava ainda com 23 títulos sob a rubrica história de São Paulo, destacando-se a
História seiscentista da vila de São Paulo (quatro volumes) e a História da
Cidade de S. Paulo (cinco volumes), além de incontáveis artigos escritos prin-
cipalmente nas revistas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do
Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo. O conjunto de seus artigos
publicados ao longo de trinta anos no Jornal do Commercio abarca mais de
sessenta volumes. A vastidão de seus interesses espraiou-se pelas áreas mais

1 Afonso d'Escragnolle Taunay, História geral das bandeiras paulistas, 11 vols. (São Paulo:
Canton, 1924-50).
1 Afonso d'Escragnolle Taunay, História das bandeiras (São Paulo: Melhoramentos, 1951).

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HISTÓRIA GERAL DAS BANDEIRAS PAULISTAS WILMA PERES COSTA

variadas, da lingüística ao romance histórico, passando pela história da ciência UM INTELECTUAL E SUA EFÍGIE

e da arte no Brasil.
A história de São Paulo, capitania, província, estado, foi, entretanto, o Afonso d'Escragnolle Taunay nasceu em Santa Catarina em 1876, quan-
tema mais persistente de Afonso Taunay. Tanto por relações familiares, como do seu pai, o grande intelectual e político do Império, Alfredo d'Escragnolle
por ligações políticas e profissionais, ele identificou-se com a trajetória de cons- Taunay (o visconde de Taunay) presidia aquela província. Embora portador de
tituição e consolidação da hegemonia paulista no interior da federação republi- um nome ilustre, oriundo de uma família que se notabilizara no serviço ao
cana e fez dela uma verdadeira causa para sua militância intelectual. A parte Império, Afonso Taunay não foi herdeiro de fortuna pessoal. Sua família, assim
mais substantiva de sua produção historiográfica foi a que resultou na His tória como a de Joaquim Nabuco, arruinou-se durante a crise financeira que atingiu
geral das bandeiras paulistas e na História do café no Brasil, cada uma tanto a Argentina (crise da Casa Bancária Baring Brothers) como o Brasil
das obras retratando os momentos mais significativos da trajetória paulista e (encilhamento), entre 1890-189l. A crise e o desastre financeiro serviram para
de sua inserção na vida da colônia e da nação. aprofundar o ódio à República e a lealdade monárquica tanto de Joaquim Nabuco
Mais do que um objeto de interesse acadêmico, bandeiras e bandeiran- como do visconde de Taunay, que escreveu sobre essa quadra um romance
tes foram sua verdadeira paixão. Ele costumava dizer que o exame dos in- histórico entre amargo e divertido, muito ao seu estilo (O encilhamento, 1894).
ventários e testamentos dos bandeirantes proporcionara a maior emoção da Afonso tinha apenas 13 anos quando da proclamação da República e não
sua vida, muito maior do que experimentara ao deparar com os padrões qui- parece ter compartilhado, mesmo na juventude, a fé monárquica de seu pai.
nhentistas de Porto Seguro e do Cabo de São Roque. Estes, dizia ele, atesta- Ao contrário, as cartas do visconde ao filho repreendem-no com profundo
vam "epopéia portuguesa" e os bandeirantes representavam um "patrimônio desgosto ao saber que o jovem Afonso se juntara aos florianistas em uma
da humanidade". manifestação em favor do "Marechal de Ferro", carta que o jovem Afonso
A temática das bandeiras foi abordada por Taunay sob múltiplos ângulos teria rasgado, em um assomo de rebeldia juvenil. Apesar do episódio, a rebel-
_ biografia, cartografia, publicação de documentos. 3 Particularmente impor- dia tampouco foi característica da personalidade de Afonso Taunay. Jovem
tantes para o estudo da vida e das mentalidades na capitania de São Paulo, no retraído e estudioso, preferiu sempre a companhia dos livros ao convívio mun-
período colonial, e para a história das bandeiras foram suas reedições comen- dano, diferentemente do visconde que, na mocidade, fora dado à vida festiva
tadas dos velhos cronistas paulistas Pedro Taques de Almeida Leme e frei da corte e se notabilizara pela conversação cativante, pelo prazer da dança e
Gaspar da Madre de Deus,4 matrizes da construção da figura e do mito do pelo fascínio da conversação. Dotado de um grande talento literário, o viscon-
bandeirante em múltiplas dimensões, que seriam criticadas umas, incorporadas de preocupava-se também com o "mau português" do jovem Afonso, insistin-
outras, na História geral das bandeiras. Também se deve a Afonso Taunay do com ele para que apurasse o estilo e aconselhando-lhe a leitura dos sermões
a edição e divulgação da maior parte dos trabalhos de seu pai, destacando-se a de Vieira. 5 O conselho pode parecer um pouco peculiar, oferecido a quem viria
tradução de A retirada da Laguna, escrita originalmente em francês, obra a ser um escritor tão prolífico, mas a verdade é que ele possuía uma certa
que teria também profunda relação com as temáticas exploradas na História adequação. A História geral das bandeiras não é obra que atraia o leitor
geral das bandeiras. pela beleza do estilo. Afonso Taunay conservou, ao lado de uma grande erudi-
ção, uma escrita bastante pesada e por vezes repetitiva, uma tendência à pro-
lixidade, que não foi superada nem mesmo na edição abreviada de seus
trabalhos. Como ele mesmo insistia a cada passo, seu objetivo não era a sínte-
J Uma abrangente bibliografia comentada de Afonso Taunay encontra-se em Myriam Ellis &
Rosemarie Erika Horsh, A//onso d'Escragno/le Taunay no centenário de seu nascimento, 11 de
se, mas a exposição detalhada, erudita, documentada, de seu tema.
julho de 1876, 20 de março de 1958 (São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1976), de onde Como era comum nos círculos privilegiados, particularmente entre os
foram extraídas as informações biográficas aqui utilizadas. que dispunham de distinção intelectual, a perda da fortuna não impediu que
4 Pedro Taques de Almeida Leme, Noblliarqllla paulistana histónca e genealógica (5) ed. Belo
Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1980) e frei Gaspar da Madre de Deus, Memórias para a
história da capitania de São Vicente (Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1975). , Myriam Ellis & Rosemarie Erika Horsh, op. Clt., pp. 10-12.

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HISTÓRIA GERAL DAS BANDEIRAS PAULISTAS WILMA PERES COSTA

Afonso se mantivesse, pelo casamento, no mesmo patamar social que fora o cias. 8 Ganhavam espaço os temas que seriam caros à história econômica - a
de seu pai. O visconde fora casado com a filha do barão e da baronesa de ocupação, o povoamento, a penetração do território, as ações anônimas dos
Vassouras, uma das mais importantes famílias ligadas ao café fluminense. agrupamentos humanos.
Mudados os tempos e a geografia da riqueza cafeeira, Afonso Taunay casou- Para Capistrano, os inventários bandeirantes do sertão, que havia no Ar-
se com uma herdeira das mais tradicionais fortunas ligadas à cafeicultura paulista quivo do Estado, eram muito mais importantes do que as cartas régias. "Enve-
- os Sousa Queirós. rede por ali", teria dito Capistrano a Taunay, "não esperdice tempo com
Mantendo uma tradição que perpassou todas as gerações de sua família, Capitães-Generais e Vice-Reis". 9
Afonso Taunay dedicou-se sobretudo ao serviço público. Um pouco em razão Outra influência persistente na vida e na obra de Taunay foi Washington
desse fato, tudo o que se refere a ele tende a ser perpassado de um quase Luís, o eminente político que abrigava também uma vocação de historiador e
inevitável "oficialismo". Ele ocupou praticamente todas as posições institucionais vinha a ser seu concunhado. A ele Taunay dedicou o primeiro volume da His-
estratégicas para a intelectualidade paulista de sua época, tendo-se beneficia- tória geral das bandeiras paulistas e São Paulo nos primeiros anos (1554-
do dos aplausos e incentivos do mundo político e acadêmico, tão significativa- 1601): ensaio de reconstituição social, assim como o primeiro volume dos
mente interligados nas primeiras décadas do século. Formado pela Politécnica Anais do Museu Paulista. Ao patrocínio de Washington Luis também se de-
do Rio de Janeiro, "engenheiro sem vocação", segundo o depoimento de seu veu a disponibilização de grande parte dos documentos sobre a história de São
filho Augusto, exerceu entretanto o magistério na área de ciências fisicas por Paulo, alguns deles fundamentais para o estudo do bandeirismo. Enquanto pre-
mais de vinte anos (1899 a 1923), quando abandonou a cátedra de fisica expe- feito de São Paulo e governador do Estado, ele promoveu a impressão das
rimental da Politécnica, da qual fora o primeiro ocupante. A partir de 1908, Atas e registro geral da Câmara de S. Paulo, bem como dos Inventários e
dedicou-se à pesquisa histórica, incentivado principalmente pelo historiador testamentos, dando continuidade ao trabalho iniciado em 1894, por Toledo Piza,
Capistrano de Abreu 6 e pelo geógrafo Alfredo Moreira Pinto. A partir dessa com a coleção Documentos interessantes para a História e costumes de
influência, é consensual localizar-se Afonso Taunay na escola historiográfica São Paulo. Dentro dessa documentação, Taunay, que se identificava como
conhecida como "revisionismo histórico", inaugurada por Capistrano e inspira- um "viajor infatigável entre quatro paredes", embrenhou-se, como um "ban-
da na idéia de revisão e atualização da história geral do Brasil de Adolfo deirante nas selvas". 10
Varnhagen. 7 É relevante lembrar que essa mudança de direção na historiografia, que
"Revisionismo" é certamente um termo insuficiente para caracterizar o se consolida na obra de Capistrano de Abreu, vinha se desenhando, no plano
que foi realizado pelo grande historiador cearense e seus discípulos. Mais do da política e da própria consciência nacional, desde a Guerra do Paraguai,
que uma mera "revisão", eles operaram uma verdadeira mudança de direção quando se tornaram patentes as enormes distâncias e a vulnerabilidade das
na historiografia brasileira. A orientação imprimida aos estudos históricos no fronteiras do Brasil, e quando teve lugar também uma espécie de "descoberta"
século XIX, influenciada pela obra de Varnhagen, valorizava sobretudo a he- do sertão. Nesse sentido, pode-se dizer que foi o visconde de Taunay, com A
rança ibérica e a obra administrativa e centralizadora da coroa imperial, indu- retirada da Laguna e, de certa forma, também com Inocência quem inaugu-
zindo a uma forma de pesquisar e escrever sobre os temas históricos fortemente rou a temática sertaneja em nossa literatura. O sertão, inóspito e, até então,
calcada nos fatos políticos. A partir de Capistrano, essa orientação daria lugar intransponível, cedendo ao ímpeto dos jovens militares e ao esforço centraliza-
a uma nova concepção historiográfica, interessada nos processos econômicos
e na forma como a cultura material moldou os tipos humanos e suas experiên-
• Para uma reavaliação do papel de Capistrano de Abreu ver Laura de Mello e Souza, "Aspectos da
historiografia da cultura sobre o Brasil Colonial", em Marcos Cezar de Freitas (org.), Historiografia
• Cf. José Honório Rodrigues (org.), Correspondência de Capistrano de Abreu (Rio de Janeiro: brasileira em perspectiva (São Paulo: USF/Contexto, 1998), pp. 18-19.
MEC/INL, 1954), voI. I, pp. 346-349. • Cf. José Honório Rodrigues (org.), Correspondência de Capistrano de Abreu, cit., pp. 330-331.
7 Cf. José Honório Rodrigues, "Monso de Taunay e o revisionismo histórico", em Revista de 10 Afonso d'Escragnolle Taunay, "Discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras", em Publi-

História, XVII (35), São Paulo, ano IX, 1958, p. 97. cações da Academia Brasileira: discursos acadêmicos, Rio de Janeiro, vol. 7, 1927-1932, p. 213.

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HISTÓRIA GERAL DAS BANDEIRAS PAULISTAS WILMA PERES COSTA

dor do Estado imperial era a grande personagem de A retirada da Laguna. Entretanto, foi a partir de 1917, quando passou a dirigir o Museu Paulista, a
Eles voltavam a palmilhar o território freqüentado pelos bandeirantes paulistas convite do presidente do Estado, Altino Arantes, que Taunay tomou-se defini-
do século XVII, na fronteira agora invadida pelo inimigo paraguaio. Essa pre- tivamente historiador. Esse foi, por assim dizer, o segundo nicho institucional
cedência era reconhecida também por Capistrano que afirmava a Afonso Taunay da História geral das bandeiras, onde o projeto atingiu sua plena maturida-
que seu pai fora "o primeiro dentre nós que descreveu os sertões de experiên- de. Em sua longa e quase vitalícia gestão na direção da instituição, a temática
cia e autópsia, não de chic. Antes dele só houvera estrangeiros". das bandeiras tomou-se uma constante no acervo documental, na edição de
Foi a partir da República, entretanto, e pelas mãos dos estudiosos que se inúmeras obras (dentre as quais a própria História geral das bandeiras), no
reuniam no Instituto Histórico Geográfico de São Paulo, que a temática da conteúdo dos Anais do Museu Paulista, cuja publicação iniciou. Foi na quali-
conquista e ocupação do sertão sofreria uma viragem decisiva. Nesse, que foi dade de diretor do museu que ele teve a possibilidade de mandar copiar
o primeiro nicho institucional da História geral das bandeiras, iria se desen- valiosíssimos documentos nos arquivos ultramarinos de Portugal e da Espanha,
volver uma historiografia de forte acento regional, envolvendo as elites intelec- que tão sintomaticamente marcaram sua visão da questão do bandeirismo.
tuais do Estado em um intenso movimento de busca de origens e construção de Simbolicamente, foi ele que lá mandou instalar as monumentais estátuas dos
identidades. Nesse esforço, os sócios do Instituto, criado em 1894, transita- bandeirantes que impressionam até os nossos dias os milhares de visitantes
riam pela biografia, pela genealogia, pela pesquisa histórica e promoveriam que adentram o saguão de entrada do Museu. Elas foram inauguradas, por
uma profunda interação entre a história e a geografia, com conseqüências ocasião da comemoração do centenário da independência do Brasil, em 1922,
duradouras na historiografia paulista. Essa interação era parte do movimento com o patrocínio de Washington Luís, então governador do Estado.
de re-pensar a identidade paulista e a problemática inserção do Estado na Em 1923, seis anos depois de sua entrada na direção do Museu Paulista,
estrutura federativa. Como escreveu uma estudiosa do tema: Taunay solicitou exoneração de sua cátedra na Politécnica do Rio de Janeiro ,
a cujos quadros pertencera por 24 anos. Só em 1935 ele retomaria, por breve
Coube à geografia propiciar a reconciliação entre a nação e sua história. O discurso período, ao ensino superior oficial, dessa feita para ser o primeiro catedrático
sobre o território forneceu a moldura capaz de reenquadrar o passado, extirpando-lhe
de história do Brasil da recém-fundada Universidade de São Paulo. Ele acu-
tensões e ambigüidades que obstaculizaram a sua utilização na construção da identi-
dade [00'] a produção do espaço nacional ocupou o centro da cena, subordinando a mulou esse cargo com a direção do Museu Paulista até 1937, quando foi obri-
história, que passou a ser encarada como narrativa dos grandes feitos que assegura- gado a optar por uma das duas posições. Taunay permaneceu na direção do
ram, apesar de todas as adversidades, a posse da terra. Diante da crescente importân- Museu até a aposentadoria compulsória em fins de 1945. Na verdade, ele
cia assumida pela configuração do território, não surpreende que o trabalho mais trabalhou no gabinete, que conservou no recinto do Museu, praticamente até
festejado no Primeiro Congresso de História Nacional realizado no Rio de Janeiro em sua morte em 1958.
1914, tenha sido a Expansão Geográfica do Brasil até fins do século XVII, do histo-
A cátedra de história do Brasil da Universidade de São Paulo foi ocupa-
riador Basílio de Magalhães [00']'
da, em seguida, por outro importante historiador do bandeirismo, Alfredo Ellis,
Certos episódios da história do país, assim como seus protagonistas, ganharam espe-
cial relevo. Observa-se um esforço de reordenação que visava propiciar uma leitura do
também oriundo do Instituto Histórico, que nela permaneceu entre 1937 e 1956.
passado que infundisse confiança nos destinos da nação e colaborasse para afirmar a Em 1956, passou a Sérgio Buarque de Holanda (1956-1971) que, junto com
excelência de um povo aguerrido que soube defender seu patrimônio natural. II uma profunda renovação metodológica, manteve e desenvolveu o interesse
pelo estudo da ocupação territorial e da saga paulista.
o ano de 1911 pode ser considerado o da opção vocacional de Taunay
pelos estudos históricos e assinala sua entrada simultânea no Instituto Históri-
co e Geográfico Brasileiro e no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. CONTEÚDO E PRINCIPAIS TEMÁTICAS

11 Tania Regina de Luca, A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (n)ação (São Paulo: Unesp, Obra de análise e não de síntese, obra de reunião exaustiva de documen-
1998), p. 97. tação e de consolidação de conhecimentos, é praticamente impossível resumir

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W1LMA PERES COSTA
HISTÓRIA GERAL DAS BANDEIRAS PAULISTAS

ou sumarizar a História geral das bandeiras. Não obstante, pensamos que a coube dentro das suas fronteiras".13 Todo o discurso versa sobre o papel de
compreensão da obra e a avaliação de sua resistência ao tempo ganham com São Paulo e dos paulistas na conquista de uma enorme porção do território da
a eleição de algumas temáticas, que formam, por assim dizer, os eixos do tra- colônia portuguesa que, de outra forma, teria sido espanhol por força do Trata-
balho e que nem sempre são evidentes à primeira leitura. do de Tordesilhas. Impelidos por uma "força misteriosa", diz ele, os paulistas
Um desses eixos prende-se aos efeitos complexos da ascensão econô- insistentemente desenham, do Amazonas ao Prata, uma "fronteira natural".
mica e política do Estado de São Paulo durante a Primeira República. Com a
Eram [ ... ] os fatores do arredondamento imprescindível do Brasil meridional, e [ ... ] a
República, operar-se-ia um crescente distanciamento entre o centro político e
corrigir o erro dos descobridores e povoadores quinhentistas, que haviam aberto mão
o pólo dinâmico da economia brasileira, a partir do desenvolvimento do com- do estuário platino, a nossa fronteira natural, a anexar a área imensa hoje distribuída
plexo cafeeiro no oeste paulista, e da emergência da metropolização de São pelos nossos três Estados do Sul. I4
Paulo, ao mesmo tempo em que nela se operava o primeiro surto industrial. A
forte presença econômica do Estado se expressava de forma contundente no Do que era então a capitania de São Paulo, diz ele, "saíram sete estados
jogo político, através do exercício de uma hegemonia dificil e polêmica, que do atual território brasileiro" [ ... ] Da fronteira do Chuí à confluência do Beni e
despertava a oposição das outras unidades federadas. Por um lado, essa as- do Mamoré, os paulistas agiam com tal ímpeto que "nos dá a impressão de que
censão econômica e política teria, no plano da cultura, o mérito de despertar, o Brasil impele para as vagas do pacífico as repúblicas andinas".J5
pela primeira vez, um interesse sistemático pelos assuntos relacionados com a Assim, a ênfase que melhor caracteriza a contribuição de Afonso Taunay,
história , os costumes e a identidade de São Paulo, região que desempenhara entre os estudiosos do bandeirismo, é a geopolítica - para o autor, as bandeiras
um papel bastante secundário na dinâmica política do período colonial. Por foram importantes sobretudo por ter expandido o território da América portu-
outro, é necessário apontar que o esforço de construção de uma identidade guesa à custa do território pertencente à Espanha pelo Tratado de Tordesilhas,
paulista através da investigação histórica produziria, muitas vezes, efeitos con- dessa maneira legando à nação brasileira parcela significativa de sua dimen-
traditórios e que estariam em acentuado contraponto com as intensas transfor- são continental. Esse feito é comparado vantajosamente com o processo de
mações que se operavam na economia e na sociedade da regiãoY constituição territorial dos Estados Unidos da América e da Rússia, procuran-
A História geral das bandeiras expressa de forma contundente esse do demonstrar a grandeza maior do feito bandeirante em razão da insalubrida-
esforço de forjar uma identidade capaz de operar em um universo de contras- de do meio e da resistência indígena.
tes e paradoxos. A tônica principal da obra é o papel primordial atribuído aos Nesse particular, vale a pena observar que o esforço de Taunay signifi-
sertanistas da capitania de São Paulo, na incansável exploração que resultou cou uma mudança importante no sentido que a historiografia do século XIX
na ampliação do território da América portuguesa para as dimensões continen- atribuía à questão da extensão e da unidade territorial brasileira. Na historiografia
tais que foram legadas à nação brasileira. Essa tônica estaria presente já em que tinha suas raízes em Varnhagen, a "invenção" do território aparecia sobre-
seu discurso de posse nos quadros do Instituto Histórico e Geográfico de São tudo como obra da Coroa portuguesa, assim como a consolidação e manuten-
Paulo, e a ela Taunay permaneceria fiel durante toda a sua vida. Conforme ção da unidade territorial do Brasil independente aparecia como obra da
afirmava sugestivamente em seu discurso de posse no IHGSP, "nunca S. Paulo monarquia e da continuidade dinástica. É essa também a interpretação que
está consagrada na visão do visconde de Taunay, em A retirada da Laguna.
Naquele romance, a saga da penetração do sertão e da defesa do território
12 o interesse pela vida intelectual paulista nesse período tem dado lugar a estudos valiosos.
Ver, por
exemplo, Katia Maria Abud, O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições - a construção de
um símbolo paulista - o bandeirante, tese de doutorado, São Paulo, FFLCH da USP, 1985;
11 Afonso d'Escragnolle Taunay, "Discurso de posse no Instituto Histórico e Geográfico de s.
Antonio Celso Ferreira, A epopéia paulista, imaginação literária e invenção histórica (1870-
Paulo", em Revista do IHGSP, vol. XVII, São Paulo, 1912, Tipografia Diário Oficial, pp. 97-99.
1940), tese de doutorado, Assis, Dep. História, FFCL da Unesp, 1998; e Antonio Celso Ferreira
14 Ibidem.
et aI., Encontros com a história: percursos historiográficos e historiadores de São Paulo (São
II Ibidem.
Paulo: Unesp/Fapesp/ ANPUH, 1999).

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HISTÓRIA GERAL DAS BANDEIRAS PAULISTAS WILMA PERES COSTA

deve-se à coragem quase insana dos jovens militares, enquanto agentes da Subordinada ao tema da expansão territorial e inseparável dela, como
missão civilizadora do Estado imperial. A tragédia que acompanhou a aventu- sua motivação principal, encontra-se a caça ao elemento indígena e sua
ra, mal grado a fé monarquista do visconde, pode ser considerada como um escravização. Assim, embora a expansão territorial seja, para Taunay, a mais
prenúncio da crise do Estado monárquico. importante resultante da saga dos sertanistas vicentinos, em nenhum momento
Para Afonso Taunay, os fautores do território foram os colonos, isto é, os ele procura elidir o fato de que sua motivação principal foi a escravização do
sertanistas paulistas e, muitas vezes, fizeram-no em franca desobediência aos índio. Pode-se dizer que os sete primeiros volumes da História geral das
ditames da metrópole. Segundo ele, o principal feito do bandeirismo para a bandeiras tratam principalmente do "ciclo da caça ao índio", enquanto os
formação territorial do Brasil foi que, embora não tenha tido um caráter povoador, quatro últimos tratam da busca do ouro e dos conflitos em tomo da mineração.
ao enfrentar e destruir as reduções jesuíticas sob jurisdição espanhola, a saga Os motivos, as técnicas, os conflitos políticos e religiosos da escravidão
bandeirante empurrou a fronteira política em busca de uma suposta "fronteira indígena são minuciosamente tratados, com base nos cronistas do século XVIII,
natural". na documentação jesuítica e espanhola, nos documentos da Câmara de São
A valorização do papel de São Paulo na expansão territorial do Brasil Paulo, nos inventários e testamentos.
vinculava-se também a uma questão contemporânea de Taunay e de seus A aguerrida população do planalto paulista engajava-se na sua incessan-
companheiros na construção do "ciclo das bandeiras". Conforme a citação de te busca da mão-de-obra escrava do índio, para uso em suas lavouras ou para
Rui Barbosa, que abre o segundo tomo da História geral das bandeiras comercialização naquelas regiões que não podiam dispor de recursos para a
paulistas, mão-de-obra africana, muito mais cara. Para tanto, não se furtou ao enfren-
tamento com as ordens metropolitanas, com a permanente oposição dos jesuí-
Não fora o valor e o arrojo desses caçadores de homens [ ... ] e a costa do Brasil ao sul tas e com as autoridades espanholas. A independência dos paulistas coloniais,
do Paranaguá seria hoje espanhola, espanhóis veríamos os sertões de Mato Grosso e sua ferocidade, seu caráter indomável, podem ser considerados como um ou-
Goiás, outro povo ocuparia as nossas melhores zonas, respiraria os nossos ares mais tro importante tema, recorrente em toda a obra. O terceiro volume, por exem-
benignos, cultivaria as nossas mais desejadas terras. 16
plo, reconstitui minuciosamente os conflitos de paulistas e jesuítas entre 1640 e
1653 e o papel que tiveram os sertanistas em sua expulsão e posterior
Ao longo da Primeira República, através da expansão da malha ferroviá-
readmissão. Assim, tema também particularmente caro a Taunay é a rebeldia
ria, a economia paulista conectava-se e integrava-se com as províncias/esta-
e independência da Câmara Municipal de São Paulo, capaz de desafiar as
dos contíguos, em particular, com o Paraná, Mato Grosso e Minas Gerais. Na
autoridades do Estado e da Igreja. No caso dos tumultos de 1640, quando os
esteira dessa expansão processava-se um intenso movimento de apropriação
paulistas expulsaram os jesuítas de São Paulo em retaliação à oposição dos
de terras devolutas, freqüentemente à margem dos procedimentos legais.
padres à escravização dos indígenas e que resultou na excomunhão coletiva
Nesse particular ganham interesse suas múltiplas citações de Oliveira
dos paulistas,18 ele mostra que as principais famílias estavam contra os jesuí-
Viana, autor que primara por engrandecer a aproximação mítica entre os ban-
tas, embora se devesse a Fernão Dias Pais a defesa e o retomo dos padres em
deirantes do passado e os fazendeiros paulistas seus contemporâneos que,
1653. Na raiz do episódio, estaria a origem de uma das mais terríveis lutas de
precedidos pelos "bugreiros" e pelos "grileiros", faziam avançar a fronteira
família ocorridas na capitania, travada entre os Pires e os Camargos e que
agrícola de São Paulo na direção antes palmilhada pelos sertanistas. 17
veio a custar a vida de Pedro Taques.
A rebeldia paulista convivia, na interpretação de Taunay, com a inques-
tionável adesão à lusitanidade, expressa no controvertido episódio da aclama-
16 Afonso d'Escragnolle Taunay, "Epígrafe", em História geral das bandeiras paulistas, cit., tomo
II, p. I.
17 Cf. F. J. de Oliveira Viana, Evolução do povo brasIleiro (2 1 ed. São Paulo: Nacional, 1933), pp.
114-116. Ver Ligia Maria Osório Silva, Terras devolutas e latlfiíndio: efeitos da lei de 1850, 18 Afonso d'Escragnolle Taunay, "Epígrafe", em História geral das bandeiras paulistas, cit., tomo
capítulo XV (Campinas: Unicamp, 1996). III, pp. 25-29.

lOS 109
HISTÓRIA GERAL DAS BANDEIRAS PAULISTAS WILMA PERES COSTA

ção de Amador Bueno. Ainda no terceiro volume Taunay faz uma apaixonada Entretanto, a precoce "fabricação" da nação é obra dos colonos e não da
defesa da veracidade da versão apresentada por frei Gaspar da Madre de administração colonial. Nela ressalta também a superioridade do sul sobre o
Deus. Segundo o cronista, Amador Bueno foi aclamado como rei pelos paulistas norte, como verdadeira matriz nacional. Veja-se, por exemplo, essa citação do
na crise que se sucedeu à restauração da Coroa portuguesa em 1640. Deixa, historiador Oliveira Martins feita com destaque por Taunay, como uma síntese
porém, de aceitar a coroa, por lealdade à causa portuguesa. A análise do epi- de seu pensamento.
sódio desenvolvida por Taunay busca superar seus aspectos pitorescos, para
localizá-la historicamente, tendo por referência a gama de clivagens que se o sul, onde o regime de colonização livre era dominante, progredia mais segura,
abria a partir da restauração da Coroa portuguesa. Apesar da manifestação de embora menos opulentamente, do que as colônias do litoral do norte. No sul, desen-
lealdade à cultura lusitana, vis-à-vis a cultura hispânica, o episódio viria a ex- volviam-se de um modo espontâneo os elementos de uma nação futura; enquanto o
norte, sujeito a uma administração corrupta e meticulosa, dependente da introdução
pressar uma espécie de primeira tentativa de autonomia em relação à Coroa,
dos negros e de uma cultura exótica, pagava a opulência com uma vida menos estável ,
dando a São Paulo uma precoce vocação antimetropolitana. 19 Trata-se de tese
uma população menos homogênea. Sem exagerar demasiado o valor desta expressão,
cara também a Alfredo Ellis, para quem o episódio de Amador Bueno repre- pode dizer-se que, pelos fins do século XVI, a região de S. Paulo apresentava os
senta sinal do independentismo paulista insuflado pelo surto bandeirista. rudimentos de uma nação: ao passo que a Bahia e as dependências do norte eram uma
A visão que Taunay nos apresenta sobre o século XVII, fortemente inspira- fazenda de Portugal naAmérica n
da em Capistrano de Abreu, sublinha a pobreza e dificuldade da metrópole portu-
guesa, cujo império desmoronava. Aponta também para os novos problemas Aqui também é impossível não notar o interesse em sublinhar a vocação
trazidos para a Colônia pelo domínio espanhol. A administração passava a estar a a um tempo autônoma e hegemônica de São Paulo, estado que vinha mantendo
cargo de um rei mais distante, ao mesmo tempo em que adquiria os inimigos da uma posição privilegiada no pacto federativo desde a proclamação da Repúbli-
Espanha, sendo vitima da invasão holandesa. Nesse panorama de dificuldades a ca, posição que precisamente começava a sofrer sérias contestações ao longo
saga bandeirante ganha o sentido de um "destino manifesto". A dilatação além da década de 1920.
Tordesilhas do território da Colônia, o rechaço do espanhol, a permanência da Temos tentado apontar como, buscando responder a esse conjunto de
lealdade à Portugal durante o domínio hispânico, ganham, para Taunay, um signi- desafios, a militância intelectual de Taunay procurava, através do estudo das
ficado transcendente: a origem de um sentimento difuso de brasilidade, apesar da bandeiras, consolidar uma identidade paulista para consumo interno e para ser
pobreza da capitania, ponto em que concorda com Alcântara Machado.:O reconhecida em suas reivindicações hegemônicas do estado. Um dos planos
A fidelidade a Portugal no momento da restauração ganha ainda maior mais controvertidos desse esforço é a sua forma de abordar a questão racial,
importância porque Taunay, ao comparar as duas formas de colonização ibéri- tema inevitável no pensamento brasileiro contemporâneo a Taunay.
ca, inclina-se vivamente pela superioridade da colonização portuguesa, enca- Graças a um ativo tráfico interno de escravos, que coincidiu com a ex-
recendo nela a maior tendência ao acordo e à cordialidade, enquanto as pansão da cultura cafeeira na segunda metade do século XIX, a província de
dissensões seriam mais próprias do sangue espanhol: São Paulo veio a tornar-se, a partir da década de 1870, uma das maiores con-
centrações escravistas do Brasil. Esse fato não impediu que, no que era então
Em suma os caracteres diferenciadores da conquista espanhola e portuguesa são, de a região oeste (arredores da cidade de Campinas), se iniciassem, já em mea-
um lado, entre os castelhanos, terríveis dissensões entre os conquistadores que se dos do século XIX, as primeiras experiências com o trabalho de imigrantes
digladiam e se exterminam com uma ferocidade terrível, ao passo que entre os portu-
europeus. A partir da década de 1880, um processo de atração maciça de
gueses, como em toda parte do mundo, aliás, praticaram, há muito mais acordo de
imigrantes europeus, subsidiado pelos recursos públicos, fez com que também
vistas, incomparavelmente mais disciplina e cordialidade 21
se localizasse em São Paulo a maior concentração de estrangeiros, atingindo o
ápice nas vésperas da Primeira Guerra Mundial. Cessado a partir da guerra o
19 Ibid., pp. 45 e ss.
lO Ibid., tomo I, pp. 43 e ss.
li Ibid., p. 49. u Ibid., p. 35.

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fluxo de migração européia, o estado de São Paulo passaria, na década de que, mesclados aos primeiros, propiciaram um caldeamento original. Esse
1920, a ser o principal pólo da atração de migrantes internos. Esses fatos fize- caldeamento seria responsável pela virilidade, pelo caráter prolífico, pelo espí-
ram com que a transição para o regime de trabalho livre em São Paulo impli- rito de iniciativa e aventura dos habitantes do planalto.
casse um intenso caldeamento de etnias e costumes. No capítulo II, ele incorpora francamente as posições de Oliveira Viana
Nesse sentido, não deixa de ser digna de nota a atitude francamente na questão dos diferentes caldeamentos raciais que caracterizam as várias
defensiva em relação ao acelerado ritmo das mudanças que se desenvolveu no regiões do BrasiJ.23 Esse autor, baseado provavelmente nos equívocos de Pedro
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e ao qual Taunay não foi de todo Taques, ~4 aponta elementos de origem germânica nas populações do norte de
imune. O Instituto passou a desenvolver um interesse precisamente por aque- Portugal, de onde teriam se originado os primeiros colonizadores. Essa ascen-
les aspectos do passado que contrastavam com as transformações em curso. dência é que traria, no passado, o espírito de aventura, a busca incansável de
Enquanto o estado passava a ser povoado pelos mais diferentes tipos de ad- novos horizontes, que se perdeu depois com a sedentarização e com o influxo
ventícios e começavam a despontar as primeiras fortunas de imigrantes, esse das gerações subseqüentes, onde teria vindo o elemento de tez morena, oriun-
interesse voltava-se para os estudos genealógicos, para a valorização da do das classes populares.~5
nobiliarquia, para a recuperação das tradições de uma pretensa época heróica, Taunay parece oscilar, no início da obra, entre as duas versões da expli-
algumas vezes com acentuado conteúdo racista. Procurava-se principalmente cação racial- a que enfatiza a Superioridade e ascendência germânica e aque-
sublinhar o fato de que a escravidão africana estivera ausente da região no la que valoriza a miscigenação euro-americana. Nos volumes publicados depois
passado colonial e de que o seu povoamento se fizera por homens de origem da década de 1930, a idéia da virtude da miscigenação ganha mais força. O
lusa que se haviam miscigenado com os ameríndios, gerando um raça prolífica, tipo paulista, segundo Taunay, é o mameluco, misto de branco e índio. Essa
caracterizada pela bravura, pelo espírito de aventura, e pela altivez. mescla nem sempre era obtida pela violência. Usando fundamentalmente as
Se destacarmos Alfredo Ellis Jr., Afonso Taunay e Alcântara Machado fontes jesuíticas nesse particular, Taunay enfatiza o afogueamento erótico dos
como os mais importantes estudiosos do bandeirismo, tal como o tema emergiu portugueses pelas índias, mas também a franca correspondência destas, por-
para a intelectualidade paulista da década de 1920, devemos colocar os dois que, diz ele, elas queriam ter filhos de "raça superior". ~6
primeiros autores como aqueles que visualizaram o bandeirismo como saga e Na defesa da importância de seu objeto, Taunay contrapõe-se aos histo-
como epopéia, em franco contraste com Alcântara Machado, cujo trabalho, riadores que o antecederam e que, no estudo do século XVII, estiveram preo-
explorando a vida cotidiana de São Paulo durante a Colônia busca precisamen- cupados apenas com a expulsão dos holandeses ou com tediosas questões
te despir a figura do bandeirante de sua roupagem épica, apontando para a administrativas, fazendo uma "história da costa", uma "história litorânea",
extrema pobreza das condições de vida na capitania de São Paulo naquele omitindo a conquista do sertão onde se operava persistente e silenciosa cons-
período. Alfredo Ellis Jr. parece ter representado a vertente historiográfica trução da futura nação.
mais conservadora no estudo do tema, particularmente no que se refere à Embora em nenhum momento procure ocultar o caráter atroz e violento
busca de explicações de caráter étnico para uma suposta Superioridade pau- da conquista e da escravização indígena, Taunay polemiza com os autores que
lista no conjunto da nação brasileira. condenaram o bandeirismo com razões humanitárias. Ele é particularmente
Ao longo dos 27 anos de sua publicação, a História geral das bandei-
ras transitou entre os dois pólos e procurou uma forma de composição entre
l3 Ibid., tomo I, pp. 117-121.
eles - a epopéia paulista não perde o seu brilho por ter se desenvolvido em um
24 Pedro Taques caracterizara-se por valorizar, nos habitantes do planalto paulista do século XVII,
meio inóspito, pobre e austero. Antes, ganha significado ainda mais valioso. a pureza racial e a ascendência nobre, enquanto frei Gaspar da Madre de Deus, ele mesmo um
Os três primeiros volumes, publicados na década de 1920, são os que mestiço mameluco, atribui vantagens à mestiçagem indígena e à capacidade desta em fortalecer
o sangue dos reinóis. Cr. Katia Maria Abud, O sangue intimorato e as nobIlíSSImas tradições - a
estão mais fortemente impregnados da temática racial. Sua preocupação é a
construção de um símbolo paulista - o bandeIrante, cit., p. 92.
de encontrar a especificidade étnica da população paulista, tanto no que se " Afonso d'Escragnolle Taunay, História geral das bandeiras paulistas, cit., pp. 121-122.
refere ao tipo de reinóis que nela vieram habitar, como aos grupos indígenas ,. Ibid., p. 127.

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impiedoso com Handelmann por ter se referido ao bandeirismo como "mancha


,.
~.

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Embora a expansão territorial fosse, no entender de Taunay, a contribui-


negra da história do Brasil". Taunay critica o que ele chama de "hipocrisia" ção mais relevante feita pelos bandeirantes paulistas à nação brasileira, ele
dessa observação, apontando as atrocidades produzidas pelos povos europeus encontra os vicentinos em praticamente todos os momentos fundamentais da
na mesma época em que se desenvolvia a saga bandeirante, e também as formação da nacionalidade: na expulsão dos franceses, no auxílio aos
atrocidades contemporâneas como a corrida imperialista do final do século pernambucanos contra os holandeses, na derrota do Quilombo de Palmares,
XIX e a Primeira Guerra MundiaP7 Naquele conflito, tinham-se batido por no aniquilamento das revoltas indígenas, da mesma maneira que sublinha o
suas respectivas identidades e vontade de poder povos que haviam, durante as papel de São Paulo no processo de independência, nas guerras platinas e na
últimas décadas do século XIX, conquistado e subordinado impiedosamente as Guerra do Paraguai.
etnias mais fracas na África e na Ásia. Nesse particular, a polêmica mostra-se O oitavo volume, publicado em 1946, quase uma década depois do séti-
inserida também no campo de debates que a Primeira Guerra Mundial trouxe- mo, dedica-se principalmente ao papel de Domingos Jorge Velho na destruição
ra à tona de forma exacerbada: identidade étnica, nacionalidade e fronteira do Quilombo de Palmares. Para tanto, realiza minucioso estudo do tráfico afri-
natural. Ao mesmo tempo, como Taunay insiste em sublinhar, mesmo em uma cano e da concorrência estabelecida entre a escravidão indígena e a africana.
obra cristã e civilizadora como a dos jesuítas encontra-se uma pretensão de Ele mostra como o Brasil veio a se tornar, durante o século XVII, o centro do
poder: o desejo de fundar um Estado teocrático. Atrozes foram também os contrabando negreiro espanholY Essa posição tendia a acirrar a oposição dos
holandeses e os franceses, sendo os últimos até mesmo acusados de canibalis- paulistas à política jesuítica, porque a mão-de-obra africana era muito mais
mo no Brasil. Listando atrocidades que iam da colonização às guerras de reli- cara, valendo então o africano dez, quinze e vinte vezes o preço de um índio. 3:
gião, das guerras napoleônicas aos horrores da frente ocidental durante a Além disso, a política jesuítica teria o efeito de agir em favor dos desígnios
Primeira Guerra, Taunay buscava contextualizar a questão da violência da metropolitanos ao apoiar o tráfico negreiro, que gerava lucros para a metrópo-
conquista e lidar com a "má consciência" inerente à temática que escolheu. le, em detrimento do tráfico indígena, empresa dos colonos.
Ele busca mesmo relativizar a atitude de portugueses e espanhóis peran-
te a escravidão e os escravizados, por contraste com franceses e ingleses. As leis sobre a liberdade dos índios, inspiradas pelos jesuítas, sobretudo a de 1609,
indignavam os colonos do Brasil que se não conformavam com a proibição de escra-
Para isso, apóia-se no naturalista francês Jacquemont, para quem: "O inglês e
vizar os indígenas de acordo com as normas sem peias do cativeiro negro. Revolta-
o francês [ ... ] exploraram o negro e têm-lhe asco. O espanhol e o português
vam-se contra a obrigação de comprarem africanos. JJ
igualmente o exploram mas nem de longe o desprezam assim".28
A despeito das conotações racistas, vale notar que, ao colocar a escravi-
Nesse volume, Taunay desenvolve importante análise sobre os efeitos da
dão no centro de sua análise, Taunay teve o mérito de apontar a relação pro-
guerra contra os holandeses na interrupção do tráfico africano apontando, com
funda entre colonização e trabalho compulsório, mostrando as várias formas
acuidade, o esforço dos holandeses em controlar os centros de tráfico na Áfri-
de escravidão indígena na América espanhola e portuguesa, tema que vem
ca e a relação desse fato com a possibilidade de manutenção de sua colônia na
sendo redes coberto pela historiografia brasileira.:9 América. 34
Também é seu mérito estabelecer a relação entre escravidão e formação
A inevitabilidade do tráfico africano associa-se, para Taunay, à forma de
territorial, em dimensão até então não tratada entre nós, mesmo quando afirma colonização que se estabelecera no norte da Colônia - a plantation tropical.
que a escravidão foi "o preço a pagar pelo Brasil".30
De seu desenvolvimento no século decorre o aumento da população escrava e

27 Ibid., pp. 57-61. li Ibid., tomo VIII, pp. 1-11.


li Ibid., p. 101. II Ibid., p. 36.
19 Para um tratamento atual da temática, ver John Manuel Monteiro, Negros da terra: índios e 11 Ibid., p. 14.
bandeirantes nas origens de São Palllo (São Paulo: Cia. das Letras, 1995). .. Ibid., pp. 20-21. Sobre os esforços holandeses para estabelecer um fluxo africano de mão-de-
lO Afonso d'Escragnolle Taunay, História geral das bandeiras palllistas, cit., p. 101. obra para a América, ver pp. 23-31.

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o aparecimento de quilombos e mocambos. 35 Em contraste com a influência E, mais adiante, ao afirmar que Palmares infundia terror não apenas na
indígena, na qual ele via um ingrediente aperfeiçoador da raça européia na sua colônia, mas entre os mais importantes cronistas europeus de seu tempo, afir-
adaptação ao trópico, Taunay procura minimizar a influência da cultura africa- ma que,
na. A citação que ele faz aqui é de Capistrano,
bem se compreende a causa de tal sentimento: representava a rebeldia palmarense o
Na antropogênese brasileira são fatores desiguais que contribuíram em proporções foco principal de movimento que se se alastrasse poderia não só subverter completa-
muito diversas para a elaboração do nosso povo. De modo geral (os africanos) não mente a economia colonial como provocar o trucidamento total da raça dominadora. 39
trouxeram mais que o concurso biológico e a função econômica de incomparáveis
trabalhadores tropicais. 36
É nesse sentido que, mais uma vez, foi o concurso dos paulistas, na
figura de Domingos Jorge Velho, que garantiu a derrota de tão grande amea-
Se, para ele, a escravidão é inseparável de nossa história, porque ela é
ça, fato que cerca o bandeirante paulista de uma aura mítica que suplanta
uma decorrência da colonização, cremos não violar seu pensamento se afir-
todos os traços de sua inquestionável ferocidade. Vale a pena reproduzir aqui
marmos que os efeitos da escravidão indígena (fonte do bandeirismo) parecem
a maneira como Taunay traceja essa que é, talvez, a mais expressiva figura
ser antagônicos aos da escravidão africana (base da plantation). A primeira é do bandeirismo paulista:
integradora, ajuda a forjar a raça e a nação. A segunda é fragmentadora e
coloca em risco a própria possibilidade da nação. Exemplo disso é a análise Homem de ferro, no gosto daqueles terríveis merovíngios dos primeiros séculos da
feita do processo de combate ao Quilombo de Palmares, que aparece como a conquista franca das Gálias, e de quem tão impressivo perfil traçou Thierry, figura
mais terrível ameaça sofrida pelo projeto europeu no trópico, contra a qual Domingos Jorge Velho entre as personalidades mais eminentes do ciclo das bandeiras.
haviam sido mal-sucedidos os holandeses e a administração colonial. Ele la- Em enorme região brasileira o seu nome permanecerá indestrutivelmente ligado aos
menta, portanto, um certo "revisionismo" republicano, que procurava resgatar fastos primevos locais, em área que abrange centenas de milhares de quilômetros
quadrados. Delimitam-na o Parnaíba e o Poti, o Rio Grande e o Rio Preto, o curso do
elementos heróicos na experiência de Palmares.
S. Francisco da Barra do Rio Grande à foz do poderoso caudal. Compreende o interior
das terras alagoanas e pernambucanas, parai banas e rio-grandenses, baianas, cea-
o abrandamento do espírito de contenção que o abolicionismo trouxe ao Brasil, renses e piauienses.
provocou forte onda de simpatia pela sina dos míseros re-escravizados de Palmares,
Fez daquela vastidão o teatro das suas expedições topando bandeiras a conquistar o
tanto mais quando, ao mesmo tempo, acompanhou-a justa admiração pelo denodo da
gentio brabo tapuia. Combateu anos a fio no vale do Açu e nas terras palmarenses,
resistência negra e o nobre sacrificio dos chefes, preferindo o suicídio ao cativeiro. O
estabelecendo os marcos de futura civilização em tão dilatada terra. O imperativo da
republicanismo então intenso ainda mais exaltou tais sentimentos entre os apologistas
crueldade foi lhe exigido pela inevitabilidade das condições da empresa a que se
da existência da Tróia negra e verberadora de seu extermínioY
abalançara, contribuindo para construir o patrimônio futuro da sua Nação com a
inquebrantabilidade da constância.
Ele se vale de Nina Rodrigues para condenar tal atitude, para quem,
Foi inegavelmente dos maiores índices de energia de sua grei euro-americana. Operou
"acima [... ] desta incondicional idolatria pela Liberdade deve pairar o respeito em terra como os antepassados de sua gente haviam feito, como bem lembra Ernesto
pela cultura e a Civilização" e concluir que "[ ... ] Serviço relevantíssimo foi Ennes, "na proa das naus, no alto das enxárcias, no cimo das vergas", através dos
pois o do nosso governo colonial, tenaz e previdente, destruindo de vez a maior mistérios tenebrosos dos oceanos.
das ameaças jamais havidas à civilização e ao futuro do Brasil numa situação Era um soldado da conquista lusa, sucessor daqueles vassalos das jornadas do Oriente
que a subsistência de Palmares teria implantado". 38 que haviam devastado as terras viciosas de África e Ásia em campanhas cruéis de
presa e apossamento.

II Ibid., pp. 45-53. No solo americano esses mesmos vassalos devassavam a Selva [ ... ]
,. Ibid., p. 50.
n Ibid., p. 83.
JS Ibidem. " Ibid., p. 82.

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Cruel não poderia Domingos Jorge Velho deixar de ser, como todos os componentes agora recuperar a sua pureza pela progressiva arianização trazida pela imigra-
daquela revoada de geri faltes de que nos fala José Maria de Heredia, despenhada das ção européia. De outro lado, a espantosa expansão da cultura cafeeira, muitas
terras ibéricas sobre o Novo Mundo, cansada de suportar a altiva miséria de seu vezes na mesma direção palmilhada pelos sertanistas (e depois pelas ferrovias
carneiro natal e esperando, em contínua vigília, que cada dia a vir fosse o de um embate paulistas) - Paraná, noroeste do estado em direção a Mato Grosso e Minas
épic0 40 Gerais -, ganhava contornos épicos ao evocar um passado ilustre de conquista
do sertão e incorporação de território, realizadas por homens que desafiavam a
o que valoriza sobremaneira sua obra é a constatação de que o entusias- Igreja e, se necessário, o próprio Estado metropolitano.
mo pela "epopéia paulista" não obscureceu, em Taunay, o verdadeiro culto
O mito bandeirante é dotado de uma extrema plasticidade como apontou
pelo documento e a busca incansável por novas evidências documentais.
uma especialista no assunto. 43 Esse personagem parece estar sempre destina-
Esse estilo de trabalho manifestava-se já em sua profissão de fé de histo-
do a conciliar os opostos, por exemplo, região (regionalismo) e nação; misci-
riador feita nas páginas da revista do Instituto, genação/pureza racial; particularidade do paulista e integração nacional.
Os processos de construção do Estado, nos países que emergiram para
[ ... ] é a sombra a grande inimiga do historiador. O melhor modo de fazer apologética
é ainda dizer a verdade, toda a verdade, nada mais que a verdade [ ... ] a História se faz
a vida independente a partir de situações coloniais, envolvem sempre movi-
com os documentos, os atos cujos vestígios materiais desapareceram estão para ela mentos de ruptura, de continuidade e, em particular, de "reinvenção" daquele
perdidos, e quando muito, podem concentrar-se no domínio das reminiscências cole- passado. Pensamos o período colonial às vezes como "fardo", outras como
tivas [ ... ]41 "legado". No caso brasileiro, a despeito da propalada "vocação unitária" de
suas partes constituintes, a extensão continental, as profundas diversidades
o apoio em farta documentação não é, porém, suficiente para garantir a regionais e, sobretudo, a escassa integração econômica entre as regiões aju-
qualidade do trabalho do historiador. É preciso policiar-se, como ele dizia no daram a imprimir uma dinâmica conflitiva entre as partes (províncias/esta-
mesmo artigo, contra os preconceitos do presente dos) e o centro político.
Por essa razão, a questão das "identidades regionais" e da "identidade
[ ... ] Muito dessemelhantes são as coisas do passado das que vimos e vemos; pouco nacional" afeta os historiadores de modo peculiar, incidindo sobre as relações
estuaram em nós os sentimentos de outras épocas [ ... ] os séculos transformaram
entre a história como disciplina e a sedimentação de representações coletivas.
fundamentalmente o conjunto das idéias que formam o caráter nacional ou o caráter de
Na sua permanente (e às vezes inglória) batalha contra as armadilhas do ana-
uma época [ ... ]42
cronismo, ajudam a fabricar ideários, cujos usos políticos estão longe da ino-
Não obstante as dificuldades em manter-se fiel a este último princípio, cência. 44 Identidades nacionais e regionais, em particular, são ferramentas de
devemos sublinhar alguns aspectos, dentre os muitos, em que esta obra sobre- inclusão e exclusão - elaborando um sentimento do "nós" versus "os outros" ,
viveu ao tempo. Em suas variadas dimensões, a temática bandeirante adequa- com efeitos quase sempre conservadores, que podem mesmo chegar a ser
va-se de maneira privilegiada à busca de forjar um "destino manifesto" para o dramáticos.
estado de São Paulo que, com algumas mutações, ainda permanece vivo em Um esforço fecundo vem sendo desenvolvido entre os historiadores bra-
nossos dias. O bandeirante, fruto da miscigenação entre o europeu e o sileiros travando um acerbo combate contra uma forma particular de anacro-
ameríndio, produzia uma espécie de passado "eugênico", que, interrompido
pela afluência de sangue africano na segunda metade do século XIX, vinha 43 Katia Maria Abud, O sangue intimorato e as nobilíSSImas tradições - a construção de um
símbolo paulista - o bandeirante, cit.
.. Cf, por exemplo, E. Hobsbawm & Terence Ranger, A invenção das tradições (Rio de Janeiro/
São Paulo: Paz e Terra, 1985); e E. Hobsbawm, Nações e nacionalismo desde 1780 - programa.
'" Ibid., p. 213. mito e realidade (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991). Em uma direção distinta, ver Benedict
41 Afonso d'Escragnolle Taunay, "Os princípios gerais da moderna crítica histórica", em Revista do
Anderson, Nação e consciência nacional (São Paulo: Ática, 1989); Stephen Bann, As invenções
IHGSP, vol. 16, São Paulo, pp. 225 e ss.
da história: ensaios sobre a representação do passado (São Paulo: Unesp, 1994).
42 Ibidem.

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nismo: aquele que resulta em conceber o Estado nacional brasileiro precoce-


TrI WILMA PERES COSTA

:~,~ ,
A .História geral das bandeiras paulistas é referência obrigatória para
mente prefigurado nos movimentos sociais e políticos do passado colonial. 45 a pesqUlsa sobre a questão da escravidão indígena. Em sua busca exaustiva de
Sob essa ótica, um profundo anacronismo perpassa a História geral das ban- documentação e em extensas transcrições a obra permite uma visão bastante
deiras de Afonso Taunay. O destino manifesto de São Paulo está prefigurado acurada do processo de apresamento e tráfico dos índios, das diferenças da
na dinâmica da capitania no período colonial como se os bandeirantes, em sua legislação sobre a escravidão na América portuguesa e espanhola, nas nuances
feroz caçada humana, pudessem antever a obra de construção da nacionalida- de posições entre as distintas ordens religiosas, na especificidade do "projeto"
de em que estavam envolvidos. jesuíta de catequese. A obra é muito importante também para os estudiosos
Hoje parece consensual na historiografia que, ocupadas primordialmente das dimensões políticas no período colonial- relações Igreja/metrópole/coloni-
com a caça ao índio, as bandeiras não ocuparam, não povoaram e, sobretudo, zação; relações centro administrativo/autonomia das câmaras municipais. Para
não poderiam orientar-se pelo território de uma nação inexistente. É evidente, o leitor atual, entretanto, pode-se dizer que esse trabalho ajuda sobretudo a
entretanto, que sua ação, sua presença, suas razias nas reduções jesuíticas sob compreender os paradoxos de nossa construção nacional. Assim, sua contri-
a coroa espanhola foram fundamentais no jogo diplomático português quando buição mais relevante, embora isso signifique freqüentemente ler essa obra em
em 1750 o Tratado de Madri negociava as fronteiras da América portuguesa sinal contrário, é a de estabelecer o nexo perverso entre colonização e escra-
utilizando pela primeira vez o recurso ao princípio diplomático do uti possidetis. vidão e entre escravidão e construção do território em nossa história.
Que as fronteiras assim garantidas eram bastante vulneráveis demons-
trou-o toda uma seqüência de conflitos na região platina, culminando, em 1865-
1870, com a Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai. Nesse momento, o
sertão e os sertanistas voltam a povoar os debates historiográficos, abrindo um
ciclo que incorporava também a crise e transformação do Estado imperial e
que se prolongaria pelo período republicano, quando a temática do sertão ga-
nhará toda a força contraditória de seu desafio à efetiva formação da naciona-
lidade.
Em Taunay, essas múltiplas dimensões estão superpostas a serviço de
uma militância intelectual e política específica: a busca de um destino manifes-
to para São Paulo. Olhada como testemunho de uma época, sua obra é a
expressão desse processo de formação de uma identidade pela elite paulista,
para com ela convencer o conjunto da nação. Essa problemática, em uma
época em que a globalização traz consigo, contraditoriamente, a exacerbação
das diferenças, não pode ser considerada ultrapassada.

4, Ver. por exemplo, Luciano Figueiredo, Revoltas, fiscalidade e identidade colonial na América
portuguesa, tese de doutorado (São Paulo: FFLCH da USP, 1996); István Jancsó, "A construção
dos Estados nacionais na América Latina, apontamentos para o estudo do Império como Proje-
to", em Tamás Smerecsányi, J. R. A. Lapa, História econômica da Independência e do Império
(São Paulo: Hucitec/Fapesp, 1996); Márcia R, Berbel, A nação como arte[ato: deputados do
Brasil nas cortes portuguesas, 1821-1822 (São Paulo: Hucitec/Fapesp, 1999), p, 193; Iara L. C.
Souza, Pátria coroada: o Brasil como corpo político autônomo (São Paulo: Unesp, 1999);
Rogério Forastieri da Silva, Colônia e nativismo: a história como "biografia da nação" (São
Paulo: Hucitec, 1997).

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ALCÂNTARA MACHADO

Vida e morte do bandeirante

Laura de Mello e Souza


NOTA SOBRE O AUTOR

José de Alcântara Machado e Oliveira nasceu em Piracicaba em 19 de


outubro de 1875, pertencendo a uma família antiga, rica e muito intelectualizada
da província de São Paulo - à elite, na plena acepção do termo. Seu pai era
Brasílio Machado, seu avô, o brigadeiro J. J. Machado de Oliveira, e em 1901
nasceria seu filho Antônio, um dos mais promissores intelectuais do modernis-
mo paulista, autor de Brás, Bexiga e Barra Funda, companheiro querido e
admirado de homens como Mário de Andrade e Manuel Bandeira, desapareci-
do em 1934 após uma crise de apendicite aguda.!
Alcântara Machado, o historiador, era, de fato, jurista, advogado e políti-
co. Formou-se na escola do Largo de São Francisco, da qual foi professor e
diretor; elegeu-se vereador, deputado estadual e por fim deputado federal. Es-
creveu muitos livros de direito, e era conhecido, em seu tempo, como homem
público e profissional das leis. Mas foi o seu pequeno Vida e morte do bandei-
rante, aparecido em 1928, que o levou à Academia Brasileira de Letras, em
1931, e lhe granjeou admiração, causando certo impacto na época tanto pela
originalidade do tratamento dado ao assunto quanto pela extraordinária lin-
guagem, simples e plástica.~

1. Os INVENTÁRIOS

Em 1907, Capistrano de Abreu traçara um vasto painel do Brasil em


Capítulos de história colonial: livro de síntese, em que se destacam as linhas
de força e os nexos de nossa história, realçando-se pela primeira vez os pro-
cessos de ocupação do interior. Vinte anos depois, mais precisamente em 1929,

1 Para a amizade de Mário de Andrade e Manuel Bandeira por Antônio de Alcântara Machado, ver
Marcos Antônio de Moraes (org.), Correspondência: Mário de Andrade & Manuel Bandeira
(São Paulo: Edusp/IEB, 2000).
, Para dados biográficos sobre Alcântara Machado, ver Raimundo de Menezes, DiCIOnário literário
brasileiro ilustrado, vaI. III (São Paulo: Saraiva, 1969), pp. 742-745. Para a atuação dessas três
gerações de intelectuais, ver José Carlos de Macedo Soares, Três biografias: José Joaquim Macha-
do d'Oliveira, Brasília Augusto Machado d'Oliveira e José de Alcântara Machado d'Olrveira
(São Paulo: Academia Paulista de Letras, 1955). Para considerações sobre a obra que aqui se
resenha, ver Laura de Mello e Souza, "Prefácio" a "Vida e morte do bandeirante", em Silviano
Santiago (org.), Intérpretes do Brasil, vaI. I (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000), pp. 1.191-
1. 203. A edição que aqui utilizo e à qual dizem respeito as referências das páginas é Alcântara
Machado, Vida e morte do bandeIrante (2' ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1930).

125
LAURA DE MELLO E SOUZA
VIDA E MORTE DO BANDEIRANTE

meus netos
José de Alcântara Machado e Oliveira se voltaria para a velha capitania de
paulistas como eu
São Paulo com olhar análogo ao dos pintores holandeses do século XVII, e os meus antepassados
empenhados em retratar aspectos aparentemente secundários da vida cotidia- desde Antônio de Oliveira
na nas Províncias Unidas dos Países Baixos: olhar capaz de revelar miudezas chegado a São Vicente em 1532.
e destacar detalhes imperceptíveis a uma primeira visada; olhar de microscó-
pio, atento às qualidades reveladoras do aparentemente insignificante. O olhar do historiador sobre os homens comuns humaniza a história, con-
Vida e morte do bandeirante é o fruto desse olhar minucioso. Não trata fere-lhe verossimilhança, aproxima-a de nós, espectadores afastados daqueles
das entradas paulistas e não tem o tom grandiloqüente de outros estudos volta- protagonistas por vários séculos de distância. "Reduzir o estudo do passado à
dos para a "epopéia bandeirante". E, no entanto, o assunto é a São Paulo dos biografia dos homens ilustres e à narrativa dos feitos retumbantes seria absur-
sertanistas, a vida dos homens do planalto no exato momento em que outros do tão desmedido como circunscrever a geografia ao estudo das montanhas",
historiadores - Alfredo Ellis, Taunay, até Jaime Cortesão - e, antes deles, afirma Alcântara Machado logo à primeira página do livro. 4 Se a história pode
linhagistas - frei Gaspar da Madre de Deus, Pedro Taques, Manuel Eufrásio modificar o meio - cogita, pragmaticamente, algumas linhas depois - como
de Azevedo Marques - haviam qualificado de heróico? contribuir nesse sentido "se concentrarmos toda a atenção em meia dúzia de
A extraordinária aventura paulista está presente em Vida e morte do figuras, esquecendo o esforço permanente dos humildes, a silenciosa colabo-
bandeirante. E se ainda não há no livro uma posição abertamente crítica ante ração dos anônimos, as idéias e os sentimentos das multidões?".5
ela, háflashes e pequenos episódios da vida quotidiana dos piratininganos que Já no título encontra-se expresso o intuito do historiador, a preocupação
permitem apreender sua crueldade e sua tragédia. Sem atacar de frente a com os ritos que marcam a existência humana. No primeiro capítulo, a explica-
mitologia heróica do bandeirismo, Alcântara Machado nos fala de indivíduos ção acerca do principal tipo documental sobre que repousa a obra: os inventá-
talhados numa dimensão demasiadamente humana, capazes de mesquinharias, rios paulistas, cerca de quatrocentos, cobrindo um período que vai de 1578 a
de fraquezas, de atitudes medíocres e triviais. E é essa sua banalidade, mais do 1700, publicados por iniciativa de Washington Luís quando governador da pro-
que o propalado gigantismo, que inspira ora a simpatia, ora a reprovação do víncia, documentação que "encerra subsídios inestimáveis para a determina-
historiador. É ela que o aproxima do passado, que é capaz de fazê-lo identifi- ção da época, do roteiro e da composição de muitas "entradas", "generoso
car-se - mais uma vez, sem grandiloqüência - com os então 400 - hoje, 500 - manancial de notícias relativas à organização da família, vida íntima, economia
anos de história passada, dissolvendo-se nos vultos evocados pela dedicatória: e cultura dos povoadores e seus descendentes imediatos".6
Na valorização dos inventários como fonte documental de relevo, Alcântara
Para minha mulher Machado antecipou-se aos historiadores de sua época: só muito depois, e no
meus filhos bojo da renovação teórico-metodológica da historiografia do hemisfério norte,
minha nora
os historiadores passariam a se deter sobre inventários, com eles trabalhando
de modo sistemático. Talvez essa perspicácia pioneira fosse moldada pela sen-
sibilidade de jurista, afeito a documentos de cartório e suficientemente conhe-
J Alfredo Ellis Jr., O bandeirismo paulista e o recuo do meridiano (2 1 ed. São Paulo: Nacional, cedor deles para perceber o quanto mudavam através dos tempos. Se
1934); Afonso d'Escragnolle Taunay, História geral das bandeiras paulistas, 11 vols. (São modernamente descrevem os bens pela rama, repugnando-se ante a inclusão
Paulo: Canton, 1924-1950); Jaime Cortesão, Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil
detalhada dos objetos - "neles não se descobre uma nesga sequer do coração
(Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1958); frei Gaspar da Madre de Deus, Memórias para a
história da capitania de São Vicente. hoje chamada São Paulo [1797] (São Paulo/Belo Hori-
zonte: Edusp/ltatiaia, 1975); Pedro Taques de Almeida Paes Leme, Nobiliarquia paulistana
histórica e genealógica. 3 vols. (51 ed. São Paulo/Belo Horizonte: Edusp/Itatiaia, 1980); Manuel
4 Alcântara Machado, Vida e morte do bandeirante, cit., p. 5.
Eufrásio de Azevedo Marques, Apontamentos históricos. geográficos. biográficos. estatísticos e
, Ibid., p. 6.
noticiosos da província de São Paulo, 2 vols. Publicações Comemorativas do IV Centenário de
• Ibid., p. 7.
São Paulo (São Paulo: Martins, 1953).

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VIDA E MORTE DO BANDEIRANTE LAURA DE MELLO E SOUZA

do testador" _, 7 0S inventários antigos revelavam sentimentos e sensibilidades, casas de morada até 1650, quando os imóveis passam a representar "a parcela
descrevendo à exaustão e revelando um mundo que, carente de bens e de mais alta da riqueza privada". Mesmo assim, pondera, "de quando em quando
mercadorias, valorizava-os muito mais do que o nosso, onde o excesso acaba o espanto nos salteia": a casa de fazenda de Valentim de Barros vale apenas o
por banalizá-los e obscurecer a eventual admiração que pudessem suscitar. dobro das "cortinas de tafetá azul com seu sobrecéu, guarnecida com suas
Nos inventários coevos, menciona-se "o feitio, a variedade e a cor do franjas de retrós vermelho e amarelo", enquanto as roças de Isabel Ribeiro,
tecido, a espécie e o matiz do pano, os enfeites que o alindam, o estado de em 1660, valem menos que seu vestido de seda e veludo preto lavrado. E não
conservação". Também aos bichos, tão importantes nas sociedades tradicio- há que se surpreender ante tais disparates aparentes. Primeiro, porque faltam
nais, abre-se espaço nesses documentos: "uma vaca preta, com a barriga braços para os serviços: "Que vale a terra sem gente que a povoe e aprovei-
branca por baixo, com um filho macho preto; um boi vermelho de barriga te?". Depois, porque sobram distâncias e obstáculos: o mar, onde os piratas
branca e a ponta do rabo branca; uma vaca de papo inchado pintada com acometem as naus; a serra a vencer, caminho "talvez o peor que tem o mun-
uma filha pintada". 8 do", no dizer de frei Gaspar da Madre de Deus - encarecem os produtos
O livro começa justamente pela descrição e valorização da fonte - trazidos da Europa e ajudam a entender esse mundo onde os valores diferem
"laudas amarelecidas pelos anos e rendadas pelas traças" -, revelando que o tanto dos do nosso. "O que falta aos paulistas não é o chão, que aí está, baldio
historiador tinha consciência do quanto era pioneiro no seu uso. 9 Depois, os e imenso, à espera de quem o fecunde. Faltam-lhe, sim, a ferramenta, o ves-
capítulos se sucedem numa ordem lógica, que parte dos aspectos mais propria- tuário, tudo quanto a colônia não produz" e que tem de ser trazido do outro lado
mente econômicos e materiais - fortunas, hábitat, mobílias, baixel as, roupas - do oceano. 11 "Aqui está a razão por que custa mais um côvado de tecido fino
para atingir os costumes, as crenças e as instituições. O fecho é o antológico melcochado ou pinhoela, que uma légua de campo."12 '
capítulo sobre "O sertão", tributário de Capistrano na obra já citada e ante- Nos cenários da vida paulista, os sítios da roça levam a melhor sobre os
cipador do Sérgio Buarque de Holanda de Monções (1945) e de Caminhos e povoados. A vila de São Paulo é triste, modesta, desleixada mesmo depois de
fronteiras (1957).10 elevada à categoria da cidade. Muitas das construções de taipa permanecem
vagas, sem morador que as alugue. Outras não passam de mero pouso de
habitantes que se demoram nas casas da roça durante a maior parte do ano. O
II. A VIDA MATERIAL valor de casas e de terrenos "anda de rastros" até o meado do século XVII.
As ruas e os logradouros carecem de nomenclatura oficial, batizados pelo
O exame dos inventários revela que a vida paulista foi, no início, marcada povo conforme critérios objetivos. "A denominação evoca invariavelmente
pela pobreza. Mesmo quando as marcas de riqueza começaram a aparecer, já algum aspecto ou atributo do lugar: a casa de um morador antigo, um templo,
por volta do meado do século XVII, nada se encontra que justifique o exagero um edificio público. "13
dos linhagistas ou de autores como Oliveira Viana, que viram em São Paulo Não é na vila, mas na roça, onde de início se estabeleceram premidos
ambientes de luxo europeu. pelas circunstâncias, que os paulistas dão mostras de status e poder, ostentan-
Ao analisar as "parcelas que compõem o acervo" dos paulistas e a "rela- do mobiliário e alfaias em tudo superiores aos das casas urbanas. "A pobreza
ção que guardam entre si", Alcântara Machado chega a dados surpreenden- da vila é de explicação facílima. Resulta da supremacia inconteste do meio
tes, revelando fina sensibilidade histórica. As roupas valem mais do que as rural sobre o meio urbano, supremacia que não entra a declinar senão mais
tarde, com o advento do Império."14
, Ibidem.
8 Ibid., p. 10.
• Ibid., p. II. 11 Ibid., pp. 22-23.
lO Para a relação entre Alcântara Machado e Sérgio Buarque de Holanda, ver Laura de Mello e 12 Ib/d., p. 25.
Souza, "Prefácio" a "Vida e morte do bandeirante", em Silviano Santiago (org.), Intérpretes do JJ Ib/d., p. 29.
Brasil, cit. 14 Ibid., p. 40.

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VIDA E MORTE DO BANDEIRANTE LAURA DE MELLO E SOUZA

Constituindo-se num mundo em miniatura, "o campo exerce uma ação ridade crescente no século XVII, começam a chegar ao planalto com maior
duplamente distrófica sobre o povoado": atrai os melhores homens e lhes asse- freqüência. Os feitios custavam pouquíssimo, e o status consiste justamente
gura independência econômica, reduzindo ao mínimo sua relação com a cida- na exibição de tecidos volumosos e caros, portadores de nomes que deslum-
de. "No espaço em que se faz sentir a influência do latifúndio, não há lugar bram Alcântara Machado e lhe evocam "os esplendores do Oriente": serafina,
nem para o comércio, nem para a indústria, elementos geradores das aglome- catalufa, tiruela, encastosolado, damas quilho da Índia. 19
rações humanas."15 Muitas jóias completam a indumentária das grandes ocasiões: para as
Os campos paulistas diferem dos do litoral nordestino: abundam em vi- mulheres, anéis, gargantilhas, cadeias, afogadores e rosários de ouro, de pe-
nhas, em trigais, em algodoais, ostentam "teares de fazer franjas e redes" e dras, de esmalte; para os homens, fivelas de prata nos cintos e nos sapatos,
vastos pomares de marmelo - fruta que, transformada em conserva, toma-se botões nas véstias.
"o artigo principal da exportação paulista". As caixetas de marmelada viajam O apreço crescente pelas jóias e pela prata das baixelas, que no início do
para longe: mil e seiscentas delas "manda a viúva e inventariante de Pedro Vaz povoamento não refulgia senão em peças avulsas, revela antes uma necessi-
de Barros à cidade da Bahia". Quando ficam em Piratininga, integram patri- dade do que o desejo de ostentação. Se objetos em metal precioso chegam a
mônios: "duas mil e duzentas avultam no espólio de Catarina Dorta".16 constituir mais de um terço dos patrimônios individuais é por integrarem "uma
A criação de animais é outro traço distintivo da economia de São Paulo: reserva ou tesouro de fácil transporte e realização imediata. O que hoje pare-
muito gado vacum, "suínos a fartar", carneiros e ovelhas a encherem os cam- ce explosão de vaidade é naquele tempo intimação das condições econômicas
pos e a alimentarem o fabrico de tecidos e chapéus de lã, florescente ainda em e da situação precária da ordem pública".20
1699. Agricultura diversificada e rebanhos numerosos fazem com que o mun-
do rural seja rústico e autocontido.
III. INSTITUIÇÕES E PRÁTICAS SOCIOECONÔMICAS
Dentro de seu domínio, tem o fazendeiro a carne, o pão, o vinho, os cereais que o
alimentam; o couro, a lã, o algodão que o vestem; o azeite de amendoim e a cera que à Numa sociedade de fronteira, onde tudo está por construir e onde a vida
noite lhe dão claridade; a madeira e a telha que o protegem contra as intempéries; os cotidiana é dura e incerta, as práticas do dia-a-dia deixam em segundo plano
17
arcos que lhe servem de boquel. Nada lhe falta. Pode desafiar o mundo.
as instituições mais duradouras. Não há escolas, não há mestres, não há médi-
cos, escasseiam os magistrados. Uns poucos inventários acusam a presença
Não é contudo apenas a terra que confere prestígio social. "É na baixela
minguada de um punhado de livros, revelando ainda que, se boa parte dos
e nas alfaias de cama e mesa que a gente apotentada faz timbre em ostentar a
homens sabia ler, escrever e contar, a maioria das mulheres mal assinava o
sua opulência. "18. Se os móveis são escassos e modestos, evoluindo apenas
nome. Contra as doenças, recorria-se ao conhecimento herbolário dos jesuítas
quando a sociedade se toma mais complexa; se o "estanho plebeu" só aos
ou a práticos mezinheiros, benzedeiros e curandeiros. Mesmo os poucos cirur-
poucos foi "suplantado pela faiança na mesa da gente de prol", os baús sempre
giões aprovados, que não chegaram a Piratininga antes do século XVII, recor-
encerraram panos e toalhas de linho e de bretanha, enfeitados por franjas,
riam à flora indígena e às práticas curativas dos primeiros habitantes, como o
rendas, abrolhos, desfiados "ao redor e pelo meio". Para o dia-a-dia, bastam
uso da pedra-bazar, "concreção pedregosa que se forma no estômago, nos
as vestes feitas com o algodão que abunda na capitania. Para os dias de festa
intestinos ou na bexiga de certos animais, e à qual atribuíam grande virtude os
na vila, exibem-se vestidos e roupas de lã e de seda, panos que, com a prospe-
médicos do Oriente, principalmente como antídoto".21 Corriam, ainda, belas

" Ibid., p. 44.


16 Ibid., pp. 46-47. lO lbid., p. 55.
17 Ibid., pp. 49-50. 20 lbid., p. 65.
18 lbid., p. 84. " Ibid., p. 103.

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VIDA E MORTE DO BANDEIRANTE LAURA DE MELLO E SOUZA

orações mágicas, que a sensibilidade de Alcântara Machado recupera nos in- da terra", carnes salgadas de porco, índios, peles de onça. Em 1624, os impos-
ventários: "Em nome de Deus Padre, em nome de Deus Filho, em nome do tos municipais foram honrados com panos de algodão, couro e cera de abelha,
Espírito Santo, ar vivo, ar morto, ar de estupor, ar de perlesia, ar arrenegado, ar tudo obedecendo aos preços correntes. De ano para ano, variavam as merca-
excomungado, eu te arrenego em nome da Santíssima Trindade [ ... ]".~~ dorias que faziam as vezes de moeda: "Acompanhar essas variações é ter
À Justiça, o Alcântara Machado advogado e jurista se adianta e dedica idéia exata da atividade econômica dos paulistas naqueles tempos apartados".:!5
um dos maiores capítulos do livro. Na falta absoluta de magistrados, os leigos Conforme a economia foi permeada pelas moedas, surgiram os argentários,
desempenham funções jurídicas e, por exemplo, fazem os inventários. A má- como o padre Guilherme Pompeu. Vários foram os que emprestaram dinheiro,
quina judiciária é morosa, as fórmulas são retorcidas, a prática jurídica é muito em geral a juros de 8% mas, vez ou outra, fazendo-o em porcentagens
distinta da nossa e ainda se reveste de simbologias, como o uso de ramos escorchantes, que podiam atingir os 50%. Em muitos inventários aparecem os
verdes nas transações de imóveis. instrumentos particulares de dívidas, os assinados, onde o signatário se com-
prometia a pagar ao credor "até o dia de Santa Isabel", "à volta do sertão" ou
Para empossar-se de terras compradas em praça, Luís Furtado se transportou à
"como vier das minas". Há notícia contudo de que muitos não deixaram papéis
paragem em companhia do tabelião e do alcaide e, lá chegados [diz o auto], logo lhe
escritos, as transações se fazendo apenas com a palavra: "devo a Fulano, ou
metemos terra e ramos na mão [ ... ] o qual Luís Furtado logo apregoou aquela posse,
e o alcaide, se havia quem impedisse ... três vezes ... e por não haver quem lh'o Fulano me é a dever o que ele disser por sua verdade, o que ele achar em sua
impedisse o houvemos por empossado 21 consciência".~6 Nas sociedades tradicionais, e naquela talvez mais que em
outras, sugere Alcântara Machado, a palavra dada tinha força de lei.
Quando se tratava de edifícios, a cerimônia era um pouco diferente: os Em meio à ausência das instituições, a família surgia como o único ele-
interessados se dirigiam para as casas vendidas e, "muito expressivamente", mento de coesão, assumindo os traços de uma organização defensiva.
delas tomavam posse fechando-lhes as portas. Alcântara Machado endossa, nesse tocante, as interpretações vigentes em
As custas processuais eram, então, menores, e os salários judiciais nem seu tempo sobre o papel ordenador do pater familias: era ele quem regia o
sempre se pagavam com moeda, valendo usar, nas transações, estanho velho, destino da prole, escolhendo-lhes os cônjuges e as ocupações, submetendo e
botas e chinelas novas, galinhas, frangões: "em certo inventário, os interessa- enclausurando as consortes, zelando pela limpeza do sangue em sua descen-
dos reclamam contra o procedimento de um avaliador que, sem lhe ser manda- dência.
do pela justiça, se fora ao pasto do defunto, que Deus tem, e trouxera um
porco pelo seu salário. Atendendo à reclamação, manda o juiz que o avaliador Por isso mesmo e porque são poucas as pessoas dessa limpeza e qualidade, os
casamentos se fazem num círculo muito limitado, e as famílias andam em São Paulo
insofrido restitua o dito porco a seu pasto e chiqueiro". O estranhamento do
tão travadas umas com as outras que abundam as uniões consangüíneas.27
historiador ante o inusitado dos costumes pretéritos cede lugar ao advogado
que critica os destemperos de seus colegas de ofício: "Tempo feliz, em que
Essa, a família legítima. Crescendo à sua sombra, havia outra, contudo: a
bastava um cevado para saciar a ganância de um homem do foro!". ~4
família ilegítima, originária das ligações esporádicas ou duradouras com as
Tais práticas revelam, de resto, a ausência de dinheiro amoedado, que se
índias e, mais tarde, com as negras. Se os casamentos mistos eram raros,
fez sentir na vida econômica dos paulistas até as vizinhanças do século XVIII,
essas ligações entre diferentes eram muito comuns, e a mestiçagem se talha-
quando a descoberta das minas provocou transformações radicais. Também
va, pois, na bastardia.
as esmolas e os legados pios se pagavam com fardas, gado, "drogas e cousas

12 Ibid., p. 104. " Ibid., p. 135.


23 Ibid., p. 130. 16 Ibid., p. 140.
M Ibid., p. 132. 27 Ibid., p. 153.

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VIDA E MORTE DO BANDEIRANTE LAURA DE MELLO E SOUZA

Os senhores, a parentela dos senhores, os agregados da família fazendeira são os IV. O HOMEM E O MEIO
reprodutores de escol, os padreadores ardentes da índia, os garanhões fogosos da
negralhada. Este deixa seis filhos naturais. Aquele deixa treze, por não ser casado
nunca. Antônio Pedroso de Barros parece ter perdido a conta dos que houve:ficam Nas lonjuras da capitania de São Paulo, as leis que defendem os índios
alguns bastardos, que não sei a verdade de quantos são meus. 28 vão deixando de ter valor. Aproveitando-se de sua freqüente ambigüidade, os
paulistas acabaram criando "um estado intermediário entre a liberdade e a
E acrescentava: "será conforme as mães disserem". Alguns dos mori- escravidão, que tivesse desta a substância e daquela as aparências".3~ Assim,
bundos mostraram-se tão cheios de dúvidas ao lado dos "negros gentios" da terra começaram pouco a pouco a aparecer os
"serviços forros", as diferenças entre um e outro se esgarçando ao longo do
que, no fim do testamento, retratam a confissão lançada no começo. Assim, depois de século XVII, e ambos acabando por serem escravizados, ao arrepio das deter-
ter declarado livres e forros dois meninos havidos de uma escrava, Brás Gonçalves minações de el-rei.
reflete melhor, e diz em Deus e em sua consciência que não é pai de um dos rapazes Em alguns dos inventários, a condição efetiva dos índios cativos é camu-
nomeados e o deixa por cativo. 29
flada por hipócritas frases de efeito, com as quais o testador "concita a gente
da terra a não abandonar a casa: peço queiram por serviço de Deus servir
Apesar dessas idas e vindas, muitos bastardos foram reconhecidos na
a minha mulher. .. peço que pelo bom trato que sempre lhes dei queiram
hora da morte, quando também se pedia que os que ficavam cuidassem das
servir a meus herdeiros ... peço pelo amor de Deus e pelo que lhes tenho
suas mães. Ante os fatos consumados, a esposa legítima se curvava e mostra-
queiram todos juntos ficar". Alcântara Machado intervém para mostrar o
va tolerância. Manuel Sardinha sabia disso, e, ao morrer, confessou que "hou-
absurdo da situação: "Que remédio tinham os desgraçados senão querer o que
ve uma filha, sendo casado, de uma índia [ ... ] a qual peço à minha mulher
lhes pedia o testador, se o juiz não os consultava antes de adjudicá-los aos
recolha em casa e trate como minha filha". Algumas das matronas paulistas
herdeiros ou legatários?".33 Em outros inventários, a sensibilidade do historia-
mostraram preocupação, ao morrerem, com a prole ilegítima deixada pelos dor capta desabafos mais autênticos e sinceros:
finados maridos:
[ ... ] declaro que fui duas vezes ao sertão dos carijós [ ... ] tenho alguns serviços que
Assim, Maria Paes: e por se dizer a dita menina ser filha de seu primeiro marido João do mando à minha mulher e filhos que querendo eles estar em sua companhia os tratem
Prado a deixava forra e liberta. E Maria Pompeu: deixo à [... ] filha bastarda de meu marido como forros, e quando se queiram ir não lhes impedirão sua ida, mas antes a favore-
que em casa achei um vestido de tafetá, umas cabaças de ouro, uns ramais de corais. lo çam pela afronta que lhes fiz com os trazer com pouca vontade sua.

Mestiços bastardos tomaram-se não raro agregados dos fazendeiros, in- E, critico, Alcântara Machado ajuiza: "Com pouca vontade ... Eufemismo
tegrando-lhes o séquito, acompanhando-os nas jornadas ao sertão e ocupando encantador".34
lugar de destaque naquele mundo: No final do primeiro quartel do século XVII, intensificou-se em São Pau-
lo a posse de índios cativos. Até então, os mais abastados dentre os colonos
É o capanga destemido, sempre disposto a dar a própria vida ou a tirar a alheia, a
tinham cerca de trinta ou quarenta peças. O ponto de viragem foi o assalto de
mando do potentado em arcos a que está ligado pela gratidão, pelo interesse e tam-
Manuel Preto e Raposo Tavares às missões de Guairá, ocorrido entre 1628 e
bém, amiúde, pelo sangue. Não o renegam os outros membros da família. Aceitam-no,
porque têm a consciência mais ou menos clara de que se trata de um elemento inferior, 1632: desde então, "os espólios se vão opulentando sobremodo com o gentio da
mas necessário, do organismo de que fazem parte. ll terra".35 Em 1632, Beatriz Bicudo deixa 130 serviços; 160 são os que constam

18 Ibid., p. 156. J2 Ibid., p. 167.


" Ibid., p. 158. JJ Ibid., p. 170.
30 Ibid., p. 161. 34 Ibid., p. 171.
Jl Ibidem. " Ibid., p. 185.

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VIDA E MORTE DO BANDEIRANTE LAURA DE MELLO E SOUZA

do inventário de Brás Esteves quatro anos depois; no testamento de Antônio Em julho de 1633, Antônio Raposo Tavares e outros potentados assaltam o colégio e
Pais de Barros há, por fim, menção a quinhentas peças. o aldeamento de Barueri, expulsam os jesuítas, despejam os móveis e alfaias, apos-
sam-se dos índios. Os inacianos conseguem do vigário de Parnaíba uma sentença de
Trazidos à força pelas expedições, muitos índios se amotinavam. Os mais
excomunhão contra os amotinados. Sabem como estes acolhem o padre Antônio de
robustos eram enviados como "negros de ganho" ao litoral, transportando car-
Marins que, na qualidade de escrivão do processo, vai intimá-los da condenação? Di-
gas serra acima. Os mais hábeis tomavam-se chapeleiros ou artesãos. Pela lo Azevedo Marques: arrancando-lhe das mãos a sentença e rompendo-a. J9
sua capacidade incomparável de andar dentro do mato, havia os que iam bus-
car outros índios para os paulistas. E era para o mato que fugiam quando não A morte estava sempre presente. Cada entrada para o sertão podia ser a
mais toleravam os maus-tratos: "o grande, o eterno, o verdadeiro amigo e re- derradeira, e no afã de pôr a alma no caminho da salvação - pois o testamento,
dentor dos indígenas é o sertão. É o sertão que lhes dá couto e homizio, quando "longe de ter feição puramente econômica", era também "uma solene de-
se desvencilham das algemas pela força ou pela astúcia"?6 monstração de fé" - muitos testavam antes de partir, "quando as canoas car-
Muito mais raros eram os escravos negros, chamados "negros de Guiné" regadas, as toscas naus de bordas rastejantes, já se aprestam a descer as
para se distinguirem dos "da terra", ou ainda, no vocábulo indígena, de águas do rio misterioso".4o "É no porto de Pirapetingui que, em 6 de março de
"tapanhunos". A primeira menção a eles aparece em 1607, e cem anos depois, 1607, Francisco Barreto se dispõe a testar: sendo Nosso Senhor servido que
segundo os inventários, não somam mais do que um cento. Apesar da nesta viagem para a qual estou de partida a descer o gentio faça Nosso
escravização de africanos ser então legal, os negros contavam menos, portan- Senhor de mim alguma cousa e meus dias lá fenecerem."4\
to, do que os índios como escravos. Outros sertanistas testavam já longe de casa: "Neste sertão do Abueus,
Se os piratininganos não obedeciam à lei, tampouco temiam o Tribunal da doente de uma frechada", menciona Sebastião Preto. "Doente de uma frechada
Inquisição. "Bem conhecidas são as palavras escarninhas daquele mameluco que me deram os topiães, no sertão e rio Paracatu", esclarece Manuel Cha-
de Santo André, quando ameaçado de responder no Juízo terrível por certas ves. 42 A circunstância que ditava a resolução de testar era própria ao sertão: a
práticas suspeitas de gentilidade: acabarei com a Inquisição afrechadas. "37 doença - febre, maleita - ou a guerra - as flechas ervadas, os ferimentos
O Santo Oficio, por sua vez, pouco cuidou dos paulistas antes do século XVIII, vários.
e quando visitou o Brasil, nos dois primeiros séculos, dirigiu-se para o Nordeste Em casa ou no sertão, ao testarem os sertanistas regulavam as mínimas
açucareiro, onde os cristãos-novos, cujos bens podiam ser confiscados, eram coisas: onde deveriam ficar seus ossos, quais os santos intercessores, quais as
então mais numerosos. pompas fúnebres. Atiravam-se "ao assalto do céu" com a mesma sofreguidão
Mas também os havia em São Paulo. Muitos dos habitantes do Planalto com que se arremessavam "à conquista da terra".43 Determinavam a quanti-
tinham "parte de judeu", mas "mais danosa do que as doutrinas heréticas" que dade de missas a se rezar em São Paulo e em Lisboa, mostrando como, entre
eventualmente professassem seria, para Alcântara Machado, a "vida escan- a colônia e a metrópole, ainda oscilava o coração dos piratininganos daqueles
dalosa" em que "chafurdavam" os padres "exportados da metrópole para a tempos. Indicavam quais invocações e santos desejavam honrar: Nossa Se-
América portuguesa".38 Intenso era o comércio de Bulas da Cruzada, consi- nhora da Luz, do Carmo, da Conceição, dos Remédios e das Vitórias; São
deradas um salvo-conduto poderoso para a "última viagem". Como em outras Miguel, São Rafael, São Lázaro, Santo Alberto, São Jerônimo, São Domingos,
localidades da colônia, as confrarias multiplicavam-se, e Nossa Senhora da São Cipriano, São Francisco Xavier, São Brás, Santo Elias, Santo Antônio, São
Conceição gozava de grande popularidade entre os fiéis. Excomungava-se a Francisco. Revelavam, nos seus caprichos, que religiosidade e magia andavam
torto e a direito, e nem por isso era maior o temor às penas espirituais:

J' lbid., p. 206.


'" lbid., p. 221.
J6 Ibid., p. 179. 41 lbid., p. 223.
17 Ibzd., p. 196. 42 lbid., p. 224.
JS Ibid., p. 202. 4J lbid., p. 229.

136 137
VIDA E MORTE DO BANDEIRANTE LAURA DE MELLO E SOUZA

juntas: "Maria de Lara contempla com doze missas os doze apóstolos e com com a sua origem social ou econômica, o sertão "acena-lhes com a miragem
onze as onze mil virgens". Outros consagram nove missas "à honra dos nove da riqueza fácil e imediata, ao alcance das mãos ávidas, nas florestas de índios
meses que a Senhora trouxe em suas entranhas seu filho Nosso Senhor", ou predestinados ao cativeiro, nas minas resplandecentes de gemas e metais de
"quatorze à honra das quatorze obras da Misericórdia, e mais cinco à honra prol, no viso luminoso das serranias que as fábulas sobredouram".49
das cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo".44 O sertão é o espaço onde se exerce o espírito aventureiro e a imagina-
Para ganhar a vida eterna recorriam vez ou outra às práticas de explora- ção; onde a força humana se põe à prova para domar uma natureza desconhe-
ção com que haviam vivido, e Alcântara Machado seleciona um episódio exem- cida e misteriosa; onde os marinheiros da véspera voltam a enfrentar situações
plar: de perigo e de imprevisto. Aliás, lembra Alcântara Machado num golpe de
gênio,
Messias Rodrigues manda aplicar em missas o que ganhar por seu oficio um dos
serviços que possuía, moço do gentio da terra, oficial de sapateiro. Assim, depois de entre o marinheiro e o sertanista são transparentes as afinidades. Resultam das muitas
ter suado em vida da senhora para manter-lhe o corpo, o desventurado tem de traba- que aparentam com o sertão o oceano. Diante do oceano, como diante do sertão, é o
lhar indefinidamente para salvar-lhe a alma [00.]45 mesmo assombro, é a mesma impressão de infinito e de eternidade, é a mesma verti-
gem. Só eles, imensos e desertos, podem saciar a fome de liberdade sem limites que
Outros arrependiam-se na última hora das violências cometidas durante devora o homem, o nomadismo ingênito que o atormenta, o orgulho de bater-se, fraco
e pequenino, contra os elementos desatrelados, e de vencê-los. Em paga dessas volúpias
toda uma vida, pedindo perdão, esgravatando a memória remota e ordenando
sobre-humanas, apoderam-se de todo e para a vida inteira de seus apaixonados.
missas "para satisfação da força que fez ao gentio, e dos mantimentos que lhe
comeu".46
Finda a era heróica das grandes navegações, o colonizador português
Tudo, na vida paulista, convergia enfim para o sertão, "estribilho obsi-
voltou-se para essa expansão interna que caracterizou a atividade dos ho-
dente" que "aparece e reaparece nos inventários", "a denunciar que para o
mens de São Paulo por séculos, e que em tantos pontos se assemelhou à lide
sertão está voltada constantemente a alma coletiva, como a agulha imantada
marítima.
para o pólo magnético". 47 É com o sertão que Alcântara Machado fecha Vida
O meio provoca alterações na alma e no corpo. "Este ganha a elasticida-
e morte do bandeirante, brindando o leitor com uma sucessão de páginas
de e a robustez dos monstros marinhos e das feras." Se o andar do mareante
antológicas:
é balanceado, refletindo o movimento das ondas, o do sertanejo, "em linha
quebrada", reproduz "o rumo divagante das picadas e dos carreadores".5o Sim-
Porque o sertão é bem o centro solar do mundo colonial. Gravitam-lhe em torno,
escravizados à sua influência e vivendo de sua luz e de seu calor, todos os interesses ples e brutais, ingênuos e trépidos, o homem do mar e o homem da floresta
e aspirações. Sem ele não se concebe a vida: por os moradores não poderem viver passam a vida perseguidos pelo oceano e pelo sertão, e é neles que, quase
sem o sertão, proclamam-no os oficiais da Câmara numa vereação de mil, seiscentos sempre, encontram a morte.
e quarenta anos. 48 Não há como fugir ao sertão, escola que "prepara os moços para o exer-
cício das duas únicas profissões tentadoras que o meio comporta: o tráfico
O afã de enriquecimento rápido ajuda a entender o fascínio pelo sertão. vermelho e a mineração. Uma entrada eqüivale a um diploma".51 Na segunda
Contentando-se com a robustez e a audácia dos adventícios, e sem se importar metade do século XVII, não haverá em São Paulo mais do que dois moradores
que não se entreguem ao tráfico de índios, que atrai até ordens religiosas,

44 Ibid., p. 232.
" Ibid., p. 229.
46 Ibid., p. 235. 4' lbid., p. 246.
47 lbid., p. 245. ,. lbid., p. 247.
48 Ibidem. " Ibid., p. 250.

138 139
VIDA E MORTE DO BANDEIRANTE LAURA DE MELLO E SOUZA

como a dos carmelitas. Muito menino saiu da infância já na lide sertaneja, militar, o comandante das entradas via-se compelido a desempenhar as fun-
acompanhando o pai ou algum parente, aprendendo roteiros que, anos mais ções judiciais no cível e no crime. Morto o companheiro, mandava arrolar seus
tarde, voltariam a praticar: bens, quase sempre de forma sumária devido ao insólito da situação e à escas-
sez de papel. "Responsabilidade formidável naquele ambiente carregado de
Mal saído da meninice, apresta-se e parte a buscar a sua vida, o seu modo de lucrar, incertezas", e pela qual quase ninguém pedia pagamento. Quase ninguém, com
o seu remédio e para as suas irmãs. Dezesseis anos conta Francisco Dias da Silva,
a exceção de um: Antônio Raposo Tavares, "heróico devastador de missões",
quando, por ter idade e ser capaz para isso, é levado pelo tio, o formidável Fernão
mas capaz de retirar um par de meias "da pobreza que fica por morte de
Dias Pais Leme, ao descobrimento da prata em serviço de Sua Majestade. Na entrada
Pascoal Neto".55
de 1673, contra os índios serranos, Manuel de Campos Bicudo faz-se acompanhar do
filho Antônio Pires de Campos, que não tem mais de quatorze anos; e doze ou O sertão grandioso, palco principal da "mitologia bandeirante", presencia-
quatorze tem o segundo Anhangüera, ao seguir com o pai, na expedição que atingiu o va também atos terríveis - como o apresamento dos "negros da terra" - e
rio Vermelho, em montaria ás tribos goianas. 52 mesquinhos. Com um desses, e não por acaso, José de Alcântara Machado
encerra o seu belo livro - tão destoante de outros livros, seus contemporâne-
A preparação da viagem, os utensílios, as armas levadas para o mato, a os e mesmo posteriores a ele, nos quais da atividade paulista só se destaca-
roupa do sertanista, os alimentos capazes de resistir ao tempo - tudo é tratado ram o arrojo, a coragem e os eventuais heroísmos.
pelo historiador nesse capítulo admirável, que antecipa, em muitos pontos, al-
gumas das melhores páginas de Sérgio Buarque de Holanda:
V VIDA E MORTE DO BANDEIRANTE
Por que aumentar a carga com mantimentos, se aí estão os rios abundantes em peixes,
as matas e os campos povoados de caça, as frutas silvestres, o mel, o pinhão, o
Se nesse livro, ecoando as idéias correntes na época, a condicionante do
palmito, as roças que os índios espavoridos abandonam, as plantações que assinalam
as etapas das entradas precedentes? Se tudo isso lhe recusa o destino, o bandeirante meio sobre o homem ainda se mostra de forma acentuada, as decorrências daí
devora, para matar a fome, as carnes imundas: cobras, sapos, lagartos. À míngua de extraídas são novas e originais, apontando na direção de uma história diferen-
água para beber, se dessedenta com o sangue dos animais, o suco dos frutos, a seiva te. Para driblar o meio acanhado e periférico, os habitantes de São Paulo tive-
das folhas e das raízes. 51 ram que talhar um destino específico, fazendo-o como homens comuns e não
como "gigantes" ou heróis. Antes da voga da interdisciplinaridade, que em
As belíssimas descrições do meio natural contrastam com as dos horro- tantos pontos esfumaçou os limites entre a história e a antropologia, José de
res da escravidão, objetivo maior das entradas paulistas: Alcântara Machado e Oliveira, rebento de velhos troncos paulistas, cioso dos
seus quatrocentos anos de habitante do Planalto de Piratininga, soube, melhor
Jungidos uns aos outros, presos pelo pescoço às gargalheiras, que os cadeados refor-
do que ninguém no seu tempo, mostrar que a compreensão histórica repousa
çam, é assim que se arrastam, semanas e meses a fio, em demanda do povoado, os
índios arrancados para o cativeiro às tabas e reduções 54
também nos atos do dia-a-dia, monótonos, repetitivos, banais e até mesmo
mesquinhos. Sem julgar o passado - pois não compete ao historiador fazê-lo -,
Cortejo sinistro, esse, que evocava a dimensão trágica da lide sertaneja. alertou que a pobreza da capitania poderia se transformar em categoria
Muitos dos inventários que forneceram a Alcântara Machado a substân- explicativa da sua história, e abriu caminho para o estudo dos mecanismos
culturais e econômicos da expansão paulista.
cia do seu livro foram escritos no sertão, onde, além das funções de chefe
As categorias explicativas também têm história. Estudos recentes vêm
relativizando a idéia de que a economia paulista do Quinhentos e do Seiscentos
12 Ibid., p. 249.
lJ Ibid., pp. 255-256.
54 Ibid., p. 260.

140 141
VIDA E MORTE DO BANDEIRANTE

era pobre. Ilana Blaj enfatizou a complexidade e a diversificação dessa econo- OLIVEIRA LIl\1A
mia, retomando aliás um capítulo já clássico de John Manuel Monteiro em
Negros da terra, "O celeiro do Brasil", que destacava o papel desempenhado
por São Paulo - região alheia à grande cultura da cana - no abastecimento de
várias capitanias da América portuguesa e a importância das economias não- D. João VI no Brasil
exportadoras para a formação do país. 56 EmA opulência relativizada, Milena
Maranho mostra que a pobreza, propalada pelos próprios habitantes do Planal-
to e presente a cada linha dos documentos coevos, representava uma estraté-
gia bem urdida. A alardeada ausência de alternativas econômicas justificava,
por um lado, o apresamento de índios; por outro, fundamentava o não-paga-
mento de impostos e de dívidas. 57 Por fim, o significado que o historiador - no
caso, Alcântara Machado - atribui à pobreza não é obrigatoriamente o mesmo Guilherme Pereira das Neves
atribuído pelos contemporâneos. O destes, aliás, pode ser mais de um, e talvez
uma compreensão mais acurada da pobreza só possa surgir quando levar em
conta sua provável polissemia - máscara sob a qual se ocultaram variadas
visões historiográficas.
O fato de ser contestado não significa que Vida e morte do bandeirante
deixe de ser um marco. Significa, sim, que os que vieram depois - Sérgio
Buarque de Holanda, John Manuel Monteiro - ultrapassaram-no, ou seja, pas-
saram por ele e foram além. 58 Nesse sentido, todo grande livro de História,
como Vida e morte do bandeirante, tem de ser ultrapassado um dia.

50 I1ana BJaj, A trama das tensões: o processo de mercantili::ação de São Paulo colonial (1681-
1721), tese de doutorado (São Paulo: Departamento de História, FFLCH da USP, 1995).
" Milena Maranho, A opulência relativi::ada: significados econômicos e sociais dos níveis de vida
dos habitantes da região do Planalto de Piratininga - 1648-1682, dissertação de mestrado
(Campinas: Departamento de História, IFCH da Unicamp, 2000).
l8 Sérgio Buarque de Holanda, Monções (3 1 ed. ampl. São Paulo: Brasiliense, 1990) e Caminhos e

fronteiras (3 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994); John Manuel Monteiro, Negros da
terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo (São Paulo: Companhia das Letras,
1994).

142
T
; .. ' o LIVRO
Um apressado leitor atual, ao abrir as quase oitocentas páginas do D.
João VI no Brasil, de Oliveira Lima, em sua terceira edição de 1996, pode
supor que está diante de uma obra tradicional de história política e diplomática.
Se consultar o sumário, após uma introdução sobre a situação internacional de
Portugal em 1808, irá deparar com trinta capítulos, trazendo títulos como: "A
partida", "A rainha D. Carlota", "As intrigas platinas", "No Congresso de Vie-
na", "Elevação do Brasil a Reino", "A conquista da Banda Oriental e os insur-
gentes de Buenos Aires", "A diplomacia de Palmela na questão de Montevidéu",
"A revolução pernambucana de 1817", "A diplomacia estrangeira no Rio:
Caleppi e Balk-Poleff', "O casamento do príncipe real" e "A revolução portu-
guesa de 1820". Títulos que evocam empoeirados manuais escolares, quando
não sugerem dúvidas e indagações de ordem fatual, como as menções a
Palmela, a Caleppi e a esse desconhecido Balk-Poleff, de origem inescrutável
e que parece saído de algum filme de terror. E se começar a ler a "Introdu-
ção", talvez torça o nariz diante da ótica personalista, que situa D. João VI
como "um rei popular", em contraposição a Pedro I, impondo-se pela "energia
e bravura", e a Pedro II, capaz de inspirar "veneração e fervor"; e certamente
sentirá o tom arcaico de expressões como "acrisolado patriotismo" e "flácida e
pomposa natureza tropical". Poderá, assim, ser levado a pensar que se trata de
uma obra datada, característica da época em que foi escrita - há quase um
século - e da intenção que a moveu - comemorar o centenário da instalação
da corte portuguesa no Rio de Janeiro. E acabar concluindo pela sua irrelevância
para a realidade e os problemas do Brasil de hoje.
Não poderia cometer maior engano.
Wilson Martins caracteriza D. João VI no Brasil como um "clássico da
historiografia brasileira".l Ao prefaciar a segunda edição, de 1945, Otávio
Tarquínio de Sousa considerou-o "um dos maiores livros de nossa historiografia
e o mais completo e lúcido acerca do assunto de que se ocupa".2 Recentemen-
te, Roberto DaMatta, com um leve toque de auto-suficiência de antropólogo,
identificou sua importância na "capacidade de prover materiais que nos aju-
dam a pensar melhor as nossas raízes e, com isso, a aquilatar de modo mais
realista as instituições que nos têm governado".3 De fato, se o leitor observar

1 Wilson Martins, "Prefácio à terceira edição", em Manuel de Oliveira Lima, D. João VI no Brasil
(3' ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996), pp. 13-19.
2 Incluído como apêndice à mesma edição da obra, pp. 770-775.
J Roberto DaMatta, resenha em O Globo, caderno Prosa e Verso, Rio de Janeiro, 29 jun. 1996, pp. 1-2.

145
D. JOÃO VI NO BRASIL GUILHERME PEREIRA DAS NEVES

com cuidado, entremeiam-se, aos capítulos citados, outros absolutamente ori- outra realidade, trazemos, porém, no sangue as tradições que então surgiram
ginais, como aquele que denomina "Emancipação intelectual"; alguns de cará- ou que então adquiriram novas conotações. Num certo sentido, não é outra a
ter mais econômico ou social, sobre o tráfico de escravos, sobre o tratamento função do historiador.
dos índios, e dois sobre o Estado do Brasil em 1808; e, sobretudo, os capítulos
XXV e XXVI, tratando de "O espetáculo das ruas" e de "As solenidades da
corte", que adotam um olhar decididamente antropológico. Além disso, consta- o AUTOR
tará, na enumeração das fontes e nas mais de mil notas ao texto, a amplitude
da pesquisa e o domínio de Oliveira Lima sobre o tema. Por fim, descobrirá, Manuel de Oliveira Lima nasceu no Recife, em 25 de dezembro de 1867.
em meio às expressões obsoletas e às "frases longas e, por vezes, retorcidas", Seu pai era natural do Porto e a mãe, de Pernambuco, onde aquele se estabe-
que Gilberto Freire apontou, um escritor vivaz, capaz de distinguir uma perso- lecera, primeiro como caixeiro e depois como patrão, com negócio de fazendas
nalidade ou uma situação num só traço e também de surpreender pela e consignação de açúcar. Tendo adquirido em pOUCos anos fortuna suficiente
informalidade, bem à brasileira, da linguagem e pelo uso inusitado do diminuti- para retirar-se das atividades comerciais, a família decidiu, em 1873, mudar-se
vo - no que se antecipa, como em tantas outras coisas, ao autor de Casa- de volta para Lisboa. Cresceu, assim, e foi educado Oliveira Lima em Portu-
grande & senzala. 4 gal, no colégio dos Lazaristas e na Escola Acadêmica, manifestando-se muito
"Grande livro - que tem qualquer coisa de fluvial, de caudaloso", como cedo suas predileções literárias e históricas e sua "incompatibilidade congênita
viu Octavio Tarquínio, D. João VI no Brasil constitui a obra-prima de Oliveira com a óptica". Posteriormente, por causa da doença do pai e guiado por um
Lima. Nele se entrelaçam vários fios que, urdidos na mente do leitor, fornecem instinto que o "levava a descortinar não raro no direito a defesa sofistica do
um vasto panorama dos anos que antecederam a independência. Panorama que é torto", ao invés de seguir para Coimbra, inscreveu-se na Faculdade de
que atribui uma outra dimensão à narrativa desconjuntada de Francisco Adolfo Letras, sendo aluno, entre outros, de Pinheiro Chagas, de Teófilo Braga e de
de Varnhagen nos últimos capítulos da História geral do Brasil (1854-1857) Zófimo Consiglieri Pedroso, vulto importante na definição do ensino português
e que antecipa quase todos os temas e interpretações dos mais importantes de história durante a segunda metade do século XIX. Formando-se em 1888 e
trabalhos posteriores sobre o período, como os de Maria Beatriz Nizza da sendo então republicano, "uma urticária de sangue novo", ingressou dois anos
Silva, de Maria Odila Silva Dias, de José Muri10 de Carvalho e de Valentim depois no serviço diplomático brasileiro, nomeado adido de primeira classe à
Alexandre. 5 Como J. Burckhardt, em relação ao Renascimento, ou J. Huizinga, legação de Lisboa pelo novo governo que derrubara a monarquia em 1889.
em relação ao outono da Idade Média, Oliveira Lima, com este livro, reconstituiu Mais tarde, serviu em Berlim, Londres, Tóquio, Caracas, Bruxelas e Washing-
uma época, resgatando dos arquivos, que freqüentou com prazer, os elementos ton. Nesta última cidade, após aposentar-se, radicou-se, passando a lecionar,
indispensáveis para que ela seja vista como algo distinto, específico. Por con- "por ironia do destino", direito internacional na Universidade Católica, à qual
seguinte, capaz de sugerir indagações àqueles, como nós, que, vivendo numa doou uma preciosa coleção de 40 mil volumes, que hoje constitui a Oliveira
Lima Library. Faleceu em 1928, sendo enterrado nos Estados Unidos, com
instrução de jamais ser removido, sob uma lápide, feita com pedra enviada de
4 A expressão entre aspas provém de Oliveira Lima, Don Quixote Gordo (1968), apud Wilson Pernambuco, em que mandara escrever: "Aqui jaz um amigo dos livros".
Martins, "Prefácio à terceira edição", cit., p. 19. Para Freire, ver o trabalho de Elide Rugai Bastos, Ao longo dessa trajetória, suas opiniões francas, sua independência, suas
"Gilberto Freire, Casa-grande & senzala", em Lourenço Dantas Mota (org.), Introdução ao Brasil.
invectivas contra os poderosos, quando julgava a causa justa - ainda que a de
Um banquete no trópico (2 1 ed. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000), pp. 215-233.
, Ver, por exemplo, respectivamente, Maria Beatriz Nizza da Silva, Cultura e sociedade no Rio de um humilde telegrafista ou a de um desprotegido professor de inglês - e sobre-
Janeiro (1808-1821) (São Paulo: Nacional, 1977); Maria Odila Silva Dias, "A interiorização da tudo suas convicções monárquicas criaram-lhe mais embaraços do que vanta-
metrópole", em Carlos Guilherme Mota (org.), 1822: dimensões (São Paulo: Perspectiva, 1972), gens em meio aos grupos e interesses que caracterizaram o início do regime
pp. 160-184; José Murilo de Carvalho, A construção da ordem (Rio de Janeiro: Campus, 1980);
e Valentim Alexandre, Os sentidos do império (Porto: Afrontamento, 1993). Para Varnhagen,
republicano, levando-o a considerar que ter caráter "é sempre um atraso na
ver, neste volume, o trabalho de Lucia Maria Paschoal Guimarães. vida". Apesar disso, cumpriu suas missões diplomáticas com rara competên-

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D. JOÃO VI NO BRASIL GUILHERME PEREIRA DAS NEVES

cia, divulgou o Brasil no exterior por meio de conferências e deixou uma vasta considerável a atividade diplomática, em função não só do período e de sua
obra, que só recentemente voltou a despertar a atenção, com a reedição, além própria formação, como também do uso que soube fazer das correspondências
do D. João VI, de Pernambuco: seu desenvolvimento histórico (1894), de consulares, que a sua posição lhe franqueava.
Formação histórica da nacionalidade brasileira (1911) e de No Japão: Nascido com a Paz de Vestfália, em 1648, o mundo da diplomacia mo-
impressões da terra e da gente (1903).6 dema adquiria nesse momento, graças aos problemas levantados pela Revolu-
Cosmopolita por formação e experiência, Oliveira Lima reputava "absur- ção Francesa de 1789 e pelas campanhas militares de Napoleão Bonaparte _
da e insuportável a fórmula inglesa - right or wrong my country, de um e ainda graças à consolidação dos Estados, ao surgimento da opinião pública e
patriotismo estreito e inexorável", preferindo ver a si mesmo como "bem nacio- à melhoria das comunicações, com o funcionamento mais regular dos correios
nal sem ser nacionalista" e procurando "alimentar um interesse compreensivo e o aprimoramento dos transportes - os contornos que conservaria até a Se-
pelas coisas do mundo". Essas preocupações transparecem de seus livros, em gunda Guerra Mundial. Nesse ambiente, a instalação excêntrica da Corte por-
que a perspectiva ampla e o esforço de compreensão dos diversos atores en- tuguesa na América exigiu um esforço extraordinário dos representantes
volvidos situam-no com freqüência à margem das correntes dominantes na diplomáticos estrangeiros credenciados no Rio de Janeiro, como igualmente
época, quase sempre orientadas por um nacionalismo bisonho. Como historia- dos portugueses atuando na Europa, do que resultou uma massa de documen-
dor, da mesma forma que Capistrano, outro original com quem se correspondia, tos valiosos, que Oliveira Lima soube utilizar como poucos.
deu continuidade ao trabalho nos arquivos inaugurado por Varnhagen, mas Portugal, após a Restauração de 1640, ocupou sempre um lugar marginal
infudindo-o com novas preocupações. Melhor do que ninguém, talvez ele pró- nesse intrincado tabuleiro, mas se o ouro do Brasil, durante o reinado de D.
prio tenha salientado suas qualidades ao traçar o perfil de João Lúcio de Aze- João V (1706-1750), e as medidas violentas do marquês de Pombal, como
vedo: ministro todo-poderoso de D. José I (1750-1777), deram-lhe um certo papel na
Europa, o tumultuado último quartel do século XVIII deixou-o numa posição
uma inteligência curiosa, penetrante e compreensiva, escrevendo história como ne- particularmente delicada. Segundo Oliveira Lima, o "imenso império colonial,
nhum outro no Portugal contemporâneo porquanto reúne à paixão do documento uma
tão vasto quanto vulnerável, estava no mais completo desacordo com os meios
segura dedução sociológica e uma pronta interpretação filosófica, tanto mais sugesti-
va quanto evita parecer impor-se [ ... ]'
de ação de que a metrópole dispunha para o defender e manter".8 Compreen-
dem-se, assim, as hesitações e os impasses da diplomacia portuguesa, a partir
de 1790, analisadas na "Introdução", dividido o Reino entre o temor às novas
idéias, de que a França se tomava o principal foco, e a necessidade de utilizá-
A OBRA: A DIMENSÃO POLÍTICA E DIPLOMÁTICA las, a fim de aprimorar o funcionamento do Império; entre o velho fantasma
da anexação pela Espanha, movendo-se na órbita francesa, e o receio de que
Diplomata por vocação e por gosto, Oliveira Lima estruturou o D. João a fragilidade do ultramar atraísse a cobiça da Inglaterra, a despeito da longa
aliança entre os dois países.
VI no Brasil a partir de uma narrativa cronológica dos acontecimentos, ainda
que maleável, desde a decisão de transferir a corte de Portugal para o Brasil, Após a ridícula guerra de 1801 contra o vizinho ibérico, de que resultou a
concretizada em 1808, até o seu regresso, em 182l. Nela assume um peso perda da praça de Olivença, na fronteira, as intrigas e as pressões sobre Por-
tugal aumentaram, à medida que Napoleão se desembaraçava dos problemas
no Leste e se voltava para o Sul, obcecado em isolar a Inglaterra. Como resul-
• o primeiro saiu no Recife, pela Secretaria de Educação e Cultura, em 1975. Os dois outros, no tado, em 1807, a Europa oferecia um espetáculo extraordinário:
Rio de Janeiro, pela Topbooks, em 1997.
7 Manuel de Oliveira Lima, Memórias (estas minhas remimscências ... )(Rio de Janeiro: José
Olympio, 1937), p. 37, obra que Oliveira Lima deixou inconclusa ao falecer e que foi editada por • Manuel de Oliveira Lima, D. João VI no Brasil (3 1 ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996), p. 23.
Gilberto Freire. Todas as informações biográficas e citações nesta seção provêm desse livro; Doravante, as citações dessa obra serão feitas a partir dessa edição, embora corrigidas, quando
assim como dos demais documentos incorporados ao volume. necessário, de pequenos erros tipográficos pela primeira edição de 1908.

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GUILHERME PEREIRA DAS NEVES
D. JOÃO VI NO BRASIL

o rei da Espanha mendigando em solo francês a proteção de Napoleão; o rei da Prússia Estabelecida a corte no Rio de Janeiro e tomadas as providências indis-
foragido da sua capital ocupada pelos soldados franceses; o Stathouder, quase rei da pensáveis, a imposição dos tratados de 1810 pela Inglaterra (capítulo IX) reve-
Holanda, refugiado em Londres; o rei das Duas Sicílias exilado da sua linda Nápoles; lou a continuada e inevitável dependência em relação ao tradicional aliado. Em
as dinastias da Toscana e Parma, errantes; o rei do Piemonte reduzido á mesquinha seguida, porém, as "intrigas platinas" (capítulo VII) mostrariam o surgimento
corte de Cagliari [ ... ]; o Doge e os X enxotados do tablado político; o czar celebrando
de interesses propriamente americanos, motivados pela antiga pretensão de
entrevistas e jurando amizade para se segurar em Petersburgo; a Escandinávia prestes
estender as fronteiras do Brasil ao Prata, que renasciam em função da inquie-
a implorar um herdeiro dentre os marechais de Bonaparte; o imperador do Sacro
Império e o próprio Pontífice Romano obrigados de quando em vez a desamparar tação das populações do vice-reinado, diante da acefalia do Trono espanhol na
seus tronos que se diziam eternos e intangíveis
9 Europa, e das atitudes da sempre inquieta Carlota J oaquinaY Esta sentia "em
si sobeja virilidade para ser ela o Rei" e com ela fora "supinamente inclemen-
Nessas condições, após sucessivas tentativas de apaziguar a França, que te" o fado, "reduzindo-a à inação e à impotência quando [a natureza] a dotara
abalaram a aliança inglesa, a decisão de partir para o Brasil, com raízes no para querer e dominar, ver e resolver por si, para ser uma Isabel de Inglaterra
passado remoto, e longamente ponderada, revelou-se muito mais "como uma ou uma Catarina da Rússia".n Rodrigo de Sousa Coutinho, agora conde de
inteligente e feliz manobra política do que como uma deserção covarde".1O Linhares, quis inicialmente impor uma tutela portuguesa ao Prata, mas não
Em contraponto a uma tradição estabelecida pelo Instituto Histórico e tinha condições de efetivá-la. Em seguida, pensou-se numa regência de D.
Geográfico Brasileiro (mas não por Varnhagen) de desprezar as tradições por- Carlota para a região, mas o projeto gorou. Em 1811, uma intervenção militar
tuguesas, a fim de erigir uma tradição nacional, fundada na imagem do i~d~ge­ portuguesa no atual Uruguai, alegadamente para conter os conflitos locais,
na e da natureza tropical idealizada, Oliveira Lima, a essa percepção ongmal acabou anulada pela pressão inglesa e pelas dificuldades da empresa, voltando
quanto à mudança da sede do trono, acrescenta uma outra, que até hoje não f~i tudo à situação inicial. Conforme Oliveira Lima, "nesse malfadado imbroglio
examinada com o cuidado que merece. Trata-se da idéia de que o estabelecI- platino cada qual procurava enganar o outro, adversário ou amigo, todos afinal
mento da Corte na América traria as condições para fundar um novo império, se enganando a si mesmos".14
mas desenvolvida a partir da concepção de um império luso-brasileiro, apre- Paralelamente, problemas semelhantes colocavam-se em relação à
sentada por Rodrigo de Sousa Coutinho, secretário da Marinha e do Ultramar Espanha, cujo rei legítimo renunciara por imposição de Bonaparte, sendo subs-
entre 1796 e 1801, como forma de manter a integridade do conjunto ameaçada, tituído no trono por um irmão do general, levando à formação da Junta de
em uma "Memória" de 1797-1798, que aparentemente o autor do D. João VI Cádiz. Apesar dos esforços de Pedro de Sousa e Holstein, futuro conde de
não conheciaY Essa intenção, reagindo com os acontecimentos na Europa, Palmela, como representante português nessa última cidade, as tentativas de
com as condições do Brasil e de Portugal e com as limitações políticas e soci- colocar D. Carlota como regente dos domínios de sua família acabaram igual-
ais das tradições luso-brasileiras, daria origem, como mostra Oliveira Lima nas mente bloqueadas pela Inglaterra, à qual não interessava a eventual união das
páginas finais do primeiro capítulo, a uma série de antinomias, responsáveis, duas monarquias ibéricas (capítulo VIII).
em última análise, pelo rompimento de 1822. Ao contrário, a conquista da Guiana Francesa (capítulo XI) foi "um feito
[ ... ] mais de natureza a produzir efeito, do que de real importância pelos seus
efeitos duradouros",15 não chegando jamais o território a ser declarado parte
, Ibid., p. 49.
10 Ibid., p. 43.
integrante dos domínios portugueses. Ao ocupar Caiena ainda em 1808, com
11 A melhor edição disponível da "Memória sobre o melhoramento dos domínios de Sua Majestade

na América" encontra-se em Andrée Mansuy Diniz Silva (org.), D. Rodrigo de Sou::a Coutinho:
textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811), vol. 2 (Lisboa: Banco de Portugal,
12 Quanto aos movimentos de independência no vice-reinado do Prata, ver François-Xavier Guer-
1993), pp. 47-66. Para a idéia de império luso-brasileiro, ver ainda Kenneth Maxwell, "A
ra, Modernidad y independencia (México: Fondo de Cultura Económica, 1993).
geração de 1790 e a idéia do império luso-brasileiro", em Chocolate, piratas e outros malandros:
13 Manuel de Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, cit., p. 177.
ensaios tropicais (São Paulo: Paz e Terra, 1999), pp. 157-207; Maria de Lourdes Viana Lyra, A
14 Ibid., pp. 209-210.
IItopia do poderoso império (Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994); e, sobretudo, o já citado Os
II Ibid., p. 289.
sentidos do império, de Valentim Alexandre.

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D. JOXO VI NO BRASIL GUILHERME PEREIRA DAS NEVES

apoio inglês, o que a corte do Rio de Janeiro visava "era ter o que restituir na devolu~ãO do territ~rio de Olivença, perdido para a Espanha na guerra de 1801;
paz geral que fatalmente devia rematar o período das guerras napoleônicas",16 a ~xaçao da fronteira norte com a Guiana Francesa de acordo com o estabe-
a fim de assegurar os tradicionais limites americanos setentrionais, fixados lecld~ ~~ Ut,re~ht; e ~ ~e.fesa do tráfico de escravos, cuja abolição a pressão
pelo tratado de Utrecht (1713), que a Inglaterra havia alterado, sem consenti- da oplmao pubhca bntamca exigia. 17 Misturavam-se, assim, interesses ameri-
mento de Portugal, no acordo de Amiens com a França em 1802. canos e europeus do império, que: apesar das habilidades do negociador,
Dispostos, assim, os fios, o tear de Oliveira Lima os combina, em segui- P~lmela: acabaram por mostrar-se Inconciliáveis. Embora elevado o Brasil a
da, numa série de capítulos (do XII ao XVII). Árduas para os não-iniciados no reinO umdo a Portugal e Algarves, a antiga metrópole pennanecia aos olhos
jogo diplomático, repletas de minúcias de procedimentos de agentes que não se europeus um paí~ insigni.ficante e, ademais, na órbita de influência inglesa, não
furtam a recorrer à dissimulação e à bravata, e dificeis de captar nas suas merecendo por ISSO maiOres considerações, nem mesmo da Inglaterra. Em
linhas gerais, essas páginas, não obstante, constituem o coração do livro, em compensação, a .i~possibilidade de convencer a Espanha a ceder Olivença, as
torno das quais articulam-se os demais assuntos. Trata-se, em suma, de anali- demoras em deCIdIr as fronteiras com a Guiana e o limitado sucesso de con-
sar a posição da monarquia sediada no Rio de Janeiro em relação ao cenário servar o tr~fico ao s~,l ?O Eq~ador por mais alguns anos, além de pequenas
internacional, após a paz na Europa, e de verificar o complexo xadrez de inte- compensa~oe~ pecumanas, deixaram as mãos livres à corte no Rio de Janeiro
resses, que a transmigração de 1808 produzira no interior do império luso- para seus intUitoS expansionistas.
brasileiro. De fato, a,"o~upação da Banda Oriental foi o maior desforço, e desforço
Na realidade, a derrota de Napoleão colocara novamente em questão a tomado pelo pnnclpe regente e seus conselheiros em oposição a toda a Euro-
natureza da estadia da Corte na América e o projeto de um novo império a que p~, mesmo. co~tra o aliado inglês, do que Portugal deixara de alcançar em
ela dera origem. Nada mais impedia o regresso de D. João a Lisboa, a não ser Viena e de Justiça lhe cabia".18 Aproveitando-se de uma conjuntura favorável
a consciência da segurança de que gozava ao residir além-mar, distante por- n~ ~uropa, a invasão justificou-se em função da anarquia reinante em Monte-
tanto dos centros de poder europeus, e a percepção, já expressa por Rodrigo ~Ideu, p~~vocada pelas incursões dos bandos annados de Artigas, para quem
de Sousa Coutinho desde o final do século XVIII, quanto à irrelevância do espanhOls, portenhos e portugueses eram em grau igual detestáveis ", 19 e que
pequeno reino diante das dimensões de seus domínios ultramarinos. No entan- ta~~~uc.o agradava ao sempre instável governo de Buenos Aires. Na Europa,
to, de um lado, para o jogo político das potências reunidas no Congresso de a iniCiativa desencadeou seguidas negociações, conduzidas por Palmela do
Viena, assim como para os habitantes da antiga metrópole, agora administrada la~~ P?rtuguês, mas ?~S quais pouco resultou de concreto, apesar da oposição
por uma regência sob a tutela da Inglaterra e quase reduzida à condição de bn~anlca ao ~esto militar .de D. João e da pennanente ameaça espanhola, ja-
colônia, não se concebia que o Brasil assumisse o papel que todos julgavam mais concretizada, de enviar uma expedição militar ao Prata.
pertencer a Portugal. De outro, as possibilidades oferecidas pela experiência . T~l.situação transfonnou o Rio de Janeiro no centro de uma atividade
di reta do Novo Mundo tinham crescentemente interiorizado a metrópole nos dIP.lo~atIca ainda mais intensa, como a do inteligente núncio Caleppi, e plena
trópicos e, diante da fragilidade da Espanha e da instabilidade no Prata, de inCidentes, como o do comportamento inadequado do enviado russo Balk-
redespertado os sonhos expansionistas da corte em relação à região. Criava- Poleff, em cuja descrição sente-se todo o gosto de Oliveira Lima pela c~rreira
se, dessa forma, uma situação ambígua, que comandaria o vaivém das deci- que abraçara (capítulo XXI). Paralelamente, procurando libertar-se da sufo-
sões nos anos seguintes. cante in~uência inglesa e tendo constatado a inclinação da Rússia pela Espanha,
Em Viena, os representantes portugueses, há mais de quatro meses de em funçao das promessas de uma base naval no Mediterrâneo, a corte do Rio
comunicação com a Corte, jogaram "às cegas um jogo de que se não conhe-
ciam todas as regras", procurando resolver as três questões mais prementes: a
17 A expressão entre aspas é de Valentim Alexandre, op. cit., p. 297, o melhor estudo sobre o
assunto posterior a Oliveira Lima.
18 Manuel de Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, cit., p. 371.
lO Ibid., p. 29l. 19 Ibld., p. 373.

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D. JOÃO VI NO BRASIL GUILHERME PEREIRA DAS NEVES

de Janeiro buscou uma reaproximação com a Áustria, efetivada pelo casa- A OBRA: A DIMENSÃO SOCIAL E CULTURAL
mento do herdeiro D. Pedro com a princesa Leopoldina em 1817.
Como resultado, em 1820, D. João VI continuava a dar todos os indícios Se OS acontecimentos políticos e o jogo das intrigas diplomáticas servem
de que permanecia fiel ao sonho do novo império que viera buscar na América. de espinha dorsal ao D. João VI no Brasil, são, no entanto, as análises sociais
Nesse ano, porém, a sublevação do Porto logo estendeu-se à antiga metrópole e culturais que lhe emprestam a profundidade e a densidade de obra-prima.
como um todo, convocando-se cortes para a elaboração de uma constituição e Nesse sentido, os capítulos II, "A ilusão da chegada: o que era a nova corte",
exigindo-se a volta do soberano. Este, "o único otimista, e do gênero voluntá- e III, "O que era o resto do Brasil", servem de quadro geral, retomando um
rio, que é o mais dificil de se deixar abalar", foi surpreendido pelos aconteci- l)1odelo proposto por Varnhagen, mas acrescentando-lhe cor e movimento,
mentos, deixando-se cair em abatimento. "A sua finura como que se extraviara, como faria igualmente Capistrano de Abreu, quase na mesma época, com
e a sua prudência tanto se desaprumara com o balanço, que degenerava nessa uma técnica diferente, no célebre "Três séculos depois" dos Capítulos de
emergência na mais improficua vacilação. "20 Apesar disso, a solução era cla- história colonial. 26 Ao passo que o visconde de Porto Seguro procede de
ra: ou partia o rei ou enviava-se o príncipe herdeiro para Portugal, dividindo-se maneira pedestre e quase exclusivamente informativa, imaginando fornecer
a família real, a "beneficio de sua própria conservação", pois na raiz do proble- uma idéia do território americano enquanto "os príncipes e toda a real família
ma encontrava-se a "discórdia criada entre as duas metades da monarquia, bragantina" navegavam "através do Atlântico"; e que o genial cearense pro-
das quais uma reclamava a sua dinastia, sob pena de fazer voar o trono em curava caracterizar a obra de colonização portuguesa em umas poucas pin-
estilhaços, e a outra timbrava em conservar a investidura recebida de cabeça celadas altamente sugestivas, Oliveira Lima esparrama por quase sessenta
do império".21 páginas uma multidão de detalhes, integrando-os no enredo de uma grande
Nos meses que se seguiram, à indecisão das autoridades contrapôs-se o peça dramática.
crescente entusiasmo pela corrente constitucional, "em comunicação com os
dínamos de Lisboa",22 que contagiou o Brasil de norte a sul, a partir do Pará, O desembarque da família real portuguesa no Rio de Janeiro, aos 8 de março de 1808,
passando pela Bahia, até alcançar o Rio de Janeiro em 26 de fevereiro de foi mais do que uma cerimônia oficial: foi uma festa popular. Os habitantes da capital
1821. Evidenciava-se, assim, que, embora os brasileiros preferissem "geral- brasileira corresponderam bizarramente às ordens do vice-rei conde dos Arcos e
saudaram o príncipe regente, não simplesmente como o estipulavam os editais, res-
mente que o rei ficasse, [ ... ] não mais os satisfazia o velho estado de coisas".23
peitosa e carinhosamente, mas com a mais tocante efusão. Dom João pôde facilmente
Enquanto o soberano ainda hesitava entre partir ele próprio ou enviar o herdei-
divisar a satisfação, a reverência e o amor que animavam seus súditos transatlânticos
ro da coroa, "sem ousar contudo pronunciar umfico", a união de sentimentos nos semblantes daqueles que em aglomeração compacta se alinhavam desde a rampa
de ambos os lados do Atlântico fazia de 1821 "o ano português", assim como do cais até a Sé, que então era a igreja do Rosàrio; os sacerdotes paramentados de
as divergências que se seguiriam fariam de 1822 "o ano brasileiro".24 Nessas pluviais de seda e ouro, incensando-o, ao saltar da galeota, com hissopes de ouro,
condições, após os trágicos episódios da praça do Comércio de 21 de abril, a tanto quanto os escravos humildes que de precioso só podiam ostentar num riso feliz
as suas dentaduras nacaradas 17
partida de D. João, menos de uma semana depois, carregando consigo a "de-
silusão do regresso" (capítulo XXX), tanto teve "de soturna", quanto "tivera
de alegre a chegada''.25 Anuncia, assim, sem parecer impor-se, a segura dedução sociológica e a
pronta interpretação filosófica que admirava em João Lúcio de Azevedo, utili-

lO Ibid., p. 635. 26 Para Capistrano de Abreu, ver o trabalho de Ronaldo Vainfas, "Capistrano de Abreu, Capítulos de
21 Ibid., p. 648. história colonial", em Lourenço Dantas Mota (org.), Introdução ao Brasil: um banquete no
!2 Ibid., p. 665. trópico, cit., pp. 171-189. Para Varnhagen, ver o capítulo XLIX, "Continuação. O Brasil e suas
l3 Ibid., p. 661. capitanias durante a regência em Lisboa", de História geral do Bras/I, vol. 5 (3 1 ed. São Paulo:
24 Ibid., p. 680. Melhoramentos, s/d), pp. 65-102.
" Ibid., p. 691. 27 Manuel de Oliveira Lima, D. João VI no BraSil, cit., p. 65.

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D. JOÃO V! NO BRASIL GUILHERME PEREIRA DAS NEVES

zando-as em seguida para ver na estadia de D. João no Brasil muito mais do Sérgio Buarque de Holanda de Raízes do Brasil,33 escrito quase trinta anos
que um episódio. Reveste-a com a dimensão de um conflito de culturas - entre mais tarde, considerava que a
a cerimônia oficial e a festa popular; entre a etiqueta cortesã e a efusão espon-
tânea da população; entre os hissopes dourados dos clérigos e as dentaduras hipocrisia, que os ingleses denominam a sombra da virtude, é um traço pouco peculiar
nacaradas dos escravos - do qual nasceria o país independente. Revela-se, à raça latina, mas no Brasil a sua carência não significava infelizmente franqueza e
rijeza de caráter. Denunciava pelo contrário escassez de sólidas qualidades, a incons-
dessa forma, um precursor da idéia de processo civilizatório proposta por
ciência do mal, a falta de uma alavanca moral que não fosse a pura superstição
Norbert Elias;~ ao falar de "aparelho de aquisição mental'',"9 intui o que Lucien religiosa, a ignorância comum numa sociedade que não só não tinha ainda ao seu
Febvre quis dizer com o conceito de instrumentos mentais;30 e mostra-se alcance os meios de se ilustrar, como revelava geral antipatia ao ensino e limitada sede
sensível aos mesmos detalhes do cotidiano que posteriormente iriam deleitar de angariar conhecimentos. As exceções, mesmo numerosas, não invalidam a regra. l4
Gilberto Freire:
Por isso, não podia deixar de valorizar a obra civilizatória que a presen-
A família concentrava-se toda na sala de trás, espécie da que nas casas alemãs chamam ça da corte ensejou, em particular ao adotar uma política liberal para com os
Berlinerzimmer, onde tinham lugar as refeições, sobre uma mesa ou no chão, comen- estrangeiros, "a mais antiga afirmação da concepção [no Brasil] de que o
do-se com facas ou com a mão; executavam cabriolas as crianças educadas com capri-
homem é cidadão do mundo". No entanto, razões
chos e sem roupas, e se conservava todo o dia, de pernas cruzadas sobre uma esteira,
a dona da casa, rodeada das mucamas, costurando, fiando, fazendo renda, armando
múltiplas e sobretudo a falta de correspondência entre esse programa progressivo e a
flores de seda e papel, batendo bolos gostosOS. ll
atmosfera social do Brasil, obstaram a que a imigração fosse desde o seu início um
fator importante do nosso adiantamento, mas o inquestionável é que então se inaugu-
E, para tanto, recorria, sempre com um extremo cuidado, a um conheci- rou uma nova ordem de coisas. Que menos do que revolucionária se pode chamar uma
mento extraordinário dos viajantes, tanto daqueles mais conhecidos, como política que ia dotar o Brasil de todos os órgãos pelos quais se exercem numa comu-
Luccock, quanto daqueles então quase ignorados, como Tollenare, além de nidade as funções judiciárias, administrativas e econômicas tais como tribunais, jun-
praticamente ter sido o responsável pela divulgação da excepcional correspon- tas, conselhos e bancos, insuflando-lhe deste modo vida independente? E, todavia, a
dência do sempre insatisfeito funcionário da chancelaria-mor do reino, Luís revolução seria conservadora, pois que presidiria às reformas intentadas pelo trono
um certo, um forte socialismo de Estado, muito parecido com o paternalismo, num
Joaquim dos Santos Marrocos, posteriormente publicada nos Anais da Biblio-
tempo e num meio aliás em quc cra ele absolutamente indispensável, mesmo porque
teca Nacional. a atividade individual, além de inexperiente no empregar-se isolada e desajudada,
Por trás dessa percepção encontrava-se a ótica cosmopolita de Oliveira tropeçava em mil embaraços criados e levantados pelo próprio governo 35
Lima, que desprezava o "patriotismo", mas não era imune "ao amor da terra
natal", algo, para ele, inteiramente diverso?" Na realidade, como Varnhagen, o A esse Brasil, até então "em grande parte percorrido, pode mesmo dizer-
autor de D. João VI no Brasil não desprezava a herança portuguesa, mas, se até certo ponto explorado, mas quase nada estudado" e que se abriu "oficial-
como Capistrano, dava-se conta da fragilidade dos elementos constitutivos da mente ao mundo" em 1808,36 a presença da coroa trouxe uma atividade
civilização ocidental, nascidos das Luzes setecentistas, com que os três sécu- desconhecida, inicialmente impulsionada por Rodrigo de Sousa Coutinho, cuja
los de colonização tinham dotado o Brasil.·Num diagnóstico que faz pensar no idéia fundamental

28 Ver O processo civIll::atório, 2 vols. (Rio de Janeiro: Zahar, 1993).


29 Manuel de Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, cit., p. 7\. 3J Ver o trabalho de Brasílio Sallum Jr., "Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil", em Lourenço
30 Le probleme de I 'incroyance au XV!' siecle: la religion de Rabelais (Paris: Albin Michel, 1968). Dantas Mota (org.). Introdução ao BraSIl. Um banquete no trópico, cit., pp. 235-256.
[Em francês, a expressão é "outillage mental".] l4 Manuel de Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, cit., p. 84.

II Manuel de Oliveira Lima, D. João VI no BraSIl, cit., p. 82. " Ibid., pp. 85-86.
32 Manuel de Oliveira Lima, Memórias (estas minhas reminiscências), cit., p. 19. 36 Ibid., p. 89.

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D. JOÃO VI NO BRASIL GUILHERME PEREIRA DAS NEVES

parecia ser a de acelerar extraordinariamente o movimento sem mudar o sistema do ação. A mudança da corte transformara com efeito o Rio de Janeiro no centro do
maquinismo, apenas aumentando-lhe as peças e carregando demasiado a pressão. Na Império Americano, no que Lisboa era previamente para esses fragmentos geogra-
lida não ocorria ao precipitado engenheiro indagar se a velha e carcomida armação ficamente anexos e moralmente esparsos da monarquia portuguesa, agora unidas de
agüentaria a refrega. 37 um reino quase autônomo. 41

Os efeitos se fizeram sentir a princípio na própria cidade do Rio de Janei- Nesse aspecto, os capítulos sobre o tráfico de escravos (X) e sobre o
ro, "uma espécie de Lisboa, irregular e ainda assim banal, com os documentos tratamento dos índios (XIX) não trazem grandes novidades e não deixam de
artísticos de menos e uma frondosíssima vegetação a mais".38 Em nenhum revelar os preconceitos que Oliveira Lima partilhava com sua época, limitan-
setor, porém, eles se manifestaram mais claramente do que nos aspectos cul- do-se o primeiro à descrição das negociações diplomáticas quanto ao assunto
turais, abalados desde 1759 pelo "duro golpe" que representara a expulsão dos a que o Congresso de Viena conduzira e servindo o segundo mais de oportuni-
jesuítas39 - compreensão, aliás, numa época marcada ainda por um intenso dade para tratar dos esforços empregados de maneira irregular para estimular
pombalismo antijesuítico, bastante original de Oliveira Lima. Apesar de ter a ocupação do interior. 4" Segundo ele, citando Euclides da Cunha ao final, a
fracassado o projeto de uma universidade, a criação da imprensa régia, o apa-
recimento de periódicos, a multiplicação de escolas profissionais, o crescimen- colonização do interior do Brasil, Dom João VI a encontrou e a deixou sob a forma de
um desbravar empírico, exercido a ferro e fogo, sem o aparelho apropriado nem
to do comércio livreiro, a vulgarização dos espetáculos de teatro e música, o
sombra de fundamento científico. Traduzia-se, como hoje ainda, pelas derrubadas e
tom geral menos predominantemente religioso propiciaram de fato a "emanci-
queimadas que, a pretexto de alargarem a zona de cultivação, estendiam, com a su-
pação intelectual" (capítulo V) da antiga colônia, cujos naturais já haviam par- pressão das matas, a área das secas para nela vegetar, sobre um solo que de fértil
ticipado intensamente da vida cultural da metrópole ao longo do século XVIII. passava a estéril, "e decaída pelo impaludismo, tão característico das regiões incultas,
Na realidade, a uma população de mestiços lamentáveis, agitantes num quase deserto"43

emancipação intelectual de uma minoria restrita, pode mesmo dizer-se ínfima, estava Ao que acrescentava um outro eco antecipado do Sérgio Buarque de
feita antes da chegada da corte: restava propagá-Ia, quando não entre a grande massa,
Holanda de "O semeador e o ladrilhador", ao considerar que "o português é
refratária a estudos mais sérios e cuja situação material não comportava cultura, pelo
por temperamento muito mais um explorador do que um colonizador" .44
menos entre as camadas de cima, às quais competia a função diretiva. 40
Em compensação, ao tratar de "A Revolução Pemambucana de 1817"
Essa obra, fruto dos treze anos do reinado americano de D. João, marcou (capítulo XX) - cujo principal depoimento, a obra de Francisco Muniz Tavares,
um divisor de águas: ele iria anotar minuciosamente alguns anos depois 45 - Oliveira Lima demons-

Foi como se houvesse começado uma era nova na existência política do Brasil.
41 Ibid., p. 169.
Principiou desde então o país a ter, não mais a suposição mas a consciência da sua
importância. As capitanias estavam dantes separadas, algumas eram até hostis. 4' Em seguida à publicação de D. João VI no Brasil, constituiu-se uma extensa e diversificada
historiografia sobre a escravidão, assim como há pouco começaram a aparecer trabalhos signifi-
Acontecia o mesmo que na América do Norte durante o regime de dependência
cativos sobre os indígenas. Ver, entre as publicações mais recentes, Mary C. Karasch, Slave Life
colonial. O que lá fizeram a guerra de libertação e a obra do Congresso tão felizmen-
in Rio de Janeiro, 1808-1850 (Princeton: Princeton University Press, 1987); João Luiz R.
te continuada por Washington, aqui o fez a Coroa com a sua generosa iniciativa, que Fragoso, Homens de grossa aventura (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992); Manolo G.
consagrou um estado de coisas criado pelas circunstâncias históricas, independente Florentino, Em costas negras (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995); Luiz Felipe de Alencastro,
da sua vontade, mas também pelas múltiplas e esclarecidas medidas, filhas da sua O trato dos viventes (São Paulo: Companhia das Letras, 2000); Manuela Carneiro da Cunha
(org.), HistÓria dos índIOS no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 1992); e John M.
Monteiro, Negros da terra (São Paulo: Companhia das Letras, 1994).
37 Ibid., p. 125. 43 Manuel de Oliveira Lima, D. João VI no Braszl, cit., p. 491.
JS Ibid., p. 67. 44 Ibld., p. 492.
J9 Ibid., p. 159. 4' Francisco Muniz Tavares, História da Revolução de Pernambuco em 1817 (3' ed. Recife:
40 Ibid., pp. 174-175. Imprensa Industrial, 1917).

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------------- -

~.
D. JOÃO VI NO BRASIL GUILHERME PEREIRA DAS NEVES

tra um grande equilíbrio e exemplar sobriedade. Não traça propriamente um


.....'
para exibir vigor material de que não dispunha, e manifestar entusiasmo mais geral,
.ft,,;
quadro do desenrolar do movimento, mas busca situá-lo em relação ao seu ainda que não mais ruidoso e consistente, do que o fornecido pelos vigários democra-
objeto central, a atuação de D. João. Começa por mostrar as primeiras notíci- tas que foram a cabeça e o coração do movimento, os senhores de engenho de sangue
azul, rivais natos dos mascates [ ... ] e os patriotas, em diminuto número, de biblios-
as sobre o acontecimento e reúne informações sobre as tensões em Pernambuco
sugestão, frutos das academias do Cabo e do Paraís0 48
na época, para concluir que a
Na corte, com os sucessos recentes das colônias espanholas em mente,
revolução de 1817 tem que ser examinada sobretudo pelo seu lado teórico, no seu
aspecto correlativo, em sua feição proselítica. Foi um sinal mais dos tempos, a mani-
o episódio despertou os maiores temores entre os diplomatas, mas sobretudo
festação de uma combinação de impulsos em que entravam o amor exagerado, literário na fidalguia e no comércio do Rio, que tomaram "a dianteira em todas as
se quiserem, filosófico mesmo, mas em todo caso ativo, da liberdade, e uma noção manifestações de solidariedade com Dom João VI", suprindo o erário vazio
jactanciosa da valia americana [ ... ] com muitos dons voluntários e empréstimos gratuitos. Entretanto, "derrubada
pelos próprios elementos conservadores e até populares da capitania", a revo-
Identifica, em seguida, o papel exercido "pela cizânia levantada 'entre os lução já se encontrava agonizante quando entraram em Pernambuco as tropas
nascidos no Brasil e os nascidos em Portugal''', motivo básico do qual da repressão, passando a proceder com uma rigidez que estava em desacordo
com o espírito das ordens recebidas, descontentando o soberano, por que com-
aparecem os outros como florescência e, cortados do pé, não significam bastante para bates, "lhes não proporcionara o fado na província que tivera a ousadia de
explicarem a sublevação, convindo notar que nos ciúmes nativistas, nem todos de
pensar e a loucura de tentar a sua independência democrática". 49
preponderância política, que a tradição consagrava, entravam em não pequena escala
zelos alimentados pelos nacionais dos bens alcançados pela atividade comercial dos
Finalmente, é nos dois capítulos sobre as festas na corte (XXV e XXVI)
portugueses 46 que surge a maior originalidade do livro, através da complementaridade que
se estabelece entre eles, indicando justamente a perspectiva fundamental do
Percebe, embora não saliente, os agravos ressentidos na periferia pela autor. Ao contrapor "O espetáculo das ruas" às "Solenidades da corte", Oli-
posição de centro que o Rio de Janeiro assumira, permanecendo o "governo veira Lima procurava ressaltar - sem esconder seus preconceitos, nem
das províncias" guiado pelos mesmos princípios daqueles das capitanias colo- tampouco um simpático faSCÍnio por usos e costumes que lhe eram estranhos -
niais, e ainda a peculiaridade pernambucana de uma "aristocracia territorial o conflito de culturas que marcava o país então e que permanece como um de
túrgida de orgulho de nascimento e de sentimento bairrista", que Evaldo Cabral seus maiores problemas.
de Mello iria mais tarde analisar. 47 Apesar disso, faltava à revolução uma base
social. O comércio, majoritariamente nas mãos de naturais de Portugal, As superstições continuam a florescer na nossa capital fluminense - um recente e
curioso inquérito sobre as religiões do Rio o demonstrou, exibindo nomeadamente em
toda a sua crueza as grotescas e terríveis superstições negras - mas não mais se
só podia ser adverso ao movimento emancipador e republicano, o qual não dispondo
ostentam como quando percorriam a cidade os vendedores de arruda, que todas as
senão Iimitadamente de forças regulares - as que se rebelaram fizeram-no por espírito
negras compravam para se preservarem de feitiçarias; ou se dava em cheio com um
de imitação muito mais do que por consciência patriótica e não ofereciam plena
ruidoso funeral de filho de rei africano (o qual continuara na escravidão a exercer
confiança em caso de incertezas - e tendo que lutar contra um sentimento monárquico
prestígio e autoridade sobre os ex-vassalos de seu pai), cujo cadáver fora velado por
que provou ser ainda fervoroso em muitos, ou pelo menos com o temor do desconhe-
deputações das diferentes nações da Costa, e se transportava numa rede, precedida de
cido entre a população de certa condição, carecia de apoiar-se nas camadas baixas. A
um negro atirando foguetes e bombas e de outros executando em todo o percurso
ralé é que afinal podia dotar a revolução do largo fundamento de que esta precisava
cabriolas pelo chão, e seguida de uma multidão cor de ébano, em parte silenciosa,

46 Manuel de Oliveira Lima, D. João VI no BraSIl, cit., p. 498.


47 Evaldo Cabral de Mello, Rllbro velO: o imagináno da restallração pernambllcana (2' ed. Rio de 48 Manuel de Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, cit., pp. 503-504.

Janeiro: Topbooks, 1997) e A [ronda dos ma::ombos (São Paulo: Companhia das Letras, 1995). •• Ibid., pp. 510,513 e 517.

160 161
D. JOÃO VI NO BRASIL GUILHERME PEREIRA DAS NEVES

lúgubre e burlesca a um tempo, em parte tangendo instrumentos esquisitos e entoan-


, Diariamente, percorriam ainda as ruas da cidade o Viático, "levado aos
do cantigas estridentes.
monb~ndos ,e doentes debaixo do pálio ou da umbela, segundo o acompanha-
De fato, era "sobretudo a população de cor que emprestava à capital do men~~ la maIS ou menos lu,xuoso"; e, mais esporadicamente, o bando munici-
Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves o seu aspecto estranho e único na pal, proclamando aos habItantes algum acontecimento, auspicioso ou lutuoso
monarquia", documentado pelas litografias de Debret e Chamberlain, que for- ocorrido na corte", seguido pela "música de um regimento da milícia" ou '
" . . ,. , ' o
necem "uma idéia bastante precisa do que era o carnaval perpétuo dessa cida- smlstro prestIto dos condenados à morte",53 A noite, porém, os assaltos ten-
de sob muitos aspectos ainda colonial, sob outros, não menos abundantes, deram a multiplicar-se e, à falta de segurança, somava-se o temor de um le-
exótica, e apenas cortesã por algumas, mais raras, feições",5o vante da gente de cor,54
De início, a corte no Rio de Janeiro sofreu as limitações das circunstân-
Como, sem faltar à verdade de uma reconstrução literària, expulsar do tablado
c~as que tinham provocado a transferência para o Brasil. Num dos primeiros
fluminense da época esse mundo animado de barbeiros ambulantes armados de medo-
nhas navalhas, cesteiros vendendo os samburás que teciam, mercantes de galinhas, de dIas de grande gala passados na América, "formavam todo o cortejo seis seges
caça, de palmitos, de leite, de capim para forragem, de milho, de carvão, de cebolas e abertas puxadas ,por mulas e guiadas por negros pouco asseados", enquanto
alhos, de sapé para colchões, quitandeiras de angu e café, carregadores, condutores de D, Carlota J oaquma, "mais enérgica e varonil que o marido, preferia muito sair
carros de bois que chiavam desesperadamente pelas ruas sem calçamento ou a cavalo a ser sacudida pelas ruas mal calçadas e pelas estradas esburacadas",55
guarnecidas de lajes, puxadores de carretas com fardos, quatro adiante e dois atrás
~as cerimônias religiosas "o tom era menos de respeito que de folia", ressen-
empurrando, à moda japonesa?
tmdo-se o culto "do pouco recato dos eclesiásticos", em decorrência do clima
E, a esse cenário, ainda se acrescentavam "as mulatas da vida airada", da distância dos altos censores hierárquicos, da "relaxação que a existência d~
pavoneando-se como "sacerdotisas do amor fusco" em palanquins cobertos es~r~vidão emprestava aos costumes" e da "ausência de uma aguda questão
de esculturas douradas e fechados por pesadas cortinas de veludo e seda, relIgIOsa como a que no século XVI dotara de tanto valor e estimulara tanta
além das procissões, "fornecendo ocasião e pretexto para as elegâncias femi- virtude entre a combativa milíciajesuítica",56 Em 1810, o "cúmulo do burlesco"
ninas e as pompas das irmandades",51 foi atingido pelos festejos por ocasião do casamento da infanta Maria Teresa
A procissão do Corpo de Deus "assemelhava-se sem tirar nem pôr a "e que decerto procriaram o carnaval fluminense":
uma mascarada, compreendendo São Jorge a cavalo, o homem de ferro,
picadores e cavalos ricamente ajaezados da Real Casa, músicos negros de Duraram sete dias na praça do campo de Santana e, para amostra do que foi o desfilar
de carros alegóricos, basta referir que o primeiro, o dos mercadores, figurava um
vestes escarlates, atiradores de foguetes", ao passo que, em outra, a imagem
monte cor~ado pela estátua da América de arco, aljava, cocar e saiote de plumas,
da Virgem encontrava-se com a de Santa Isabel, mãe de São João Batista, cercada de mdlOs, quadrúpedes e pássaros assomando dentre as ervas e flores donde
tocando-se e beijando-se as duas, reproduzindo "na rua e ao natural a cena da também brotavam esguichos que aguavam a praça. Havia nos outros carros, ~fereci­
Visitação", A dos Passos "era toda de uma tonalidade roxa" e a de São Sebas- dos pelos ourives, negociantes de molhados, latoeiros, carpinteiros e outros como os
tião incluía inúmeros santos populares, como o preto São Benedito, que se
alternavam com
" Ibid., pp. 598-599, O tema das festas populares tem despertado um crescente interesse, Ver João
um rei, uma rainha, um papa com seu sacro colégio de cardeais e São Luís Rei de José, Reis, A morte é uma festa (São Paulo: Companhia das Letras, 1991); Martha Abreu, O
França transportando os três cravos e a coroa de espinhos, mas, sem respeito algum Impeno do dIvino (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999); e William de Souza Martins, "Corpo
pelas tradições dos alfaiates medievais, regressando da cruzada com um fato do de Deus, corpo do reI: a procissão de Corpus Christi na corte do Rio de Janeiro (1808-1821)", em
século XVII, cabeleira de médico de Mo\iere e mantéu estrelado de mágico. l2 AnaIs da XVII ReUnião da SBPH, Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica Curitiba 1998 pp
177-181. ' , .,

54 Tema também explorado por João José Reis, Rebelião escrava no Brasil (São Paulo: Brasiliense,
'0 Ibid., pp. 593-594, 1986).
" Ibid., p. 595. " Manuel de Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, cit., p. 81.
" Ibid., pp. 596-597. '6Ibid, , p. 621.

162 163
D. JOÃO VI NO BRASIL

denominaríamos hoje sindicatos profissionais, uma dança de chins, uma ilha do Pací-
T
I
GUILHERME PEREIRA DAS NEVES

antiportuguesa a debelada sedição pernambucana de 1817."60 Descia o pano


fico com seus indígenas, um castelo donde emergia uma dança militar, um escaler de sobre o reinado de D. João na América, mas afloravam, mais nítidas do que
marujos remando e cantando antes de desembarcarem e bailarem, um grupo de ciganos nunca, as tensões que levariam à desagregação do império luso-brasileiro.
com as mulheres nas garupas dos cavalos, até uma dança de homens disfarçados em
macacos, dando saltos, fazendo caretas, executando cabriolas, até formarem a pirâmi-
de humana - nil novi sub sole - e o macaquinho do tope desenrolar diante da tribuna
real [oO.] os retratos dos sereníssimos consortes
57 A ATUALIDADE DA OBRA

Gradualmente, porém, além do Palácio de São Cristóvão, criaram-se ins- Entre a ilusão da chegada de D. João ao Rio de Janeiro e a desilusão do
talações para a família real na ilha do Governador e na fazenda de Santa Cruz. regresso a Lisboa, Oliveira Lima não escreveu a biografia de um rei, mas
A cerimônia do beija-mão e as festas adquiriram uma certa pompa. A par- compôs, sob a forma de um drama, o retrato de uma época, em que o monarca
tir de 1813, a inauguração de um teatro no Rocio, subvencionado pela monar- assumiu o papel de protagonista. Na "essência um rei absoluto, mas na forma
quia, propiciou um espaço público inédito para a celebração dos aniversários um rei constitucional",61 D. João
da família real. Em 1815, a Capela Real já reunia um corpo de cinqüenta can-
não foi o que se pode chamar um grande soberano, de quem seja lícito referir brilhan-
tores e nela executava-se, por ocasião da Semana Santa, o Miserere de
tes proezas militares ou golpes audaciosos de administração: não foi um Frederico II
Pergolesi, "segundo os entendidos, [ ... ] com o mesmo encanto que em Roma,
da Prússia nem um Pedro I da Rússia. O que fez, o que conseguiu, e não foi afinal
na Capela Sistina", embora a rivalidade entre o músico mulato José Maurício pouco, fê-lo e conseguiu no entanto pelo exercício combinado de dois predicados que
Nunes Garcia e o reinol Marcos Portugal simbolizasse "correntes políticas cada um deles denota superioridade: um de caráter, a bondade, o outro de inteligência,
opostas", que antecipavam "o conflito artístico ao patriótico".58 o senso prático ou de governo. Foi brando e sagaz, insinuante e precavido, afável e
Essas mudanças transpareceram com a celebração do casamento entre pertinaz 6l
o herdeiro D. Pedro e a arquiduques a Leopoldina e, em fevereiro de 1818, com
a aclamação de D. João VI, "as mais solenes e deslumbrantes" festas reais Nesse trecho, como em muitos outros, Oliveira Lima revela também as
celebradas no Rio de Janeiro. 59 No largo do Paço, com projeto de Debret, suas qualidades de historiador. Do seu tempo e do seu meio, certamente, mas
erigiu-se uma galeria com dezoito arcadas e, ao centro, a tribuna em projeção com uma excepcional finura para avaliar os agentes históricos, sem desmerecê-
destinada à cerimônia, revestida no seu interior de veludo carmesim e pinturas los nem exaltá-los, e com um poder extraordinário para trazer à vida novamen-
alegóricas nos tetos. Junto ao cais, um templo de Minerva e um arco do triunfo te uma época distante, através da ampla documentação, imaginativamente
completavam a decoração da praça. O Campo de Santana, por sua vez, trans- interpretada, que consultou. Em suma, alguém que soube enxergar nos papéis
formou-se num jardim, tão feericamente iluminado que o cônsul francês o com- velhos dos arquivos "uma fresta no tecido dos dias, a visão esgarçada de um
parou às Tulherias em Paris. Na praça de touros aí existente, ocorreram os acontecimento inesperado". 63
festejos mais populares, efetuando-se evoluções militares e realizando-se dan- No entanto, se o D. João VI no Brasil se limitasse a isso , não seria
ças, além de representações de mágica, um bailado alegórico, a recitação de provável que continuasse a despertar a atenção senão dos historiadores profis-
sionais, seja para garimpar na mina de informações preciosas que reúne, seja
poesias e de discursos.
"Era a apoteose final. Em 1820 a revolução estalava em Portugal e ven- para satisfazer a perpétua curiosidade do artesão quanto à habilidade de um
cia: uma revolução que era antibrasileira, assim como fora uma revolução colega em resolver os problemas do oficio. No entanto, como salientou Roberto

60 1bid., p. 622.
61 Ibid., p. 152.
" Ibid., p. 607.
" Ibid., pp. 619-620.
6' lbid., p. 577.
63 Arlettc Farge, Le golit de ['archzve (Paris: Seuil, 1989), p. 13.
" Ibid., p. 608.

164 165
D. JOÃO VI NO BRASIL

DaMatta, Oliveira Lima, graças à trajetória marginal que percorreu com nossa
JOAQUIM NABUCO
elite, teve a sensibilidade necessária para detectar a "inusitada reversão hie-
rárquica" representada pelo estabelecimento da Corte na América, cujas im-
plicações simbólicas ainda estamos longe de captar com clareza.

o que fascina, pois, nesse livro, é menos os meandros de uma história política e
o abolicionismo
diplomática (verdadeira especialidade do seu autor) que os seus subtextos sociológi-
cos e culturais, quando ele reconstrói a sociedade local, mostrando um complicado
jogo de transformações e de permanências que vão além do choque de duas culturas,
como ocorre nas situações coloniais clássicas. Pois, no caso da vinda de dom João VI
para o Brasil, tanto o colonizador quanto o colonizado espelhavam-se um no outro,
vendo-se simultaneamente como estrangeiros e como donos da terra.
Marco Aurélio Nogueira
Dessa forma, a presença de um rei,

de certo modo, nos ajudou a confundir a lei com o poder autoritário, impedindo a
distinção entre personalismo e norma universal, como fazem prova nossos surtos de
autoritarismo, reveladores da saudade desse rei que, na visão ingênua do povo, tudo
podia, como os reis dos nossos reizados e carnavais. 64

Ou seja, esse livro de um pensador notável pela inteligência curiosa,


penetrante e compreensiva, escondido sob a figura de um historiador minu-
cioso, oferece a possibilidade de repensar, como é próprio às grandes obras de
história, as tradições das quais brotamos. Em particular, de um ponto de vista
mais estritamente histórico, ele nos faz indagar por que o Brasil não nasceu,
em 1822, das reivindicações de um sentimento compartilhado pela maioria da
população, mas, sim, de uma série de circunstâncias e de acontecimentos for-
tuitos, manipulados por interesses restritos, sob a égide de um anjo torto,
desses que vivem na sombra, vaticinando que a nação haveria de ser gauche
na vida.

64 Roberto DaMaUa, op. cito

166
Quando Joaquim Nabuco começou a escrever O abolicionismo, em
meados de 1882, o movimento em favor do fim da escravidão no Brasil estava
em crise. Um silêncio incômodo entrecortava a marcha claudicante da eman-
cipação.
Ainda que controlassem a Câmara dos Deputados e dirigissem os gabi-
netes parlamentaristas desde 1878, os liberais não haviam progredido em ter-
mos políticos e doutrinários. Permaneciam tímidos, sem apetite para imprimir
outra direção ao país, de modo a reformá-lo e modernizá-lo. Seu liberalismo
não s~ soltava, mantendo prudente distância das vertentes mais inflamadas ou
radicais que, na Europa, haviam se aproximado, por vias muitas vezes trans-
versas, da questão democrática e mesmo da questão social. A sombra do
conservadorismo não se dissipava, reiterando uma tendência incrustada no
processo mesmo da Independência: a mudança radical anunciava-se com fir-
meza, mas sempre acabava por ser assimilada e contida pelo jogo político
prevalecente.
Aos olhos de muitos, parecia estar se repetindo o que acontecera após a
lei de Eusébio de Queirós proibindo o tráfico (1850) e a Lei do Ventre Livre
(28 de setembro de 1871): uma profunda "calmaria da opinião, outra época de
indiferença pela sorte do escravo", como escreverá Nabuco. 1 A questão amea-
çava querer se acomodar ao tradicional marasmo da sociedade imperial, só
não o fazendo porque a dinâmica econômico-social impunha questionamentos
objetivos à continuidade do trabalho escravo. Além do mais, a conjuntura inter-
nacional não favorecia a reprodução do regime: o Brasil era um dos últimos
países escravocratas num mundo praticamente dominado pelo trabalho livre e
pela racionalidade industrial.
O país se candidatava à modernidade, começava a se desenvolver em
termos capitalistas, mas convivia com um regime de trabalho primitivo, retró-
grado, desumano e antieconômico. A escravidão era uma realidade injusta,
cruel e repulsiva: fornecia não só a força de trabalho fundamental para a eco-
nomia, como a base sobre a qual se erguia toda a sociedade nacional, com suas
castas privilegiadas e sua miséria, sua cultura elitista e seu sistema político
excludente, autoritário, discriminador. O contraste era gritante e logo se con-
verteria em contradição: ou se resolvia a questão do trabalho ou o progresso
ficaria comprometido. A realidade espelhava a constatação que Nabuco faria
em O abolicionismo: "a escravidão pertence ao número das instituições

1 Joaquim Nabuco, O aboilcionlsmo (6) ed. Petrópolis: Vozes, 2000), p. 26.

169
o ABOLICIONISMO MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

fósseis, e só existe em nosso período social numa porção retardatária do globo, padecia de grande irregularidade operacional, não encontrava aliados entre as
que escapa por infelicidade sua à coesão geral"; trata-se de um fato que "não forças políticas e parecia se ressentir da falta de uma teoria que o balizasse e
pertence naturalmente ao estádio a que já chegou o homem". E isso tanto o explicasse. Era evidente que precisava encorpar e ganhar fôlego.
porque era uma ilegalidade infamante, uma afronta moral, quanto porque arrui- Para se recuperar do tropeço e colocar ordem nas idéias, Nabuco foi
nava economicamente o país e corrompia-lhe o caráter, atrasando seu cresci- para Londres. Terminará, na verdade, escrevendo um tratado sobre a escravi-
mento." dão e sobre as razões da Abolição. No prefácio do livro, datado de 8 de abril de
Mas o que era óbvio no plano objetivo não se traduzia em decisão políti- 1883, faria votos de que seus compatriotas acolhessem bem aquela "lembran-
ca. O imperador vacilava, dividindo-se entre a preocupação de parecer mo- ça de um correligionário ausente, mandada do exterior, donde se ama ainda
derno e o cuidado para não perder o apoio dos escravocratas, que a qualquer mais a pátria do que no próprio país". Sua expectativa era a de que as "semen-
momento poderiam ser arrastados pelo discurso republicano. E como o impe- tes de liberdade, direito e justiça" contidas naquelas páginas concorressem
rador era o vértice de todo o sistema, sua inação tendia a congelar o processo para unir "em uma só legião" os abolicionistas brasileiros e "apressar, ainda
de tomada de decisões. No quinto capítulo do livro, Nabuco se esforçará para que seja de uma hora, o dia em que vejamos a Independência completada pela
afastar ilusões e demonstrar que a causa ainda carecia de amadurecimento e Abolição e o Brasil elevado à dignidade de país livre".4
força. Ela talvez estivesse moralmente ganha, de modo a permitir que os O abolicionismo é, acima de tudo, um texto programático, destinado a
abolicionistas declarassem que "a maioria do país está conosco sem o poder impulsionar um movimento que ainda não havia conseguido sensibilizar de modo
manifestar". Na verdade, porém, a abolição era clara apenas "perante a opi- definitivo a opinião pública e claudicava. Desde o início Nabuco sabia estar
nião pública, dispersa, apática, intangível, não perante o parlamento e o gover- redigindo um "livro de propaganda política sobre a emancipação", um instru-
no, órgãos concretos da opinião", apenas "perante os partidos, não perante os mento meticulosamente desenhado para indispor a escravidão com os próprios
ministros, os deputados, os senadores, nem perante os eleitores que formam a senhores e chamá-los às suas responsabilidades. Não poupará palavras. Ata-
plebe daquela aristocracia"; perante "o Imperador como particular, não peran- cará "abusos, vícios e práticas" com o propósito de denunciar "um regime
te o Chefe do Estado". Em suma, ela só conseguia se impor "perante jurisdi- todo". Tinha clareza de que acabaria por ofender os que se identificavam com
ções virtuais, abstrações políticas, forças que ainda estão no seio do possível, a escravidão, mas sabia que não seria possível "combater um interesse da
simpatias generosas e impotentes, não perante o único tribunal que pode exe- magnitude e da ordem da Escravidão sem dizer o que ele é".5 Reagiria brava-
cutar a sentença da liberdade da raça negra, isto é, a Nação brasileira consti- mente, portanto, aos que acusavam o abolicionismo de ser um movimento
tuída".3 antipatriótico, que injuriava e prejudicava o país.
O próprio Nabuco havia perdido a cadeira de deputado em 1881. Apesar Mas o livro também reflete um esforço pessoal de Nabuco para dar a si
de ter sido eleito, em 1878, com base numa campanha quase formal, já que sua próprio e ao movimento uma melhor fundamentação teórica, algo que pudesse
eleição havia sido acertada entre os chefes políticos pemambucanos, compor- passar em revista os estragos da escravidão, aprofundar a autoconsciência
tou-se como um azougue em seu batismo de fogo parlamentar. Disparará con- dos abolicionistas e levá-los à vitória. Desse ponto de vista, o livro não se
tra tudo e contra todos. Aos 30 anos de idade (nascera em 19 de agosto de limitará a repetir as idéias em voga entre liberais e abolicionistas. Fará uma
1849, na cidade do Recife), estava no auge e encontrará naquele momento o defesa apaixonada da emancipação, mas irá além, articulando uma contunden-
eixo para articular sua trajetória futura: "A grande questão para a democracia te crítica das estruturas e instituições imperiais e propondo um amplo progra-
brasileira não é a monarquia, é a escravidão". A derrota será um claro indica- ma de reforma social. Seu maior interesse parecerá concentrado, portanto, em
dor de que as forças escravocratas ainda respiravam. O movimento abolicionista qualificar o discurso político dos que contestavam a escravidão.

2 Ibid., p. 89. 4 Ibid., pp. 23-24.


J Ibid., pp. 49-50. , Ibid., p. 167.

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-.
o ABOLICIONISMO MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

o leitor que se dispuser a seguir a prosa vibrante de O abolicionismo irá tragos da escravidão. A denúncia minuciosa ocupará de modo destacado os
se deparar com um texto ao mesmo tempo analítico e normativo, explosivo e três capítulos do livro em que são examinadas as influências da escravidão
sereno, dedicado tanto a agitar e empolgar os espíritos quanto a sugerir uma sobre a nacionalidade, o território, a população, a sociedade e a política, mas
reflexão mais ponderada. Ficará certamente encantado com a habilidade de- aparecerá em todas as suas páginas e será exaustivamente repetida nas diver-
monstrada por N abuco para examinar friamente a realidade nacional e agre- sas oportunidades daquela década.
gar, à condenação ética e moral, uma justificativa teórica dos motivos que Naqueles dez agitados anos, Nabuco será o liberal avançado que não
exigiam o fim da escravidão. pudera ser antes nem conseguiria ser depois. Costurando com habilidade e
Do ângulo mais imediato, o livro cumprirá plenamente suas funções. Dará apuradíssimo senso estético as palavras, partirá de uma visão abrangente da
a Nabuco um instrumento com que voltar à vida política. Fornecerá a ele a situação nacional, buscando reter os efeitos que sobre ela produzia a escravi-
base de todas as intervenções nos anos seguintes, e, acima de tudo, o progra- dão. No capítulo em que expõe os "fundamentos gerais do abolicionismo",
ma com que fará a campanha eleitoral de 1884 no Recife, memorável pelo Nabuco sintetizará o problema. Deseja acabar com a escravidão, escreverá,
radicalismo e pelo entusiasmo popular que despertou. Em todas as disputas e não só porque ela é ilegítima e ilegal, mas também porque promove a ruína
ações dessa década, o programa traçado no livro pulsará com força. 6 material do país e impede o progresso: "habitua o país ao servilismo, desonra o
O abolicionismo também dará a Nabuco uma teoria para explicar o trabalho manual, retarda a aparição das indústrias, desvia os capitais do seu
país. Ainda que a consistência crítica e a combatividade inerentes ao livro não curso natural, excita o ódio entre classes, produz uma aparência ilusória de
tenham voltado a se repetir, a interpretação do Brasil nele contida permanece- ordem, bem-estar e riqueza, a qual encobre os abismos de anarquia moral,
rá. Alcançava-se ali, naquele aparentemente singelo "volume de propaganda", miséria e destruição". Em termos gerais, a escravidão atrasava o Brasil no seu
uma elaboração teórica para a abolição e para o entendimento do país. crescimento em comparação com os outros Estados sul-americanos que não a
Isso ocorreu porque Nabuco se posicionou com inteligência estratégica, haviam conhecido ou delajá se tinham livrado. A ser mantida, levaria forçosa-
explorando ao máximo uma tese engenhosa: a escravidão ocupava o centro do mente ao "desmembramento e à ruína do país". Justamente por isso, o regime
organismo social, formando um sistema completo, "uma atmosfera que nos en- escravo era algo anti-social, que impedia a convivência mesma dos brasileiros,
volve e abafa todos, e isso no mais rico e admirável dos domínios da terra". Sua acirrando os conflitos entre eles e condenando-os a formar "uma nação de
natureza era a de um regime que corrompe, debilita e degrada o conjunto da proletários".8
nação: "o nosso caráter, o nosso temperamento, a nossa organização toda, fisica, A escravidão degradava o conjunto da nação: embrutecia o escravo na
intelectual e moral, acha-se terrivelmente afetada pelas influências com que a senzala e esmagava o operário nas cidades, isso para não falar nos proprietá-
escravidão passou trezentos anos a permear a sociedade brasileira".? Pensar, rios de terras, nos lavradores que não eram proprietários, nos empresários
portanto, a escravidão, analisá-la e conhecê-la, era pensar o país como um todo. emergentes e nas classes médias. "Este terrível azorrague não açoitou somen-
te as costas do homem negro, macerou as carnes de um povo todo" - agiu
como "uma fábrica de espoliação que não podia realizar bem algum" e foi,
A ESCRAVIDÃO COMO FATO GLOBAL com efeito, "um flagelo que imprimiu na face da sociedade e da terra todos os
sinais da decadência prematura". Sua influência sobre a população e o territó-
A primeira grande trava de sustentação do discurso proposto por Nabuco rio havia sido em todos os sentidos desastrosa. "O caráter da sua cultura é a
em O abolicionismo estará constituída pela apresentação indignada dos es- improvidência, a rotina, a indiferença pela máquina, o mais completo desprezo
pelos interesses do futuro, a ambição de tirar o maior lucro imediato com o
menor trabalho próprio possível, qualquer que seja o prejuízo das gerações
6 Para uma visão abrangente da trajetória de Nabuco e em especial das inflexões registradas na
década de 1880, cf. Marco Aurélio Nogueira, As desventuras do lzberalismo: Joaquim Nabuco.
seguintes." Em vez de progresso e riqueza, o que fez foi "esterilizar o solo,
a monarquia e a república (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984).
7 Joaquim Nabuco, O abolicionismo, cit., pp. 110 e 28. • Ibid., pp. 91-92.

172 173
o ABOLICIONISMO MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

embrutecer os escravos, impedir o desenvolvimento dos municípios e espalhar de tudo poder. Com isso, o sistema político em seu conjunto - partidos, parla-
em tomo dos feudos senhoriais o aspecto das regiões miasmáticas, ou devas- mento, eleições - ficava desequilibrado em suas funções e em sua atuação.
tadas pelas instituições que suportou, aspecto que o homem livre instintiva- Tendia a ser comido pelo autoritarismo. Intoxicado pelo "vapor pestífero" do
mente reconhece". 9 regime escravocrata, o poder se hipertrofiava, convertia-se em "toda a nossa
Passando pelo território nacional como um "sopro de destruição", a es- história", verdadeira "região das gerações espontâneas", numa clara demons-
cravidão extenuava o país. Sobre a população, seu principal efeito fora tração dos "efeitos mais incontestáveis do servilismo que a escravidão deixa
"africanizá-la, saturá-la de sangue preto", prova cabal de que havia fincado após si".13
raízes profundas na sociedade. 10 Jamais colocaria um imenso número de indi- Os efeitos desse processo eram fortíssimos sobre o funcionalismo, por
víduos "fora da sociedade, como na Grécia ou na Itália antiga"; iria, ao contrá- exemplo. "Das classes que esse sistema faz crescer artificialmente a mais
rio, se consolidar como instituição absoluta, totalitária, onipresente: a sociedade numerosa é a dos empregados públicos. A estreita relação entre a escravidão
estaria não só "baseada sobre a escravidão e permeada em todas as classes e a epidemia do funcionalismo não pode ser mais contestada que a relação
por ela, mas também constituída, na sua maior parte, de secreções daquele entre ela e a superstição do Estado-providência." Como se esperava tudo do
vasto aparelho". Todo o corpo social- "sangue, elementos constitutivos, respi- Estado, o funcionalismo se tomava "a profissão nobre e a vocação de todos",
ração, forças e atividade, músculos e nervos, inteligência e vontade, não só o operando como verdadeiro "asilo dos descendentes das antigas famílias ricas e
caráter, senão o temperamento, e mais do que tudo a energia" - ficaria afeta- fidalgas, que desbarataram as fortunas realizadas pela escravidão", como au-
do pela mesma causa. Isso, em boa medida, avaliará Nabuco, fora possível têntico "viveiro político, que abriga todos os pobres inteligentes, todos os que
porque a escravidão, "ainda que fundada sobre a diferença das duas raças, têm ambição e capacidade". Em decorrência, a classe dos que viviam "com os
nunca desenvolveu a prevenção da cor, e nisso foi infinitamente mais hábil". olhos voltados para a munificência do Governo" crescia sem parar, exigindo a
Impossibilitara, desse modo, que se perpetuassem "castas sociais" ou "divi- progressão constante do orçamento público e levando ao endividamento nacio-
sões fixas de classes". Ao longo dos séculos, ela "manteve-se aberta e esten- nal. Como a escravidão fechava todas as outras portas (da indústria, do co-
deu os seus privilégios a todos indistintamente: brancos ou pretos, ingênuos ou mércio, das letras, da ciência), ela acabava por criar, em tomo do funcionalismo,
libertos, escravos mesmos, estrangeiros ou nacionais, ricos ou pobres". Dessa "uma reserva de pretendentes, cujo número realmente não se pode contar".
forma, "adquiriu, ao mesmo tempo, uma força de absorção dobrada e uma Transformava assim os empregados públicos em verdadeiros "servos da gleba
elasticidade incomparavelmente maior do que houvera tido se fosse um mono- do Governo", que "vivem com suas famílias em terras do Estado, sujeitos a
pólio de raça", como no sul dos Estados Unidos. H uma evicção sem aviso, que equivale à fome, numa dependência da qual só
O regime escravo de trabalho sugava a energia e a iniciativa das forças para os fortes não resulta a quebra do caráter" .14
vivas do país. Limitava dramaticamente as margens de liberdade política e A voracidade da escravidão era assim descomunal: ela deixava sua mar-
democracia, proibindo qualquer avanço na cidadania. Conseguir a liberdade ca em cada uma e em todas as dimensões da sociedade e do Estado. Corroía
para o escravo, portanto, seria dar a todos os brasileiros uma dignidade, então e imobilizava os governos, por exemplo, separando-os da opinião pública, for-
inexistente: "a de Cidadão Brasileiro".12 Além disso, promovia uma espécie de ça, aliás, que ela impedia de crescer e influenciar. Obrigava os governantes a
concentração social no poder estatal, levando a que se acreditasse que dos viver perscrutando "o pensamento esotérico do Imperador", que, em vez de
governos tudo viria. Em decorrência, o Estado se tomava "o pai de todos nós", soberano absoluto, devia ser chamado "o Primeiro-Ministro permanente do
com seus empregos, suas benesses e prebendas, sua inesgotável capacidade Brasil". Vivíamos mergulhados nas "aparências de um governo livre", numa
autêntica "paródia da democracia", na qual o sistema representativo nada mais

9 Ibid., pp. 119-120.


10 Ibid., p. 104.
11 Ibid., pp. 125-126. 13 Ibid., p. 33.
12 Ibid., p. 41. 14 Ibid., pp. 130-132.

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o ABOLICIONISMO MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

era do que "um enxerto de formas parlamentares num governo patriarcal", escravidão havia despojado o país de povo e atrofiado a política. "Um povo
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com senadores e deputados que só levavam a sério o papel que lhes cabia '. ,~
que se habitua a ela não dá valor à liberdade, nem aprende a governar-se a si
pelas vantagens que auferiam. Como não havia uma "força de transformação mesmo", acabando por abdicar das funções cívicas, da preocupação política,
social" - uma opinião pública, um associativismo ativo, uma sociedade civil, da responsabilidade pessoal. 17 Com a escravidão, escreverá, não pode haver
poderíamos dizer -, a política se convertia numa "triste e degradante luta por "governo livre, nem democracia verdadeira; há somente governo de casta e
ordenados". Afinal, "nenhum homem vale nada, porque nenhum é sustentado regime de monopólio. As senzalas não podem ter representantes e a população
pelo país". O que se tinha, na verdade, era "um governo de uma simplicidade avassalada e empobrecida não ousa tê-Ios".18 Afinal, ao monopolizar tudo - a
primitiva, em que as responsabilidades se dividem ao infinito e o poder está terra, o capital, o trabalho -, a escravidão tomava-se "um estado no Estado,
concentrado nas mãos de um só", o chefe do EstadoY cem vezes mais forte do que a própria nação".19 Em decorrência, como Nabuco
Inevitável assim que, neste quadro, os partidos políticos perdessem subs- falará na campanha eleitoral de 1884, dela derivava apenas uma "política ne-
tância. Como escreverá Nabuco, eles ficavam todos "mais ou menos sustenta- gativa", que nos abatia, "porque ficamos sem povo" e, sem povo, "as institui-
dos e bafejados pela Escravidão". O abolicionismo cumpria a função de dar ções não têm raízes, a opinião não tem apoio, a sociedade não tem alicerces".20
transparência a esse fato, pois desnudava os "alicerces mentirosos do libera- Os poderes políticos ficavam assim impossibilitados de exprimir a vontade
lismo entre nós" e forçava os republicanos a serem coerentes com o ideal nacional, pois esta não existia; exprimiam apenas a realidade nua e crua de
doutrinário que professavam. "Supondo que a República seja a forma natural uma hipertrofia que impossibilitava qualquer dinamismo: a hipertrofia da co-
da democracia, o dever de elevar os escravos a homens precede a toda arqui- roa, "único poder nacional independente e forte", como será dito em O
tetura democrática", ponderará. A acusação será pungente e fulminante: pra- abolicionismo. 21
ticariam puro "estelionato político" aqueles que - conservadores, liberais ou O tema e a entonação serão constantes e aparecerão em diversas pas-
republicanos - vocalizavam belos princípios jurídicos e políticos, mas que, sagens do livro. Era como se Nabuco reconhecesse que a escravidão impu-
"dentro das porteiras das suas fazendas", exercitavam sobre "centenas de nha um veto ao povo e à liberdade, impedindo com isso o aparecimento, no
entes rebaixados da dignidade de pessoa" um "poder maior que o de um chefe país, de uma sociedade civil em condições de contrastar o poder do trono e
africano", sem que nenhuma lei escrita o regulasse ou fiscalizasse. 16 animá-lo. Falava-se em povo, partidos políticos, opinião pública, imprensa e
Justamente por isso, o abolicionismo se via como um fator de desagrega- eleições sem se dar conta de que essas eram palavras sem substância, às
ção dos partidos e do próprio sistema político do Império, que se mostravam quais não correspondia nenhuma força real no país. Sem povo constituído e
desqualificados para projetar uma nova sociedade, processar os conflitos e sem sociedade civil, a ação política se complicava e produzia efeitos deleté-
governar o país. rios sobre todos os personagens. Os "homens práticos" ficavam obrigados a
"voltar as suas vistas para a única realidade de nossa política, a vontade do
Imperador".22
UM VETO AO POVO E À LIBERDADE O regime escravista, além do mais, reduzia a massa escrava à impotên-
cia política, enredando-a nos mecanismos de cooptação e favor que ele mes-
Mas Nabuco não cansará de repetir e enfatizar: não se tratava de um
defeito institucional ou de uma falha de caráter dos governantes, mas do resul-
17 Ibid., p. 140.
tado imediato da prática da escravidão. Anunciava, assim, o segundo alicerce 18 Ibid., p. 74.
de sustentação de O abolicionismo: pelos estragos profundos que causara, a 19 lbid., p. 34.
20 Joaquim Nabuco, Campanha abolicionista no Recife: eleIções de 1884 (2) ed. Recife: Fundação
Joaquim Nabuco/Massangana, 1988), p. 31.
21 Joaquim Nabuco, O abolicionismo, cit., p. 141.
li Ibid., p. 138. 12 Joaquim Nabuco, "A reorganização do Partido Liberal-II", em O País, 9-12-1886, em Campa-
16 Ibid., pp. 30-32. nhas de imprensa (São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1949), p. 215.

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mo engendrava. Tais mecanismos envolviam o escravo e o convidavam à Nabuco insistirá bastante na tese de que não se poderia exigir maior
subalternidade, mas agiam preferencialmente sobre os negros livres ou protagonismo dos escravos. Num sugestivo capítulo do livro ("O mandato da
alforriados, buscando convertê-los em "não-negros" bem-comportados ou, raça negra"), dará grande destaque à idéia de que o abolicionismo deveria ser
quando muito, dispostos a aproveitar as chances de ascensão oferecidas pela "o advogado gratuito de duas classes sociais que, de outra forma, não teriam
generosidade do branco. Tanto num caso como noutro, terminavam por deca- meios de reivindicar os seus direitos, nem consciência deles. Essas classes
pitar eventuais lideranças, amortecer os impulsos de revolta e obter um acata- são: os escravos e os ingênuos". Tratava-se de dar curso a uma "reforma
mento passivo da ordem de coisas estabelecidas: em vez da emancipação política primordial", que interessava a todos, não apenas aos que sofriam as
coletiva, a ascensão individual pelas mãos dos poderosos. Na inspirada cam- dores da escravidão. A emancipação, escreverá, "não significa tão-somente o
panha eleitoral de 1884, no Recife, Nabuco percebeu e denunciou a situação: termo da injustiça de que o escravo é mártir, mas também a eliminação simul-
tânea dos dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor".
Lutamos contra a indiferença que a nossa causa encontra entre essas mesmas classes
Tratava-se também de reconhecer que a raça negra tinha todo o direito de
que deveriam ser nossas aliadas e que a escravidão reduz ao mais infeliz estado de
miséria e dependência. É triste dizê-lo, mas é a verdade. Por acaso os homens de cor,
protestar contra o tratamento que recebia no Brasil. Ela era um "elemento de
filhos e netos de escravos, que trazem no rosto a história do martírio da sua raça, têm considerável importância nacional, estreitamente ligada por infinitas relações
aderido ao nosso movimento com a dedicação e a lealdade que era de esperar dos orgânicas à nossa constituição". Além do mais, havia "nos dado um povo".
herdeiros de tantos sofrimentos? Não! Eles não se atrevem a fazer causa comum com Construíra o país, a ponto de se poder dizer que "tudo, absolutamente tudo, que
os abolicionistas e muitos são encontrados do lado contrário. H existe como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como
acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que traba-
Em suma, como a escravidão era um regime invasivo, intimidador e lha à que faz trabalhar". ~6
alienante , ela evidentemente dificultava ao máximo a iniciativa e a mobilização A escravidão corrompia os governos, tornava egoísta a sociedade e blo-
política dos escravos. Trazia consigo todas as barbaridades possíveis. queava a iniciativa da massa escrava, forçando-o à ignorância, à passividade e
à resignação. Como então acabar com ela? Quais seriam seus sujeitos, seus
Ela só pode ser administrada com brandura relativa quando os escravos obedecem
protagonistas, seus animadores?
cegamente e sujeitam-se a tudo; a menor reflexão destes, porém, desperta em toda a
sua ferocidade o monstro adormecido. É que a escravidão só pode existir pelo terror
absoluto infundido na alma do homem. H
INDIGNAÇÃO ÉTICA E PRAGMATISMO POLÍTICO
Por isso, o abolicionismo não podia almejar ter nos escravos seu maior
interlocutor: ele se dirigirá - como opinião, agitação, propaganda, plano de Reconstruída essa dupla face negativa da escravidão - a de ter contami-
reformas - aos livres, aos que podiam agir sem amarras e plenamente conscien- nado toda a sociedade e a de ter esvaziado a política de substância e ânimo
tes do significado, das implicações éticas e dos condicionantes da luta. Dirigir reformador -, Nabuco fixará o terceiro eixo de sustentação de O abolicio-
a propaganda aos escravos e incitar "homens sem defesa" à insurreição - dirá nismo: a tática e a estratégia do movimento deveriam ser pensadas em função
enfaticamente no capítulo em que apresenta o caráter do movimento -, "seria da realidade mesma que se queria transformar.
uma covardia, inepta e criminosa, e um suicídio político para o partido Ao longo das páginas do livro, procurará demonstrar que os estragos da
abolicionista".25 escravidão condicionavam o próprio abolicionismo e a marcha da abolição.
Criavam várias dificuldades para o movimento e levavam a que o processo da
abolição evoluísse sob o controle da Coroa e das elites dominantes. Funcio-
2J Joaquim Nabuco, Campanha abolicionista no Recife, cit., p. 9.
lA Joaquim Nabuco, O abolicionismo, cit., p. 102.
2.1 Ibid., p. 39. 26 Ibid., pp. 35-37.

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nando como verdadeiro "império" dentro do Império, a escravidão aprisionava 1871. A ela, a seus efeitos e a seu limitado caráter, Nabuco dedicará um longo
e amesquinhava a Coroa: permitia-lhe afirmar sua vontade, mas, ao mesmo capítulo de O abolicionismo, sugestivamente intitulado "As promessas da lei
tempo, sugava sua energia e sua grandeza. A Coroa permanecia tacanha na da emancipação". Seu suposto será o de que a lei havia sido um autêntico
visão da coisa pública e se deixava arrastar por uma inércia administrativa que divisor de águas. Não devia ser tomada "como uma transação entre o Estado
a impedia de agilizar o cumprimento das leis e realizar reformas. Além do e os proprietários de escravos", mas como um "ato de soberania nacional".
mais, temia se indispor com os grandes proprietários, que, afinal, formavam Depois da extinção do tráfico em 1850, ela configurou o segundo grande mo-
sua base de apoio. mento de oposição nacional à escravidão. De certa forma, a lei era o reconhe-
De qualquer forma, a Coroa estava obrigada a agir contra a escravidão. cimento oficial da questão servil e expressava um certo compromisso dos
O ambiente interno e internacional a pressionava, e quanto mais o país se políticos com a abolição: representou, nas palavras de O abolicionismo, "um
expandia em termos capitalistas mais se tomava evidente o anacronismo de passo de gigante dado pelo país", o verdadeiro "bloqueio moral da escravi-
seu regime de trabalho. A própria escravidão conspirava contra si própria: dão". Mas deixara intacto o domínio do senhor sobre o escravo e era terrivel-
ainda que conseguisse ter "à sua mercê uma clientela formidável de todas as mente cruel: se aplicada com rigor, acabaria com a escravatura "dentro de um
profissões", de estar "senhora do capital disponível" e de ser sustentada pela prazo de meio século", no decorrer do qual os filhos dos escravos, os ingê-
"maior parte das forças sociais constituídas", a escravidão não conseguia vi- nuos, iriam se emancipando. Como eles, porém, cresceriam nas senzalas, aca-
ver em paz e nem sequer mantinha suas bases em condições perfeitas de bariam por dar origem a uma "classe de futuros cidadãos educados na escravidão
estabilidade e lealdade. "Infelizmente para a escravidão, ao enervar o país e com todos os vícios dela". Não por acaso, observará Nabuco, o visconde de
todo, ela enervou-se também: ao corromper, corrompeu-se", escreverá Nabuco. Itaboraí chamara os ingênuos de "escravos-livres".'28
Seu exército de seguidores "é uma multidão indisciplinada, heterogênea, ansi- Desde o princípio, portanto, era patente que se devia reformar e alargar
osa por voltar-lhe as costas"; sua clientela "tem vergonha de viver das suas aquela lei, de modo a aumentar-lhe o alcance. Dela não derivara qualquer
migalhas ou de depender do seu favor". Por tudo isso, concluirá, "o poder da recomposição social nem qualquer mudança na vida dos escravos:
escravidão, como ela própria, é uma sombra". Para piorar, aquela sombra
"conseguiu produzir outra sombra, mais forte, resultado da abdicação geral o mercado dos escravos continua, as famílias são divididas, as portas delineadas na
lei não foram ainda rasgadas, a Escravidão é a mesma sempre, os seus crimes e as suas
da função cívica por parte do nosso povo: o Governo". Ainda que fosse uma
atrocidades repetem-se freqüentemente, e os escravos vêem-se nas mesmas condi-
"fantasmagoria colossal", uma "evaporação da fraqueza e do entorpecimento
ções individuais, com o mesmo horizonte e o mesmo futuro de sempre, desde que os
do país", uma "miragem da própria escravidão", o poder governamental trazia primeiros africanos foram internados no sertão do Brasil.
consigo todas as possibilidades: diante dele, "a casa da fazenda vale tanto
quanto a senzala do escravo". Essa, portanto, era a "força capaz de destruir a A não se ir além, aquela lei "ficaria sendo uma mentira nacional, um
escravidão, da qual aliás dimana, ainda que, talvez, venham a morrer juntas". '27 artificio fraudulento para enganar o mundo, os brasileiros, e, o que é mais triste
Incapaz de evitar o tema, mas sem encontrar bases firmes que o responsa- ainda, os próprios escravos".'29
bilizassem e o forçassem à ação, o governo imperial administrava a abolição. A libertação dos nascituros não podia, assim, ser saudada sem críticas.
Durante boa parte do Segundo Reinado, promulgou leis emancipacionistas em Na campanha eleitoral de 1884, Nabuco a verá como um "grande poema trun-
doses homeopáticas, como parte de um plano gradualista destinado a proteger a cado", uma "divina comédia" com seu Inferno e seu Purgatório, mas sem o
monarquia, postergar ao máximo a abolição e desarticular os abolicionistas. Paraíso, "sem a recompensa ideal para aqueles a quem foi prometida a bem-
Foi o que se deu, por exemplo, com a Lei do Ventre Livre, sancionada aventurança".30 A lei de 1871, na verdade, acabaria por se configurar como
pelo gabinete conservador do visconde do Rio Branco em 28 de setembro de
28 Ibid., pp. 68-75.

" Ibid., p. 75.


27 Ibid., pp. 150-152. lO Joaquim Nabuco, Campanha abolicionista no Recife, cit., p. 35.

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o ABOLICIONISMO MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

uma manobra destinada a frear o ritmo e a confundir os passos do movimento e homogêneo". Acima de tudo, era preciso conceber o movimento como uma
abolicionista. Nos anos que a ela se seguiram, o governo "pôde mesmo esque- "agitação" permanente, algo que operaria "desagregando fortemente os parti-
cer-se de cumprir a lei que havia feito passar" e os abolicionistas tiveram de dos existentes, e até certo ponto constituindo uma igreja à parte composta dos
amargar quase uma década de ostracismo e desarticulação. Justamente por cismáticos de todas as outras".33
isso, o abolicionismo via-se como um movimento dedicado a lutar pela reforma Afinal, escreverá Nabuco, "todos os três partidos baseiam as suas aspi-
radical da lei de 28 de setembro: queria mesmo "suprimi-la, emancipando os rações políticas sobre um estado social cujo nivelamento não os afeta' o
escravos em massa e resgatando os ingénuos da servidão" imposta em 1871. abolicionismo, pelo contrário, começa pelo princípio, e, antes de discutir qu;l o
Só um movimento deste tipo - para o qual "todas as transações de domínio melhor modo para um povo livre de governar a si mesmo - é essa a questão
sobre entes humanos são crimes que só diferem no grau de crueldade" -, que divide os outros -, trata de tomar esse povo livre, aterrando o imenso
portanto, poderia resolver "o verdadeiro problema dos escravos, que é a sua abismo que separa as duas castas sociais em que ele se extrema". Por tudo
própria liberdade". 31 isso, o abolicionismo devia ser assumido como "a escola primária de todos os
Até mesmo uma lei inócua como a dos Sexagenários (proposta por Dantas partidos, o alfabeto da nossa política". 34
em 1884, mas aprovada apenas em setembro do ano seguinte) encontrou sérios Para o sucesso da causa, nenhuma colaboração poderia ser recusada,
entraves; alimentou, no dizer de Nabuco, uma verdadeira "batalha em tomo dos nem sequer a da Coroa, que, afinal, era o pólo dinâmico da sociedade. O fun-
berços e do túmulo dos escravos"3:! e acabou por ser apresentada como con- damental era organizar a opinião pública para imprimir à Coroa uma conduta
cessão, de modo a reforçar o paternalismo; além do mais, não foi executada e de outra qualidade, sintonizada com as aspirações libertárias. Seria essa a grande
serviu de pretexto para novas tentativas de desmobilizar o abolicionismo. Foi contribuição do movimento abolicionista:
preciso que a crise do regime se aprofundasse e os escravocratas perdessem
espaço político para que o movimento reagisse e chegasse à vitória. nosso esforço consiste em estimular a opinião, em apelar para a ação que deve exercer,
O abolicionismo foi, assim, determinado pela lenta e complicada moder- entre todas as classes, a crença de que a escravidão não avilta somente o nosso país:
arruína-o materialmente. O agente está aí, é conhecido, é o Poder. O meio de produzi-
nização através da qual avançava o Brasil. Teve de se adaptar a ela. Apesar
lo é também conhecido: é a opinião pública. O que resta é inspirar a esta a energia
das diferentes orientações existentes entre os abolicionistas, uma vertente prag-
precisa, tirá-la do torpor que a inutiliza, mostrar-lhe como a inércia prolongada é o
mática acabará por prevalecer: pelo tamanho do desafio e pela envergadura suicídio. 3s
de seus propósitos, a reforma precisaria contar com o concurso de sucessivas
gerações e de todas as forças ativas da sociedade. Exatamente por isso, o Mesmo em seus discursos mais radicais, Nabuco jamais deixará de ser
abolicionismo devia ser pensado como um movimento suprapartidário, quase realista e pragmático: perceberá que o Trono - apesar de ter passado cinqüen-
uma frente. Embora considerasse natural a organização de um partido ta anos "fingindo governar um povo livre" - era a principal força com que se
abolicionista no Brasil, Nabuco pensava que as divergências entre liberais, podia contar para libertar os escravos em um prazo razoável. Podendo apoiar
conservadores e republicanos impunham que o abolicionismo, para se tomar apenas um pé nas ruas (e mal podendo contar com as senzalas), o abolicionismo
mais eficiente, trabalhasse os três partidos de forma a cindi-los sempre que fará do imperador o seu sujeito maior; ficando na dependência do avanço de
fosse preciso "reunir os elementos progressistas de cada um numa coopera- providências legais, encontrará no parlamento a sua tribuna principal.
ção desinteressada e transitória, numa aliança política limitada a certo fim". Os abolicionistas foram sensíveis à lógica da sociedade que queriam trans-
Como movimento político, deveria proceder de modo "a decompor e recons- formar. Com diferenças de ênfase e tratamento, o realismo pragmático aca-
truir diversamente os partidos existentes, sem todavia formar um partido único bou por ser adotado por todas as alas. Mas foi Joaquim Nabuco quem o levou

Jl Joaquim Nabuco, O aboliCionismo, cit., pp. 26-27. lJJoaquim Nabuco, O abolrcionismo, cit., pp. 31 e 33.
32 Joaquim Nabuco, "A batalha em torno dos túmulos", Jornal do Commercio, 27-7-1884, em 14Ibid., p. 32.
Campanhas de Imprensa, cit., pp. 40-43. " Ibid., p. 152.

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MARCO AURÉLIO NOGUEIRA
o ABOLICIONISMO

mais longe e o desenvolveu de maneira mais interessante. Seguiu nesse particu- levantem o nível do nosso povo, que o forcem ao trabalho e dêem em resultado
lar os passos e as idéias do pai, senador Nabuco de Araújo, que em 1870 finnou o bem-estar e a independência, que absolutamente não existem e de que ne-
uma posição destinada a ter grande fortuna no império: "Se existe o poder pes- nhum governo ainda cogitou para a nação brasileira". Para viabilizar tais trans-
soal, e é o único que tem vida, por que não podemos pedir-lhe que influa para formações - e antes de tudo conseguir "a abolição completa, civil e territorial,
as reformas?" A essa idéia, Nabuco agregará a concepção de que os abolicio- e o derramamento universal da instrução" -, Nabuco abandonará no parla-
nistas portavam um "mandato da raça negra", e um mandato "irrenunciável": mento "a atitude propriamente política para tomar a atitude do reformador
suas motivações não eram derivadas de "humanidade, compaixão ou defesa social"Y
generosa do fraco e do oprimido"; eram motivações políticas e estavam, por O abolicionismo, escreverá ele logo nas primeiras páginas do livro, "não
isso, obrigadas a seguir regras e critérios eminentemente políticos. reduz a sua missão a promover e conseguir - no mais breve prazo possível- o
resgate dos escravos e dos ingênuos". Essa é apenas a sua tarefa imediata. A
Aceitamos esse mandato [escreverá em O abolicionismo] como homens políticos, ela deveria se seguir uma outra maior, a do futuro, dedicada a "apagar todos os
por motivos políticos, e assim representamos os escravos e os ingênuos na qualidade efeitos de um regime que, há três séculos, é uma escola de desmoralização e
de brasileiros que julgam o seu título de cidadão diminuído enquanto houver brasilei- inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores, e que fez
ros escravos, isto é, no interesse de todo o país e no nosso próprio interesse.l6 do Brasil o Paraguai da escravidão". A emancipação total representaria, as-
sim, apenas o primeiro passo. "Depois que os últimos escravos houverem sido
arrancados ao Poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da
cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a
o ABOLICIONISMO COMO REFORMA SOCIAL lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo, su-
perstição e ignorância. "38 A escravidão, afinal, era um mal "que não precisa
O pragmatismo de N abuco decorria, na verdade, do modo mesmo como mais ter as suas fontes renovadas para atuar em nossa circulação"; ela já
ele articulava escravidão e abolição: já que a escravidão era um fato global, ela havia se diluído no sangue. Não seria, pois, a simples emancipação dos escra-
só poderia ser eliminada por uma reforma global. Se quisesse se completar, vos e ingênuos que haveria de destruir aqueles germens: a emancipação seria
portanto, e vencer resistências e interesses poderosos, o abolicionismo teria de apenas "o começo da nossa obra". Libertados os escravos, "a Escravidão
se desdobrar em mil operações. Não podia ser concebido como obra de poucos poderá ser combatida por todos os que hoje nos achamos separados em dois
ou de apenas um partido; precisava conquistar o apoio de milhões de corações campos".39
e mentes, de sucessivas gerações e das mais variadas forças ativas da socieda- Seria inócua, portanto, qualquer reforma que não adotasse uma perspec-
de. Era, pois, uma luta de toda a nação e se completaria ao longo do tempo. tiva abrangente e de longo prazo. Era preciso conceber um programa sério de
Explicitava-se assim o quarto e mais importante eixo de O abolicionismo: reformas profundas, dedicadas a alterar as estruturas da sociedade , os hábitos
o movimento devia propor medidas que transcendessem tanto o nível imediata- e as hierarquias, as instituições e os valores. Não havia como conceber a
mente político-jurídico quanto a eliminação pura e simples da escravidão. Para abolição, por exemplo, sem uma refonna agrária, sem aquilo que Nabuco cha-
ser conseqüente, precisava alterar o sistema produzido pela escravidão e mava de "constituição da democracia rural", por intermédio da difusão da pe-
erradicar os males por ele causados ao país: "não nos basta acabar com a quena propriedade no campo. Uma operação complementava a outra. Dar-se-ia
escravidão; é preciso destruir a obra da escravidão", dirá Nabuco na campa- o mesmo com a introdução de medidas destinadas a garantir e valorizar o
nha eleitoral de 1884. Nabuco, por isso, não terá muitas ilusões com as refor-
mas imediatamente políticas, que não tinham base social nem razão de
precedência: "as reformas de que necessitamos são reformas sociais que
J7 Joaquim Nabuco, Campanha abolicionista no ReCife, cit., pp. 49, 32 e 34.
J8 Joaquim Nabuco, O abolicionismo, cit., p. 27.
J9 Ibid., p. 169.
36 Ibid., pp. 36-37.

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o ABOLICIONISMO MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

trabalho, estabelecer uma legislação trabalhista, promover a educação e inau- perigo". Quanto mais crescesse sua obra, mais se dissipariam "os receios de
gurar a previdência social, promovendo desta forma a emancipação de todos ~ma guerra servil, de insurreições e atentados". Ainda que radical, posto que
os trabalhadores. Tudo devia convergir para uma gigantesca reforma nacional, mteressada em transformar a sociedade e cauterizar as raízes da desigualdade
um conjunto articulado de reformas sociais e políticas que se derramariam e~trema de classes, a reforma de Nabuco seria feita mais a partir de princípios
progressivamente, dando origem assim a um novo país, inteiramente diverso ét~cos e sabedoria política do que com base em mobilizações de massas opri-
do da escravidão. midas, explosões populares ou rupturas violentas. Em O abolicionismo a di-
Revela-se, assim, um outro traço da teoria política que dá grandeza a O retriz seria fixada com clareza: '
abolicionismo. Não se tratava de "esperar" que as coisas acontecessem na-
turalmente, mas de ter iniciativa: organizar e dirigir o futuro. Ao diagnóstico A escravidão não há de ser suprimida no Brasil por uma guerra servil, muito menos
nabucoano agregava-se, pois, uma teoria da ação. O abolicionismo precisava por insurreições ou atentados locais. Não deve sê-lo, tampouco, por uma guerra civil,
ser rigorosamente uma sucessão de empreendimentos e decisões concatenadas: como o foi nos Estados Unidos. [ ... ] A emancipação há de ser feita, entre nós, por uma
lei que tenha os requisitos, externos e internos, de todas as outras. É, assim, no
um movimento ativo, determinado, sistemático, dedicado a acuar, sufocar e
Parlamento e não em fazendas ou quilombos do interior que se há de ganhar, ou
golpear de morte a escravidão. "Deixá-la dissolver-se, e desaparecer, insensi- perder, a causa da liberdadeY
velmente, como ela pretende [escreverá Nabuco], é manter um foco de infec-
ção moral permanente no meio da sociedade, tornando endêmico o servilismo O abolicionismo de Nabuco não queria uma revolução. Sabia que fortes
e a exploração do homem pelo homem."40 explosões regulares eram inerentes à escravidão, "um estado violento de com-
Não era, portanto, o caso de apenas exigir reformas que pudessem ser pressão da natureza humana", que expunha todos à "prática de crimes de
impostas pela lei: por mais importantes que fossem, seriam insignificantes maior ou menor gravidade". Mas não era o caso de estimulá-las ou de usá-las
diante "das que devem ser realizadas por nós mesmos, por meio da educação, em beneficio da causa. Fazer a escravidão desaparecer "depois de uma revo-
da associação, da imprensa, da imigração espontânea, da religião purificada, lução, como aconteceu na França", era uma possibilidade que não entrava
de um novo ideal de Estado". As reformas decisivas, escreverá numa das "nos cálculos de nenhum abolicionista". A reforma também não viria por um
mais emblemáticas passagens de O abolicionismo, "não poderão ser realiza- "decreto majestático da Coroa, como o foi na Rússia". O caminho da emanci-
das de um jacto, aos aplausos da multidão, na praça pública", mas terão de ser pação no Brasil seria particular, dado que, entre nós, a escravidão não havia
executadas "dia por dia e noite por noite, obscuramente, anonimamente, no "azedado nunca a alma do escravo contra o senhor", nem criado entre as duas
segredo de nossas vidas, na penumbra da família, sem outro aplauso, nem raças "o ódio recíproco que existe naturalmente entre opressores e oprimi-
outra recompensa, senão os da consciência avigorada, moralizada e disciplina- dos". A vitória viria por meio da luta política, do desprendimento cívico e da
da, ao mesmo tempo viril e humana". Só assim da abolição poderia resultar generalização de uma nova atitude ética. Por desejarem "conciliar todas as
"um povo forte, inteligente, patriota e livre". Só assim seria possível "suprimir classes e não indispor umas contra outras", por atacarem não os proprietários
efetivamente a escravidão da constituição social". co~o indivíduos, mas o domínio que exerciam, por defenderem a emancipação
Nabuco identificava assim a emancipação dos escravos com uma autên- no mteresse não apenas do escravo, mas do próprio senhor, os abolicionistas
tica obra de refundação nacional: "o começo de um Rinnovamento", como não podiam "querer instilar no coração do oprimido um ódio que ele não sente
dirá fazendo alusão ao movimento de unificação da Itália _41 uma operação e muito menos fazer apelo a paixões que não servem para fermento de um~
contundente, ampla e abrangente, ainda que não propriamente revolucionária. causa, que não se resume na reabilitação da raça negra, mas que é equivalente
Afinal, o abolicionismo era uma "reforma vital" que não podia ser "adiada sem à reconstituição completa do país".43

40 Ibid., p. 164. 42 Ibid., pp. 39-43.


41 Ibid., p. 170. 43 Ibidem.

186 187
o ABOLICIONISMO MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

A grande reforma social abolicionista iria, portanto, bem além da liberta- ser a primeira etapa da reforma abolicionista: a que estaria dedicada a eliminar
ção dos escravos. Donde a indiferença de Nabuco e de muitos outros o estatuto da escravidão. A expectativa era de que se abria uma nova era e a
abolicionistas para com a questão da forma do governo: enquanto a monarquia monarquia teria como dar seqüência prática à plataforma do movimento con-
estivesse contribuindo para a conclusão da reforma, teria no abolicionismo um centrada no social. Imaginava-se que a coroa seria sensível às propo~ições
leal aliado; discutir a sua substituição pela República configuraria um risco que daqueles que, como Nabuco, haviam batalhado pela libertação dos escravos
não se devia correr. O decisivo era responsabilizar o vértice estatal, convocá- sem abraçar a causa da república.
lo para cumprir seu papel na magna tarefa de erradicar a obra da escravidão.
Como se sabe, o grande plano reformador de Nabuco não sensibilizará
as elites e não empolgará a Coroa, que chegará ao fim conformada com o DEPOIS DE TUDO
próprio destino. O sistema político não responderia às pressões da opinião pú-
blica, nem essas se fariam fortes o suficiente para impor outro ritmo ao pro- A abolição, porém, será limitada e não evitará (muito pelo contrário) a
cesso. Os abolicionistas passarão os últimos anos da escravidão vendo sua República. Nada poderia ser pior para um abolicionista que soubera lutar por
propaganda esbarrar em todo tipo de obstáculo e ser questionada por sucessi- mudanças radicais e simultaneamente reconhecer as vantagens da forma
vos "erros do Imperador", que agia como se quisesse "inutilizar a obra começada monárquica de governo. Sem reformas que modernizassem o país e sem con-
e paralisar o movimento nacional". A todo momento precisavam "sacudir o dic;t'Ses para conviver com o militarismo "plebeu" e "jacobino" embutido no 15
torpor e recomeçar a campanha", como dirá Nabuco em alguns escritos de de novembro, preferirá romper com a política e refugiar-se na vida privada.
1886. 44 Ele próprio ficaria durante anos excluído do parlamento, só voltando a No lugar do abolicionista radical, permanecerá o liberal-conservador. Nabuco
atuar regularmente como deputado no final de 1887. mergulhará em profundo sono nostálgico, como se tivesse ficado mortificado
A abertura dos trabalhos legislativos em 1888 encontrará o país às portas com a inconseqüência prática e operacional do 13 de maio.
da abolição. Como efeito da crise política e do crescimento da agitação popu- O apaixonado reformador de antes - para quem a forma de governo era
lar, o Partido Liberal e o Partido Republicano (que até então tinham vacilado questão secundária e a política, sobretudo propaganda e agitação - cederá o
diante da questão) haviam-se definido pela defesa da emancipação; as forças posto, agora, para o monarquista ortodoxo e melancólico, amortecido pelas
militares, e o Exército em particular, tinham passado a se recusar a intervir frustrações e pela redescoberta da fé, dedicado a remoer e embelezar o pas-
policialmente, seja na repressão às manifestações urbanas, seja na captura de sado. Virá então à tona, com a força de um vulcão, o lado mais propriamente
escravos fugitivos; os próprios setores escravocratas tinham perdido espaço e conservador de sua formação, que havia sido deslocado para os bastidores
começado a compreender a inutilidade da resistência. Como se não bastasse, durante os anos radicais do abolicionismo.
a crise do regime se aguçara sobremaneira. Mas Nabuco jamais chegará a perder o bom senso ou a deixar de ser
A 8 de maio, chega à Câmara a proposta do governo abolindo a escravi- pragmático. No final dos anos 1890, já com a República consolidada e depu-
dão. Na presidência do Conselho de Ministros estava João Alfredo Correia de rada do militarismo dos primeiros tempos, começará a rever posições. Não
Oliveira, prócer do Partido Conservador. Por esmagadora maioria (83 a 9) e de.ixava de ser monarquista nem de criticar os desacertos dos governos repu-
com inédita velocidade, a proposta é discutida e votada na Câmara dia 9, no blIcanos, mas distinguia-se por uma total descrença nas chances da restau-
Senado dia 11 e finalmente transformada em lei numa sessão extraordinária ração do trono e pela preocupação em franquear as portas para um diálogo
(realizada em pleno domingo) no dia 13 de maio. com o novo regime. Em 1899, cede finalmente aos convites da República
Era a vitória. Nabuco reagirá com júbilo, saudando o advento da "Pátria que sempre o cortejara: aceita o encargo de defender o interesse brasileiro
livre" e a generosidade da princesa Isabel. Encerrava-se o que ele considerava na disputa de fronteiras com a Guiana Inglesa, a ele proposto por Campos
Sale~ ..Logo a seguir vem a designação como ministro-chefe da Legação
44 Joaquim Nabuco, "O erro do Imperador" e "O eclipse do abolicionismo", em Campanhas de braslleua em Londres. Nabuco voltava à diplomacia, em nome do patriotis-
imprensa. cit. mo e da vontade de encontrar uma nova forma de continuar servindo ao

188 189
o ABOLICIONISMO

país. Mais tarde, em 1905, é convocado para responder pela primeira repre-
SÍLVIO ROMERO
sentação diplomática do Brasil em nível de embaixada, nos Estados Unidos,
posto que facilitará seu engajamento na causa do pan-americanismo.
Joaquim Nabuco morrerá em Washington, no dia 17 de janeiro de 1910.
Será tratado pela República com todas as honras. Fará sua última viagem a
bordo do vaso de guerra North Caroline, posto à disposição pelo governo
História da
norte-americano. Do Rio, o corpo foi transportado para o Recife. Na chegada
à cidade em que nascera, uma multidão emocionada, em que se misturavam literatura brasileira
ex-escravos, trabalhadores e gente de todas as classes, dará calor popular aos
funerais, homenageando o velho abolicionista que mudara de campo, mas dei-
xara gravado seu nome na história política e social do país.

Benjamin Abdala Junior

190
Em artigo recente, Ariano Suassuna1 disse que Euclides da Cunha come-
teu um grave erro de interpretação ao afirmar que como raça os portugueses
eram superiores aos africanos e aos povos indígenas. Esse erro, segundo
Ariano, persistiu em Gilberto Freire que o transferiu da área biológica para a
cultural quando considerou a cultura européia como superior à dos africanos,
assim como esta seria superior, por sua vez, à dos indígenas. Ao fazer essas
observações negativas, Ariano Suassuna não deixa, porém, de agradecer aos
dois e também a Sílvio Romero por terem contribuído para afastar suas pró-
prias deformações,2 ele que foi educado conforme os padrões do Brasil ofi-
cial, da mesma forma que dela não puderam se afastar os três grandes intérpretes
do país, que foram decisivos em sua formação intelectual.
Vieram desses intelectuais, de acordo com Suassuna, imagens amorenadas
do brasileiro ideal em Sílvio Romero ou ainda dos pardos, em Euclides da
Cunha - uma forma, na verdade, de escamotear os valores dos negros. A
valorização do branqueamentó do mestiço em relação ao negro seria uma
maneira de se desconsiderar as contribuições dos povos africanos. Mais, ele
mesmo faz uma autocrítica quando diz que também se colocou nessa perspec-
tiva quando valorizou o povo castanho em suas produções, vindo a
conscientizar-se depois de que essa era uma maneira de apagar as manchas
negras3 da constituição antropológica brasileira.
A presença dos povos africanos no país é uma evidência que não pode
ser ideologicamente desconsiderada como mancha negra. Um estudo sério
do hibridismo étnico e cultural do Brasil não pode diminuir a grande importân-
cia desses povos com argumentos que são no fundo de um racismo mais ou
menos evidente. Ocorreram também manipulações políticas em relação ao
conceito de mestiçagem, como no caso de Gilberto Freire, no qual esse concei-
to veio a opor:'se ao de negritude, quando da ascensão dos movimentos
reivindicatórios dos negros. Entretanto, é necessário se considerar o fato de
que a cultura brasileira é híbrida e que formulações como as de Gilberto Freire
constituíram rupturas decisivas em relação ao pensamento reacionáriodo sé-
culo XIX, eivado de mitologias de superioridade racial eurocêntricas, que vie-
ram a se projetar de forma perversa no século xx.

1 Ariano Suassuna, "Biologia e cultura. Sobre Gilberto Freire e o racismo", em Bravo, n" 33, ano
III, São Paulo, junho de 2000, pp. 15-16.
, lbid., p. 15.
J lbid., p. 16.

193
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA BENJAMIN ABDALA JUNIOR

É diante dessas ambigüidades e de sua historicidade, sem anacronismos, outro, que embalou sua personalidade como cidadão: o gosto pela polêmica.
que a História da literatura brasileira, de Sílvio Romero, pretende. ser ~es~­ Esse gosto por contraditar não deixa de se manifestar inclusive (a despeito de
nhada neste texto: 4 uma construção discursiva que além dos seus megaveIs seus cuidados) no interior de sua própria obra critica. Talvez se possa afirmar
méritos, pelos subsídios que apresenta para a compreensão do caráter naci~­ que esse gosto ou força da contradição explica em parte a heterogeneidade de
nal brasileiro, acaba por deixar evidentes as contradições do pensamento crítI- seus textos (apontada e discutida pela critica) e dá elementos para o seu
co de seu autor, um intelectual que dá origem a linhas de reflexões que envolvimento em polêmicas com quem discordasse de seus pontos de vista.
contribuirão de forma decisiva para a discussão da maneira de ser do brasilei- Seria essa a sua luta pela existência de sua obra crítica. Para Antonio Candido,
ro. Tais contradições têm sua historicidade, estando relacionadas com as con- seu leitor em meados do século XX,
vicções de uma época. Não são, pois, de responsabilidade exclusiva de seu
autor, podendo ser creditadas a todo um campo intelectual de seu tempo. Era [ ... ] a contradição era o seu modo próprio de viver o pensamento, tanto assim que, em
essa a maneira como se pensava cientificamente a literatura e a cultura, com vez de paralisá-lo ou fazê-lo voltar atrás, ele o fazia ir para a frente. As suas idéias não
esquemas importados da Europa. Além disso, deve ser destacado o fato de se opunham como desenvolvimento linear e conseqüente, mas como vaivém, retoma-
da incessante, tensão de opostos, visão simultânea do verso e do reverso - o que pode
que a História de Sílvio Romero significou um avanço para o pensamento
ferir exigências lógicas, mas enriquece o senso de realidade. Sob esse aspecto, havia
crítico, pela preocupação metodológica do autor, que veio a constituir um mar- algo dialético no jogo das suas idéias e opiniões, que, se não chegavam a uma síntese
co inicial, no Brasil, de toda uma linha de abordagem dos fatos literários e satisfatória, permitiam sempre alguma conclusão interessante, graças ao entrechoque
culturais. E também por apresentar uma síntese importante da cultura brasilei- por vezes antinômico, mas vivo das proposições, jogadas como pedras.s
ra, matizada como não poderia deixar de ser pelos padrões e as cores de como
nos imaginávamos na virada do século XIX para o XX. As pedras vêm das afirmações peremptórias às vezes com pouca argu-
mentação do crítico. Elas foram jogadas, além disso, de forma mais contun-
dente contra discursos criticos discordantes do seu, originando polêmicas, como
UM POLEMISTA a que manteve com José Veríssimo. Este crítico, embora reconhecesse o mé-
rito histórico de Sílvio Romero, apontava faihas em suas apreciações ou ava-
Sílvio Romero (1851-1914) sempre procurou se inserir de forma explosi- liações literárias. 6 Sílvio Romero foi parcial e equivocou-se nas avaliações de
va no pensamento crítico brasileiro. Sua trajetória intelectual é de uma pers.o- vários escritores, provocando grande impacto, por exemplo, a casmurrice como
nalidade em constante movimento, mas atraída por determinados temas. ASSIm analisou a obra de Machado de Assis, um escandaloso erro critico.
o crítico inquieto os retoma, ou os reformula em seus artigos e ensaios, conflu- Sua concepção de crítica - exercida por ele sobretudo em seu senso
indo-os depois para a sua obra-síntese, a História. Motivado por "aperfei- comum, no sentido de se apontar com veemência o que considerava ruim ou
çoar" sua obra, procura sempre acrescentar novos dados ou nuances a sua errado -, como será desenvolvido mais adiante, envolvia a consideração mais
teoria e crítica - uma atitude, é de se entender, homóloga à maneira de pensar ampla da cultura - fato que o levou a procurar desconsiderar o que viesse de
a realidade de seus horizontes ideológicos, o naturalismo evolucionista: de ma-
neira correlata a um organismo vivo, também sua obra se aperfeiçoaria e os
embates críticos seriam similares aos aperfeiçoamentos das espécies em suas
, Sílvio Romero: teoria, crítica e história literária. Seleção e apresentação de Antonio Candido
lutas pela vida. Esse movimento evolutivo tendente à uniformidade e ao aper-
(Rio de Janeiro/SãoPaulo: LTC/Edusp, 1978), p. XI.
feiçoamento, quando procurava aparar contradições, era concomitante com , Ver, de um lado, Sílvio Romero, Zeverissimações ineptas da crítica (repulsas e desabafos)
(Porto: O comércio do Porto, 1909), e, de outro, os seguintes textos de José Veríssimo: Estudos
de literatura brasileira, 6< série (Rio de Janeiro: Gamier, 1907), pp. 1-14, e Que é literatura? e
outros escritos (Rio de Janeiro: Gamier, 1907), pp. 230-270. Os textos de José Veríssimo
4 Esta resenha fará referência à 6' edição desse livro, organizada e prefaciada por Nélson Romero, encontra.m-se na coletânea José Veríssimo: teona, crítica e história literária, selecionada e
5 tomos (Rio de Janeiro: José Olympio, 1960). organizada por João Alexandre Ba~bosa (Rio de Janeiro/São Paulo: LTC/Edusp, 1978).

194 195
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA

quem considerasse estetizante ou distanciado da cultura brasileira. As polêmi-


T·.·:
'"
BENJAMIN ABDALA JUNIOR

fatos históricos, a determinações de caráter político-social. Essa idéia de siste-


cas em que se envolveu não se originaram, entretanto, tão à revelia de Sílvio ma ligado à interação com o público será retomada em novas bases e maior
Romero. Ao contrário, ele parecia gostar delas, como manifestação da másca- complexidade, sem subordinação aos fenômenos políticos e sociais, por Anto-
ra de um ator crítico implacável, que ele cultivava, como pode ser observado nio Candido, em sua Formação da literatura brasileira: momentos decisi-
logo no prólogo à primeira edição de sua História, quando diz que "as violentas vos. 8 Para este crítico, o sistema envolve autores, "caracterizando a existência
polêmicas em que se tem achado envolvido", de Recife ao Rio de Janeiro, vem de uma vida literária"; públicos, "permitindo sua veiculação; e tradição, para
do fato de que não faz critica para agradar, fornecendo a "razão da bulha, da dar continuidade ao repertório literário'?
gritaria, dos insultos". 7 Sílvio Romero preocupou-se sobremodo com a repercussão da obra nas
Nascido em Lagarto (Sergipe), Sílvio Romero cursou o secundário no classes dirigentes, de acordo com os modelos da seleção natural de seu tempo:
Rio de Janeiro e formou-se em direito no Recife. Foi promotor e deputado em a repercussão que importava seria especialmente a associada diretamente
seu estado natal; depois, juiz em Parati. Em 1880 - dois anos antes da publica- com o poder político:
ção de sua Introdução à história da literatura brasileira, onde esboçou sua
A criação das academias literárias no século XVIII na Bahia e no Rio de Janeiro,
História da literatura brasileira - foi nomeado catedrático do Colégio Pedro
fenômeno tão mal apreciado por alguns críticos é, entretanto, um fato altamente
II, no Rio de Janeiro, onde se aposentaria em 1910. Nesse percurso foi ainda
significativo. Indica só por si a grande coesão de que gozava o país, o lazer que tinham
deputado federal por Sergipe, relator do Código Civil Brasileiro e professor da as altas classes para o cultivo das letras, o gosto reinante pela poesia e as cousas do
Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Foi do centro da espírito. 10
República que Sílvio Romero tentou abarcar toda a vida cultural do país, em
especial do Nordeste, procurando relevar a atividade intelectual e artística Em Antonio Candido, essa idéia de coesão do sistema literário é vista
daquele que considerava o mais importante grupo de seu tempo, a "Escola do diferentemente: o sistema já possui dinâmica própria, permitindo uma autono-
Recife". Embora sua obra seja bastante ampla, distribuindo-se em artigos ou mia relativa em relação aos fatos sociais e políticos.
ensaios publicados em periódicos e de livros, é na História que ele apresenta Poder-se-ia, nessa perspectiva, entender essas articulações literárias, que
uma síntese de seu pensamento sobre a cultura e a sociedade brasileiras, in- propiciam a grande coesão, vista por Sílvio Romero, associando-a às pers-
corporando o que considerou mais significativo dos outros textos. pectivas hegemônicas do poder simbólico. Esse poder é exercido pelos intelec-
tuais, com base em determinados modelos literários considerados canônicos. A
perspectiva de Sílvio Romero seguia critérios diferentes dos críticos anterio-
UMA IDÉIA DE SISTEMA res, que considerava estetizantes. Se os cânones se modificam, também isso
ocorre com os critérios de legitimação das obras literárias. Por outro lado, os
Sílvio Romero vê em sua História da literatura brasileira uma evolu- discursos desse campo intelectual têm especificidades e dinâmicas próprias,
ção natural de sua personalidade. Autor e obra constituiriam dois organismos da mesma forma que outros gêneros discursivos, como a poesia ou o romance.
que seguiram percursos paralelos, evoluindo numa sucessão de fases e em Se essas formulações do discurso crítico se encontram e se articulam, num
interação com o público. Sua concepção de sistema seguia essa organicidade, mesmo recorte histórico, com as dos gêneros literários (um período literário,
de acordo com modelos biológicos da luta pela vida. O sistema literário seria
resul~te de uma interação com outros sistemas e estaria ligado às condições
da circulação literária de cada momento histórico. Este seria determinante, • Antonio Candido, Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, 2 vols. (5' ed. São
Paulo/Belo Horizonte: Edusp/ltatiaia, 1975).
colocando a literatura como um produto cultural, subordinando-a assim aos
, Benjamin Abdala Junior, "Antonio Candido, formação da literatura brasileira", em Lourenço
Dantas Mota (org.), Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico (2' ed. São Paulo: Editora
SENAC São Paulo, 2000), p. 364.
10 Sílvio Romero, História da literatura brasileira, cit., tomo 2, p. 386.
Sílvio Romero, História da literatura brasileira, cit., tomo 1, p. 33.

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HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA
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BENJAMIN ABDALA JUNIOR

Singular destino da raça negra no Brasil. Alimentou o branco, deu-lhe dinheiro durante
por exemplo), não deixam de se embalar pelo movimento interno, que os proje-
quatro séculos e agora por último dá fama aos gananciosos de nomeada fácil, dá glória
ta para outros períodos. Possuem, pois, como foi indicado, uma autonomia aos espertos [ ... ]l3
relativa diante de outros campos do conhecimento.
A idéia de sistema em Sílvio Romero, embora ele sempre buscasse expli- Seria esta uma das características das elites políticas, sociais e económi-
cações nas ciências naturais, na prática de suas análises, é genérica: os cam- cas brasileiras: adaptar-se a novas situações de forma a continuar exercendo
pos científicos formam sistemas, isto é, conjuntos ou totalidades de objetos, seu poder? Sílvio Romero aponta quem considera libertadores dos escravos: o
reais ou ideais, que se articulam. A energia que os leva a se desenvolver teria povo brasileiro e os homens representativos com ele identificados, mais im-
por base motivações raciais e poderiam ser impulsionados pela cultura, ocor- portantes do que figuras oficiais (sempre a idéia de totalidade e unidades ati-
rendo para ele analogias de situação entre o que ocorria na biologia e nas vas interdependentes, em evolução - essa é sua visão sistêmica). A luta pela
esferas da cultura. Seu modelo de sistema veio basicamente da biologia, como libertação não seria um fato do século XIX, mas muito anterior: começou já no
tem sido reiterado nesta resenha, mas procura relativizar esse método em muitos início da escravidão do índio e, depois, do negro. E este teria ensinado ao
momentos de sua História. Assim, ele assinala que não poderá haver acordo branco o caminho da libertação.
entre duas maneiras opostas de encarar a história: aquela que faz predominar Ao buscar essa "formação" libertária, aponta as muitas ações/revolu-
a ação do exterior para o homem (há sempre aqui um parti pris que ele diz ções com esse horizonte, até as ações decisivas dos últimos tempos, inclusive
não aceitar) ou a que destaca sua ação moral sobre o meio (também não a com sua própria ação. A abolição, segundo ele, veio da pressão do conjunto,
aceita por considerá-la uma metafisica). E conclui: que já ia libertando os escravos nas fazendas e nos Estados - a tal ponto
chegou que, se os políticos não o fizessem logo, não encontrariam mais a quem
Não resta a menor dúvida que a história deve ser encarada como um problema de
libertar. Coloca como vitória de um sistema evolutivo: a abolição progressiva,
biologia; mas a biologia aí se transforma em psicologia e esta em sociologia; há um jogo
de ações e reações no mundo objetivo sobre o subjetivo e vice-versa; há uma multidão
espontânea, popular. Por outro lado, gestos históricos de grupos ou de indiví-
de causas móbeis e variáveis capazes de desorientar o espírito mais observador. 1l duos atenuam o determinismo. É assim que Sílvio vê o significado da Inconfi-
dência Mineira e sua

o SENTIMENTO DE MISSÃO plêiada de poetas, aquele punhado de sonhadores pressentiu, no vago de suas cren-
ças, todas as vastas idéias que este povo deve esforçar-se para levar a efeito [ ... ] A
Inconfidência não chegou a ser uma realidade prática; mas é uma realidade doutrinária.
Há em seu texto um sentimento de missão, de dever, de quem "empenha Não se manchou no terreno dos fatos; mas aí está a tremular, há cem anos, como a
uma pena no Brasil",12 um país em via de formação, que também contribui suprema realidade no mundo de nossas aspirações. 14
para o rompimento dessa pretendida impassibilidade crítica do naturalismo.
Esse sentimento projeta-se na história do país, como um habitus, que havia Após considerar as aspirações como suprema realidade do mundo, ele
sido e que será retomado por outros escritores e intelectuais brasileiros. Uma as situa como uma necessária santa utopia: "Era necessário que a santa
tradição, em termos de modelos psicossociais. Assim, ao se referir à situação utopia fosse desdenhada pelos míopes do tempo, era mister que o sangue
de alguém que escreve num momento libertário, a festa da Abolição, sanciona- ubérrimo dos heróis marcasse os focos brilhantes em que a alma deste povo
da poucos dias antes, vislumbra já nesse momento a expressão de um fenôme- deve revigorar-se para avançar".15 Esse avançar segue perspectiva de civi-
no bem brasileiro - a apropriação das "glórias dos feitos": lização, entendida como independência da pátria, emancipação dos escravos,

13 Ibid., p. 37.
14 Ibid., p. 483.
II Ibid., p. 404.
" Ibidem.
12 Ibid., p. 36.

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1 199
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA BENJAMIN ABDALA JUNIOR

unidade federal, vida autonôrnica e democrática, prosperidade material, alento Podemos crer na liberdade como produto da matéria; onde quer que apareça está
científico ... Enfim, problemas que o autor descortina na recém-instaurada integrada de forma a produzir o pensamento, produz também a liberdade que é uma
República. fórmula de discernimento [ ... ] Não se deve aceitar, portanto, a opinião daqueles que
tratam os fenômenos sociais pelo mesmo modo que tratariam um problema de mine-
Esse impulso libertário entra em contradição com o sistema naturalista e
ralogia, a cristalização de uma rocha, por exemplo.19
é grande marca do humanismo de Sílvio Romero. Para Antonio Candido, em O
método crítico de Sílvio Romero,16 em toda sua obra passa um esforço e um
Sílvio Romero desconfiava dos sistemas então estabelecidos, embora
convite à libertação: libertação do peso das raças "inferiores", libertação da
mesmo a liberdade se lhe afigurasse como uma fórmula de discernimento.
inclemência do clima, libertação do ensino jesuítico e retórico, libertação dos
Assim esses sistemas, próprios da maneira de se pensar a realidade de sua
vícios políticos coloniais, libertação do servilismo à França, libertação dos exa-
época, sempre teimaram em permanecer em seu horizonte:
geros românticos. Conjugadas, todas essas libertações haveriam de dar-lhe a
impressão de que o homem pode agir com relativa liberdade dentro do A ciência social e a ciência moral, conquanto devam obedecer a leis gerais naturalísticas,
determinismo histórico, que lhe condiciona a existência em sociedade.17 estas leis não estão ainda definitivamente todas descobertas e formuladas. Existem aí,
Essa aspiração pela liberdade em certo sentido relativiza o determinismo é certo, quarenta ou cinqüenta sistemas de sociologia e moral pretensiosos e quase
histórico que condiciona a vida do homem em sociedade. Vem daí a idéia de todos insignificantes em sua pretensiosidade, mas isto não é verdade definitiva. 20
possibilismo com que Antonio Candido o define, em oposição a um rígido
determinismo. Para esse crítico, excetuando-se o primeiro volume da História Aspirava, pois, por um sistema definitivo, mas só tem a evidência de
e abstraídas as premissas gerais preestabelecidas, o que aparece é uma série construções relativas, históricas. Não obstante, a idéia de totalidade de seu
de julgamentos funcionais ou mesmo utilitaristas sobre a contribuição do escri- sistema inclinava-o, ao mesmo tempo, para o campo oposto. Assim quando
tor para o que ele considerava progresso da cultura pátria. São esses (pou- resume sua perspectiva crítica, de acordo com o método científico de sua
cos) indivíduos - homens representativos, de cada momento histórico, isto é, época, considera que essa crítica teve bases históricas, relevando o fato de
personalidades literárias criativas - que se destacaram de um contexto amorfo, que ela se configura no século XIX como sistema mais acabado:
que acabaram por simbolizar e dar sentido a uma época. Embora buscasse
analogias com a biologia em suas sínteses analíticas, ele não o faz em profun- Sabe-se que essa tendência foi inoculada no mundo filosófico por Kant; da filosofia
passou à religião e à história. É que o ilustre criticista havia retalhado a inteligência
didade, recorrendo a ela no fundo para respaldar de tinturas científicas seus
humana, pesando-a com a realidade nua e simples. Mas a filosofia alemã não é a única
julgamentos subjetivos - ou, se se quiser, adotando um método pseudonaturalista,
responsável pelo pensamento de nossa época: a filosofia dos orientalistas, o
de lantejoulas. 18 positivismo de Comte e o evolucionismo de Spencer, são também co-autores. Impri-
Sílvio Romero considerava-se um naturalista idealista, procurando afas- miram-lhe o caráter que mais a distingue: o estudo dos fatos e a abstração das causas
tar-se de uma visão dicotômica tradicional dos "dois velhos sistemas que de- transcendentais. 21
vem ser enterrados": o materialismo e o espiritualismo. Se pensamento e ação,
para ele, teriam origem nos átomos, estes seriam de natureza diferente, haven- Observações como as acima mencionadas, que reduzia tudo a átomos
do unidades diferenciadas. Assim, embora todas essas unidades estivessem conforme os postulados científicos da época, parecem-nos hoje bastante ingê-
regidas pelas mesmas leis da mecânica universal, elas teriam vida e atividades nuas, mas contribuíram para o avanço de um pensamento brasileiro. Ao aspi-
próprias: rar por uma crítica mais imparcial e com embasamento científico, relevando o
fato de que ela devesse se situar no horizonte da cultura nacional , Sílvio Romero

16 Antonio Candido, O método crítico de Sílvio Romero (2) ed. São Paulo: FFLCH da USP, 1963). 19 Sílvio Romero, História da literatura brasileira, cit., tomo 2, pp. 627-628.
17 Ibid., p. 109. '" Ibid., p. 680.
'8 Ibid., p. 83. li Ibid., p. 635.

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HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA BENJAMIN ABDALA JUNIOR

contribuiu para que tomássemos conhecimento de nossa situação, em vários natural processo de evolução. Buscou analogias superficiais, ou de lantejoulas,
campos da cultura e não apenas da literatura. como já foi assinalado, através das formações biológicas: uma espécie de sele-
ção natural através das idéias, onde as idéias superiores devorariam as mais
fracas, por melhor se adaptarem a novas condições históricas. Talvez as
Os PERÍODOS DA LITERATURA BRASILEIRA reformulações se devessem em boa parte, na verdade, a uma outra sua grande
obsessão: a vontade de apresentar quadros sintéticos da literatura e da cultura
Sílvio Romero tinha um critério demasiado amplo para estabelecer o que brasileiras. Para tanto, seriam necessárias grandes e mais exaustivas análises
era ou não literatura: sua noção de sistema literário abarcava inter-relações dos textos literários, o que não ocorreu. As classificações de Sílvio Romero
diretas com outros campos do conhecimento. Isso o distinguiu da tradição re- tiveram o mérito de constituir uma tradição, ensejando depois classificações
tórica anterior, de vinculações clássicas, que se limitava exclusivamente ao mais elaboradas. É uma tradição que se inicia, cujo ponto de chegada (onde a
fato literário como se ele não estivesse imbricado com o conjunto da vida visão sintética se integra a rigor analítico) será a Formação da literatura
histórico-cultural do país. E foi justamente para se contrapor a essa perspecti- brasileira, de Antonio Candido.
va formalista que ele acabou por exagerar o determinismo do meio. Não o Esse distanciamento crítico em relação ao método que dizia seguir toma-
meio fisico, que ele desconsiderou, mas o social em suas interações raciais, se evidente quando apresenta a tríade determinista de Taine: meio, raça e
como será visto mais adiante. momento
O determinismo, aplicado com rigor, leva à subalternidade dos valores
específicos da série literária. A literatura é um campo do conhecimento e não são a trindade portentosa do criticar contemporâneo; servem para sorver todas as
se limita às belas-letras - equívoco, aliás, que vem até a atualidade. Foi a dificuldades [ ... ] Onde encont~am um fato qualquer fora do comum recorrem muitos
ao meio, e o façanhudo fator aparece e arreda os embaraços [ ... ] Outros deixam de lado
ênfase na história e por servir-se da literatura para abarcar toda a história
o meio e agarram a muleta do momento; alguns, finalmente, calçam as botas da raça
cultural do país, que Sílvio Romero coloca ao lado da literatura as manifesta- [... ] Não quero, não posso contestar a influência de qualquer desses fatores no desen-
ções culturais em livro, de caráter paraliterário, como os livros de memória de volvimento e na formação dos produtos literários. Bem pelo contrário, muitas vezes
naturalistas, ou os de história do país. É exemplar o fato de consagrar tópicos tenho recorrido também a eles e ainda agora vou de novo recorrer [ ... ] Mas sustento
de sua História aos economistas, jurisconsultos, publicistas, oradores, lingüis- que, só por si, eles são incapazes de revelar, de esclarecer o problema, todo o segredo
dos gênios e dos grandes talentos das letras 22
tas, moralistas, biógrafos, teólogos, etc. Não figuram esses autores apenas
como entorno da situação cultural, mas como objeto de análise histórico-cultu-
ral, conjuntamente com textos literários. Hoje, a cientificidade na abordagem
do texto literário e sua inserção histórica seguem outros caminhos: é funda-
PERÍODO DE FORMAÇÃO
mental entender os vários campos do conhecimento, bem como a literatura,
como séries culturais, com autonomia relativa. E se o objeto da análise é um
texto literário, nele o crítico encontra seu ponto de partida para estabelecer O primeiro período da História da literatura brasileira foi designado
relações com outras séries discursivas, como as da história, sociologia, econo- por Sílvio Romero como "Primeira época ou período de formação (1500-1750)",
mia, política para a explicação dos autores enquanto personalidades literárias e quando apresenta uma linha evolutiva da adaptação do homem e da cultura de
não o inverso. Portugal aos trópicos. Valoriza, então, José de Anchieta por sua adesão afetiva
Sílvio Romero que sempre teve obsessão pelas classificações, à maneira ao país, embora seguisse as diretrizes de sua ordem religiosa, os jesuítas. Mais
das ciências naturais, acabou por reformulá-las para com isso melhorá-las. relevante do que o poema laudatório Prosopopéia, de Bento Teixeira (primei-
Tinha, pois, consciência de que se tratava de uma construção, estabelecida a ro poema brasileiro publicado em lingua portuguesa) foi Gregório de Matos, no
partir da observação, e que deveria ser aperfeiçoada. Foi muito criticado por
isso. Para o crítico essas contínuas revisões das classificaçõe8 seriam um 12 Sílvio Romero, História da literatura brasileira, cit., tomo 4, pp. 1.136-1.137.

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BENJAMIN ABDALA ruNIOR
HIST6RIA DA LITERATURA BRASILEIRA
1'

Integram esse período da História os oradores, a poesia religiosa e a


século XVII, que considera o fundador da literatura brasileira pelo seu senti-
poesia patriótica. O autor não deixa de enveredar pelas belas-artes, pelas
mento de nacionalidade. O sistema literário se configurará no século XVIII:
"Formam-se tradições intelectuais, fundam-se sociedades literárias".23 Sílvio ciências naturais, pela economia, pelo direito, etc. e também por medíocres
poetas clássicos e poetas de transição para o romantismo. Enfim, a descrição
destaca as personalidades representativas da época, como "os dois irmãos
Gusmões, Rocha Pita e Antônio José, a saber: a política, as invenções, a histó- do sistema cultural exigia esse detalhamento.
ria e o teatro 24 e aprecia com lucidez suas trajetórias, quando ataca a Inquisição
pela tortura e execução de Antônio José e defende Bartolomeu de Gusmão, o
PERÍODO DE TRANSFORMAÇÃO ROMÂNTICA E REAÇÕES ANTI-ROMÂNTICAS
padre voador, inventor do balão e que havia sido ridicularizado pelos portu-
gueses (seu mérito foi reconhecido por José Saramago, em Memorial do con-
As produções da "Terceira época ou período de transformação românti-
vento).25
Nesse período inicial da História já aparece um exemplo da parcialidade ca - Poesia (1830-1870)" já se desenvolvem em ritmo mais acelerado, exigin-
crítica de seu autor. Antônio Vieira foi uma personalidade marcante, um verda- do uma divisão em fases, com escritores representativos: a fase de Gonçalves
deiro homem representativo desse período, como pretendia Sílvio Romero. de ~agalhães e seu grupo; a do indianismo de Gonçalves Dias; a do subjetivismo
de Alvares de Azevedo e seu grupo; a do sertanismo dos poetas do norte; a do
Entretanto, ele só dedica um parágrafo ao jesuíta e desanca sua obra, ao
lirismo de Pedro Luís e Fagundes Varela; e finalmente o condoreirismo de
contrapô-la à de Gregório de Matos. Para o crítico, Vieira é pedante, arro-
Tobias Barreto e de Castro Alves e seu grupo.
gante, vazio de idéias:
O autor da História observa que a diferença entre a literatura do século
Vieira é uma espécie de tribuno e de roupeta que se ilude e ilude os outros com as XIX e a anteriormente produzida seria análoga à que ocorreu entre a ciência e
próprias frases. Matos é um pândego, um precursor dos boêmios, amante das mulatas, a filosofia desse século comparativamente às de outros tempos: antes havia
desbragado, inconveniente, que tem a coragem de atacar bispos e governadores [ ... ]26 um modelo universal para tudo, nas artes, na gramática; agora o direito vem
em função da vida nacional; a língua de uma formação nacional; a poesia de
É assim, desatento aos valores literários, valorizando a mestiçagem e a uma idealização nacional.
afirmação da nacionalidade no conjunto do campo intelectual, que o crítico vai Em relação à primeira fase, Sílvio Romero destaca o significado histórico
continuar seu discurso histórico, ingressando na "Segunda época ou período de de Gonçalves de Magalhães, mas não aceita o fato de ele procurar nacionali-
desenvolvimento autonôrnico (1750-1830)". Para Sílvio, destacam-se nesse mo- zar a literatura através das "regrinhas de programa".29 Embora não fosse apre-
mento os poetas da Escola mineira, onde o projeto político se imbricou com o ciador do indianismo, o crítico acaba por aceitá-lo pelo fato de essa tendência
estético. Ao analisar os poetas desse grupo, mais particularmente Tomás Antô- contribuir para "afastar-nos da exclusiva influência da imitação portuguesa".30
nio Gonzaga, temos um bom exemplo da subjetividade do crítico que se preten- Gonçalves Dias coloca-se na História como o ponto mais alto da segunda
27
dia objetivo: após transcrever a Lira XIX desse poeta, um verdadeiro talento , fase do romantismo brasileiro, em função da qualidade de sua obra, que é
ele emotivamente faz sua apreciação: "Isto é um naturalismo completo e per- representativa do "genuíno povo brasileiro".3l Trata-se, além disso, de um tipo
feito; é a pintura da vida".28 Não aponta o que seja naturalismo completo e de mestiço flsico e moral, que é símbolo de identidade da cultura brasileira,
perfeito e menos ainda a razão de o poema trazer a pintura da vida. cujos passos o autor rastreia ao curso dessa história da literatura.
Álvares de Azevedo foi considerado escritor representativo da fase se-
guinte por ser um produto da vida literária brasileira e por romper com a
lJ Ibid., tomo 2, p. 385.
14 Ibidem.
" José Saramago, Memorial do convento (Lisboa: Caminho, 1982).
!9 Ibid., tomo 3, p. 797.
16 Sílvio Romero, História da literatura brasileira, cit., tomo 2, p. 365.
lO Ibid., p. 915.
'7

l
Ibid., p. 460.
11 Ibid., p. 917.
II Ibid., p. 461.

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HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA
BENJAMIN ABDALA JUNIOR

influência exclusiva portuguesa. Isso foi possível pela existência de uma vida
brasileiro, depois de Gonçalves Dias. Quem ele destaca mais entre os
intelectual (Nabuco, Eusébio, Rio Branco, etc.), facilitada pela criação de fa-
ficcionistas, em termos de espaço, é Machado de Assis, justamente para criticá-
culdades brasileiras. Ao se desprender da influência exclusiva dos portugue-
lo. Seus preconceitos a avaliações pessoais aí afloram, como foi indicado. Sua
ses houve o preenchimento dos espaços literários e culturais pelos franceses,
crítica, equivocada, é indigna do próprio Sílvio Romero:
qu~ Sílvio Romero critica. Para ele, a presença de intelectuais ingleses e ale-
mães nos cursos superiores do Rio de Janeiro contribuiu para o "universalismo
o estilo de Machado de Assis, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é a
literário de nosso romantismo".32 Ao abordar o grupo de poetas sentimentais fotografia exata de seu espírito, de sua índole psicológica indecisa. Correto e maneiroso,
dessa época, Sílvio argumenta com sensibilidade crítica que além do sentimen- não é vivace, nem rútilo, nem grandioso, nem eloqüente. É plácido e igual, uniforme e
talismo e das lamúrias, como a critica literária se acostumou a indicar, é neces- compassado. Sente-se que o autor não dispõe profusamente, espontaneamente, do
sário destacar que eles eram rebeldes, com "muito brado, muito brado em prol vocabulário e da frase. Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação
qualquer nos órgãos da linguagem. ll
de novas crenças, de novos ideais. Foi um tempo de agitação e toda época de
agitação merece grandes preitos da história". 33 ..
O relevo dado a autores não-literários ou a autores hteranamente secun- Outras manifestações em prosa de publicistas, oradores e historiadores
dários como Tobias Barreto desequilibram essa obra historiográfica. Além dis- completam esse período, caracterizando a atmosfera intelectual desse mo-
so, a poesia foi supervalorizada, 'em detrimento da prosa de ficção, deixando mento de afirmação da nacionalidade. Entre os artigos esparsos dedicados a
essa obra crítica ainda mais lacunar. Sílvio Romero consagra um capítulo para personalidades dessa época, inseridos nessa parte, está um dedicado a Euclides
discutir a poesia condoreira de Tobias Barreto, a última fase do romantismo. A da Cunha. Como fecho, a História da literatura brasileira traz as reações
extensão desse estudo é desmedida, quando comparada a de outros autores. anti-românticas nas quais se insere o próprio Sílvio Romero. Em relação à
Por exemplo, outro condoreiro, de maior impacto de público e de cr~tica, foi poesia era o momento dos poetas baudelairianos e parnasianos. A respeito
Castro Alves. Embora o poeta baiano fosse de sua predileção, dedIca a ele dessas tendências, o autor da História assinala: "Se Teófilo Dias é o mais
menos de 1/12 das páginas consagradas a Tobias Barreto. Essa extensão é ardente, Raimundo Correia o mais sereno, Alberto de Oliveira o mais artista
maior que o total do número de páginas relativas a Macedo, Alen~ar, Manuel destes poetas, Olavo Bilac é o mais espontâneo, o mais natural de todos eles".36
Antônio de Almeida, Franklin Távora, Taunay e Machado de ASSIS. É problemático classificar Bilac como poeta espontâneo e natural.
Em seguida, Sílvio Romero analisa a transformação romântica no teatro
e no romance. Esse tópico conjunto já revela a minimização da prosa de fic-
MESTIÇAGEM, CRITÉRIO DE UNIDADE
ção, mesmo diante do teatro. É importante indicar, entretanto, como ele justifi-
ca o esquecimento por parte da crítica e do público do principal drama~rgo da
época (Martins Pena): entre outros motivos, pelo fato de ele se refem cons- Sílvio Romero tem na mestiçagem o ideal da identidade nacional brasilei-
tantemente aos escravos, moleques, mucamas e a alta freqüência de persona- ra. Nessa interação antropológica, procurava aliar determinantes raciais com
gens negras e mestiças que contrariavam o "gosto da branquidade"34 da vida os de outras esferas, de ordem psicológica, sociológica, cultural e também
social. Foi essa mesma razão que fez com que a obra-prima do teatro de José política. Vem do modelo antropológico da mestiçagem a defesa política do
de Alencar - O demônio familiar - não fosse mais encenada. unitarismo do país, em oposição aofederalismo. Essa idéia de unidade políti-
A apresentação dos romancistas é feita de forma sumaríssima, em~ora ca, espiritual e étnica do país, não poderia correr um risco que considerava
considere José de Alencar a personalidade mais importante do romantIsmo introjetado em nosso povo: o caráter ibero-latino, sempre propício ao
desmembramento como ocorreu na América hispânica. Não aceita, assim, o
que designou mania de se copiar os norte-americanos:
32 Ibid., p. 949.
JJ Ibid., p. 969.
" Ibid., tomo 5, p. 1.506.
J4 Ibid., tomo 4, p. 1.381.
" Ibid., p. 1.677.

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HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA BENJAMIN ABDALA JUNIOR

A idéia de federação se assenta em dois falsos pressupostos: a crença errônea de nos Houve, segundo Sílvio Romero, a formação de um tipo novo pela ação de
convir o que convém aos anglo-americanos e a falsa teoria de supor que para lá nos cinco fatores, em que predomina a mestiçagem, tanto do ponto de vista fisico
levam as lições da história. 37 como cultural. São estes os fatores: o português, o negro, o índio, o meio fisico
e a imitação estrangeira. O horizonte de Sílvio Romero para avaliar um autor
Sílvio Romero pode ser situado no quadro geral das classes médias cita- está nessa mestiçagem: quanto mais mestiço mais próximo do caráter nacional
dinas que não aceitam as oligarquias regionais, estas sim descentralizadoras e brasileiro.
com vocação separatista. Do seu ponto de vista vê então a mestiçagem como
força biológica capaz de contribuir para a unidade nacional. Essa interação
étnica da história brasileira, "representada pelo sangue e pela língua",38 foi-se BRANQUEAMENTO, A MÁSCARA DA MESTIÇAGEM
tomando, para ele, "o centro de atração constituidor dos grandes focos nacio-
nais".39 Para Sílvio Romero o caráter nacional brasileiro estaria no mestiço: Embora situe a mestiçagem como própria do caráter nacional brasileiro,
"O mestiço é produto fisiológico, étnico e histórico do Brasil; é a forma nova Sílvio Romero indica que com a extinção do tráfico, o gradual desapareci-
de nossa diferenciação nacional. Nossa psicologia popular seria um produto mento dos índios e a constante entrada da imigração européia, poderá vir a
desse estado inicial".40 Embora destaque esse caráter étnico-cultural, esse predominar de futuro, "ao que se pode supor, a feição branca em nosso mes-
fato não significa que tiçamento".43 Os estudos de Sílvio Romero serão retornados , com novas nuances ,
no século XX, na obra de um Gilberto Freire, que sobrevalorizou os ideais de
constituímos uma nação de mulatos; pois que a forma branca vai prevalecendo e
miscigenação, contribuindo para a criação do mito de democracia racial. A
prevalecerá; quero dizer apenas que o europeu aliou-se aqui a outras raças, e desta
perspectiva crítica do branqueamento foi substituída assim pelas idéias do ca-
união saiu o genuíno brasileiro, aquele que não se confunde mais com o português e
sobre o qual repousa o nosso futuro. 4' ráter multirracial da sociedade brasileira. Por outro lado , mais à direita, Olivei-
ra Viana se vale de artigos menos relevantes de um certo Sílvio Romero em
Ao abordar esse caráter nacional na literatura brasileira, Sílvio Romero fmal de vida, para uma matização racista e não-democrática dessa miscigena-
destaca o fato de tratar-se de uma literatura transplantada da Europa. Consi- ção, contraditando o discurso liberal que aparece no conjunto da História.
derada como apêndice da literatura portuguesa, nossa literatura figurou no Não obstante, esse ideal de branqueamento que leva à atenuação das bases
texto de autores portugueses como acessório do pensamento da antiga metró- étnico-culturais africanas, o discurso de Sílvio Romero sobre os negros não
pole. Entretanto, essa perspectiva é parcial, pois a história do Brasil e de sua deixa de ser reivindicador:
cultura não podem ser
[... ] é indispensável restituir aos negros o que lhes tiramos: o lugar que lhes compete
em tudo que tem sido praticado no Brasil. E o que mais admira é que o não tenham
a história exclusiva dos portugueses na América. Não é também, como quis de passa-
feito tantos negros e mestiços ilustrados, existentes no país. 44
gem supor o romantismo, a história dos Tupis, ou, segundo o sonho de alguns repre-
42
sentantes do africanismo entre nós, a dos negros em o Novo Mundo
Sílvio Romero fica igualmente contraditório quando pretende pesar o
que existiria de favorável ou de desfavorável na mestiçagem. Curiosamente,
sob este aspecto, o crítico que dizia não aceitar mistificações, ficou preso a
superstições cientificistas. Ele aceita a idéia de Superioridade racial sem veri-
17 Ibid., tomo 1, p. 44. ficar sua pertinência, corroborando acriticamente suas formulações discursivas.
J. Ibidem.
" Ibidem.
40 Ibid., p. 120.

41 Ibidem.
4J Ibid., p. 291.
44 Ibid., p. 296.
41 Ibid., p. 53.

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HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA
,. BENJAMIN ABDALA JUNIOR

admite, pois aponta a importância cultural dos romanos, na transcrição acima.


Decorrem dessas concepções racistas suas ambigüidades quando discorre sobre
Tal importância veio do fato de se estabelecer uma continuidade do repertório
a mestiçagem. Observa, então, que ela foi positiva por propiciar a adaptação
cultural romano na península Ibérica, através de setores sociais hegemônicos
aos trópicos do europeu, mas que teria ocasionado, ao mesmo tempo, "certa
que os fizeram seus, alimentando-se ainda dos repertórios de outros povos ou
instabilidade moral na população, pela desarmonia das índoles e das aspirações
classes sociais. Foi ainda decisiva a influência da Igreja católica e dos sistemas
no povo, que traz a dificuldade da formação de um ideal nacional comum".45
de estado que perpetuaram esses repertórios da práxis social.
Não obstante, num direcionamento oposto, esse mesmo mestiçamento promo-
veu a unidade da geração futura e, se controlado (fusões sobretudo com a
"raça branca", superior), seria possível eliminar seus defeitos e insuficiências,
A INFLUÊNCIA ESTRANGEIRA
através da força da educação. Ao mesmo tempo que aponta o caminho ideoló-
gico do branqueamento, Sílvio Romero diz:
A civilização nas Américas, de acordo com Sílvio Romero, tem sido um
Aos mestiços devemos, na esfera literária, mais do que aos outros elementos da nossa processo de aclimação e, inevitavelmente, de transformação da cultura eu-
população, as cores vivas e ardentes de nosso lirismo, de nossa pintura, de nossa ropéia. Nesse processo, nos três primeiros séculos, quando o país ainda estava
música, de nossa arte em geral. 46 sob domínio colonial, seguiu-se o modelo da metrópole, pois não tínhamos auto-
nomia política e literária. Haveria uma dupla imitação: imitação de seus mode-
Entre os poetas envolvidos no abolicionismo, Sílvio Romero destacou Luís
los e dos modelos que ela imitava. A posição portuguesa, com o romantismo
foi desbancada pela francesa. É através da literatura francesa que conhece~
Gama, pela sátira que ele faz à branquidade, mania que devasta grande porção
de verdadeiros mestiços, que pretendem ter prosápia fidalga. Sabe-se que a
mos outras literaturas: a inglesa, a alemã, a italiana, etc. Um processo de imi-
mistura das três raças fundamentais de nossa população deu-se em larguíssima
tação similar ao dos tempos coloniais. Para o autor da História, essa imitação
escala, e é fenômeno ineludível; o número dos brancos puros é muito pouco
tomou-se uma fatalidade em nosso percurso histórico pelo fato de se constituir
avultado, e, não obstante, quase toda a gente tem suas veleidades a descender
aquilo que hoje denominamos um habitus cultural. Olha-se mais para fora do
de sangue azul.. Y país, desconhecendo-se o que aqui se aclimatou ou se criou. Não há por parte
Em seguida, Sílvio Romero vai ao extremo de negar a latinidade brasilei-
do crítico desconsideração em relação às culturas estrangeiras, mas um
ra. Seus argumentos são étnicos e não culturais. Diz que os índios e os africa-
questionamento desse habitus que vem dos tempos coloniais.
nos evidentemente nada tinham de latinos e os portugueses eram produtos de
Sílvio Romero busca o significado desses habitus na história do país. São
uma grande miscigenação cuja
modelos de comportamento que têm dificultado os indivíduos assumirem suas
base fundamental é de iberos a que se ligaram lígures, celtas, fenícios, cartagineses, cidadanias. Seria responsabilidade da literatura apontar esses problemas, mes-
godos, suevos, árabes, almóades, almorávides, mouros de toda a casta, sem falar de mo causando desagrado. O retrato que traça do país é de ruínas: lavoura deca-
escravos negros e indianos que se lhe adicionaram em tempos./Os romanos entraram dente, comércio nas mãos dos estrangeiros e uma atmosfera de opressão social
também com o seu contingente, importantíssimo pelo lado cultural e insignificante contra os proletários rurais. 49 Busca uma origem histórica para essa situa-
pelo número. 48 ção: o absolutismo monárquico. A ausência de uma forte consciência coletiva
de povo é também vista por Sílvio Romero como conseqüência de uma vida
Novamente o autor da História está fazendo uma leitura via etnologia
geograficamente dispersa, que inviabilizaria
fisica, desconsiderando a evidência da apropriação dos bens culturais que ele
a formação de uma forte consciência coletiva, um vivaz sentimento de nacionalidade
[... ] Uma administração compressora e rapace habituou o nosso povo, desde suas
., Ibid., p. 305.
46 Ibidem.

47 Ibid., tomo 4, p. l.17l.


4' Ibid., p. 139.
48 Ibidem.

2lJ
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HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA
T BENJAMIN ABDALA JUNIOR

origens, a considerar com maus olhos a governança e tudo que com ela se relaciona. Os
Sílvio Romero desconsidera os poetastros que tentaram imitar a cultura
chamados aspectos políticos não podiam escapar a esse desprestígio, a essa falta de popular de forma grosseira, referindo-se negativamente aos Catulos da Paixão
simpatia. 50 Cearense de todos os tempos. Diferentes dessas apropriações da cultura po-
pular são as que encontra nas produções de nossos melhores líricos, como
Essa situação fez com que o brasileiro sempre esperasse uma iniciativa Gonçalves Dias, Fagundes Varela, Castro Alves, Casimiro de Abreu e outros.
de fora e de cima, não desenvolvendo suas próprias potencialidades. Faltar- Na História há reiterados comentários do autor, que não se cansa de
nos-ia, para o autor da História, uma individualidade característica em termos repetir que o Brasil não é o Rio de Janeiro. Ao apontar que o país é mais
políticos e intelectuais. Na literatura, segundo ele, nada mais foi feit~ do ~ue amplo, em sua diversidade, inclusive literária, procura destacar as produções
glosar os europeus, com idéias tomadas às vezes em segunda e terceira mao. culturais nordestinas. Critica, ao mesmo tempo, a situação social controlada
pelos latifundiários regionais. Sua posição é de intelectual brasileiro das cida-
des, uma categoria social originária da ascensão dos filhos de negociantes e
A CULTURA POPULAR
agricultores que conseguiram vencer a coerção desse latifúndio, chegando aos
cursos de medicina, direito e engenharia para engrossar as fileiras dos funcio-
Sílvio Romero foi um grande pesquisador da cultura popular brasileira.
nários públicos: O esforço desses intelectuais
Suas recolhas constituíram repertório inicial para outros estudiosos, entre eles,
Mário de Andrade. Em relação às personagens dessa literatura, ele considerou seria aviventar o pensamento nacional ao cantata das grandes idéias do mundo culto,
roupagens de um mesmo povo o sertanejo, o matuto, o caipira, o praieiro, etc., sem afogar esta nacionalidade nascente num pélago de imitação sem critério, esses não
pois nesses tipos é dominante o caráter nacional, de origem popular, que tudo são ouvidos pelo geral do público, ocupado em bater palmas ao último folhetim ou
unifica. Esse caráter está igualmente nas produções anônimas da cultura po- aos últimos versinhos chegados de Lisboa ou de Paris [ ... Jl4
pular. Isso não significa, entretanto, que se deva sonhar com "um Brasil unifor-
me, monótono, pesado, indistinto, nulificado, entregue à ditadura de um centro
regulador de idéias. Do concurso das diversas aptidões dos Estados é que
52
deve sair o nosso progresso" .51 É aí que está a grande alma nacional. A QUESTÃO DA NACIONALIDADE
Para o autor da História, a fusão e o mestiçamento das cantigas popula-
res, romances, xácaras, orações, parlendas, versos gerais, loas, etc. trazem A história da literatura brasileira coloca-se para Sílvio Romero como
um mestiçamento psicológico correlato: uma descrição dos esforços de seu povo para pensar por conta própria, atra-
vés de seus representantes mais significativos de cada período. Há uma divi-
Romances e xácaras se nos deparam por este Brasil em fora que são casos irrefragáveis são de tarefas nessa empreitada: compete ao crítico e~o historiador discutir as
dessa espécie de hibridização. São produtos recentes de nossas atuais populações questões nacionais, não ao poeta. Este deve ter fundamentalmente talento,
mestiçadas, moldados sobre velhos elementos tradicionais, inteiramente transforma-
sem se preocupar se o que está criando é ou não nacional. Se tentar ser naci-
dos pelos cantores modernos, caipiras, tabaréus, matutas ou sertanejos.53
onal à força, o resultado será falso. Não é nacional quem quer, mas "aquele
É dessa perspectiva descentrada que Sílvio procura ver a cultura brasi- que a natureza o faz, ainda que não o procure ostensivamente".55 Temas uni-
leira, sem o preconceito que ele atribui para quem a vê com a cabeça e os pés versais poderiam e deveriam ser tratados desde uma ótica brasileira. Sílvio vê,
no Rio de Janeiro. nesse sentido, múltiplos sistemas na literatura brasileira, conforme a natureza
étnica de origem (africana, indígena e dos mestiços - sertanejos, tabaréus,

lOIbid., p. 175.
liIbid., p. 151. " Ibid., pp. 139-140.
" Ibidem. " Ibid., tomo 2, p. 406.
" Ibid., p. 161.

213
212
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA
T BENJAMIN ABDALA JUNIOR

matutos, regatões, etc.). Não há referência na História à diversidade entre CRUZ E SOUSA E EUCLIDES DA CUNHA, ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS?
índios e africanos, só em relação à variedade dos mestiços.
O caráter nacional da literatura, de acordo com essa perspectiva, não se Cruz e Sousa, na poesia, e Euclides da Cunha, na prosa, poderiam cons-
inventa, mas nasce espontaneamente e se manifesta literariamente mesmo tituir pontos de chegada do discurso crítico da História. São dois autores es-
contra a vontade dos escritores. É por essa razão que Sílvio Romero critica o treitamente ligados aos ideais de mestiçagem de Sílvio Romero e a estratégia
nacionalismo exterior, que aparece na literatura brasileira, quando se privilegia discursiva desse crítico poderia convergir para eles. Na prática, não foi o que
a representação ufanista, por exemplo, do caboclo ou do sertanejo. Não que a aconteceu, embora eles se aproximem de seus modelos de escritores, pois sua
escolha não seja legítima, mas por faltar-lhe a criticidade, trazendo assim para obra na verdade reúne matéria esparsa, publicada em épocas diferentes.
a literatura as "qualidades nativas, boas ou más".56 Sílvio Romero é eloqüente quando situa Cruz e Sousa como o ponto cul-
Na História, o nacional conflui para o mestiço, como tem sido reiterado. minante da lírica brasileira: sofreu os terríveis agrores de sua posição de preto
Foi em função dessa mestiçagem que o seu autor fez uma defesa emotiva do e de pobre, desprotegido e certamente desprezado. Mas sua alma cândida e
poeta Domingos Caldas Barbosa. É um exemplo de como - a partir de postu- seu peregrino talento deixaram sulco bem forte na poesia nacional. Morreu
lados racistas de seu tempo - Sílvio Romero procura relevar a maneira de ser muito moço, em 1898, quase ao findar deste século, e nele acha-se o ponto
do mestiço, contraditando postulados que julgava acreditar. Nesse sentido, ele culminante da lírica brasileira após quatrocentos anos de existência. 59 A refe-
critica Varnhagen que atribuiu à mestiçagem um suposto caráter submisso rência à imagem das almas cândidas certamente deve ser atribuída às formu-
desse poeta, segundo ele uma injustiça e um erro grave, pois o poeta não era lações ideológicas do autor já referidas. Mas, procurando escapar desses
submisso, horizontes, por via afetiva, reconhece e proclama os méritos artísticos de Cruz
e Sousa - um negro que se colocava à frente de todos, desdizendo pressupos-
apenas amorável, alegre, expansivo e divertido. Além disso, se há alguma coisa no tos de inferioridade racial.
mestiço, que se possa considerar a nota predominante de seu caráter, é a rudeza, a
57 É com Os sertões, embora situado nos "Artigos esparsos" de sua Histó-
independência, o orgulho, a tendência ao desrespeito, a falta de senso de veneração.
ria, que Sílvio Romero encerra o percurso de seu discurso histórico-literário.
Obcecado por modelos unitários, Euclides da Cunha como Cruz e Sousa termi-
Sílvio Romero projeta no mestiço traços psicossociais de altivez e inde-
naram por serem convenientes ao crítico que os admirava. Evidentemente
pendência que imaginava próprios do caráter nacional brasileiro. Em relação
essa visão é parcial, reduzidíssima, pois tende a minimizar o valor de outros
ao sistema literário, Caldas Barbosa seria um poeta representativo de sua épo-
autores significativos, inclusive de outras épocas, para apontar para um
ca também por conseguir consagração e popularidade. Apropriado pela popu-
evolucionismo estreito que contraria o rico colorido das produções literárias
lação anônima, esta fez seus pedaços das cantigas do poeta - um material que
indicadas pelo aut9r em vários momentos de sua História. Adequaram-se
traz a maneira de ser de uma população tropical, muito doce, distante quer de
Euclides e Cruz e Sousa, entretanto, ainda plenamente a suas teses relativa-
Lisboa quer do Rio de Janeiro. Na metrópole, Sílvio vê uma terra de poetas
mente à unidade nacional com base no mestiçamento biológico e cultural. N' Os
"mordazes e inchados de retórica" (Bocage e Agostinho de Macedo); no Rio
sertões, predominavam imagens do amorenamento; na poesia de Cruz e Sousa
de Janeiro, a menos nacional de todas as capitais do mundo. 58
encontrava um negro que, sem abdicar de sua condição étnica, incorporava a
cultura mestiça do país, dialogando com as tendências mais atuais da poesia
européia.
Euclides trouxe uma síntese do homem brasileiro, representado de forma
superiormente artística. Para Sílvio Romero, mais do que uma construção,
56Ibid., nota 1, p. 407.
57Ibid., p. 476.
" Ibid., p. 478. 5. Ibid., tomo 5, p. 1.686.

214 215
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA BENJAMIN ABDALA JUNIOR

tratava-se de uma representação autêntica de um homem brasileiro, permitin- século, perseguindo às vezes ambiguamente a possibilidade de se construir no
do-lhe então opor essa forma de ver a realidade brasileira, dura e áspera, país um espaço de liberdade. Para tanto, em grandes sínteses, destacou as
baseada na observação, aos poetas deliqüescentes "que enfiam frases no Rio potencialidad~s da~ fo~as literárias produzidas no país - formas mestiças
de Janeiro". 60 Os sertanejos são, em oposição a esses deliqüescentes, tipos embaladas, dIr-se-Ia hOJe, por pedaços de culturas provenientes de Portugal
rígidos e "expoentes indicadores das correntes subalternas das multidões" e (p~ra o. autor, Portugal também é mestiço), da África e dos povos ameríndios.
não expressões passivas "ditadas pela própria natureza",61 pois ali estão cris- Ha, pOIS, uma produtividade interna que motiva a cultura brasileira, sobretudo
talizações humanas obtidas por quatrocentos anos de relacionamentos do ho- em nível ~opular - uma dinâmica cultural que não pode ser desconsiderada por
mem com a terra. A superior organização formal do romance coloca-o como parte da mtelectualidade brasileira, que continua a repetir o habitus adquirido
"um dos livros máximos na literatura de língua portuguesa". 62 nos tempos coloniais e do Império, denunciado por Sílvio Romero: o olhar ob-
sessivo para fora do país, desconsiderando o que aqui se produziu. Essa mes-
ma observação critica vale igualmente para aqueles que se admiram com a
HIBRIDISMO, UMA QUESTÃO ATUAL aparente novidade dos estudos culturais e das teorias relativas à crioulidade ou
à hibridez das culturas, não localizando no pensamento critico brasileiro toda
Para concluir, convém relevar o significado histórico-cultural da História uma tradição relativa à mestiçagem que viria enriquecer esse debate.
da literatura brasileira, uma obra que vale como síntese da literatura e da
cultura do país, publicada nos inícios da República. Era esse momento de so-
nhos libertários e de defesa de uma metodologia científica para as ciências
humanas que imprimiu as motivações de fundo para o projeto de Sílvio
Romero. Um projeto que não se fechava em si, pois que o autor tinha cons-
ciência de sua historicidade, revisando-a, reformulando-a. Conformada sua
estrutura, a obra tomou-se contexto, isto é, ponto de partida crítico para outros
estudiosos da literatura e da cultura do país.
Além desse significado histórico, a História é hoje texto de grande valia
para a discussão da cultura brasileira. As questões sobre mestiçagem e
hibridismo cultural que levanta colocam-se como matéria de interesse para a
discussão das culturas contemporâneas. A hibridez é mostrada por Sílvio
Romero de forma ambígua: ele a teme pelo que ela poderia representar em
termos de desagregação política da nascente república, mas ele também a
aprecia pelos muitos matizes que apresenta da identidade cultural brasileira.
Hoje esse conceito de hibridez é alargado da referência exclusiva aos países
latino-americanos - países de colonização recente -, para o conjunto da cultu-
ra contemporânea. Hibridez, nesse sentido, não é um problema, mas possibi-
lidades abertas por culturas que não se conformam a modelos unitários,
avessos à liberdade. Sílvio Romero discutiu essas questões há mais de um

.. Ibid., p. 1. 793.
6' Ibid., p. 1.795.
62 Ibid., p. 1.797.

216 217
T
j

JOAQUIM NABUCO

Minha formação

Maria Alice Rezende de Carvalho


~l:
..

Na última década do século XIX, o Brasil era uma república incerta,


lidando ainda com a instabilidade política decorrente da ruptura com o antigo
regime. Aos homens públicos daquela época coube, então, apostar no futuro
ou, alternativamente, agarrar-se ao trajeto já feito e compreendê-lo como um
tempo de realizações esgotado.
Minhaformação, publicado em 1900, é o resultado brilhante do balanço
empreendido por Joaquim Nabuco de sua vida, uma avaliação da sua trajetória
pessoal associada à era de realizações do Segundo Reinado brasileiro, cuja
conclusão, embora um tanto nostálgica, permite entrever a disposição do autor
em acorrer a um eventual chamamento do país. É assim que, no último capítulo
do livro, encontra-se a afirmação de que o espírito monárquico não lhe bastava
como uma religião e que, tal como os estadistas que o antecederam, jamais
estabeleceria "o dilema entre a monarquia e a pátria", I porque a pátria não
poderia ter rival. Em Minha formação, portanto, o passado e o futuro são
abordados como cenários incomparavelmente mais significativos do que o que
se apresentava no contexto turbulento da primeira década republicana: o pri-
meiro, como história; o segundo, como possibilidade.
De fato, os anos imediatamente posteriores a 1889 conheceram um
Nabuco apreensivo com a radicalização política que assolava o país e volunta-
riamente afastado da cena pública, em parte por reconhecer na militarização
que acometia a sociedade brasileira o resultado inevitável do caráter violento e
personalista do republicanismo americano, em parte por não vislumbrar, entre
os monarquistas históricos, uma liderança capaz de reconciliar a nação com o
seu passado grandioso, com a tradição reformadora dos antigos estadistas do
Império.
Em 1893, refugiou-se com sua família em Petrópolis. Eram tempos de
um alegado desejo de obscuridade por parte do até então vitorioso homem
público, embora duas memórias tivessem sido concebidas durante aquela esta-
dia serrana: a que recebeu o título de Foi voulue,2 uma narrativa sobre a sua
conversão católica, e a que, nos anos seguintes, seria elaborada com base nos
apontamentos e notas feitos ali, tomando, primeiro, a forma de artigos
jornalísticos sobre a sua convicção monárquica e, posteriormente, a de uma

1 Joaquim Nabuco, Minha formação (13) ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999), p. 217. [As
citações que se seguem referem-se a essa edição.]
1 Joaquim Nabuco, Minha fé (Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Massangana, 1985). Tradução de
Foi vou/ue (1893), por Aída Batista do Vai, a partir do texto estabelecido em francês, em 1971,
por Claude-Henri e Nicole Freches, do Departamento de Estudos Portugueses da Université de la
Provence.

221
MARIA ALICE REZENDE DE CARVALHO
MINHA FORMAÇÃO

autobiografia. No "Prefácio" ao livro Minha formação encontra-se que "[ ... ] Nesse sentido, o programa político implícito em Minha formação con-
a data do livro para a leitura deve assim ser 1893 -18 99, havendo nele idéias, siste na defesa do tema da continuidade, no elogio à tradição reformista do
modos de ver, estados de espírito de cada um desses anos"? Império, em visível oposição à revolução republicana, cuja perspecti~a era a
Minha formação começaria a circular em 1900, provocando um certo do rompimento com o nosso passado, visando a invenção de um outro Brasil.
debate nos meios cultos da capital federal. Elogiada como obra literária, a Segundo Nabuco, a República brasileira inaugurara, de fato, um novo ambien-
coletânea autobiográfica de Nabuco não repetiria, de imediato, o sucesso de te moral e intelectual, cujos princípios eram abstratos, derivados do racionalismo
Um estadista do império,41ivro que ostentava o rigor da pesquisa histórica e jacobino, e não da experiência nacional, tal como a conceberam as elites impe-
que havia conferido enorme prestígio intelectual ao seu autor. Comparado a riais. Daí que, como representantes de um ideário filosófico, mais do que her-
ele, Minha formação estava longe de exibir o mesmo acabamento, demons- deiros da civilização arquitetada pelos construtores do Brasil, as lideranças
trando ser uma reunião de artigos autobiográficos já publicados pela imprensa políticas da República mostravam-se pouco afetas à exemplaridade, conduzin-
monarquista, passagens do diário íntimo de Nabuco, longos trechos do Foi do o país a um total esquecimento de si, da sua trajetória de realizações.
vou/ue e um capítulo final, intitulado "Os últimos 10 anos (1889-1899)", redigi- Assim, ao retratar-se como um simples exemplar da extensa cadeia de
do ao sabor da conjuntura. Ademais, para os padrões da época, a decisão de personagens imbricados no processo de formação de uma consciência úni-
Nabu'co de se expor ao escrutínio público parecia atentar contra o decoro. 5 Ele ca, nacional, Nabuco pretendia fazer da sua história pessoal uma via de acesso
próprio se preocupava com a recepção de seus contemporâneos à obra, consi- à história do Brasil. E, nesse caso, Minha formação pode ser lido como a
derando que aquela iniciativa talvez pudesse suscitar uma impressão "[ ... ] de sugestão política do reencontro do país consigo mesmo, tendo em Nabuco
volubilidade, de flutuação, de diletantismo [... ]". 6 O fato é que, ao longo do um mediador que, ao falar de si, almeja religar a nação aos seus antigos
tempo, a autobiografia de Nabuco passaria a figurar, justamente, como uma ideais, e ao falar da nação, espera corrigir o personalismo de que eram aco-
das grandes realizações literárias brasileiras, conferindo ampla projeção a um metidos os novos líderes políticos, subordinando-os à exemplaridade das ge-
gênero que ainda não havia sido muito praticado entre nós. rações que os precederam para a realização de um destino nacional esboçado
O que, porém, poucos atentaram - e que, mesmo hoje, não costuma ser sob o Império.
enfatizado - é que o livro, a despeito de suas qualidades literárias, não consiste Com Minha formação, tem-se, portanto, o mais contundente relato do
exatamente em uma obra ditada pela subjetividade de Nabuco, sendo, antes, sentimento de crise que acometeu as elites imperiais no contexto republicano e
uma peça de persuasão política. 7 Com Minha formação, o autor pretendia, a mais vigorosa defesa de um futuro pautado pela tradição brasileira. Um
mais do que falar de si, da sua existência íntima ou privada, como costuma relato político apresentado com a elegância literária de que somente Nabuco
ocorrer nas autobiografias, evocar uma certa tradição brasileira, revelada tan- seria capaz, pois, nele, a literatura e a política caminhavam juntas, ou melhor,
to na conduta das elites políticas imperiais, da qual se considerava herdeiro, eram tidas como partes indissociáveis da imaginação estética aplicada à pro-
quanto na índole conservadora da história nacional, que indispunha o Brasil às dução de uma grande obra, fosse ela o texto, a sua vida pública ou a nação.
rupturas revolucionárias.

MONARQUISTA, PORÉM REPUBLICANO


J Joaquim Nabuco, Minha formação, cit., p. 19.
4 Uma resenha do livro encontra-se em Luiz Felipe de Alencastro, "Joaquim Nabuco. Um estadista Os dois primeiros capítulos de Minhaformação, intitulados "Colégio e
do império" em Lourenço Dantas Mota (org.), Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico
academia" e "Bagehot", são, talvez, os mais explicitamente comprometidos
(2 1 ed. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000), pp. 115-131.
, Cr. Gilberto Freire, "Prefácio", em Joaquim Nabuco, Minha formação (Brasília: UnB, 1981), p. 3. com a defesa das convicções monárquicas do autor. E é curioso que tal
• Joaquim Nabuco, Minha formação (13 1 ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999), p. 19. defesa se inicie com a revelação de Nabuco de que, quando jovem, hesitara
7 Cr. Beatriz Jaguaribe, "Autobiografia e nação: Henry Adams e Joaquim Nabuco", em Guillermo
entre a república e a monarquia, influenciado pelo debate dos historiadores
Giucci & Maurício Dias David (orgs.), Brasil e EUA: antigas e novas perspectivas sobre socieda-
de e cultura (Rio de Janeiro: Leviatã, 1994), pp. 109-141. franceses do período da Restauração: "[ ... ] Lamartine, Thiers, Mignet, Louis

222 223
MINHA FORMAÇÃO MARIA ALICE REZENDE DE CARVALHO

Blanc, Quinet, Mirabeau, Vergniand e os girondinos, tudo passa sucessiva- Ao rever, portanto, a sua formação política, Nabuco localizou nos anos
mente pelo meu espírito [... ]".8 , . de juventude o embrião de uma inclinação anglófila, confirmada, mais tarde,
Curioso, mas não de todo surpreendente. E que o ideal repubhcano, asso- em suas viagens pelo mundo: "a anglomania [era] a doença da sociedade em
ciado à Revolução Francesa, era ainda o grande farol que iluminava as cons- França". II A Inglaterra parecia-lhe um caso bem-sucedido de "republicanização"
ciências liberais de todos os cantos do mundo. Não seria diferente com o jovem da monarquia, tornado possível mediante a gradual assimilação do ethos de-
Nabuco. No entanto, desde a derrota de Napoleão, abrira-se um periodo de mocrático trazido pelas lutas populares setecentistas, do que resultara, na prá-
grande fortuna política para o tema da reforma, mediante o qual o liberalismo tica, uma saudável oxigenação da vida institucional inglesa,
europeu, refletindo principalmente a posição dos publicistas franceses que se
ressentiam quer do jacobinismo revolucionário, quer do absolutismo monár- eu encontrava republicanismo na Inglaterra em espíritos de primeira ordem [ ... ]. Esse
quico, pôde assimilar as expectativas democráticas disseminadas n? Ocid~nte, fundo de republicanismo, latente, esquecido até, mas que a menor provocação faria
tendo como parâmetro a experiência histórica da Inglaterra, a partIr do sec~lo ressuscitar o mesmo que sob os Stuarts, longe de ser incompatível com a monarquia,
é que a tem conservado. 12
XVIII. A atenção do mundo voltou-se, então, para uma específica monarqUia.
Para a vertente hegemônica do liberalismo, à época, a monarquia cons-
Assim, animado pela lição que a moderna Inglaterra dava ao mundo,
titucional inglesa era a comprovação de que os "valores republicanos" origi-
Nabuco caminhava no sentido de dissociar a noção de República dos seus
nários da escalada das forças sociais do Terceiro Estado poderiam ser
vínculos originários com a Revolução Francesa. Se a República pudera conhe-
incorporados à vida e às instituições das antigas sociedades européias, sem
cer uma versão processual, pacífica, exemplificada pela abertura da monar-
que fosse necessário o concurso de uma "revolução republicana". Nesse
quia inglesa às questões democráticas do século, cancelava-se a polaridade
caso, era-lhes indiferente a forma de governo. Isto é, acreditavam mesmo
entre monarquia e república, cabendo, então, vivificar as instituições brasilei-
que a monarquia constitucional poderia desempenhar melhor o papel de uma
ras com valores universalistas e democráticos. O campo, portanto, em que
República, na medida em que, não representando uma ameaça às forças .da
atuaria só podia ser o da reforma.
tradição, conseguiria acolher, mais facilmente, as irreprimíveis ener~l~s
Mas a adesão de Nabuco à "solução inglesa" não seria destituída de
democratizadoras em curso no mundo, e, de algum modo, ajustá-las, corngl-
dúvidas e oscilações. Ciente de que a sua intenção democrática esbarrava nas
las em sua rude expressividade, incorporá-las ao sistema da ordem sob o
vicissitudes locais de uma sociedade escravista, inerte embaixo, sem possibili-
andamento pacífico e distendido da marcha reformadora.
dade de mobilização popular e sem uma aristocracia à inglesa, aberta ao tema
Relembrando os seus anos de juventude, Nabuco confessará que, por
da reforma, o autor dirá que pouco faltou para que cedesse "ao gérmen revo-
aquela época, ostentava uma indiferença semelhante à do centro liberal euro-
lucionário que as leituras francesas dos vinte anos [lhe] tinham deixado"Y
peu quanto à forma preferencial de governo - se republicana ou monárquica.
Segundo Nabuco, não fossem os ensinamentos que, por aquela época, extraíra
Afirmará, contudo, a sua precoce "fidelidade" à causa reformista, que, segun-
do livro de Bagehot, intitulado A Constituição inglesa, "teria sido arrastado
do ele fora-lhe "hereditariamente" transmitida pela figura incontrastável de
seu p~i, o senador Nabuco de Araújo, a quem considerava a encarnação bra-
irresistivelmente para o movimento republicano que começava".14
sileira do "espírito de reforma".9 Para Nabuco "a atmosfera que respirava em Walter Bagehot, o autor que terá fornecido a "ferramenta" com que
Nabuco desempenharia, mais tarde, a sua atividade política, pode ser conside-
casa" era incompatível com quaisquer dos traços do conservadorismo, "das
rado um seguidor, no século XIX, das idéias de Montesquieu. O modo mais
regras hieráticas de governo", "da velha igreja saquarema, que, com os Torres,
óbvio de aproximá-los costuma ser a menção à preferência de ambos pela
os Paulinos, os Eusébios, dominava tudo no país".lO

11 lbid., p. 55.
• Joaquim Nabuco, Minha formação, cit., p. 26. 12 lbid., pp. 102-103.
• Ibid., p. 23. 13 lbid., p. 107.
10 Ibidem. 14 lbid., p. 38.

224 225
MINHA FORMAÇÃO MARIA ALICE REZENDE DE CARVALHO

monarquia constitucional, tida por Montesquieu como a forma de governo ade- A partir dessas idéias e, segundo ele, gradualmente, a consistência políti-
quada ao mundo de sua época - um mundo marcado pela desigualdade entre ca de Bagehot foi prevalecendo sobre o seu "radicalismo espontâneo". Em
os homens e pela distribuição desses nos lugares e funções de uma sociedade 1873, completaria, por fim, a sua adesão definitiva ao campo monárquico.
hierarquizada. Assim, a honra de cada lugar e função - isto é, de cada estamento
_, que o poder monárquico não se dispunha a ferir, estaria na origem de um
equilíbrio de forças, gerador da ordem e da prosperidade. Esse era, sem dúvi- APRENDIZADO DO MUNDO
da, um ponto em comum entre Montesquieu e Bagehot, constituindo-se em
uma clássica justificativa da monarquia constitucional modema que Nabuco Parte considerável da coletânea autobiográfica de Nabuco dedica-se à
acolheria para sempre. confirmação dos efeitos que o legado civilizacional do Ocidente produzira so-
Porém, o aspecto mais interessante a aproximá-los talvez seja a bre ele. Requisito indispensável à educação das elites oitocentistas em contex-
tematização, presente em ambos, do nexo necessário entre a cultura e a políti- tos periféricos, a grande viagem, o contato com diferentes modos de vida e,
ca,15 ou, em outras palavras, a sugestão de que a legitimação das formas de mais ainda, com distintos modos de ver o mundo, cumpriu-se e foi narrada,
governo, com suas representações, práticas e instituições, não é um fenômeno sem economia, por Nabuco. O peso das experiências de sapientia mundi em
indiferente à existência de determinadas condições culturais. Minha formação é ilustrativo da voracidade do autor quando jovem. Ele es-
De modo que, para Nabuco, a principal contribuição de Bagehot teria creveu:
sido a de alertá-lo contra os perigos de uma adesão a ideais absolutos, cujo
teor não encontrasse validação cultural no ambiente a que se destinava. Era, [ ... ] em 1873 [... ] a minha ambição de conhecer homens célebres de toda ordem era
sem dúvida, uma lição dificil para um jovem que, naqueles anos, costumava sem limites; eu tê-los-ia ido procurar ao fim do mundo. Do mesmo modo com os
lugares. O que eu queria ver eram todas as vistas do globo, tudo o que tem arrancado
expressar-se nos seguintes termos:
um grito de admiração a um viajante inteligente. Nessa qualidade de câmara fotográfi-
ca, só lastimava não ter o dom da ubiqüidade. 18
[ ... ] dos dois governos, o inglês e o norte-americano, o último parecia-me o mais livre,
mais popular. Por motivos diferentes a monarquia constitucional, democratizada por
instituições radicais, seria ainda para o Brasil um governo preferível à república, Daqueles anos, descritos como os do puro "prazer, da embriaguês de
mesmo pelo fato de já existir; mas em tese, entre essa monarquia e a república, a viver, da curiosidade do mundo", Nabuco destacaria não apenas as grandes
superioridade, se havia, estava do lado desta. 16 obras e personalidades com que travou contato na Europa, mas também a
consolidação, nele, de uma "impressão aristocrática da vida", decorrente, em
Com Bagehot, porém, Nabuco terá neutralizado o "doutrinarismo revolu- parte, da freqüência constante a banquetes reais, a bailes, às famosas corridas
cionário" das suas primeiras leituras e compreendido que a via mais segura de Ascot, aos círculos sociais restritos em que se misturava à nobreza e à
para a realização de mudanças passava pelo respeito aos costumes, e não pela intelectualidade européias. Segundo o autor, com a lente que, por aquela épo-
ruptura com a tradição; pelo pragmatismo, pelo espírito do aperfeiçoamento, e ca, lhe era dado ver o mundo, a sua convicção monárquica só poderia ser
não pelo encerramento do espírito "em algum sistema filosófico ou fanatismo aprofundada, recalcando, mais ainda, o que nele restara de uma "imaginação
religioso [ ... ] que aí se isola inteiramente do mundo exterior". 17 revolucionária" .
Portanto, assim como, na Itália, as artes haviam refinado o seu senso
estético, e, na França, as letras haviam cumprido um papel similar, um certo
tipo de convívio social, de mundanismo, uma certa boemia típica de jin-de-
l' cr. Cesar Guimarães, "Cultura, ciência política: aproximações conceituais", em Márcia de Paiva
siecle lhe propiciaria um enriquecimento intelectual, mas, principalmente, polí-
& Maria Ester Moreira (orgs.), Cultura: substantivo plural (São Paulo: Editora 34, 1996),
pp. 11-18.
16 Joaquim Nabuco, Mznha formação, cit, p. 29. [Grifo meu.]
17 Ibid., p. 52. l' Ibid., p. 47.

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MINHA FORMAÇÃO MARIA ALICE REZENDE DE CARVALHO

tico, já que lhe teria tornado mais sensível a compatibilidade entre o liberalismo Novo Mundo, a floresta amazônica ou os pampas argentinos, não valem um
que "respirava em casa" e a forma monárquica de governo. Segundo Nabuco, trecho da Via Appia, uma volta na estrada de Salermo a Amalfi, um pedaço do
o cosmopolitismo que o acometera na Europa, traduzindo-se na diversidade de cais do Sena à sombra do velho Louvre"."" Enfim, entre as realizações da
interlocutores e de opiniões com que se deparava nos salões mundanos, terá história e o ambiente americano - uma espécie de jardim infantil que a huma-
sido, a rigor, a sua grande escola de tolerância liberal e o seu grande antídoto à nidade ainda não havia "ocupado" com a sua obra - a opção do autor é, clara-
intransigência republicana. De modo que, naquelas circunstâncias, pudera con- mente, a primeira.
cluir que "o liberalismo, mesmo o radical, não só é compatível com a monar- Em Nabuco, a superação da dualidade entre o "século" e o "país" jamais
quia, mas até parece aliar-se com o temperamento aristocrático" .19 É, pois, se verificaria plenamente, sendo essa, aliás, uma das contingências da vida
nesse sentido que, para Nabuco, sua formação literária e política caminharam intelectual nas sociedades retardatárias, que obriga a viver, como imaginação,
juntas, constituindo, na verdade, uma única dimensão do seu espírito. aquilo que, nos países centrais, já se impõe como sociologia. Nabuco encontra-
Viagem, pois, de confirmação da tradição familiar, de entronização do ria, porém, nas concepções universalistas da história uma via de integração da
legado cultural das gerações que o precederam - sob esse aspecto, a sociali- jovem nação brasileira na marcha do mundo. Tornava-nos, assim, parte, embo-
zação de Nabuco não discrepava da que se oferecia à quase totalidade dos ra "atrasada", de uma realidade que transcendia a tosca realidade local.
filhos das boas famílias brasileiras do século XIX. O que, porém, torna o seu Esse esforço integrativo, essa necessidade de escapar da "estreita fôr-
relato tão especial é o fato de nele encontrar-se esboçada uma sociologia dos ma" que nos lega o lugar de nascimento, não se expressaria, unicamente, na
intelectuais periféricos, construída a partir dos dilemas vivenciados pelo pró- busca de Nabuco por prestígio e reconhecimento intelectual no grand monde
prio autor. 20 Assim, para Nabuco, o traço característico de qualquer brasileiro europeu - quanto a isso, a correspondência travada, principalmente, com Renan,
relativamente culto é a dualidade, a sua incapacidade de satisfazer-se exclusi- o mestre literário que, por aqueles anos, incendiava a imaginação estética de
vamente na Europa ou no Brasil. Isso porque, o Velho Mundo continha, acu- Nabuco, é prova suficiente. Expressava-se também no combate dirigido a to-
muladas, as "reminiscências da trajetória humana" e era, por isso, a referência dos quantos se alinhassem pelo nativismo romântico que prosperava no Segun-
para a qual se voltava a imaginação dos intelectuais; o Novo Mundo, esvaziado do Reinado.
de densidade histórica, impunha-se, porém, ao sentimento. Nas suas palavras Assim, por exemplo, em Minha formação, o debate encetado, anos an-
"de um lado do mar, sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do tes, com José de Alencar é rememorado por um Nabuco maduro e, em parte,
país. O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação européia","1 arrependido pelos termos ferozes - ditados, segundo ele, pela "presunção e
Tensionado pela atração desses dois pólos, Nabuco, porém, se dirá "an- injustiça da juventude" _"3 com que fustigara o seu interlocutor. É, contudo, o
tes um espectador do século do que do país". Para ele, "as paisagens todas do universalista Nabuco que, passado tanto tempo, ainda continuava a defender o
fundamento europeu da civilização brasileira, criticando o romantismo dos que
19 Ibid., p. 52. imaginavam poder alcançar uma espécie de "núcleo autêntico" da nossa iden-
lO No prefácio de Evaldo Cabral de Melo à edição comemorativa do centenário de Minha forma- tidade. Em uma conhecida passagem do livro, encontra-se que
ção, lê-se que o cosmopolitismo de Joaquim N abuco era expressivo da antiga sensibilidade
(universalista) brasileira, quando ela ainda não se traduzia em um culto ufanista da identidade
nacional. Segundo o autor, Nabuco encarnaria o "dilema de mazombo", isto é, a ambigüidade do a nossa imaginação não pode deixar de ser européia [ ... ]; ela não pára na Primeira
descendente do europeu que, no Brasil ou nos Estados Unidos, estaria sempre ''[. .. ] com um pé na Missa no Brasil, para continuar daí recompondo as tradições dos selvagens que
América e outro na Europa [ ... ]". Comum entre os membros das elites americanas, tal dilema, guarneciam as nossas praias no momento da descoberta; segue pelas civilizações
contudo, pode ser observado também em outros contextos periféricos, nos quais o descompasso todas da humanidade, como a dos europeus, com quem temos o mesmo fundo comum
entre o universal e o local assume dramaticidade idêntica. O caso, aliás, do idealismo filosófico
alemão ilustra, perfeitamente, o desconforto dos intelectuais nativos, divididos entre a observa-
ção da marcha da história e a experimentação dos desacertos nacionais da vida do espírito. Cf.
Evaldo Cabral de Melo, "No centenário de Minha formação", em Joaquim Nabuco, Minha II Ibid., p. 49.
formação, cit., pp. 9-16. II Ibid., p. 80. Cf. também Afrânio Coutinho, A polêmica Alencar-Nabuco (Rio de Janeiro: Tempo

1
li Ibid., p. 26. Brasileiro, 1965).

228 229
MINHA FORMAÇÃO

da língua, religião, arte, direito e poesia, os mesmos séculos de civilização acumulada,


T MARIA ALICE REZENDE DE CARVALHO

pelos Campos Elísios até o Louvre e do Louvre pelo cais do Sena até apanhar Notre-
e, portanto, desde que haja um raio de cultura, a mesma imaginação histórica. 24 Dame. Em Londres não se tem essa impressão de arte que corre por cima da velha
Paris toda, como um friso grego. Para o artista que prccisa inspirar-se exteriormente
nas formas da edificação, viver no meio do bclo realizado pelo gênio humano, Londres
Em suma, entre o ano de 1873, quando primeiro visitou a Europa, e o de
cstá para Paris como Khorsabad para Atenas. [ ... ] Por aí não há o que comparar. [ ... ]
1879, quando se fixou no Brasil, eleito deputado pela província de Pernambuco,
Quanto a tudo o mais quc faz o prazer da vida, eu preferia [ ... ] a naturalidade, a calma,
as viagens foram, para Nabuco, a sua enciclopédia. Durante aquele período- o descanso, as grandes perspectivas, o isolamento, o esquecimento de Londres à
o de sua "febre poética", como dirá -, ocupara-o uma "espessa camada euro- constante vibração de Paris [ ... ]27
péia de imaginação, impermeável à política local, a idéias, preconceitos e pai-
xões de partido". 25 As grandes referências políticas, contudo, as que Em Paris, portanto, a magnitude da criação humana; em Londres, a natu-
transcendiam as práticas dos "políticos profissionais" e que diziam respeito às ralidade dos fatos. Na cidade francesa, seria impossível não relevar a inter-
questões universais, essas continuariam interessando a Nabuco, polindo os venção do ator, a atividade do gênio estético ou político; na inglesa, o andamento
seus princípios formativos e se imiscuindo, a despeito dele próprio, na imagi- da vida, o livre transcorrer dos acontecimentos. Para Nabuco, discípulo de
nação do mundano: Bagehot, estariam, assim, representados dois padrões culturais distintos e, por-
tanto, critérios igualmente distintos de validação de sistemas políticos. Mais
[ ... ] o processo pelo qual a forma monárquica se incorporou à minha consciência uma volta no parafuso e se está diante de uma fórmula consagrada por Nabuco:
estética [ ... ] é o principal trabalho político que se opera em mim desde o ano de 1873
a tradição republicana francesa ("que é a nossa") advém do ímpeto revolucio-
até o ano de 1879, em que tomei assento na Câmara. 26
nário, da exaltação do gesto heróico, de uma racionalidade, enfim, que não
consulta a vida; a tradição monárquica inglesa é a que se traduz em uma "qua-
se superstição do costume", levando a que as mudanças que ali se operam só
possam ser as que visem beneficios coletivos em uma tal escala, que justifique
AALMA POLÍTICA DAS CIDADES
o sacrificio da tradição.
O fato é que a paixão de Nabuco por Londres - "amei Londres acima de
A se tomar como verdadeira a afirmação de N abuco de que os seus anos
todas as outras cidades e lugares que percorri" _28 derivava, segundo ele, de
de formação literária foram também os de assimilação da política no seu sen-
traços específicos à formação histórico-social inglesa, tais como a honra, a
tido moral, é possível reconhecer, em cada uma das impressões formuladas
altivez moral, a individualidade, cuja expressão, no plano político, era, como
sobre as cidades que visitou, mesmo naqueles comentários de teor exclusiva-
em nenhuma outra sociedade, a defesa da liberdade. Quanto a Paris, via, ali, o
mente estético, um julgamento político. Afinal, é sob o impacto de suas vivências
retrato de uma França "sem espírito de liberdade arraigado, sujeita sempre às
em Paris, Londres e Nova York que, segundo o próprio autor, consolidara-se a
crises das revoluções e das glórias".29 Paris lhe parecia "um teatro em que
sua opção pela forma monárquica de governo.
todos, de todas as profissões, de todas as idades, de todos os países vivem
Minha formação contém uma explícita comparação' entre Paris e Lon-
representando para a multidão de curiosos que os cercam".30 Sobre ela paira-
dres. Em uma de suas passagens mais conhecidas, lê-se que
va uma "atmosfera de luxo e combate", na qual cada indivíduo se sentia limita-
Paris, ao lado de Londres é uma obra de arte, imortalmente bela, ao lado de uma
do pela vigilância dos demais - Paris "é um cativeiro [ ... lo cativeiro agradável,
muralha pelásgica; é um Erectéion, em frente ao Memnonium de Tebas. De certo não como seja, mas sempre um cativeiro [.. .]"31
há no mundo uma perspectiva arquitetural igual à que se estende do Arco do Triunfo
27 Ibrd., pp. 88-89.
28 Ibid., p. 90.
24 Joaquim Nabuco, Mrnha formação, cit., p. 49. 29 Ibid., p. 99.
" Ibid., p. 78. lO Ibid., p. 89.
26 Ibid., p. 80. li Ibidem.

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1 231
MINHA FORMAÇÃO
r MARIA ALICE REZENDE DE CARVALHO

Em tais circunstâncias, a liberdade não encontraria um solo adequado. norte-americana, embora fundada sobre os alicerces do pragmatismo anglo-
Grassara, por isso, na França, "uma predisposição igualitária que, logicamente, saxão, assemelhava-se, nos seus efeitos à república preconizada pelos jacobinos,
leva à demagogia"?2 com seu ideal de publicização absoluta e suas execuções sumárias que, nos
De modo que, aguçada pelas impressões que as cidades lhe comunica- Estados Unidos, assumiam a forma de "linchamentos no alto das colunas de
vam, a consciência política de Nabuco ia tecendo a malha comparativa em que jornais" .35
procurava inscrever o Brasil. Tendo deixado o país ainda mal digerida a sua A conclusão de Nabuco é, por isso, a de que "não havia nada que me
preferência monárquica, e tendo descartado, na Europa, qualquer simpatia pelo desse na América do Norte idéia da Superioridade de suas instituições sobre as
republicanismo francês, restava-lhe ainda o combate definitivo com a forma inglesas".36 E prossegue,
política republicana - era preciso conhecer Nova York. Em Minha formação
nem mesmo a de liberdade individual. É certo que o americano, comparado com o
encontra-se, explicitamente, a justificativa da sua viagem ao norte do conti-
inglês, tem o sentimento da altivez individual mais forte, porque não há classe ou
nente:
hierarquia a que ele se curve [ ... ]. A questão é saber, tomando o conjunto dos resulta-
dos, se as sociedades antigas onde as influências tradicionais não se apagaram de todo,
[... ] durante mais de um ano [1876-1877] fui um verdadeiro americano nos Estados como a inglesa [ ... ], não produzem, com as limitações de classe, uma dignidade pes-
Unidos, como o provérbio manda ser romano em Roma. Era o meio de penetrar, de soal moralmente superior a essa altivez da igualdade.
compreender, de sentir a vida política do país, se eu o queria, e este foi o meu motivo
ao desejar ir para os Estados Unidos. JJ Quanto ao privilégio do princípio da igualdade, fundamento central do
republicanismo, a avaliação de Nabuco sobre a América desfere o golpe defi-
De imediato, duas são as suas constatações: a primeira, que havia na nitivo nas suas simpatias juvenis pela República,
América uma ausência de ideal e um excesso de finalidade material - impres-
são logo corrigida pela afirmação de que o ideal americano ainda está se for- é preciso não esquecer, tratando-se do norte-americano, que a igualdade humana para
mando, isto é, "a nação trata de crescer, de povoar o seu imenso território, de ele fica dentro dos limites da raça; já não falando do chin ou do negro - que seria
chegar ao seu completo desenvolvimento [oo.], para depois falar de si e pensar classificado, se vencesse o instinto americano, em uma ordem distinta da do homem
- nunca ninguém convenceria o livre cidadão dos Estados Unidos, como ele se chama,
no nome que deve deixar".34 A segunda constatação, de algum modo associa-
de que o seu vizinho do México ou de Cuba, ou os emigrantes analfabetos e os
da à primeira, foi a de que, lá, a liberdade individual, sendo, quase integralmen- indigentes que ele repele dos seus portos, são seus iguais. J7
te, aplicada ao business, não contemplava, com a devida atenção, a esfera
privada da vida: "todo homem é um homem público, e ele todo". Segundo Foi sob O conjunto dessas impressões que Nabuco retomaria, um pouco
Nabuco, se a liberdade, assim entendida, era um dado positivo para a constru- mais tarde, ao Brasil, convencido de que só havia "um grande país livre no
ção de uma civilização material, pois empurrava a sociedade para a frente, mundo" _38 a Inglaterra.
como uma locomotiva, por outro lado, apagava as diferenças, as modulações
do caráter que caracterizam as formações aristocráticas. UMA CAUSA UNIVERSAL
Desse ponto de vista, em que pesem todas as distinções registradas entre
o republicanismo francês e o norte-americano, Nabuco via também na Améri- A última parte de Minha formação, segundo o plano originalmente es-
ca o predomínio do princípio da igualdade sobre o da liberdade, com a mesma boçado por Nabuco, seria dedicada a apresentar a sua "formação humana, de
conseqüência política do surgimento de demagogos. Nesse sentido, a república modo que o livro confinasse com outro, que eu havia escrito antes, sobre a

Jl Ibid., p. 129.
12 Ibid., p. 52. ,. Ibid., p. 128.
11 Ibid., p. 111. J7 Ibid., p.131.

1
34 Ibid., pp. 120-121. 1. Ibid., p. 99.

232 233
MINHA FORMAÇÃO
T MARIA ALICE REZENDE DE CARVALHO

minha reversão religiosa [... ]".39 Assim, dentre os capítulos finais de sua auto- sumia, então, a face diversa de uma dívida moral, dele próprio e do Brasil,
biografia, levando-se em conta os critérios estabelecidos pelo próprio autor, que se impunha às consciências e transcendia os partidos, mas, como reco-
são centrais os que se referem ao abolicionismo e às reminiscências de sua nhecerá, fora levada no bojo de um "movimento de caráter humanitário e
infância, transcorrida, até os oito anos de idade, no engenho Massangana, na social", que destruíra a injustiça sem, contudo, lograr estender o seu impulso
região do Cabo, em Pernambuco. sobre a futura sociedade: faltara-lhe "a profundeza moral"42 de um grande
Interessante é constatar que os dois temas, da forma como são tratados, movimento religioso.
revelam estar ligados pela continuidade moral entre o menino e o homem públi- Essa dívida, contraída, ainda menino, aos negros, Nabuco resgatará já
co, pois, de acordo com Nabuco, ainda que, por dez anos, tivesse tentado tor- feito político. De fato, desde 1879, quando cedeu à tentação de sua mãe de vê-
nar a questão dos escravos sensível à dinastia e, para isso, tivesse mobilizado lo representar no parlamento a quarta geração da família, elegera-se pela pro-
os recursos da história, da ciência, da moral e da literatura, a escravidão, para víncia de Pernambuco, tendo em vista a única causa que lhe parecia representar
ele, cabia toda em um quadro inesquecido da sua infância. Ele narra: "um interesse de natureza universal" - a liberdade, a emancipação dos escra-
vos. Era, por assim dizer, uma reafirmação de tudo que pudera aprender em
Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo
suas viagens, daquilo que conhecera de si e do que admirara no país de sua
precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o
eleição, a Inglaterra: entraria na vida parlamentar indiferente às questões
qual se abraça a meus pés, suplicando-me pelo amor de Deus que o fizesse comprar
por minha madrinha para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de comezinhas que costumavam atrair os "políticos profissionais", buscando, sem-
senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida ... Foi pre, um ponto de vista maiúsculo, uma "política com P grande", que pudesse
esse o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição com a qual eu inscrever a nação no "século". Nas suas palavras:
vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava 40
No Brasil havia ainda no ano em que comecei minha vida pública um interesse [huma-
Na autobiografia de Nabuco, portanto, o repúdio às relações escravistas, no, universal] daquela ordem, com todo esse poder de fascínio sobre o sentimento e
àquela "indigna marca nacional do Brasil", aninhara-se no seu sentimento, an- o dever [ ... ]. Tal interesse só podia ser o da emancipação, e, por felicidade da minha
tes que na sua reflexão. Todo o prazer infantil de viver à larga, ainda comuni- hora, eu trazia da infância e da adolescência o interesse, a compaixão, o sentimento
cado, após tantos anos, aos sentidos - o prazer da visão derramada sobre "a pelo escravo - bolbo que devia dar a única flor da minha carreira [ ... ]43

planície em que se estendiam os canaviais"; o dos calores do dia, que obrigava


a sesta, "respirando-se o aroma [... ] das grandes tachas em que se cozia o Político de uma só causa, da única causa, o anglófilo Nabuco movia-se,
mel"; o do "silêncio dos céus estrelados" e "do rangido longínquo dos carros ainda, embora nas toscas condições de sua ambiência, no cenário institucional
de boi" -, tudo isso, enfim, vinha-lhe à memória ladeado pela revelação violen- que mais parecia "um jardim encantado do Oriente, onde tudo eram formas
ta do sofrimento do escravo. enganadoras [... ] um vasto simulacro",44 pelas lições de Bagehot, em sua bus-
De modo que, em Minha formação, o tema do abolicionismo não apa- ca pelo conteúdo espiritual, pelo "grande drama de lágrimas e esperanças"
rece como uma questão social ou nacional, tal como fora tratado anos antes, que, latente na sociedade brasileira, justificasse e fizesse mover as engrena-
em livro que lhe conferira grande notoriedade. 41 A luta emancipacionista as- gens políticas. Sua contribuição, nesse sentido, é extraordinária, antecipando,
em muitos aspectos, os grandes ensaístas sociais brasileiros. É dele a cons-
tatação de que, no Brasil, as escolhas, as opiniões, os partidos, institucionali-
J9 Ibid., nota à p. 159. O livro a que Joaquim Nabuco faz menção é o já referido Foi voulue, do qual zados ou não, derivam menos de ideários intelectuais ou cognitivos e mais da
extraiu o capitulo "Massangana", traduzindo-o para publicação na sua coletânea autobiográfica.
40 Ibid., p. 162.
41 Cr. Joaquim Nabuco, O abolicionismo (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999). Sobre o tema, cr.
também Marco Aurélio Nogueira, As desventuras do liberalismo: Joaquim Nabuco. a monar- " Joaquim Nabuco, Minha formação, cit., pp. 181-182.
quia e a república (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984), e, do mesmo autor, a resenha de O 43 Ibid., p.155.

aboliCIOnismo, neste volume. 44 Ibid., p. 190.

234
1 235
MINHA FORMAÇÃO r
consulta ao sentimento, aos filtros sentimentais que são a indulgência, a simpa-
MANUEL BONFIM
tia e a benevolência - "em nossa história não haverá nunca inferno, nem se-
quer purgatório". 45
Mais ainda, ao tratar da escravidão no Brasil, é a natureza singular da
contribuição do negro à nossa formação histórica e a herança que ela terá
legado ao futuro que sobressaem, aliadas à caracterização de uma identifica-
A Amén·ca Latina:
ção hierárquica e afetiva entre senhores e escravos. Por essa via, Nabuco, de
algum modo, retomava o fio de suas descobertas sobre a "mola", o mecanis-
mo oculto, que tanta "grandeza democrática" conferia à monarquia constitucio-
males de origem
nal inglesa. Lá, onde as hierarquias sociais são bem estabelecidas, e onde a
honra é um atributo do lugar a que se pertence, é possível conferir dignidade
a cada cidadão. Nesse caso, o caminho brasileiro para a modernização
institucional e para a sua integração na marcha universal da história, só pode-
ria ser, segundo o autor, a que consultasse a nossa trajetória hierárquica-afetiva,
corrigindo-a, reformando-a radicalmente, até, mas mantendo-se fiel à essa e Roberto Ventura
às demais tradições do país.
De acordo com Nabuco, quando caiu a monarquia, caiu o cimo de um
edificio hierárquico, já corroído embaixo pela substituição da "aristocracia de
maneiras" das elites tradicionais nordestinas pelo instinto utilitário dos novos
fazendeiros do sul, a quem o escravo, desconhecido do dono, "se apresentava
como mero instrumento de colheita". A república, então, pôde renegar os nos-
sos costumes e teve a intenção de escrever uma nova história. A de Nabuco,
em Minha formação, cumprirá sempre o papel de um "princípio negativo",
temperando, com a dúvida, as promessas ainda não realizadas do ideário repu-
blicano.

41 Ibid .. p. 20.

236
r
Publicado em 1905, A América Latina: males de origem, de Manuel
Bonfim, traz uma curiosa reflexão sobre os males de origem dos países do
continente. Os intelectuais da época gostavam de culpar as raças inferiores,
as populações mestiças e o clima tropical pelo atraso destes países. Bonfim,
ao contrário, discutiu a exploração das colônias pelas metrópoles e dos escra-
vos e trabalhadores pelos senhores e proprietários, recorrendo a uma noção
tirada da biologia: o parasitismo. Criticou o Estado brasileiro como tirânico e
espoliador e mostrou o artificialismo de uma democracia de fachada, que ape-
nas servia para perpetuar o poder das elites. Acreditava que a falta de demo-
cracia no Brasil apenas se resolveria com a difusão do ensino primário, já que
as eleições na Primeira República (1889-1930) excluíam o voto do analfabeto.
Bonfim atacou o imperialismo dos Estados Unidos, no momento em que
este estendia sua influência sobre os países do continente a partir da doutrina do
presidente norte-americano James Monroe (1817-1825), que pregava a não-
intervenção das nações européias na América. Remava assim contra a corrente
pan-americanista, que contava com a simpatia de políticos e intelectuais como o
barão do Rio Branco, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e até de inconformados
como Sílvio Romero. Bonfim percebeu, ao contrário, que o pan-americanismo
era um instrumento usado pelos EUA para descartar a presença econômica
européia e estabelecer a sua própria hegemonia no continente. l
A América Latina: males de origem revela a consciência continental do
ensaísta, que falava não só como brasileiro, mas enquanto latino-americano, ao
procurar exprimir a posição de uma região espoliada e atrasada. Outros brasi-
leiros, seus contemporâneos, também refletiram sobre a situação latino-ameri-
cana no período entre o fim do Império e a consolidação da República, de 1880
a 192 O, como lembra Antonio Candido. Joaquim N abuco escreveu Ba Imace da
(1895) sobre o político chileno e mostrava sua desconfiança pelos aspectos
populares de sua atuação, no que desvelava suas próprias preferências aristo-
cráticas. Eduardo Prado ironizou, emA ilusão americana (1893), a "fraternidade
americana" e chamou a atenção para a "rapinagem dos Estados Unidos" em
relação aos países da América Latina. Oliveira Lima discutiu, em Pan-
americanismo (1907), os perigos e o caráter imperialista da Doutrina Monroe,
assumindo posições semelhantes às de Bonfim. O crítico José Veríssimo ad-
vertia, nos jornais, para o "perigo americano" e encarou, em A educação
nacional (1891), a cultura norte-americana com certa desconfiança. Euclides

,-

I
1 Antonio Candido, "Radicalismos", em Vários escritos (São Paulo: Duas Cidades, 1995), p. 287.

239
A AMÉRICA LATINA: MALES DE ORIGEM ROBERTO VENTURA

da Cunha se mostrava pouco seguro, em artigos como "Solidariedade sul-ame- outros radicais, como o líder abolicionista Joaquim Nabuco, propôs um conjun-
ricana", das possibilidades de uma aliança com os países vizinhos e temia a to de idéias e atitudes, que formaram um contrapeso ao movimento conserva-
deflagração de uma guerra entre o Brasil e o Peru por disputas de fronteira. 2 dor que sempre predominou. Gerado na classe média e em setores esclarecidos
A reflexão de Bonfim se insere, em termos latino-americanos, no contex- das classes dominantes, o radical não é um revolucionário, mas sobretudo um
to de consolidação do regime neocolonial e da tutela dos Estados Unidos sobre revoltado, que pensa os problemas e propõe soluções na escala da nação,
os países do continente e exprime, do ponto de vista brasileiro, a forte apreen- passando por cima dos antagonismos entre classes. 5 Só adotou uma postura
são com os rumos do regime republicano recém-proclamado. Sintetizou tais revolucionária em sua última obra, O Brasil nação (1931), em que criticou o
receios na quarta parte de A América Latina, em que criticou a república, que sistema capitalista e o modelo democrático como instrumentos de exploração
se afastara de seus ideais, ao ter se adaptado às instituições monárquicas e ao dos trabalhadores, e pregou uma revolução nacional-popular, que deveria levar
conservadorismo político que pretendera eliminar. O movimento de neoco- os grupos excluídos ao poder.
Ionização, agora sob o controle norte-americano, e a instabilidade política e Formado em medicina na Bahia e no Rio de Janeiro, Manuel Bonfim
financeira deram impulso a interpretações, como a de Bonfim, de âmbito na- abandonou a prática médica após a morte da filha e passou a se dedicar à
cional e continental. 3 educação, publicando vários trabalhos sobre o assunto e alguns livros didáti-
cos. Foi secretário de educação do Distrito Federal, diretor do Instituto de
Psicologia Experimental, no Rio de Janeiro, e redator e diretor da revista peda-
DA MEDICINA À HISTÓRIA gógica Educação e ensino. Escreveu obras de psicologia, como Noções de
psicologia (1916), e sobre pedagogia, como O progresso pela instrução
Político, historiador e educador, nascido em 1868 em Aracaju e morto em (1904), Lições de pedagogia (1915) e Cultura e educação do povo brasi-
1932 no Rio de Janeiro, Manuel Bonfim é um dos mais originais pensadores leiro (1932). Foi ainda autor de obras didáticas para as escolas primárias,
brasileiros. Foi elogiado por Darci Ribeiro como um dos fundadores da antro- dentre elas Através do Brasil (1910), muitas delas em parceria com o poeta
pologia brasileira por investigar a formação do povo a partir dos contatos e Olavo Bilac.
misturas entre etnias e tradições. 4 Rompeu com os modelos de pensamento Escreveu A América Latina em 1903, em Paris, onde estudava psicolo-
de seu tempo, ao afastar a hipótese de inferioridade racial e valorizar os tipos gia. Seu livro é uma reação à visão negativa que os europeus tinham da Amé-
mestiços e as culturas cruzadas, antecipando posições depois adotadas por rica do Sul, tida como condenada ao atraso pela degeneração de raças
Gilberto Freire em Casa-grande & senzala (1933). "inferiores" ou "misturadas" e pela suposta insalubridade do clima tropical.
Bonfim é tido por Antonio Candido como o mais radical pensador do Manifestara antes, em 1897, seu interesse pelos assuntos latino-americanos,
início do século XX por suas críticas ao conservadorismo das elites. Junto com quando se ofereceu, como membro do Conselho Superior de Instrução Públi-
ca, para ser o relator de concurso para a escolha do livro de história da Amé-
rica que seria adotado nas escolas de formação de professores. Deu o parecer
, Antonio Candido, "Os brasileiros e a nossa América", em Recortes (São Paulo: Companhia das
Letras, 1993), p. 131-139; Joaquim Nabuco, Balmaceda (Rio de Janeiro/São Paulo: Civilização sobre a única obra que se apresentou, a História da América (1899), de Ro-
Brasileira/Nacional, 1938); Eduardo Prado, A ilusão americana (Rio de Janeiro: Civilização cha Pombo, em que os males dos países latino-americanos eram apontados
Brasileira, 1933); José Veríssimo, Cultura, literafllra e política na América Latina, organização como o resultado de um passado colonial funesto.
de João Alexandre Barbosa (São Paulo: Brasiliense, 1986); Oliveira Lima, Pan-americanismo
(Monroe, Bolívar, Roosevelt) (Rio de Janeiro/Paris: Garnier, 1907); Euclides da Cunha, "Solida-
As principais fontes históricas de Bonfim foram o livro de Rocha Pombo,
riedade sul-americana", em Contrastes e confrontos, Obra completa, vol. 1 (Rio de Janeiro: do qual tirou informações sobre a América hispânica, e a História de Portu-
Aguilar, 1995). gal (1879), do português Oliveira Martins, que o inspirou na visão calamitosa
J Flora Süssekind, "Introdução" a Manuel Bonfim, "A América Latina: males de origem", em
Silviano Santiago (org.), Intérpretes do Brasil, vol. 1 (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000), pp.
612-613.
4 Darci Ribeiro, "Manuel Bonfim, antropólogo", em Revista do Brasil 2, 1984, pp. 48-59. , Antonio Candido, "Radicalismos", cit., pp. 265-269.

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A AMÉRICA LATINA: MALES DE ORIGEM ROBERTO VENTURA

da decadência ibérica, ainda que se afastasse de suas posições racistas. Re- no que chamou de "luta sistemática, dircta, formal, conscientemente dirigida
correu ainda à História do Brasil, de frei Vicente do Salvador, e à História contra o passado", que permitiria romper o marasmo conservador dos países
geral do Brasil (1855), de Francisco Adolfo de Varnhagen, a quem acusava ibero-americanos. 8
de defender os interesses dinásticos da coroa portuguesa. Com informações Bonfim tomou o conceito biológico de parasitismo de empréstimo à botâ-
limitadas, mas contando com sua prodigiosa imaginação histórica, fez uma nica e à zoologia, disciplinas que estudou devido à sua formação médica. Ba-
análise profunda e renovadora da formação brasileira e latino-americana, que seou-se nos estudos de Jean Massart e Émile Vandervelde, que formularam,
rompia com as interpretações então correntes. em Parasitisme biologique et parasitisme social (1898) (Parasitismo bioló-
Investiga, em A América Latina, os males que atingem os países latino- gico e parasitismo social), uma teoria do parasitismo, aplicada tanto às rela-
americanos, atribuindo-os às características sociais dos colonizadores, marca- ções biológicas entre os seres vivos quanto aos vínculos sociais e econômicos
dos pelo "parasitismo", conceito-chave em seu pensamento, que transpôs da entre os indivíduos e grupOS.9 Adaptou, em A América Latina, as relações
biologia. O parasitismo se realiza por meio do trabalho escravo, que gera for- parasitárias das ordens vegetal e animal para o terreno social, mais especifica-
mas desumanas de convivência e incapacita a sociedade para os regimes que mente para a colonização dos espanhóis e portugueses na América.
possam assegurar a liberdade e o progresso, tomando permanente o caos po-
lítico e social do continente.
Afirmava, na apresentação do livro, ser movido por sentimentos patrió- o PARASITISMO NA HISTÓRIA
ticos, representados pelo "desejo de ver esta pátria feliz, próspera, adiantada
e livre" e "de conhecer os motivos dos males de que nos queixamos todos". Bonfim criou, a partir da noção de parasitismo, uma "teoria biológica da
Dedicou A América Latina a Sergipe, seu estado natal, "pedaço de terra mais-valia", segundo a qual as elites locais, as metrópoles coloniais e as potên-
americana em que nasci", tendo sido estimulado tanto pelo "amor ao solo cias imperialistas seriam parasitas das classes trabalhadoras, tomando para si
natal" quanto pelo interesse no porvir do continente: "Este livro deriva dire- a riqueza que estas produzem. Procurou dar conta, por meio de tal concepção
tamente do amor de um brasileiro pelo Brasil, da solicitude de um americano organológica, da produção e apropriação do valor do trabalho no nível interno
pela América".6 das relações entre classes e, em termos internacionais, na dependência entre
Abordou as relações entre classes e países na América Latina com base colônias e metrópoles. Chegou, ainda que partindo de conceitos biológicos, a
no parasitismo legado pelos colonizadores portugueses e espanhóis, que se conclusões semelhantes às formuladas a respeito da mais-valia por Karl Marx
apropriavam da riqueza produzida pelos indígenas e africanos, submetidos à em Das Kapital (O capital), cujos escritos só leria mais tarde, na década de
servidão ou à escravidão. O domínio colonial teria gerado uma proliferação de 1920, ao redigir O Brasil nação. 10
parasitas, representados pelo clero e pelos agentes da administração. Abordou Para o historiador sergipano, o parasitismo é capaz de dar conta do
as causas do atraso das ex-colônias de Portugal e Espanha, de modo seme- surgimento e desaparecimento dos povos ao longo da história: "a decadência e
lhante a um médico que precisa conhecer o passado do paciente, para fazer o a degradação têm como causa um fator que surge com o próprio progresso da
diagnóstico e estabelecer o tratamento: "A cura depende, em grande parte, da civilização - é o parasitismo, sempre e por toda parte o parasitismo, causa das
importância desse 'histórico'''.7 Alinha-se entre os intérpretes da sociedade causas, causa primeira, resumindo a história de todas as decadências em que
brasileira e latino-americana que partem da herança colonial e ibérica e que vão desaparecendo os povos e as civilizações" .11 O parasitismo produziria a
empregam um método genético de investigação, para explicar os males do
presente à luz da história. Mas se afastava do fatalismo histórico, ao se engajar 8 Ibid., pp. 168-169.
9 Jean Massart & Émile Vanderve\de, Parasitisme organique et parasitisme social (Paris: C.
Reinwald/Schleicher Freres, 1898).
6 Manuel Bonfim, A América Latma: males de ongem (O parasItismo social e evolução) (Rio de 10 Flora Süssekind & Roberto Ventura, "Uma teoria biológica da mais-valia?", em História e depen-
Janeiro/Paris: Garnier, 1905), pp. V-IX. dência: cultura e sociedade em Manoel Bonfim (São Paulo: Moderna, 1984).
7 Ibid., p. 22. II Manuel Bonfim, A América Latina: males de origem (O parasitismo social e evolução), cit., p. 357.

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exploração predatória e o gosto pela vida sedentária, que levariam ao esgota- Rompia, portanto, com a concepção positivista de progresso tão reveren-
mento dos recursos e à decadência das sociedades. A eterna luta entre parasi- ciada em sua época, segundo a qual este dependeria da manutenção da ordem
ta e parasitado seria, portanto, o principal fator das transformações históricas. e deveria ser conduzido de cima para baixo pela ação política de uma elite
Bonfim expõe suas idéias sobre o parasitismo na história brasileira e lati- intelectual e científica. Como observou a socióloga Simone Petraglia Kropf:
no-americana nas quatro partes em que dividiu A América Latina. Trata na "Num contexto em que o discurso dominante proclamava a euforia do pro-
primeira parte, "A Europa e a América Latina", da visão negativa que euro- gresso, o diagnóstico do parasitismo como a lógica estruturadora da sociedade
peus, como o francês Gustave Le Bon, tinham do continente, revelando uma era, portanto, um contraste radical em relação ao otimismo propagado".1s
total ignorância de sua história, cujas particularidades nacionais eram Mas, apesar das críticas às analogias entre organismo e sociedade, Bonfim
embaralhadas em uma imagem única: "tudo se confunde para formar um mun- caiu em contradição, ao empregar o conceito biológico de parasitismo em sua
do lendário, de lendas sem grande encanto porque lhes falta o prestígio da análise da história e da política sul-americanas. Transpôs da zoologia para a
ancianidade". A vida política do continente era, para ele, depreciada pelos es- história o conceito dos franceses Massart e Vandervelde, segundo o qual um
critores do Velho Mundo, que tudo reduziam aos "sucessos extremos", às "cri- ser vivo se toma parasita ao viver à custa de outro, explorando-o e sugando-
ses violentas" e às "lutas armadas", que teriam impedido estes países de se lhe as forças e os alimentos. Buscou a causa dos males dos países sul-ameri-
constituírem como nações. 1" canos em seus antecedentes históricos, ligados ao processo de colonização e
Tal juízo negativo acabava se refletindo sobre os próprios latino-america- ao parasitismo que Portugal e Espanha transplantaram, junto com seus órgãos
nos, feridos em seu amor próprio, que ficavam sujeitos, por sua suposta inca- administrativos, para as colônias. As metrópoles ibéricas e os países por eles
pacidade, a ataques externos e a ameaças à sua soberania política. A opinião ocupados padeceriam do mesmo atraso, conseqüência da degeneração impos-
pública norte-americana também julgaria as populações do subcontinente como ta pelo regime parasitário tanto sobre o explorador, que se atrofia a ponto de se
ingovernáveis e imprestáveis, tomando-se carentes da "proteção" dos Estados extinguir, quanto sobre o explorado, que enfraquece ao ser submetido a um
Unidos e se submetendo à incômoda situação de terem sua autonomia reduzi- regime brutal de exploração.
da ou mesmo suprimida: "Defendendo-nos, a América do Norte irá, fatalmen- Assim como existem na natureza parasitas que vivem de outros organis-
te, absorvendo-nos" .13 mos, haveria, na sociedade, dominantes e dominados, senhores e escravos,
Bonfim critica, na segunda parte, "Parasitismo e degeneração", a abor- patrões e trabalhadores, metrópole e colônia, capital estrangeiro e nação, Es-
dagem organológica dos evolucionistas, que concebiam as sociedades como tado e povo. O parasitismo social reproduziria as características do parasitismo
seres vivos, sujeitos às mesmas leis biológicas que regem a evolução das espé- biológico, que traz a debilitação do organismo atacado, submetido à violência
cies. Ao contrário dos darwinistas sociais, considerava os fatos sociais mais do parasita, que lhe retira a energia. Mas o próprio parasita acabaria por dege-
complexos do que os biológicos, já que aqueles dependeriam das leis tanto nerar e entrar em decadência, chegando mesmo ao extermínio.
biológicas quanto sociais. Refutou assim as homologias entre a biologia, a zoo- Busca, na terceira parte, "As nações colonizadoras da América do Sul",
logia e a sociologia, e censurou a idéia linear de progresso dos evolucionistas, as raízes históricas do parasitismo ibérico, cuja origem atribui ao espírito guer-
que concebiam a história segundo etapas ou fases predeterminadas, que fari- reiro e às tendências depredadoras dos povos peninsulares. As constantes guer-
am as sociedades evoluírem do simples ao complexo, do homogêneo ao hete- ras na península Ibérica, varrida por sucessivas invasões ao longo de onze
rogêneo: "Está um tanto desacreditado, em sociologia, esse vezo de assimilar, séculos, teriam determinado a formação guerreira e predatória de suas popula-
em tudo e para tudo, as sociedades aos organismos biológicos".14 ções, que se tomaram inaptas ao trabalho regular e pacífico. Apóia-se no relato
histórico de Oliveira Martins, que trazia à cena o parasitismo dos portugueses

11 Ibid., pp. 1-9. II Simone Petraglia Kropf, "Manuel Bonfim e Euclides da Cunha: vozes dissonantes nos horizontes
II Ibid., p. 12. do progresso", em História, ciências, saúde: Manguinhos, III (I), Rio de Janeiro, março/junho
14 Ibid., p. 20. de 1996, p. 92.

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na Índia, cujos navegadores, dentre eles Vasco da Gama, agiam como verda- mente conservadoras, conseguindo garantir o seu predomínio por meio da apa-
deiros piratas que saqueavam de braço dado com a Coroa. Mostra ainda como rente transformação dos regimes.
os espanhóis destruíram impérios no Peru e no México com o único intuito de Tal processo de mudança conservadora se acentuou a partir da indepen-
pilhar os seus tesouros de ouro e prata. As nações ibéricas se entregaram assim dência das colônias no começo do século XIX, levada à frente por setores das
à vida parasitária, tomando-se sanguessugas das colônias e sofrendo os efeitos elites, que visavam perpetuar a sua dominação e manter intactas as institui-
degenerativos resultantes da decadência progressiva de suas faculdades. ções, sobretudo o trabalho escravo ou servil. Cristalizaram-se no poder as
Transmitido aos países latino-americanos pela colonização, o parasitismo oligarquias, que viviam à custa da espoliação econômica dos trabalhadores
ibérico levou a uma medonha exploração econômica, já que o trabalho era graças à sua excepcional capacidade de acomodação e transigência. Haveria,
desprezado pelas elites, que o impunham ao africano ou ao indígena, responsá- na América Latina, o que Bonfim chama de "deturpação da revolução", que
veis pela criação de toda a riqueza. As metrópoles implantaram uma casta de trazia sempre a vitória dos conservadores sobre os radicais, impedindo o pro-
funcionários, que atuaram como ventosas sobre os organismos parasitados, gresso. Como observou Antonio Candido, a lei fatal do desenvolvimento latino-
com o objetivo de garantir o máximo de tributos. Todo o ônus da produção de americano foi o conservadorismo, fruto direto do parasitismo, causa principal
riquezas recaía sobre o escravo, que sustentava com o suor de seu rosto a dos males destes países. 17
cadeia de relações parasitárias que se estendia, com seus longos tentáculos, O Estado foi implantado no Brasil como "órgão de opressão" a serviço
da colônia à metrópole: "A colônia é parasita; mas, mesmo dentro da colônia, o da metrópole, com a função de "cobrar e coagir e punir aqueles que se ne-
parasitismo se exerce. - Em suma, a vítima das vítimas é o escravo, e este é o guem a pagar ao governo centralizador, absolutista, monopolizador": "O Esta-
único que não tem voz, nem para queixar-se!. .. ''l6 do existe para fazer o mal, exclusivamente [ ... ]: o Estado é o inimigo, o opressor
Em "Efeitos do parasitismo sobre as novas sociedades", quarta e penúl- e o espoliador; a ele não se liga nenhuma idéia de bem ou de útil; só inspira ódio
tima seção do livro, detém-se nos resultados da colonização predatória dos e desconfiança [ ... l". Tomou-se, portanto, um "organismo dominador, tirânico,
portugueses e espanhóis, autênticos saqueadores das regiões sob seu domínio. oneroso, e quase inútil", desvinculado da nação e dos interesses da população,
O parasitismo produziu modificações e perturbações no organismo explorado, organizado com o fim único de sugar a produção da colônia: "Eis o Estado:
que enfraquecia em razão das condições de vida que lhe eram impostas, che- uma realidade à parte, em vez de ser um aparelho nascido da própria naciona-
gando mesmo a sucumbir por excesso de trabalho e deficiência da alimenta- lidade, fazendo corpo com ela, refletindo as suas tendências e interesses".
ção. Criou-se assim uma sociedade marcada por profundas desigualdades, em Alheio à nação, o Estado só existiria para recolher impostos e organizar
que uma parte, constituída pelos senhores, padres e funcionários, vivia de for- as forças armadas, comportando-se como um parasita diante do corpo que
ma parasitária do trabalho da outra. Foi implantado um aparelho administrativo explora: "só sabe existir como poder de opressão, para obrigar os dominados, a
que, ao invés de cuidar dos interesses gerais, se converteu em órgão de opres- massa proletária a fazer a produção em proveito dos dominantes". Tal ânsia
são, representante exclusivo dos interesses das elites locais e metropolitanas. espoliadora teria corrompido as populações submetidas à colonização ibérica,
Submetido ao parasita, o explorado se degrada e chega mesmo a defendê- trazendo a perversão do senso moral, o horror ao trabalho livre e à vida pacífi-
10 e a morrer por ele em guerras e combates, em vez de se rebelar para abolir ca, o ódio ao governo, a desconfiança das autoridades e o desenvolvimento dos
a injustiça social. Vivendo à custa da exploração do parasitado, o parasita se instintos agressivos.
toma incapaz de sobreviver sem ele e decai, para dar lugar a novos dirigentes. A atuação do Estado como parasita da nação não se alterou, segundo
Apesar da mudança dos agentes, mantém-se a estrutura social e política e Bonfim, com a proclamação da independência ou após a introdução do regime
nunca se criam condições para o trabalho realmente livre, que permitiria o republicano: "o Estado em si, permanece qual era". Assim comentou a abdica-
bem-estar social. As elites tendem a se perpetuar em sociedades essencial- ção de D. Pedro I, "lugar-tenente da metrópole" e "chefe do Estado-colônia",
que se declarara brasileiro, antes de retomar a Portugal, para assumir o trono:
16 Manuel Bonfim, A América Latma: males de origem (O parasitismo social e evolllção), cit.,
p. 113. 17 Antonio Candido, "Os brasileiros e a nossa América", cit., pp. 137-138.

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"Partiu, e a máquina aí ficou no trilho: regência, maioridade, rei, revolução, fracos pelos fortes. Ataca as teorias racistas e a crença na superioridade das
ditadura, presidentes [... ] várias gentes se têm sucedido nas funções, mas o raças ditas "puras", por serem idéias que se ligavam aos interesses de domina-
ponto de vista não muda". ção neocolonial dos países europeus: "A ciência alegada pelos filósofos do
Mostra como o orçamento brasileiro de 1903 continha gastos excessivos massacre é a ciência adaptada à exploração". Tais teorias não passavam de
com os órgãos estatais e com as forças armadas, que chegavam a 85% do "etnologia privativa das grandes nações salteadoras", "sofisma abjeto do egoís-
total, desproporcionais se comparados às despesas diminutas com a educação mo humano, hipocritamente mascarado de ciência barata, e covardemente
e a cultura. Propõe, como remédio, uma reorganização do Estado, que deveria aplicado à exploração dos fracos pelos fortes". Resume, de forma virulenta o
abandonar sua "função guerreiro-policial" e assumir o papel previdenciário vínculo entre a teoria das desigualdades étnicas e os interesses imperalista~:
"de proteger os indivíduos contra a natureza, contra as causas naturais de
fraqueza e miséria - contra a ignorância, contra o preconceito, contra a su- Levada à prática, a teoria deu o seguinte resultado: vão os "superiores" aos países
onde existem esses "povos inferiores", organizam-lhes a vida conforme a5 was tradi-
perstição". Deveria ser feito, portanto, um trabalho de reeducação política, de
ções - deles superiores; instituem-se em classes dirigentes, e obrigam os inferiores a
modo a transformar os aparelhos estatais de parasitas da nação em órgãos a
trabalhar para sustentá-las; e se estes o não quiserem, então que os matem e eliminem
serviço da sociedade: "O Estado só tem uma razão de ser: representar e de- de qualquer forma, a fim de ficar a terra para os superiores [ ... ]. Tal é, em síntese, a
fender os interesses gerais das populações, não tendo outros interesses que teoria das raças inferiores. 20
não os interesses comuns da sociedade, e o seu bem-estar" .18
Revela, ainda nesta seção, seu desencanto com o regime republicano: "Era Atribui a condenação da miscigenação e a sua associação com a dege-
um estado social melhor que se pedia, quando se pedia a República". O golpe neração à aproximação indevida entre a mestiçagem humana e os cruzamen-
militar de 1889 não fora capaz de criar uma democracia política: "Foi mais uma tos entre espécies animais diferentes, que poderiam fazer aparecer caracteres
revolução frustrada, à qual só devemos um serviço - haver eliminado a monar- regressivos. Considera que a expressão pejorativa "mulato" e mesmo a cren-
quia hereditária". O governo republicano transformou o sufrágio universal em ça infundada na futura esterilidade dos mestiços de brancos e negros deriva-
uma mentira e passou a representar a vontade de uma minoria insignificante, já vam de uma falsa analogia com o "mulo", animal infecundo, resultante do
que a maioria da população ficou impedida de votar, por não ser alfabetizada, cruzamento entre o cavalo e o asno. Para Bonfim, a valorização dos arianos e
deixando de atender aos requisitos da legislação eleitoral. Proclamada a Repú- dolicocéfalos louros pelos antropólogos racistas se basearia na confusão entre
blica, o país se tomou uma "democracia sem povo, sem cidadãos", em que ape- "parentesco idiomático" e "filiação de sangue", que transformaria, de forma
nas um décimo da população comparecia às umas, para decidir os rumos do descabida, a noção lingüística de "ariano" em categoria étnica."1
país. Caberia assim ao Estado republicano reencontrar a sua verdadeira missão: Até 1910 apenas intelectuais isolados, como Araripe Júnior e Machado
"Mandar ensinar a ler e a escrever a esta população de analfabetos".19 de Assis, atacaram a hierarquia entre as raças. O crítico literário Araripe Júnior
explicava o racismo da ciência européia como ligado ao expansionismo das
nações dominantes, que condenavam as raças não-brancas ou cruzadas, de
A ILUSÃO ILUSTRADA modo a "autorizar a expansão e justificar a expropriação dos povos sem es-
quadras". As teorias racistas seriam, para ele, "sociologias de encomenda",
Em "As novas sociedades", parte final em A América Latina, Bonfim que "mal encobrem as intenções funestas das classes dirigentes e dos gover-
revira as certezas dos intelectuais de sua época, ao criticar o racismo, o nos do lado oposto do Atlântico"."2
evolucionismo e o positivismo, como modelos que justificavam o domínio dos
2. Ibid., pp. 278-282, 398.
21 Manuel Bonfim, O Brasil nação: realidade da soberania brasileira, vol. 2 (Rio de Janeiro:
18Manuel Bonfim, A América Latina: males de origem (O parasitismo social e evolução), cit., Francisco Alves, 1931), pp. 243-244.
pp. 146, 193,208-213. 22 Tristão de Alencar Araripe Júnior, "Clóvis Beviláqua", em Afrânio Coutinho (ed.), Obra crítica,
" Ibid., pp. 224-227, 350, 410. vol. 3 (Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1963), pp. 327 e 400.

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Bonfim aponta o equívoco dos evolucionistas, que justificavam a livre con- Bonfim ataca ainda a filosofia positivista do francês Auguste Comte
corrência, sem interferência do Estado, por meio da idéia de seleção natural que (1798-1857), cuja crença na existência de etapas históricas fixas acabaria por
o naturalista inglês Charles Darwin tinha formulado para os seres vivos, mas não negar o próprio progresso, atrelado a um conservadorismo social e político,
para as classes sociais. O darwinismo sociológico de Herbert Spencer (1820- voltado para a preservação do capitalismo, "onde o trabalho é inexoravelmente
1903) não passaria, portanto, de justificativa do liberalismo econômico, ao con- espoliado e tiranizado".:6 A influência do positivismo no governo republicano
denar as medidas previdenciárias e a intervenção do Estado na economia sob teria provocado o desinteresse do Estado pela instrução popular, necessária,
o argumento de que perturbariam a seleção natural e a evolução humana. segundo Bonfim, para promover a transformação social e política, capaz de
O ensaísta de A América Latina rejeita a aplicação à sociedade de con- afastar a herança funesta do parasitismo.
ceitos biológicos e de categorias darwinistas, como a luta pela existência e a lei Bonfim tirou conclusões inovadoras de sua análise do parasitismo na his-
da sobrevivência do mais apto. Procura, ao contrário, restabelecer o sentido tória da América Latina. Mesmo sendo o "grande mal" dos países do
atribuído pelo próprio Darwin à expressão struggle for existence. "Devo fri- subcontinente, o parasitismo social não traria, ao contrário do biológico, modi-
sar", escreveu Darwin em The Origin of Species (A origem das espécies), de ficações orgânicas irreversíveis, ficando seus efeitos limitados à ordem moral.
1859, "que emprego o termo luta pela sobrevivência em sentido lato e metafó- Apesar de conceber a sociedade como organismo, procurou investigar as leis
rico, o que implica relações mútuas de dependência dos seres organizados".:3 não-biológicas, específicas aos fatos sociais, e acreditava que o parasitismo
Para Bonfim, tanto o elogio da livre concorrência pelos evolucionistas quanto a social poderia ser extirpado pelos explorados por meio do ensino popular ou da
afirmação das diferenças inatas entre as etnias estariam em flagrante contra- rebelião contra as diversas formas de espoliação: "as populações podem refa-
dição com as idéias do naturalista: "Darwin nunca pretendeu que a lei da sele- zer a sua educação social, corrigindo os vícios havidos na tradição parasitária,
ção natural se aplicava à espécie humana, como o dizem os teoristas do egoísmo e entrar para o progresso; é uma questão de reeducação".:7 Ao colocar limi-
e da rapinagem".:4 tes às analogias entre natureza e sociedade, Bonfim rompeu com o pessimis-
A ideologia liberal e o método evolucionista se fundariam, segundo Bonfim, mo e o determinismo das teorias do meio, da raça e do caráter nacional,
na transposição indevida para o campo social do conceito darwinista de luta concebidos como fatores imutáveis e inelutáveis.
entre espécies, o que levava à apologia da livre concorrência entre indivíduos. Mas não se libertou totalmente da idéia de transmissão hereditária de
Ao contrário do que afirmavam os evolucionistas, a luta pela sobrevivência traços psicológicos, como observou Dante Moreira Leite, em O caráter nacio-
seria substituída na sociedade pelo concurso e solidariedade entre os homens nal brasileiro (1954).:8 Afirmava, em A América Latina, não ter dúvidas
e só poderia ser empregada, em termos sociais, em sentido figurado devido às quanto à existência da hereditariedade social, capaz de definir as característi-
relações de dependência e cooperação. O autor de A América Latina se cas de um povo enquanto síntese dos caracteres herdados, resultantes tanto da
aproximou, nesse sentido, de Karl Marx e Friedrich Engels, que considera- transmissão biológica quanto da educação social: "esta soma de caracteres
vam a luta entre espécies válida apenas no plano natural e animal, negando psíquicos, que se encontram em toda a sua história, em todas as instituições e
sua aplicação social. Para Marx e Engels, a história humana não seria regida épocas, chama-se caráter nacional". E concluía: "A permanência do caráter
pela lei darwinista, e sim pela luta de classes, tomada como lei universal no nacional é o resultado e ao mesmo tempo a prova experimental de hereditari-
Manifesto comunista de 1848: "Até hoje, a história de todas as sociedades edade psicológica nas massas".:9 Tal idéia de transmissão hereditária de tra-
que existiram até os nossos dias tem sido a história das lutas de classes".:s

26 Manuel Bonfim, O Brasil nação: realidade da soberania brasileira, cit., p. 181.


II Charles Darwin, The Origin of Species (Cambridge/Massachusetts, 1964); edição brasileira: A 27 Manuel Bonfim, A América Latina: males de origem (O parasitismo social e evolução), cit., p. 267.
origem das espécies (São Paulo: lIemus, s/d), p. 69. 28 Dante Moreira Leite, O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia (São Paulo:
14 Manuel Bonfim, A América Latzna: males de origem (O parasitismo social e evolução), cit., p. 288. Pioneira, 1976), p. 255.
" Karl Marx & Friedrich Engels, "Manifesto comunista", em Textos, vol. 3 (São Paulo: Alfa- 29 Manuel Bonfim, A América Latzna: males de origem (O parasitismo social e evolução), cit., pp.
Omega, 1976), p. 21. 163-164.

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ços psicológicos entrava em contradição com a solução pedagógica tida como Brasil pode explicar a atenção despertada por um livro tão malfeito, tão falso,
apta a modificar o "caráter" do povo brasileiro. tão cheio dos mais grosseiros erros". Acusa seu autor de cometer inúmeros
Bonfim encerra A América Latina com um tom levemente otimista, ou "galicismos", com o emprego de expressões afrancesadas, e chega a fazer a
pelo menos esperançoso, quanto ao futuro do Brasil e do subcontinente. Pro- lista de seus possíveis erros gramaticais.
pôs um programa de educação popular, capaz de realizar uma reforma política Romero observou indignado que Bonfim resvalaria do terreno da ciência
e de preparar a massa da população para o exercício da cidadania: "Façamos para o das paixões pessoais, ao atacar teóricos do racismo, como Gustave Le
a campanha contra a ignorância; não há outro meio de salvar esta Arnérica".30 Bon. Considerava, ao contrário de Bonfim, a teoria das desigualdades étnicas
E acrescentava, com a linguagem médica e a perspectiva regeneradora e tera- como o resultado imparcial de investigações científicas, "com que a política
pêutica, características de seu ensaio: "O remédio está indicado [... ]: a neces- nada tem a ver", e a utilizou em seus estudos literários e folclóricos, reunidos
sidade imprescritível de atender-se à instrução popular, se a Arnérica Latina se na História da literatura brasileira (1888) e nos Estudos sobre a poesia
quer salvar". 31 Tal nota pedagógica o aproxima de outros pensadores latino- popular do Brasil (1888). Chegou a xingar seu opositor de "mestiço ibero-
americanos do século XIX e do início do XX, como o argentino Domingos americano", membro de um "bando de malfeitores do bom senso e bom gos-
Sarmiento, com Educação popular, ou o mexicano Antonio Caso, nos Dis- to". Isto em uma época em que a mistura de raças era tomada como sinônimo
cursos à nação mexicana, que apontaram a difusão da educação como for- de degeneração.
ma de superar o atraso e corrigir a desigualdade em seus países. 32 Para Romero, a noção de parasitismo era uma idéia genérica ou uma
Essa solução educacional, que se liga à atividade de Bonfim como metáfora desprovida de rigor conceituai, que não poderia servir de base para a
pedagogo e educador, foi criticada por Antonio Candido, para quem A América explicação da história, da política ou da economia: "Em certo sentido, toda a
Latina termina com "um decepcionante estrangulamento da argumentação", enorme categoria da existência não passa duma imensa cadeia de parasitis-
ao apresentar a instrução como panacéia, ao invés de defender a transforma- mos". Observa assim sobre o caráter indefinido e pouco rigoroso da metáfora
ção das estruturas sociais e políticas. 33 Bonfim só iria romper com tal ilusão empregada por Bonfim: "a qualidade de parasita é um predicado que, por
ilustrada em seu último livro, O Brasil nação (1931), em que pregou uma demasiado extenso, não define o sujeito. É pálido, incolor, indeterminado,
revolução nacional-popular contra as classes dirigentes, o aparelho estatal e os incaracterístico, indefinido, e, como tal, não pode exercer a função lógica de
países imperialistas. distinguir e classificar". Critica, em A América Latina, o "abuso das metáfo-
ras", que considerava ser o "flagelo da sociologia", e atacava a escassez de
suas fontes históricas, limitadas às obras de Rocha Pombo e Oliveira Martins.
DA EDUCAÇÃO À REVOLUÇÃO Opunha-se ainda à visão política de seu oponente, que procuraria "desviar um
debate meramente científico para o das paixões partidárias da atualidade", na
Manuel Bonfim foi alvo de uma campanha de descrédito após o lança- tentativa de impor o seu "socialismo de colegial" e seu "reacionarismo negrista
mento de A América Latina. O crítico Sílvio Romero o atacou em uma série e caboclizante". 34
de vinte e cinco artigos no semanário Os Anais, do Rio de Janeiro, depois Bonfim passou as duas décadas seguintes, após a publicação de A Amé-
reunidos no volume de 1906, A América Latina: análise do livro de igual rica Latina, envolvido com o ensino e deixou de lado os temas históricos de
título do dr. Manuel Bonfim: "Só a geral ignorância do mundo legente do sua primeira obra. Além de trabalhar como educador e pedagogo, elegeu-se
deputado estadual por Sergipe. Só voltou a escrever obras históricas no final

lO Ibid., p. 400.
II Ibid., pp. 399-400. 34 Sílvio Romero, A América Latma: análise de livro de igual título do dr. Manuel Bonfim (Porto:
12 Cf. Flora Süssekind, "Introdução", cit., p. 619. Lello & Irmão, 1906), pp. 46-47, 213 e ss. Para seus estudos literários e folclóricos, cf. HIstória
n Antonio Candido, "Literatura e subdesenvolvimento", em A educação pela noite (São Paulo: da literatura brasileira, 2 vols. (2' ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1902) e Estudos sobre a poesia
Ática, 1987), p. 147. popular no Brasil: 1870-1888 (Rio de Janeiro: Laemmert, 1888).

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dos anos 20, quando já se encontrava doente. Descobriu em 1926 que tinha tar da classe dominante", agitada pelos políticos, sem qualquer teor de ruptu-
câncer na próstata e passou por quatorze cirurgias até sua morte em 1932. ra ou radicalismo. 36
Escreveu e publicou, em pouco mais de seis anos, três outros livros históricos: Abandonou, nesse último livro, a proposta ilustrada de A América Lati-
O Brasil na América, O Brasil na história e O Brasil nação. na, em que a educação popular era apresentada como salvação das massas.
Retomou, em O Brasil na América (1929), os mesmos conceitos apre- Escreveu agora em O Brasil nação: "O remédio para o caso brasileiro está
sentados em A América Latina, de modo a caracterizar o processo histórico na revolução [ ... ]". Acreditava ser impossível que as classes dominantes
brasileiro a partir das condições latino-americanas de formação colonial. Mas levassem a massa popular à soberania política por meio da educação, pro-
limitou o foco de sua interpretação, ao deixar de lado a perspectiva continental posta antes em A América Latina. Pregava uma revolução socialista, em
da obra de 1905 e se deter na história nacional da era colonial à independência que os explorados passariam a ocupar o poder, trazendo o "caos santo",
política. capaz de transformar a estrutura do país e redefinir o seu lugar no mundo.
Abordou, em O Brasil na história (1930), a historiografia sobre o país, Uma "verdadeira revolução" deveria trazer, segundo ele, a "conquista do
escrita tanto por brasileiros quanto por estrangeiros. Criticou a "deturpação poder por uma classe que nunca o ocupara, em vista de impor ao grupo todo
das tradições nacionais" feita por historiadores, como Francisco Adolfo de um novo padrão de valores [ .. .]".37 Mas sua plataforma revolucionária não
Varnhagen, cuja obra seria uma "história para o trono", que defendia os inte- foi além da oposição entre povo e nação, de um lado, e Estado e nações
resses de dominação da Coroa portuguesa. Para Bonfim, a história deixou de salteadoras, de outro, deixando de apresentar propostas concretas de reor-
ser "orientadora e estimulante do progresso social", ao ter sido falseada em
proveito das elites e do Estado, deixando de lado os interesses dos vencidos e
.
ganização política e econômica.

dos excluídos. A chamada "história universal" teria sido elaborada pelas na-
ções mais poderosas, com o intuito de ressaltar sua própria grandeza em detri- BONFIM NA HISTÓRIA
mento dos povos dominados, aos quais era imposta tal versão colonial ou
neocolonial de seu próprio passado. 3s Manuel Bonfim foi precursor de sociólogos e historiadores, como Gilber-
Bonfim encerrou seus estudos históricos com O Bras iI nação (1931), em to Freire, de Casa-grande & senzala (1933), Sérgio Buarque de Holanda, de
que se radicalizaram as propostas para a solução dos problemas do país, pensa- Raízes do Brasil (1936), e Caio Prado Jr., da História económica do Brasil
das já fora dos quadros institucionais: "Não foi mais possível devisar os destinos (1945). Todos deram ênfase aos fatores sociais e culturais, e não mais étnicos
desta pátria nos plainos da normalidade. Os conceitos, intensos e sentidos sobre ou climáticos, na interpretação da história e da sociedade. O perfil interpretativo
o futuro, romperam o dique da ordem preexistent~, como a despedaçar mura- passou a ser moldado não por conceitos como raça e natureza, mas pelos de
lhas de cativeiro". Sua desilusão com o regime republicano e com o sistema cultura e caráter. Freire observou, no prefácio a Casa-grande & senzala
democrático se tomara profunda e sem remédio, à medida que se agravavam a (1933), que seu ensaio se baseava na diferença entre raça e cultura, de modo
crise política da Primeira República e seu próprio estado de saúde. a separar os fatores genéticos das influências sociais e culturais. 3s
Considerava que a República trouxera a "degradação dos costumes Mas tanto Manuel Bonfim quanto Gilberto Freire foram contraditórios
políticos" e se convertera em um "mundo totalmente podre". Criticou a Re- nessa passagem da raça à cultura, ou na transição do determinismo biológico à
volução de 1930, em que setores do Rio Grande do Sul contestaram a
hegemonia política de São Paulo e Minas Gerais. Ao invés de ser a "legítima
revolução renovadora", por ele tão sonhada, o movimento de 1930 não trou- 36 Manuel Bonfim, O Brasil nação: realidade da soberania braSIleira, cit., pp. 362-371.
xera a substituição de programas e de governantes, limitando-se ao "fermen- 37 Ibid., pp. 337-371.
38 Gilberto Freire, "Prefácio" em "Casa-grande & senzala", Obra escolhida (Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1977), pp. 77-78. Sobre a passagem da raça à cultura, cf. Roberto Ventura, Estilo
3l Manuel Bonfim, O Brasil na histÓria: deturpação das tradições. degradação política (Rio de tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras,
Janeiro: Francisco Alves, 1930), pp. 7 e 22. 1991), pp. 66-68.

254 255
A AMÉRICA LATINA: MALES DE ORIGEM ROBERTO VENTURA

história de base social, cultural ou econômica. Freire manteve, em uma das objeto de reflexão, conforme observa Flora Süssekind. Freire imita o persona-
muitas incoerências de seu pensamento, um viés evolucionista, ao acreditar na gem central de sua obra, o mestiço ou o híbrido de raça e cultura, ao optar por
existência de povos mais ou menos adiantados, o que entrava em desacordo um estilo mesclado e sincrético, tanto na combinação de métodos e enfoques,
com a pretendida superação dos modelos biológicos e étnicos. 39 Manteve-se quanto nos níveis de linguagem, que oscila entre o oral e o escrito, entre o
preso, de forma ambígua, à idéia de etnia, apesar de rejeitar o racismo de Sílvio popular e o erudito. Bonfim define, por sua vez, os países latino-americanos
Romero, Euclides da Cunha ou Nina Rodrigues. Mas acabou por criar, como como "sociedades misturadas" e adota igualmente "misturas combinadas" em
mostrou o historiador Ricardo Benzaquen de Araújo, em Guerra e paz (1994), seu pensamento, ao criticar a transposição de conceitos biológicos para a so-
um conceito original de raça, entendida como sinônimo de caráter e cultura, ciedade e usar, ao mesmo tempo, imagens organológicas, como as relações
resultante de traços herdados ou adquiridos, ou enquanto predisposição psico- parasitárias, ou seguir uma perspectiva terapêutica de regeneração educacio-
lógica, capaz de atuar no processo de mestiçagem. 40 nal ou revolucionária. 42
Bonfim, por sua vez, se apropriou de forma singular das ciências natu- A reflexão de Bonfim não teve impacto à época, por incomodar as elites
rais, do evolucionismo e das leis da hereditariedade, dominantes no pensamen- intelectuais e políticas, a quem atribuía a responsabilidade pelo atraso do país,
to brasileiro desde a segunda metade do século XIX. Ao invés de negar a e por criticar os sistemas de pensamento então dominantes, como o racismo, o
hereditariedade social e a noção de "caráter nacional", afirmava que "não há evolucionismo e o positivismo. Indignado com as injustiças sociais, sua lingua-
lugar para separar o que seja devido somente à herança e o que seja efeito da gem é veemente e apaixonada, o que admitiu na apresentação de A América
educação". Afastando-se da teoria das raças inferiores, privilegiava a história Latina, ao revelar preferir a paixão ao "verniz da impassibilidade": "A paixão
e o dado cultural. Observa assim em O Brasil na América: "o valor atual das da linguagem, aqui não dissimulada, traduz a sinceridade com que essas coisas
raças é, apenas, valor de cultura". E acrescenta: "Somos um povo cruzado, e foram pensadas e escritas". Colocava-se, de forma passional, contra os críti-
povos cruzados serão sempre aquilo em que se fizeram: expressão de misturas cos "de curta vista", que só encontrariam verdades em uma linguagem tida
combinadas". 41 como neutra: "prefiro dizer o que penso, com a paixão que o assunto me inspi-
A valorização do cruzamento e das "misturas combinadas" por Bonfim ra; paixão nem sempre é cegueira, nem impede o rigor da lógica".43
se aproxima do elogio da miscigenação e da redefinição de raça, compreendi- Alguns de seus intérpretes, como Dante Moreira Leite e Nelson Werneck
da como tipo biológico e também como formação histórica e expressão cultu- Sodré, criticaram a passionalidade de tal linguagem, que o faria deixar de dar
ral, presentes nas reflexões do mexicano José Vasconcelos, em La raza ênfase às suas teses, apresentadas de maneira sentimental e pouco objetiva. 44
cósmica (1925), e do próprio Freire. Vasconcelos cria a "utopia híbrida" de Esse tom veemente e apaixonado dá, porém, um aspecto pitoresco à sua escri-
uma raça hispânica, "síntese do globo", na qual o cruzamento de raças seria ta, em que o passado colonial e a independência política do Brasil são vistos sob
capaz de gerar uma "humanidade futura". Freire dialoga com Bonfim e faz um viés irônico e satírico, como ao afirmar, em A América Latina, que o siste-
inúmeras referências, em Casa-grande & senzala, às suas obras históricas, ma de produção da colônia se resumia a "algumas centenas de escravos e um
apesar de discordar de sua "indianofilia", que o faria destacar, com "exagero", chicote". Mas a indignação e a revolta com as injustiças sociais fizeram com
as contribuições agrárias e culturais dos indígenas. que sejam enfáticos e repetitivos seus livros escritos no fim da vida sobretudo
Além da valorização da miscigenação, o vínculo entre Bonfim e Freire se O Brasil na América, O Brasil na história e O Brasil nação, em ~ue desdo-
dá na ligação estreita que ambos estabelecem entre a escrita ensaística e o

39 Luiz Costa Lima, "A versão solar do patriarcalismo: Casa-grande & senzala", em A aguarrás do ., Flora Süssekind, "Introdução", cit., pp. 615-616. Sobre o estilo mesclado de Gilberto Freire cf
tempo: estudos sobre a narrativa (Rio de Janeiro: Rocco, 1989). Roberto Ventura, Casa-grande & sen::ala (São Paulo: Publifolha, 2000). ' .
40 Ricardo Benzaquen de Araújo, Guerra e pa::: Casa-grande & sen::ala e a obra de Gilberto Freire 43 Manuel Bonfim, A América Latina: males de origem (O parasitismo social e evolução), cit., p. XII.
nos anos 20 (Rio de Janeiro: Editora 34, 1994), pp. 27 e ss. 44 Dante Moreira Leite, O caráter nacional brasileiro, cit., p. 251; Nelson Werneck Sodré, Histó-
41 Manuel Bonfim, O BraSil na América: caracten::ação da formação brasileira (Rio de Janeiro: ria da lzteratura brasileira: seus jimdamentos econômlcos (Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-
Francisco Alves, 1929), pp. 176 e ss. ra, 1969), p. 368.

256 257
A AMÉRICA LATINA: MALES DE ORIGEM

bra as idéias lançadas em sua obra pioneira. A América Latina, seu primeiro
trabalho de fôlego, permanece como sua contribuição mais destacada. ALBERTO TORRES
Apesar do caráter inovador de sua reflexão, Bonfim caiu em um longo
esquecimento após sua morte. Seus livros deixaram de ser reeditados, com
exceção da antologia organizada por Carlos Maul em 1935 e de uma segunda
edição de A América Latina. Só foi redes coberto em 1984 com um ensaio de
A organização nacional
Darci Ribeiro, que o elevou à categoria de pensador mais original da América
Latina, e com a antologia que organizei com Flora Süssekind, História e de-
pendência: cultura e sociedade em Manoel Bonfim. Voltou a ser lido sobre-
tudo a partir de 1993, quando foi relançada A América Latina, seguida de
outras obras históricas, como O Brasil na América e O Brasil nação.
O interesse por sua obra cresceu nos 500 anos do descobrimento do Rolf Kuntz
Brasil, quando houve uma quase canonização de Manuel Bonfim, alçado ao
pedestal dos mais destacados comentaristas do país. Silviano Santiago incluiu
A América Latina no volume Intérpretes do Brasil, junto com ensaístas, his-
toriadores e sociólogos, como Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Gilberto
Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes.
Seu livro didático, Através do Brasil, escrito em parceria com Olavo Bilac, foi
também relançado. Está prevista ainda a reedição de O Brasil na história,
além da publicação de sua biografia, O rebelde esquecido, pelo sociólogo
Ronaldo Conde Aguiar.
Mas o médico e educador em muito contribuiu para o silêncio em torno
de sua obra. Adotou noções biológicas, como o parasitismo, que cairiam em
desuso nas ciências humanas e sociais a partir da década de 1930, com o
predomínio dos modelos da antropologia, da sociologia e da economia. Apesar
de mostrar a falência das analogias biológicas, Bonfim não chegou a criar um
novo sistema conceituaI ou uma nova linguagem interpretativa, que lhe permi-
tiriam superar os limites da abordagem organológica e terapêutica. Apoiou-se,
ao contrário, em categorias da biologia, como a noção de parasitismo, que
deslocou por meio de uma utilização metafórica. Seu ensaísmo histórico-social
é assim profundamente ambíguo pela crítica e pelo emprego simultâneo de um
enfoque biológico, a partir do qual propôs uma teoria da formação do Brasil e
da América Latina, cujas sociedades e culturas teriam sido geradas pelos tena-
zes tentáculos do parasitismo ibérico.

258
Soluções políticas não se inventam: só se pode produzi-las observando a
terra e a gente, para identificar os interesses gerais e permanentes do país.
Por isso mesmo não se copiam. Soluções copiadas, como o federalismo inscri-
to na Constituição de 1891, a primeira da República, são condenadas ao fra-
casso. A denominação Estados Unidos do Brasil consagrada no Artigo 1Q reflete
um equívoco. Não se transplantam histórias, costumes, crenças, condições
naturais. Essas idéias balizam os principais escritos de Alberto Torres e infor-
mam, do começo ao fim, as propostas contidas no livro A organização nacio-
na!.l Ele defende, nesse texto, o fortalecimento do governo central, a
reconversão de estados em províncias, a criação de um poder coordenador e a
inclusão, entre os senadores, de um grupo eleito por sindicatos, associações
profissionais, igrejas e outras entidades de representação civil. Define o Brasil
como um país de vocação agrícola e prega a diversificação da agricultura e
uma economia menos dependente da exportação. Insiste na preservação dos
recursos naturais - a tese é econômica e ecológica - e a distribuição de terras
e meios de trabalho aos agricultores. Educação básica, difusão de técnicas
agrícolas e criação de um instituto de estudos brasileiros são as suas principais
propostas para o desenvolvimento cultural.
A obra de Alberto Torres tem muitas características pessoais, algumas
bem marcadas, como seu anti-racismo, numa época de prestígio das teorias
sobre a desigualdade. Em alguns aspectos importantes, porém, sua produção
reflete idéias comuns a vários políticos e escritores de seu tempo. A exigência
de soluções brasileiras para problemas brasileiros tomou-se, como observou
Skidmore, "praticamente um mantra para sua geração".2 Esse mantra inspirou
o pensamento social, a ação política, a literatura, a música e as artes plásticas.
A Semana de 22 foi parte desse esforço para redescobrir o Brasil e construir
nos trópicos uma cultura, uma nação e uma república dotadas de uma identida-
de singular. A ascensão do pensamento autoritário foi conseqüência política,
não a única, mas uma das mais visíveis, da insatisfação com a experiência
republicana.
Alberto Torres morreu em 1917. Seu nome, mais tarde, acabou sendo
associado, por algum tempo, à onda autoritária. Plínio Salgado participou da
Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, fundada em 1932. O grupo incluía,

1 Alberto Torres. A organi::ação nacional, vol. 17 da Coleção Brasiliana (3' ed. São Paulo:
Nacional, 1978).
I Thomas E. Skidmore, Uma história do Brasil (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998), p. 150.

261
A ORGANIZAÇÃO NACIONAL
,. ROLF KUNTZ

entre outros, Sabóia Lima, Alcides Gentil (ambos autores de estudos sobre a a verdade iniludível, que o estudo da evolução humana demonstra, é que o estado atual
da civilização é, em muito mais alto grau, produto da governação dos povos e da sua
vida e a obra de Torres), Cândido Mota Filho, Oliveira Viana, Juarez Távora e
direção intelectual que das forças materiais que condicionam a vida e das forças
Ari Parreiras. Seria um estranho autoritarismo, se a qualificação coubesse a coletivas que dominam os fenômenos propriamente sociais 4
Alberto Torres. Como juiz do Supremo Tribunal Federal, duas de suas preocu-
pações principais, segundo Leda Boechat Rodrigues, foram a defesa da sobe- O estadista é um organizador no mais alto grau.
rania da União e a interpretação ampliada do conceito de habeas corpus, A Constituição de 1891 é parte da desorganização denunciada por Alberto
para defesa dos direitos individuais. A ênfase na soberania da União, ~~ dos Torres. Propor uma reforma constitucional, portanto, é muito mais que defen-
grandes temas do livro A organização nacional, resultou de sua cntlca ao der uma revisão da ordem jurídica. De sua perspectiva, essa proposta envolve
federalismo adotado no Brasil- uma idéia fora de lugar, segundo suas teses. A uma definição dos interesses nacionais e de um projeto para o Brasil. A Cons-
outra preocupação denota o respeito à liberdade individual, acentuada t~­ tituição, segundo ele, "é uma lei política, de fins práticos, fundada em objetos
bém, na sua proposta de Constituição, com a criação do mandado de garantIa, sociais concretos, e destinada principalmente a manter ligados, harmônica e
uma defesa a mais contra os desmandos do poder. organicamente, os interesses gerais e permanentes do país". 5 A de 1891 é
Melhor do que rotular é tentar entender o empenho reformista de Alberto contrária à organização. Não serve, portanto, e removê-la é condição para pôr
Torres e de outros de sua geração. Para isso, é preciso lembrar a paisagem o Brasil no rumo certo. A reforma constitucional é o foco do último grande
política, social e econômica do Brasil no começo do século. A experiência texto de Alberto Torres, A organização nacional. O assunto é tratado na
republicana foi marcada, nas duas primeiras décadas, pela fragmentação da terceira e última parte e um projeto de revisão é publicado como apêndice,
autoridade, pelo crescente desequilíbrio regional, pela corrupção política e pelo juntamente com o texto da Constituição em vigor.
atraso econômico da maior parte do país. Quais as causas desse fracasso? A decepção com a ordem constitucional, conta Alberto Torres no prefá-
Dois aspectos da experiência brasileira são destacados na análise de Alberto cio ao livro, surgiu durante sua gestão como presidente do estado do Rio de
Torres. O primeiro é o desencontro do homem com a natureza. A inadaptação Janeiro. Era outra sua posição quando assumiu o cargo.
do colonizador e de seus descendentes à terra brasileira é um tema recorrente
nos seus comentários. O europeu transplantou seus hábitos com sucesso para Minha confiança na Constituição de 24 de fevereiro era, então, completa; e as idéias
os Estados Unidos e para a Argentina, onde encontrou condições naturais se- de meu programa de política social e econômica - formuladas em um conjunto de
melhantes às da terra de origem. No Brasil, "único grande país soberano de projetos de lei, elaborados por mim e votados pela Assembléia Legislativa, na sessão
clima e constituição francamente equatorial e tropical", a história foi diferente. de 1897, para serem regulamentados e executados durante o triênio de 1898 a 1900-
foram objeto de vários decretos e atos da administração, durante esse período, alguns
"Jamais os problemas da adaptação do homem ao meio novo e estranho, os da
executados, outros levados a início de execução, sendo outros preteridos por efeito de
cultura do solo ignorado, o das instituições e dos costumes próprios para essa perturbações políticas, de que não fui a causa 6
adaptação e para essa exploração foram objeto de estudo."3 O outro grande
aspecto, associado ao primeiro, é a desorganização. Este conceito - como o Ao passar o governo do Rio a seu sucessor, o general Quintino Bocaiúva, a
seu correlato, a organização - é especialmente complexo no pensamento de confiança na Constituição e no regime político estava abalada, conta Alberto
Alberto Torres. Seu conteúdo ultrapassa, de muito, as noções de administra- Torres. A desilusão se completou durante sua experiência como ministro do
ção e de sistema de normas. Organização inclui uma concepção política, uma Supremo Tribunal Federal, entre 1901 e 1909. Nesse ano ele se aposentou e
definição de interesse nacional e um trabalho de conformação de um povo. abandonou os cargos públicos. Durante a permanência no STF, o "trato mais
Governar é uma atividade aparentada com a arte:

4 Ibid., pp. 241-242


J Alberto Torres, O problema nacional braSIleiro (2 1 ed. São Paulo: Nacional, 1933), pp. 198- , Alberto Torres, A organi::ação nacional, cit., p. 268.
199. • Ibid., p. 34.

262 263
A ORGANIZAÇÃO NACIONAL • ROLF KUNTZ

íntimo com a Constituição da República" o persuadiu, segundo explica naquele ras, em que na verdade lutam antagonismos econômicos, defendendo-se e alimentan-
prefácio, de sua "absoluta impraticabilidade". do-se com as proteínas da "chair à canon"

O reformismo de Alberto Torres foi alimentado tanto pela reflexão, refor-


çada por leituras filosóficas e sociológicas, quanto por uma variada experiência escreveu Barbosa Lima Sobrinh0 7 A saída estaria, segundo Alberto Torres,
da vida pública. O interesse político surgiu cedo, como quase tudo em sua car- em levar adiante a experiência das melhores ações diplomáticas, criando uma
reira. Alberto de Seixas Martins Torres, filho de juiz, nasceu em 26 de novem- ordem mundial baseada na substituição da violência pela solução judicial das
bro de 1865 em Porto das Caixas, no município fluminense de São João de diferenças.
Itaboraí, e passou a infância na roça, numa área de cafeicultura decadente. Em 1914 saíram O problema nacional e A organização nacional. Seu
Inscreveu-se no curso de medicina aos 14 anos, em 1880. Deixou-o sem con- último livro, As fontes da vida no Brasil, foi publicado no ano seguinte. A
cluir e matriculou-se em 1882 na Faculdade de Direito de São Paulo. Participou organização naci,onal resume as principais idéias políticas e sociológicas de
da pregação republicana e abolicionista, escrevendo artigos para jornais. Com Alberto Torres. E parcialmente composto, como o livro anterior, de artigos
Xavier da Silveira, Luís Murat e Gaspar da Silva, fundou o Centro Abolicionista divulgados emjornais. O único volume publicado, com o subtítulo "A Constitui-
de São Paulo. Desentendeu-se com o professor de direito criminal, Leite de ção", deveria ser a primeira de três partes, segundo Sabóia Lima. 8 As outras
Morais, no terceiro ano, e mudou-se, com outros alunos de sua turma, incluídos duas seriam dedicadas à educação e à economia nacional.
Raul Pompéia e Xavier da Silveira, para Recife, onde se diplomou. A organização nacional é um texto formado por um longo prefácio e
De volta ao Rio, começou a advogar, mas dedicou-se principalmente à três seções, "A terra e a gente do Brasil", com dez capítulos, "O governo e a
propaganda republicana. Publicou artigos e foi secretário do Clube Republica- política", com seis, e "Da revisão constitucional", com quatro. O projeto de
no de Niterói, presidido por Silva Jardim. Foi constituinte estadual, deputado revisão constitucional aparece num apêndice, no final, depois da Constituição
federal e ministro da Justiça e Negócios Interiores, nomeado pelo presidente de 1891.
Prudente de Morais. Renunciou ao ministério quando o vice-presidente, Ma- O prefácio antecipa algumas noções centrais do livro e funciona como
nuel Vitorino, substituindo o presidente enfermo, decretou intervenção em Cam- apresentação e justificativa da obra. Aí aparece a idéia da Constituição de
pos, atropelando as funções políticas do ministro da Justiça. Elegeu-se 1891 como cópia, "roupagem de empréstimo". A política brasileira, desde a
presidente do estado do Rio de Janeiro. Numa gestão com muitos problemas independência, é descrita como sucessão de reformas baseadas em concep-
políticos, cuidou do saneamento da Baixada Fluminense, investiu na educação, ções meramente doutrinárias, "sem o fluido vital de uma inspiração prática,
tentou facilitar o comércio do café, com a redução do imposto de exportação, filha do lugar e da ocasião, e sem desenvolvimento ou trabalho de aplicação".
e encorajou a diversificação das lavouras. Foi nomeado ministro do Supremo Em contraposição, ele propõe uma política de "índole orgânica". Essa política
Tribunal Federal com 35 anos, idade mínima para o cargo. Em 1909, estafado deve incluir a presença ativa do poder público em todos os domínios da vida
e doente, aposentou-se. Nunca se recuperou totalmente e morreu com 52 anos, coletiva. Exemplo dessa presença é a ação do governo na Austrália do Sul. Há
em 29 de março de 1917. uma longa citação, no prefácio, de um texto de John A. Cockburn sobre "A
Antes de abandonar o STF, Alberto Torres havia retomado a publicação extensão da esfera da atividade do Estado" na Austrália do Sul. Esse texto
de artigos em jornais. Essa atividade se intensificou a partir da aposentadoria, descreve a intervenção estatal no transporte ferroviário, na fabricação de lo-
com a produção freqüente de textos para jornais do Rio e de São Paulo. Já em comotivas, nos serviços de telecomunicações, no abastecimento de água e na
1909 publicou o livro Vers la paix, sobre política e direito internacionais, segui- irrigação - incluída a produção de canos. A Austrália, lembra Cockburn, é um
do em 1913 por Le probleme mondial. Escreveu em francês para ser enten- país seco e o abastecimento de água é muito importante. "Foi principalmente
dido também fora do Brasil, num esforço de pregação a favor da paz.

7 Conferência no Instituto Histórico Brasileiro, em 1-12-1965, publicada no Jornal do Commercio


Alberto Torres sente como que a presença da catástrofe próxima, a Grande Guerra 1-1-1966.
que vai consumir milhões de vidas humanas, nos campos de batalha ou nas trinchei- 8 Sabóia Lima, Alberto Torres e sua obra (2 1 ed. São Paulo: Nacional, 1935), p. 39.

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ROLF KUNTZ
A ORGANIZAÇÃO NACIONAL

é função de sua história e de sua geografia. O Brasil não tem história, que tal nome não
no interesse da agricultura que a esfera de atividade do Estado se desenvol-
merece a série cronológica dos fastos das colônias dispersas, e a sucessão, meramente
veu", segundo o autor do texto. Isso levou o poder público a se envolver no política, de episódios militares e governamentais; sua história étnica, econômica e
controle das terras, na construção e na administração de armazéns, na política social só começará a formar-se quanto mais estreita solidariedade entre os habitantes
de preços e na comercialização. das várias zonas lhe der a consciência de uma unidade moral, vínculo íntimo e profun-
A longa citação é duplamente relevante para os propósitos de Alberto do, que a unidade política está longe de realizar. ll
Torres. Mostra como o Estado pode conduzir ações de importância estratégi-
ca, intervindo em certos setores, e reforça o argumento do realismo. "Estou A primeira seção é dedicada, em grande parte, à descrição de um povo
convencido de que a maioria de nosso povo", escreveu Cockburn, "opõe-se, disperso geograficamente, sujeito à politiquice local e preso a uma economia
em teoria, à extensão da esfera da atividade do Estado; mas, quando os ho- predatória e voltada para fora. Com fraquíssimos vínculos de solidariedade
mens práticos [se] defrontam, face a face, com os interesses reais, em relação nacional, esse povo se entrega, de tempos em tempos, a assomos de patrio-
à organização de um país novo, deitam fora as teorias e vão ao encontro das tismo. O sentimento patriótico é bastante forte, nesses momentos, para levar
necessidades positivas [ ... ]".9 o cidadão ao sacrificio, mas logo se esgota. É insuficiente para sustentar
A primeira seção, "A terra e a gente do Brasil", é principalmente uma uma "ação tenaz, refletida, duradoura" e esclarecida pela consciência dos
reflexão sobre o desajuste histórico brasileiro. Nem o homem foi capaz de se interesses.
amoldar à terra, para constituir uma sociedade adaptada ao meio, nem a políti- Não basta a existência de um Estado nacional, em contraste com a dis-
ca estabeleceu padrões de solidariedade suficientes para formar uma nação. persão do povo, para unificar a sociedade e produzir a coesão necessária a um
Não houve, no Brasil, nada parecido com a visão de futuro dos fundadores dos projeto comum. Essa coesão, nas sociedades fragmentadas, só pode ser con-
Estados Unidos. Homens como Washington, Franklin, Jefferson, Hamilton e seqüência da ação do governo. "As nações modernas, feitas sobre terrenos
Madison puderam assentar, nos primeiros dias da república norte-americana, heterogêneos, são obras de arte políticas, que demandam décadas de trabalho
os princípios duradouros de uma nova nação. Basta um estoque de grandes consciente e de calma elaboração. "1" Não se trata de um problema exclusivo
homens para produzir esse resultado? Alberto Torres acentua, sem dúvida, a da política brasileira, apesar de suas singularidades.
importância do estadista, mas com uma clara ressalva: A ação do governo é tanto mais importante, para conformar uma nação,
quanto maior a distância das formas primitivas de solidariedade. Os laços mais
Onde há uma nação, homogênea em seus elementos, ou fortemente subordinada a um antigos eram mais cerrados: uniam os naturais de um país pela religião, pecu-
espírito, um móvel, uma aspiração, ou uma classe preponderante, define-se uma liar a cada povo, e pela oposição ao Deus e aos homens das terras vizinhas. Os
política: os órgãos dessa política surgem da reação aos acontecimentos e, seja dinás- vínculos se alteram com o tempo.
tica ou republicana a forma de governo, o poder vem a cair nas mãos dos combatentes
Religião, raça, costumes e até língua tendem a se tornar menos importan-
mais fortes, dos representativos. 10
tes, enquanto outros fatores passam a preponderar. A segurança jurídica, o
interesse econômico, a prosperidade presente e a sorte das gerações futuras
A história brasileira é outra. Nem havia, no momento da independência,
se tornam os fatores de solidariedade, substituindo a comunidade religiosa, a
uma sociedade pronta para se destacar do controle externo e de assumir um
tradição e o domínio militar. Alteram-se os componentes da noção de pátria e
destino próprio, nem seus dirigentes políticos podiam oferecer mais que valo-
de nacionalidade. A pátria moderna, perdidos aqueles fatores de união, passou
res e fórmulas importados da Europa, sem o mínimo vínculo com as condições
a ser um "grêmio político, social e econômico, uma sociedade quase voluntá-
brasileiras. "O destino de um país", segundo Torres,
ria". Há, assim, "um caráter de pacto de convenção tácita nas nações moder-

II Alberto Torres, A organi::ação nacional, cit., p. 64.


, Ibid., p. 50.
II Ibid., p. 70.
10 Ibid., p. 61.

267
266
A ORGANIZAÇÃO NACIONAL ROLF KUNTZ

nas"y Alberto Torres, portanto, chega à beira de uma visão contratualista das tino. Não pode ser arbitrária: o estadista só pode realizar um trabalho proveito-
sociedades modernas, marcadas por um tipo de solidariedade de fundo racio- so se conhecer as características e a história do povo e seu ambiente natural,
nal. De modo geral, porém, suas concepções sociológicas são marcadamente assim como o escultor deve conhecer a matéria de seu trabalho. A ação do
positivistas. Em mais de uma passagem, ele descreve a sucessão das formas governo é produzir a "civilização". Dinamicamente, civilização se entende como
de sociedade segundo o padrão dos três estados, descrito por Auguste Comte. "um estado de equilíbrio e de harmonia entre o homem, o meio fisico, e a
A dominação religiosa é substituída pela militar e esta pela racional, em etapas sociedade, capaz de assegurar bem-estar e cultura ao indivíduo e desenvolvi-
correspondentes às fases teológica, metafisica e positiva. Esse positivismo se mento à espécie, conservado e melhorado o patrimônio cósmico da humanida-
reflete, de maneira um tanto pitoresca no artigo 3º de seu projeto de revisão de e aperfeiçoado o seu patrimônio mental".14
constitucional. Além de afirmar o caráter leigo do Estado e o compromisso A função criadora da política é o tema central da segunda seção. Razão
com a pluralidade e a liberdade religiosa e de idéias, esse artigo determina ao e experiência são os guias confiáveis, "porque a vida dos indivíduos e das
poder público uma obrigação: "fazer aplicação exclusiva, na solução dos pro- sociedades não é suscetível de subordinação a sistemas", sendo necessário
blemas sociais e políticos, do critério da razão sobre os dados da experiência e renunciar, portanto, a noções abstratas de formas de governo. A melhor forma
da observação". Aprovado esse projeto, a racionalidade seria constitucio- será a mais adequada ao cumprimento de certas funções governamentais, in-
nalizada. cluído o trabalho de construir o povo. A agenda brasileira incluiria, entre os
Se aquela fragmentação ocorre nas nações mais antigas, é inteiramente pontos principais, novo estilo de ocupação territorial, menos destruidor e me-
sem sentido pensar na formação de raças nacionais em países novos, terras de nos dependente da agricultura extensiva. "As regiões atualmente exploradas
imigração. A nação brasileira há de se formar, portanto, a partir de um povo com o cultivo de gêneros de exportação estão em condições de suprir as ne-
fragmentado historicamente, pelas características da colonização e da insufi- cessidades do consumo internacional."15 Necessitam, segundo Torres, de uma
ciente ordenação política, e etnicamente, pela coexistência e pela mistura do exploração mais inteligente e de melhor conservação, no lugar das práticas
europeu, do índio e do negro. A baixa coesão como característica histórica, habituais de cultivo predador seguido de abandono da terra. Meio século de-
sinal da desorganização nacional, é uma deficiência a ser sanada pela ação do pois, economistas agrícolas brasileiros ainda estariam pregando a mesma idéia
governo. A pluralidade racial, porém, é uma característica normal das socieda- - a busca de maior produtividade por hectare, como forma de aproveitamento
des formadas por migração e de nenhum modo representa uma desvantagem. mais econômico do solo e com menor expulsão de mão-de-obra.
Alberto Torres se opõe explicitamente às doutrinas do branqueamento. Ne- Seria preciso estimular a produção de alimentos para consumo local, com
nhum grupo humano tem predisposição espontânea para ser superior ou infe- apoio do governo aos agricultores, e à indústria necessária para atender às
rior. Suas possibilidades dependem totalmente das condições ambientais, das necessidades básicas. O apoio à agricultura deve consistir, quando necessário,
oportunidades de trabalho, de educação e de desenvolvimento intelectual. Qual- no fornecimento de terra e de meios de trabalho, na construção de armazéns e
quer indivíduo, seja qual for sua origem, estará sujeito à degradação, se aban- no apoio à comercialização. Por ocasião das liquidações e execuções, os Esta-
donado, como tantos brasileiros, nas condições mais desfavoráveis. Isso ocorre dos deveriam promover a divisão da propriedade, "consolidando-se", dessa for-
também aos colonos europeus, quando lhes faltam os meios para dominar o ma, "o bem-estar popular". Seria necessário, além disso, dar menor ênfase ao
ambiente, aplicar seus conhecimentos de organização e de produção. Esses comércio e à construção de ferrovias. Esse é um dos aspectos mais curiosos da
colonos, porém, vinham recebendo, segundo Torres, maior atenção governa- agenda traçada por Alberto Torres. Ele descreve as estradas de ferro como
mental que os trabalhadores brasileiros. "causas de ruína, facilitando o êxodo das populações para os grandes centros, o
A política não é, portanto, apenas emanação de uma base social e econô- esgoto [esgotamento] da terra, o consumo de produtos voluptuários e frívolos, a
mica. Ao contrário: é atividade criadora, capaz de moldar um povo e seu des-

14 Ibid., p. 179.
13 Ibid., p. 123. II Ibid., p. 189.

268 269
A ORGANIZAÇÃO NACIONAL - ROLF KUNTZ

criação de hábitos, costumes, ambições e estímulos contrários à estabilid~de, O Brasil, "fraquíssimo, pela singularidade de sua natureza", só poderia
ao trabalho à vida serena e sóbria no pequeno torrão cultivado". As locahda- resistir à dominação por meio de obstáculos políticos e legislativos.
des do inte;ior, segundo Torres, poderiam "atingir alto grau de prosperidade,
Não nos é lícito aceitar a condenação de um destino, que nos faria, além do mais,
florescimento e cultura sem estradas de ferro". Condenavam-se à ruína, "quando
cúmplices de uma das mais nefastas obras humanas: a fundação de uma aristocracia
atingidas por estradas de ferro, sem as condições fundamentais da segurança mundial fundada na ambição, instituindo e alimentando o nomadismo internacional da
econômica".16 fortuna, vencedor, sobre os destroços de povos e sobre a ruína da terra, nas batalhas,
Esses comentários estão associados a uma visão do comércio internacio- silenciosas e serenas, das invasões e conquistas a peso de ouro l9
nal como dominado pelos interesses das grandes potências. No Brasil e nou-
tros países da América do Sul, segundo Alberto Torres, o desenho das ferrovi:s Organizar o Brasil seria a forma de concretizar essa resistência nacio-
obedecia aos interesses do capital internacional, favorecendo a exploraçao nalista. A terceira seção do livro, "Da revisão Constitucional", expõe as bases
predatória do patrimônio natural e o comércio por eles controlado. L~gavam :s políticas e legais da organização. As propostas de reforma são apresentadas
fontes de produção às cidades principais e aos portos, sem favorece~ a mtegraçao e justificadas. Essa última seção é até certo ponto auto-sustentada, mas a
das populações. O Brasil deveria, segundo Alberto Torres, t~nt~r Isolar-se des- leitura das duas anteriores facilita muito a compreensão das posições de
sas correntes. 17 Isso, no entanto, só seria possível se os brasIleIrOS abandonas- Alberto Torres.
sem o consumo imitativo. Isso os tomaria menos dependentes da importação O capítulo inicial trata dos poderes e responsabilidades da União e das
(e, portanto, da exportação geradora de divisas). Deveriam, no enta~to, ac~i­ províncias. A república brasileira passa a chamar-se República Federativa do
tar certa divisão do trabalho internacional, abandonando a proteção mdustnal Brasil e os estados, províncias autônomas. Nos Estados Unidos, havia o autor
indiscriminada. afirmado noutra passagem, a União substituiu a metrópole na relação com as
Essa política seria justificável, de acordo com Alberto Torres, não só colônias originais, todas elas dotadas de governo solidamente formado, algu-
pelas peculiaridades brasileiras, mas também pelo quadro internacional. O pa~s mas dotadas de constituição, outras, de carta colonial. Essas colônias de fato
precisaria resistir à tendência expansiva do capital, a partir dos c~n~~os n:a!~ detinham os meios de poder e o trabalho dos constituintes consistiu, em grande
avançados. "Toda a sociedade está dividida, na quadra atual da c1Vlhzaçao , parte, em determinar as atribuições transferidas à União. Todo o resto perma-
escreveu Alberto Torres, necia com as ex-colônias. A situação brasileira, no surgimento da república,
era diferente. "A revolução de 15 de novembro lançou por terra toda a organi-
em duas classes: a dos que exploram as forças do capital e da inteligência instruída, e zação política e administrativa do país." A nova ordem nacional seria criação
a dos que são explorados, vencidos, eliminados pela vitória, lenta, mas segura, daque-
dos constituintes, mas eles procederam como se os Estados preexistissem à
les. Esse esforço por subordinar a quase totalidade da espécie à nova anstocracla
manifesta-se, principalmente, na exploração dos países novos - pois que os velhos já União. 20 "Os homens que organizaram o regime tinham ardente ambição de
não oferecem campo suficiente às ambições
l8 autoridade local; daí a carência de condições práticas de soberania efetiva,
nas funções da União."21
Há um toque de otimismo: Fixar as condições dessa real soberania, essencial à unidade brasileira e
à eficácia do poder público, seria um dos objetivos da reforma constitucional.
a expansão do comércio, da viação e dos instrumentos de crédito internacional domina
As províncias terão poderes meramente residuais, não atribuídos à União nas
apenas uma fase da evolução humana, resultante da excitação do mdlvldualIsmo e dos
inventos materiais, nascidos da iniciativa e do espírito econômico dos séculos XVIII
cláusulas expressas da Constituição, de forma explícita ou implícita. O artigo
e XIX - fase que não pode perdurar, com a mesma intensidade, pelo menos.

l' Ibid., p. 195.


I6 Ibid., p. 193 20 Ibid., p. 80.
17 Ibid., p. 195. 21 Ibid., p. 213.
18 Ibid., p. 194.

270 271
A ORGANIZAÇÃO NACIONAL ROLF KUNTZ

6º atribuiria ao poder central o direito de intervir nas províncias para uma gran- nalmente a esse último imposto provincial, cobrar impostos progressivos so-
de variedade de propósitos, expressos em quinze cláusulas. Algumas seriam bre os rendimentos de capitais e bens improdutivos, "agravados no caso de
típicas de um sistema federativo: repelir invasão estrangeira ou de uma provín- ausência ordinária ou freqüente dos capitalistas, e de sua desocupação, ou
cia em outro, ou para manter o regime republicano e a soberania da União. O ocupação em trabalhos sem produtividade econômica". Além disso, a União
sentido político da reforma aparece noutros objetivos: a União poderá intervir poderia tributar importação e exportação, direitos de entrada e saída de na-
"para harmonizar as leis e atos das Províncias e municípios com a Constitui- vios e operações de câmbio, quando não destinadas à liquidação de contas
ção, leis e atos federais e das outras Províncias e municípios"; para garantir a comerciais comprovadas.
liberdade comercial; para verificar a constitucionalidade dos impostos criados; Ao capital nacional ficariam reservados a navegação de cabotagem, as
para tomar efetiva a educação moral, social e cívica das populações; "para atividades de transporte interno e todos os negócios ou indústrias "de interesse
tomar efetivas as garantias constitucionais à liberdade, à segurança e à proprie- vital para a Nação, pela natureza de seu objeto e seu valor, influência e alcan-
dade, assegurar aos cidadãos bem-estar, prosperidade e educação, direito ao ce social ou econômico".
trabalho e a seus instrumentos, bem como à justa remuneração de seus fru- O capítulo segundo foi dedicado aos órgãos da soberania nacional, os
tos",2:! Este último bloco, de fato correspondente à cláusula nº 6, toma espe- poderes Legislativo, Executivo, Coordenador e Judiciário. A principal novidade
cialmente clara a idéia da União como entidade responsável pelos direitos - "senão a principal", segundo Torres - seria a criação do Poder Coordenador,
básicos e pela articulação dos grandes objetivos sociais. Mas Alberto Torres "instituição nova no Direito Público". Nova, mas não resultante da imaginação,
ainda realça tudo isso no 15º ponto: a União poderá intervir "para promover e por ser "necessariamente integrante" de um regime presidencial federativo
defender os interesses gerais, permanentes e futuros, do indivíduo, da nação como o brasileiro. Esse poder seria o centro organizador, garantia de uma
brasileira e da sociedade humana". Este artigo toma todos os demais supérflu- tarefa nunca realizada, segundo Alberto Torres, do parlamentarismo adotado
os e reduz a quase nada a noção de autonomia provincial. no Império. O parlamentarismo, no Brasil, foi "um regime de ditadura modera-
Cada uma daquelas cláusulas, porém, é minuciosamente defendida no da e frouxa, nas mãos de um monarca de espírito abstrado e vontade indeci-
capítulo inicial da terceira seção. A argumentação é jurídica, em muitos pontos, sa". O Brasil, porém, precisava "de um governo consciente e forte, seguro de
mas é sobretudo política e revela o caráter programático da revisão proposta seus fins, dono de sua vontade, enérgico e sem contraste":!3 - e esse governo
por Alberto Torres. Os poderes atribuídos à União se destinam a construir a só poderia ser proporcionado pelo regime presidencial.
ordem econômica e social imaginada por Alberto Torres - um país fiel à sua A função Poder Coordenador seria "concatenar todos os aparelhos do
suposta vocação agrícola, capaz de produzir com eficiência, menos vulnerável sistema político", para garantir "a soberania da lei, a democracia, a república,
às turbulências internacionais e à ganância do capital estrangeiro, livre dos a autonomia e a federação". As atribuições dos quatro poderes, assim como as
defeitos do coletivismo e do individualismo extremado e justo na distribuição condições de acesso aos mandatos políticos, são descritas no capítulo terceiro.
de oportunidades a todas as pessoas. É função do Estado amparar os indiví- Os candidatos ao Congresso Nacional deveriam, além de atender a outras
duos, principalmente aqueles sem meios próprios de trabalho, e igualar as pos- condições definidas na Constituição de 1891, apresentar um programa, com
sibilidades de progresso pessoal. estudo sobre os problemas nacionais e as providências consideradas necessá-
O poder de tributar, dividido entre União e províncias, deveria conciliar o rias à sua solução. O programa seria enviado ao Instituto de Estudos dos Pro-
financiamento do governo, as conveniências do sistema produtivo e os objeti- blemas Nacionais, vinculado ao Poder Coordenador.
vos de igualdade. Caberia às províncias fixar impostos sobre consumo, imó- Outra novidade importante aparece na composição do Senado. A casa
veis rurais e urbanos, transmissão de propriedade, indústrias e profissões, e seria formada por três grupos de representantes: cinco nomeados por todo o
renda ("por meio de uma taxa fixa, proporcional"). A União poderia, adicio- país, 31 escolhidos pelas províncias e pelo Distrito Federal e 37 apontados

22 Ibid., p. 302. 23 Ibid., p. 247.

272 273
A ORGANIZAÇÃO NACIONAL ROLF KUNTZ

pelos seguintes grupos: três pelo clero católico; um pelos sacerdotes das forma privativa, nomear os magistrados e membros do Ministério Público. Pela
demais religiões; um pela Igreja e Apostolado Positivista Brasileiros; dois Constituição de 1891, a nomeação de magistrados federais seria feita com
pelas associações de caridade, mutualidade e fins morais, sem caráter religio- base na indicação de nomes pelo Supremo Tribunal Federal.
so, de número limitado de membros e reconhecidas pelo governo; um pelos A criação do Poder Coordenador é a principal inovação na estrutura do
eleitores não religiosos; três pelas congregações, academias e associações governo. O órgão principal desse poder seria o Conselho Nacional, com núme-
científicas e literárias e professores dos níveis primário e secundário; dois ro máximo de vinte componentes. Seus eleitores seriam o presidente da Repú-
pelos magistrados e advogados; dois pelos médicos, farmacêuticos e dentis- blica e o vice, juntamente com representantes dos poderes Legislativo e
tas; dois pelos engenheiros e industriais; cinco pelos plantadores de produtos Judiciário. A descrição desse eleitorado é confusa, mas a enorme influência
de exportação; seis pelos produtores de gêneros de consumo nacional; um atribuída ao Poder Coordenador é muito clara. Estariam a seu serviço um
pelos operários urbanos; três pelos operários agrícolas; dois pelos banquei- procurador da União em cada província, nomeado pelo Conselho Nacional, um
ros, comerciantes corretores e pessoas ocupadas em "profissões congêneres"; delegado federal em cada município, um representante em cada distrito e um
dois pelos funcionários civis e militares federais, estaduais e municipais; um preposto em cada quarteirão.
pelos jornalistas e pelos redatores de outros órgãos de publicidade. Os sena- Os poderes do Conselho Nacional são descritos em quinze itens, alguns
dores teriam mandato de nove anos, com renovação de um terço a cada três consideravelmente complexos. Essencialmente, seriam os seguintes: 1) apurar
anos. Esse processo de escolha permitiria, segundo Alberto Torres, garantir os votos para presidente da República e vice; 2) autorizar o presidente a inter-
uma representação de qualidade adequada, sem o retrocesso, "ilusório", à vir nas províncias, nos termos do artigo 62 ; 3) resolver os conflitos entre os
forma do governo de partido. poderes federais ou entre estes e os dos estados e municípios; 4) declarar a
As duas casas poderiam ter a iniciativa de propor projetos de lei e seriam inconstitucionalidade de atos e leis de poderes de todos os níveis; 5) consolidar
dissolvidas se determinadas tarefas, como a votação de leis anuais, não fos- as leis da república de dez em dez anos; 6) chamar a atenção dos congressis-
sem cumpridas dentro de certos prazos. Uma curiosidade em relação à Câma- tas para os casos de inconstitucionalidade dos projetos ou para o conflito das
ra: haveria 125 deputados, sendo a metade escolhida por distritos eleitorais, um medidas em discussão com as demais leis; 7) estudar permanentemente o
quarto por "estados" (a palavra é usada, numa evidente distração) e um quarto sistema tributário de todos os níveis de governo, para avaliar seus efeitos sobre
por todo o país. Essa divisão corresponderia a 62,5 deputados, 31,25 e 31,25. 24 a produção e o consumo e seu impacto "sobre as classes menos abastadas";
O presidente seria eleito, juntamente com o vice, para um mandato de 8) defender a liberdade comercial em todo o país, podendo anular impostos e
oito anos, sem reeleição para o período seguinte. O colégio eleitoral seria taxas inadequados, assim como concessões e contratos favoráveis a monopó-
formado por congressistas, presidentes das províncias, deputados estaduais, lios e à criação de outros privilégios, fiscalizar as operações de comércio inter-
membros do Conselho Nacional, representantes do Judiciário e do Ministério nacional e tomar outras providências; 9) exigir dos governos provinciais e
Público, lentes e professores das escolas superiores e secundárias, professo- municipais a adoção de leis e posturas em harmonia com a legislação nacional
res e di retores do Instituto de Estudos dos Problemas Nacionais e membros e com "os interesses gerais e permanentes do país, dos cidadãos e dos povos";
das entidades participantes das eleições de senadores. 10) promover a defesa, a conservação e a exploração correta dos recursos
As funções presidenciais e parlamentares pouco se afastariam daquelas naturais; 11) cobrar dos demais poderes medidas para promover a saúde, o
fixadas na primeira Constituição republicana, mas caberia ao presidente, de bem-estar, a educação e a cultura do povo; 12) fiscalizar a organização do
trabalho, o crédito e a distribuição da terra e de outros meios econômicos; 13)
decretar a perda de autonomia das províncias, em caso de anarquia política,
Escorregão semelhante aparece na Constituição de 1988. Segundo o artigo 107, os Tribunais
14
administrativa, financeira ou judiciária, provendo à sua administração por cin-
Regionais Federais "compõem-se de, no mínimo, sete juízes", devendo ser recrutado um quinto
"dentre advogados com mais de dez anos de efetiva atividade etc." Um quinto de sete é 1,4. Antes
co anos; 14) resolver as questões entre empregadores e empregados sobre
de aprovado o texto, o senador Roberto Campos chamou a atenção para o detalhe, mas não lhe salários, horas de trabalho e condições de higiene, bem-estar e segurança; 15)
deram atenção. velar pela defesa da liberdade e da igualdade dos cidadãos, "não tão-somente

274 275
A ORGANIZAÇÃO NACIONAL
• ROLF KUNTZ

perante a lei, senão também no que respeita ao alcance dos meios necessários gativa: "Nem o sentido literal do texto, nem a fonte, origem, escola ou tradição
ao desenvolvimento e à cultura pessoal". doutrin~ria, a que estiver ligado, servirá de argumento a qualquer interpretação
O item três dessa enumeração se superpõe, à primeira vista, à atribuição contrána a seu destino prático e seu fim social".
do Supremo Tribunal de Justiça, órgão máximo do Judiciário, de julgar as cau- Os traços mais fortes desse projeto - os mais esclarecedores do pen-
sas entre a União e as províncias ou entre as províncias, mas esse não é o samento político de Alberto Torres - aparecem na descrição do Poder Coor-
único ponto obscuro do projeto. denador, no tratamento dos direitos e no artigo 81, em que o constituinte,
Os membros do Conselho Nacional teriam mandato vitalício, mas pode- numa tentativa extrema de se explicar, oferece os critérios de interpretação.
riam ser julgados por uma corte especial, formada por senadores e juízes do As passagens sobre o Poder Coordenador e sobre os direitos fornecem duas
Supremo, em caso de violação de leis criminais ou de responsabilidade. Em perspectivas para a visão do mundo político. A primeira é a perspectiva do
caso de condenação, perderiam o mandato. poder central, modelador da vida coletiva e guardião da unidade nacional e
O projeto contém uma extensa declaração de direitos, incluído o habeas dos objetivos permanentes do país. Esse poder é um demiurgo, não um cria-
corpus. O mandado de garantia, mencionado na seção sobre o poder judiciá- dor: a nação pode ser uma obra de arte, mas é preciso, para bem realizá-la
rio, seria uma defesa possível quando não houvesse outro recurso especial de respeitar condições fixadas pela história do povo. Essa história inclui a rela~
preservação de direitos individuais ou coletivos, públicos ou privados. ção com o meio fisico. A segunda perspectiva é a dos homens, portadores de
A declaração inclui os direitos previstos, em geral, em constituições libe- direitos substantivos. Alberto Torres claramente rejeita uma concepção ape-
rais. A garantia da justiça incluiria "decisão sumaríssima em todas as causas nas formal da liberdade. O trabalho, além de um dever e de condição da
de pequeno valor, mediante reclamação verbal da parte e investigação direta e cidadania, é parte do direito de cada um de realizar as suas potencialidades.
pessoal do juiz". Por isso, ,os meios de trabalho, incluída a terra, são essenciais à idéia de
Cuida-se, além disso, de relações do trabalho e das condições necessá- direitos. E obrigação coletiva, isto é, da sociedade política, facilitar o acesso
rias ao desenvolvimento pessoal. Seria limitado a oito horas diárias o trabalho a esses meios.
com emprego de força fisica, a seis o intelectual. Quando se combinassem Com esses elementos, tentar uma classificação ideológica de Alberto
atividade mental e fisica sem esforço fatigante, a jornada poderia chegar a dez To~res é um exercício pouco instrutivo. Ele tem um compromisso, declarado
horas. Não há referência à duração semanal do trabalho, mas férias anuais de mais de uma vez, com práticas de tipo democrático. Mostra preocupação com
sessenta dias seriam asseguradas, com remuneração. O ensino primário e o as liberdades individuais, defendidas em seu projeto de Constituição e na sua
profissional agrícola seriam gratuitos. Ter um diploma primário e exercer uma p~ática jurídica. Valoriza os chamados direitos de segunda geração e, além
profissão, "com a necessária habilitação técnica", seriam condições da cida- diSSO, antecipa os cuidados com a preservação ambiental. A realização desses
dania. A maioridade, para efeitos civis e políticos, dependeria da comprovação valores, no entanto, só seria possível no Brasil, segundo Torres, pela atuação
dessas condições. de um governo muito forte, caracterizado pela presença de um poder coorde-
Seria dever do poder público fornecer os meios de trabalho, de educação nador capaz de intervir em todas as questões de interesse público e em todos
e de cultura, "de acordo com as aptidões demonstradas". Nunca se explica a os níveis da administração. Autoritarismo?
extensão desses "meios de trabalho", mas Alberto Torres se refere, várias Talvez, mas essa palavra é mais um carimbo do que um esclarecimen-
vezes, à distribuição de terras. to. O projeto de revisão constitucional, poderia responder Alberto Torres,
O projeto de revisão apresenta, no artigo 81, instruções sobre como inter- nasceu de um exame da realidade brasileira, não de um modelo abstrato de
pretar a Constituição e as leis. É, talvez, um de seus aspectos mais originais. A formas de governo. Seria dificil contestar esse argumento. O livro A organi-
Constituição é descrita como "lei política, de fins práticos, fundada em objetos zação nacional foi publicado há mais de oitenta anos, mas alguns de seus
sociais concretos e destinada principalmente a manter ligados, harmônica e grandes temas, como a ordem federativa e a articulação de políticas nacio-
organicamente, os interesses gerais e permanentes do país". A partir dessa nais, continuam presentes nos debates sobre o sistema de impostos e sobre o
definição se estabelece o critério, expresso mais enfaticamente na forma ne- processo orçamentário.

276
277
A ORGANIZAÇÃO NACIONAL

Segundo alguns críticos, Alberto Torres deu pouca ou nenhuma atenção


à estrutura de classes e deixou-se levar por excessivo psicologismo. A primei- JOSÉ V ERÍSSIMO
ra crítica é frágil. Sem privilegiar a questão das classes, Alberto Torres voltou
sua atenção para outros conflitos característicos da sociedade brasileira. Apontou
a predominância dos interesses da exportação e seus vínculos com o capital
internacional. Mostrou os desajustes criados por uma urbanização, a seu ver,
História da literatura
precipitada, enquanto se perdiam oportunidades de produção e de emprego no
interior. Descreveu o contraste entre o peso dos interesses paroquiais e regio-
nais e a fragilidade da administração nacional. Acentuou, finalmente, a oposi-
braslleira
ção entre a marcha expansionista do capital internacional, a partir dos mais
poderosos centros capitalistas, e os interesses, nem sempre percebidos com
clareza, das economias produtoras de matérias-primas. Não é pouco. Quanto
ao psicologismo, é mais retórico do que essencial à argumentação de Alberto
Torres. Descontem-se alguns arroubos, e suas descrições das qualidades do
povo brasileiro serão reduzidas, na ordem dos argumentos, a seu papel efetivo: João Alexandre Barbosa
rejeitar a idéia de um determinismo racial. Os fatores sociais, como organiza-
ção, padrões de solidariedade e adaptação ao meio, são os elementos de fato
apontados como relevantes.
Avaliação mais precisa é a de Oliveira Viana, freqüentador das famosas
tertúlias de Alberto Torres e um de seus leitores mais críticos e mais cuidadosos.

Torres e eu, o que um e outro fizemos - em relação ao conhecimento científico das


instituições políticas e da estrutura do Estado - consistiu, aqui, nesta novidade
metodológica: considerar os problemas do Estado ou, melhor, os problemas políticos
e constitucionais do Brasil, não apenas simples problemas de especulação doutrinária
ou filosófica - como então se fazia e como era o método de Rui; mas como problemas
objetivos, vinculados à realidade cultural do povo e, conseqüentemente, como pro-
blemas de comportamento do homem brasileiro na sociedade brasileira - de "com-
portamento", no estrito e técnico sentido que a esta expressão lhe dão os sociologistas
americanos (como, por exemplo, Ralph Linton e Donald Pierson, em livros que estão
hoje, em nosso país, nas mãos de todos os estudiosos das ciências sociais)25

Deveria bastar esse testemunho para situar Alberto Torres em seu lugar
de direito, como um dos construtores de um pensamento original brasileiro a
respeito da vida social e política no Brasil.

" Francisco José de Oliveira Viana, Instituições políticas brasileiras, Coleção Biblioteca básica
brasileira (Brasília: Senado Federal, 1999), pp. 399-400.

278
• Creio que a melhor maneira de ler esta obra de José Veríssimo é come-
çar situando-a em dois contextos: o da própria obra do autor e aquele das
atividades críticas e histórico-literárias do tempo em que lhe foi dado viver
(1857-1916).

No que diz respeito ao primeiro, é preciso logo acentuar que a publicação


da História da literatura brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado
de Assis (1908) foi póstuma, ocorrendo no mesmo ano da morte do autor.
Desta maneira, pode-se dizer que, de um modo até mesmo literal, foi uma
súmula de sua vida literária, ou remate, para usar o termo preferido por ele na
dedicatória do livro. E, ao morrer, José Veríssimo deixava uma obra que, de
fato, o identificava como uma das principais lideranças críticas do Brasil da
última década do século XIX e da primeira do XX.
Na verdade, embora tenha publicado quatro livros ainda no período em
que vivia na sua província natal do Pará, Primeiras páginas, de 1878, Cenas
da vida amazõnica, de 1886, Estudos brasileiros (1877-1885), de 1889, e A
educação nacional, de 1890, é somente depois de sua mudança para o Rio
de Janeiro, em 1891, que inicia uma atividade ininterrupta de jornalismo literá-
rio, a começar pelo Jornal do Brasil, cujo primeiro resultado valioso para sua
trajetória crítica é a publicação, em 1894, da segunda série dos Estudos brasi-
leiros (1889-1893).
A edição e direção da Revista Brasileira, de que se encarregou a partir
de 1895, e cujos dezenove tomos foram publicados até 1899 (existe um vigési-
mo, que ficou pronto e com a data de 1900, mas que não circulou), e em cuja
redação nasceu a idéia da fundação da Academia Brasileira de Letras, deu ao
crítico não apenas a oportunidade de publicar numerosos ensaios críticos e
notas bibliográficas, muitos dos quais vão compor a primeira série dos Estudos
de literatura brasileira, de 1901, mas ainda uma enorme visibilidade no cená-
rio cultural da capital do país.
Por outro lado, a colaboração, sobretudo, em três jornais do Rio de Janei-
ro, o Jornal do Comércio, Correio da Manhã e O Imparcial e nas revistas
Kosmos, Renascença, Almanaque Garnier e na Revista da Academia Bra-
sileira de Letras resultaram na publicação das seis séries dos Estudos de
literatura brasileira, das três séries de Homens e coisas estrangeiras e do
volume Que é literatura.? e outros escritos.

281
JOÃO ALEXANDRE BARBOSA
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA

Carpeaux, em artigo publicado em 1949, "o livro não é propriamente obra de


Desse modo, os livros publicados por José Veríssimo entre 1901 e 1910,
um historiador de letras e sim a palavra final de um crítico literário".!
desde as duas primeiras séries dos Estudos de literatura brasileira à tercei-
Acrescente-se: de um crítico literário que, através da síntese de uma ativi-
ra e última de Homens e coisas estrangeiras, e que constituem o cerne de
dade desenvolvida durante, pelo menos, três décadas, assume a história como
sua atividade crítica, são, na verdade, coletâneas de textos escritos para a
melhor maneira didática de resumir e comunicar aquilo que fora a substância
imprensa periódica que passam para o livro sem maiores modificações, quan-
daquela atividade, consciente de experimentos anteriores no mesmo sentido.
do muito revelando apenas alterações de títulos.
Embora obra de síntese, como é óbvio, a História, em parte, não foi uma
exceção no modo pelo qual José Veríssimo publicou os seus livros mais impor-
tantes: alguns de seus capítulos foram inicialmente redigidos para periódicos e
II
desde, pelo menos, 1906 o autor começou a publicar textos que, mais tarde,
São precisamente esses experimentos anteriores que constituem aquele
seriam organizados e refundidos na composição da obra. .
segundo contexto da obra, referido no início, c cujo conhecimento é fundamen-
Na verdade, foi naquele ano que publicou, na revista Kosmos, o artigo
tal para a melhor compreensão do projeto da História.
"Sobre a formação da literatura brasileira", em que discute não somente
Na verdade, a História era a terceira síntese bem-sucedida de história
problemas de cronologia histórico-literária, como ainda propõe definições da
da literatura brasileira em nossa historiografia literária, tendo sido precedida
literatura brasileira, sobretudo em referência às suas vinculações com a por-
apenas pela obra de Ferdinand Wolf, O Brasil literário, de 1863, e, sobretudo,
tuguesa, assuntos que serão predominantes na "Introdução" à História.
Por outro lado, ainda na mesma revista, em 1908, escreveu uma série de pela História da literatura brasileira, de Sílvio Romero, de 1888.
E embora na "Introdução" à obra, o próprio José Veríssimo, depois de
quatro artigos sob a denominação geral de "Começos literários do Brasil", em
reconhecer as obras de Varnhagen e de Sílvio Romero como as principais
que se encontram - às vezes literalmente - trechos dos dois primeiros capítu-
precursoras da sua, arrole alguns autores cronologicamente anteriores àqueles
los da História ("A primitiva sociedade colonial e Primeiras manifestações
dois - Januário da Cunha Barbosa, Joaquim Norberto de Sousa, Gonçalves de
literárias - versejadores e prosistas").
Até mesmo no Jornal do Comércio, em 1912, publicou um texto, "Ca- Magalhães, Pereira da Silva, Bouterweck, Sismonde de Sismondi e Ferdinand
Denis -, a que se poderia acrescentar, pelo menos, dois nomes posteriores, o
pítulo de história literária: prosistas brasileiros do século XVIII", no qual há
do cônego Fernandes Pinheiro e o de Sotero dos Reis, nenhum deles, com a
longos trechos que, na obra de 1916, seriam fielmente transcritos, formando
exceção parcial dos fragmentos da projetada história de Joaquim Norberto e
parte do capítulo quinto ("Aspectos literários do século XVIII").
Finalmente, em 1910, 1911 e 1912 escreveu cinco ensaios para a Revista dos cursos dos dois últimos, fez rigorosamente obra pessoal de síntese históri-
co-literária.
da Academia Brasileira de Letras ("A escola mineira", "O teatro brasileiro",
Todo o início da crítica no país, que coincide com o romantismo e deixan-
"Os poetas do grupo mineiro", "Magalhães e o romantismo" e "Gregório de
do-se de lado aquilo que, no século XVIII, fora incipiente preocupa~ão crítica
Matos"), os quais vieram a constituir, na obra posterior, os capítulos VI (pela
nas atividades do movimento das academias literárias, está intimamente asso-
fusão do primeiro e do terceiro artigos), XVII, IX e IV, respectivamente, em
ciado às aspirações de identificação da nacionalidade que se acentuara depois
que as modificações são mínimas e correm, quase sempre, por conta da orga-
da independência política.
nização global da obra histórica.
Por outro lado, é preciso acentuar que os temas tratados na História, em Nesse sentido, a elaboração de uma história literária era percebida não
apenas como coroamento de obra pessoal do crítico, mas como traço
sua maioria absoluta, já haviam sido considerados pelo crítico, sobretudo nas
identificador de amadurecimento intelectual da nação.
seis séries dos Estudos de literatura brasileira.
Desse modo, no contexto geral de sua obra, a História é, de fato, um
trabalho pessoal de síntese e, por isso mesmo, como observou Orto Maria 1 cr.Olto Maria Carpeaux, "José Veríssimo: crítico da nacionalidade" em Correio Paulistano
São Paulo, 14-12-1949. "

283
282
JOÃO ALEXANDRE BARBOSA
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA

reunião e edição dos textos, biografias dos autores e localização histórica das
Referindo-se ao enorme trabalho realizado por aquelas gerações que pr~­
obras, mas ainda da tradição crítico-histórica que fundamenta o aparecimento
pararam o aparecimento da História de Sílvio Romero, em 1888: Ant~mo
posterior das histórias de Sílvio Romero e de José Veríssimo.
Candido soube realizar uma admirável síntese daqueles esforço~ de mVeS~Ig~­
E se a História do primeiro, surgida sob o impacto poderoso que provo-
ção crítico-histórica, e que serve não apenas para o caso ~spec~fi~o de SIlVIO
cara no Brasil a difusão daquilo que ele mesmo chamava de bando de idéias
Romero, como para todos os críticos, como é o caso de Jose VenssImo, forma-
novas,4 sobretudo a partir dos anos 70, isto é, os princípios do positivismo, do
dos a partir dos anos 1860 e 1870 do século XIX.
evolucionismo e do determinismo, não apenas buscava fazer a crítica de prin-
Diz ele, numa referência aos críticos românticos:
cípios românticos que informara a atividade crítico-histórica imediatamente
anterior, mas fazia da história literária a expressão de uma interpretação de
A sua longa e constante aspiração foi, com efeito, elaborar uma história literária que
exprimisse a imagem da inteligência nacional na seqüência do tempo - projeto quase largo espectro da cultura no Brasil, a de José Veríssimo já revelava o diálogo,
coletivo que apenas Sílvio Romero pôde realizar satlsfatonamente, mas para o qual sempre problemático para um homem de sua formação, em tudo semelhante à
trabalharam gerações de críticos, eruditos e professores, reunmdo textos, .edltando de Sílvio Romero, com os novos modelos de crítica, instaurados, como sempre
obras, pesquisando biografias, num esforço de meio século que tornou posslvel a sua acontece, a partir das próprias inovações literárias.
História da literatura brasileira, no decênio de 80. Desse modo, se o contexto mais amplo da História, de José Veríssimo,
Visto de hoje, esse esforço sem i-secular aparece coerente na sucessão das etapa~. inclui, por um lado, toda aquela tradição que, advindo do romantismo, é, por
Primeiro, o panorama geral, o "bosquejo", para tra~ar .rapi~ame~te ~,pass,~do hter~,­
assim dizer, superada pela crítica moderna que está na obra de Sílvio Romero,
rio' ao lado dele, a antologia dos poucos textos dlspomvels, o flonleglO ,ou parnaso .
E~ seguida, a concentração em cada autor, antes referido rapidamente no panorama: por outro lado, ele é também constituído por aquelas tendências literárias que
são as biografias literárias, reunidas em "galerias", em "pantheons"; ao I~do dlsso,~um representavam profundas modificações no paradigma positivista e evolucio-
incremento de interesse pelos textos, que se desejam mais completos; sao as edlçoes, nista, núcleo do moderno, que dominara a cena crítico-histórica desde os
reedições, acompanhadas geralmente de notas explicativas ~ informaçã~ biográfica. meados do século XIX.
Depois, a tentativa de elaborar a história, o livro documentano, constrUido sobre os Assim, por exemplo, o próprio conceito de representação, que embasara
elementos citados. toda a literatura de traço realista-naturalista, e que tão bem se ajustava às
Na primeira etapa, são os esboços de Magalhães, Norberto, Pereira da Silva; as
leituras positivistas ou evolucionistas, é posto em xeque pelas experimenta-
antologias de Januário, Pereira da Silva, Norberto-Adet, Varnhagen. Na segunda eta-
ções simbolistas com que, gostasse ou não, tinha de conviver um crítico ou um
pa, as biografias em série ou isoladas, de Pereira da Silva, Antômo JoaqUim de Melo,
Antônio Henriques Leal, Norberto; são as edições de Varnhagen, Norberto: Fernandes historiador literário atuando em finais do século XIX.
Pinheiro, Henriques Leal, etc. Na terceira, os "curso~" de Fernandes pmhe;ro e Sotero A forte herança romântica, a crise dos positivismos e evolucionismos e
dos Reis, os fragmentos da história que Norberto nao chegou a escrever. as novas tendências impressionistas da crítica, que melhor se adequavam aos
novos modos de representação, eram elementos fundamentais do novo
Se a esse excelente esquema forem acrescentados alguns daqueles his- paradigma crítico que se anunciava no contexto mais amplo de elaboração da
toriadores e críticos estrangeiros do romantismo que se preocupara.m con: a História.
literatura brasileira e sobre ela escreveram, todos antologizados por GUllh~rmIno E a leitura que faz José Veríssimo daquela herança, assim como o modo
César em seu precioso livro sobre historiadores e críticos do romantIsmo,3 pelo qual enfrenta a mencionada crise epistemológica (a dos determinismos,
tem-se uma perspectiva mais ou menos completa, não só dos. e~forços d~sen­ de modo geral) são municiados pelo conhecimento de alguns autores e obras,
volvidos no sentido de estabelecer o quadro da literatura brasileIra, atraves da sobretudo os de extração francesa, mas não só, que ajuda a melhor caracte-
rizar o contexto teórico da História, a começar pela grande admiração que

2 Antonio Candido, Formação da lzteratllra braSileira, vol. 2 (São Paulo: Martins, 1~59), p. 3.48:
4 Cf. Sílvio Romero, "Explicações indispensáveis", em Tobias Barreto, Vários escritos (Rio de
Cf. Guilhermino César, Historiadores e críticos do Romantismo 1 - A co~tnblllçao ellrope/O.
Janeiro: Edição do Estado de Sergipe, 1926), p. XXVII.
3

crítica e história lzterária (Rio de Janeiro/São Paulo: LTC/Edusp, 1978).

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284
-.
JOÃO ALEXANDRE BARBOSA
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA

ela, por exemplo, como a influência contumaz do determinismo de Taine é


nutria pelo jovem crítico português Moniz Barreto, e de quem José Veríssimo
abrandada pela leitura de Gustave Lanson ou mesmo pela lembrança de Sainte-
adotou, sobretudo, o conceito de literatura, tal como ele é expresso na "Intro-
Beuve, que ocorre no final do texto.
dução" à História.
Não obstante tais indicações de um esforço de atualização teórico-críti-
A observação está no belo e convincente estudo que escreveu como
ca, a "Introdução" revê os pressupostos fundamentais da historiografia literá-
introdução para a edição da História pela Universidade de Brasília, de 1963, o
ria brasileira, quer os defendidos por seus precursores românticos, quer os
crítico Heron de Alencar, realizando aquilo que é, até hoje, o melhor estudo de
assentados por Sílvio Romero, sobretudo aqueles referentes à periodização e à
fontes estrangeiras da História, ali elencando, além do mencionado crítico
própria definição de literatura e de literatura brasileira.
português, autores como Renan, Taine, Brunetiere, Brandes, Sainte-Beuve e
Nesse sentido, já no primeiro parágrafo, José Veríssimo retoma o tema
Scherer, sem esquecer Gustave Lanson, cuja Histoire de la littérature
da tensão entre dependência e autonomia da literatura brasileira em relação à
française, de 1894, aparece citada, pela edição de 1912, na própria "Introdu-
portuguesa, afirmando a correlação entre desenvolvimentos literário e político:
ção" à História.
Se a tais nomes de críticos em sentido estrito, forem acrescentados aqueles
A literatura que se escreve no Brasil é já a expressão de um pensamento e sentimento
escritores em sentido mais amplo que, sem exercerem a crítica sistemática,
que se não confundem mais com o português, e em forma que, apesar da comunidade
deixaram páginas importantes de reflexão sobre a literatura e a crítica, e que da língua, não é mais inteiramente portuguesa. É isto absolutamente certo desde o
foram estudados pelo próprio José Veríssimo em artigos depois reunidos em Romantismo, que foi a nossa emancipação literária, seguindo-se naturalmente à nossa
alguns de seus livros, tem-se uma medida aproximada da amplitude de sua independência política. Mas o sentimento que o promoveu e principalmente o distin-
informação teórica e que, muito naturalmente, terminou por informar as pági- gue, o espírito nativista primeiro e o nacionalista depois, esse veio formando desde as
nossas primeiras manifestações literárias, sem que a vassalagem ao pensamento e ao
nas de sua História. espírito português lograsse jamais abafá-lo. É exatamente essa persistência no tempo
É o caso, por exemplo, de autores como Tolstoi, Ruskin ou Nietzsche,
e no espaço de tal sentimento, manifestado literariamente, que dá à nossa literatura a
para ficar apenas com aqueles sobre os quais mais escreveu, que foram lidos unidade que lhe justifica a autonomia. 6
e relidos pelo crítico nas três séries de Homens e coisas estrangeiras ou no
volume Que é literatura? e outros escritos, sem desprezar naturalmente aque- A partir deste texto, duas conseqüências podem ser, desde j á, extraídas: o
les autores, até mesmo os da América Latina, de que tinha notícias através de critério de periodização defendido pelo autor e, até mesmo como decorrência,
livros, jornais e revistas, de que andava sempre bem informado, conforme se o fato de a História ter como eixo o romantismo.
5
revela pelos textos que escreveu sobre ensaístas e ficcionistas da região. No que diz respeito à primeira, a proposta de José Veríssimo é muito
Com essa indicação de fontes estrangeiras, que completam as brasileiras clara e simples e, de certo modo, responde às hesitações periodológicas por
da herança romântica e da contracorrente romeriana, está desenhado o con- ele mesmo apontadas na obra de Sílvio Romero (basta atentar para a referên-
texto mais amplo para a leitura da História da literatura brasileira. cia negativa que faz à noção de um desenvolvimento autonómico , tal como
está na História de seu predecessor):

li As duas únicas divisões que legitimamente se podem fazer no desenvolvimento da


literatura brasileira, são, pois, as mesmas da nossa história como povo: período
A obra é de grande coerência na ordenação de seus dezenove capítulos, colonial e período nacional. Entre os dois pode marcar-se um momento, um estádio
de transição, ocupado pelos poetas da plêiade mineira (1769-1795) e, se quiserem,
precedidos pela "Introdução" metodológica, já anteriormente mencionada, de
os que os seguiram até os primeiros românticos. Considerada, porém, em conjunto
importância para o estudo de nossa historiografia literária, percebendo-se por

• Cf. José Veríssimo, História da literatura brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de
I Cf. José Veríssimo, Cultura. literatura e politica na América latina, seleção e apresentação de
Assis (1908) (Primeiro milheiro. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1916), p. l.
João Alexandre Barbosa (São Paulo: Brasiliense, 1986).

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HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA
JOÃO ALEXANDRE BARBOSA

a obra desses mesmos não se diversifica por tal modo da poética portuguesa con-
Gonçalves de Magalhães Gonçalves Di J '
Manuel Antônio de Almeida Bernardo d G ~s, ~se ~e Alencar, Macedo,
temporânea, que force a invenção de uma categoria distinta para os pôr nela. No
primeiro período, o colonial, toda a divisão que não seja apenas didática ou mera-
mente cronológica, isto é, toda a divisão sistemática, parece-me arbitrária. Nenhum Laurindo Rabelo, Junqueir; Freire Cas~mi~~~:r~s, Alvares de Azevedo,
fato literário autoriza, por exemplo, a descobrir nela mais que algum levíssimo Távora, Castro Alves e mais um ou o' t c breu, Taunay, Franklin
u ro lormam o grupo ~.
indício de "desenvolvimento autonômico", insuficiente em todo caso para assentar examinado pelo historiador literário fugindo-se d d r~m~ntIc~ central
uma divisão metódica 7 náveis de autores e obras que preen~hem sem ' esse mo o, as h~~s Intermi-
as obras de história literária anteriores à ~ua. quase nenhuma anahse crítica,
No que se refere à segunda conseqüência referida, basta atentar para o
fato de que oito dos dezenove capítulos da obra são dedicados ao estudo do cham~ ~e;:~:;:c;~~::i:tl~ é adotado para os capítulos cm que trata do que
romantismo em que, pela certeira classificação de duas gerações (capítulos
Sendo assim, por exemplo, os séculos XVI e XVI
VIII, IX , XII e XIII), precedidas por um capítulo sobre "Os predecessores do aos capítulos II ("P'" I, que correspondem
nmelras mamfestaçõe l't ,. .
romantismo" (capítulo VII) e seguidas por um outro sobre "Os últimos român- sistas") III ("O b'" " S I eranas, verseJadores e pro-
ticos" (capítulo XIV), abre dois capítulos intermediários muito importantes, , grupo atano) e IV ( Gregório de Matos") são red 'd
sete autores e uma obra de a t . . ' UZI os a
u ona Incerta em seu te .B "
:into, José de Anchieta, Gabriel Soares de Souza, Fern~~oCar~~: ~~I~elra
quer sobre o que chama de "Os próceres do romantismo" (capítulo X), quer
sobre "Gonçalves Dias e o grupo maranhense" (capítulo XI), estabelecendo,
a.s grandez~s.do Brasil, frei Vicente do Salvador, Manuel Botelho ~a oogl'o
dessa maneira, um quadro romântico de autores e obras da literatura brasileira velra e Gregono de Matos. e I-
que será dominante na historiografia literária, pelo menos, até meio século
Do mesmo modo, antes do que cha a "A l~' d . . "
depois. capítulo VI, isto é Cláudio Ma I d mC p ela ~ mIneIra , assunto do
Assim, enquanto no capítulo X cria o espaço necessário para discutir AI .' . nue a osta, Tomas Antônio Gonz
, varenga PeIxoto, SIlva Alvarenga, Basílio da Gama e Santa Rita D _ aga,
alguns autores decisivos na formação do cânone romântico (e são estudados
seculo XVIII são rigorosamente estudados no capítulo V . urao, no
seis nomes: Porto Alegre, Teixeira e Souza, Pereira da Silva, Varnhagen, Joa- res: frei Manuel de Santa Maria Ita a . ' . ' apenas CInCO auto-
quim Norberto e Joaquim Manuel de Macedo), no capítulo XI, além de dar o Mati~ Aires e Domingos Caldas :a:~~:~Rocha PIta, Nuno Marques Pereira,
destaque merecido a Gonçalves Dias, sabe valorizar a importância isolada do
E claro que esse sentido de ccono~ia na escolh d
grupo que constituiu uma verdadeira ilustração brasileira no século XIX, realçando o valor didático cm lar _ . , a e autores e obras,
elencando nomes como Odorico Mendes, Antônio Henriques Leal, Sotero dos noção d l't '. ga acepçao, da Hlstona, decorre da própria
Reis e João Francisco Lisboa, sem deixar de mencionar, com destaque, o poe- ção". AI~ e~t~~~~:~ estabelecIda pelo autor em páginas famosas da "Introdu-
ta Joaquim Gomes de Souza, cuja atividade como tradutor de poesia em várias
línguas era exaltada por seus contemporâneos (e José Veríssimo anota a exis- Literatura é arte literária. Somente o escrito c . . .
tência de uma antologia de poemas líricos das principais línguas cultas isto é com os artificios de .
,
_ d
mvençao e e compos -
om o PropOSltO ou a mtuição dessa arte,
.
literatura A . . . lçao que a constItuem é, a meu ver
de sua autoria), embora tenha sido esquecida pelos pósteros. . SSlm pensando, qUlça erradamente, pois não . . .'
maticamente excluo da h'st' . d I' .. me presumo de mfahvel, slste-
Esses capítulos escritos sobre o romantismo revelam um traço importan- lona a Iteratura brasIleIra t
considerar literatura Esta é neste livro . • . quan o a esta luz se não deva
te na caracterização da História e que foi fundamental para a fixação do vernácula noção clás~ica Nem d' dsmommo de ~oas ou belas letras, conforme a
cânone de nossa literatura: a economia com que trata autores e obras, libertan- literatura compreende tu'do se me a a pseudo nOVIdade germânica que no vocábulo
o que se escreve num p . . 1"
do-se da enumeração exaustiva, caótica e, muitas vezes, sem qualquer critério romance e direito público t t ' . aIS, poeSIa Irlca e economia política,
, ca ro e artIgos de Jornal e até - .
crítico, que havia sido dominante em seus antecessores, aí incluído, é claro, e parlamentares cantigas e hi t· . l o q u e se nao escreve, dIscursos
, s onas popu ares, enfim autores e obras de todo o gênero 8
principalmente, Sílvio Romero.

7 Ibid., p. 5. 8 Ibid., pp. 13-14.

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JOÃO ALEXANDRE BARBOSA
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA

Não existe literatura de que apenas há notícia nos repertórios bibliográficos ou quejandos
Em seguida transcrevendo um longo trecho de Gustave Lanson'de, sem livros de crudição e consulta. Uma literatura, e às modernas de após a imprensa me
dúvida, inspirando-se em algumas reflexões de Moniz ~arreto',defen, e AU~: refiro, só existe pelas obras que vivem, pelo livro lido, de valor efetivo e permanente
função humanizadora da literatura, com a qual, logo adiante, da conslstenc e não momentâneo e contingentell

às suas escolhas de autores e obr,as, "" 'nte'


O trecho de Lanson, transcnto por Jose Vensslmo, e o segm ' vem o seu conceito daquilo que entende por história da literatura brasileira:
, t I t I conjunto ao exercício de
[ ] a literatura destina-se a nos causar um prazer m e ec ua , .. . A história da literatura brasileira é, no meu conceito, a história do que da nossa
~~ssas faculdades intelectuais, e do qual lucrem estas mais força, ductlhdade e nq~e- atividade literária sobrevive na nossa memória coletiva de nação. Como não cabem
' . II'teratura um instrumento de cultura interior; talo seu verdadeiro oficIO.
za E assim a 'd " F m que nela os nomes que não lograram viver além do seu tempo, também não cabem nomes
p' ui a superior excelência de habituar-nos a tomar gosto pelas I elas. az co que por mais ilustres que regionalmente sejam não conseguiram, ultrapassando as
oss prego do nosso pensamento, simultaneamente um prazer, um
encontremos num em b I 'rito raias das suas províncias, fazerem-se nacionais. Este conceito presidiu à redação
~ Descansa das tarefas profissionais e so re eva o espl
repouso, uma renovaçao. . I "h iza" os desta história, embora com a largueza que as condições peculiares à nossa evolução
aos conhecimentos, aos interesses, aos preconceitos de oficIO: e a uma~ . literária impunham. Ainda nela entram muitos nomes que podiam sem inconveniente
. .sam hoje os espíritos de tempera filosofica, os
especialistas. MaiS do que nunca precI , . ' . ser omitidos, pois de fato bem pouco ou quase nada representam. Porém uma seleção
estudos técnicos de filosofia, porém, nem a todos são acesSlvelS. E. a hter~tur~, no mais rigorosa é trabalho para o futuroY
mais nobre sentido do termo, uma vulgarização da filosofia: mediante e a sao as
nossas sociedades atravessadas por todas as grandes correntes filosó~cas determmantes
do ro resso ou ao menos das mudanças sociais; é ela quem mantem nas alma~, sem
Daí, talvez, se explique em parte o fato de que, em termos de poesia, a
iss: d;primidas pela necessidade de viver e afogadas nas proc~pações matena;, a História não inclua os simbolistas, embora aos dois principais simbolistas bra-
ânsia das altas questões que dominam a vida e lhe dão um sentido ou um al,vo .. ara sileiros, conforme o cânone estabelecido posteriormente quer por Ronald de
muitos dos nossOS contemporâneos sumiu-se-Ihes a religião, anda ~onge a ClenCla, da Carvalho, quer por Nestor Vítor, ou mesmo anteriormente por Araripe Júnior,
literatura somente lhes advém os estímulos que os arrancam ao egOls mo estreito ou ao isto é, Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, tenha José Veríssimo dedica-
mister embrutecedor. 9 do ensaios isolados, de grande incompreensão é verdade, coletados nos Estu-
Desse modo, embora reconhecendo que alguns a~tores ~ão a:enderia~
dos de literatura brasileira.
Na verdade, no que se re.fere à poesia, a História termina com os
rigorosamente à sua concepção de literatura e que, por ISSO, nao tena~ guan-
da em sua História, alguns, no entanto, comparece~ por terem exerCido uma
parnasianos, que são matéria, juntamente com os prosadores naturalistas, do
capítulo XVI ("O naturalismo e o parnasianismo"), sobre os quais o crítico
função humanizadora e histórica na vida do país. DIZ ele:
encontrava o que dizer, sem se desfazer de sua herança determinista.
Muitos dos escritores brasileiros, tanto do período colonial como do nacionflal, ,co~- No capítulo imediatamente anterior, o Xv, intitulado, por influência da
't " tiveram todaVia uma m uenCla crítica hispano-americana como ele mesmo esclarece em nota de rodapé,13 de
uanto sem qualificações propriamente II eranas,
qual uer em a nossa cultura, a fomentaram ou de algum modo a revelam. Bem .~~re­ "O modernismo", é dessa herança que se trata:
q q . d nossa literatura Erro fora não os admitisse sequer como subsldlanos,
ceram pOIS a · . nside
a história dessa literatura. É também principalmente como tais que merecem cODiálo~
o movimento de idéias que antes de acabada a primeira metade do século XIX se
radas obras, aliás por outros títulos notáveis, como a de Gabnel Soares ou os
começara a operar na Europa com o positivismo comtista, o transformismo darwinista,
10
gos das grandezas do Brasil o evolucionismo spenceriano, o intelectualismo de Taine e Renan e quejandas corren-
tes de pensamento, que, influindo na literatura, deviam pôr termo ao domínio exclu-
E depois de afirmar a importância de um público ledor que possa teste-
munhar a existência real da literatura,
11 Ibid., p. 16.
II Ibid., p. 18.
9 Ibid., pp. 14-15. " Ibid., nota 1, p. 11.
10 Ibid., p. IS.

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JOÃO ALEXANDRE BARBOSA
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA

sivo do Romantismo, só se entrou a sentir no Brasil, pelo menos, vinte anos depois No primeiro caso, aquele do teatro e da literatura dramática, embora
de verificada a sua influência ali
l4 centrando-se no que se produziu dentro do romantismo, casos de Magalhães,
José de Alencar, Macedo e sabendo destacar a dramaturgia de Martins Pena,
E como sempre, não são muitos os autores e obras arrolados por José José Veríssimo não deixa de anotar as tentativas de renovação do teatro, a seu
Veríssi~o como incentivadores desse movimento de renovação intelectual que ver frustradas, de Artur Azevedo, chegando, portanto, bem perto do momento
surge a partir dos anos 1870 no Brasil. . ~. . em que elaborava a própria História.
Tobias Barreto, na filosofia, Baptista Caetano, na CIenCIa, CapIstrano de Finalmente, quanto ao capítulo XVIII, o seu grande interesse está em
Abreu na história, Araripe Júnior, na crítica literária, o grupo cearense forma- assinalar a existência de alguns nomes, sobretudo de publicistas, desde
do pel~s dois últimos e mais Rocha Lima, ~omingos Ol~mpio, Tom~s ~om~e~, Hipólito José da Costa ou Evaristo da Veiga, passando por Lopes Gama, Abreu
e ainda o paulista Luís Pereira Barreto, Rm Barbosa e, ~ clar?, 0_ pro~no. SllvlO e Lima, Tavares Bastos ou João Francisco Lisboa e chegando a alguns de
Romero, teriam, para ele, constituído o núcleo forte de madIaçao pnncIpal do seus contemporâneos como Rui Barbosa, Joaquim Nabuco ou Eduardo Prado,
nosso "modernismo", cuja feição propriamente criativa, através da pr?sa natu- que, de uma ou outra maneira, passaram a constituir a tradição brasileira de
ralista e da poesia parnasiana, é tema do capítulo seguinte e já menclOna~o .. um certo jornalismo cultural e político em que é possível auscultar as próprias
No que se refere à primeira, depois de acentuar. o caráter de tendencIa idas e vindas, sucessos e frustrações, de um projeto de pensamento nacional.
geral do naturalismo na qualidade de oposição ao romantismo, .observando como, (Registre-se, entre parênteses, e com estranheza, que, embora tivesse escrito
no Brasil, ele foi, sobretudo, de origem francesa, apenas se vI~lumbr,and~ al.gu- o primeiro artigo de fôlego sobre Os sertões, de Euclides da Cunha, publicado
ma coisa daquele de origem inglesa na obra de Machado deAssIs, Jose VensslU:0 em dezembro de 1902 no Correio da Manhã, não incluiu o autor neste capí-
fixa o quadro brasileiro de prosadores naturalistas em tomo de apenas tres tulo da História e mesmo em nenhum outro momento o seu nome é menciona-
autores: Aluísio Azevedo, Júlio Ribeiro e Raul Pompéia. . _ do pelo crítico.)
Quanto à poesia parnasiana, denominação, aliás, aceita sob suspeIçao E esse projeto, articulando-se à concepção de literatura tal como está
pelo crítico, teria nos poemas publicados nos anos 18 70 p~r ?o~çalves. Crespo, expressa na "Introdução", é que dá o tom da História, mostrando de que
e Miniaturas os primeiros indícios de sua eXIstencIa na hteratura modo José Veríssimo, ao mesmo tempo que buscava se adequar aos novos
no vo 1u m , . L' .
brasileira, a serem seguidos, sobretudo, por obras de Machado de ASSIS, UCIO paradigmas críticos e historiográficos, num esforço de superação das amarras
de Mendonça e Luís Guimarães Júnior, entre os decênios de 1870 ~ 1880, representadas pela sua formação modernista, segundo a sua própria
afirmando-se definitivamente, nesta última década, com as obras de Raimundo conceituação, terminava por ser um homem de sua geração ao estabelecer as
Correia, Alberto de Oliveira, Augusto de Lima e, sobretudo, em 1888, com a bases de uma evolução literária cuja destinação e plenitude se daria com a
publicação das Poesias de Olavo Bilac., _ .' obra de Machado de Assis.
Apenas três nomes são acrescentados a essa relaç~o de poetas. Lms E esta é percebida por ele, no capítulo XIX, nos termos daquela
Delfino, Teófilo Dias e Martins Júnior, realizando-se, maIS uma vez, a~~ele humanização com que havia pensado o conceito de literatura na companhia
sentido para a escolha estrita e econômica de autores e obras que, como Ja se de um Gustave Lanson e um Moniz Barreto, ou seja, a obra machadiana, que
viu, caracteriza a História. , . estava acabada, com a publicação do Memorial de Aires em 1908, num mo-
Economia que não impede José Veríssimo de, antes de chegar ao ultImo mento em que provavelmente José Veríssimo já pensava na elaboração de sua
capítulo da obra, aquele dedicado a Machad? .de Assis, tratar do, t.eatro e d,a História, viria completar aquela tarefa, por ele anotada como uma das nm-
literatura dramática (capítulo XVII) e de pubhcIstas, oradores e cntlcos (capI- ções da literatura, de aprimoramento da própria idéia de nacionalidade que se
tulo XVIII). iniciara com o romantismo.
Ou, para dizer de outra maneira: o herdeiro do movimento romântico, que
era Machado de Assis, realizara de modo muito pessoal, seja na poesia, seja no
romance, seja mesmo na crítica literária, o acabamento final daquele movi-
14 Ibid., p. 341.

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292
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA
JOÃO ALEXANDRE BARBOSA

mento, transformando-se, assim, no mais completo representante de uma lite-


c?nciliar, para o historiador l~tcrário, com os arrojos barrocos de sua poesia,
ratura verdadeiramente brasileira ou, para usar os termos do crítico, "a mais
VIstoS se~prc, p~r ele, como SImples c puras imitações de autores portugueses
alta expressão de nosso gênio literário, a mais eminente figura da nossa litera- e espanhOls. DaI a afirmação:
tura".IS
Se o destaque concedido a Machado de Assis, através de um dos dois Enganaram-se redondamente os que pretenderam fazer dele ou quiseram ver nele um
capítulos isolados da História (o outro é o IV com o nome de "Gregório de precurs.or da noss~ emancipação literária, cronologicamente o primeiro brasileiro da
Matos"), teve e tem a confirmação da posteridade, é preciso não ocultar o fato nossa ht~r~tura. E de todo impertinente supor-lhe filosofias e intenções morais ou
de que as razões sublinhadas pelo historiador literário para que isso aconteces- sociais. E ~ll~plesmente um nervoso, quiçá um nevrótico, um impulsivo, um espírito
se, sobretudo aquela idéia já assinalada de plenitude de uma evolução, fazem de c~ntradlçao e denegação, um malcriado rabujento e malédico. Mas estes mesmos
defeItos, se lhe não permitem figurar com a fisionomia com que o fantasiaram, servi-
do criador de Brás Cubas e de Capitu um escritor muito menos tenso e proble-
ram grandemente à sua feição literária e lh'a relevaram, embora parcialmente, sobre
mático com relação à própria invenção literária do que, de fato, ele é e que,
t~das as do seu tempo. ~m todo caso, mereceria Gregório de Matos aquela aprecia-
sem dúvida, foi responsável por aquela parte de sua fortuna crítica que se ç~o se houvera apenas Sido o poeta satírico de sua obra e da tradição, o díscolo que
caracteriza antes pela consagração do que pela análise propriamente literária. so ele entre os seus conten:porâneos malsinou do regime colonial e dos vícios públi-
De qualquer modo, era uma maneira coerente e harmoniosa de encerrar ~o~ e parÍlculare~ que o pIOravam, e que, num impulso de despeito pessoal, foi o
a História, ainda que, para isso, pagasse o preço de deixar evidenciado o umco ~ senÍlr aqUIlo que deVia, volvidos dois séculos, ser o gérmen do pensamento da
noss,a mdependência [ ... ] E mais, se a esse feitio pessoal do seu estro juntasse traços
impasse em que existia o crítico, por assim dizer, dilacerado entre a sua forma-
hteranos ~ue o diferençassem de qualquer modo da poesia portuguesa contemporâ-
ção naturalista, responsável pelo critério de nacionalidade no julgamento das
n~~. Mas IStO Justamente não acontecia. O sátiro era bifronte, e o poeta, ainda na
obras, e os novos paradigmas de leitura mais atentos para as formalizações saÍl~a~ seguia sem discrepância apreciável a modo poética ali em voga sem nenhuma
que, desde os fins do século XIX e inícios do XX, vinham se afirmando como especle de ongmahdade, senão a de ser aqui o único que ralhava do meio. 17
dominantes na crítica e na historiografia literária.
De fato, ao dedicar o último capítulo da História a Machado de Assis, Ou, traduzindo, aquela feição documental, afirmada como valor absoluto
obedecendo às razões referidas, José Veríssimo deixava claro o sentido ao mesn;o tempo que singulariza a obra de Gregório de Matos, joga-a para for~
axiológico que movia a composição da obra - a obra machadiana era singula- dos p~rametr~s de uma poesia brasileira original assumidos pelo historiador.
rizada pela realização daqueles princípios de nacionalização da literatura que Ou, ~md~ maIS, .ser o gérmen do pensamento da nossa independência signi-
ele fixara a partir do romantismo e, por outra parte, ratificava o esquema ~cana nao ter s~do o poeta barroco, com todas as contradições e tensões da
evolucionista que dominara a sua formação de crítico. epoca" que ele fOI, mas tão-somente o crítico de costumes da sociedade colonial.
A partir de uma perspectiva dessa ordem, lendo-se a História depois de . E, .no fundo, optar pelo que apenas diz a poesia, deixando-se de lado toda
ter lido o seu último capítulo, é possível compreender, pelo menos, dois proble- a mtensI?ade daquelas .contradições e tensões responsáveis pela composição
mas centrais que nela existem: a da leitura apequenada e aparentemente mo- que preCIsamente permIte o que ela diz.
ralista que faz de Gregório de Matos, quando, na verdade, ela mais decorre da A mesma opção é responsável pelo desacerto com que leu os simbolis-
afirmação, várias vezes por ele repetida, da sujeição do poeta aos modelos tas , e nao
- so'C ruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, como está nos Estu-
intemacionalizantes do barroco, e da completa incompreensão e, como decor- dos de liter~tura brasileira, mas o movimento simbolista em geral e que se
rência, da ausência na História, dos poetas simbolistas. re:el~ em dIversas páginas de seus escritos, fazendo com que os excluísse da
No primeiro caso, aquilo que lhe parece ter valor na obra de Gregório de Historia.
Matos, isto é, "a feição documental da sociedade de seu tempo", 16 não se pode Mais uma vez na companhia de Gustave Lanson, quando este recusava
MaU ' " 1"
arme por Imnte IgIvel, tal como está expresso no ensaio "Stephane
IIIbid., p. 415.
" Ibid., p. 102. 17 Ibid., p. 97.

294
295
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA JOÃO ALEXANDRE l3ARl30SA

Mallarmé", em que procura refutar a famosa frase do poeta de que a poesia Sendo assim, se, com a sua História, José Veríssimo, por um lado,
se faz com palavras e não com idéias, encerrava toda aquela seqüência de esforços oitocentistas em pró de uma
história literária brasileira, desde os primeiros indícios românticos até a con-
[ ... ] que se entenda que a obra literária, fazendo-se com palavras, faz-se eom idéias,
tracorrente de Sílvio Romero, por outro, de uma ou outra maneira, até mes-
que, menos que qualquer outra, a obra expressiva do ideal pode renunciar à idéia, que
a idéia do infinito não se dá embaralhando idéiasfinitas, e que, por fim, entre uma idéia
mo pelas dificuldades em que se debatia, iniciava a abertura para uma nova
clara e uma idéia confusa, é a idéia clara que, mostrando mais, contém mais, e que é o historiografia que somente quase meio século depois, nos anos 50 do século
grau superior da idéia l8 XX, encontraria a sua real continuidade,21

José Veríssimo, do mesmo modo, faz prevalecer os valores de represen-


tação sobre aqueles da construção, tornando inteligibilidade sinônimo de clare-
za, assumindo até mesmo as posições conservadoras e reacionárias de um
Max Nordau, por ele estudadas e, em grande parte, compartilhadas no capítulo
a ele dedicado na segunda série de "Homens e coisas estrangeiras".19
Um ano depois de datar a "Introdução" à História, isto é, em setembro de
1913, publicara um artigo em O Imparcial, em que, comentando o livro I paeti
futuristi, organizado por Marinetti, levantava o mesmo tipo de suspeita que ha-
via utilizado na consideração dos simbolistas e esta se resume em não aceitar a
literatura senão como representação da realidade, fazendo ressurgir a sua for-
mação teórica naturalista de maneira cabal, a ponto de terminar o artigo citando,
mais uma vez, ao indigitado Nordau: "Estamos diante de um fenômeno daquela
degenerescência já estudada por Nordau, ou de uma formidável facécia?".20
Desse modo, se às vezes fazia rachar o arcabouço da tradição determinista
em que se formara como crítico, levando para a História senão novos méto-
dos de crítica ao menos a desconfiança para com os velhos, ao chegar mais
perto de sua contemporaneidade ocorria, por assim dizer, uma espécie de re-
gressão teórica que, embora lhe desse uma segurança mais confortável na
leitura histórica, limitava-lhe o alcance da leitura propriamente literária.
Mesmo sem querer, José Veríssimo apontava para uma questão de base,
ou seja, a das relações entre as duas leituras, suas convergências, suas auto-
nomias, a identificação de seus discursos.

I' cr. Gustave Lanson, "Stephane MaJlarmé", em Essais de méthode de critique et d 'histoire
littéraire, Rassemblés et présentés par Henri Peyre (Paris: Hachette, 1965), p. 475. [Grifos do
autor.)
19 cr José Veríssimo, Os escritores ji'anceses à outra lu::, em Homens e cOIsas estrangeiras. Segun-
da série (1901-1902) (Rio de Janeiro: Garnier, 1905), pp. 323-338.
20 Cf. "Mais uma extravagância literária", em José Veríssimo, Teoria, crítica e história lrterária,
seleção e apresentação de João Alexandre l3arbosa (Rio de Janeiro/São Paulo: LTC/Edusp, 1978), li P
enso, sobretudo, na obra de Antonio Candido, Formação da lzteratura brasileIra, publicada em
pp. 37-40. 1959.

296 297
OLIVEIRA VIANA

Populações meridionais
do Brasil

Gildo Marçal Brandão


Os liberais brasileiros, diz Oliveira Viana cm Populações meridionais do
Brasi I, jamais entenderam que é impossível c contraproducente reproduzir aqui
o parlamentarismo inglês, o liberalismo democrático à francesa, ou o federalis-
mo e a descentralização republicana ao estilo americano. Jamais perceberam
que as instituições políticas engendradas por essa história de quatro séculos nos
fazem distintos dos europeus e anglo-saxões. E que, por mais bcm-intenciona-
das e idealistas que sejam, todas as tentativas de transplantar aquelas institui-
ções para um meio que lhes é decididamente hostil, apenas reforçaram nossas
características mais negativas - a anarquia branca, o predomínio das oligarqui-
as, o risco da fragmentação do país. Se quisermos construir uma nação sobera-
na, capaz de preservar sua identidade em confronto com os povos práticos e
objetivos que estão se assenhoreando do globo, é preciso mudar radicalmente
de métodos. É preciso começar conhecendo-nos a nós mesmos, o povo como
realmente é - sua formação histórica e social, suas instituições políticas, sua
atitude perante o Estado. É preciso lutar para dar consistência, unidade e uma
consciência comum a essa vasta massa social informe e ganglionar que ele é
hoje. E é preciso fazê-lo da única maneira possível nas condições brasileiras:
tendo a "coragem infinita" de "contravir ostensivamente às idéias de liberdade"
e de construir um poderoso Estado centralizado, "capaz de impor-se a todo o
país pelo prestígio fascinante de uma grande missão nacional".
É para fundamentar esse projeto político que Oliveira Viana se lança a
um vasto programa de pesquisa cujo primeiro fruto foi justamente Populações
meridionais do Brasil. Escrito entre 1916 e 1918 e publicado em 1920, quan-
do o autor já andava pelos seus 37 anos e era ainda um desconhecido, o primei-
ro volume desse ensaio fez a sua fortuna literária, transformando-o numa
unanimidade nacional da qual só destoava à época a crítica ferina de Astrojildo
Pereira.! Recebido com entusiasmo por intelectuais e políticos de quase todo o
quadrante político, a estréia do intelectual fluminense colocou-o na linha de
frente da emergente crítica da experiência republicana. A série de publicações
subseqüentes - O idealismo da Constituição (1920), Pequenos estudos de
psicologia social (1921), Evolução do povo brasileiro (1923) e O ocaso do
Império (1923) - consolidaria sua fama, a ponto de Capistrano de Abreu dizer,
com alguma ironia, que o nosso autor "grassava no final da década de 20".:

I o texto de 1929, "Sociologia ou apologética?" só seria publicado em livro em 1944; cf. Astrojildo
Pereira, Interpretações (Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1944).
2 Cf. José Murilo de Carvalho, "A utopia de Oliveira Viana", em Elide Rugai Bastos e João Quartim
de Moraes (orgs.), O pensamento de Oliveira Viana (Campinas: Unicamp, 1993), p. 13.

301
ft~ •
POPULAÇÕES MERIDIONAIS DO BRASIL GILDO MARÇAL BRANDÃO

Dedicado ao estudo dos paulistas, fluminenses e mineiros, o livro con- o LIVRO, SEUS OBJETIVOS
trastava com a indigência da ciência social da época e antecipava o "sopro
de radicalismo intelectual e análise social que eclodiu depois da Revolução Populações meridionais do Brasil é um livro composto por dois volu-
de 1930 e não foi, apesar de tudo, abafado pelo Estado Novo".3 O seu pé-de- mes, um dedicado às "populações rurais do centro-sul (paulistas - fluminenses
chumbo seria, como se sabe, o extenso uso que fazia de teorias e argumen- - mineiros)" e outro ao "campeador rio-grandense".4 O primeiro é segura-
tos racistas para avaliar o papel da mestiçagem e explicar a desigualdade mente o texto mais conhecido de Oliveira Viana, mais até do que o tardio e
social e política brasileira. Aspecto que lhe atraiu a artilharia de Sérgio Buarque mais bem realizado Instituições políticas brasileiras (1949), que hoje deve
de Holanda, Nelson Werneck Sodré, Dante Moreira Leite, José Honório ser mais lido nos meios acadêmicos. Publicado originariamente por Monteiro
Rodrigues, Vanilda Paiva e muitos outros, cada um a seu modo, batendo Lobato, com quem havia colaborado na Revista do Brasil e que ficara im-
forte na concepção "arianizante" e psicologizante da cultura brasileira espo- pressionado com a audácia e o vigor do ensaio, e reeditado em 1922, 1933,
sada pelo autor, desqualificando os conhecimentos geográficos e historio- 1938, 1952, 1987 e 2000, era parte de um estudo maior e inacabado, voltado
gráficos sobre os quais se assentava seu edifício teórico, horrorizando-se para elucidar as instituições e a psicologia política das populações rurais do
com sua "apologia" do que então se chamava de "latifúndio feudal" e protes- norte, do centro-sul e do extremo sul do país.
tando contra a crítica da democracia política que precedia sua defesa de um O segundo volume só veio à luz em 1952, depois da morte do autor (1951)
estado forte e autoritário. e num contexto ideológico e cultural bastante distinto. Enquanto aquele foi
Independentemente do valor dessa linhagem, hoje francamente escrito numa época em que as ciências sociais brasileiras engatinhavam e a
minoritária, pode-se dizer que ela concedeu mais atenção à sociologia do que à crítica política renovadora executava, pela direita e pela esquerda, um balanço
ciência política de Oliveira Viana e apenas precariamente enfrentou os proble- implacável das instituições liberais da República Velha, o ensaio dedicado aos
mas de organização e direção da sociedade e do Estado que sua reflexão gaúchos apareceu num momento em que o comprometimento das teorias ra-
pretendia resolver. Ora, são esses que, jogadas no lixo as velharias racistas, cistas com as experiências nazistas, a decadência e queda do Estado Novo, a
preservam o interesse pelo texto; fazem com que, com o distanciamento que o naturalização do modernismo e a existência de construções teóricas
tempo permite, Populações meridionais do Brasil possa figurar numa estan- historiograficamente mais sólidas, como as de Caio Prado Júnior e Gilberto
te selecionada ao lado de Casa-grande & senzala, de Gilberto Freire, Raízes Freire, lançavam sombra sobre o conjunto do pensamento de Oliveira Viana.
do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e Formação do Brasil contempo- O outro estudo, que teria como objeto as Populações setentrionais do
râneo, de Caio Prado Júnior, como um dos textos fundacionais do que se Brasil- o sertanejo nordestino e sua expansão pela hiléia amazônica -, ja-
convencionou chamar de "pensamento político" ou "pensamento social" brasi- mais chegou a ser escrito, provavelmente porque o autor conhecia pouco
leiro. E chega até a ser ridículo o esforço recente para tapar o sol com a aquela região e pelo investimento intelectual que significaria pesquisá-la.
peneira e minimizar o fato de que a obra é "cheia de preconceitos ideológicos" Trata-se, como se vê, de um projeto ambicioso, esse de estudar "essas
e de "uma vontade excessiva de adaptar o real a desígnios convencionais", obscuras gentes do nosso interior", que teriam feito o Brasil e sido, não obstante,
para usar os termos de Antonio Candido, cabe reconhecer que tanto o retrato
do Brasil como as teses políticas que emergem de suas páginas põem o dedo
em algumas feridas e constituem um desafio à teoria e à prática da construção • De 1952 em diante as edições contam com os dois volumes. A que vamos utilizar é a da José
da democracia no país. Olympio. O primeiro livro tem 444 páginas e o segundo 368. A edição de 1973/1974 tem
introdução de Marcos Almir Madeira e foi publicada pela Paz e Terra. A da Itatiaia/Edusp, de
1987, é apresentada por Antonio Paim e, a mais recente, da Aguilar, por José Murilo de Carva-
lho. Dados biográficos do autor podem ser obtidos na apresentação de Maria Hermínia Tavares
de Almeida a Instituições políticas brasileiras, em Lourenço Dantas Mota (org.), Introdução ao
Brasil. Um banquete no trópico (2 1 ed. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000), p. 313. O
] Cf. "Prefácio" de Antonio Candido a Sérgio Buarque de Holanda, Races do Brasil (16 1 ed. Rio de melhor conjunto de trabalhos sobre Oliveira Viana é o organizado por Elide Rugai Bastos e João
Janeiro: José Olympio, 1983), p. XI. Quartim de Moraes, já citado.

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GILDO MARÇAL BRANDÃO
POPULAÇÕES MERIDIONAIS DO BRASIL

DIFICULDADES DE LEITURA
desprezadas pelo que chamava de "daltonismo" .do~ i~tclectuai~, políticos e
. l' tas cUJo a "fascinação magnética" pelo artificIalIsmo da VIda urbana e Essa simbiose de um estudo de longo fôlego da formação histórica nacio-
Jorna IS , ' I
pelos modelos políticos estrangeiros levara-os a dar ~s c.ostas p.ar~ o pazs.rea . nal com um projeto de salvação do Brasil torna sua leitura fascinante, mas
Ao contrário disso, Oliveira Viana assumia como pnnclpal obJettvo deslIndar fácil apenas na aparência. A complicação cresce quando se toma os dois volu-
nossa singularidade, isto é, mes conjuntamente, tanto porque são desiguais os graus de acabamento for-
mal e expositivo de cada um, como também porque algumas das suas avaliações
estabelecer a caracterização social do nosso povo, tão aproximada da realidade. qu~nto históricas sobre os efeitos políticos da psicologia dos gaúchos e dos matutos
, I de modo a ressaltar quanto somos distintos dos outros povos, pnnclpal-
posslve , C -
não são muito compatíveis entre si.
mente dos grandes povos europeus, pela história, pela estrutura, pela ormaçao par- A própria construção de Populações meridionais, mais histórica e me-
ticular e original,l nos sistemática do que, por exemplo, Instituições políticas brasileiras, difi-
culta a síntese e obriga o leitor a aeompanhar parte por parte, capítulo por
Tal intuito não é, claro está, puramente teórico. Antes de tudo, ele insistia capítulo, para poder apanhar as suas teses e as passagens principais entre
em que não estava fazendo ufanismo sobre sua gente, m~~ r~velando fal~as, elas, nem sempre evidentes. Sua concepção da história, além disso, supõe
acent uando de feitos
,
desfazendo ilusões e mostrando defictenclas da orgamza-
,,' d grandes continuidades e grande estabilidade nos tipos sociais nascidos da
ção social e política. Lamentava profundamente que o s.enttmento e nossas interação com o mundo rural, autorizando-lhe, aparentemente, anacronismos.
realidades, tão sólido e seguro nos velhos capitães-generaIs, des~~areceu, com Talvez por isso mesmo seu estilo de argumentação seja reiterativo, seus te-
efeito, das nossas classes dirigentes: há um século vivemo~ pohtt~~me~t~ e~ mas por vezes se atropelam e a articulação interna do texto admite altos e
" O que lhe interessa é com base nesse conhecImento reahsttco baixos, idas e vindas que uma arquitetura mais rigorosa recusaria.
I
peno sonho . ' . . l' .
e "objetivo", formular o projeto de um novo Estado e u~a nova dl~etnz pO,~ttca É bem verdade que esses defeitos de execução afetam mais o segundo
capaz de criar uma nação solidária, retomando a obra I~te~romplda dos re~­ volume, no qual a seqüência entre os capítulos é precária e cujas matérias
cionários audazes" que salvaram o Império. Por sua propna natureza, acredI- estão mais ajuntadas do que costuradas, como de resto admite o próprio autor.
tava uma tal diretriz idealista teria que decorrer orga~icamente daquele Texto elaborado ao longo dos anos, não satisfez Oliveira Viana, que gostaria
diag~óstico, escapando da cópia acrítica dos prestigiosos e madequados mode- de ter escrito uma introdução situando a história das populações do extremo
los políticos de além-mar. . sul no contexto platino, única região em que se entrechocavam as duas cultu-
Oliveira Viana cedo percebeu que nada disso poderia ser reahzad~ sem ras européias - a lusitana e a espanhola - para aqui transplantadas. Por outra
que jogasse fora o método com o qual as instituições políticas eran;,ha,blt~al,~ parte, mesmo o de 1920 ganharia se fosse enxugado. Apesar disso, ele é litera-
mente tratadas em seu tempo - aquele que chamou mais tarde .de classlco riamente muito superior à escrita pré-modernista e conserva, intacto, o freseor
ou "dialético", praticado pelos intelectuais juridicistas, especIalmente pelo dajuventude. Sua beleza, a "novidade" da "metodologia sociológica" que apre-
maior deles, Rui Barbosa. E sem que inventasse um novo, pelo qual os pr~b!e­ senta e a clareza com que defende suas teses seguram a exposição e assegu-
mas do Estado fossem tratados e resolvidos levando em conta as. c?ndlçoes raram o êxito do livro. De qualquer maneira, o brilho literário que Populações
culturais do povo, especialmente a experiência pouco agrega~~ra ~Ivld~ nes~a meridionais exibe, fascina e dificulta a separação entre as notáveis intuições
história de quatro séculos. O resultado perseguido por essa ClenCIa socIal na? "teóricas" sobre a natureza da sociedade política brasileira que o texto contém
é a formulação de uma nova teoria do Estado nem me.sm? de ~m novo conceI- e o tratamento cientificamente frágil e francamente imaginoso de suas hipóte-
ses "empíricas" e historiográficas.
to de Estado - que a rigor não existem na obra de OlIveIra VIana -, m~s"u;na
particular "concepção do Estado brasileiro, enquadrado dentro do BrasIl .
Instituições políticas braSileiras, capitulo IV, vol. II (Rio de Janeiro: José Olympio, 1949), p. 95.
Em As formas do mesmo: ensaIOs sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira
, Oliveira Viana, "Prefácio", em populações meridionQls do Braszl, vol. I (Rio de Janeiro: José Viana (São Paulo: Unesp, 1997), pp. 141-156, Nilo Odália faz a distinção entre "teoria do
Estado" e "teoria pragmática do poder político".
Olympio, 1952), p. 13. . ..' O' ionalismo' no direito)", em
6 Cr. Oliveira Viana, "Populações e a metodologia soclolog lca ( reg

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POPULAÇÕES MERIDIONAIS DO BRASIL
GILDO MARÇAL BRANDÃO

A organização dos dois volumes é relativamente equivalente. O primeiro


o verdadeiro sujeito de nossa história até o
~erritolrial? d~~:~~~~ ~~l~;:;a ~~e~~' f~~.a
contém um "Prefácio" em que Oliveira Viana faz uma declaração metodológica
da qual jamais se afastará. E uma introdução, que retraça a gênese, a prepon- nobreza O mero enunciar dessas ao
ca o mo o pe o qual ele vai ser estudado e su ere ....,' 1-
derância e o significado do grupo social que ele considerava o principal sujeito serem investigadas Elucidados g as pnncIpaIs hIpoteses a
dessa história antiurbana de quatro séculos - a aristocracia rural. Ao fazê-lo, algumas d t ' esses pressupostos, trataremos de verificar
enuncia as principais teses que serão desenvolvidas nas quatro partes (e O as eses a serem demonstradas e os argumentos utilizados
dezenove capítulos) dedicadas sucessivamente à "Formação histórica", à "For- C I ponto de partida de Populações meridionais parece um' ovo d
mação social" e à "Formação política" da nobreza territorial (e da plebe rural), V? omb~, embora nem sempre tenha sido aceito como tal. É que para Oli . e
Iana, sItuado numa longa linhagem que vem desde Monte' veIra
culminando com o estudo da "Culturologia" ou da "Psicologia política" - da ,f i ' . sqUleu o espaço
geogra co e uma dImensão essencial da forma pela I ~
gênese da idéia de Estado e do sentimento de autoridade e liberdades públicas organizam. No caso deI h' . qua as socIedades se
nas populações rurais brasileiras - que essa experiência gerou. A partir da ambi ' e,. a mesmo uma determmação recíproca entre o meio
quarta edição, de 1938, Oliveira Viana agregou ao texto um "Addendum", em co en.~:, o. su~strato etmco e a psicologia moral e política que daí resulta A
que se defende dos críticos, e uma pequena nota, na qual afirma que suas teses da n:~~~~:~i:~ qu.~ ~e qdualquer lado ~u~ se olhe, não passa de ficção a idéia
e conclusões "têm tido e estão tendo - aqui e fora daqui, na agitada atualidade um a e o povo brasIleIrO - e essa r . d d .
subjetiva, essa. artificialidade do sentimento da naci:n:~~:~ a e matenal~ e
em que vivemos - esplêndida e integral consagração". duradouros efeItos políticos. e comum, terao
O segundo volume, por sua vez, contém uma "Advertência" sobre o ca-
ráter inacabado do ensaio e se divide em dezoito capítulos mal organizados em
Os nossos constituintes e legisladores políticos - diz 01' . Vi
tardio que dedicou à sua própria obra de juventude _ teml:::;re I~::S:~ ;eu estudo
quatro partes intituladas "Proto-história rio-grandense", "Formação da socie-
dade gaúcha", "História militar do Rio Grande" e "Culturologia política da po- posto: de que o Brasil- como todos t i ' a so pressu-
pulação rio-grandense". Deles, salvo engano, os capítulos centrais e mais bem ção ou a mesma cultura, de Norte a
.
S:I
::eaLmetSmaohngua - oferec~ a mesma civiliza-
es e a este. Ora, ISSO e um redondíssim
acabados são o IX, da terceira parte, "Psicologia do caudilho e papel da oligar- erro [... l CultUrologlCamente considerado oBra'l _ . o
constituída _ e . . ' SI nao me parece amda uma unidade
quia militar", no qual analisa o papel da guerra na formação da elite do único , sim uma umdade a constituir-se. Esta unidade é um ide 1- I
para onde estamos caminhando. É um objetivo a a r ' _ a um a vo
estado em que uma verdadeira consciência estatal teria se formado; o capítulo nossa realidade. mglr - e nao um fato, um dado da
X, da quarta parte, sobre "O decênio de Piratini e o seu substrato culturoló-
gico", em que faz a comparação entre as aptidões políticas e relações com o ;e :;:pqoul~ttemos
I
prlocurado - através da ação consciente do Estado, isto é, através
Ica - rea Izar esta umdad . b . .
Estado nos três grupos regionais; e o capítulo XVIII, sobre a "Função política 1700 " e. e a o ra smcrehsta do governo colonial desde
e, prmclpalmente, a obra sincretista do 1m ,. .,
da marcialidade riograndense", em que elogia a capacidade política dos revo- Populações meridionais _ _ . peno - como Ja demonstrei em
. dR" " sao uma prova disso. Tentada embora desde a Independê
lucionários farroupilhas contra o que considera a incompetência e o plebeísmo cla ou a egencla e certo o' ' . n-
enquanto ' .' d ' P rem, que so consegUimos realizar esta unidade por
das revoluções pernambucanas de 1817 e 1823 e a inconsistência dos movi- , no espirita as elites cultas - e não na consc" . d '
lenc/a o povo-massa. 7
mentos rebeldes mineiros e paulistas durante o Império.
O pOvO não só não é uma "m h A"
"unidade da raça, da civilização e da 17:::a ~:;!::;: 'u~o:::~ ~,u~ propala?a
e insuficiente para explicá-lo e ao 'A' , . q. aIS, e superfiCial
o OBJETO: POPULAÇÕES NO PLURAL levar em conta "a d' 'd d d '
paIs. o contrano dIsso' , .
' sera necessano
, . ~ Ivers~ a e os habItats e sua ação durante três ou uatro
Levando em conta tais condicionantes, talvez a maneira mais simples de seculos, as vanaçoes regIOnais no caldeamento dos elementos étnicos e~ prin-
abordar Populações meridionais seja começando pelo título. Por que "popu-
lações"-e não simplesmente "população"? Por que "rurais" e não "urbanas"?
7 OI~e~aV'" _
Por que "populações" e não apenas "elites", dado que segundo Oliveira Viana lana, Populaçoes e a metodologia socioló ica" . .
de todas as citações subseqüente _ d ,. g , Clt., pp. 113-114. [Os gnfos dessa e
s sao o propno autor.]
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GILDO MARÇAL BRANDÃO
POPULAÇÕES MERIDIONAIS DO BRASIL

flor~stoso" com o regime agrícola e com fatores políticos e administrativos


cipalmente, a inegável diferença das pressões históricas e sociais sobre a mas- advmdos da presença da Coroa portuguesa e da existência de uma burocracia
sa nacional, quando exercidas ao norte, ao centro e ao sul".8 Atentando sobre- estatal na capital do Império.
tudo para fatores geográficos, históricos e sociais, será possível perceber que Dos três grupos sociais básicos que compõem a sociedade brasileira o
a sociedade brasileira é, na verdade, uma estrutura descontínua e ganglionar, mat~~o. é, sob vários aspectos, o principal. Primeiro, porque a ocupação do
um quebra-cabeça incompleto, com partes contrastantes e desconexas entre t~rntono e a formação das populações foram, em grande parte, produtos da
si. Na verdade, em vez de um país, estamos diante de três regiões (a do norte, dlsp,ersão?o mais dinâmico dos seus subgrupos, os paulistas. Segundo, porque
a do centro-sul e a do extremo sul) cuja colonização gerou três sociedades (a ele e o mals~nu~eroso. Terceiro, porque foi em sua área geográfica que, desde
dos sertões, a das matas e a dos pampas) e três tipos sociais distintos (o serta-
a Ind,:pen~e~~la, o centr~ da política nacional se instaurou. Quarto, porque
nejo, o matuto e o gaúcho). essa contIgUIdade geografica do principal hábitat agrícola com o centro do
Todos esses tipos são rurais, porquanto os urbanos não passam, segundo g?:erno nacional" fez do matuto o fornecedor do principal contingente da elite
Viana, de "reflexos ou variantes do meio rural a que pertencem". Como vere- dlflg~nte e deu a ele "incontestável preponderância" sobre os outros dois tipos.
mos adiante, essa tese terá impacto tanto na periodização do estudo - refor- E q~mto, porq~e estes sempre foram excessivamente regionais: originários de
çando a exclusão do período republicano da análise - como na proposta política socled~des de tIpO pastoril, ficaram adstritos a zonas de ação limitadas.
de Oliveira Viana para a sociedade brasileira. Da diversidade rural deriva, E bem verdade que persistirá uma certa tensão entre o primeiro e o
portanto, a orgânica divisão do livro em dois grandes ensaios, um destinado às segund~ :olume, p.o~q~e Oliveira Viana faz franca apologia do espírito guerrei-
populações meridionais, outro às setentrionais. E cada um deles com dois volu- ro e pohtIco, autontano e democrático do gaúcho, nem sempre compatível com
mes, a julgar que o não escrito, sobre o sertanejo, especialmente o "homem das a "~~ção. providencial" e "força ponderadora" que reserva às populações
caatingas cearenses" - tipo de formação pastoril, combatente valoroso, mas mendiOnals. Nestas, seus hábitos pacíficos e sedentários, e seus "instintos de
indisciplinado e destituído, ao contrário do gaúcho, de qualquer senso de orga- bravura e moderação, do horror do sangue e da luta", teriam-lhes permitido
nização política e militar - seria complementado pelo de sua expansão pelos exercer notável ascendência sobre os grupos regionais e afastar os "excessos
senngals. do li~~ralismo republicano ou do teorismo democrático" que adviriam do pre-
Não se trata, portanto, de estudar o homem brasileiro em geral, mas este dommiO ou da rebeldia política e militar dos "bravos campeadores do sul" ou
ou aquele grupo regional. Oliveira Viana tem o cuidado de sugerir que ao de- dos "combatentes temíveis" dos sertões do Nordeste. 9
compor seu objeto e espacializar a sua análise não está convertendo a geogra- . De .qualquer maneira, geografia, demografia, economia, política e psico-
fia numa rua de mão única. Há, diz ele, ambientes sociais fixos, mas não tipos logIa se mterpenetram para fazer das populações meridionais do centro-sul e
sociais fixos. Estes, apesar de sua precoce configuração e extraordinária esta- da elite política que delas sobressaiu o pólo construtor do Estado nacional.
bilidade, não estão imunes à ação do meio no qual se encontram. O que inte-
ressa, então, é menos isolar cada fator do que observar como o meio, a raça e
a cultura interagem e produzem tipos sociais característicos em cada área. A "METODOLOGIA SOCIOLÓGICA"
Assim efetuando um corte vertical nas populações meridionais, o intelectual
flumi~ense considera o gaúcho um produto do hábitat dos pampas, do regime Delimitado o objeto, o problema agora é detalhar de qual perspectiva
pastoril e das guerras platinas. Já o matuto é resultado da serra, do café e dos essas populações deverão ser abordadas, quais aspectos de seu comporta-
cereais _ vale dizer, das regiões montanhosas do Rio de Janeiro, do maciço mento deverão ser privilegiados, como aquela conjugação será feita. Talvez
continental de Minas Gerais e dos platôs de São Paulo, que combinam o "habitat

• Cf. Oliveira Viana, "Função política das populações do centro-sul", cap. XIX, em Populações
8 Essa e as citações dos parágrafos a seguir são do item II do "Prefácio", em populações meridIO- meridionaiS do Brasil, cit.
nais do Brasil, cit., pp. 14-17.
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POPULAÇÕES MERIDIONAIS DO BRASiL

Trata-se, portanto, de contrapor sistematicamente o país real ao país le-


não seja despropositado lembrar aqui que "método" é uma palavr~ ~sada .num
gal, privilegiar a constituição real e não a escrita, medir o direito tal como
duplo sentido. Método é o modo pelo qual o cientista social s~ pOSICIOna d~a~te
da realidade. Método é também a maneira de usar o conheCImento adqumdo elaborado pelas elites cultas preocupadas com a coerência dos modelos pelo
direito usualmente praticado e deformado pelo povo. Essa "metodologia socio-
para mudar essa realidade, a brasileira. .
Em todo caso, o inimigo de Oliveira Viana é sempre o bacharehsmo, .os lógica", como mais tarde irá designá-la, busca detectar as grandes linhas
evolutivas do povo brasileiro. O exame que vai fazer nesse livro abarca o
políticos ejuristas liberais que, segundo ele, raciocinam livresca~e~te. ~mbna­
gado pelo combate, Oliveira Viana não hesitou em dizer ~ue.a o:Igm~hdade de
"período que se estende desde os primeiros séculos coloniais até os fins do
Populações meridionais e o que a obra contém de maiS SIgmficatIvo re~ul­ Segundo Império". Detém-se, por assim dizer, na soleira do inimigo, pois Oli-
tam, precisamente, do método pelo qual ele examina as instituições polítIcas veira Viana considera impossível "enquadrar a evolução histórica republicana
nas linhas que emolduraram a evolução nacional até 1888". Isso porque a
destiladas pelas populações rurais. O método adotado pelo saquarema preten-
de distinguir-se nitidamente daquele juridicista ou "dialético", qu~ parte ~as
Abolição desorganizou profunda e extensamente o país Y
normas abstratas para a realidade da vida social, toma as leIS escntas A rigor, a trajetória iniciada no século XVI (no I século, na linguagem um
como se fossem a realidade ou considera que a boa lei produz, por si só, a boa tanto pomposa do autor) com a ruralização (internalização) da requintada
sociedade - modo de pensar e de fazer política que ele identifica nos liberais nobreza urbana de origem peninsular conheceu apenas duas rupturas. Uma, a
da Independência, quando uma elite idealista e inevitavelmente polarizada pe-
do Império e da República. .
"Uma cousa", diz ele, "é estudar as instituições políticas como elas eXIS- los exemplos europeu e norte-americano, nega a experiência histórica acumu-
tem na sociedade, no viver prático e habitual dos homens. Outra cousa é estu- lada e adere ou opta certeiramente pela criação de um Estado com estrutura
dar as instituições políticas como elas aparecem abstratamente nos sistemas política centralizada, cujos precedentes podem ser rastreados tão-somente até
das leis e das Constituições. "10 Esses "idealistas utópicos" ou "constitucio- o período das reformas pombalinas. Essa ruptura, no entanto, é bastante
nais" consideram como instituições políticas apenas aquelas definidas nos có- minimizada pelos elogios à sabedoria do estadista colonial, que soube transigir
com os poderes dos potentados locais e se adaptar à dispersão dos núcleos
digos legais. E jamais se indagam sobre o funcionamento efetivo da lei e o :i~o
de sociedade na qual elas (bem ou mal) se encaixam. Afirmando, ao contrano, coloniais como forma de manter o controle territorial. E guarda muitos elemen-
tos de continuidade com esse passado, não só porque seu substrato social
que (especialmente) em povos transplantados como o nosso há uma ~istân­
cia abissal entre as constituições escritas pela elite e as realmente pratIcadas permanecerá o mesmo, como também porque se fortalecerá com o acaba-
mento do processo de ruralização - este, no IV século, produziu uma classe
pelo povo, Oliveira Viana propõe um giro de 180 graus. Diz ele,
dirigente e não apenas dominante de extração, temperamento, mentalidade e
em vez de estudar leis e Constituições, fomos diretamente às matrizes da nossa vocação eminentemente rurais.
própria formação social e histórica, às fontes primárias, aos olhos d' água,. a~s manan- A segunda ruptura - cujos efeitos perversos são apenas referidos no
ciais da serra. Fizemos um estudo concreto, objetivo, realístico - direi melhor, primeiro volume e um pouco mais explícitos no segundo,13 mas que de fato
naturalístico _ das instituições políticas, isto é, consideramos estas instituições ao fornece o eixo político da investigação de Populações meridionais - é muito
vivo, tais como o povo as praticava realmente em sua vida quotidiana, tais como elas
mais profunda. É catastrófica. O fim do trabalho servil, que Oliveira Viana
surgiram ou brotaram do seio da sociedade matura - de dentro do povo -, como de
dentro de uma árvore, da intimidade do seu seio, surge, pela transfiguração de sua
seiva, a enflorescência colorida, que a recobre H
Il Cf. Oliveira Viana, "Prefácio", em Populações meridionais do Brasil, cit., p. 18.
II Por exemplo, no cap. X, "O decênio de Piratini e o seu substrato culturológico", quando ataca
tanto o pesado aparato burocrático do sistema político republicano como a incapacidade dos
litorâneos, matutos e sertanejos para a organização e para o autogoverno, tal como teria sido
10 Cf. Oliveira Viana, "Addendum" à 4' edição de Populações meridionais do Brasil (Rio de
demonstrada nos episódios da "revolução de Canudos" e do "reinado de Pedro Bonita", contras-
Janeiro: José Olympio, 1938), p. 443. tada com a serenidade e a aptidão política dos farroupilhas.
11 Ibidem.

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POPULAÇÕES MERIDIONAIS DO BRASIL GILDO MARÇAL BRANDÃO

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considera fruto da alienação das elites "marginalistas", abala as fundações Almeja expor, enfim, "um bloco de fatos e idéias em que aparecem fundidas
sobre as quais se ergue a sociedade que aqui se firmou. Ele desarticula a única numa síntese única, todas as fases da evolução do grupo centro-meridional'
elite dirigente que nossa sociedade produziu e leva de roldão tudo que de me- desdobrando-se dentro de um espaço histórico de quase quatrocentos anos". 1~
lhor a experiência dos quatro séculos filtrou: uma base produtiva, o Estado Numa palavra, o que interessa é a sociologia política, é a teoria do Brasil que
unitário e, sobretudo, os mecanismos de seleção do que em Instituições polí- daí emerge.
ticas brasileiras ele chamará de os "homens de l.000".14 A República, suge- Uma outra dimensão de sua "metodologia sociológica" é que ela não
re Oliveira Viana, embaralha todas as linhas, permite a ascensão de indivíduos pode deixar de ser comparativa. Na introdução do livro e nas duas primeiras
e agrupamentos políticos destituídos de espírito público e amantes de "genera- p~rtes, a trajetória da aristocracia rural brasileira - o seu movimento de ocupa-
lidades sonoras", abrindo uma nova e perigosa etapa na vida brasileira - é çao e expansão do território, a montagem de uma economia latifundiária e
contra ela, seus métodos e seus ideólogos, que o livro foi escrito. escravocrata disseminada como um arquipélago sobre o imenso vazio terri-
Populações meridionais concentra-se, pois, na "evolução e estrutura torial, a consolidação dos clãs feudais como a única forma de solidariedade
das instituições políticas do grupo centro-meridional e, por extensão (dado o soc~a~ possível nessas condições, os papéis desempenhados pelos preconceitos
papel histórico desse grupo), do povo brasileiro em geral"; e pretende deixar raCiaiS, pela guerra e pela grande propriedade na formação da plebe e na
de fora tudo o que, a juízo do autor, não tenha contribuído para a formação ~el~ção da e.lite, os mecanismos pelos quais ela teria preservado sua pureza
dessa mentalidade política. Alça um vôo de quatro séculos para explicar e etmca, as atitudes adotadas perante o Estado, etc. - é confrontada principal-
criticar o presente porque considera que "não somos senão uma coleção de mente com as suas origens e instituições peninsulares. Oliveira Viana trata de
almas que nos vêm do infinito dos tempos" - frase que utiliza a pretexto de um ~stabele.cer as principais características da ruralização, isto é, do processo de
incidente bobo que lhe teria provocado o estalo de Vieira sobre o peso mternahzação, adaptação, seleção c criação de novos comportamentos, hábi-
acabrunhante e inefável do passado na constituição do caráter nacional dos tos e ~ormas a que a conquista do trópico a obrigou.
povos. Repetindo a conhecida formulação de Auguste Comte, sustenta que A medida que o texto vai chegando às características culturais especifi-
idéias, práticas e instituições dos antigos marcam profundamente o cérebro camente políticas, a análise tende a ser mais explicitamente comparativa com
dos vivos e os dirigem ainda hoje, mesmo que estes não se dêem conta. É a e~periência histórica dos outros povos europeus, especialmente os anglo-
preciso, pois, voltar-se para os cafundós do país e "investigar na poeira do saxoes. Esse enquadramento é um tanto esmaecido no segundo volume, em
passado os germes de nossas idéias atuais". que se tematiza um grupo basicamente regional, a gente da fronteira, para a
É importante notar que a preocupação de Oliveira Viana não é fazer um q.ual a guerra e a disciplina militar foram decisivas. No livro sobre o campeador
"estudo integral da sociedade do centro-sul, no plano do tempo e no plano do no-grandense, a ação espanhola aparece somente como o pólo negativo que
espaço". Nem sequer uma reconstituição histórica strictu sensu da trajetória realça as qualidades e capacidades empreendedoras do paulista agauchado.
daquelas populações. Não só porque ele trata a história como uma ciência M~s não se. chega a examinar as diferenças entre o mundo gaúcho aquém e
imperfeita, dependendo substantivamente da contribuição de outras ciências alem-fronteira c, de fato, são as comparações com os outros tipos sociais que
sociais e psicológicas, mas também porque ela só lhe interessa como fornece- a colonização portuguesa gerou - os matutos e os sertanejos - que assumem o
dora do material empírico sobre o qual pretende edificar suas generalizações, primeiro plano.
como conteúdo inerte ao qual sua interpretação "científica" e "positiva" dará
forma. Desprezando o que chama de "miudezas", os "microscopistas da críti- A RURALIZAÇÃO. A DERROTA DO URBANO
ca", etc., trata de construir os "quadros gerais", reconhecer os padrões
comportamentais que dão estrutura e inteligibilidade à nossa experiência. Trata-se então de saber como o passado pesa, o modo pelo qual cada um
dos fatores geográficos, raciais e políticos atuou na formação, expansão e
14 Cf. Oliveira Viana, cap. XIV, em Instituições políticas brasileiras, vol. I. Trataremos do signifi-
cado do termo mais adiante. " Cf. Oliveira Viana, "Addendum" à 4' edição de Populações meridionais do BraSil, cit., p. 441.

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sedentarização dessas populações, na cristalização de sua peculiar psicologia sem nobreza de sangue, sem tradição aristocrática, às vezes, sem mesmo o
política. Sua lógica investigativa considera que as instituições trazidas pelos cursus honorum das magistraturas locais",18 vão se impondo e criando uma
portugueses, tão logo entraram em contato com o Novo Mundo, sofreram nova nobreza, que absorve o que resta da primeira e é inteiramente rural.
alteração de conteúdo, assumindo novas funções e sendo transformadas em O processo de ruralização resulta, assim, do cruzamento desses dois movi-
novas instituições, dessa vez autóctones, próprias do novo meio, que tomarão mentos. Oliveira Viana aponta vários agentes motores desse centrifugismo ur-
bano. O primeiro é a tomada de consciência pelos nobres de que é impossível
o seu lugar.
Uma das passagens mais criticadas de Oliveira Viana é o modo como ele continuar dirigindo as fazendas e os engenhos à distância; o segundo é a penetra-
descreve a nobreza territorial nos primórdios da colonização. Apoiando-se na ção dos sertões em busca de índios num momento em que a escravidão negra é
imaginosa Nobiliarquia paulistana, do cronista Pedro Tacques de Almeida, restrita e o tráfico negreiro ainda não é a vasta empresa na qual se transforma-
Oliveira Viana considera que as gentes que aqui aportaram nos primeiros sé- ria; o terceiro é a expansão pastoril nos planaltos, por sua vez notavelmente
culos eram constituídas não de criminosos e degradados, mas pelo que havia impulsionada pela descoberta do ouro; e o quarto, a própria conquista das minas.
de melhor na nobreza lusitana. Não apenas seu segmento mais culto, como o A tendência é tão inelutável que os próprios núcleos urbanos criados
. . 16 R atabalhoadamente pela mineração são transitórios e fugazes. Aos poucos, a
mais ativo e empreendedor. E, sobretudo, o eugemcamente maiS puro. e-
produzindo em Pernambuco e em São Paulo o luxo, a sociabilidade e a vida rural vai deixando de ser "uma sorte de provação da classe alta" e passa
mundanidade das cortes medievais européias em seu apogeu, essa nobreza a ser um sinal de distinção. O que nos primeiros séculos era "aceito pela pres-
palaciana e urbana logo se defrontou com o apelo do deserto, com a imensidão são invencível das circunstâncias", passa a ser valorizado e procurado no IV
século. Numa pontuação que vai se repetir em várias passagens de Popula-
da terra a conquistar.
Daí esse conflito interessantíssimo, a que assistimos, durante todo o ções meridionais, Oliveira Viana se apressa em relativizar a presença dos
período colonial, entre o espírito peninsular e o novo meio, isto é, entre a velha interesses econômicos no desenvolvimento da aristocracia: ela não vai ao
tendência européia, de caráter visivelmente centrípeto, e a nova tendência ame- campo, não se lança nas bandeiras, não busca o latifúndio, não se ruraliza
ricana, de caráter visivelmente centrífugo: a primeira, atraindo as classes su- enfim pelo afã do lucro, pela "cobiça material de explorar industrialmente a
periores da colônia para as cidades e os seus encantos; a segunda, impelindo terra", mas pelas doçuras da vida rural e pela distinção social, pelo respeito,
. I 17 pelo predomínio e pelo mando que a propriedade agrária oferece. 19
essas mesmas classes para o campo e o seu ru de ISO amento.
A incompatibilidade entre o europeu e o americano, entre o urbano e o Ao fim e ao cabo, gesta-se no trópico um organismo social essencial-
rural, é também um conflito entre duas classes, ou melhor, entre dois setores mente rural. Viana diz que essa nossa vocação agrária não tem a força e a
de uma mesma classe. É que a nobreza territorial da época se compõe de uma energia do saxão, mas é muito superior à do romano antigo, basicamente um
camada de latifundiários de origem fidalga e outra de origem plebéia, esta homem da cidade que vai ao campo veranear. Insiste em que ela não é algo
formada por rudes e probos camponeses portugueses que se vão estabelecen- herdado dos portugueses, que oscilam entre o campo e a cidade e não são
do e enriquecendo. Ao longo dos três séculos ocorre um "rápido e vigoroso homens de uma coisa nem de outra. A diferença principal, não obstante, é que
processo de seleção exercido num sentido democrático". Os núcleos fidal.gos o nosso é um ruralismo de grande propriedade, enquanto o deles é de pequenos
vão desaparecendo, as "grandes casas paulistas vão perdendo progressIva- proprietários.
mente seus altivos costados aristocráticos" e "figuras mais ou menos obscuras, Outra das teses mais controvertidas do intelectual fluminense é aquela
segundo a qual a aristocracia rural é "o centro de polarização dos elementos
arianos da nacionalidade".20 Ao tempo em que se modifica sob influência do
16 Já em 1929, com Vida e morte do bandeirante, Alcântara Machado destruía essa idealização,
mostrando a pobreza e a precariedade de meios da "aristocracia rural" paulista. Diga-se que essa
18 Ibid., pp. 42-43.
é uma das poucas passagens que o intelectualmente nada modesto Oliveira Viana reconhece que
l' Ibid. Cf., entre outras, páginas 47, 54 e 88.
pode ter carregado nas tintas. .
20 Ibid., "Psicologia do tipo rural", cap. III, p. 64.
17 Oliveira Viana, "Formação do tipo rural", cap. I, em Populações meridionais do Brasil, Clt., p. 35.

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POPULAÇÕES MERIDIONAIS DO BRASIL

nem apenas valorativo, é conceituaI: classe e raça dcsignam praticamente o


meio, a aristocracia que aqui se estabelece daria continuidade a algumas das
mesmo fenômeno social. Além disso, pode-se dizer que os "salutares precon-
melhores qualidades da velha nobreza lusitana. O mesmo não ocorreria com
ceitos" de sangue agem como verdadeiras instituições, cumprindo, na Colônia,
as camadas plebéias, nas quais "a profusa mistura de sangue bárbaro" e a
papel análogo ao desempenhado pelo sistema político do Império: são filtros,
miscigenação facilitada pelo viver em latifúndios operariam uma "desorga-
mecanismos de seleção da elite dirigente. Como diz Oliveira Viana:
nização sensível na moralidade de seus componentes" ."1 Nesse sentido, o
determinismo geográfico age de maneira sensivelmente diferente, sobre-
Os preconceitos de cor e sangue, que reinam tão soberanamente na sociedade do l, II
determinada, por assim dizer, pelo caldeamento étnico e pelo regime de propri- e III séculos, têm, destarte, uma função verdadeiramente providencial. São admiráveis
edade. aparelhos seletivos, que impedem a ascensão até ás classes dirigentes desses mestiços
O meio rural, diz Oliveira Viana, é um "admirável conformador de al- inferiores, que formigam nas subcamadas da população dos latifúndios e formam a
mas". Mas sua influência, digamos assim, está longe de ser democrática: re- base numérica das bandeiras colonizadoras B

força a alta moralidade da nobreza, enquanto dissolve à da plebe. Ariana e


fixada à terra, a família fazendeira se organiza à maneira cesarista e molda um À ação negativa da miscigenação, Populações meridionais soma o pa-
certo "conformismo moral", uma certa uniformidade de caráter, pureza e sim- pel da grande propriedade no fortalecimento do núcleo familiar fazendeiro e o
plicidade de costumes, em tudo oposta à instabilidade da vida urbana. Mestiça, da pequena propriedade na dissolução do plebeu. De tal maneira que a descri-
a família rural convive com a poliandria e a mancebia e tem uma estrutura ção da "função simplificadora do grande domínio rural" é, na verdade, a des-
instável, marcada pelo fraco poder do pai de família. O resultado não pode crição da derrota da pequena propriedade e das tendências urbanas na sociedade
deixar de ser, segundo o intelectual fluminense, a debilidade moral do "baixo brasileira.
povo" do campo. Algumas das quatro grandes qualidades morais que o mundo Confluindo com Casa-grande & senzala, Formação do Brasil con-
rural disseminou entre as "gentes obscuras de nosso interior" - a fidelidade à temporâneo, Raízes do Brasil, A ordem privada e a organização política
palavra dada, a probidade, a respeitabilidade e a independência moral- podem nacional e outros, Oliveira Viana considera o domínio rural o "centro de
ser encontradas também na massa rural, mas apenas na nobreza todas brilham gravitação do mundo colonial". A própria bandeira será vista como uma espé-
com esplendor. Ainda que cultive, por exemplo, o "fio de barba", a fidelidade à cie de latifúndio "em movimento", além de ter servido para mobilizar a popula-
palavra empenhada, a plebe rural, mestiça, ladina e desclassificada, não possui ção excedente dos grandes domínios e "classificar" os brancos pobres e os
nem pratica o sentimento de respeitabilidade."" "mestiços superiores". Em qualquer das três regiões, o tipo de produção - a
Em alguns de seus textos posteriores, Oliveira Viana iria atenuar, sem cultura da cana-de-açúcar, o pastoreio, a cultura do café - torna imperativa a
nunca eliminar, o peso desses argumentos raciais na explicação da sociedade e grande propriedade e faz com que o homem livre não-proprietário ou decaia
da política brasileira. Em Populações meridionais, entretanto, é preciso ex- socialmente ou se torne, ele próprio, grande proprietário. Pois o problema não
cessiva boa vontade para separar o suposto joio do suposto trigo. Isso porque é apenas obter grandes extensões de terra, é sobretudo ter à disposição muitos
aqui a questão racial não é apenas um condicionante antropológico, mas uma braços, circunstância que impõe o recurso à escravidão e condena os brancos
determinação essencial ao argumento, afetando todos os aspectos da estrutura pobres ao caldeirão da mestiçagem.
social e da cultura política: raça e classe, eugenia e propriedade são faces da A tendência do grande domínio à autarquia e o raquitismo dos núcleos
mesma moeda. O leitor benevolente pode ponderar que, tirando o preconceito, urbanos são outras características que decorrem da ocupação do território, da
era assim na Colônia: branco domina, negro é escravo, mestiço é pobre e dispersão da população e do regime de propriedade pastoril ou agrícola. Na
desclassificado. Mas o argumento de Oliveira Viana não é puramente empírico medida em que "produzem tudo ou quase tudo que precisam e compram o
mínimo possível", os grandes domínios rurais inviabilizam a constituição de

21 Ibid., p. 65. 23 Ibid., "Etnologia das classes rurais (II e 1II séculos)", cap. VI, p. 156.
" Ibid., p. 75.

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outras classes sociais, simplificam a estrutura social, passam a atrair para necessidade que estaria na origem da consciência política dos gaúchos. 25 No
dentro de si todas as atividades econômicas da sociedade colonial e todas as plano interno, os índios, por mais terríveis que fossem, e os quilombolas jamais
possíveis atividades profissionais, subordinando-as. É nesse ponto, aliás, que ofereceram desafios notáveis, pelo menos nada que o grande domínio não
depois de páginas e páginas de elogio à nobreza territorial aparece uma gene- pudesse, sozinho, resolver. E se não enfrentou nenhuma ameaça das classes
ralização que é a primeira observação crítica de nossa formação social em subalternas, a nobreza territorial também não foi constrangida a lidar com a
Populações meridionais: "Na sociedade vicentista, não há, pois, elementos "pressão tirânica" da Coroa ou de alguma dinastia poderosa.
para a formação de uma classe de pequenos proprietários. Essa é ainda uma Exaltada por Oliveira Viana em outras partes do texto, essa história "pa-
das grandes falhas de nossa organização social". 24 cífica e benigna" é aqui mostrada pelo seu lado negativo. Ao economizar o
A diferença é nítida em relação ao latifúndio europeu. Neste, a combi- sentimento do medo, ela não apertou os laços entre grupos sociais, não atrelou
nação entre pouca terra agriculturável disponível, excesso de população e um ao outro os seus destinos. Completa a análise a observação de que também
escassez de recursos teria levado à solidariedade, à formação de classes não houve entre nós impulso para a "solidariedade pacífica, a solidariedade
politicamente organizadas e ao conflito entre elas. Entre nós, ao contrário, o voluntária, a solidariedade para a conquista de um interesse comum".26 Pro-
excesso de terras a serem apropriadas facilitou a dispersão, a exuberância duzindo tudo o que necessitam, transportando e comercializando sua produ-
do clima criou condições de sobrevivência da plebe rural fora dos domínios, ção no litoral e nos rarefeitos núcleos urbanos, os fazendeiros não só não
a escravidão e a independência do latifúndio em relação ao seu entorno tor- têm por que se associar entre si como não dependem "umbelicalmente" do
naram desnecessários os liames entre os poucos trabalhadores livres e os trabalho de outras classes externas à fazenda e ao engenho.
proprietários, a precária divisão social do trabalho liquidou a possibilidade de Nessas condições, o clã rural brasileiro - patriarcal e não guerreiro, or-
desenvolvimento de centros urbanos, as exigências das culturas extensivas ganização defensiva e não ofensiva, bem menos estruturado do que o seu
sufocaram irremediavelmente a pequena propriedade. congênere europeu - acabou sendo a única forma de organização da popula-
ção rural brasileira nos três séculos de colonização. Mas o que teria levado a
plebe a aceitar esse tipo de associação que consagra a sua subordinação? A
CLÃS RURAIS: A SOLIDARlEDADE POSSÍVEL resposta de Oliveira Viana é: o medo da anarquia branca. 27 Com esse con-
ceito tocamos, além da estrutura ganglionar da organização social induzida
Na segunda parte de Populações meridionais, numa análise admirável, pela grande propriedade, uma tese essencial ao arcabouço analítico e político
mas que descamba irremediavelmente para a apologética, Oliveira Viana mos- de Populações meridionais: a questão da ausência dos direitos civis da popu-
tra como foram escassas as pressões que poderiam levar as populações a se lação pobre rural.
auto-organizarem, como o tipo de luta de classes que o Brasil conheceu - É a falta de justiça, a arbitrariedade dos magistrados e a impunidade dos
segundo ele, eremero, limitado e circunstancial- foi insuficiente para vertebrar poderosos que impele a plebe rural a se colocar sob o domínio do senhor. Não
politicamente o país. havia, assegura Oliveira Viana, alternativa para o homem simples. Tendo sofri-
A colônia teria evoluído sem ser assolada seriamente por inimigos exter- do alguma desfeita, ameaça ou injustiça, o pobre não podia apelar para os
nos e internos. No plano externo, abstraindo algumas escaramuças no litoral, a magistrados da Colônia. Destes, os juízes existentes, posto que eletivos, estão
única ameaça real foi na área pampeira, onde o esforço para derrogar o Trata- a serviço do potentado rural e são, na verdade, instrumentos de impunidade e
do de Tordesilhas e cumprir o nosso destino manifesto levou ao confronto
militar com os hispânicos. Apenas nessa região o perigo permanente tornou
imperativa a colaboração entre os potentados rurais e o poder público, e é essa
II Ibid., "Função política das guerras platinas", cap. XI, vol. II.
16 Ibid., "Instituições de solidariedade social", cap. IX, vol. I, p. 239.
24 Ibid., "Pequena história do domínio rural", cap. IV, segunda parte, p. 90. 27 Ibid., "Gênese dos clãs e do espírito dos clãs", cap. VIII, vol. I, especialmente pp. 205 e ss.

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vingança, impondo ao inimigo, quando lhes convém, o rigor da lei. Apenas os adversárias: uma burguesia comercial, que teria nascido da abertura dos por-
"juízes de fora" nomeados pelo rei e não dependentes do favor local podem se tos, e a chusma de fidalgos e burocratas lusitanos, que desembarcaram com a
arvorar em protetores dos fracos e dos oprimidos. Mas essa justiça real fun- família real.
A questão aqui é menos insistir no artificialismo da passagem em que
ciona precariamente, seja pela extensão das comarcas seja por sua ina-
uma nova classe inteiramente constituída salta no texto como o mágico tira o
cessibilidade para a população.
Os pobres sofrem, além disso, a mão pesada dos capitães-mores, das coelho da cartola e mais atentar para as fases da luta senhorial. A nobreza da
corporações municipais e têm verdadeiro pavor do recrutamento. Desprovidas terra que acorre a essa "Versalhes tropical" que seria o acanhado Rio de
do espírito guerreiro em que as gaúchas se excedem, as populações matutas Janeiro da época, não seria então uma classe inculta. Boa parte de seus mem-
brasileiras só se interessam pelo lado vistoso do serviço militar, o qual, no fun- bros estudou em Coimbra, conhece a Europa e está acostumada a tratar com
do, desprezam. Todos esses riscos aumentam com o estado de anarquia e governadores e vice-reis. A burguesia comercial, por sua vez, é rica e podero-
turbulência em que a colônia mergulhou entre o fim do ciclo das bandeiras e a sa, mas sem pedigree. Classe eminentemente urbana, culta e familiarizada
sedentarização a que o esgotamento do ouro a obrigou.:!8 Nessa altura da ar- com as idéias e costumes europeus, ela era formada basicamente por portu-
gueses e por jovens brasileiros que estudaram em Coimbra. Na disputa que
gumentação de Viana, a conclusão não poderia ser outra:
acabaria apenas com a expulsão de D. Pedro I, tomou-se base social do que
as instituições de ordem administrativa e política, que regem nossa sociedade durante foi apodado de "partido português". Já os fidalgos e "parasitas" eram compos-
a sua evolução histórica, não amparam nunca, de modo cabal, os cidadãos sem fortu- tos de um grupo de gente sem posses e, como tal, candidatos a pensionistas
na, as classes inferiores, as camadas proletárias contra a violência, o arbítrio e a do Estado.
ilegalidade. Por outro lado, esse amparo também não encontram elas em quaisquer De acordo com Oliveira Viana, por volta de 1818 a nobreza territorial já
29
outras instituições de ordem privada e social conseguia subtrair privilégios dos lusos emigrados e controla boa parte das
prebendas e favores distribuídos pelo rei. No momento da Independência, ela
domina e os fidalgos portugueses ficam escassos. Os que restam, asfixiados
pelo clima nacionalista que toma conta da Corte, voltam para Portugal acom-
As FUNÇÕES SOCIAIS DA ARISTOCRACIA RURAL panhando D. João VI. Daí por diante, a luta será entre a nobreza da terra e a
burguesia comercial.
Se nas primeiras e segundas partes dos dois livros Oliveira Viana cons-
Para Populações meridionais, o grande acontecimento do IV século é
trói o argumento da gestação de uma sociedade e de uma classe dominante
essa vinda da nobreza territorial para a cidade e a sua vitória sobre aqueles
eminentemente rurais, as terceiras e quartas partes vão ser dedicadas ao mo-
adversários. Impor o seu domínio e construir politicamente a nação teria sido a
mento em que essa classe impõe sua hegemonia não apenas social como polí-
última função social desempenhada pela aristocracia rural. Dela, de acordo
tica sobre o país. Não o faz, entretanto, sozinha, isoladamente. Quando começa com o autor, teria partido o movimento pastoril e agrícola do século XVI, o
o século XIX, a aristocracia rural tomou-se sedentária, está pacificada e domi-
movimento sertanista do século XVII, o movimento minerador do século XVIII
na o poder local, mas está praticamente excluída das instituições que adminis- e, agora, no XIX, a organização política da nação. Destruído seu domínio pela
tram a colônia, cujos postos são reservados pela Coroa aos portugueses do Abolição, ficava aberta a questão de sua sucessão.
reino. A vinda da família real é o inusitado. É ela que tira os fazendeiros de
Antes de avançar na exposição é preciso dar um passo atrás e observar
suas "solidões rurais", atraindo-os para a Corte, onde defrontam duas classes
que Oliveira Viana não explica convincentemente como os fazendeiros viven-
~o isolados em latifúndios, que eram verdadeiras autarquias e despro~idos de
mcentivos para se associarem entre si ou com os seus subalternos, logram em
~ouco tempo se pôr de acordo e agir coletivamente. Ele diz que essa classe
28 Ibid., "Os grandes caudilhos territoriais e a anarquia colonial", cap. XI, vol. I.
Jamais perdeu o fascínio pela Coroa e jamais dejxou de lhe ser fiel, fidelidade
29 Ibid., "Gênese dos clãs e do espírito dos clãs", cap. VIII, vol. I, p. 217.

321
320
POPULAÇÕES MERIDIONAIS DO BRASiL GILDO MARÇAL BRANDÃO

competentemente explorada pelo reino nos séculos .precedentes, ~~ando os "repressor da caudilhagem nacional", consolidando a reação contra os clãs
latifundiários e chefes bandeirantes disputavam entre SI a confiança r~gla. Alu~e rurais que a Coroa portuguesa havia começado apenas no III século da co-
às suscetibilidades arranhadas pelos privilégios que a Cor~a concedia ~,os,e~l.l­ lonização.
grados. E declara que sua vitória era "lógica" e natural, p~IS afinal era a u~lca Na evolução dos poderes públicos entre nós, a função desse personagem
classe superior do país, aquela em que se concentra a malOr soma de autonda- (o rei) é colossalíssima. Ele é, no IV século, o agente mais prestigioso, mais
de social". 30 enérgico, mais eficaz do sincretismo nacional. O poder central deve a ele, com
O argumento escapa à tautologia - venceu porque tinha ~ue :encer - a sua unidade e a sua ascendência, a sua consolidação e estabilidade. 32
por um recurso teórico e político estratégico que, num certo sentld~, l~vert~ o Em todos esses pontos, Populações meridionais é uma brilhante reto-
argumento até aqui desenvolvido em Populações meridiona/~ ..Nao e a an~­ mada da tese da historiografia tradicional brasileira sobre o papel do Príncipe
tocracia que se torna, por suas próprias forças, uma classe pohtlca~ente arti- na configuração da nação. Ele a antecede, a concede e a assegura. A defesa
culada, isto é, capaz de construir um Estado e unificar uma nação. E a Coroa, aberta do poder pessoal do monarca é enfatizada pela descrição do funciona-
são as instituições imperiais que filtram os melhores elementos dessa classe e mento do Conselho do Estado e do Senado, instituições políticas que cumprem
os tornam agentes da unificação nacional. ,. a dupla função de selecionar na aristocracia rural os elementos mais conve-
Como ele diz em Instituições políticas brasileiras, a estrutura pohtlca e nientes à política do centro e de reforçá-lo na luta contra essa mesma aristo-
administrativa do Império exigia três tipos de elite: a municipal, a provincial e ~ cracia entrincheirada nos poderes locais e provinciais. Além disso, a Lei de
nacional. No momento de sua fundação, os homens da elite política do Brasil Interpretação do Ato Adicional, de 1841, expressando a reação conservadora
ainda não existiam como "classe constituída". Homens públicos e partidos po- contra a experiência regencial, põe nas mãos do poder imperial "a chave de
líticos traziam toda uma mentalidade localista ou provincialista. Os "'ho- toda a vida política e partidária do país".33 Daí por diante, sob tal organização
mens de l. 000' só surgiram depois - com a ação centrípeta do poder real". constitucional, vai se tornando impossível "a emersão de um grande chefe de
Eram eles que possuíam, durante o Império, o "espírito nacional" e se compor- clãs, chefe nacional, chefe central, dominando todo o país, tal como o chefe de
tavam, na vida pública, como cidadãos do Brasil. 3l Essa seleção, cabe lem- clãs provincial, depois do Ato Adicional e antes de 41, dominaram toda a pro-
brar, não se deu na República, na qual a democracia, que tudo ga~ara e t~do víncia, e o chefe de clã municipal, durante o período do Código do Processo,
comprometera, bloqueava a possibilidade de construir uma autondade aCima dominara todo o distrito municipal".34
dos clãs e das parcialidades de aldeia. Do ponto de vista da economia interna do texto, um dos acertos mais
significativos de Populações meridionais é o fato de analisar as instituições
municipais depois de discutir o papel do Império na consolidação do Estado,
o IMPÉRIO CONTRA O ESPÍRITO DE ALDEIA com o que toda a construção teórica voltada para justificar a necessidade da
centralização retorna ao ponto de partida e o eleva a um novo patamar. O
O "acidente da presença da família real" muda, pois, inteiramente o movimento formal é também de conteúdo, pois ao descrever a debilidade do
jogo. O rei não é apenas a instituição política que evita o desmem~ra~.ento sentimento de liberdades públicas e o artificialismo da idéia de Estado na men-
do país à época da ruptura com a metrópole, é també~ aquel~ qu~ vlab~hza a talidade da população, sugere que a destruição do Império eliminou o único
hegemonia do Rio de Janeiro sobre os poderes locais e reglOnals. Alem de agente que poderia enraizá-los.
ser o árbitro do sistema partidário e garantir a alternância de poder entre os
caudilhos liberais e os caudilhos conservadores, o imperador é o grande
12 Ibid., "Função política da Coroa", cap. XIV, vaI. I, p. 320. Para a reação fiscalista da Coroa
depois da descoberta das minas, ver o cap. XII, "Organização da ordem legal".
lJ Ibid., vaI. I, p. 328.

3. Ibid., "Preponderância do tipo rural", cap. II, vol. I, p. 61. ,. Ibid., p. 320.
li Ibid., em Instituições políticas brasIleiras, cap. XIV, vol. I, pp. 373-374.

322 323
POPULAÇÕES MERIDIONAIS DO BRASIL
GILDO MARÇAL BRANDÃO

No plano municipal, o característico é a ausência das instituições que, e~


autonomia à Justiça, organizar o povo e educá-lo, construir uma sociedade civil
outros países, produziram democracia: a solidariedade comunal, a autonomIa
(civilizada) por meio da ação racional de um novo Estado centralizado. Para-
local, o senso de independência e a capacidade de associação das populações
doxalmente, valia aqui, contra os liberais e contra a liberdade política, a boa
urbanas a organicidade das cidades. Baseando-se em vários autores france-
ses Oli~eira Viana mostra que para existir entre nós poder local democrático
ordem européia: só depois de conquistada a liberdade civil é que deveríamos
nos lançar à construção da política. Nos seus próprios termos:
seria preciso haver, como nos Estados Unidos, peque~a pro~riedade e ~e~ue­
nos proprietários autônomos. A marca da nossa reahdade e, ao contrano, a Dar consistência, unidade, consciência comum a uma vasta massa social ainda em
ausência da township. Em vez de ser a manifestação da população auto- estado ganglionar, subdividida em quase duas dezenas de núcleos provinciais, inteira-
organizada, o poder local é efetivo apenas enquanto exp:essão do do~íni~ mente isolados entre si material e moralmente:
fazendeiro. A única região onde o sentimento de Estado tena de fato nascIdo e - eis o primeiro objetivo.
no Rio Grande do Sul, onde a necessidade de autodefesa contra o inimigo
externo permitiu transformar a capacidade de organização militar em capaci- Realizar, pela ação racional do Estado, o milagre de dar a essa nacionalidade em
dade de organização política. formação uma subconsciência jurídica, criando-lhe a medula da legalidade, os instin-
tos viscerais da obediência à autoridade e à lei, aquilo que lhering chama "o poder
moral da idéia do Estado":

AUTORIDADE E LIBERDADE. A CONSTRUÇÃO DA BOA ORDEM


- eis o segundo objetivo. 35

A imagem do Brasil que emerge de Populações meridionais é, assim, a A predominância da autoridade sobre a liberdade resultava, portanto, da
de um país fragmentado, atomizado, amorfo e inorgânico, uma sociedade des- inorganicidade da sociedade civil. Nação e liberdade não sobreviveriam sem
provida de laços de solidariedade internos e que dependia umbelicalmente do um Estado forte, qualificado, imune aos particularismos, capaz de subordinar o
Estado para manter-se unida. Nessa terra de barões, onde manda quem pode interesse privado ao social e controlar os efeitos destrutivos desencadeados
e obedece quem tem juízo, o homem comum só costumava encontrar alguma com a Abolição. Direitos civis e unidade nacional garantidos pela centraliza-
garantia de vida, liberdade e relativa dignidade se estivesse a serviço de algum ção política, eis o programa de Oliveira Viana. O amplo diagnóstico de Popu-
senhor. Fora disso, estava inteiramente desprotegido - a não ser que o Estado lações meridionais do Brasil contém uma política - o fortalecimento e a
interviesse. Aqui, ao contrário da Europa e dos Estados Unidos, o Estado não modernização do Estado, o resgate das raízes agrárias da vida social, a educa-
deveria ser tomado como a principal ameaça à liberdade civil, mas como sua ção das oligarquias, a recusa à democracia liberal e representativa, etc. _, mas
única garantia. será preciso esperar os anos 1930 para que ela se converta em políticas, em
instrumentos estatais de intervenção social.
Criticando os liberais por sua cegueira diante da realidade e pela tenta-
ção de transplantar as instituições de outros países, Oliveir~ Vian.a sug~re que
nessa sociedade de oligarquias "broncas" - um termo que so usana maiS tarde
- a democracia política constituía a grande ilusão. Seu aparato institucional
pesado, lento e ineficiente, sua subserviência aos mecanismos eletivo~ e .aos
partidos que não passavam de agrupamentos irmanados contra o be~ PUb~ICO,
apenas entregariam o Estado de pés e mãos atados aos interesses partlculanstas
e às curriolas e sumidades de aldeia. Era isso que estava acontecendo e era
isso que teria acontecido se os liberais tivessem predominado no século XIX.
Seria necessário, portanto, retomar a obra centralizadora do Império.
Tratava-se de dar prioridade à construção da ordem sobre a liberdade, dar " Ibid.. "Função política das populações do centro-sul", cap. XIX, p. 429.

324
325
y
GILBERTO FREIRE

I
Sobrados e mucambos

Brasilio Sallum Jr.


Sobrados e mucambos veio a público em 1936. Trata-se do' segundo
livro da série "Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil", iniciada
em 1933 com a publicação de Casa-grande & senzala. Na seqüência, em
1959, veio a lume Ordem e progresso. O último livro programado para a série,
Jazigos e covas rasas, jamais foi publicado.
Sobrados e mucambos foi muito bem-sucedido editorialmente - até hoje
foram 12 as suas edições em língua portuguesa - mas não teve o impacto
cultural nem o sucesso de público de seu antecessor, do qual até hoje se tira-
ram quarenta fornadas em língua original.
Embora o próprio Gilberto Freire não tenha ficado satisfeito com a forma
original do texto - tanto que na segunda edição decidiu revisá-lo profundamen-
te além de acrescentar-lhe cinco novos capítulos -, o leitor não encontrará em
eventuais deficiências analíticas ou literárias a razão do livro ter tido uma re-
percussão menor que Casa-grande & senzala. Com efeito, não há como
encontrar aí a diferença, pois Sobrados e mucambos é deslumbrante tanto
para o olhar do analista da sociedade como para o apreciador da beleza da
linguagem.
Gilberto Freire, no "Prefácio" à 6'ª edição de Sobrados - a que se usa
neste resumo e foi publicada no Rio de Janeiro em 1981 pela Livraria José
Olympio Editora - tenta explicar a diferença de impacto dos dois livros pelo
carisma de Casa-grande: "Há livros, tanto quanto pessoas, carismáticos". E
mais não avança. Deixa-nos, pois, a tarefa de identificar as bases desse carisma
que distinguiria uma obra da outra.
É o próprio Freire, porém, que nos dá boa pista para explicar a discrepân-
cia. Diz ele de Sobrados: "Continuação de estudo já publicado, este ensaio
resulta da mesma série das pesquisas. De modo que os andaimes foram os
mesmos, não sendo preciso conservá-los todos [ ... ]".1
Aí está, salvo engano, a razão do grande sucesso de Casa-grande: na
apresentação dos citados andaimes. Eles correspondem, se bem entendo Gil-
berto Freire, aos argumentos sistematicamente lá desenvolvidos contra as cren-
ças - derivadas do universo intelectual europeu e predominantes na sociedade
brasileira de então - que atribuíam as "deficiências" do país às suas caracte-
rísticas de clima (tropical e não temperado), de raça (mestiça e não pura e
branca) ou à incivilidade dos europeus que nos colonizaram (portugueses

1 Gilberto Freire, "Prefácio", em Sobrados e ml/cambos (Rio de Janeiro: José Olympio, 1981),
p. XLVII.

329
SOBRADOS E MUCAMBOS BRASILIO SALLUM JR.

pouco progressistas e não ingleses). De fato, o estudo da formação da socie- societários que romperam, a partir do final do século XVIII, os mecanismos de
dade patriarcal no período colonial brasileiro subordina-se à tarefa maior de integração social que, segundo Gilberto Freire, tinham convertido o patriarca-
destruir aquelas crenças e de substituí-las por uma nova concepção de Brasil, do rural, sob muitos aspectos, em modelo de equilíbrio entre os processos de
fundada na pesquisa científica. Nessa nova concepção, o elemento central é a subordinação e de acomodação entre classes, entre raças e entre culturas
visão positiva, ao invés de envergonhada, da miscigenação. Com isso, Freire distintas. Com efeito, no período colonial brasileiro, a família patriarcal arraiga-
ajuda a romper a raiz de nosso complexo de inferioridade, de sermos um povo da no meio rural fora a forma de organização social mediante a qual os proces-
atrasado e sem futuro em função de nossa mestiçagem racial, principalmente sos de miscigenação cultural e racial se desenvolveram, amortecendo as
com os negros. Em Casa-grande ele mostra que o colonizador português - oposições inerentes às relações entre senhores brancos e escravos de cor. No
ele próprio fruto da hibridação racial e cultural - funde-se, por meio dos pro- prefácio à primeira edição de Sobrados, Gilberto Freire chega a dizer que
cessos de miscigenação racial e da assimilação cultural, com índios arranca-
dos à vida tribal e negros vindos da África, convertendo-se aos poucos numa o sistema casa-grande/senzala, que procuramos estudar em trabalho anterior, chegara
a ser - em alguns pontos pelo menos - uma quase maravilha de acomodação: do
população mestiça portadora de uma cultura ainda mais plástica que a trazida
escravo ao senhor, do preto ao branco, do filho ao pai, da mulher ao marido. Também
da Europa. Para que não haja engano, vale sublinhar que nessa fusão o portu- uma quase maravilha de adaptação do homem, através da casa, ao meio fisico [ ... ]2
guês não perde a preeminência, embora em muitos aspectos os negros vindos
da África tenham tido um papel civilizador. Na visão de Freire, foi essa Como nos alerta o subtítulo de Sobrados e mucambos, o livro trata da
mestiçagem, cultural e racial que deu aos colonizadores melhor condição de "decadência do patriarcado rural e o desenvolvimento do urbano", do final do
adaptarem-se ao trópico, permitindo-lhes produzir aqui uma civilização origi- século XVIII até a segunda metade do século XIX. As mudanças societárias
nal, a brasileira. Nisso os portugueses teriam sido superiores a outros povos que ocorrem ao longo desse período, de forma tímida até a chegada de D. João
europeus, marcados pela rigidez de conduta associada ao protestantismo. Tam- VI e da Corte portuguesa e mais acelerada a partir daí, ocasionam a ruptura
bém teria sido a mestiçagem o processo que, além de facilitar o povoamento, daquele modelo de acomodação atingido na época colonial. A sociedade se
permitiu amortecer os antagonismos derivados das relações de subordinação urbaniza e surgem novas formas de subordinação, novas distâncias sociais
inerentes ao escravismo. entre as classes, raças e modos de vida. As relações de poder se renovam,
A ruptura com as ideologias racistas e com os determinismos climáticos mas o domínio - embora distinto - continua dos senhores, dos brancos e dos
e, mais que tudo, a valorização da mestiçagem racial e cultural brasileira foram homens. Os antagonismos se acentuam, os indivíduos se autonomizam em re-
revolucionárias em relação às formas dominantes de pensar na época do lan- lação às coletividades e só lentamente começam a surgir novas formas de
çamento de Casa-grande & senzala. Seu carisma, que resultou em enorme acomodação. Mesmo assim nunca se chegará no século XIX a um padrão de
sucesso de público, está nisso mesmo, em ser um livro de combate, de ruptura acomodação tão equilibrado como o existente na época colonial, antes da de-
com as ideologias que nos inferiorizavam, de afirmação cientificamente funda- cadência do patriarcalismo rural.
da das possibilidades de engrandecimento nacional. Nos doze capítulos de Sobrados e mucambos, Gilberto Freire reconstrói
Os andaimes da "Introdução à história da sociedade patriarcal no Bra- esse processo de transformação do patriarcalismo com uma extraordinária
sil", tão proeminentes em Casa-grande e razão maior do seu impacto, pouco minúcia, ancorado sempre em enorme riqueza de documentos, que incluem
aparecem em Sobrados e mucambos. Neste se dá continuidade ao estudo de relatórios oficiais, livros, memórias, relatos de viagem, anúncios de jornal e
um dos temas centrais do primeiro livro, a família patriarcal, embora de uma assim por diante. Embora organizado em capítulos, cada um deles costuma
perspectiva diversa. Nele o estudo da família já não se subordina, como já foi escapar do tema central e digredir por assuntos conexos, não raras vezes inva-
mencionado, ao objetivo de combater as teses racistas e o determinismo geo- dindo os temas de outros. Na verdade, cada capítulo retoma o patriarcalismo
gráfico ou de valorizar nosso modo de ser.
Em Sobrados e mucambos o foco passa a ser a própria organização
patriarcal da sociedade. Passa a incidir sobre as mudanças dos arranjos 1 Ibid., p. XLI.

330 331
SOBRADOS E MUCAMBOS BRASILIO SALLUM JR.

de um ângulo diferente e segue o seu desdobrar no tempo desde o século individuada dos elementos, súditos e cidadãos, que surgem com mais força no
XVIII, mas quase sempre indo a período anterior, até o auge do Império, já na momento de decadência do patriarcalismo.
segunda parte do século XIX. A escrita anda, pois, em espiral, embora suas Para Freire, por quatro séculos a sociedade manteve sua forma patriar-
voltas sejam desiguais porque nem sempre os períodos explorados são os mes- cal na família, na economia e na cultura, com classes dominadoras - os senho-
mos nos diversos capítulos. res - de um lado e classes dominadas - os escravos - de outro. Embora o
Embora essas características e o volume mesmo da obra tomem Sobra- conteúdo e a substância tenham variado e, até, se contraposto à rigidez da
dos e mucambos dificil de resumir, a excepcional beleza do texto ameaça forma, esta foi para Freire predominantemente feudal, quer dizer, tendente a
fazer de quem o tenta um algoz desse exemplo raro de união bem-sucedida ser fixa, mantendo a separação das famílias em classes. Essa rigidez feudal
entre ciência e literatura. cabe, no entanto, mais perfeitamente à sociedade patriarcal "em suas zonas e
Não há como escapar de todo dessas dificuldades. Tenta-se, porém, re- períodos de maturidade - maturidade que se verificou no Recôncavo, em
duzi-las ao máximo, deixando que o texto de Gilberto Freire e a sua organiza- Pernambuco, no Maranhão, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, nas estâncias
ção em capítulos não se percam de todo. Daí a abundância das citações e as do Rio Grande do Sul, em períodos nem sempre coincidentes".3 E para que
junções de capítulos de temas próximos. A única violência maior foi feita em não haja engano quanto ao entendimento que Freire tem do patriarcalismo,
beneficio do entendimento do leitor: fez-se do material do capítulo "Raça, clas- mesmo na colônia, ele reiteradas vezes o caracteriza como "sociologicamente
se e região", o de número VII, o núcleo da seção que se segue. feudal, embora já misto, semifeudal, semicapitalista, em sua economia", 4 o que
aponta para uma economia voltada parcialmente para a troca mercantil.
Embora tenha se mantido relativamente fixa a forma inerente ao
FORMA E CONTEÚDOS DO PATRIARCALISMO BRASILEIRO patriarcalismo, flutuaram os seus conteúdos econômicos e geográficos, raciais e
culturais. Ele enumera: "o pastoreio, aqui, a extração de borracha, ali, o café, em
Patriarcal para Gilberto Freire não era apenas uma família - constituída São Paulo, o ouro e os diamantes, nas Minas Gerais, o açúcar, o tabaco, o algo-
pelo patriarca, pela mulher, pelos filhos, pelos descendentes, pelos parentes dão ou o cacau, no Norte" - todas essas variações geográficas e econômicas
pobres, pelos agregados e escravos, especialmente os de casa - mas também não quebraram "o sentido da unicidade sociológica de forma e de processo".5
um complexo de elementos econômicos, sociais e políticos em que ressalta, As famílias e classes que se articulavam e contrapunham segundo a for-
mais que todos, o escravismo. ma patriarcal estiveram, segundo Freire, "separadas, até certo ponto, pelas
Entretanto, mesmo quando se considera apenas o patriarcal is mo brasilei- raças que entraram na composição da gente brasileira com suas diferenças de
ro, suas variações são tantas - seja no tempo, seja no espaço - que o sociólogo tipo fisico, de configuração de cultura e, principalmente, de status ou de situa-
pode se ver na contingência de ter que explicar por que, apesar da multiplici- ção inicial ou decisiva".6 Com o tempo, continua ele, essas raças tomaram
dade de suas manifestações concretas, estas não lhe tiram a identidade e, "cores regionais diversas conforme as condições fisicas da terra, de solo e de
conseqüentemente, a condição de objeto de estudo. configuração de paisagem ou de clima e não apenas as culturais, de meio
Esta questão toma-se central na segunda edição de Sobrados e social".7
mucambos. Aí Gilberto Freire tenta mostrar que, ao longo dos quase quatro Sublinhe-se que para Freire a superposição entre classes e raças ocor-
séculos em que durou a escravidão entre nós, a sociedade patriarcal pode reu, no caso brasileiro, principalmente pela diferença de "status ou de situação
formar-se, amadurecer e decair sem perder sua forma, embora seus conteú-
dos e substâncias tenham flutuado no tempo e no espaço.
A contraposição mais evidente que se faz aí é entre forma e conteúdo, ) Ibid., p. 354.
4 Ibid., p. LIX.
embora também se explore no capítulo VII, secundariamente, a diferença , Ibid., p. LVIII.
relativa à natureza dos elementos que se articulam na sociedade patriarcal, • Ibid., p. 353.
classes e famílias - coletividades parciais, portanto -, e a natureza mais 7 Ibidem.

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SOBRADOS E MUCAMBOS BRASILIO SALLUM JR.

inicial e decisiva", isto é, pelo fato de a colonização ter-se iniciado com a A interpenetração entre classes, raças e região foi fenômeno tanto mais
conversão de africanos e nativos em escravos. De fato, complexo porque desde os começos da colonização estiveram presentes nas
incipientes áreas urbanas subgrupos que escapavam aos dois extremos, as
os dominadores eram invasores brancos ou europeus e seus descendentes puros ou classes intermediárias, compostas a princípio de mecânicos e pequenos co-
insignificantemente mesclados com gentes de cor; os dominados e utilizados como ins- merciantes vindos do reino ou da Europa. Essas classes estiveram mais aber-
trumentos de produção, de transporte e de trabalho, os nativos e, em face de sua Insufi-
tas à mobilidade ascendente dos homens de cor e, até, ao seu enriquecimento.
ciência antes de cultura que de capacidade fisica, os africanos e seus descendentes puros
B Os artesãos vindos do reino sofreram aqui a competição de muitos mestiços,
ou misturados com os nativos; ou mesmo com o sangue dos dominadores nas veias
hábeis em oficios e nas artes burocráticas aprendidas com senhores brancos
o mais importante, porém, é que essa polarização entre classes foi acom- ou em colégios de padre. Mais que isso, no Brasil, ao contrário de Portugal, em
quase todos os lugares, os homens vinculados a trabalhos mecânicos não fo-
panhada por intenso processo de amalgamento de raças e culturas, resultante
ram sistematicamente afastados dos cargos municipais. Nunca, é verdade,
dos cruzamentos que desde os primeiros dias se foram verificando entre dominadores tiveram possibilidade de ocupá-los homens pretos, apenas pardos claros, mula-
e dominados, entre homens do litoral e homens dos sertões, e que não raro resultaram tos semibrancos. Parece que em Pernambuco foi onde mais se mantiveram
em transferências de indivíduos e até de famílias inteiras de uma classe para a outra e, rígidas as distinções de classe e cor. Mas em geral encontra-se certa flexibili-
no plano ou espaço social, de uma raça para outra, com desprezo das insígnias e dos dade quanto a isso nas diversas regiões.
característicos biológicos e mesmo culturais de tipo étnico ou regional. 9 Segundo Freire, a interpenetração entre forma e conteúdos, regra em
nossa sociedade patriarcal, produziu, ao longo dos seus primeiros três séculos
Para Freire, a interpenetração dos dois processos foi a característica de existência, valores, hábitos e estilos de vida propriamente brasileiros, embo-
central da formação patriarcal brasileira, embora por vezes eles tenham entra- ra conservassem características diferenciais de classe, raça e região.
do em conflito. Sintetiza: Ao longo do século XIX, a sociedade patriarcal formada e amadurecida
no seu epicentro rural sofre profundas transformações, impulsionadas pela
Até o que havia de mais renitentemente aristocrático na organização patriarc~1 de
urbanização e pela europeização. Vários aspectos desse processo que Freire
família, de economia e de cultura foi atingido pelo que sempre houve de contagIOsa-
mente democrático ou democratizante e até anarquizante, no amalgamento de raças e
entende como de decadência são estudados pelo sociólogo e mostrados a
culturas e, até certo ponto, de tipos regionais, dando-se uma espécie de despedaçamento seguir.
das formas mais duras, ou menos plásticas, por excesso de trepidação ou inquietação
dos conteúdos. 10
A CIDADE CONTRA O ENGENHO. SOBRADO E MUCAMBO.
Resulta disso que, sem o exame em conjunto das condições de classe, O ESTADO CONTRA A FAMÍLIA
raça e região, a análise da organização patriarcal toma-se vazia, tendendo o
estudioso a generalizações falsas. Não se pode, por exemplo, "afirmar da nos- Embora ao longo dos séculos XVII e XVIII tenham ocorrido surtos de
sa formação que tenha sido substancialmente aristocrática no sentido de u~a urbanização e maior presença da Coroa na colônia, foi somente depois da
raça, de uma classe ou de uma região única. O que a nossa formação tem tldo chegada ao Brasil de D. João VI com sua Corte, no começo do século XIX,
é uma forma aristocrática dentro da qual vêm variando substâncias ou conteú- que o patriciado rural, que se consolidara nas casas-grandes de engenho e de
dos de raça, de classe e de região".l1 fazenda, começou a perder a majestade que tinha nos tempos coloniais.
Em todos aqueles surtos, em Pernambuco dos inícios do século XVII, em
8 lbidem. Minas do século XVIII ou em situações similares, Gilberto Freire vê desafios,
9 lbid., p. 354. seja de princípios burgueses ainda incipientes; seja de uma Coroa antes em
10 lbid., p. 355.
II lbid., p. 377.
geral ausente, à autonomia e à superioridade social da família patriarcal

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SOBRADOS E MUCAMBOS BRASILIO SALLUM JR.

sediada nas casas-grandes sobre o restante da sociedade, fossem escravos ou Ao mesmo tempo, com a transferência do poder patriarcal para os so-
gente livre dedicada aos oficios mecânicos ou ao comércio. brados, ocorreu "uma diminuição de distância não só fisica como social entre a
A partir dos princípios do século XVIII, mais interessada no ouro e nos gente senhoril e atividades mecânicas, comerciais, industriais que começaram
diamantes da colônia, a Coroa portuguesa passa a deixar um pouco de lado a a desenvolver-se, nas mesmas cidades, em relativa independência dos senho-
grande lavoura. E principalmente no Sul- em Minas e São Paulo - a metrópo- res de sobrados, embora, principalmente, para seu uso e conveniência".15 A
le passa a ser um elemento de exploração de riqueza ao invés de deixar ou serviço dos sobrados surgiram marcenarias e carpintarias, boticas e drogarias,
promover o seu desenvolvimento como fizera nos dois primeiros séculos. Para sorveterias onde também vendiam-se doces finos; lojas de miudezas ou de
readquirir o domínio sobre a colônia que vivia de rédea solta "convém-lhe a ferragens, armazéns de secos e molhados, alfaiatarias, casas de pianos e de
aliança com a plebe das cidades, contra os magnatas rurais; com os mascates, música, colégios, bancos, etc.
contra os nobres; com os mercadores de sobrado do litoral, contra os senho- Mesmo o sobrado, que de início tinha sido mais senhorial que burguês, foi
res das casas-grandes do interior; com os mulatos, até, contra os brancos de diminuindo de tamanho e complexidade social à medida que se adensava a
água doce" Y vida urbana.
Os processos econômicos e políticos que provocam essa diferenciação,
esse desdobramento da economia e da sociedade patriarcal em rural e urbana, As senzalas [foram] tornando-se menores que nas casas de engenho: tornando-se
só o fizeram muito lentamente. De início a casa-grande urbana, o sobrado, foi "quartos para criados" [... ) Mas enquanto as senzalas diminuíam de tamanho, engros-
sociologicamente quase extensão do domínio rural, savam as aldeias de mucambos e de palhoças, perto dos sobrados e das chácaras.
Engrossavam, espalhando-se pelas zonas mais desprezadas das cidades.16
com os mesmos modos derramados, quase com as mesmas arrogâncias, da casa de Estabeleceram-se desde então contrastes violentos de espaço dentro da área urbana e
engenho ou de fazenda: fazendo da calçada, picadeiro de lenha, atirando para o meio suburbana: o sobrado ou a chácara, grande e isolada, no alto, ou dominando espaços
da rua o bicho morto, o resto de comida, a água-servida, às vezes até a sujeira do enormes, e as aldeias de mucambos e os cortiços de palhoças embaixo, um casebre por
penico. A própria arquitetura do sobrado se desenvolvera fazendo da rua uma serva: cima do outro, os moradores também, um por cima do outro, numa angústia anti-
as biqueiras descarregando com toda força sobre o meio da rua as águas da chuva; as higiênica de espaço. Isto nas cidades de altos e baixos como o Rio de Janeiro e a capital
portas e postigos abrindo para a rua; as janelas - quando as janelas substituíram as da Bahia. No Recife os contrastes de espaço não precisaram das diferenças de nível.
gelosias - servindo para os homens escarrarem na ruaY Impuseram-se de outro modo: pelo contraste entre o solo preciosamente enxuto e o
desprezivelmente alagado, onde se foram estendendo as aldeias de mucambos ou
casas de palha. 17
Para Gilberto Freire, a casa-grande de engenho ou fazenda, o sobrado
urbano e a casa de sítio (ou chácara, como se diz da Bahia para o sul), foram
variações da casa patriarcal, Dessa forma, para o sociólogo pernambucano, rompe-se o equilíbrio en-
tre os antagonismos existentes nos engenhos e nas fazendas do antigo patriar-
com senzala, oratório, camarinha, cozinha que nem as de conventos [... ], chiqueiro, cado rural. Com a urbanização, escreve, "o equilíbrio entre brancos de sobrados
cocheira, estrebaria, horta, jardim. As casas de engenho e de sítio dando a frente para e pretos, caboclos e pardos livres de mucambos não seria o mesmo que entre
estradas quase intransitáveis; outras para os rios, os sobrados, para ruas sujas, ladei- brancos das velhas casas-grandes e os negros das senzalas".18
ras imundas, por onde quase só passavam a pé negros de ganho, muleques a empina- Essa dissociação permitiu até que os negros e mulatos livres se organi-
rem seus papagaios, mulheres públicas. Menino de sobrado que brincasse na rua zassem, nos mucambos, segundo formas sociais totalmente distintas das patriar-
corria o risco de degradar-se em muleque; iaiá que saísse sozinha de casa, rua afora,
cais. Segundo Freire, manifestava-se nas mocambarias ou aldeias de palhoças
ficava suspeita de mulher pública l4

" Ibid., p. 134.


12 Ibid .• p. 16. 16 Ibid., pp. 152-153.
II Ibid., p. XLIII. 17 Ibid., p. 234.
14 Ibid., p. 152. 18 Ibid., p. 153.

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~*
.
SOBRADOS E MUCAMBOS BRASlLIO SALLUM JR.

,
\ ' "
ou casebres, fundadas nas cidades do Império, por negros livres ou fu~i~os ?e Sua figura acabou enobrecida na do correspondente, na do comissário de açúcar ou
engenhos, o desejo de reviverem estilos africanos de habitação e conVIVenCla. café, na do banqueiro. Aristocrata da cidade, de corrente de ouro em volta do pescoço,
"Em algumas dessas aldeias a convivência parece ter tomado asp.ectos. de de cartola inglesa, morando em sobrado de azulejo, andando de vitória de luxo, comen-
do passa, figo, ameixa, bebendo vinho-do-porto [ ... ] Tudo à custa, muitas vezes, do
organização de família africana, com 'pais', 'tios' e 'malungos', socIOl~glca­
maria-borralheira que ficava no mato, junto à fornalha do engenho, moendo cana,
mente africanos, espalhados por mucambos que formavam comumdades fabricando açúcar, destilando aguardente; ou então plantando seu café ou cavando
suprafamiliais ou repúblicas."19 ~ . sua mina [ ... ] Muitas vezes não comendo senão carne-seca e bebendo vinho de jenipapo
As polarizações sociais então se acentuam, nao havendo nesse melO ur- ou alegrando-se com cachaça. 23
bano dominado pelo sobrado zonas de confraternização, porque
Muitas vezes, diz o mestre de Apipucos, nem sempre. De fato, sem a
os jardins, os passeios chamados públicos, as praças sombreadas de gameleira.s, e, restrição, a interpretação fica demasiado unilateral, pois "houve os que tive-
por muito tempo, cercadas de grades de ferro semelhantes às que foram substltumdo ram no comissário ou no correspondente, amigo honesto, que em vez de para-
os muros em redor das casas mais elegantes, se limitavam ao uso de gente de botma,
sita do dono de terras, ao contrário, conservou e até aumentou a fortuna do
de cartola, de gravata, de chapéu-de-sol [ ... ] [Limitavam-se] ao uso e gozo do homem
de certa situação social- mas do homem, só do homem, a mulher e o menmo conser-
comitente desmazelado, ignorante de tudo, até da extensão ou dos limites de
vando-se dentro de casa, ou, no fundo do sítio, quando muito na varanda, no postigo,
seus domínios e do volume de sua produção".24
no palanque do muro, na grade do jardim 20 Complementarmente, o poder do patriarca - fosse o que se mantinha na
casa-grande fosse o que tinha sede no sobrado senhorial - foi declinando à
A exclusão vai mais longe, porém. medida que cresceram outras instituições, colocando contrapesos à sua influ-
ência: "a Igreja pela voz mais independente dos bispos, o Governo, o Banco, o
Não só os negros de pé no chão [ ... ] como aos próprios caixeiros de chinelo de tapete Colégio, a Fábrica, a Oficina, a Loja".25 Em especial o declínio do seu poder
e cabelo cortado à escovinha e até aos portugueses gordos de tamanco e cara raspada político foi acompanhado, à medida que a diferenciação da sociedade avança-
estavam fechados aqueles jardins e passeios chamados públicos, aquelas calçadas e
va, "do aumento do poder político público, encarnado por órgãos judiciais, poli-
ruas nobres, por onde os homens de posição, senhores de barba fechada ~u ~e suíças,
ciais, ou militares ou simplesmente burocráticos do governo monárquico".26
de botinas de bico fino, de cartola, de gravata, ostentavam todas essas mSlgmas de
raça superior, de classe dominadora, de sexo privilegiado, à sombra de chapéus-de-sol Essas alterações no peso relativo das instituições permitiram que surgissem
de quase réis 21 outras figuras de homem de prestígio na sociedade escravocrata capazes de
dissolver o absolutismo do pater familias: o médico, por exemplo; o mestre-
Não havia zonas, mas, sim, movimentos de confraternização entre os régio; o diretor de colégio; o presidente de província; o chefe de polícia; o juiz;
extremos sociais - procissão, festa de igreja, o entrudo. Tais movi~entos é o correspondente comercial". 27
que lentamente, segundo Freire, "foram fazendo das ruas e praças m~l~ largas Sublinhe-se que, em Sobrados e mucambos, esse processo de redução
- da rua em geral- zonas de confraternização. Marcaram um prestigIO novo do poder particular do patriarca rural e também do senhor de sobrado urbano
no nosso sistema de relações sociais: o prestígio da rua".22 . nâo resulta de processo harmonioso de diferenciação social e institucional.
O processo de urbanização conduziu, aos poucos,.ao domínio econ~mlco Não. Para Gilberto Freire, a Igreja, a ciência médica, a lei, o Estado não pres-
da cidade sobre o campo, com os agricultores submetidos cada vez maIS, ao sionaram somente desde fora a autonomia da família tradicional brasileira.
longo do século XIX, ao domínio do intermediário.

21 Ibid, pp. 14-15.


19 Ibid., p. 294. 24 Ibid., p. 19.
20 Ibid., p. XLII. 2l Ibid, p. 122.
2l Ibzdem. ,. Ibid., p. LXXI.
22 Ibid., p. XLIII. 17 Ibid., p. 122.

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~
' ......
BRASILIO SALLUM JR.
SOBRADOS E MUCAMBOS
i I :
'"

%. : Essas contraposições, nascidas do encolhimento do absolutismo do pater


Aqueles processos sociais e as instituições que deles resultaram também res-
familias, ocorrido no século XIX, são esmiuçadas pelo autor ao longo do livro.
tringiram por dentro o absolutismo do poder patriarcal. Ele mostra que
Em "O pai e o filho", terceiro capítulo de Sobrados, se sublinha a distân-
as próprias gerações mais novas de filhos de senhores de engenho, os rapazes educa-
cia social imensa que havia entre eles durante o velho patriarcalismo.
dos na Europa, na Bahia, em São Paulo, em Olinda, no Rio de Janeiro, foram-se
tornando, em certo sentido, desertores de uma aristocracia cujo gênero de vida, cujo Tamanho era o prestígio do homem feito [ ... ] que o menino, com vergonha da menini-
estilo de política, cuja moral, cujo sentido de justiça já não se conciliavam com seus ce, deixa-se amadurecer, morbidamente antes do tempo. Sente gosto na precocidade
gostos e estilos de bacharéis, médicos e doutores europeizados. Afrancesados, que o liberta da grande vergonha de ser menino [... ] Tamanho é o prestígio da idade
grande, avançada, provecta [ ... ] que o rapaz imita o velho desde a adolescência. E trata
urbanizados e policiados.
de esconder por trás de barbas de mouro, de óculos de velho, ou simplesmente de uma
O bacharel- magistrado, presidente de província, ministro, chefe de polícia - seria, na
fisionomia sem pre severa, todo o brilho da mocidade, toda a alegria da adolescência,
luta quase de morte entre a justiça imperial e a do pater familias rural, o aliado do
todo o resto de meninice que lhe fique dançando nos olhos ou animando-lhe os gestos.
Governo contra o próprio Pai ou o próprio Avô. O médico, desprestigiador da medi-
cina caseira, que era um dos aspectos mais sedutores da autoridade como que matriarcal Até certa idade, [o filho] era idealizado em extremo. Identificado com os próprios
de sua mãe ou de sua avó, senhora de engenho. Os dois, aliados da Cidade contra o anjos do céu. Criado como anjo: andando em casa como um Meninozinho Deus [... ]
Engenho. Da Praça contra a Roça. Do Estado contra a F aml'1'la. 28 Mas essa adoração do menino era antes dele chegar à idade teológica da razão. Dos
seis aos dez, ele passava a menino-diabo. Criatura estranha que não comia na mesa
nem participava de modo nenhum da conversa de gente grande. Tratado de resto.
Dessa forma, mostra-nos Freire, os patriarcas deixaram de ser os donos
Cabeça raspada: os cachos do tempo de anjo guardados pela mãe sentimental no
quase absolutos da sociedade brasileira - como tinham sido no período colo- fundo da gaveta da cômoda ou oferecidos ao Senhor dos Passos para a cabeleira de dia
nial mormente antes de a Coroa fazer-se presente em função da descoberta de procissão.
do ~uro. Nessa segunda época do patriarcalismo, na época em que ele se E porque se supunha essa criatura estranha, cheia do instinto de todos os pecados [... ]
urbanizou a sociedade brasileira se consolidou, "em tomo de um Governo mais seu corpo era o mais castigado dentro da casa. Depois do corpo do escravo, natural-
forte, de ~ma Justiça mais livre da pressão de indivíduos poderosos, de uma mente. Depois do corpo do muleque leva-pancada, que às vezes apanhava por ele e
Igreja também mais independente das oligarquias regionais e mais pura na vida pelo menino branco. Mas o menino branco também apanhava [ ... ] Castigado por uma
sociedade de adultos em que o domínio sobre o escravo desenvolvia, junto com as
de seus padres"."9 responsabilidades de mando absoluto, o gosto de judiar também com o menino.
Essa pedagogia sádica, exercida dentro das casas-grandes pelo patriarca, pelo tio-
padre, pelo capelão, teve com a decadência do patriarcado rural seu prolongamento
o PAI E o FILHO. O HOMEM E A MULHER mais terrível nos colégios de padre e nas aulas dos mestres-régios [ ... ] Os pais auto-
rizavam mestres e padres a exercerem sobre os meninos o poder patriarcal de castigá-
A decadência do patriarcalismo, para Gilberto Freire, não é apenas um los à vara de marmelo e à palmatória [ ... ] Através de processo tão cru de ensinar ao
fenômeno que ocorre no plano global. A decadência ocorre também dentro da aluno o Latim, a Gramática, a Doutrina, as boas maneiras, conservou-se enorme
família patriarcal. Ao longo do século XIX, há "menos absorção do filho pelo distância entre o homem e o menino. 31

pai, da mulher pelo homem, do indivíduo pela família, da família pelo chefe, do
escravo pelo proprietário; e mais individualismo - da mulher, do menino e do Como se vê, a distância social e o antagonismo entre pai e filho termina-
negro - ao mesmo tempo que mais prostituição, mais miséria, mais doença. vam por se resolver por repetição, o filho assumindo os modos do pai e, depois,
funções similares. O regime das casas-grandes continuou a imperar, embora
Mais velhice desamparada. Período de transição".30
atenuado, nos sobrados. Nesse período de decadência do patriarcalismo,

,. Ibid., p. 18.
29 Ibid., pp. 21-22. II Ibid., pp. 67-70.
lO Ibid., p. 22.

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SOBRADOS E MUCAMBOS BRASILIO SALLUM IR.

"semelhante antagonismo não desaparece: transforma-se, ou antes prolonga- tunidades de ação social, de contatos diversos, toda a iniciativa, limita a mulher
se na rivalidade entre o homem moço e o homem velho".32 aos serviços e artes domésticas, ao contato com os filhos, a parentela, as amas,
, No século XIX, antes mesmo da sua metade, já se observa nítida mudan- os escravos e, por vezes, com o padre-confessor.
ça nas relações entre pais e filhos jovens. Estes começam a se difere~ciar Freire sumariza, com palavras fortes: "a extrema diferenciação do sexo
daqueles, nos livros de leitura, no falar alto e nas opiniões próprias enuncIadas feminino em 'belo sexo' e 'sexo frágil' fez da mulher de senhor de engenho e
sem solicitação dos mais velhos, no agir por vezes por conta própria, no menor de fazenda e mesmo de iaiá de sobrado, no Brasil, um ser artificial, mórbido.
respeito pela religião, na forma de cortejar as moças, na maneira de tratar os Uma doente, deformada no corpo para ser a serva do homem e a boneca de
mais velhos, os avós de barba branca e os "senhores pais" aos poucos chama- carne do marido".35
dos de "vovôs" e "pais" e "papais". Não era sempre assim, porém. Houve casos e casos de mulheres, sobre-
Embora na primeira metade do século homens moços, bacharéis recém- tudo de engenho, com energia não só para dirigir a casa, mas também para
formados, começassem a ocupar cargos públicos, foi com Pedro II que essa administrar engenhos e fazendas, para dirigir a política partidária da família,
tendência se acentuou. Mesmo que esses moços, agora poderosos, em tudo para guerrear e assim por diante.
imitassem os velhos, Esse padrão de subordinação extrema entre os sexos se alterou muito
quando o patriarcalismo se desenvolveu nas cidades, embora nos sobrados os
ainda assim, sua ascensão social e política não se fez sem a hostilidade, ou, pelo contatos da mulher com o mundo social circundante fossem bastante limita-
menos, a resistência dos mais velhos. Eles foram impostos aos mais velhos pela dos. Aos conservadores, sublinha ele, parecia que a mulher rigorosamente pa-
vontade do Imperador, que viu talvez nos homens de sua geração e de sua cultura triarcal estivesse sendo substituída, já na primeira metade do século XIX, por
literária e jurídica os aliados naturais de sua política de urbanização e de centralização,
um tipo de mulher menos servil e mais mundano, lendo romance, olhando a rua
de ordem e paz, de tolerância e de justiça. Política contrária aos excessos de turbulên-
cia individual e de predomínio da família, ás autonomias baseadas, às vezes, em
da janela ou da varanda, estudando lição de música, de francês ou de dança. E
verdadeiros fanatismos em torno dos senhores velhos H acrescenta no seu estilo característico:

Assim, à medida que avança o século XIX, tanto no âmbito doméstico Muito menos devoção religiosa que antigamente. Menos confessionário. Menos con-
versa com as mucamas. Menos história da carochinha contada pela negra velha. E
como no extradoméstico, "começam a ser rivais: o Filho e o Pai, o moço e o
mais romance. O médico da família mais poderoso do que o confessor. O teatro
velho, o bacharel e o capitão-mor. O adulto respeitável já não era apenas o seduzindo a mulher elegante mais que a igreja. O próprio "baile mascarado" atraindo
patriarca velho; também o seu filho, o senhor-moço. O senhor-moço retórico, senhoras de sobrado. J6
polido, urbano. Educado na Europa ou na Bahia. Em Olinda ou São Paulo"?4
Quanto à mulher, diversamente do filho, o regime patriarcal agrário pro- Mesmo assim, conclui o sociólogo, até onde a urbanização mais se de-
curava torná-la o mais diferente possível do homem. Ele como o sexo forte e senvolveu, as oportunidades de a mulher intervir nas atividades extradomésticas
nobre ela como o sexo fraco e belo. Mas beleza meio mórbida, lembra Freire, continuaram insignificantes. Elas eram graciosas e quase inócuas.
de me~ina franzina e de senhora gorda. Segundo nosso autor, essa diferencia- E, embora no Império tenha havido exemplos de mulheres que intervie-
ção extrema dos sexos conviria para a exploração da mulher pelo homem. ram nos assuntos gerais da vida brasileira, Freire ainda considera que o tipo
Essa diferenciação exagerada justificaria o padrão duplo de moralidade. Pa- mais comum de mulher de sobrado era o voltado para os assuntos domésticos
drão duplo que não dizia respeito apenas ao sexo fisico, mas ao resto das e de família, desinteressada dos negócios e dos amigos políticos do marido,
atividades sociais. Enquanto o sistema patriarcal dá ao homem todas as opor- quando muito "às margens sentimentais do patriotismo e da literatura" Y

" Ibid., p. 94.


J2 Ibid., p. 67.
36 Ibid., p. 110.
B Ibzd., p. 82.
37 Ibid., p. 122.
J4 Ibid., p. 88.

342 343
~
BRASILIO SALLUM JR.
SOBRADOS E MUCAMBOS

Outra mostra de como o elemento sociológico aristocrático tendia a su-


Assim, o patriarcalismo produziu uma extrema diferenciação e subordi-
perar o biológico são os casos em que "o indivíduo com nome de família pelo
nação entre homens e mulheres, nos corpos, nas vestimentas, nos modos de
lado paterno - normalmente o lado dominante - obscuro ou desprezível (às
falar nas esferas de atividades e influência. vezes por ser nome de imigrante ou africano ou ostensivamente plebeu), refu-
, O surgimento, por volta de meados do século, dos bailes de carn~val em
giava-se ou no nome da família materna ou no nome da família do padrinho,
teatro público introduziu uma válvula de escape para as tensões surgidas de
para proteger-se, proteger o seu futuro e proteger os descendentes".4o
coibições tão estritas.

N uma sociedade como a patriarcal brasileira, cheia de repressões, abafos, opressões,


o carnaval agiu como, em plano superior, agiu a confissão: como meio de se livrarem
ORIENTE E OCIDENTE. A MÁQUINA E o ESCRAVO
homens mulheres, meninos, escravos, negros, indígenas, de opressões que, doutro
JS
modo, : muitos teria sobrecarregado de recalques, de ressentimentos e fobias. A chegada de D. João VI e sua corte ao Brasil no ano de 1808 foi, para
Gilberto Freire, já se viu, um marco importante no processo de urbanização e
Para Gilberto Freire, a compartimentalização da conduta entre os sexos de decadência do patriarcalismo agrário. Ademais, a transferência da família
empobreceu ao extremo as esferas extradomésticas da vi~a social. .N~ ~istória real para o Brasil e a abertura dos portos às nações amigas - de início só a
política e literária, diz ele, impressiona a preponde~âncl~ do sUbjet1:'lsmo, a Inglaterra - marcaram uma inflexão crucial nas relações da nossa sociedade
grande falta de interesse por problemas concretos, lm~dl~tos e lOCais. A au- patriarcal com o mundo. Sua tese central é a de que a urbanização do século
sência quase completa de objetividade, que se pode atnbUlr a quase nenhuma XIX não foi só urbanização, foi também europeização do brasileiro,
intervenção feminina naqueles tipos de atividade. É o que se pe~cebe no "ro- ocidentalização de uma civilização que nascera agrária e agrícola e absorvera,
mantismo jurídico", forma muito comum e tipicamente mascuhna de ver os como seus, costumes orientais.
problemas sociais nos tempos patriarcais do século XIX. Com efeito, para Gilberto Freire os três séculos de relativa segregação
Vale anotar nesse passo que, embora Gilberto Freire rechace qualquer do Brasil em relação à Europa não-ibérica
idéia de superioridade natural entre os sexos, afirma sua diferença biopsíquica.
Nisso os sexos teriam similaridade com as raças. Embora sejam diferentes, e, em certas regiões, de profunda especialização econômica e de intensa endogamia-
não s; pode associar tais diferenças a uma escala de superioridade~in!erio~i­ em São Paulo, na Bahia, em Pernambuco - definira-se ou, pelo menos, esboçara-se um
tipo brasileiro de homem, outro de mulher. Um tipo de senhor, outro de escravo. Mas
dade natural. Estas devem ser entendidas como derivadas das condlçoes his-
também um meio-termo: o mulato que vinha aos poucos desabrochando em bacharel,
tórico-culturais. E as próprias inclinações biopsíquicas dos sexos e das raças em padre, em doutor, o diploma acadêmico ou o título de capitão de milícias servindo-
ajustam-se a moldes histórico-culturais. Em suma, o ensinamento de Franz lhe de carta de branquidade. A meia-raça a fazer de classe média, tão débil no sistema
Boas sobre a relação raça e cultura é ampliado pelo sociólogo pernambucano, colonia1. 41
seu ex-discípulo, para incluir também as diferenças sexuais.
No sistema patriarcal, o sistema de diferenças biológicas foi, segundo Ao dizer que, no Brasil, se definira ou, pelo menos, se esboçara um tipo
Freire, amplamente superado pela configuração sociológica. A libertação da brasileiro de homem e mulher, Gilberto Freire está sublinhando um ponto-cha-
mulher do despotismo do pai ou do marido, quando ocorria, geralmente obede- ve de sua concepção. De que se produzira nos três séculos de colonização do
cia a formas patriarcais. Ocorria, em geral, quando a mulher su.bstit~ía o ho- trópico uma civilização original, a brasileira. Civilização patriarcal, escravista e
mem. Naquele sistema, "a mulher mais de uma vez tomou-se soclOlog1camente tropical que teve no Oriente asiático, mourisco e africano uma fonte funda-
homem para efeitos de dirigir a casa, chefiar família, administrar fazenda".39

'" Ibid., pp. 133-134.


JS Ibid., p. 111. 41 Ibid., p. 308.

39 Ibid., p. 133.
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SOBRADOS E MUCAMBOS BRASILIO SALLUM JR.

mental de traços culturais conformadores, de aspirações, de valores. Oriente, As condições da colônia portuguesa eram tão exóticas, do ponto de vista
é claro, trazido para cá principalmente pelos portugueses - mas não só eles - da civilização européia que se estava formando no século XIX - civilização
a serviço da colonização do trópico. Para Freire, o ambiente tropical, ensolarado, industrial, comercial, mecânica, burguesa -, que a renovação do contato da
estimulara os portugueses a assimilar na América as formas de construção, as Europa não-ibérica com o Brasil, depois da chegada de D. João VI, teve um
plantas, o mobiliário, o vestuário, a alimentação com que viram mouros, chine- caráter de reeuropeização, de reconquista para o Ocidente.
ses, hindus adaptarem-se a clima similar. O ponto central aqui é que, para Gilberto Freire, essa reeuropeização
Apropriaram-se da mangueira, da jaqueira, da gameleira em volta das impôs, este é o termo que usa, uma série de atitudes morais e padrões de vida
casas, das casas de telhado acachapado no estilo dos pagodes da China, da que, espontaneamente, não teriam sido adotados pelos brasileiros. Isso signifi-
varanda à moda indiana, dos refrescos de tamarindo, de limão e de água de ca que, para ele, as mudanças sociais ocorridas no sistema patriarcal no século
coco e de muito mais. Esses valores orientais foram assimilados pelo Brasil XIX não podem ser atribuídas apenas à diferenciação interna do sistema eco-
através dos portugueses, mouros, judeus e negros. E o que é mais importan- nômico e social, mas também a impulsos transformadores vindos de fora, da
te, ao menos do ponto de vista do entendimento de Sobrados e mucambos: Europa que se aburguesava e se industrializava.
"O Brasil fizera-os valores seus. Ao findar o século XVIII eram valores O sociólogo pernambucano crê poder distinguir duas etapas nesse pro-
brasileiros. Ligavam amorosamente o homem e a sua casa à América Tropi- cesso de ocidentalização da sociedade patriarcal. A primeira vai até a metade
cal. Não podiam deixar de afetar a mentalidade ou o espírito dos homens, do século XIX, quando se interrompe de fato o tráfico de escravos africanos
certo como é que o hábito tende a fazer o monge: tanto o hábito-trajo como para o Brasil, e a segunda transcorre daí em diante - em passo acelerado - até
o hábito-costume".4~ o final da escravidão e do Império. Certamente o processo tem seqüência com
O próprio Gilberto Freire, porém, fará restrições a um reconhecimento a República, mas não é tratado em Sobrados e mucambos.
tão enfático do poder dos costumes assimilados do Oriente para conformar a A primeira metade do século foi, para Freire, ainda período de relativo
sociedade brasileira. Em primeiro lugar, salienta ele, foi o comércio português equilíbrio entre pressões ocidentalizantes e a resistência nativa. As primeiras
que garantiu contato tão próximo do Brasil com o Oriente e ele dependeu do derivaram dos interesses e valores europeus, especialmente ingleses, mas tam-
tráfico de escravos necessário à manutenção do sistema escravocrata e pa- bém de parte das elites dirigentes e intelectuais para quem a salvação de Por-
triarcal brasileiro. Em segundo lugar, a facilidade de incorporação dos hábitos tugal ou do Brasil estava em perderem formas e cores orientais para adquirirem
e valores orientais pela sociedade brasileira não se devia apenas ao ambiente "as formas, as cores e os gestos dominantes no Ocidente perfeitamente civili-
tropical que lhes era comum, mas também às "semelhanças dos sistemas pa- zado. E para eles o Ocidente perfeitamente civilizado eram a Inglaterra e a
triarcais das duas áreas".43 Tomadas em conta essas restrições, ainda se po- França. Principalmente a Inglaterra. Donde o sentido sociológico da frase que
derá dizer que, dentro de certos limites, o hábito-costume faz o monge, pois "o desde os princípios do século XIX se generalizou no Brasil: 'para inglês ver'''.45
Oriente concorreu para avivar as formas servis e senhoris dessa convivência A resistência, no entanto, não foi pequena. Mesmo depois da Independência, o
entre nós: os modos hierárquicos de viver o homem em família e em socieda- Brasil, "tornado zona de influência ou de domínio econômico da Grã-Bretanha,
de. Modos de viver, de trajar e de transportar-se que não podem ter deixado de não se desprendeu de repente dos velhos laços que o ligavam ao Oriente, a
afetar o modo de pensar".44 despeito das dificuldades criadas pelos ingleses ao comércio direto do Brasil
Essa orientalização não transforma, porém, o Brasil em Oriente. Tal como com os portos orientais tradicionalmente ligados à nossa economia e à nossa
Portugal, mas de modo orientalmente mais acentuado, o Brasil colonial foi uma cultura".46 De fato, segundo ele,
sociedade "de transição" entre Oriente e Ocidente.

42 Ibid., p. 431.
" Ibid., p. 427.
4l Ibid., p. 432.
46 Ibid., p. 448.
44 Ibid., p. 424.

346 347
BRASILlO SALLUM JR.
SOBRADOS E MUCAMBOS

os anúncios de jornal revelam [ ... ] como persistiu na população, resistindo ao im pac-


Corte, em construções urbanas, em transporte, criação de gado, "mecanização
to da produção industrial européia, o gosto pelos artigos orientais a cujo uso ou gozo dos serviços públicos ou particulares até então movidos a braço escravo".49
o brasileiro se afeiçoara durante o longo período de sua experiência colonial; e que Já em 1828 importávamos grande variedade de novos materiais e meios
correspondiam melhor que os europeus - produtos de uma civilização individualista, de produção, como aço, folhas-de-flandres, cobre para forro, arreios de carro,
racional, secularizada - ao seu sistema de vida e aos seus estilos de cultura impregna- carruagens, arame, máquinas, caldeiras, fomos, fogões, carvão-de-pedra.
dos, como os do Oriente, de facilíssimo, de patriarcalismo e de revisionismo ou
misticismo. Os conteúdos ou substâncias eram, por certo, diferentes e até antagôni-
47 Duros, negros e cinzentos artigos que o começo da substituição do escravo pelo
cos; mas as formas dos dois sistemas - o oriental e o brasileiro - semelhantes
animal, dos dois pelo colono europeu e pela máquina a vapor, dos palanquins e
bangüês do Oriente pelos carros velozes, de duas e quatro rodas, do Ocidente [ ... ]
Esse período de relativo equilíbrio e de conciliação de arcaísmos com Não tardaram a chegar [ ... ] barcos a vapor. E no meado do século, trilhos de vias
modernismo, de exotismos ocidentais com os valores da terra encerrou-se com férreas, locomotivas, vagões. Viriam os canos: água encanada das fontes para as casas.
o fim efetivo, por pressão britânica, do tráfico de escravos; comércio que era o Canos de esgotos das casas para o mar ou para os rios [ ... ] Canos de gás.
elo forte que vinculava o Brasil patriarcal ao Oriente. Era o desaparecimento do chafariz, da água carregada por escravo, do excremento
A partir daí conduzido por negro, das ruas iluminadas a azeite, quando não por particulares que se
faziam preceder por escravos com lanternas ou tochas. Toda uma revolução técnica
aumentou a variedade de sedas, fazendas, porcelanas, móveis, vidros, ferros, aos que que assumiria aspectos de renovação não só da economia como da organização social
os navios europeus vinham trazendo para o Brasil, desde 1808, por preços inferiores e da cultura brasileira. Da própria paisagem. Principalmente na área dos sobrados e
aos dos artigos do Oriente [ ... ] As imitações ocidentais de marfim, de tartaruga, de dos mucambos 50
seda, de casimira, de cambraia foram pondo ao alcance de maior número de pessoas,
no Brasil, artigos que, quando autênticos e feitos à mão no Oriente, só haviam sido
Mas as novas máquinas e os novos materiais não apenas substituíam o
aqui adquiridos pelos fidalgos, pelos ricos, ou pelos remediados, construindo insígni-
trabalho escravo, mas também empregavam negros e mulatos livres. Estes
as ou privilégios de classe ou de raça senhoris ou de indivíduos em ascensão social. A
vitória do Ocidente industrial sobre o Oriente artesão teve, no Brasil, efeito nitida- foram "auxiliares poderosos de técnicos e mecânicos ingleses, franceses e
mente democratizante. 48 de outros países da Europa, na obra de mecanização da técnica de produção
e de transporte entre nós e também na de saneamento dos sobrados ou das
O aspecto mais relevante, porém, da ocidentalização do país não esteve casas urbanas". 51
tanto nas mudanças de objetos de consumo e de fonuas de agir que a eles se Na segunda metade do século XIX, as oficinas e os trabalhos mecânicos
associavam, como na incorporação de meios de produção e de transporte - de das ferrovias, das minas e das fundições encheram-se de brasileiros pobres e
pessoas e materiais - ao nosso sistema econômico e social, antes dependente livres - na maioria mestiços. Isso ocorreu também nas atividades que passa-
apenas da força do escravo e, quando muito, do animal. ram a utilizar máquinas, pois precisavam de maquinistas, isto é, mecânicos de
Embora desde 1808 tenha havido crescente importação desses meios de novo tipo. Estrangeiros de início, os maquinistas "não tardaram a ser, em gran-
produção e transporte para o país, Freire vê na falta relativa de escravos - de parte, brasileiros, isto é, mestiços e negros livres [... ]; e a muitos essa perí-
ocasionada pela interrupção legal, mas longe de completa, do tráfico de negros cia proporcionou a desejada ascensão social".52
africanos na década de 1830 - um impulso adicional para sua intensificação. A A inclusão do trabalhador técnico estrangeiro - homem livre - em meio
cessação definitiva do tráfico, no meio do século, além de interromper as co- aos processos produtivos e de transporte, antes executados inteiramente por
nexões com o Oriente, de restringir ainda mais os escravos disponíveis, liberou
massas grandes de capital que passaram a ser investidos principalmente na
49 lbid., p. 549.
,. Ibid., p. 54!.
" lbid., p. 529.
47 lbid., p. 443. " Ibid., p. 533.
48 lbid., p. 445.

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348
SOBRADOS E MUCAMBOS BRASILIO SALLUM JR.

escravos, veio a diminuir a figura, outrora onipotente do senhor. A máquina, tolerarem a vida rural na sua pureza rude". De qualquer maneira, não eram os
quando conduzida pelos naturais da terra - principalmente o mestiço, mas tam- seus novos segmentos econômicos, negociantes ou industriais, as figuras mais
bém o branco pobre, sem outra riqueza ou nobreza que a da sua técnica - foi enobrecidas dessa classe; bacharéis e doutores encarnavam a nova nobreza.
mais além: reduziu a importância não só do senhor como do escravo. Da pró- Essa nova aristocracia, surgida da urbanização, absorveu como suas in-
pria escravidão. Ela vinha valorizar principalmente o mestiço, o mulato, o meio- sígnias de mando os novos valores que começaram a tomar-se dominantes no
sangue livres. E Freire conclui: "A máquina vinha concorrer para fazer de uma Brasil independente. Valorizava-se
meia-raça uma classe média".53
Gilberto Freire chama a atenção para outro efeito importante das trans- a Europa, mas uma Europa burguesa, donde nos foram chegando novos estilos de
vida, contrários aos rurais e mesmo aos patriarcais: o chá, o governo de gabinete, a
formações operadas pela urbanização e europeização no patriarcalismo brasi-
cerveja inglesa, a botina Clark, o biscoito de lata. Também roupa de homem menos
leiro. Para ele a despersonalização das relações dos senhores com os escravos colorida e mais cinzenta; o maior gosto pelo teatro, que foi substituindo a Igreja; pela
- gerada pela hiperexploração do trabalho nos engenhos, expandidos em gran- carruagem de quatro rodas que foi substituindo o cavalo e o palanquim; pela bengala
des fábricas, nas minas e nas fazendas de café, pelas transferências de escra- e o chapéu-de-sol que foram substituindo a espada de capitão ou sargento-mo r dos
vos do Norte para o Sul para senhores desconhecidos e assim por diante - antigos senhores rurais.
teria conduzido a que os escravos "se comportassem como indivíduos
desenraizados do meio nativo; e como todos os desenraizados, mais fáceis de o bacharel que mais encarnava essas tendências era o "filho legítimo ou
resvalar no crime, no roubo, na revolta, na insubordinação do que os indivíduos não-do senhor de engenho ou do fazendeiro, que voltava com novas idéias da
conservados no próprio ambiente onde se criaram". 54 Europa - de Coimbra, de Montpellier, de Paris, da Inglaterra, da Alemanha-,
Aí estaria a raiz das tensões que marcaram as relações entre senhores onde fora estudar por influência ou lembrança de algum tio-padre mais liberal
e escravos, especialmente na segunda metade do século XIX. Porque para ou de algum parente maçom mais cosmopolita". 56
Freire "o escravo africano ou descendente de africano, no Brasil, sempre Mas, além deles, eram os bacharéis rapazes da burguesia mais nova das
que tratado paternalmente por senhor cuja superioridade social e de cultura cidades, filhos ou netos de "mascates". Valorizados pela educação européia,
ele reconhecesse, foi indivíduo mais ou menos conformado com seu status".55 igualavam-se socialmente aos filhos das velhas e poderosas famílias da terra.
Rompido o equilíbrio dos contrários, abriu-se a possibilidade para o Valorizados da mesma forma, voltavam os mestiços ou os mulatos claros, al-
inconformismo do escravo. guns deles filhos ilegítimos dos grandes senhores brancos.
Esse prestígio dos bacharéis veio crescendo desde o começo do Impé-
rio. Nos jornais, observa Freire, notícias e avisos sobre "Bacharéis forma-
A ASCENSÃO DO BACHAREL E BO MULATO dos", "Doutores" e até "Senhores estudantes" principiaram desde os
primeiros anos do século XIX a anunciar que o novo poder aristocrático que
Já ao final do livro, Gilberto Freire retoma tema desenvolvido no início, o se levantava, envolvido em suas sobrecasacas ou nas suas becas de seda
da constituição de uma nova aristocracia, urbana, de sobrado. Seu núcleo duro, preta, que nos bacharéis-ministros ou nos bacharéis-desembargadores, tor-
segundo ele, compunha-se de senhores de escravos, embora fosse mais navam-se becas "ricamente bordadas" e importadas do Oriente. "Vestes
diversificada do que a aristocracia rural das casas-grandes, pois só às vezes quase de mandarins. Trajos quase de casta".57 Esse prestígio correspondeu,
eram proprietários de terras, e proprietários "excessivamente sofisticados para de fato, a uma notável ascensão, especialmente de bacharéis brancos, no
meio político e social em geral.

" Ibid., p. 534.


I. Ibid., p. 574.

..
54 Ibid., p. 525.

" Ibid., p. 524. 17 Ibid., pp. 582-583.

350
..., 351
SOBRADOS E MUCAMBOS BRASILIO SALLUM JR.

Foi, no entanto, com D. Pedro II "que a nova mística - a do bacharel sempre fazendo questão do seu sangue ser rigorosamente limpo, o genro mais
moço - como que se sistematizou, destruindo quase de todo a antiga: a do desejável. Em diversos casos, lembra Freire, mais que ser impulsionado, o genro
capitão-mor velho". 58 pobre e mestiço de família rica e poderosa tomou-se o seu nervo político.
D. Pedro II - ele próprio, típica figura de bacharel- fez dos bacharéis as A associação positiva do bacharel, branco ou mestiço, com a família pa-
principais figuras da administração, à frente da administração das províncias e triarcal é essencial nessa caracterização da aristocracia de sobrado. Ele não
com as maiores responsabilidades no governo central, deslocando daí as fi- identifica, por exemplo, a geração de bacharéis saída das escolas para fazer a
guras vetustas dos patriarcas. Confirmou, assim, com a chancela do trono o Abolição e a República com aquela aristocracia. Embora a mencionada gera-
prestígio do diploma, especialmente o estrangeiro, que crescia desde a Inde- ção tenha sido a continuação da camada de bacharéis que ele tenta caracteri-
pendência. Diga-se que já então estavam em pleno funcionamento as Facul- zar, ela foi nitidamente distinta: "acentuou a substituição do senhor rural da
dades de Direito do Recife e de São Paulo. casa-grande, não já pelo filho doutor, nem mesmo pelo genro de origem humil-
Com isso, lembra-nos Freire, inicia-se o "romanticismo jurídico" no Bra- de, mas pelo bacharel estranho que se foi impondo de modo mais violento:
sil, "até então governado mais pelo bom senso dos velhos do que pelo senso através de choques e atritos com o velho patriciado rural e com a própria
jurídico dos moços". 59 Do ponto de vista do sociólogo, "a ascensão do bacharel burguesia afidalgada dos sobrados".6~
ou doutor - mulato ou não - afrancesado trouxe para a vida brasileira muita Assim, o mulato e o mestiço, tiveram suas condições de ascensão política
fuga da realidade através de leis quase freudianas nas suas raízes ou nos seus dependentes de suas conexões com famílias senhoriais. Exemplo de como as
verdadeiros motivos. Leis copiadas das francesas e das inglesas e em oposi- condições sociais podiam, ao invés, afetar negativamente os mulatos é o da-
ção às portuguesas: revolta de filho contra pais".60 Como se percebe, retoma- queles nascidos em mucambos ou cortiços de uniões entre imigrantes portu-
se aqui, de outro ângulo, o conflito dos novos poderes, desdobramentos gueses e italianos pobres e negras e pardas. Tais mulatos, ao contrário dos
exteriores do velho patriarcalismo, com a lei que o regulava, filho-moço contra favorecidos por conexões com famílias patriarcais, tiveram vida muito dificil,
o pai patriarcal.
A ascensão política dos bacharéis dependia de sua vinculação com famí- se esterilizaram em capadócios, tocadores de violão, valentões de bairro, capangas de
lia patriarcal de relevo. Por isso, a condição de filho de uma dessas famílias chefes políticos, malandros de beira de cais, as mulheres, em prostitutas, faltando-
lhes as facilidades que amaciaram os esforços de ascensão intelectual de muitos mu-
era a condição ideal para ascender politicamente. Os filhos ilegítimos dos pa-
latos de origem rural com sangue aristocrático nas veias. Sobre eles, mulatos nascidos
triarcas podiam ter nessa relação o seu impulso para o sucesso.
e criados em mucambos e cortiços, agiu poderosamente o desfavor das circunstâncias
Ao revés, "a ascensão do bacharel pobre que, abandonado aos próprios sociais, predispondo-os ao estado de flutuação e de inadaptação aos quadros normais
recursos, não podia ostentar senão croisés ruços e fatos sovados [... ]; que não de vida e de profissão, ao de inconstância no trabalho, ao de rebeldia a esmo - estados,
dispunha de protetores políticos para chegar à Câmara, nem subir à demo- todos esses socialmente patológicos, que tantos associam ao processo biológico de
cracia; que estudara ou se formara, às vezes, graças ao esforço da mãe miscigenação. Nesses mulatos, a má origem era completa e para todos os efeitos
sociais: ilícita a união de que resultavam; socialmente desprezíveis os pais; social-
quitandeira ou do pai funileiro; a ascensão do bacharel, assim, se fez por
mente o meio em que nasciam e se criavam - cortiços, "quadros" e mucambos. 63
muitas vezes pelo casamento com moça rica ou de família poderosa".61
De fato, o casamento podia ser uma chave importante para a ascensão
A citação é longa, mas sublinha que para Freire, nas condições sociais de
desse tipo de jovem pobre e remediado, fosse branco fosse mestiço. Por outro
vida de mucambos e cortiços, totalmente contrastantes com as dos aristocráti-
lado, no Império, as próprias famílias patriarcais viam no bacharel ou doutor, nem
cos sobrados, mulatos dificilmente chegariam a ter sequer trabalho estável,
quanto mais poderiam chegar a bacharéis.
" lbid., pp. 574-575.
,. lbid., p. 574.
60 lbld., p. 581. ., lbid., p. 585.
61 lbid., p. 583. 6J Ibid., p. 607.

352 353
SOBRADOS E MUCAMBOS BRASILIO SALLUM JR.

EM TORNO DE UMA SISTEMÁTICA DA MISCIGENAÇÃO NO BRASIL 'branco' ou a 'moreno' ou 'caboclo'. De uma região a outra: de cearense a
paulista".66 Essa mobilidade extrema, de um lado, é sinal de que não são rígi-
Sobrados e mucambos não conclui. Encerra-se com um capítulo em das no Brasil as configurações de raça e classe e, de outro, contribui para
que o autor discute o caráter e a dinâmica da miscigenação da cultura e da aumentar-lhes a fluidez.
sociedade brasileiras e sua vinculação com as raças formadoras. Em um país de cultura e sociedade mestiças, como o Brasil, embora os
De certa forma, o capítulo complementa aquele sobre a forma e os con- choques e antagonismos no plano social e cultural sejam freqüentes, eles não
teúdos do patriarcalismo, com a diferença de que não se r~fere. apen~s ao podem ser atribuídos a conflitos de raça, como se essas "fossem biológica ou
período escravista; abrange também período posterior, de ,se.mIpa~narcahsmo. psicologicamente incapazes de se entenderem ou de se conciliarem".
Complementa porque, ao invés de acentuar a forma antagomca, dIscorre ~o~re A disparidade entre subgrupos, numa sociedade como a brasileira, vem
a dinâmica dos conteúdos que conduzem à acomodação entre os contranos, do conflito entre as fases e os momentos de cultura encarnados por "raças"
sobre a miscigenação e sobre a mobilidade social. puramente sociais e também por diferenças regionais de progresso técnico. E,
O ponto-chave da argumentação de Freire é que segundo ele, "pela maior ou menor facilidade de contatos sociais e intelectuais,
com estrangeiros e entre si, de grupos ou regiões, de subgrupos e de sub-
o característico mais vivo do ambiente social brasileiro parece-nos hoje o da recipro- regiões".67 Ademais, lembra ele, a disparidade procede das distâncias sociais
cidade entre as culturas; e não o marcado pelo domínio de uma sobre a outra, ao ponto que aumentaram desde a era colonial, com o desenvolvimento industrial em
da de baixo nada poder dar de si, conservando-se como em outros paíscs de mlsClge-
algumas regiões, "em beneficio de minorias econômicas e politicamente pode-
nação, num estado de quase permanente crispação ou de recalqueM
rosas".68 Além do que, escreve Freire, a determinação biológica predispõe,
condiciona mas não determina.
Exemplo disso é a cultura trazida pelos negros da África. Apesar do
domínio da cultura portuguesa, já mestiça, mas principalmente branca, e da
Muitas das qualidades ligadas à raça, ou ao meio, vê-se então que se desenvolveram
europeização do país a partir do século XIX, a cultura ~e origem afri~a~a tev~ historicamente ou antes, dinamicamente pela cultura, no grupo e no homem. A raça
uma importância enorme na formação da cultura nacIOnal, ve:n r~SIstI~do a dará as predisposições; condicionará as especializações de cultura humana. Mas
desafricanização e, segundo Freire, nunca perderá sua substancIa afncana essas especializações desenvolve-as o ambiente total- o ambiente social mais do que
através de toda nossa formação e consolidação em nação. o puramente fisico - peculiar à região ou à classe a que pertença o indivíduo. Peculiar
à sua situação. 69

Mas as tradições religiosas, como outras formas de culturas negras [ ... ] é que vem
Outro aspecto salientado pelo autor, a propósito das disparidades existen-
resistindo mais profundamente à desafricanização. Muito mais que o sangue, a cor ~
a forma dos homens. A Europa não as vencerá. A interpenetração é que lhes dara
tes no plano social e cultural, é que no momento mesmo em que escrevia,
formas novas, através de novas combinações dos seus valores com os valores euro- momento de desintegração maior do sistema patriarcal, quando se extremavam
peus e indígenas. 65
as diferenças entre sobrados e mucambos ou favelas, "não têm faltado ele-
mentos ou meios de intercomunicação entre os extremos sociais ou de cultura.
Ademais essa interpenetração cultural tem se feito acompanhar de uma De modo que os antagonismos não foram nunca absolutos, não se tomaram
intensa mobilidade vertical- entre classes - e horizontal- entre regiões. Se- absolutos depois daquela desintegração. E um dos elementos mais poderosos
gundo ele: "Talvez em nenhum outro país seja possível a ascensão de uma de intercomunicação, pelo seu dinamismo de raça e, principalmente de cultura,
classe a outra; do mucambo ao sobrado. De uma raça a outra: de negro a

.. Ibid., p. 654 .
.., Ibid., p. 658 .
.. Ibid., p. 659 .
.. lbid., p. 654.
.. Ibid., p. 657.
61 lbid., p. 650.

354 355
SOBRADOS E MUCAMBOS

tem sido, nessa fase dificil, o mulato".7o Para ele, de fato, as regiões de maior
mestiçagem no país são as que se apresentam mais fecundas em grandes GILBERTO FREIRE
homens. E mais, daí saem os políticos, os diplomatas e os religiosos de maior
capacidade, "pela sabedoria da contemporização, pelo senso de oportunidade
e de equilíbrio". 71
A comparação entre a Marinha de Guerra, de contingente branco ou
Ordem eprogresso
quase-branco, com o Exército, de oficialidade há muito anos, em grande parte
mestiça e até negróide, permite-lhe sugerir que o mestiço, o mulato, o moreno
- na acepção de Sílvio Romero - parece vir revelando - pela correspondência
com o meio brasileiro e a capacidade de adaptação - "maior inteligência de
líder que o branco ou quase-branco".72
Agora estaríamos vivendo, argumenta Freire, "o triunfo mais largo e Elide Rugai Bastos
menos individual do mestiço, do curiboca e, principalmente, do mulato, do
meia-raça, do caldeado no sangue ou na cultura, através de melhor correspon-
dência [... ] de caráter socialmente psicológico entre o líder mestiço e a massa,
em sua maioria também mestiça. Biológica e sociologicamente mestiça".73
E acrescenta, incluindo os imigrantes no argumento: "Biológica e soci-
ologicamente mestiça. Pois consideráveis grupos de populações meridionais
do Brasil, cuja situação de filhos de italianos, poloneses, alemães, sírios, ja-
poneses assemelha-se psicológica e sociologicamente - embora não cultu-
ralmente - à de mestiços, dão extensão à caracterização da massa brasileira
como massa mestiça". 74 Isso permitiria entender por que há, ao invés,
incompreensão entre a massa brasileira e os líderes de tipo "europeu".
Essas e outras questões, que dizem respeito ao surgimento no Brasil de
uma sociedade ao mesmo tempo mestiça, diversificada na sua composição
étnica e cultural e predominantemente individualista na sua organização fami-
liar, não são tratadas com mais minúcia em Sobrados e mucambos. São dei-
xadas para o próximo volume da série, Ordem e progresso.

70 Ibid., p. 659.
7I Ibid., p. 681.
72 Ibid., p. 661.
73 Ibidem.
74 Ibidem.

356
Na apresentação de Ordem e progresso, publicado em 1959,1 Gilberto
Freire indica: Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 3,
significando que nesse momento passa a considerar como uma unidade os
livros Casa-grande & senzala, Sobrados e mucambos, escritos nos anos
1930, mais esse último texto. Promete, no prefácio, outro estudo para concluir
a temática - Jazigos e covas rasas - que não chega à publicação, conhecen-
do-se, até o momento, apenas alguns fragmentos do mesmo. Indica, ainda, a
intenção de divulgar volumes especiais de documentos, fotos, desenhos e auto-
biografias de entrevistados, para completar a série.
O conjunto pode ser analisado a partir de dois planos distintos: um tempo-
ral e outro temático. Não tendo sido planejado inicialmente em sua integridade
quando da escritura de Casa-grande & senzala, o plano temporal é aquele
imaginado pelo autor, embora confesse considerar arbitrário dividir a história
em épocas políticas." Assim, Casa-grande & senzala corresponde ao estudo
da formação pré-nacional e nacional do Brasil, dedicando-se a analisar a vida
do país no período colonial, ou como o próprio subtítulo indica, trata-se do
estudo da formação da família brasileira no regime de economia patriarcal.
Sobrados e mucambos restringe-se ao século XIX, desde a vinda da corte
portuguesa até o momento republicano, estudando a decadência do patriarca-
do rural e o desenvolvimento das cidades. Ordem e progresso enfoca a última
década do século XIX e as três primeiras do século XX, analisando a desinte-
gração da sociedade patriarcal no quadro da transição do trabalho escravo
para o trabalho livre. Desse modo, sucedem-se na análise diferentes períodos
da história brasileira: Colônia, Império e Primeira República.
Porém, considerado o plano temático, não conscientemente visado por
Gilberto, pode-se figurar outra ordem: Casa-grande & senzala e Sobrados e
mucambos são completados por Nordeste. Isto é, os três elementos explicativos
da formação nacional- interpenetração de etnias/culturas, patriarcado e trópi-
co - aparecem articulados nos diferentes textos, embora seja possível reco-
nhecer um peso maior de cada um deles nos diferentes livros. Assim, a questão
da relação etnias e culturas é o tema de Casa-grande & senzala; o patriarcado

1 Gilberto Freire. Ordem e progresso: processo de deSintegração das sociedades patriarcal e


sem/patriarcal no Braszl sob o regime de trabalho lzvre; Aspectos de um quase meio século de
transição do trabalho escravo para o trabalho livre; e da monarquia para a repúblzca. Intro-
dução à história da sociedade patnarcal no Bras/I - 3, 2 vols. (Rio de Janeiro: José Olympio,
1959).
2 Ordem e progresso, cit., p. XLVII.

359
ORDEM E PROGRESSO ELIDE RUGA! BASTOS

é o eixo central de Sobrados e mueambos; e o trópico, assunto principal de de/alternância de tempos e diversidade regional preside a escolha dos entre-
Nordeste. Nesse sentido, em Ordem e progresso é necessário buscar não vistados e o recorte espacial/temporal do estudo, ancorando a proposta central
apenas a articulação temática que compõe a trilogia, mas outros dois pontos: do trabalho. A origem diversa dos que prestam depoimentos - indivíduos nas-
de um lado, a continuidade da tese sobre a ordem na sociedade brasileira, que cidos entre 1850 e 1900 - garantiria a variedade de pontos de vista. Das res-
aqui ganha novos desdobramentos; de outro, a inserção de Gilberto nos deba- postas dadas foi selecionada uma parte, apenas aquelas consideradas idôneas
tes sobre a sociologia, explicitando seu diálogo, direto ou indireto, com diversos pelo autor. 3
autores nacionais. No trabalho, Gilberto procura dar conta das alterações que ocorrem des-
Talvez concepção e narrativa totalmente diferenciadas tenham levado os de o final do reinado de Pedro II até as primeiras décadas da República con-
críticos a considerarem Ordem e progresso trabalho menos interessante e siderando nessa definição o fato de as diferentes regiões do país conhe~erem
dotado de importância menor se comparado aos outros que compõem a trilogia. formas diversas de acomodação aos tempos políticos. Assim, as instituições
É preciso tomá-lo em sua verdadeira dimensão, pois seu desconhecimento sociais e culturais ganharam desenhos próprios segundo sua localização regio-
pode levar à não percepção do lugar que ocupa no conjunto da obra do autor: nal, inúmeras vezes trilhando caminhos opostos àqueles pretendidos pelas nor-
sob aparência pouco organizada, nele são desenvolvidas idéias originais sobre mas institucionais de caráter nacional. Nesse sentido, é que se propõe a estudar
a Primeira República. Também a forma de captação do material de pesquisa é não as transformações das instituições políticas enfocadas cronologicamente,
outro. Gilberto organiza um inquérito com 183 brasileiros nascidos entre 1850 mas o processo de mudança, levando em conta a simbiose dos elementos cul-
e 1900 e recolhe algumas autobiografias entre eles. A explicação sobre esse turais, sociais, econômicos e políticos.
procedimento encontra-se na parte introdutória do livro - ocupando em torno
de 150 páginas, em numeração romana, que, adicionadas às outras 794 do
texto, somam 963 - constituída de "Prefácio", "Nota metodológica", "Nota REAÇÃO DO PASSADO AO DESAFIO DO PRESENTE

bibliográfica", "Índice biográfico" e "Tentativa de síntese".


A motivação principal do trabalho encontra-se na resposta à pergunta: Gilberto organiza o livro não em capítulos, nos quais o material seria
como na mudança de regime se mantêm a organicidade da sociedade e a apresentado em seqüência crescente, mas em ensaios a partir de temas isto
unidade nacional? Se no Império a simbiose monarquia e patriarcado favore- é, começando de entradas diferentes aborda o tema da transição e das' mu-
ceu uma ordem de certa forma democrática, no momento republicano, o que danças resultantes da alteração do regime monárquico para o republicano.
possibilitará sua continuidade? A dupla explicação constitui o arcabouço do As primeiras páginas, ponto forte do texto, estruturam seu desenvolvimento.
livro. Forças simultaneamente de equilíbrio e de conflito atravessam a socie- O tom da narrativa é ameno e ilusoriamente simples. O relato das impres-
dade: de um lado a permanência de certos ritos que compõem a legitimidade sões de "certo inglês chamado Knight", de escritura primorosa, abre espaço
do sistema e permitem sua reprodução; de outro, mudanças resultantes da ao diálogo do autor com as várias interpretações sobre as transformações
decadência do patriarcado e da alteração da composição étnica da população operadas na sociedade brasileira e à proposta de sua interpretação. É impor-
como produto da vinda de imigrantes, alteram afaeies da sociedade brasileira. tante lembrar o caráter impressionista da narração, resultado do perfil de
Assim, transformações de caráter cultural, econômico, social e político - lin- escritor de tradição ibérica, tantas vezes invocado por Gilberto para explicar
guagem, crenças, moda, higiene, sanitarismo, urbanização, instituições, deslo- a metodologia adotada.
camento regional da economia - alteram profundamente o perfil da comunidade Mr. Knight representa o europeu aventureiro, homem de algumas le-
nacional. tras, que em 1889 registra seu deslumbramento pelas praias douradas e co-
Retomando a proposta do tempo tríbio, da articulação passado, presente queirais verdes do Nordeste, pela beleza da cidade de Salvador à luz da lua e
e futuro, já desenvolvida nos trabalhos anteriores, Gilberto mostra como nas sua decepção em face da realidade vista ao brilho do sol. Voltando em janeiro
diferentes regiões do país essas transformações ganham arranjos diversos.
Misturam-se várias ordens e vários progressos. A combinação simultaneida- ] Ibid., p. LXXXVI.

360 361
ORDEM E PROGRESSO ELIDE RUGA! BASTOS

de 1890, percebe no alto do forte uma estranha bandeira, diferente daquela Mesmo a população negra, liberta por atos do Império, não se dedica a
que avistara no ano anterior. Imagina a ocorrência de uma revolução. Ao defender o imperador deposto. Preservando sua liberdade passa a dar graças
descer, perguntando ao remador negro sobre os acontecimentos recebe res- por ela e pedir sua continuidade aos santos, esquecendo o antigo governante.
posta dada com ar indiferente: "Ah, a República". Admirado com a apatia Como poderia ser diferente se os antigos aliados do regime apressaram-se a
diante de tão grande transformação, busca com um conterrâneo, Mr. Wilson, apoiar o novo poder político? Se as mudanças foram sustentadas pelas "clas-
a explicação. Sim, aconteceI:a uma revolução, "uma revolução muito sem ses armadas", respeitadas, mas temidas? Como esperar uma reação da plebe,
classe", destituída de dignidade, pois dela a morte estava ausente. Isso re- não constituída ainda como "povo no verdadeiro sentido sociológico do termo",
força sua crença de ser o brasileiro um povo "quase oriental" em sua apatia, que indicasse a presença de um projeto político impossível sem essa definição
uma "raça indolente", avaliação assentada nas tendências da época que afir- social?
mavam ser as virtudes ou defeitos de uma população resultantes de seus Mas é preciso, segundo a perspectiva freiriana, analisar a sociedade cap-
caracteres biológicos. Gilberto, em um contraponto pitoresco, aponta simul- tada através de dois ângulos: o geral, visto do alto, e o microssocial, observado
taneamente para os equívocos das interpretações de Mr. Knight e Mr. de lado. Assim, percebe-se que, se não existem reações com organicidade
Wilson, simbólicas de grande parte das análises sobre esse momento de tran- política capaz de alterar a nova ordem, vários acontecimentos, principalmente
sição, e para os fatos realmente ocorridos. entre os homens de cor, indicam descontentamento com as mudanças. É o
A bandeira vista não é a da República e sim a da Bahia, uma vez que a caso de muitos ex-escravos do Rio de Janeiro que se recusavam "a trabalhar
Câmara de Salvador se erguera contra os republicanos e afirmara solidarieda- nas fazendas em que seus donos se alistavam no partido republicano, alegando
de ao imperador. O que não impede que aceite logo o novo regime, como de que não prestariam serviços a homens revoltados contra a Princesa Regente,
resto os demais brasileiros, cuja adesão sem entusiasmo marca a intenção de que os remira do cativeiro". 6 O fato, somado a outras ocorrências, indica traço
que o movimento "assegurasse ao País a ordem e a unidade já por tantos anos social e não político. Anima-o o espírito de gratidão e de confiança na monar-
garantida pelo Império". Não só o povo, mas os próprios barões ligados ao quia, somente esta "capaz de paternal ou maternalmente estender à gente de
regime anterior acabam por ajustar-se rapidamente à nova ordem política, acei- cor a proteção necessária ao seu desenvolvimento em parte viva de uma de-
tando as mudanças e até mesmo cargos na nova direção política. Aceitam mocracia social e não apenas política, um espírito que, na gente mestiça ou
transigir, mas é uma "transigência para o bem do Brasil, da sua unidade, da sua negra mais humilde do Brasil, vinha de longe".7 Assim, Gilberto busca exem-
ordem social e do seu progresso econômico". Como expressa o barão do Rio plos dessa democracia social que fora garantida pelo patriarcado, no período
Branco, embora apegado ao velho regime, trata-se de questão não "entre colonial, e pela Coroa, no momento imperial. Aquele da Guarda Negra, que
Monarquia e República, mas entre República e Anarquia".4 não se constituía apenas como recurso de defesa contra grupos antimonárquicos
Tomando inquérito realizado pelo jornal Correio Paulistano mostra que, e abusos de caráter político praticados por republicanos, e sim de apoio a um
mais do que discutir uma forma de governo, o interesse dos componentes dos regime que protegia negros e mestiços "contra os abusos de particulares ricos,
setores sociais e econômicos de importância na condução do país está na pre- para quem ser branco e rico era ser superior a quem fosse negro e pobre". 8
servação de três pontos: integridade do território, defesa da propriedade e Ou das reações espontâneas fortemente reprimidas em São Luís do Maranhão
manutenção das liberdades. "O futuro, neste ponto essencial, devia continuar o e no Rio de Janeiro, com vários mortos "cujos cadáveres a polícia escondeu'',9
passado." Assim, questionando a falsa visão do inglês que atribui à apatia a Tais movimentos foram vencidos pela superioridade técnica das armas contra
passividade da população, o autor afirma que a atitude revela "capacidade ou
sabedoria de contemporização: virtude britânica, espantosamente desenvolvi-
da por aqueles conservadores plásticos".5
6 Ibid., p. 10.
7 Ibidem.
4 Ibid., p. 5. • Ibid., p. 11.
I Ibid., p. 8. • Ibid., p. 13.

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ORDEM E PROGRESSO ELIDE RUGAI BASTOS

um traço social marcante nas gentes de cor, cujas virtudes principais eram "a dupla que parece ter pretendido levar, indo piedosamente à missa no Brasil e
lealdade, a fidelidade, a gratidão", ausentes em muitos republicanos. fazendo o pelo-sinal aos olhos das multidões brasileiras e, na Europa, ostentan-
Essas virtudes sociais configuraram-se em cívicas quando da Guerra do do o espírito voltairiano", leva ao desgaste de sua figura e à crise do Império.
Paraguai, resultando em aprofundamento das zonas de confraternização social Mas o resgate, pelos dirigentes políticos republicanos, daqueles elemen-
entre brancos e negros. Esse espaço social permitiu a incorporação de ele- tos vinculados ao passado intra-histórico da população levou o brasileiro "após
mentos da cultura africana no seio do Exército - por exemplo a prática da a surpresa do primeiro momento de inovação revolucionária [ ... ] a reagir à
capoeiragem - e, por extensão, nos complexos urbanos. A violência da campa- República, triunfante pelas armas, absorvendo-a na sua constante de ordem;
nha republicana contra os homens de cor que reagiam com gratidão aos atos na sua mística de unidade; na sua disposição ao progresso conciliável com
da monarquia, acrescida do espírito de imitação européia que invadiu as cida- essa mística e com aquela constante".12 É aceita como um desafio que lhe
des, provocou uma interrupção brusca e radical do processo. fazia o futuro. Segundo Gilberto, nunca de forma tão forte quanto nesse mo-
Mas, voltando aos traços gerais que configuram a sociedade, Gilberto mento, passado e futuro se encontram. "O repentino triunfo republicano pôs
assinala como fundamental o da conciliação de interesses, procedimento acio- alguns brasileiros em face do problema de seu futuro nacional, ao mesmo tem-
nado pelo apego à ordem criada no Império e aspirada como objetivo na Repú- po que os obrigou a considerar no seu passado, singularidades que vinham
blica. Assim, os dirigentes do novo regime transferem à bandeira o lema sendo mal estudadas. "13 A revalorização de elementos do passado monárquico
positivista Ordem e progresso, "como se se confessassem revolucionários e do passado colonial ocorre no contraponto com o novo. Aqueles traços da
conservadores que, ao desejo de progresso, antepusessem o de conservação tradição lusa, responsáveis pela ordem nacional, passam a ser recuperados
da ordem" .10 Seria essa uma forma de expressar sua suspeita contra os "mé- pelo pensamento brasileiro. Lembrar o modo pelo qual a tradição lusa permitiu
todos violentamente libertários" inaugurados na Europa pela Revolução Fran- a construção nos trópicos de uma nova civilização híbrida e, como conseqüên-
cesa. Algumas dessas idéias, em parte aceitas, em parte questionadas, cia, a constituição de uma sociedade "etnicamente democrática" é importante
desenvolvem-se entre os intelectuais europeus do século XIX e são trazidas ao nessa hora em que a questão da democracia se coloca fortemente. Nesse
Brasil por seus discípulos, como o socialista Vauthier e seu continuador Milet. sentido, a República de 1889 é a continuação sociológica do Império. Com o
No entanto, aqui ganham cor local, atenuando-se sua marca excessivamente objetivo de manter essa continuidade ou de atenuar o rompimento, o governo
racionalista sob o impacto do sentimento de harmonia presente na formação provisório convocou como colaboradores membros do antigo regime. Mais do
brasileira. Como Milet, por exemplo, "que, abrasileirando-se, casando-se com que isso, buscou apaziguar os interesses dos setores agrários que se tinham
brasileira e deixando a engenharia pela lavoura de cana, corrigira os possíveis sentido traídos com a Abolição da escravatura. Procurou, ainda, um encami-
excessos de seu 'progressismo' fourierista, com idéias de ordem, algumas fun- nhamento adequado ao perfil desigual das regiões. Em outros termos, preocu-
dadas no mais terra -a-terra dos bons sensos". 11 pou-se em identificar a República com a comunidade brasileira. Esse esforço
Se a continuidade de certos traços figurava como fundamental aos brasi- surte resultados: há o apoio da população às mudanças, os antigos patriarcas
leiros - unidade, identidade, defesa da propriedade, integridade territorial, pre- das casas-grandes expressam conformação com as atitudes tomadas.
servação das liberdades -, o modo de alcançá-los não poderia diferir muito O autor recolhe testemunhos dessa época de transição, quando conflitos
daquele do passado. Assim, povo e governo acordaram na permanência de um em relação ao encaminhamento das soluções políticas levaram a oporem-se
"autoritarismo protetor", já exercido por Pedro II, que "era liberal mais para pais e filhos, marido e mulheres, grupos sociais. Por exemplo, esses depoentes
efeito externo" do que interno, no qual protegia os costumes e as tradições relatam o modo pelo qual internalizaram a função do Exército como mante-
luso-católicas da maioria da população. Essa posição do imperador, "a vida nedor da ordem através de jogos, brincadeiras, participações cívicas, trabalhos

10 Ibid., p. 15. 12 Ibid., p. 26.


11 Ibid., p. 16. lJ Ibid., p. 32.

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ORDEM E PROGRESSO

escolares, vivenciados muitas vezes como desafio à visão d,os .pais .. InteTr~­ sociedade brasileira, do processo de assimilação social c cultural cm relação
tando tais dados, Gilberto afirma que pouco a pouco a RepublIca v~nha deI- ao de competição, o que confere singularidade a nossa formação social.
xando-se influenciar no seu modo de ser futuro por aquela maneua de ser Em uma segunda dimensão, desenvolve um dos temas centrais do livro: a
Brasil, além de passado, presente". E, assim, reata~-se "tradiç~e~ de ordem.e persistência, no Brasil, da articulação velho-novo, tradicional-moderno, urba-
unidade nacional vindas do Império [ ... ] com os arroJos da Republica no sentl- no-rural, afirmação presente em Sobrados e mucambos c Interpretação do
. 1" .14 Bras i 1,16 tese importante pois através de seu desenvolvimento Gilberto aponta
do de progresso matena
para o processo de acomodação política, característico dos momentos de tran-
sição, indispensável para a manutenção da ordem no país. Em outros termos, a
SOCIALIZAÇÃO PARA OS NOVOS TEMPOS transigência, segundo seu ponto de vista, longe de ser marca de fraqueza é
sinal de bom senso, exibido tanto pelo povo como pelos dirigentes nacionais.
Aqui a primeira característica une-se à segunda: "tolerância de idéias, tolerân-
o menino disse à diretora do colégio chamar-se Joaquim. Joaquim Amaral Jansen era cia social".17
o seu nome inteiro. Nascera em 1882 na própria Corte. O colégio era o Vitória. Ficava Outro ponto a assinalar é aquele que diz respeito ao modo pelo qual o
. Haddock Lobo. Aí ele aprenderia o á-bê-cê pela cartilha, sem deixar de conti- autor resgata os depoimentos dos entrevistados. Estes, paulatinamente, vão
a rua h' .
nuar a ouvir em casa, da negra mais velha, escrava da família, outros á-bê-cês: IstO-
aparecendo como personagens da história, relatando sua infância, memórias,
rias de lobisomem e de mula-sem-cabeça; e também a história de Carlos Magno; a de
leituras, o processo de sua formação, o modo pelo qual se integram à socieda-
príncipes encantados; a de reis, de imperadores, de guerreiros. Estas eram histó~ias
mais contadas aos meninos brasileiros da época pelas avós brancas que pelas maes-
de da época, o trânsito entre regiões, as mudanças que sofrem com as altera-
negras. Mas as avós brancas e as mães-negras nem sempre se conservavam fiéis às ções territoriais e de momento histórico. Marca, de modo claro, a acentuação
suas funções convencionais: às vezes era a branca que contava histórias de assombro dos caracteres qualitativos em relação aos quantitativos na utilização do mate-
15
e a preta que falava aos sinhozinhos de mouras-encantadas. rial recolhido através do inquérito efetuado. Ainda, no que diz respeito à confi-
guração da camada social estudada, o perfil do entrevistado corresponde àquele
A passagem permite perceber vários ângulos da análise de Gilberto. da alta e média burguesia, que além de avó com erudição européia tem ama-
Primeiramente a afirmação da persistência, no final do século XIX, de de-leite, velha escrava da família. Mas, para além do estrito campo da investi-
um dos traços fundamentais que marca a origem da form~ção n~cional:. o gação, aponta para um importante traço interpretativo da obra freiriana: a
amálgama das culturas africana e portuguesa, operado no penodo pre-colo~Ial aceitação da existência de um continuum entre personalidade e cultura.
e colonial sob a ação do patriarcado. Mas a fusão cultural ultrapassa seu mvel O modo pelo qual Gilberto percebe a construção do adulto na criança
restrito, atingindo os próprios papéis sociais. Misturam-s~ n~~ a~e~~s os he- transparece também no trecho citado. Em Casa-grande & senzala e em
róis medievais da tradição européia e aqueles árabes da hIstona ~ben~a.' ~~s Sobrados e mucambos dedica muitas páginas à discussão do processo de
os mitos ameríndios e africanos, resultado do encontro da mitologIa ong~n.ana socialização, de internalização das bases das relações e do desempenho dos
daqueles povos com o catolicismo luso. Mais do que isso, os lugares SOCIaiS se papéis sociais, mostrando o desenvolvimento dos filhos do senhor em ligação
alteram relembrando as teses já presentes em Casa-grande & senzala em direta com o escravo doméstico, do qual assimila os costumes e o modo de
que o a~tor aponta para o papel do negro como co-colonizador, indicand? a ver a vida. Em Ordem e progresso indica como numa "época de transição e
presença, no Brasil, de uma democracia racial e, conseqüentem~nt~, SOCial. de modernização" essa socialização, que soma passado e presente, acaba
Trata-se de uma das formas através das quais demonstra a pnondade, na

16 o livro Interpretação do Brasil, publicado em 1947 em inglês, com o acréscimo de alguns


capítulos, ganha nova edição inglesa em 1959 e em português em 1971 com o título Novo
mundo nos trópicos.
14Ibid., p. 80.
17 Gilberto Freire, Ordem e progresso, cit., p. CXXIlI.
" Ibid., p. 85.

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por ser o espaço no qual a mudança ocorre sem traumas maiores e as trans- marcados por um africanismo a ser superado. A modernização atingia usos e
formações são absorvidas de modo natural, não provocando rupturas na or- costumes e, simultaneamente, procurava esquecer a influência social das cul-
dem social. No próprio desenrolar da transição, embora ocorram alterações turas básicas da formação social brasileira.
profundas, a sociedade reencontra seu equilíbrio graças à harmonia que marca A nova direção dos valores a serem assimilados, dos quais o horizonte de
sua constituição. imitação era a Europa, atinge os brinquedos, antes de confecção caseira e no
O primeiro passo na reconstrução dos usos e costumes presentes no final dos novecentos, industrializados. Os piões, cavalos-de-pau, arapucas,
período é aquele dado no caminho da memória da socialização. Brinquedos, bodoques, gaitas de canudo de mamão, feitos em casa com as próprias coisas
folguedos, comidas, escola. Meninos e meninas participam de modo dife- da natureza, dão lugar a carros, caminhões e piões mecânicos. As bonecas de
renciado no processo. Isso porque seus papéis sociais são claramente diferen- pano, confeccionadas por avós ou amas foram substituídas por bonecas de
tes. Soltar pipa, "pular carniça", brincar de "academia", atividades que exigem louça, em geral de olhos azuis, cabelos loiros, faces rosadas, européias na
maiores espaços, que põem as crianças em cantata com a rua, são brincadei- feitura e, principalmente, na concepção - tipo fisico, vestidas de seda segundo
ras de meninos. Pular corda, 'brincar de roda, cantar cirandas, brinquedos de moda francesa. A incorporação pelas brincadeiras dos valores brancos euro-
meninas. Mas aqui já se inova: algumas brincam de "cabra-cega" e de "boca- peus, modernos é acompanhada por uma nova educação que acentu~ esses
de-fomo", jogos "que algumas iaiás consideravam de machonas",18 o que aponta valores transplantados. A instrução dada nos colégios de religiosas francesas
para a mudança, mesmo que pequena, do lugar social ocupado pelas mulheres. ou pelas preceptoras européias reforça a "idealização da figura do 'estrangei-
A amplitude do espaço infantil, sempre maior para o sexo masculino do que o ro' como pessoa superior em assuntos de comportamento em sociedade ele-
feminino, se expressa na lembrança das frutas colhidas no mato e nos vastos gante ou de estética urbana; superior aos nacionais e aos iberos". Modernismos
quintais - cambucá, abiu, grumixama, cajá, manga, sapoti, jambo -, ou nos que se opõem "a uma ordem social de base quase inteiramente agrária e de
pássaros apanhados em arapucas. Uma lembrança marcada pela saudade, estrutura persistentemente patriarcal". 20
pois, mais cedo na capital e depois na província, acontece "a substituição de É verdade que se desenvolve paralelamente uma "educação informal"
frutas e até de pássaros agrestemente nativos pelos importados da Europa, dos filhos da burguesia por francesas "de alto bordo", moradoras dos paradis
como a pêra, a maçã, o pêssego, o morango [... ] e a introdução do pardal, que ou dos rendez-vous, atraídas pela riqueza paulista ou carioca, resultado dos
desde o começo da modernização da cidade, sob o prefeito Passos, começou a altos preços do café. Nem sempre francesas - como é o caso de Madame
expulsar os pássaros nativos dos jardins e dos quintais cariocas". 19 Além disso, Pommery e suas "meninas" em São Paulo, descritas pelo romancista Hilário
a urbanização vagarosamente vai levando ao fim esses brinquedos. Na cidade Tácito -, são "mestras de civilidade", "árbitros de elegância" desenvolvendo
o transporte coletivo inviabiliza grande parte das brincadeiras de rua. Os fios entre os brasileiros o gosto por modos e modas nem sempre condizentes com
de iluminação e dos bondes elétricos levam ao declínio uma das principais o clima tropical, mas símbolos da modernidade aspirada e da Superioridade
brincadeiras: empinar pipa ou papagaio. européia. Tais "professoras" operam como um corretivo à simplicidade rei-
A cidade, pela presença de fornecedores que atendiam de porta em porta nante nas cidades, reflexo da vida despojada das casas-grandes rurais, à falta
- vendedores de verduras, frutas, galinha, peixe, lenha, carvão, rendas do nor- de requinte até mesmo da antiga Corte, ao mau gosto das iaiás no vestir e na
te, amoladores de facas e tesouras, mascates com seus baús mágicos -, era decoração. É certo que no interior das casas imperava, desde os tempos colo-
atravessada, no passado, por sons característicos que os anunciavam: a matra- niais, uma mistura entre valores europeus - móveis, prataria, louças - e aque-
ca e os pregões. Mas o progressismo urbanizador encarregou-se de fazê-los les tropicais e da terra - redes, potes, bilhas d' água, panelas, vassouras, peneiras,
desaparecer por considerá-los "um arcaísmo vergonhoso", muitos deles pilões. E uma cozinha adaptada, com mistura de contribuições lusas, indígenas
e africanas. Casa, comida, indumentária de inspiração colonial, ligadas a uma

18 lbid., p. 85.
19 lbid., p. 86. 20 lbid., pp. 9 I -92.

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social, despertaram mcnos essa consideração que emoções oratórias ou tensões retó-
ordem social autenticamente brasileira, deveriam ser abandonadas em nome ricas; provocaram apenas soluções jurídicas, quando muito políticas. 2l
do progressismo, substituídas por veludos, penteados, quitutes, decoração de
influência francesa, esses sim modernos e elegantes. As novas influências abriram espaço a homens mais realistas, homens
Na música a transformação é semelhante. públicos que o momento pedia. Mas as duas formas se encontram. "A ordem
social dominante produziu tanto a uns como a outros: tanto a realistas capazes
A música, desde a sacra, de interior de igreja, à do largo de matriz, representada pela
de analisá-la nas suas peculiaridades como a retóricos que apenas pretende-
banda que tocava dobrados cívicos e até pela de africanos que nos sambas e maracatus
recordavam a África negra nas ruas do Rio de Janeiro ou do Recife ou de Salvador,
ram ajustá-la a generalidades de origem européia ou anglo-americana."24 Gil-
acompanhava de tal modo o brasileiro do tempo do Segundo Reinado na.s suas vàrias berto assinala a presença, nos últimos anos do Império e nos primeiros decênios
e contraditórias expressões de vida e de cultura, de algum modo harmonizando-as ou da República, de um movimento intelectual que se direcionava à mudança,
aproximando-as, que se pode afirmar ter se realiza~o ~ntão ma,is. pelos. ouvidos que marcado por uma visão realista, interessado em uma nova combinação de
por qualquer outro meio, a unificação desses braSIleirOS de varIas ongens em um formas sociais e sua convivência com as formas "antigas" de ver e de organi-
brasileiro se não de um só parecer, quase de um só sentir?l
zar a sociedade. O velho e o novo convivendo. Houve lugar para todos.

No processo de desenvolvimento urbano ocorrido na transição, m~itas


dessas formas perderam seu lugar; não só o maxixe, o maracatu, de on~~m
CONCILIAÇÃO DO PROGRESSO CULTURAL E DA ORDEM SOCIAL
popular como os lundus, as modinhas de salão abrem espaço, desde Im~er~o, ?
ao teatro lírico, às valsas. O piano passa a ser moda, tornando-se movelmdls-
pensável para conferir "distinção" às casas. Carlos G~mes, pelo seu êxito ~a Os Cotegipes foram talvez homens mais preocupados com a Ordem do que com o
Europa, passa a ser herói nacional. No entanto, a modlnha manteve seu cara- Progresso; os Rodrigues Alves, mais atentos aos interesses do Progresso que às
ter democrático e autenticamente brasileiro. solicitações da Ordem. Mas uns e outros consideraram sempre - ou quase sempre -
os problemas de Ordem em íntima conexão com os de Progresso, revelando-se, assim,
A modinha [oo.] foi um agente musical de unificação brasileira, cantada, como foi, no criaturas ou expressões de um sistema de sociedade e de cultura que se tornara
Segundo Reinado, por uns, ao som do piano; por outros, ao som do violão, ao s~reno nacional em 1822 á base dessa conciliação, já característica, aliás, do Brasil pré-
ou à porta até de palhoças. Sua voga prolongou-se entre a gente média até os pnmel- nacional de Dom João VI,25
22
ros decênios da República.
Marca do encontro dos antagonismos em equilíbrio, a conciliação no Brasil
Na socialização para os novos tempos figura, segundo as pessoas con- se dá também além do campo cultural e político, no espaço econômico, articu-
sultadas a leitura dos autores europeus, entre os quais se destacam os lando-se as tradições agrárias e as industriais.
positivis;as. Não foi pequena, porém, a influência dos romancistas e pub~icistas Gilberto utiliza o termo cultural em seu sentido sociológico, isto é, desig-
brasileiros e portugueses. Essa formação resultou também no aparecimento nando o conjunto de valores, estilos, técnicas e hábitos de uma sociedade e não
de um novo tipo de orador, marcado por uma moderna eloqüência, que aco~­ apenas os elementos da ciência, arte e literatura. Dessa ótica examina o proje-
panhou um novo estilo de fazer política. O barroquismo que ~arcava ~s antI- to de desenvolvimento industrial presente nos primórdios da República e seu
gos oradores escondia o não enfrentamento dos problemas reais da SOCiedade. trânsito nos comportamentos da população brasileira. Aponta para o fato de
manterem-se, mesmo com as transformações decorrentes do processo, as
Foram decênios, durante os quais esses problemas, em vez de considerados princi-
palmente através da análise política ou do que houvesse então de ciência ou filosofia
23 Ibid., p. 133.
l4 Ibidem.
2l Ibid., p. 107. " Ibid., p. 141.

..&
. ~""",
22 Ibidem.
.

371
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sem que essa substituição importasse em alteração profunda da ordem social. Esta se
características regionais das antigas províncias, agora estados, conservando- alterara nas suas bases, ao ser substituído o trabalho escravo pelo livre naquelas áreas
se seus traços sociais, culturais e ecológicos. em que o imigrante europeu não viera com alguma antecedência dar novo aspecto á
A forte alteração de ordem cultural, já iniciada no fim do Império, resul- produção quer agrária, quer industrial. Mas não sofrera com a mudança apenas polí-
ta, em parte, da acentuação da influência dos Estados Unidos em detrimento tica, senão leve depressão.

da França e Inglaterra, inspiradoras do modelo monárquico. Simbolizado pela


exposição de artigos americanos organizada por Fletcher e realizada no Assim, as mudanças de caráter cultural provavelmente ter-se-iam dado
Museu Nacional com o apoio de D. Pedro II, o estreitamento das relações "sob um ou outro dos dois regimes, quer de governo, quer de trabalho"Y A
com aquele país se dá pela adoção não só de instrumentos materiais, mas da própria dinâmica da cultura teria levado às alterações ocorridas. Em outros
valorização dos meios ali utilizados para alcançar seu nível de progresso: não termos, aquele processo que se verificara no período colonial e continuara no
apenas máquinas, técnicas agrícolas e industriais, mas ensino e instituições imperial, operando um amálgama das culturas dos grupos originários - portu-
políticas. A adoção de algumas dessas medidas "concorreu de modo notável guês' indígena e africano -, reproduzir-se-á na transição à República, quando
para a democratização da vida nacional",:!6 como a ampliação da rede de a ação dos imigrantes amplia os contatos da cultura brasileira com a de outras
transportes coletivos, dos quais o bonde é exemplo privilegiado. As mudan- regiões européias além da ibérica.
ças institucionais, sendo a substituição do regime monárquico pelo republica- Muitos estrangeiros que por aqui passaram notaram a mudança apenas
no a principal, visavam muito mais a adaptação a um sistema de civilização nos aspectos exteriores da sociedade brasileira. O Brasil era "republicano na
industrial, que não se coadunava ao perfil da sociedade brasileira, muito dife- aparência, mas monárquico na intimidade do seu sistema cultural inteiro: inclu-
sive o ensino'',28 Este fora uma das preocupações do Império, embora não se
rente daquela americana.
Como reagiram os entrevistados a essas mudanças? Alguns aceitando estendesse a toda a população. O imperador fundara alguns cursos considera-
entusiasticamente. Outros sem perceber as transformações ocorridas. Ou- dos de excelência, como o Colégio Imperial, mais tarde Pedro II; ampliara a
tros, ainda, recusando o modelo. Os primeiros deslumbrados com o esplen- escola primária que atendia as crianças livres de seis a quinze anos. O ensino
dor da democracia, da liberdade e dos progressos técnicos alcançados por militar destacava-se pela sua importância, bem como meio de democratização
aquela sociedade. Os segundos assimilando ou acomodando-se às altera- da ascensão social. Ensino e disciplina andavam juntos, sendo as várias formas
ções de valores, usos e costumes não percebidas claramente em razão da de castigos e reprimendas, entre os quais destacava-se a palmatória, foram
forma paulatina com que se deram. Os que se opunham ao modelo tiveram lembradas pelos entrevistados. Com a República ampliam-se as novas experi-
um forte apoio no livro de Eduardo Prado intitulado A ilusão americana, ências educacionais. O Colégio Kopke é uma ilustração das mudanças que se
publicado em 1893, em que o autor busca combater o que considera servilis- dão no setor. Esse educador tomou-se famoso pelo seu método de ensino e
mo dos dirigentes da República na imitação dos Estados Unidos. A apreen- disciplina, processo em que os alunos mais velhos colaboravam estabelecen-
são pela polícia de grande parte da primeira edição do texto aumentou o do-se na escola uma ordem de responsabilidade. Porém, embora algumas ex-
debate sobre este. O fato é que se pode assinalar, principalmente em São periências apontassem para o novo e moderno sistema de ensino, grande parte
Paulo, a renovação de métodos de ensino e de técnicas de educação em da educação formal dava-se segundo os moldes tradicionais. Aqui também
grande parte graças à contribuição norte-americana. Muitos dos depoentes conviviam duas formas opostas de socialização que acabavam se comple-
confessaram-se beneficiários do processo. mentando.
Em suma, esse "progresso cultural" - da imprensa, do ensino, literário, O inquérito empreendido por Gilberto Freire nesse particular, em que
médico , técnico - visto no movimento que levou à dissolução da monarquia e pesem as limitações dadas pela restrição da população consultada, permite
sua substituição pela república ocorre

27 Ibid., pp. 155-156.


28 Ibid., p. 165.
" Ibid., p. 148.
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372
-r
.~;
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.: f
uma visão abrangente sobre o período de transição à República. A reconstituição afloram, indicativos de atitudes que fundam relações sociais. Assim, por exem-
Itl'(
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do percurso escolar dos depoentes, as mudanças de colégio, suas impressões, plo, anúncios buscando ou oferecendo empregados domésticos indicam o pro-
permitem perceber o panorama das transformações ocorridas na sociedade cesso não só de substituição dos escravos, mas a preferência de estrangeiros
brasileira, pois mostram o desenho da educação para os novos tempos. A ne- para a execução dos serviços.
cessidade de uma nova socialização que permitisse o desempenho dos novos A ampliação do público leitor, que se dá desde o Império, proporciona um
papéis sociais exigidos pela sociedade se explicita na alteração tanto dos con- grande prestígio à imprensa, que substitui o púlpito. Abre também espaço à
teúdos do ensino quanto da configuração da disciplina. Assim, o acesso a auto- emergência de editoras, eom destaque às edições Garnier que inovaram em
res inseridos no progressismo europeu, o ensino leigo, a obrigatoriedade de termos formais e nas quais aparecem obras de autores nacionais que atuam de
leitura de jornais, a inclusão da ginástica como matéria de formação, o fim do forma definitiva no processo de renovação da sociedade brasileira.
"estudo decorado", indicam a alteração simultânea dos conteúdos e do sistema Na direção desse progresso cultural agiram, ainda, os salões literários
de educação. Mais ainda, mostram como o sistema escolar do Império e, mais existentes nos últimos decênios do Império e nos primeiros da República, não
tarde, o republicano operam como um elemento que une as elites, dispersas só no Rio ou em São Paulo, mas na Bahia, em Pernambuco, no Maranhão, no
por diferentes regiões, mas encontrando-se em escolas de ensino fundamental Pará, no Rio Grande do Sul, nas Minas Gerais. O autor confere destaque ao de
localizadas nas capitais provinciais ou no Rio de Janeiro e, posteriormente, dona Laurinda Lobo, no Rio, e o de dona Veridiana Prado , em São Paulo ,
nas instituições de ensino superior. Desse modo, as faculdades de medicina do centros "ao mesmo tempo de refinamento e de valorização de expressões já
Rio de Janeiro e da Bahia, de direito do Recife e de São Paulo, as politécnicas genuinamente brasileiras de cultura e até de natureza, tendo por isto mesmo se
do Rio e de São Paulo, os seminários de Mariana, Itu e Olinda constituíram- tornado ponto de reunião de homens de letras, de sábios, de políticos, de diplo-
se em centro de homogeneização de costumes, preocupações e troca de matas, de artistas, dentre os mais ilustres do Brasil"?O Por certo, essas ativida-
idéias. Ali novas idéias se cruzam sem a completa destruição das velhas for- des atingiam prioritariamente as elites e alguns centros regionais, mas eram
indicativos das mudanças culturais em curso no país.
mas de pensar o social.
Embora reconhecendo a preocupação com o ensino e o avanço do co-
nhecimento durante o período monárquico, Gilberto assinala alguns limites a
seu desenvolvimento nesse momento, barreiras quebradas com a mudança de NOVA ORDEM ÉTNICA

regime: o progresso intelectual foi dificultado pelas formas da ordem social


dominante - patriarcal e escravocrata. Assim, nos centros que se constituíam A preocupação que atravessa todo o texto - de que as alterações ocorri-
mais independentemente daquelas formas - Rio de Janeiro, Recife e sobretu- das ao final do século XIX devem ser pensadas como um processo que se
do São Paulo - fez-se sentir com mais força a ação desse progresso intelectual estende desde as últimas décadas do Império até as três primeiras da Repúbli-
que acabou por atuar diretamente na alteração daquelas formas. ca - aparece sintetizada no saboroso parágrafo com que Gilberto inicia a dis-
Além do ensino, mas de certo modo como sua conseqüência, à medida cussão sobre a ordem étnica no país.
que se amplia o público leitor e se renovam as idéias, o jornalismo age em
O 15 de Novembro no Brasil não foi senão o periquito sociológico em relação com o
direção do progresso cultural. Novamente aqui o autor assinala que, ao lado de
papagaio: o 13 de Maio [ ... ] este é que verdadeiramente comeu o milho da tradição
uma ação renovadora positiva, a imprensa concorre "com seus exageros de- social ou da organização económica brasileira, provocando distúrbios sociais e sobre-
magógicos, para comprometer, na ordem social e no próprio sistema cultural, tudo económicos atribuídos por observadores levianos à neste particular inocente
valores que bem poderiam ter sido resguardados dessas audácias".~9 Através República.
do levantamento de material de jornais aponta para os comportamentos que

la Ibid., p. 258.
29 Ibid., p. 219.

374 375
ELIDE RUGA! BASTOS
ORDEM E PROGRESSO

. . Permitiu a emergência, é verdade, de grandes figuras de reformistas so-


Argumenta ter a República buscado continuar a ordem estabelecida no
CIaIS, mas c?mo movimento pesou muito pouco na definição de políticas gerais
regime monárquico, preservando-lhe a forma social,
q~e be?efi~Iassem a nação. Por esse motivo, o enfrentamento da questão so-

a configuração até certo ponto paternalista; o processo social de ser governo autori-
CIal fOi adIado; os problemas da inserção social do negro e da mulher, o do
tário dentro de uma ordem democrática na estrutura: inclusive na mobilidade de raças, lugar ~a lavoura no conjunto da economia, a preocupação com a organicidade
classes, culturas e populações de regiões diversas; na interpenetração das relações da SOCIedade ficaram irresolvidos. Ocorreu, assim, o crescimento de uma insa-
entre esses elementos na aparência e às vezes na realidade antagônicos; e devido a tais tisfação social mais profunda do que a aparente.
antagonismos, necessitados de um poder político bastante vigoroso para lhes regular Um problema social nuclear, que precisou ser enfrentado após 1889 foi
ou dirigir as relações. ll o ~a valorização d? trabalho manual desprestigiado, naturalmente, pelo ~ró­
pno perfil da SOCIedade escravocrata. Nessa direção, as medidas adotadas
A idéia de ser a nação criação de seu passado e que este condiciona seu
reval~ri~ando e democratizando o ensino técnico foram indispensáveis. A vin-
comportamento mostra o peso que o autor confere aos aspectos sociocultu- da de ImIgrantes dirigidos principalmente para o sul do país operou como fator
rais do processo de transição, elementos que diluem a ação das instituições de redefinição do ethos do trabalho; desse modo, os centros urbanos ganha-
econômicas e políticas em geral transplantadas. É certo que se trata de uma ram novo perfil. Mas a vinda de trabalhadores estrangeiros obedeceu a um
visão parcial do que seja um processo social. Mas o que importa é assinalar plano que objetivou a reprodução de aspectos essenciais da ordem anterior'
que Gilberto inscreve seu trabalho na tradição da sociologia histórica ou gené-
ist~ ~, reforçou-~e com eles o "caráter não só europeu, em geral, como latino;
tica, traço várias vezes apontado durante o texto. Assim, explica a permanên- catohco, em partIcular, da civilização que aqui vinha se desenvolvendo". 33 Abriu-
cia do patriarcalismo na figura do coronel com forte poder regional, não apenas se no país um novo período de miscigenação, não só racial como cultural.
político, mas social, econômico e cultural. Ainda, da parte da gente moça, a Cruzam-se, no momento de transição, explicações contraditórias sobre a
convivência simultânea de uma visão igualitária sobre a sociedade, claramente composição do povo brasileiro. Preocupações eugenistas teses racistas
de inspiração teórica, com uma prática negadora daquele princípio. arianistas, de valorização dos elementos ameríndios na formaçã~ nacional vária~
delas origin~das e~ reflexões estrangeiras, articulam-se e contrapõe~-se. É
Discute as formas de mobilidade presentes no período de transição. Des-
de o Império os títulos acadêmicos teriam operado como meio de ascensão bastante cunosa a Invocação que o autor faz da figura do amarelinho, indiví-
social, favorecendo mestiços ou jovens brancos de origem modesta, traço que duo cacogên~co, miúdo, franzino, pequenote, pálido. Ilustrando com algumas
se acentuou com a República. O Exército também se constituiu em espaço figuras - RUI Barbosa, Santos Dumont, Olavo Bilac, Euclides da Cunha, entre
para a realocação social. Na verdade, no que diz respeito à outros - lembra que seu brilho intelectual funciona como uma espécie de vin-
gança do povo mestiço em face dos preconceitos internacionais contra a mis-
[ ... ] democracia étnica" não existem mudanças essenciais entre o período monárquico
cigenação. Na questão do preconceito social várias posições convivem desde
a .~ais radical afirmação da inferioridade racial,34 até o comport~mento
e o republicano. Embora no quadro "de um progresso de democratização étnica", o
autor mostra a presença de alguns comportamentos preconceituosos da parte de ho-
mens do governo que jogavam diretamente a favor de interesses particulares de setores mlhtantemente democrático-racial. Os depoentes consultados representam essa
econômicos e regionais. Isso abre espaço para que o autor reflita sobre a maior isenção eno~e gama ~e atitudes referentes ao amálgama de raças que compõem a
da Coroa, cujos interesses eram nacionais, o que não ocorreu na República, onde SOCiedade braSileira.
prevaleceram interesses de grupos. Só o Exército coloca-se acima desse jogo. O
positivismo poderia ter assumido o papel de guardião dos interesses gerais. No entan-
to, acabou por ser apenas "instrumento ideológico de conquista do poder político".12

J3 Ibid., p. 335.
34 Observe-se que se refere a uma discussão desenvolvida em Casa-grande & sen:ala quando mostra
]I Ibid., p. 298. a não cientificidade dessas teses.
J2 Ibid., p. 317.
377
376
ORDEM E PROGRESSO

ESTABILIDADE SOCIAL EM CRISE


T·,
<o:.t-.'
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ELIDE RUGAI BASTOS

trabalhadores, alterou o fundamento das relações sociais até então vigentes.


Ampliaram-se as bases para a incorporação dos estrangeiros no corpo de tra-
No final da presidência de Venceslau Brás "encerrou-se, entre nós, uma balhadores nacionais, forma vista por muitos dirigentes como necessária à
fase social, e também econômica, vinda, aliás, dos primeiros anos do reinado modernização da ordem econômica brasileira. Dessa posição coloca-se como
de Pedro II, de relativa estabilidade de estilos de vida e de normas de cultura oponente dos autores que apontam para a questão da ampliação dos direitos
no desenvolvimento nacional",35 continuidade possível porque a alteração de como procedimento fundamental para a destruição da herança escravocrata
regime não significou senão mudanças de superficie. No entanto, medidas ec~­ no Brasil e para a construção das bases de uma sociedade democrática. 37
nômicas e políticas, algumas já vindas do período monárquico, afetaram defim- Gilberto reflete a respeito desse progresso "talvez contraditório". As con-
tivamente essa ordem. O progresso nacional vinha custando demais aos siderações sobre o trópico constituem-se em ponto de partida para dar conta
brasileiros. Principalmente porque as medidas gerais afetaram de forma desi- dessa contradição. O transplante de formas econômicas das regiões frias para
gual as regiões. Ora "o Brasil nunca foi país de um tempo social ou psicológico as quentes ou temperadas requer cuidados que escaparam aos nossos dirigen-
ou cultural só, a mover-se num mesmo ritmo de norte a sul ou de leste a oeste tes. As economias norte-européias ou ianques são masculinas e a brasileira
do Império ou da República, mas sujeito a vários desses tempos, às vezes feminina. Configuram não só racionalidade versus sensibilidade - segundo o
. d d "36 autor, características diferentes nos gêneros -, mas temporalidades diferen-
contraditórios; e mais adiantados, nuns espaços, maiS retar a os, noutros.
Assim, é quase impossível conciliar o progressismo de uns com o conservantismo tes. O tempo europeu/ianque, rápido, cronometrado, opõe-se ao tempo brasi-
de outros. O processo vivido por São Paulo é escolhido como exemplo pelo leiro, agrário, escravocrata, aristocrático, lento, eivado de vagares. Assim, o
autor. A passagem de uma situação periférica em relação às outras regiões processo de modernização obrigou as regiões que se industrializaram à criação
para o exercício de uma hegemonia econômica e política a partir.da seg~nda de um terceiro tempo diferente daqueles. Aqui residiria um dos principais erros
metade do século XIX e reforçada no primeiro decênio da RepúblIca, obngou do imperador:
a sociedade paulista à assimilação e absorção de elementos humanos, étnicos,
[ ... ] seu fracasso de arte política consistiu em não ter sabido animar, no Brasil, o
culturais e sociais, procedimento que a torna única no país. Assinala que mui-
desenvolvimento daquele terceiro tempo social. Um terceiro tempo social que não
tas medidas em beneficio do café e, depois, da industrialização, aceleraram o sendo o agrário, escravocrático, quase medieval- mantido nos seus relógios, sempre
processo, beneficiando o estado em detrimento dos outros da federação. Tais atrasados, pelos senhores de terras e de escravos - nem o "europeu" ou o "america-
vantagens levaram a uma liderança política paulista que tem umafacies de- no", desejado pelos progressistas desordenados - gente utópica que pretendia situar
fensiva: constituiu-se em refúgio contra o caudilhismo militar e garantia das o Brasil fora de todas as sugestões de espaço - o tropical- e de passado - o lusitano
bases para o desenvolvimento social e econômico da região. . ou hispânico 38
Assim, as mudanças econômicas, com o enfraquecimento da economIa
do açúcar, com a crise da borracha, com a valorização do café, com o de.sen- A República não soube retificar o erro. O progressismo estreito dos go-
volvimento dos frigoríficos, com as culturas do algodão, mate, fumo, mIlho, vernos republicanos, identificando progresso nacional com progresso industri-
arroz alteram o desenho do país e o lugar das regiões nesse contorno. O Plano al, impediu que fossem superados aqueles limites.
de V~lorização do Café, embora considerado pelo autor como uma técnica
econômica avançada, promoveu esse produto a eixo da economia nacional em
detrimento das outras culturas. A constituição do Patronato Agrícola, forma de 37 A argumentação frciriana vai em direção do questionamento da tese de Caio Prado Júnior que
intervenção do Estado no sentido de disciplinar as relações entre patrões e aponta para os limites impostos pelo legado escravocrata e colonial, herdado pela formação
brasileira, ao desenvolvimento de uma sociedade democrática. O argumento caiopradiano será
fundamental para as reflexões sobre a questão racial feitas por Florestan Fernandes e seu grupo
de pesquisadores da Universidade de São Paulo, cujos trabalhos criticam a tese de democracia
racial exposta por Gilberto Freire.
II Gilberto Freire, Ordem e progresso, cit., p. 387.
JS Gilberto Freire, Ordem e progresso, cit., p. 472.
J6 Ibld., p. 390.

378 379
ORDEM E PROGRESSO ELIDE RUGAI BASTOS

Assim, o progresso industrial passou a reger todas as medidas visando à colégios protestantes foram fundados, aplicando-se modernos métodos de en-
modernização: o planejamento e organização urbanos, destruindo as ruas sino em várias regiões do país. A própria Igreja católica se renovou sob a ação
arborizadas para dar lugar a avenidas, acabando com os quiosques, com as dos religiosos estrangeiros e dos debates sobre a questão social. Preocupadas
negras de tabuleiro; a polícia equipando-se para enfrentar novos crimes de com a condição de vida dos trabalhadores várias congregações católicas ini-
contrabandistas, escroques, caftens, ladrões, assassinos; a modernização dos ciaram experiências em seus empreendimentos de aplicação das medidas do
portos, o saneamento, a educação, os modos, as modas, o transporte. O prote- cristianismo social. É uma das maneiras pelas quais a religião auxiliou na refle-
cionismo do setor industrial levou ao abandono da agricultura, descurando-se o xão sobre a crise que ameaçava a estabilidade da sociedade brasileira na
desenvolvimento de uma colonização agrária que levasse ao povoamento dos terceira década do século XX.
campos. A "indústria nacional, em grande parte carnavalesca, e cujo progresso
era antes uma ficção que realidade", permitiu à sociedade brasileira a criação
de uma falsa identidade, "alguma coisa de bovarístico", em que o progresso de DISSOLUÇÃO DO FUTURO EM PASSADO
que todos se orgulhavam era estritamente industrial e metropolitano. Esse ufa-
nismo levou a que com certa pressa se absorvessem estrangeiros de ética Nos anos 20, no quadro da crise, inicia-se a avaliação da República.
duvidosa, se desenvolvesse umjornalismo desonesto, se incentivasse a mobili- Várias mobilizações são indicativas desse processo. O momento emblemático
dade reg~onal. Julgou-se proteger uma nação e protegeu-se, na realidade, uma é o do centenário da Independência, em 1922. O livro de Vicente Licínio Car-
única clàsse ou região. Isso indica a ausência de um plano conjunto para o doso, A margem da história da república, organizado nesse momento e con-
desenvolvimento nacional. Retomando o mito do amarelinho, Gilberto o inter- tendo ensaios de vários intelectuais de importância, faz um balanço dos
preta como inseparável da mitologia brasileira do progresso industrial, opondo- problemas, dos dilemas e acena com as soluções possíveis. Gilberto mostra
se sua figura àquela do estrangeiro ariano, este representando a dedicação como a época é marcada por dois eixos que definem comportamentos e inter-
árdua ao trabalho, o esforço penoso que surte efeito. Aquele, embora sofrendo pretações: de um lado, a conciliação das diferentes atitudes, dos projetos, dos
os efeitos do clima, da má alimentação, das doenças, foi capaz de ultrapassar encaminhamentos políticos; de outro, a revalorização das "coisas brasileiras".
o adventício, substituindo o esforço e a dedicação pela genialidade. A conciliação é ilustrada a partir de figuras representativas da ação política e
A religião, que sempre operou como alicerce da ordem moral e da da reflexão sobre a sociedade brasileira, cuja ação, naquele momento, volta a
organicidade da sociedade, também sofreu modificações na transição monar- ser analisada: Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e o barão do Rio Branco. Perten-
quia/república. A valorização da ciência como instrumento explicativo levou, centes "ao número de brasileiros da sua época que foram, ao mesmo tempo, e
se não à desqualificação, pelo menos à desconfiança do papel da religião na um tanto paradoxalmente, conservadores e revolucionários. Isto sem nenhum
manutenção da ordem social. Alterações políticas que modificaram o lugar da deles ter se partido em metades inimigas uma da outra; e sim conciliando, cada
Igreja, das quais a principal foi a separação Igreja/Estado, mas que se desdo- um dos três, dentro de si, contradições que resultaram fecundas para o Bra-
braram na secularização dos cemitérios, na liberdade religiosa, na instituição sil".39 A conciliação se expressa também na democracia étnica, nesse mo-
do casamento civil, na modificação do estatuto dos sacerdotes, antes submis- mento com outros elementos, dada a presença de estrangeiros diferentes
sos e sob a proteção dos patriarcas e depois sob a jurisdição dos bispos, têm daqueles da formação original, luso-afri.cana-indígena.
repercussões importantes na sociedade. A Igreja sempre assumira o duplo A valorização das coisas brasileiras se traduz nos novos movimentos
papel religioso e assistencial. Com as mudanças este último passou ao Estado. artísticos e literários que não se furtam a discutir a imbricação do tradicional
O hiato ocorrido entre a intenção de assumi-lo e sua efetiva realização levou a com o moderno, do rural com o urbano, do velho com o novo. Representativo
problemas sociais decorrentes do quase abandono de doentes, velhos, órfãos. dessa preocupação é o livro de Graça Aranha, Canaã, que "procurou fixar, no
Embora vários pontos sejam negativos as medidas proporcionaram a am- começo do século XX, o conflito entre o Brasil antigo e o adventício", ou ainda
pliação do campo de ação religioso, por exemplo, difusão de outras religiões,
principalmente aquelas ligadas às correntes imigratórias. Assim, importantes J9 Ibid., p. 612.

380
J
. Ji,;..
381
ORDEM E PROGRESSO
T ELIDE RUGA! I3ASTOS

Os sertões, de Euclides da Cunha. A valorização do sistema de natureza e cinqüenta páginas a uma síntese do material e teses apresentadas. Vários
cultura tropicais passa a influenciar, além do campo da arte e literatura, a eixos atravessam a explicação. Vale lembrar alguns deles.
farmacopéia, com a utilização de plantas da floresta amazônica - guaraná, Trata-se de uma análise sociológica assentada na idéia de que as mudan-
copaíba, jaborandi. ças sociais não ocorrem subitamente, mas ao longo do tempo. Assim, é no fluxo
A República chega aos anos 1920 sem grandes realizações e com muitas do tempo e levando em consideração as diferenças espaciais que se encontram
promessas não cumpridas. Não foram tomadas medidas de ordem geral no as razões que movem a sociedade. Nesse sentido, datas precisas, como por
que se refere à questão social. Muitos dos depoentes mostram o quanto esse exemplo a proclamação da República, não dão conta das verdadeiras transfor-
problema os preocupou e como se ligaram a idéias que propunham soluções as mações ocorridas. O mesmo acontece com as instituições; as simples normas
mais diversas. A reforma social e política do Brasil era seu empenho. A denún- não são suficientes para uma avaliação das alterações sofridas pelo conjunto
cia da miséria que se explicitava nos baixos salários, na exploração dos meno- social. Desse modo, Gilberto busca no conceito de processo social - assimila-
res e das mulheres, na deficiência de alimentação dos operários, no péssimo ção, acomodação, adaptação e socialização - o instrumento para dar conta das
estado sanitário de fábricas e repartições, na ausência de aposentadorias nos modificações que atravessam a sociedade brasileira na transição da monar-
casos de invalidez pela idade ou por acidente. "De nada disso se cogitava quia à República, período que se estende por várias décadas.
numa República que se industrializava e se urbanizava com rapidez; só de Recorda os elementos assimilados das culturas originárias -lusa, africa-
avenidas, edificações de luxo, protecionismo aos industriais."40 A opinião de na e indígena - que constituem a cultura brasileira e que marcam as relações
um dos entrevistados é apoiada por Gilberto. Em vários momentos a solução, sociais no país. Indaga-se sobre o que permanece e o que muda com o novo
para alguns, foi a da restauração da monarquia. Para outros, a revolta. regime. Ao mesmo tempo estuda as formas pelas quais se dá a adaptação aos
A crise da Primeira República pode ser explicada, segundo o autor, pela novos tempos; em outros termos, como os indivíduos se ressocializam para
não adaptação do governo à sociedade, pela forma artificial através da qual se adequar-se ao novo perfil da nação, pois no choque entre o velho e o novo se
processou a modernização. Realizou-se uma modernização de cima para bai- desenvolve a socialização. É por isso que se cruzam os dados históricos e os
xo que não levou em consideração as diferenças dos tempos sociais, as diver- depoimentos dos entrevistados sem que fique em segundo plano a opinião do
sidades regionais e o conjunto de interesses que preside a nação. É claro que autor. Mais ainda, sem que deixe de lado o diálogo com os intérpretes do perío-
se pode reconhecer a existência de progressos, "progressos um tanto do - relacionados na longa nota bibliográfica - e com a sociologia que, no
desordenados, mas progressos". O problema é que se concedeu anterioridade Brasil, desenvolvera-se graças à fundação dos cursos de ciências sociais a
à ciência em lugar da sociedade. Essa valorização mítica de tudo quanto é partir da década de 1930.
científico, não avaliando o que é adequado ao país, pode ser figurada pela Na definição das características do período, Gilberto aponta para uma
saudação a Nilo Peçanha feita por um homem do povo: "Eita, Presidente cien- fratura nos setores economicamente dominantes, cujos interesses são clara-
tífico!".41 mente diversos se consideradas as diferentes regiões. O governo imperial até
um certo momento conseguira essa diversidade. A crise está ligada às mudan-
ças que se desenvolvem a partir da segunda metade do século XIX, pois o
TENTATIVA DE SÍNTESE Império não conseguiu tomar-se instrumento de articulação dos interesses que
se agudizam. Isso leva à alteração do regime. No entanto, os governos repu-
Ordem e progresso não é livro de compreensão fácil. O próprio autor, blicanos não souberam também desempenhar esse papel. Isso explica a cri-
consciente dos vários caminhos a que sua leitura leva, dedicou cerca de se da Primeira República. É certo que o governo provisório tentara, de certo
modo, apaziguar as regiões, explicitando a vocação nacional do Exército. Mas
prevaleceram os interesses dos grupos sobre aqueles nacionais. A Coroa con-
servou a unidade do país graças à preservação dos interesses nacionais, tarefa
40 Ibld., p. 716.
41 Ibid., p. 743.
que levou a cabo através da aliança monarquia-patriarcado. Isso permitiu que

383
382
ORDEM E PROGRESSO

pudesse manter o equilíbrio regional. Mas os tempos modernos exigiam mu-


T FLORESTAN FERNANDES
danças e a ordem patriarcal tornou-se impedimento a um desenvolvimento
secularizador. Cindiu-se o pacto.
A tarefa que Gilberto propõe à sociologia é a resposta à pergunta: como
se mantém a organicidade e a unidade nacionais? Vai buscá-la na análise das A integração do negro na
formas pelas quais se dá a internalização da ordem social, no caso do texto,
através do processo de socialização. Aqui reside o grande alcance de seu
livro. Mas também seu limite, o que levou a que se fizessem várias críticas ao sociedade de classes
trabalho, principalmente na direção de apontar-se a centralidade de sua análi-
se na esfera da cultura, o que o impede de abordar de frente os desafios
contidos no projeto emancipatório da modernidade.

Gabriel Cohn

384
"Se o senhor quiser estudar o negro precisa vir comigo. Eu mostro para o
senhor como tudo que parece simples é complicado." É pouco provável que
essa frase de um informante de Florestan Fernandes na sua grande pesquisa
sobre o problema da integração do negro na sociedade de classes em São
Paulo o tenha impressionado mais do que já deveria estar, diante da formidável
tarefa que se havia imposto.\ Sociólogo visceral, talvez a mais acabada voca-
ção que o Brasil tenha produzido nessa área de estudos,2 em que tudo que
parece simples revela-se complicado (e não o contrário, como nas ciências "já
prontas", para usar a saborosa expressão que o teatrólogo e cronista Flávio
Rangel aplicava aos povos), Florestan estava disposto a enfrentar até o fIm o
desafIo de percorrer todas as dimensões de um problema que se confunde
com a própria história recente da sociedade brasileira. Pois é dessa história e
dessa sociedade que trata a obra, como de resto indicam tanto o título como os
subtítulos dos seus dois volumes: O legado da "raça branca" e O limiar de
uma nova era.

o PROBLEMA
Mas que ninguém leve essas expressões ao pé da letra. Todas elas desig-
nam algo de problemático na sociedade brasileira. Problemática é a integração
do negro; problemático é o legado que se examina, que não é o do negro, mas

1 Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, vol. 1 (3 1 ed. São Paulo:
Ática, 1978), p. 77. Em vários pontos o presente texto elabora sugestões apresentadas naquela
que seria a primeira resenha dessa obra, feita com base na edição interna da Faculdade de Filosofia
da USP (1965) e publicada na Revista do Arquivo Municipal.
1 O outro s.ério candidato a isso, Gilberto Freire, forma com Florestan o mais perfeito par de
opostos que se possa imaginar. Não pela temática, que é em muitos pontos a mesma em ambos.
Nem pela formação e pelas linhas de pesquisa, que em ambos percorre o arco que vai da análise
etnológica à reconstrução histórica em grande e pequena escala, centrando-se, é claro, na análise
sociológica. Mas pelo contraste entre a perspectiva senhorial, a expressão estética (em que as
claras referências à experiência pessoal servem para caracterizar o prazer descomprometido do
observador) e a escrita descontraída de Freire, por um lado, e, por outro, a perspectiva plebéia,
a expressão ética (em que a experiência pessoal passa pela angústia da participação) e a escrita
crispada de Florestan. Gilberto Freire sempre parece à vontade, nos lugares que percorre, nas
memórias que evoca, nos temas que elege com o desembaraço do connaisseur. Florestan só
encontra condições para uma observação distanciada quando literalmente seu objeto está à
distância máxima: quando se trata de reconstruir a organização social dos tupinambá extintos há
séculos. Está para ser feita a análise desse contraste, perfeito desafio para uma sociologia do
conhecimento.

387"
A INTEGRAÇÃO DO NEGRO NA SOCIEDADE DE CLASSES GABRIEL COHN

o da "raça branca" (entre aspas); problemática é a constituição da sociedade veja girando em círculos, basta que se realize o seu requisito mais básico (e
de classes. Mas será também problemático o "limiar de uma nova era", que o também o mais dificil). Consiste ele na mudança qualitativa dos grupos que
subtítulo do segundo volume aparentemente proclama num tom que lembra o a integram (e, por extensão, dos indivíduos que os compõem) e das relações
clarim que deu nome ao principal órgão da imprensa negra? Neste passo vale entre eles. O antigo cativo converte-se em homem negro, e este em membro
a pena antecipar os comentários que se lerão em seguida e afirmar desde logo ativo de uma classe; sem isto, recai-se na versão perversa do dilema. A ques-
que, à luz de toda a análise que Florestan dedica ao tema, também nesse ponto tão é: dadas as condições históricas de desenvolvimento da sociedade brasilei-
não se pode ser afoito na leitura. Esse limiar deve ser entendido mais como um ra a partir da abolição do regime escravo e da instauração da República, como
horizonte: como um ponto de fuga que concentra todas as linhas da figura e lhe pode a população negra (sempre incluída a parcela mulata) realizar isso? Vale
confere perspectiva precisamente por ser inatingível por ela. O livro trata mais dizer, afirmar-se como agente histórico? Mais: em nome do que essa popula-
de anseios do que da sua realização, mais de promessas do que de seu cumpri- ção assume papel crucial na liberação de forças tolhidas no interior da socie-
mento, mais de obstáculos do que de trajetos bem-sucedidos. O que se faz é dade na qual busca os seus espaços?
acompanhar em todos os seus meandros o entrelaçamento de duas trajetórias
- a dos ex-escravos e a da formação de uma sociedade de classes no Brasil-
em que uma não tem como se completar sem o sucesso da outra. Mostra-se o NEGRO E O POVO
como só há um modo de plena integração para o negro, que é pelo caminho da
classe social. Mas isso depende de duas coisas dificeis, e não só de uma. Esta última questão é decisiva do ponto de vista da estratégia de pesquisa
Primeiro, da abertura de espaços mediante a plena constituição de uma socie- adotada. Pois pouco se avançaria se a população negra tivesse significado
dade de classes na qual possa se inserir. Segundo, da sua própria capacidade apenas marginal na configuração desse amplo painel histórico. Nesse caso,
para em primeiro lugar organizar-se a ponto de afirmar-se como raça (no sen- por que colocá-la no foco da análise, se o que se pretende é mais do que um
tido de uma identidade social). estudo de relações raciais? A razão para estudar os negros de preferência a
Não há, portanto, um caminho reta e plano a ser percorrido. Pode ter qualquer outro grupo é tão simples quanto profunda. Num sentido muito forte
havido uma lei áurea, mas não há via áurea para harmonizar a condição de ex- do termo o negro é a expressão típica de uma parcela fundamental da socie-
escravos com as condições da sociedade em que lhes foi dado viver. O proble- dade brasileira no período estudado. E isso tanto no que diz respeito ao modo
ma é que ambas as exigências que se impõem aos egressos do regime escravo como nessa sociedade se articulam as suas partes constituintes (à sua estrutu-
(afirmarem-se coletivamente como raça para então, assegurada a sua pre- ra) como no tocante ao seu modo de operar e às suas tendências (à sua dinâ-
sença ativa na sociedade, poderem afirmar-se como integrantes das classes mica). Ele figura na análise como aquela ponta da sociedade para a qual fazer
que a constituem) os empurram para um beco. Os seus esforços esbarram nos parte dela já é uma proeza, até porque lhe coube o pior ponto de partida na
estreitos limites em que se forma o regime de classes na sociedade brasileira. disputa histórica pelas posições sociais mais favoràveis. Nem inteiramente
E esses limites, por sua vez, não têm como se ampliar, em boa medida porque excluído nem equipado para incluir-se plenamente, ele ocupa a posição mais
a integração do negro reiteradamente depara com obstáculos de toda sorte vulnerável, para ele próprio e também para a sociedade toda. Ocupa aquele
(que cabe à análise sociológica reconstruir). ponto em que os grandes circuitos do poder, da organização econômica e das
Em suma, o que se exibe em todas as suas dimensões ao longo da obra é formas de convivência não logram fechar-se. Move-se naquele hiato que assi-
como se desenha na história da sociedade brasileira um dilema, que perturba o nala a incapacidade sempre reiterada de completar-se o ciclo histórico da so-
seu presente e compromete o seu futuro. À primeira vista esse dilema parece ciedade. Em suma, o negro apresenta-se como a expressão mais extrema e
assumir a clássica forma de "se ficar o bicho come, se correr o bicho pega"; por isso mesmo mais nítida do personagem histórico do qual não se fala expli-
ou seja, de uma situação de paralisia sem saída. Mas não é este o sentido da citamente, mas que atravessa a análise de ponta a ponta: o povo, na sua forma
reconstrução histórica e sociológica feita na obra. Ela aponta para a única via específica na sociedade brasileira. "Em sentido literal, a análise desenvolvida é
de escape dessa versão mais crua do dilema. Para que essa sociedade não se um estudo de como o Povo emerge na história", escreve o autor na apresenta-

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T.,,·
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GABRIEL COHN

ção do livro. Sendo a população negra a mais penalizada historicamente, o que exame, na medida em que capta o objeto de estudo (no caso, a trajetória do
for demonstrado a seu respeito servirá com mais forte razão para qualquer negro no interior da formação da sociedade de classes) pelo ângulo no qual
outro segmento daquilo que se designa por povo - vale dizer, desse conjunto de suas dimensões fundamentais se revelam distendidas em pólos opostos. Trata-
grupos e indivíduos para os quais a presença ativa na sociedade, como sujeitos se de uma polaridade dinâmica, cujos pólos são temporais mais do que espa-
seus, se apresenta como uma tarefa e não como uma espécie de dom da ciais. Um aponta para o passado e o outro para o futuro. Ou, em linguagem
natureza (uma boa definição, diga-se de passagem, da distinção entre domina- que Florestan foi buscar em seu admirado Mannheim, um pólo aponta para a
dos e dominantes). persistência do passado, na ideologia, e o outro para a projeção futura, na
"O ainda, o aqui e o agora formaram o objeto de nossas indagações", utopia. O essencial é que esses pólos não são lugares, mas vetores, orienta-
esclarece o autor na apresentação da obra. Por isso, acrescenta, "a constela- ções em linhas de força.
ção social constituída pela ordem social competitiva impôs-se como sistema de
referência inevitável nas descrições e interpretações". Repare-se que o foco
da análise não é um tipo de sociedade. Este somente é a referência básica A ESTRUTURA DA OBRA
(mesmo porque o autor explicitamente não vê razão para crer que, tal como se
apresenta, essa sociedade pudesse proporcionar "as soluções efetivas para o Essa percepção da importância da questão do negro na sociedade brasi-
dilema racial brasileiro"). Nem mesmo é o negro como categoria social espe- leira, Florestan não a retirou do nada nem precisou buscar muito longe. Desde
cífica, ou nem sequer as relações entre negros e brancos. O objeto real do os anos 1950, quando trabalhou junto com o sociólogo francês e professor na
estudo.é a complexa e tensa dinâmica em que se entrelaçam o presente, o USP Roger Bastide na formulação e coordenação de uma grande pesquisa
legado do passado e as possibilidades futuras na sociedade brasileira. multidisciplinar sob os auspícios da Unesco, que na sua publicação recebeu o
 formulação dada ao problema é decisiva, e constitui de fato um desses título Brancos e negros em São Paulo, o tema lhe era familiar. O trabalho
achados que conferem a uma obra o seu caráter de exceção. Com efeito, se a sobre a integração do negro na sociedade de classes reúne os fios de múltiplos
referência se limitasse ao aqui e ao agora como focos da análise, não haveria esforços ao longo de cerca de duas décadas empenhados na área. E o faz com
por que esperar do livro mais do que o honesto trabalho de um bom sociólogo. um grande avanço em relação a tudo que vinha sendo feito antes. Isso pode
Mas o grande salto qualitativo é dado na referência ao ainda. Aqui, num gesto ser percebido quando se considera que o exame crítico da idéia de "democra-
de grande força plástica e expressiva, Florestan nos conduz ao âmago das cia racial" no Brasil, que havia inspirado o projeto da Unesco, ocupa como
suas cogitações, àquilo que anima a sua análise e lhe confere riqueza e pulsa- referência explícita somente um capítulo dos seis em que se divide o livro
ção interna. Esta referência dá a medida das preocupações do autor e do sobre a integração do negro. O avanço consiste precisamente em deslocar o
alcance da obra. Este ainda projeta-se retrospectivamente, na identificação foco do tema das relações raciais para o da emergência de uma nova figura
de um legado histórico, e também prospectivamente, na indicação de que, por histórica, o povo. E este aparece representado, naquilo que tem de mais pro-
mais persistente que seja esse legado, a sociedade pode ir além dele. Um fardo blemático, pelo negro. Na realidade, a questão da "democracia racial" não
e uma promessa; a carga do passado e a potência do presente. São linhas de ocupa mais do que um item de vinte páginas no terceiro capítulo do primeiro
força, que a pesquisa irá acompanhar e reconstruir, na polarização da sua volume. Não porque o tema seja irrelevante. Mas porque ele está presente ao
consolidação estrutural e da sua tensão dinâmica. longo de toda a análise, na sua versão mais ampla. Ele comparece naquilo que
O termo "polarização" não ocorre por acaso na última frase. Pela sua importa para a questão da democracia na sociedade como um todo. Nesse
importância no vocabulário analítico de Florestan, no quctl sempre comparece percurso a idéia da democracia racial é exposta no seu ponto nevrálgico: o de
em momentos cruciais, ele merece atenção especial. Embora não esteja pre- que, ao abusar da referência à democracia na sua estreita qualificação "raci-
sente na passagem em exame, nesta se encontra uma boa ilustração da idéia al", o que se faz é ocultar a questão de fundo, que é a dos obstáculos estrutu-
básica envolvida no seu uso. Isto se dá no modo como se insere na análise a rais e das resistências dinâmicas (isto é, que derivam dos interesses sociais
referência ao ainda. Essa expressão nos remete ao fundo do problema em traduzidos em ações) à emergência efetiva da democracia em todas as suas

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A INTEGRAÇÃO DO NEGRO NA SOCIEDADE DE CLASSES GABRIEL COHN

dimensões - claro que a começar pela política, que é o seu verdadeiro lugar. o EXAME DO LEGADO
Mesmo porque a chamada democracia racial é perfeitamente compatível com
a autocracia política e com o autoritarismo social. Acompanhemos, então, alguns pontos salientes do tratamento que o au-
A obra é dividida em duas partes, que correspondem aos seus dois volu- tor dá ao seu tema. Claro que não é possível, nem desejável, tentar seguir o
mes. O segundo volume incorpora o fundamental da pesquisa de campo, e é texto passo a passo (afinal, são 795 densas páginas, repletas de exemplos e de
consideravelmente (50%) maior do que o primeiro, dedicado à reconstrução análises dignas de atenção). Vejamos, primeiro, o tratamento dado ao tema do
do contexto histórico mediante o uso intensivo das fontes secundárias (livros, "legado da raça branca".
artigos, jornais, relatórios) disponíveis. A organização do conjunto merece aten- O texto tem início com o exame das condições em que a população ne-
ção. 3 Cada parte consiste em três capítulos, divididos em seções conforme um gra, após uma abolição pela qual os senhores viram-se livres dos seus escra-
padrão que confere ao conjunto um ritmo, uma respiração peculiar. Dos seis vos mais do que estes ganharam a liberdade, busca novas condições de
capítulos, os dois primeiros dividem-se em três seções; o terceiro e o quarto, sobrevivência numa sociedade de classes em formação. Sendo esse o tipo de
em duas seções; o quinto, em três; e o sexto, em duas. É preciso considerar, sociedade que importa para a análise, o foco é São Paulo, como o centro
contudo, que a "Nota explicativa" que figura como apresentação ao livro deve urbano exemplar sob esse aspecto. A natureza e a distribuição dos grupos
ser considerada parte integrante (e muito importante) do texto e que o capítulo sociais, os traços emergentes daquilo que Florestan denomina "ordem social
6 de fato consiste em uma longa seção de 123 páginas, seguida daquilo que na competitiva" (a vertente social do capitalismo industrial) são estudados da
realidade é o fecho do conjunto, uma seção de menos de seis páginas sobre o perspectiva dos seus novos integrantes, em particular aqueles que se verão
"Dilema racial brasileiro". Temos, assim, uma estrutura composta por uma disputando os mesmos espaços: os trabalhadores imigrantes europeus e os
enérgica apresentação temática, um desenvolvimento em registros bastante recém-libertos. Na realidade, a perspectiva adotada ao longo de toda a obra é
variados (que inclui numerosas variações sobre o material empírico apresenta- a do negro. É a partir dos seus modos e das condições de inserção no mundo
do, numa forma de expor que o autor denomina "reiterativa") e uma poderosa que a constituição daquilo que Florestan denomina "regime de classes" vai
conclusão. Uma composição notável, embora o insistente retomo dos mesmos revelando o seu perfil peculiar no contexto em exame. Isso exige uma análise
casos sob ângulos diferentes, naquilo que o autor também designa, numa pas- de longo alcance, que não se detenha nos grandes quadros estruturais, mas
sagem, por "rotação de perspectivas", exija bastante da atenção do leitor. 4 persiga a caracterização do "destino humano" dos protagonistas, indo até a
configuração social da sua personalidade.
A análise mostra que a desvantagem da população negra diante dos con-
J A organização completa da obra é a seguinte. Volume 1, O legado da "raça branca ": "Nota
tingentes europeus advinha mais do modo como seus membros eram levados a
explicativa"; cap. I, "O negro na emergência da sociedade de classes", com as seções: 1. Trabalho
livre e europeização; 2. O negro e a revolução burguesa; 3. Expansão urbana e desajustamento reagir às exigências do novo ambiente do que à apatia, à fuga ou à simples
estrutural do negro; cap. II, "Pauperização e anomia social", com as seções: 1. O déficit negro; incapacidade. Confrontados com experiências como a do contrato de trabalho
2. Os diferentes níveis de desorganização social; 3. Efeitos sociopáticos da desorganização
social; cap. III, "Heteronomia racial na sociedade de classes", com as seguintes seções: 1. O mito
da "democracia racial"; 2. Os padrões tradicionalistas de relações raciais. Volume 2, No limiar de
uma nova era: cap. I, "Os movimentos sociais no 'meio negro"', com as seguintes seções: 1. alcança entender a situação em que se encontra. 3. Vai ganhando esse conhecimento à medida que
Manifestação e objetivos dos movimentos sociais; 2. Uma ideologia de desmascaramento racial; aprende a enfrentar a opção entre aceitar a sociedade como se encontra e ficar à margem ou lutar
cap. II, "Impulsões igualitárias de integração social", com as seguintes seções: 1. Cor e estra- pela afirmação de si e integrar-se ativamente nela. 4. Avança para a posição em que confrontará
tificação socioeconõmica; 2. A ascensão social do negro e do mulato; 3. Natureza e função das o seu destino, que é o de decifrar o enigma que assombra a sociedade como desafio sem resposta.
impulsões igualitárias; cap. II, "O problema do negro na sociedade de classes", com as seguintes 5. Encontra sempre novos obstáculos e vacila, porque pressente que a solução do enigma é
seções: 1. A reação societária às tensões raciais; 2. O dilema racial brasileiro. Cada capítulo é também a verdade sobre ele próprio: a de que a identidade pela qual lutou mediante a polarização
provido de uma "Introdução", em que se recapitula o que foi feito e se apresenta o plano da entre negro e branco é falsa. Assim formulado, pode ser visto (com uma boa dose de boa
seqüência. vontade em relação à esquematização aqui feita) como uma estrutura clássica de tragédia. Mas
4 Com algumas licenças temerárias, o andamento do texto pode ser assim caracterizado. 1. O herói uma tragédia sem desenlace, mesmo porque está em jogo a história em curso e não o mito,
(o negro) é submetido a seguidas provas. 2. Não consegue livrar-se de suas penas porque não exemplar, fundador ou qualquer outro.

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eram levados a interpretá-las sob um critério rígido: nada que lembrasse as minar "déficit negro", pelo qual teria ocorrido um "branqueamento" relativo.
condições anteriores era aceitável, sobretudo quando estavam envolvidas res- Para Florestan isso é "uma expressão da cadeia de ferro que se estabeleceu
trições a uma liberdade percebida de modo difuso. Viam-se, assim, em situa- entre a situação social do negro ou do mulato e a pauperização".l1 O trata-
ções em que o próprio modo como traduziam seu empenho na integração social mento que ele dá ao problema revela em grau extremo a sua preocupação com
voltava-se contra eles. Mesmo quando buscavam absorver uma exigência do a "prudente e construtiva objetividade científica". Uma nota de rodapé, relati-
novo modo de vida, como a ambição por riqueza e o avanço social, o faziam de va ao significado de referências aproximadas que construiu, com muito traba-
maneira desastrosa. Essa ambição existia, mas foi "exatamente a causa de lho segundo ele próprio, sobre a proporção de negros e mulatos na população
sua perda, pois fomentou opções extremamente rígidas e negativas", comenta de São Paulo em três momentos (11% em 1910; 9% em 1920; e 8,5% em
o autor. 5 Nessas condições, "a sociedade de classes toma-se uma miragem, 1934) é muito expressiva. 12 Após várias considerações de método, assevera
que não lhe abre de pronto nenhuma via de redenção coletiva".6 Nessa etapa ele que "tais conjecturas merecem, porém, tão pouca confiança, que evitamos,
inicial (que Florestan, em fórmula de alto poder expressivo, denomina "anos de escrupulosamente, levá-las em conta na discussão dos problemas considera-
espera")? a liberdade apresenta-se para o negro de modo ainda ambivalente, dos neste capítulo". A mescla de análise sociológica e demográfica com que
como exigência radical e também como fonte de frustrações. Mas, comenta o Florestan procura esclarecer os efeitos da circunstância de que "os negros e
autor, "para expurgar-se de uma herança cultural perniciosa e converter-se mulatos faziam parte dos grupos populacionais ao mesmo tempo mais
em homem livre, o 'negro' precisava viver em liberdade. Se chegou a usar desprotegidos e menos aptos em face dos riscos e das exigências da expan-
essa liberdade contra si, isso aconteceu porque não sabia proceder de outro são urbana"13 é um bom exemplo do modo verdadeiramente implacável como
modo".8 Na realidade, o seu vínculo com a sociedade de classes revela-se ele perseguia todos os dados ("evidências empíricas", diria ele) que, por mais
externo. Forma com relação a ela "um agregado justaposto, nada mais do que longínquos e trabalhosos que fossem, de algum modo pudessem ajudar na
isso".9 Faltava ao negro algo essencial: o preparo para a rápida aquisição e explicação.
domínio das "técnicas sociais e culturais do ambiente".1O Caracteriza o livro todo, aliás, o entrelaçamento entre a mais escrupulosa
O tema das "técnicas sociais e culturais" está presente ao longo de toda busca da objetividade científica e um alto grau de envolvimento com o seu objeto
a análise. De certo modo elas figuram na análise de Florestan como um núcleo de estudo, em relação ao qual exerce profunda empatia. Isso o leva a formula-
temático, a partir do qual se vão distribuindo as questões relevantes nos vários ções desconcertantes, como numa passagem referente à distribuição ocupacional
registros analíticos. Elas prestam-se a isso porque condensam dinamicamente em São Paulo nos anos 1930 e 1940, na qual se lê que "graças aos quadros 6 e
(naquilo que se traduz em ação, mediante o que Florestan designa por 7 ganhamos outra dimensão desse drama".14 A direta associação entre a apre-
"impulsões") todas as dimensões do objeto, desde as grandes estruturas soci- sentação de dados estatísticos e a idéia de drama (aliás recorrente no texto) só
ais e culturais até a vertente social das personalidades, na qual se constrói o faz sentido quando se tem em mente que Florestan trabalha simultaneamente
que ele denomina "destino humano". em dois planos, com sentidos diferentes mas que se completam: o da perspec-
As primeiras décadas do século XX marcam um período de decréscimo tiva analítica do observador equipado com os recursos e as exigências do méto-
da presença do negro na população paulistana, no que se convencionou deno- do, que se traduz num estilo de exposição sóbrio e mesmo árido, e o da perspectiva
vivida do objeto de análise, cuja reconstrução não só permite como exige uma
exposição empática, que dê conta dos investimentos simbólicos e psíquicos
, Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, cit., p. 56.
6 Ibid., p. 59.
que se associam a condições de existência social historicamente dadas.
7 Em passagens como essa torna-se difícil não dar atenção a uma referência do próprio Florestan
acerca do interesse que lhe despertara a leitura de obra literária cuj a presença parece insinuar-se
na própria composição do seu texto: José e seus irmãos, de Thomas Mann. II Ibid., p. 100.
8 Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, cit., p. 96. 12 Ibid., p. 108.
, Ibid., p. 60. lJ Ibid., p. 132.
10 Ibid., p. 82. 14 Ibid., vol. 2, p. 124.

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A INTEGRAÇÃO DO NEGRO NA SOCIEDADE DE CLASSES

A reconstrução e exposição por todos os meios das relações entre os reaparece mais adiante, quando se discutem os efeitos da desorganização so-
grandes processos sociais e culturais e o que denomina impulsões psicossociais, cial, em termos da "inexistência de meios psicossociais e socioculturais para
no plano da personalidade, é de fato uma tarefa central para Florestan, e con- organizar a percepção, a inteligência e a ação de modo congruente com as
corre para a exigência dessa plasticidade de estilo. Importante, no caso, é que exigências do ambiente [ ... ] Faltaram ao negro e ao mulato os suportes
essa busca de percepção de modos de vida e de processos sociais na perspec- perceptivos e cognitivos, que a herança sociocultural deve fornecer para
tiva dos sujeitos da análise não significa de modo algum parcialidade, e muito alicerçar uma 'boa' organização do comportamento humano".17 Nessas con-
menos efusão sentimental. Ao discutir a apatia dos negros no ambiente urbano, dições, o negro "se viu impotente diante de formas sociais que não sabia reco-
Florestan é explícito a respeito. "Tudo isso demonstra que a apatia da 'popula- nhecer, explicar e submeter a algum tipo de controle social", sendo "apanhado
ção de cor' preencheu certa função histórica", diz ele, para comentar que não numa ratoeira" (expressão mais crua da idéia anterior de uma teia de contra-
há como disfarçar isso: "Nem temos tal intenção, seja por amor à decantada dições insolúveis). Reencontramos aqui, já bastante enriquecido, o tema da
'democracia racial', seja por simpatia pela 'gente negra'''. Em suma: conside- carência de técnicas sociais e culturais. Nesse passo a análise evoca um con-
rar que um dos níveis da análise e da exposição envolve colocar-se na pers- ceito que, assim como a "sobredeterminação" mencionada acima, não está
pectiva do sujeito estudado pode justificar uma posição empática no plano da presente com todas as letras, mas encontra-se como que descrito na exposi-
análise dos dados e mesmo a emoção explícita no plano da exposição (desde ção. Trata-se da idéia de "duplo vínculo" (double bind). Sua relevância para
que devidamente submetidas aos controles metódicos), mas, no que tange à o caso advém de que se aplica precisamente a situações em que exigências
pesquisa científica, nada tem a ver com adesão simpática ou repulsa antipáti- simultâneas e contraditórias paralisam e desorganizam o sujeito. ("Aprenda a
agir como branco. Aprenda que você não é branco.") Sobretudo porque esse
ca, com parcialidade, enfim. IS
Uma passagem do exame dos níveis de desorganização social mostra bem conceito permite explicitar aquilo que no texto citado fica implícito, a saber,
o entrelaçamento de temas de análise e de modos de exposição. Escreve ele que que as contradições que cercam e constrangem o sujeito são insolúveis para
ele, precisamente porque ele não tem como se dar conta de que as exigências
o modo pelo qual o "meio negro" se incluía na ordem social estabelecida impedia a impostas estão em níveis lógicos diferentes e, quando percebidas nesses ter-
livre manifestação, o desenvolvimento normal e a satisfação construtiva de tais mos, não se aplicam simultaneamente.
impulsões psicossociais, que orientavam o comportamento, dando lugar a decepções Mas não cabe também concentrar toda a atenção no negro, sem obser-
e frustrações incontroláveis. O mesmo processo se repetia nos demais desajustamentos; var os padrões de conduta dos brancos nessa formação da ordem social compe-
e é esse processo que nos interessa. Ele mostra-nos o negro e o mulato presos numa
titiva. O senso comum sugeriria que, se os negros não avançaram na absorção
teia de contradições insolúveis, nas quais emergia lentamente e acabava por florescer
de técnicas sociais congruentes com essa sociedade e na sua integração nela,
o "longo drama interior", de que os diversos desajustamentos sociais apontados
constituíam o "desenlace". Qualquer que seja o desajustamento que se considere, o é porque os brancos impediram. De certo modo é o contrário, sustenta Florestan.
pólo dinâmico e por assim dizer o "multiplicador" do processo vinha a ser, invaria- Não foi a ação, mas a omissão dos brancos (ou seja, dos mais ricos e dominan-
velmente, o anseio de classificar-se econômica e socialmente [... ]16 tes) que concorreu para a apatia negra. Pois essas parcelas brancas da popu-
lação, mesmo as com posições mais altas, "só conseguiam pôr em prática
Aqui, todas as dimensões estão presentes simultaneamente, e o conjunto reduzida parcela das técnicas, instituições e valores sociais inerentes à ordem
é como que "sobredeterminado" num dos elos do seu encadeamento. O tema social competitiva, e ainda assim em setores restritos e confinados" ,18 deixan-
do com isso amplo espaço para padrões de conduta arcaicos. Nesse espaço
mergulham os segmentos da população negra que, por razões que a análise
II Isso não significa que, no plano pessoal (ou "existencial", como ele diria) Florestan não fosse
profundamente sensível à dimensão irredutivelmente humana na trajetória social dos negros e considera, refluem diante dos desafios da nova ordem social.
mulatos. Em exposições ao vivo, especialmente no diálogo direto com públicos negros, isso
vinha à tona com grande intensidade.
17 Ibid., p. 230.
16 Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, cit., vol. 1, p. 197.
18 Ibid., p. 250.
[Enfatizado no original.]

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A INTEGRAÇÃO DO NEGRO NA SOCIEDADE DE CLASSES

Arrogando-se a solução de problemas ignorados ou descurados pelas elites no poder,


A análise realizada leva a concluir que o "déficit negro" não teve o cará-
o negro e o mulato chamaram a si duas tarefas históricas: de desencadear no Brasil a
ter catastrófico que alguns lhe atribuíam no que tange à dimensão estritamente modernização do sistema de relações raciais; e de provar, praticamente, que os ho-
demográfica. No entanto, é altamente significativo para a perspectiva socioló- mens precisam identificar-se, de forma íntegra e consciente, com os valores que
gica. Constitui "índice demográfico de um desajustamento de caráter estrutu- encarnam a ordem legal escolhida. 25
ral e persistente" .19 Fundamental nesse passo, para Florestan, é a circunstância
de que "as compensações individuais ou coletivas, oferecidas pela 'vida na Esta última afirmação só ganha sentido se o leitor não perder de vista
cidade', não alteraram, substancialmente, a posição do negro e do mulato no que a exigência normativa nela expressa está sendo atribuída aos próprios
sistema de relações econômicas e sociais"?O grupos negros, e não é do pesquisador. O que se está dizendo é que, na sua
ânsia de se afirmar e de mostrar que podiam fazer tão bem quanto os brancos
(os dominantes) ou melhor, os negros se impuseram uma tarefa que a rigor é
No LIMIAR DE UMA NOVA ERA? impossível: a realização pura, sem mácula, da ordem social que os brancos
sujaram. Ninguém conseguiria fazê-lo, e a análise está aí para mostrar como e
o primeiro volume traçou um quadro sombrio das condições iniciais da por que isso se dava. Mas a proposta fazia sentido, dadas as condições. E a
busca pelo negro do seu lugar na sociedade de classes em formação em São tentativa de levá-la adiante, mediante a organização em movimentos sociais,
Paulo. Dificuldades de toda ordem acumulavam-se no caminho desse novo representa uma "impressionante façanha histórica".26 Pois, como Florestan dá
contingente social. Entre elas, a entender ao longo de toda a sua obra, a capacidade histórica de um movi-
mento social para oxigenar uma sociedade depende mais do ardor combativo
o dilema que nascia das resistências abertas ou dissimuladas, mas todas muito fortes, dos seus integrantes do que do seu êxito ou mesmo da viabilidade dos alvos
em admitir-se o negro e o mulato em pé de igualdade com os "brancos". Enquanto tal perseguidos.
dilema subsistisse, mesmo o padrão de democracia inerente à sociedade de classes
O fato é que os negros estavam cobrando de si próprios aquilo que os
numa economia capitalista seria impraticável. Ocorria uma perversão insidiosa do
regime, que trazia consigo riscos potenciais para a diferenciação e o equilíbrio da
brancos dominantes, por outras razões, não tinham como (nem por que) fa-
ordem social competitiva. 2l zer. Eles exigiam uma sociedade integrada por cidadãos plenamente formados
exercendo da maneira mais escrupulosa e cabal a cidadania. Mas eles pró-
o segundo volume examina, sempre da perspectiva do negro, os modos prios, como as análises do primeiro volume demonstram, não estavam equipa-
encontrados para enfrentar desafios dessa ordem. Trata-se de ver como os ne- dos com os requisitos (as "técnicas sociais") para tanto. Na realidade, ao se
gros e mulatos "retornam à cena histórica",22 mesmo quando a sua tentativa de apresentarem como os "campeões da 'revolução dentro da ordem"',27 eles
realizar, pela organização de movimentos sociais próprios, uma "revolução den- não só sobre-reagiam (seria mais fácil em inglês: overreacted) à condição
tro da ordem" (mediante a cobrança de que essa ordem efetivamente realize o de terem tido o pior ponto de partida como também se colocavam além dos
que promete) estivesse "destinada ao malogro".23 Ela não poderia realizar-se só limites históricos dos próprios dominantes. É por isso que a participação de
por eles, sob a indiferença dos brancos, da sua política de "ânimo fria" diante do segmentos expressivos da população branca era indispensável. Do contrário
negro e, em particular, do trabalhador negro. 24 Afinal, a tarefa era ingente. os negros se veriam, como se viram, diante da tarefa impossível de saltar
sobre a própria sombra.
A abertura de oportunidades para a diversificação das formas de experi-
19 Ibid., p. 136. ência de negros, por dispersas e individualizadas que fossem, ia criando as
20 Ibid., p. 137.
II Ibid., vol. 2, p. 7.
" Ibid., p. 9.
12 Ibid., p. 8.
!6 Ibidem.
13 Ibid., p. 9.
17 Ibid., p. 11.
24 Ibid., p. 142. [Enfatizado no original.]

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condições para a construção de uma "perspectiva social do homem negro", negro "não só quer algo socialmente, como quer livrar-se (ou redimir-se) de
que lhe dava condições para perceber ao seu modo a sociedade. 28 Expressão algo socialmente".32
disso é a capacidade que certos segmentos dessa população adquiriram para Confrontado com as dificuldades e os dilemas de uma ordem social não
realizar uma dificil e importante construção intelectual. Consiste ela na peculi- criada por ele, mas que representa o seu horizonte possível de realização so-
ar fusão que promoveram, entre as idéias de "discriminação" e "preconceito", cial, o negro busca o que para ele é o mínimo, mas que é também socialmente
para alcançar uma acepção própria de "preconceito de cor". Isso lhes permitiu o mais dificil: tornar-se sujeito da sua própria história. Isolado nesse empenho,
reconhecer esse preconceito na forma da "desigualdade racial" e defini-lo vê abrir-se o "hiato entre as relações raciais e o padrão de integração social da
como problema social, que exige soluções sociais. 29 A incorporação dessa ordem social competitiva" e encontra-se em face dos limites ainda estreitos de
perspectiva permitiria, no limite, associar intimamente o "dilema do negro" "modernização dos padrões vigentes de relações raciais". 33 A ordem social
ao "dilema da democracia" no Brasil. Ao optar pela democracia e se prepa- competitiva (ou seja, o substrato social do capitalismo industrial) ganhou corpo
rar para dela participar, criaram um critério seguro de avaliação dos limites da à sua revelia, indiferente à sua vontade e às suas aspirações. A alternativa que
ação dos brancos: "o grau de aceitação ou de rejeição do 'negro' diria, por si lhe foi historicamente apresentada o condenava a posições polares na ordem
mesmo, até onde chega a lealdade dos 'brancos' para com os fundamentos social: ou na ponta da modernização social e cultural (o que suas lideranças
axiológicos da ordem social democrática".30 mais enérgicas chegaram a propor), ou à margem, num mundo em que a com-
Mas os limites desses movimentos negros encontravam-se num aspecto petição pelas posições e vantagens sociais é briga de branco. Nesse sentido,
muito específico e decisivo da sociedade brasileira. É que, ao só abrir-se de "a ordem social competitiva emergiu e expandiu-se, compactamente, como um
modo seletivo para os negros, esta o fazia conforme os próprios termos da sua autêntico e fechado mundo dos brancos".34 Mas uma ordem social simulta-
vertente "branca" dominante. 3J Essas classes dominantes "brancas" em fase neamente competitiva e fechada é uma aberração, uma fonte constante de
de consolidação mantinham, enfim, a capacidade de definir as regras do jogo, dilemas insolúveis. Claro, concordaria Florestan, e poderia acrescentar: é isso
e de torná-las aceitáveis em escala crescente na sociedade. Para isso encon- mesmo que eu queria mostrar, examinando como se deu e em nome do que
travam apoio na própria instauração de um "modo metropolitano de vida". persiste. Mas é a aberração em que historicamente nos foi dado viver, na qual
Este, por sua vez, respondia a uma depuração da ordem social competitiva no a inconformidade negra não tem como vencer, nem como desistir.
avanço do capitalismo industrial moderno, em especial a partir dos anos 30.
Numa linguagem que não é a de Florestan, a hegemonia branca não chegou a
ser seriamente desafiada pelos movimentos negros; até porque estes aceita- CONCLUSÃO
vam, na saída, os seus termos, impondo a si próprios de modo unilateral a
exigência de cumprir melhor as regras (na expectativa de demonstrar que o o livro não reserva espaço especial para a apresentação de conclusões.
outro lado era menos capaz, ou era desleal, ou ambos). Isso não impede, entre- Elas vão sendo apresentadas e refinadas sob vários ângulos ao longo de toda a
tanto, que o empenho de tipo igualitário, que se traduz na busca pelo negro das análise. Mas é possível selecionar uma passagem que dispensa quaisquer pa-
mesmas posições ocupadas pelo branco ("ascensão social") deixe de ter seus ráfrases e, nas próprias palavras de Florestan, dá acesso ao que ele identifica
impulsos e suas razões peculiares. Tinham umpathos e um logos próprios, diz como "o âmago da estrutura e dinâmica da situação de contato racial predomi-
Florestan, para salientar (numa formulação que evoca outro dos mestres "me- nante em São Paulo"35 Lemos, nessa mesma página, em passagem que tem
nores" na sua formação, o controvertido e hoje esquecido Hans Freyer) que o como referência as inibições sociais às manifestações do "preconceito de cor",

28 Ibid .• p. 33. l2 Ibld., p. 328.


29 Ibid., p. 38. 3J Ibid., p. 456.
30 Ibid., p. 101. 34 Ibid., p. 457. [Enfatizado no original.]
II Ibid., pp. 113 e ss. Jl Ibid., p. 346.

400 401
A INTEGRAÇÃO DO NEGRO NA SOCIEDADE DE CLASSES

num contexto em que este não pode desaparecer de todo e gerar igualdade, DARCI RIBEIRO
nem exacerbar-se e comprometer os mecanismos de acomodação, que "elas
impedem a diferenciação (e por conseguinte o agravamento) do 'preconceito
de cor' encoberto em formas sistemáticas de preconceito e de discriminação
raciais". E, cm seguida:
Os índios e a civilizacão
Ao mesmo tempo, não obstante, amortecem ou anulam as repercussões das tendên-
cias de democratização da riqueza, do prestígio social e do poder na esfera das rela-
ções raciais. Descobre-se, assim, uma faceta deveras instrutiva da nossa realidade
racial. Ela sugere que assiste razão aos que apontam o Brasil como um caso extremo
de tolerância racial. Entretanto, também evidencia o rcverso da medalha, infelizmente
negligenciado: a tolerância racial não está a serviço da igualdade racial e, por conse- João Pacheco de Oliveira
guinte, é uma condição neutra em face dos problemas humanos do "negro", relaciona-
dos com a concentração racial da renda, do prestígio social c do poder. Ela se vincula
claramente, de fato, à defesa e à perpetuação indefinida do status quo racial, através
de efeitos que promovem a preservação indireta das disparidades sociais, que
condicionam a subalternização permanente do negro e do mulato. As vítimas do
preconceito e da discriminação são encaradas e tratadas, com relativo decoro e civili-
dade, como pessoas; contudo, como se fossem pessoas pela metade. Os seus interes-
ses materiais ou morais não entram em linha de conta. O que importa, imediata e
realmente, é a "paz social", com tudo o que ela representa como fator de estabilidade
dos padrões vigentes de dominação racial. 36

As conseqüências desse estado de coisas são muito fundas. Na consci-


ência social do "branco" o "preconceito de cor" aparece "como se constituísse
uma necessidade maldita". E, na mais pungente frase do livro: "O negro pro-
longa, assim, o destino do escravo"?7
Seres humanos pela metade. Necessidade maldita. Prolongamento do des-
tino do escravo. Conclusão: é tempo de se promover a Segunda Abolição.

36 Ibzdem.
J7 Ibidem. [Ênfase do autor.]

402
Ao iniciar o seu livro de maior impacto, Os índios e a civilização: a
integração das populações indígenas no Brasil moderno, Darci Ribeiro
alerta o leitor para o fato de que o trabalho que tem em mãos atende a duas
lealdades - "a fidelidade aos padrões de trabalho científico" e "um profundo
vínculo humano com os índios do Brasil". Essa dualidade é uma característica
que acompanha o livro até a última página, ora estabelecendo um diálogo com
os conceitos e teorias da mudança cultural, apresentando um painel rico e
complexo sobre a diversidade sociocultural dos grupos indígenas brasileiros e
os mecanismos para a sua integração, ora relatando, sem nenhum disfarce ou
anestesia, os cruéis processos de incorporação dos indígenas e o destino trági-
co dessas microetnias, engolfadas na constituição da nação brasileira.
A repercussão e importância desse livro não se limitam de modo algum
aos antropólogos ou àqueles de algum modo interessados na problemática indí-
gena brasileira, de vez que os dados e análises apresentados articulam-se dire-
tamente com os debates sobre a formação da nacionalidade. O livro é dirigido
também a um público mais amplo, afastando-se das interpretações mais idea-
lizadas e harmônicas, solidárias com as concepções das elites que controlam o
Estado, colocando em evidência, inversamente, os aspectos conflitivos, as de-
sigualdades e os preconceitos encontrados em nossa história. Ainda que mo-
destamente ele diga que dessa segunda lealdade decorra "uma denúncia que
fazemos conscientemente" e a justifique por sua relação profissional e política
exclusiva com os índios, Darci tem no centro de suas preocupações o diálogo
e a crítica das representações (letradas e cotidianas, eruditas ou de senso
comum) sobre as "protocélulas" da formação de nossa nacionalidade, em que
o índio - tal como o negro e o imigrante - possui um papel decisivo.
O seu último livro, escrito cerca de dois anos antes de seu falecimento,
apenas reafirma, explicita e generaliza as conclusões a que chegara com sua
pesquisa sobre a população indígena, aplicando-a aos outros componentes da
população. A seu ver a etnia nacional se estrutura como "um proletariado ex-
terno posto a serviço do seu centro reitor: a metrópole colonizadora", tendo
como função básica ser "um órgão de recrutamento de mão-de-obra e de
organização da produção mercantil de acordo com técnicas e procedimentos
prescritos do exterior". 1
As causas básicas da ampla aceitação desse livro parecem ser dadas
pela duplicidade de interesses com que pode ser lido: não se trata apenas de

1 Darei Ribeiro, O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (São Paulo: Companhia das
Letras, 1995 l, p. 221.

405
OS ÍNDIOS E A CIVILlZAÇA-O JOÃO PACJIECO DE OLIVEIRA

mais uma tentativa genérica e brilhante de "interpretação do Brasil", mas ain- Contrapondo-se à "visão quase unânime dos historiadores brasileiros e
da de uma excelente via de acesso à etnologia brasileira, fornecendo ao leitor até mesmo dos antropólogos que estudaram o problema", o autor considera
uma fonnidável massa de dados sobre a diversidade histórica das tribos indíge- que o enfrentamento entre uma "etnia nacional em expansão" e "etnias tribais
nas, suas variações e seus padrões demográficos, as pressões ecológicas, a barrar seu caminho" não teria como seu desdobramento uma aculturação
bióticas, econômico-sociais e culturais que sobre elas se exercem, bem como progressiva, que, através da miscigenação, viesse a desembocar em uma assi-
apresentando formulações teóricas que expressam uma das problemáticas milação daquelas antigas coletividades ameríndias. Ele argumenta, ao contrá-
centrais (a da mudança cultural) que orientam a produção intelectual no cam- rio, que "não houve assimilação das entidades étnicas, mas absorção de
po da antropologia. indivíduos desgarrados, ao passo que aquelas entidades étnicas desapareciam,
Escrito em linguagem simples e direta, despreocupado em exibir ou se transfiguravam para sobreviver".2
tecnicalidades ou uma erudição sufocante, tornando explícito seu comprometi- No primeiro século a entrada de genes indígenas na formação da popula-
mento com as populações que estuda, Os índios e a civilização constitui uma ção nacional era um fator destacado, as mulheres indígenas predominando
leitura útil e fascinante mesmo para o leitor comum. Sua carga infonnativa não como amásias e esposas devido à relativa ausência de mulheres brancas e
é excessiva nem desvinculada dos conceitos que possibilitam compreender negras. Também nos primórdios da colonização, os indígenas assumiam gran-
qual é e como foi gerada a condição presente das populações indígenas brasi- de importância enquanto mão-de-obra, sendo escravizados e mantidos isola-
leiras, bem como a significação dos mecanismos e políticas acionados por di- dos de sua antiga etnia. Com o passar dos séculos a reprodução fisica e
versos agentes sociais para resolver a questão indígena. econômica da população brasileira tornou-se inteiramente independente das
Nesse sentido, um livro como Os índios e a civilização deveria ser mulheres e da força de trabalho indígena. As novas compulsões passaram a
colocado dentro de um conjunto seleto de obras que constituem uma referên- incidir sobre as terras ainda habitadas pelos indígenas, as quais agora eram
cia básica para o pensamento social brasileiro, ao lado de clássicos como Casa- disputadas para os rebanhos, as lavouras ou as atividades extrativas e
grande & senzala ou Raízes do Brasil. As informações e opiniões que o livro mineradoras. Assim, a parcela dos índios que abandona a vida tribal e se incor-
sistematiza e veicula são hoje de ampla cireulação. Repetidas e alteradas por pora individualmente na população nacional demonstra-se cada vez menos
uma legião de comentadores e divulgadores atingem uma faixa da opinião pú- expressIva.
blica muito mais extensa do que a de seus leitores diretos, servindo como ins- Paralelamente, o "núcleo tribal" das etnias indígenas, apesar das graves
piração e fundamento a muitas formulações procedentes de especialidades e perdas populacionais e socioculturais, não se fundiu jamais no segmento
interesses os mais diversos. neobrasileiro da população, tendo diante de si duas alternativas apenas: a) a
Diversos pensadores importantes enfatizaram a mistura das raças como desaparição por extinção; ou b) a reelaboração de suas práticas e costumes,
uma característica da colonização portuguesa no Novo Mundo, tomando a promovendo uma adaptação relativa ao meio ambiente natural e humano em
figura do mestiço como uma síntese da nacionalidade. Darci Ribeiro critica a que estão inseridas, mantendo, no entanto, uma identidade própria.
idéia subjacente de um ciclo evolutivo em que os índios, primeiros moradores Segundo as estimativas de Julian Steward, em 1500, nas terras do atual
das Américas, seriam absorvidos pela expansão da etnia nacional, associados Brasil, existiam cerca de 1,1 milhão habitantes, quatro séculos e meio depois,
aos contingentes de negros escravizados e imigrantes e tenderiam a desapare- em 1948, eram apenas 500 mil. Baseando-se em relatórios oficiais, Darci Ri-
cer dentro da população crescentemente homogeneizada da nova nação. Ele beiro aponta que, para ter uma idéia do extennínio, só entre 1900 e 1957,
discorda de Capistrano de Abreu, que, a partir de uma lista de antigas missões período que em sua maioria já existia uma agência indigenista específica en-
e aldeamentos na Bahia, apontaria a existência de um trânsito quase natural carregada de proteger o índio, desapareceram 87 etnias indígenas.
das aldeias tribais às vilas e depois às cidades, no curso do qual os indígenas se
iriam civilizando e passando a ter uma condição não diferenciada dentro da
sociedade nacional. 2 Darei Ribeiro, Os ind/Os e a clvlh::ação. a Integração das populações II1digenas 110 Brasil
moderno (2' cd. Pctrópolis: \'ozcs, 1977), p. 424.

406 407
JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA
OS ÍNDIOS E A CJVILlZAÇA-O

Aos grupos indígenas que conseguem escapar ao extermínio, nenhuma um exemplo de intelectual/ator, que associa teorias e pesquisas com ações
oportunidade lhes é dada de preservar em sua forma original sua soeiedade e políticas de transformação, ambas acompanhadas por um complexo e apaixo-
cultura, seu meio ambiente e substrato biológico. Para conseguir sobreviver nado discurso justificador.
essas etnias devem responder a desafios urgentes, buscando preservar sua Como etnógrafo, Darci realizou trabalhos de campo mais significativos
identidade e autonomia étnica, bem como "assegurar a continuidade de sua entre os índios kadiwéu, de Mato Grosso, e os recém-contactados urubu-kaapor,
vida cultural mediante alterações estratégicas que evitem a desintegração de do Maranhão. Além de diversos artigos e ensaios, daí resultaram dois livros
seu sistema associativo e a desmoralização completa do seu corpo de crenças importantes na bibliografia sobre as culturas indígenas do Brasil: Religião e
e valores".3 Esse processo adaptativo, que se impõe como imperativo aos gru- mitologia kadiwéu (1950) e Arte plumária dos índios kaapor (1957). Este
pos indígenas que sobreviveram ao extermínio, faz com que eles permaneçam último trabalho, em parceria com sua esposa, Berta Glciser Ribeiro, já aponta
indígenas "já não nos seus hábitos e costumes, mas na auto-identificação como uma linha de preocupação com a arte e cultura material, que irá mais tarde
povos distintos do brasileiro e vítimas de sua dominação". É a isso que Darci desaguar na publicação da Summa etnológica brasileira (em três volumes,
Ribeiro chama de "transfiguração étnica", afirmando que "o impacto da civili- 1986), uma iniciativa que pretendia atualizar o enorme esforço de coleta e
zação sobre as populações tribais dá lugar a transfigurações étnicas e não a sistematização de dados realizado na década de 1940 por Julian Steward (no
assimilação plena". 4 O foco principal do livro é justamente o estudo do proces- Handbook of South American lndians, 1946-1948).
so de transfiguração étnica, pensado a partir de dados compulsados da expe- Foi enorme a influência de Darci na definição das grandes linhas da po-
riência brasileira. lítica indigenista brasileira. Ingressando no SPI-Serviço de Proteção aos Índi-
os em 1947, absorveu muitas das idéias de Rondon e seus colaboradores,
integrando-as com os ensinamentos da antropologia da época (o evolucionismo
UM INTELECTUAL/ATOR
cultural norte-americano) e reapresentando-as em uma síntese própria, na
qual o pensamento do grupo rondoniano ganhava novas cores. O positivismo
Algumas vezes os intelectuais administram e contam a sua vida como se comtiano, ao qual se filiava Rondon, com suas facetas de cientificismo e
apenas escrevessem livros, fizessem pesquisas ou atuassem como professo- conservadorismo, foi vivificado pelo relativismo antropológico e passou a ad-
res. Sua história pessoal se anula em face do destaque monopolizador dado às mitir associação com a tradição romântica (tão grata aos sertanistas). Darci
suas obras, consideradas sempre como totalidades coerentes, situadas abstra- cunhou a expressão "humanismo rondoniano", reinterpretando o militar como
tamente em uma página dentro da história das ciências. Darci Ribeiro não se um "humanista" e inserindo as suas linhas de ação dentro dos padrões do
enquadra de fonua alguma nesse padrão e seria injusto tentar avaliar por aí a indigenismo mexicano.
sua contribuição à antropologia, à ciência ou à literatura no Brasil. Diferente Sua contribuição específica mais importante no campo do indigenismo
de muitos antropólogos eminentes (especialmente de Lévi-Strauss, a quem- foi a elaboração, em 1954, de um projeto para a criação do Parque Indígena
sem modéstia - Darci em reiteradas vezes costumava comparar-se, e contra- do Xingu, no qual Darci construiu uma argumentação sobre a existência de
por-se), sua obra não é um sistema teórico abstrato e articulado, sua produção terras tradicionalmente ocupadas pelos índios em virtude de seus usos e cos-
transita por diferentes disciplinas no campo das humanidades (antropologia, tumes. Na concepção de que as terras indígenas não são uma mera outorga
pedagogia, literatura) e suas intervenções práticas não estão distanciadas de administrativa, mas que constituem territórios habitados tradicionalmente por
seus escritos, nem tiveram uma importância menor. Menos do que um perfil de uma coletividade que pretende manter a sua diversidade cultural, está o fun-
teórico, criador de uma escola de pensamento, ou ainda um scholar, Darci é damento dos atos e momentos mais importantes do indigenismo brasileiro.
Colocando-se inteiramente contra a crença na neutralidade da ciência,
Darci pondera - em consonância inclusive com o grupo de antropólogos e
intelectuais latino-americanos que formulou o chamado Documento de
J Ibid., pp. 220-221.
4 Ibid., p. 8. Barbados (1971) - que o pesquisador não pode ser mais um agente coloni-

409
408
OS ÍNDIOS E A CIVILIZAÇÃO

zador que, escondido atrás da neutralidade da ciência, carreie a cultura dos


T
I
JOÃO PACIIECO DE OLIVEIRA

A sociedade nacional não se apresenta de modo homogêneo perante as


nativos para os seus livros, filmes e museus, não estabelecendo compromissos etnias indígenas, as suas diferentes faces expressando-se através dos tipos
éticos com a continuidade das instituições e dos costumes que estuda, assim distintos de frentes de expansão. As frentes extrativistas, pelo seu caráter
como com o bem-estar e a dignidade dessas coletividades. Em uma linguagem difuso e pouco conectado com as instituições nacionais, permitem formas par-
direta e contundente, ele dirá que o antropólogo não deve ser um "gigolô de ticularmente arcaicas e despóticas de controle da mão-de-obra, bem como o
índio", mas precisa, ao contrário, preocupar-se em desenvolver formas pelas empreendimento de ações muito agressivas que com freqüência levam á com-
quais o conhecimento por ele acumulado possa reverter-se para as populações pleta dissolução dos grupos indígenas de que se aproximam. A economia agrí-
estudadas. Na perspectiva de Darci os dados obtidos nas pesquisas de campo cola, tal como as frentes pastoris, não se interessam pelo índio como
(fotos, entrevistas, diários) ou produzidos a partir delas (como os livros e acer- mão-de-obra, mas limitam-se a disputar com eles as terras para a expansão de
vos científicos) deveriam ser utilizados no beneficio dos próprios índios. suas atividades. No estudo realizado por Darci Ribeiro essas diferenças re-
cebem um registro quantitativo, em que é observado que 60% dos grupos
indígenas que se defrontaram com as frentes extrativistas estão atualmente
A COMPOSIÇÃO DO LIVRO extintos, comparando esses percentuais com os atingidos pelas frentes agrí-
colas (45,7%) e pelas frentes pastoris (30,2%). Em conseqüência Darci conclui
o objetivo mais geral do trabalho é definido pelo próprio autor: "alcan- que o determinante fundamental do destino dos grupos indígenas é a dinâmica
çar uma compreensão acurada das situações de interação entre índios e da própria sociedade nacional".7
frentes de expansão, a fim de chegar a generalizações significativas sobre o Na segunda parte é considerada a interação entre índios e brancos en-
processo de mudança cultural".5 Para isso é necessário operar não a partir quanto resultado de uma ação intencional e dirigida por parte de organismos
da simples reconstituição ou compreensão de situações específicas, mas sim governamentais e religiosos. Apontando três atitudes que acarretam resulta-
do interesse "na análise das forças que as conformam", buscando definir dos negativos para os índios - a etnocêntrica, a romântica e a absenteísta -,
uma "seqüência-tipo" e determinar os fatores cruciais que operam no pro- Darci aproxima as ideologias missionárias da atitude etnocêntrica, criticando a
cesso. Ou seja, é preciso elaborar "um modelo hipotético do processo de seguir a atitude romântica (que quer colocar o índio "em condições de estufa
transfiguração cultural".6 impossíveis de manter, inclusive porque os próprios índios contra elas se rebe-
O plano da obra se apresenta dividido em três partes em correspon- lariam" e ainda a visão fatalista, que considera o contato interétnico como uma
dência com aquela finalidade geral. Na primeira o autor procura formar uma fatalidade irreversível e aguarda apenas a assimilação ou a extinção dos indí-
visão de conjunto do contato cntrc as sociedades indígenas e os segmentos genas. Caracteriza o indigenismo brasileiro pela superação dessas atitudes
da sociedade brasileira, representados estes pelas frentes de expansão de extremadas, propugnando por medidas que, resguardando o índio da extinção,
caráter agrícola, pastoril ou extrativista. A descrição do avanço das frontei- o preparem paulatinamente para interagir em igualdade de condições com os
ras é feita em graus de profundidade histórica variável, focalizando basica- demais brasileiros").8
mente o final do século XIX e o início do atual. As características econômicas É descrita a formação da agência indigenista brasileira, o SPI, criado em
e sociais dos diferentes tipos de frentes de expansão determinam as diversas 1910 e extinto em 1967, inclusive com a cristalização de uma ideologia e de
condições de interação que se estabelecem entre índios e brancos na frontei- alguns princípios que norteiam as atividades locais do SPI. Relatam-se os
ra agrícola (a área da mata atlântica: o sul e a costa leste), na fronteira principais episódios de pacificação de tribos arredias (kaingang, xokleng,
pastoril (os campos e cerrados do Nordeste e partes de Goiás e Mato Gros- parintintim, akwé-xavante e urubu-kaapor), bem como indica-se o modo pelo
so) e na fronteira extrativista (o vale do Amazonas).

, Ibzd., p. 12. 7 Ibid., p. 437.

1
6 Ibid., p. 218. , Ibid., p. 195.

-IIU -111
OS ÍNDIOS E A CIVILIZAÇÃO JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA

qual tais fatos contribuíram para a fonnação da saga dos sertanistas e para a fisica e social das populações indígenas. A mudança de foco teórico, contudo,
consolidação das técnicas de campo no trabalho de atração e pacificação. não corresponde somente ao resultado de um desenvolvimento puramente
Em um balanço final o autor observa que não conhece nenhum posto indíge- conceituai, executado em um plano lógico-especulativo, mas tem também raízes
na ou missão religiosa que tenha respondido adequadamente aos desafios da em uma prática de pesquisa vinculada a certo tipo de ação indigenista.
proteção e assistência, mas pondera que os postos indígenas em geral têm As questões que se impõem àqueles antropólogos e às quais eles procu-
assegurado um espaço maior de liberdade para o índio manter sua própria ram aplicar seu instrumental teórico são muitas e bastante heterogêneas: o
organização socia1. 9 apossamento das terras indígenas, a participação regular de índios enquanto
Na terceira parte são mais detidamente analisadas várias idéias e con- força de trabalho de empreendimentos regionais, os graves desequilíbrios
ceitos que organizam a exposição anterior, como é o caso de transfiguração populacionais trazidos pelo contato e suas repercussões na vida sociocultural,
étnica, assimilação, acomodação, graus de integração, tipos de fronteiras, o estabelecimento de vínculos com o mercado e a redefinição das necessida-
níveis de integração, etc. Utilizando-se de casos exemplares, imagens ricas des, o entendimento sociológico da função dos postos indígenas e da interven-
e reiterações, o autor manifesta sua preocupação teórica e pedagógica, es- ção protetora, etc. Esse comprometimento daqueles antropólogos não é, então,
clarecendo diversos aspectos das proposições que formula. Lançando mão de maneira alguma, um fato desvinculado do universo teórico.
de dados referentes à situação dos grupos tribais entre 1900 e 1957, Darci Trata-se ao contrário de um estímulo poderoso para que nessa reflexão
Ribeiro procura apreender o impacto da sociedade nacional sobre as popula- crítica sobre as teorias da aculturação, a antropologia brasileira, refletindo so-
ções indígenas em diferentes planos e de acordo com as diferentes etapas de bre o seu próprio contexto de produção e o seu comprometimento com ques-
integração em que se encontram. Ao final procede a uma fértil e antológica tões e demandas sociais, venha a encontrar a originalidade de sua contribuição
discussão sobre o destino dos índios no Brasil, debatendo com outras inter- específica aos debates científicos internacionais. Tornando-se consciente dos
pretações de antropólogos contemporâneos e apresentando suas próprias condicionamentos e potencialidades de sua relação com um contexto específi-
idéias sobre o assunto. co, os antropólogos brasileiros tiveram a possibilidade de teorizar "pela primei-
ra vez por sua própria conta e risco".lO
Por diversas vezes nos anos seguintes ao seu retorno ao Brasil, Darci
ÉTICA E CIÊNCIA voltou a tocar nesse ponto, criticando ferozmente uma geração de antropólo-
gos que em seus estudos sobre os grupos indígenas do Brasil contentava-se
A leitura mais fértil desse livro de Darci Ribeiro não deve procurar em aplicar as teorias e os métodos elaborados por autores franceses, ingleses
relacioná-lo com outros trabalhos antropológicos por ele escritos igualmente e norte-americanos. A seu ver tais antropólogos, ao ignorar as suas raízes com
durante o seu período de exílio (que aplicam à América e à expansão européia a realidade pesquisada, estariam pretendendo transplantar mecanicamente as
em geral os esquemas evolucionistas e algumas idéias e conceitos formulados condições de produção de seus colegas metropolitanos, satisfazendo-se em
em Os índios e a civilização), mas sim referenciá-lo à atividade que desem- copiar padrões científicos e em imitar a performance científica desses últimos.
penhou na antiga Seção de Estudos do SPI e à problemática teórica do contato Para Darci, ao contrário, a crítica ética e a ação política são indissociáveis
interétnico, que se constituiu ainda na década de 50, com o concurso de outros da elaboração teórica. No curso de uma polêmica entrevista, ele serve-se de
antropólogos, como Eduardo Gaivão e Roberto Cardoso de Oliveira. uma imagem bastante clara para expressar seu ponto de vista, afinnando que
O nascimento dessa nova problemática, parece-me, ocorre quando a dis- não caberia ao antropólogo, em meio aos escombros, à fome e ao medo de
cussão sobre a transmissão, difusão e assimilação dos elementos da cultura uma Berlim bombardeada duramente, limitar-se a estudar a cultura de seus
deixa de ser objeto principal de interesse de antropólogos brasileiros, a atenção desesperados moradores, nem proceder ao inventário da cultura perdida.
dos pesquisadores sendo então deslocada para a questão da sobrevivência

l
10 Zarur, Boletim do Museu do Índio, Rio de Janeiro, 1976, p. 6.
9 Ibid., p. 211.

412 413
OS ÍNDIOS E A CIVILIZAÇAo F
I
JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA

Considerar que os eostumes que se observam agora são os costumes tradicionais, scm mediante sucessivas alterações em scu substrato biológico, em sua cultura e
se interessar pelo dcstino, a condição dc vivência, a opressão que cstá sofrcndo, é em suas formas de relação com a sociedade envolvente".15
também uma atitude anticientílica [ ... ] O objetivismo cientilicista [ ... ] é como sc
Por que Darci Ribeiro não teria levado essa perspectiva processualista
alguém decidisse estudar cm 1945 a forma da família alcmã e a moral alemã cm Berlim,
1945, debaixo das bombas, destruída dia e noite [ ... ]11
às suas últimas conseqüências? A resposta parece-me residir nas concepções
evolucionistas subjacentes à obra do autor: as entidades em contato mantêm-
Ao utilizar-se da metáfora de uma cidade semidestruída por bombardeios se como mônadas distintas e em diferentes estágios evolutivos. É assim que
aéreos para evidenciar ao público urbano a intensidade da violência sofrida Darci Ribeiro concebe "etapas sucessivas e necessárias de integração das
pelos povos indígenas inseridos em uma situação colonial, 1~ Darci chama os populações indígenas na sociedade nacional",16 exibindo o que considera ser a
seus colegas - e aqui a lição deve ser estendida aos intelectuais e aos cientis- "seqüência típica" do processo de transfiguração, indo desde a tribo isolada
tas em geral - a um compromisso ético e a explicitação de suas posturas e até o grupo indígena integrado. Entendida como um fluxo histórico, com uma
valores. "Um antropólogo, cuja profissão é estudar povos, tem deveres éticos diretiva rigidamente fixada, a idéia de processo acaba perdendo seu potencial
para com os povos que estuda".13 explicativo para vir a integrar-se em um projeto de "reconstituição da 'história
natural' das relações entre índios e civilizados". 17
Em segundo lugar, o processo de transfiguração está centrado em um
A TRANSFIGURAÇÃO ÉTNICA COMO MÉTODO DE ANÁLISE
agente - o índio ou a etnia indígena - focalizando a interação segundo seus
reflexos diretos ou mediatizados na ideologia e na prática desse ator particular.
o conceito-chave de Darci Ribeiro para os dados e as análises apresen- Essa ênfase contrasta fortemente com a preocupação estruturalista em bus-
tados em Os índios e a civilização é indiscutivelmente o de transfiguração car entender o contato interétnico através da apreensão de um código único e
étnica, que não é um fato raro ou misterioso, mas um imperativo da situação de impessoal, que seria resultado da interação continuada entre indivíduos de di-
conjunção. 14 É preciso tomar explícitas algumas das características desse con- ferentes grupos étnicos, passando, uma vez constituído, a orientar a conduta
ceito. dos atores presentes na situação de conjunção.
Em primeiro lugar, é necessário ter presente que a transfiguração étnica Assumindo plenamente as implicações dessa posição pós-estruturalista,
(à diferença da integração) não constitui um estado, mas sim um processo. A parece-me ser correto dizer que a tarefa do pesquisador não é de forma algu-
conceituação mais geral de transfiguração étnica dada por Darci Ribeiro se ma reconstruir os diferentes códigos que isoladamente norteiam a conduta do
encaminha exatamente nessa direção, tratando-se de "processo através do índio e a do branco, mas sim compreender como um falante - o índio - utiliza
qual as populações tribais que se defrontam com sociedades nacionais preen- elementos de diferentes procedências, distinguindo-os e combinando-os em
chem os requisitos necessários à sua persistência como entidades étnicas , um discurso singular.
Para dar um estatuto teórico à noção de transfiguração étnica é preciso,
diz Darei Ribeiro, recorrer às idéias de níveis de integração e da hierarquia
11 Darei Ribeiro, "Antropologia ou a teoria do bombardeio de Berlim", Encontros com a CivIli::a-
existente entre eles. Existem quatro níveis conceitualmente isoláveis da reali-
ção Brasileira, n" 12, Rio de Janeiro, 1979, p. 95. dade: o ecológico; o biótico; o tecnológico e socioeconômico; o étnico-cultural
12 Por "situação colonial" não estou me restringindo apenas aos vínculos de natureza politico- e sociopsicológico. A ordem de enunciação por sua vez reflete uma hierarquia
estabelecida entre esses níveis em termos de determinância. 18 A função do
jurídica entre metrópole e colónia, tal como é usual entre os historiadores, mas a um contexto
em que uma acentuada assimetria faz com que instituições e valores de uma coletividade (a
dominada) sejam condicionados e definidos por outra (a dominante). Nesse sentido as relações
coloniais estendem-se muito além dos períodos coloniais, podendo descrever ainda a relação
entre Estados nacionais e povos indígenas. 1l Ibid., p. 13.
lJ Darci Ribeiro, "Antropologia ou a teoria do bombardeio de l3erlim", cit., p. 95. '6 Ibid., p. 432.
14 Darei Ribeiro, Os índiOS e a clvlil::ação: a integração das populações indígenas no Brasil 17 Ibid., p. 17.
moderno, cit., p. 221. 18 Ibid., pp. 218-219.

414 415
OS ÍNDIOS E A CIVILIZAÇÃO
• JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA

pesquisador é então proceder a "sondagens" em cada um desses níveis, bus- Ao tratar essas identidades genéricas como objeto de estudo, Darci Ri-
cando detectar as forças condicionadoras da interação ali presentes; e muito beiro, operando com uma análise simultaneamente histórica e comparativa,
embora o antropólogo tenha como foco de investigação os dois últimos níveis, fonnula uma importante questão que pode inspirar uma linha nova de investi-
não pode ignorar completamente as determinações que atuam em um plano gações etnológicas: buscar, mais além do estudo localizado da manipulação de
pré-social. identidades em um grupo indígena, os mecanismos econômicos e sociológicos
Uma consideração ordenada e hierárquica dos vários níveis de interação de exclusão e subordinação do índio.
pennite proceder a uma descrição adequada do processo de mudança social.
Assim, a seleção dos elementos culturais a serem adotados por um grupo indí-
gena em contato com a sociedade nacional seria precedida (em tennos lógico- o DESTINO DOS ÍNDIOS BRASILEIROS
causais) pela adoção e/ou rearranjo de fonnas econômicas que a população
indígena deveria estabelecer para de algum modo incorporar-se ao sistema o destino das populações indígenas, porém, é bem mais complexo do
econômico regional. Quando a sociedade nacional se alastra sobre os territó- que julgavam os antropólogos e historiadores. Darei Ribeiro revela com cla-
rios e os contingentes indígenas, ela o faz, diz Darei Ribeiro, na fonna de uma reza - e essa é uma de suas principais contribuições teóricas e políticas -
etnia nacional que não se estrutura para si própria, mas sim para o exercício de que a condição última do índio no Brasil não é em qualquer hipótese a sua
uma função econômica básica: servir ao sistema colonial. l9 As forças econô- "descaracterização cultural", a sua completa assimilação aos padrões mo-
micas passíveis de responder a essas pressões devem em outro plano ser com- dernos da sociedade brasileira (meta que nunca chegou a se realizar em
patíveis (ou poder coexistir) com outras forn1as socioculturais mantidas pelos qualquer um dos grupos indígenas considerados), mas a sua integração em
indígenas; essas últimas precisam paralelamente em certa medida ajustar-se condição econômica subordinada e na qualidade de "índios genéricos", isto
com algumas fonnas e valores socioculturais adotados pelos brancos. Todas é, "que quase nada conservam do patrimônio original, mas pennanecem de-
essas compulsões (e antes da econômica ainda existem a biótica e a ecoló- finidos como índios e identificando-se como tais".:!l A identidade tribal é pre-
gica) definem um campo de possibilidades dentro do qual o grupo tribal em servada "se não como um corpo de conhecimentos uniformes, ao menos
interação com a sociedade nacional deve se mover para construir sua nova como uma sucessão particular de alterações, através das quais se mantêm a
singularidade de cada etnia, apesar de sua crescente homogeneização'',2:!
identidade e sua nova cultura.
Quais seriam as razões para isso? Darei cita três: a) a "barreira inte-
Nesse sentido, a transfiguração étnica não pode mais ser pensada unica-
rétnica"; b) a "falta de atrativos da vida dos dependentes de fazendas e serin-
mente como um processo de mudança cultural, uma vez que o pesquisador
gais" (e hoje poderia acrescentar-se a condição de trabalhador rural sem
deve levar em conta tanto os fatores extralocais que condicionam a interação
terra); c) "a condição de estufa da intervenção protecionista ou missionária".
quanto voltar a sua atenção em caráter prioritário para a construção de identi-
A seguir critica Roberto Cardoso de Oliveira, que, ao apontar que os
dades sociais mais abrangentes. Nitidamente o autor distancia-se de uma vi-
postos indígenas desempenhariam uma função sociológica de mecanismos
são culturalista de grupo étnico - cuja crítica, realizada em 1969 pelo mais
antiassimilacionistas,:!3 estaria - segundo Darei Ribeiro - atribuindo exclusi-
importante teórico da etnicidade, Fredrik Barth, representou uma radical mu-
vamente ao protecionismo a não assimilação das populações indígenas. Men-
dança de rumo nos estudos sobre etnicidade - e, aproximando-se de uma pers-
ciona criticamente também GaIvão, que considera que a continuidade dos
pectiva modema, passa a definir, de uma fonua dinâmica e não reificada, as índios tenetehara dependeria de que "atingida certa estabilidade de popula-
etnias como "[ ... ] categorias relacionais entre agrupamentos humanos, com- ção e de relações com os brancos, e a consciência da impossibilidade de
postas antes de representações recíprocas e de lealdades morais do que de
especificidade culturais e raciais".:!o
21 Ibid., p. 445.
21 Ibid., p. 226.
19 Ibid., p. 221. 2J Ver Roberto Cardoso de Oliveira, "O papel dos postos indígenas no processo de assimilação", em
2. Ibid., p. 446. A sociologia do Braszl indígena (Brasília: UnI3, 1972).

416 417
OS ÍNDIOS E A CIVILIZAÇÃO
• JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA

integração na sociedade rural, exceto em seu degrau mais inferior, o índio trazem consigo igualmente conotações valorativas que, de modo subjacente,
resolva permanecer índio, categoria sociocultural que lhe garante condições podem vir a servir a funções políticas.
de sobrevivência e de status social nas comunidades regionais".~4 Darci Se os antropólogos norte-americanos ao falarem em aculturação e ao
Ribeiro arremata, dizendo discordar tanto de que "o indígena tenha a opção destacarem os aspectos recíprocos da interação entre etnias indígenas e socie-
de 'resolver' qualquer coisa nessa matéria" quanto de que "sem a proteção dade nacional eludiam os aspectos conflitivos e os mecanismos de dominação,
oficial poderia assimilar-se". ~5 de certo modo fornecendo aos seus leitores um anestésico para os cruéis
O fator fundamental para Darci é a "barreira interétnica", algo que é processos de criação de dependência e de descaracterização cultural dos
ao mesmo tempo interior e exterior ao próprio indígena. O que, no entanto, a indígenas, Darci chamava a atenção dos seus leitores inversamente para os
constitui? Ele responde que é "o poder isolador do preconceito, racial e so- aspectos segregacionistas das práticas interétnicas, mostrando que as com-
cial", o qual se cristalizou provavelmente "como uma técnica de competição pulsões sociais independiam da consciência dos atores (índios e brancos).
ecológica, sustentada e mantida como requisito de dominação sobre grupos Ao utilizar-se de uma aproximação com o fenômeno das castas, o autor
étnicos minoritários".~6 Daí que não exista assimilação dos índios mesmo nos acaba por atribuir à fronteira entre índios e brancos um caráter substancialista,
graus mais elevados de integração, mas sim um processo sucessivo de "aco- como um fato apriorístico e imutável (o que colide com a sua visão da barreira
modação penosa". interétnica como um produto histórico). Tal desvio de rumo não deixa de ter
Pensando sobre o futuro político do país e lembrando a possibilidade de um forte apelo político, pois a ideologia indigenista se reapropria daquela ana-
que ocorresse uma "transfonnação revolucionária de suas estruturas", Darci logia para expressar a irredutibilidade da condição de indígena quase como
menciona que essa barreira é um produto histórico que pode também alterar- uma compensação simbólica (ou analítica) de um processo de dominação real.
se caso novas condições se verifiquem, com uma transfiguração tanto dos Para os indigenistas e mesmo para os índios, tal crença serve como um fator
brasileiros quanto dos índios, estes últimos passando a ter então a liberdade de de orgulho étnico e de reforço na esperança de resistência (com uma função
prosseguir como uma microetnia ou romper com sua identificação étnica e algo semelhante à crença dos intelectuais revolucionários na "necessidade his-
mergulhar na "etnia nacional".~7 tórica do socialismo"). Assim, a teoria formulada perde consistência e sai fra-
A meu ver, porém, a sua argumentação tropeça no uso das imagens, turada justamente no ponto em que um efeito político desejado fala mais alto.
estabelecendo uma analogia equivocada em termos sociológicos e perigosa
(porque romântica e fatalista) em tennos políticos. No intuito de ser mais claro
e contundente, o autor chega a dizer que "a condição de brasileiro e de indíge- Os ÍNDIOS BRASILEIROS E O INDIGENISMO HOJE
na são de tal modo opostas e infranqueáveis" que "em certo sentido constitu-
em uma casta", com "barreiras intransponíveis a separá-los", "identidades que Um livro como Os Índios e a civilização, com uma análise nitidamente
só se adquirem pelo nascimento e só se dissipam pela morte".~8 referida a um contexto histórico e implicando em um conjunto de idéias e propos-
Elaboradas em um meio social e enunciadas em palavras que estão tas de intervenção prática, não deve ser lido apenas como uma contribuição do
inseridas num campo semântico preexistente, as teorias sobre o social - inde- passado. Os seus leitores certamente irão esperar infonnações e idéias sobre a
pendentemente de seu caráter de verdade (verificabilidade e positividade) - situação atual e as alternativas que se apresentam hoje aos índios brasileiros.
Em primeiro lugar, há que considerar a avaliação quanto à importância
dos índios no Brasil contemporâneo. Darci Ribeiro operava com uma estimati-
24 Ver Eduardo Enéas Gaivão, "Estudos sobre a aculturação dos grupos indígenas no Brasil", em
Encontro de sociedades: índIOS e brancos no Brasil (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979). va dI. que a população indígena em 1957 estivesse entre 68,1 mil e 99,7 mil
" Darei Ribeiro, Os índios e a civlil=ação: a integração das poplllações indígenas no Brasil membros, constituindo uma parcela muito pequena (0,02%) da população bra-
moderno, cit., p. 428. sileira. Hoje, fala-se em cerca de 325 mil, que constituem ainda cerca de 0,02%
26 Ibidem.
da população atual do Brasil. A isso limitam-se as semelhanças, a partir daí
27 Ibid., p. 429.
28 Ibidem. iniciando-se os contrastes.

418 419
OS ÍNDIOS E A CIVILIZAÇÃO t' JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA

Nos dados por ele pesquisados eram enumeradas 143 etnias (das quais Nos últimos anos foi necessário redimensionar a questão indígena no
ele dispunha de informações apenas sobre 109);29 em um levantamento Brasil, utilizando outros parâmetros que não aqueles adotados por Darci. Se
relativamente recente trabalha-se com o universo de 206 grupos indígenas, não reduzirmos a questão indígena a sua dimensão demográfica, mas a tratar-
162 desses vivendo na Amazônia (dos quais 136 dispõem de informações mos por seu aspecto fundiário, verificamos que afeta 18,4% da superficie da
confiáveis).30 região amazônica e mais de 10% de todo o território nacional,32 Não cabe
A composição interna dessa população alterou-se radicalmente nas últi- esquecer ainda que essas terras estão situadas em sua maioria em áreas de
mas quatro décadas. Em 1957 cerca de 57% dos índios eram considerados grande importância para a proteção ao meio-ambiente em escala mundial e
isolados e 10% das etnias tinham uma dimensão demográfica pequena (de para a preservação da biodiversidade, isso sem contar os recursos hídricos , as
menos de 250 membros). Hoje, a maioria dos indígenas da Amazônia (68%) jazidas minerais e os fatores geopolíticos.
pertence a etnias com mais de dois mil membros, constituindo claramente po- A consideração de todas essas variáveis leva a perceber como o
pulações bastante conhecidas em nível regional e com relações permanentes indigenismo rondonian0 33 tomou-se, nos últimos anos, algo absolutamente ob-
com os brancos e as agências governamentais. Ao contrário, as sociedades soleto, incapaz de explicar a complexa cena política. As relações interétnicas
indígenas em pequena escala representam apenas 3,4% dos índios da Amazô- não são mais fatos exclusivamente locais, nelas intervindo igualmente diversos
nia e as etnias ainda consideradas isoladas (em casos onde a Funai-Fundação organismos de governo e agências internacionais. Embora o Estado brasileiro
Nacional do Índio, agência indigenista criada em substituição ao SPI, mantém continue a ser responsável em última instância pelo bem-estar e pelo respeito
frentes de atração que funcionam como colchão de amortecimento das aos direitos dos índios (como de resto de qualquer cidadão brasileiro), não mais
investidas dos regionais) não passam de 27. possui um poder de tutela sobre eles, que se fazem representar por organiza-
Na estratégia política elaborada por Darci era o Estado, através da agên- ções próprias, que já operam com recursos e parcerias múltiplas, mobilizando
cia oficial (o SPI), que devia contrapor-se ao mandonismo e ao arbítrio dos apoios em muitos níveis de ação. 34
potentados locais em face dos índios, ainda incapazes de qualquer iniciativa Se na conjuntura atual o diagnóstico de Darci sobre o problema indígena
política, à exceção de poucas e ineficazes tentativas locais de contrapor-se à exige grandes modificações e sua proposta de ação indigenista perdeu a utili-
penetração das frentes de expansão da sociedade nacional (e em geral os dade, o mesmo não se pode dizer de seu gigantesco esforço na reunião e
ataques dos índios só vinham a servir como argumento justificador para a ação sistematização de dados, bem como dos conceitos, do método de análise e dos
dos bugreiros). Para despertar a simpatia da opinião pública, em sua maioria rumos para a antropologia brasileira por ele elaborados e preconizados.
de origem urbana, Darci apelava para os seus valores morais e sentimentos Em termos de informação e de sistematização de dados, esse livro conti-
humanitários, argumentando que nua a ser uma peça insubstituível, referência obrigatória para qualquer apre-
ciação global da população indígena brasileira. A compreensão do processo de
representando apenas um por mil da população brasileira, os índios são hoje quase transfiguração étnica, dos mecanismos de exclusão atuantes na sociedade bra-
inexpressivos no conjunto da nação e seus problemas são imponderáveis como pro- sileira, dos fatores extraio cais , nacionais e internacionais, que interferem e
blema nacional [ ... ] as terras de que necessitam e a assistência de que carecem lhes definem os limites da interação entre índios e brancos no Brasil, continuam a
podem ser concedidas sem grandes sacrificios J1 ser diretivas importantes c atuais para a investigação antropológica.

" Ver João Pacheco Oliveira (org.), Indigenismo e territoriali::ação: poderes, rotinas e saberes
,. Ibid., pp. 254-262.
coloniais no BraSil contemporâneo (Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998), pp. 34-36.
10 João Pacheco Oliveira, Ensaios em antropologia histórica (Rio de Janeiro: Editora da UFRJ,
13 Para uma análise mais detida desse ponto, ver Antonio Carlos de Souza Lima, Um grande cerco
1999), pp. 155-163.
de pa::: poder tutelar, indzanidade e formação do Estado no Brasil (Petrópolis: Vozes, 1995).
II Darci Ribeiro, Os índios e a civIli::ação: a integração das populações indígenas no Brasil
l4 João Pacheco Oliveira, Ensaios em antropologia histórica, cit., p. 204.
moderno, cit., p. 196.

420 421
OS ÍNDIOS E A CIVILIZAÇÃO

Os debates recentes sobre os 500 anos trouxeram à berlinda polaridades


que foram colocadas e resolvidas por Darci. Alguns cientistas sociais aprovei-
taram para expressar sua visão quanto à pequena importância do índio em
Sobre os autores
nossa história (sua participação não iria além da toponímia), bem como para
marcar uma atitude de indiferença em face da destruição das culturas indíge-
nas e a marginalização social dos descendentes dos primeiros moradores des-
sas terras. Ao inverso, alguns antropólogos continuam a escrever sobre os
índios como o fizeram os cronistas coloniais quinhentistas, como exemplos per-
feitos da alteridade em face do homem ocidental, operando assim com uma
representação genérica sobre os povos e as culturas indígenas como entidades
situadas fora do tempo.
Os primeiros pretendem apenas legitimar uma Realpolitik em relação
à formação da nacionalidade, e evitar que entrem em consideração os meca-
nismos de dominação e exclusão social que justamente permitem explicar as
mazelas do Brasil moderno. Os segundos procedem ao embalsamamento e à
mumificação das culturas indígenas, apresentando como centrais instituições
que os índios não mais possuem e não fazem parte de suas estratégias
identitárias e de seus projetos de futuro; se tais antropólogos continuam a
produzir relatos para exportação, sintonizados com as expectativas do públi-
co primeiro-mundista, isso tem um custo político interno bastante alto para os
direitos e oportunidades reais dos índios atuais, recolocando implicitamente
na ordem do dia a discussão (teórica e política) sobre a autenticidade ou
inautenticidade das sociedades indígenas de hoje.
Afastando-se dessas posturas divergentes, Darci aponta para os cientis-
tas brasileiros uma direção original e crítica - a de uma ciência social consci-
ente de seu enraizamento em uma conjuntura histórica específica, preocupada
com o exercício da pesquisa empírica e com a elaboração teórica mas
compromissada com os grupos sociais desfavorecidos. Recusando-se à condi-
ção de ideólogo e justificador do status quo, tomando os índios do Brasil e
seus problemas como referência, com esse livro Darci alcançou projeção na-
cional e internacional (com numerosas traduções em diversos idiomas), produ-
zindo o mais lido e conhecido estudo sobre os povos e culturas indígenas de
nosso país.

422
BENJAMIN ABDALA JUNIOR

Professor titular da área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua


Portuguesa da FFLCH/USP. Autor, entre outros títulos, de A escrita neo-
realista (São Paulo: Átiea, 1981); Literatura, história e política (São Paulo:
Ática, 1989); Introdução à análise da narrativa (São Paulo: Scipione,
1995); e, em co-autoria, de Tempos da literatura brasileira (São Paulo:
Ática, 1985) e História social da literatura portuguesa (São Paulo: Ática,
1994). Organizador de Ecos do Brasil: Eça de Queirós, leituras brasi-
leiras e portuguesas (São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000).

BRASILIO SALLUM JR.

Professor associado do Departamento de Sociologia da USP. Publicou Ca-


pitalismo e cafeicultura: oeste paulista (1888-1930) (São Paulo: Duas
Cidades, 1982) e Labirintos: dos generais à Nova República (São Pau-
lo: Hucitec, 1996). Organizador de "Dossiê FHC - l Q governo", Tempo
Social, Revista de Sociologia da USP (out. 1999/fev. 2000).

ELIDE RUGA! BASTOS

Professora livre-docente do Departamento de Sociologia do IFCHlUnicamp.


Editora da revista Idéias, do IFCH/Unicamp, e coordenadora do Centro de
Estudos Brasileiros do IFCH/Unicamp. Entre outras obras, publicou: As
ligas camponesas (Petrópolis: Vozes, 1984); O pensamento de Oliveira
Viana (org.) (Campinas: Unicamp, 1993), em colaboração com João Quartim
de Moraes; Intelectuais e política: a moralidade do compromisso (São
Paulo: Olho d' Água, 1999), em colaboração com Walquiria D. Leão Rêgo.

GABRIEL COHN

Professor titular do Departamento de Ciência Política da FFLCHlUSP e


editor da revista Lua Nova, do Centro de Estudos de Cultura Contemporâ-
nea (Cedec). Autor de Crítica e resignação: fundamentos da sociolo-
gia de Max Weber (São Paulo: T. A. Queiroz, 1979), e dos artigos "Padrões
e dilemas: o pensamento de Florestan Fernandes", em Reginaldo Moraes,
Ricardo Antunes e Vera B. Ferrante (org.), Inteligência brasileira (São
Paulo: Brasiliense, 1986) e "O ecletismo bem temperado", em Maria Ângela
d'Incao (org.), O saber militante: ensaios sobre Florestan Fernandes
(São Paulo: Unesp/Paz e Terra, 1987).

425
SOI3RE OS AUTORES SOI3RE os AUTORES

GILDO MARÇAL BRANDÃO ilusões da modernidade: notas sobre a historicidade da lírica moder-
na (São Paulo: Perspectiva, 1986), A leitura do intervalo (São Paulo:
Professor do Departamento de Ciência Política. Autor de A esquerda po-
Iluminuras, 1990), A biblioteca imaginária (São Paulo: Ateliê, 1996), En-
sitiva (as duas almas do Partido Comunista, 1920-1964) (São Paulo:
tre livros (São Paulo: Ateliê, 1999).
Hucitec, 1977); Clássicos do pensamento político (São Paulo: Edusp/
Fapesp, 1988), em colaboração com Cláudio Vouga e Célia GaIvão Quirino;
JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA
e dos artigos "A ilegalidade mata: o Partido Comunista e o sistema partidá-
rio entre 1945 e 1964", em Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 33 Antropólogo do Museu Nacional (UFRJ), professor-titular de Etnologia do
(São Paulo: Anpocs, 1997); e "O revolucionário da ordem", em Raquel Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, autor de Ensaios em
Kristsch e Leonel Itaussu Almeida Mello, Oliveiros S. Ferreira: um pen- antropologia histórica (Rio de Janeiro: UFRJ, 1999) e organizador de
sador da política (São Paulo: Humanitas/Fapesp, 1999). Indigenismo e territorialização: poderes, rotinas e saberes coloniais
no Brasil contemporâneo (Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998).
GUILHERME PEREIRA DAS NEVES

Professor adjunto do Departamento de História da UFF. Autor de E rece- LAURA DE MELLO E SOUZA

berá mercê: a mesa da consciência e Ordens e o clero secular no Bra- Professora do Departamento de História da USP. Seus principais trabalhos
sil, 1808-1828 (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997), que obteve o são: Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII (Rio
primeiro prêmio do Concurso de Monografias da instituição em 1995, e de de Janeiro: Graal, 1982); O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e
diversos artigos e capítulos de livros no Brasil e no exterior. religiosidade popular no Brasil colonial (São Paulo: Companhia das
Letras, 1986); Inferno atlântico: demonologia e colonização (séculos
JOÃO ADOLFO HANSEN XVI-XVIII) (São Paulo: Companhia das Letras, 1993); História da vida
Professor de Literatura Brasileira na USP. Autor, entre outros, de A sátira privada: cotidiano e vida privada na América portuguesa (org.) (São
e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII (São Paulo: Paulo: Companhia das Letras, 1997), v. 1; Norma e conflito: aspectos da
Secretaria Estadual de Cultura/Companhia das Letras, 1989), Prêmio Jabuti história de Minas no século XVIII (Belo Horizonte: UFMG, 1999).
1990 - Categoria Ensaio. Realizou cursos, seminários e conferências em
universidades estrangeiras (Freie Universitat, Berlim; Albert Ludwigs LOURENÇO DANTAS MOTA
Universitat, Freiburg; Sorbonne, Paris; École des Hautes Études, Paris; Jornalista. Principais trabalhos publicados: A história vivida (coord.) - vols.
Universidade de Coimbra, Portugal; Yale University, EUA; The University I (1981), II (1981) e III (1982) (São Paulo: O Estado de S. Paulo); André
ofTexas, Austin; Universidad Nacional Autónoma de México; Universidad Malraux no caminho das tentações (São Paulo: Brasiliense, 1982); Tristão
Nacional de Colombia; Universidad de Cartagena) e brasileiras, como a de Athayde (São Paulo: Brasiliense, 1983), coleção Diálogo; Introdução
Unicamp, a UERJ e a UFOP-MG, entre outras. ao Brasil. Um banquete no trópico (org.) (2ª ed. São Paulo: Editora
SENAC São Paulo, 2000).
JOÃO ALEXANDRE BARBOSA

Professor titular aposentado de Teoria Literária e Literatura Comparada da LUCIA MARIA P ASCHOAL GUIMARÃES
USP. Escreveu, entre outros, os seguintes livros: A tradição do impasse:
Professora titular de Historiografia Brasileira do Departamento de História
linguagem da crítica & crítica da linguagem em José VerÍssimo (São
da UERJ. Pesquisadora associada ao Núcleo de Análise Interdisciplinar de
Paulo: Ática, 1974), A metáfora crítica (São Paulo: Perspectiva, 1974), A
Políticas e Estratégias da USP (Naippe). Autora, dentre outros, de "Debai-
imitação da forma: uma leitura de João Cabral de Melo Neto (São
xo da imediata proteção de sua majestade imperial: o Instituto Histórico e
Paulo: Duas Cidades, 1975), Opus 60 (São Paulo: Duas Cidades, 1980), As

-126 427
SOBRE OS AUTORES SOBRE os AUTORES

Geográfico Brasileiro (1828-1889)", em Revista do Instituto Histórico, Clássicos do pensamento político (São Paulo: Edusp, 1998); e "Estado,
Rio de Janeiro, 1995. mercado e direitos", em A. Amaral Jr. e C. Perrone Moisés (orgs.), O
cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem (São
Paulo: Edusp, 1999).
MARco AURÉLIO NOGUEIRA
Professor livre-docente de Teoria Política da FCLlUnesp, campus de
RONALDO V AINFAS
Araraquara. Pesquisador da Fundação do Desenvolvimento Administrativo
(Fundap), ensaísta e tradutor. Autor, dentre outros, de As desventuras do Professor titular de História Modema na UFF. Autor de Trópico dos pe-
liberalismo: Joaquim Nabuco, a monarquia e a república (São Paulo: cados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil colonial (Rio de Ja-
Paz e Terra, 1984), As possibilidades da política: idéias para a reforma neiro: Campus, 1989), reeditado pela Nova Fronteira em 1997, e de A
democrática do Estado (São Paulo: Paz e Terra, 1998), Em defesa da heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial (São Pau-
política (São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2001). lo: Companhia das Letras, 1995). Reeditou Confissões da Bahia (São Paulo:
Companhia das Letras, 1997), originalmente publicadas por Capistrano de
Abreu em 1922.
MARIA ALICE REZENDE DE CARVALHO

Historiadora e socióloga, professora-titular do Instituto Universitário de WILMA PERES COSTA


Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Autora de Quatro vezes cidade (Rio
Professora doutora do Departamento de Política e História Econômica do
de Janeiro: Sette Letras, 1994); O quinto século: André Rebouças e a
Instituto de Economia da Unicamp e coordenadora associada do Centro de
construção do Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1998); e co-autora de Cor-
Estudos Brasileiros do IFCHlUnicamp. Seu principal trabalho publicado é
po e alma da magistratura brasileira (Rio de Janeiro: Revan, 1997) e de
A espada de Dâmocles: o Exército, a Guerra do Paraguai e a crise do
A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de
Império (São Paulo/Campinas: Hucitec/Unicamp, 1995). Organizou, em
Janeiro: Revan, 1999).
colaboração com Helena Carvalho De Lorenzo, a coletânea A década de
1920 e as origens do Brasil moderno (São Paulo: Unesp/Fapesp, 1997).
ROBERTO VENTURA

Professor de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. É autor de


História e dependência: cultura e sociedade em Manoel Bonfim (São
Paulo: Moderna, 1984, com Flora Süssekind), Estilo tropical: história cul-
tural e polêmicas literárias no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras,
1991) e Casa-grande & senzala (São Paulo: Publifolha, 2000).

ROLF KUNTZ

Doutor em Filosofia e professor do Departamento de Filosofia da FFLCHI


USP é também jornalista profissional. Autor de Capitalismo e natureza:
ensaio sobre os fundadores da economia política (São Paulo: Brasiliense,
1982). Organizador de Quesnay, cokção Grandes Cientistas Sociais (São
Paulo: Ática, 1984). Publicou, entre outros, os seguintes ensaios: "Os direi-
tos sociais em xeque", em revista Lua Nova, nº 36, 1995; "Locke, liberda-
de, igualdade e propriedade", em C. G. Quirino, C. Vouga e G. M. Brandão,

428 429
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E-mail: cct@sp.senoc.br Tel.: 0800 883-2000' Fax: (11) 3236-2361 Tel.: (18) 222-9122 • Fax: (18) 222-8778
Centro de Educa~ão em Design de Interiores E-mail: gde@sp.senoc.br E-mail: ppr@sp.senac.br
Tel.: (11) 3662-2152' Fax: (11) 3667-2743 Ribeirão Preto
E-mail: cedi@sp.senoc.br
Interior
Tel.: (16) 624-2900 • Fax: (16) 624-3997
Centro de Educo~õo em Informática Ara~atuba E-mail: rip@sp.senac.br
Tel.: (l1) 3236-2050' Fax: (11) 3255-0792 Tel.: (18) 623-8740' Fax: (18) 623-1404 Rio Claro
E-mail: cei@sp.senoc.br E-mail: oco@sp.senoc.br Tel.: (19) 524-6631 • Fax: (19) 523-3930
Centro de Educa~ão em Modo Araraquara E-mail: ric@sp.senoc.br
Tel.: (l1) 3865-4888' Fax: (11) 3862-9680 Tel.: (16) 236-2444 • Fax: (16) 236-9337 Santos
E-mail: cem@sp.senoc.br E-mail: ora@sp.senoc.br Tel.: (13) 3222-4940 • Fax: (13) 3235-7365
C,ntro de Educa~ão em Saúde Barretos E-mail: san@sp.senoc.br
Tel.: (11) 227-3055' Fax: (11) 3315-0039 Tel.: (17) 3322-9011 • Fax: (17) 3322-9336 São Carlos
E-mail: ces@sp.senoc.br E-mail: bor@sp.senac.br Tel.: (16) 271-8228 • Fax: (16) 271-8229
Centro de Educa~ão em Turismo e Hotelaria Bauru E-mail: cor@sp.senac.br
Tel.: (l1) 3673-2511 • Fax: (11) 3864-4597 Tel.: (14) 227-0702' Fax: (14) 227-0278 São João da Boa Vista
E-mail: cet@sp.senoc.br E-mail: bou@sp.senac.br Tel.: (19) 623-2702 • Fax: (19) 623-2702
Centro de Idiomas Bebedouro E-mail: sjb@sp.senac.br
Tel.: (11) 3236-2277 • Fax: (11) 3259-5246 Tel.: (17) 342-8100 • Fax: (17) 342-3517 São José do Rio Preto
E-mail: cid@sp.senoc.br E-mail: beb@sp.senac.br Tel.: (17) 233-1565 • Fax: (17) 233-7686
Centro de Tecnologia eGestão Educacional Botucatu E-mail: sjr@sp.senac.br
Tel.: (l1) 3236-2080 • Fax: (11) 3257-1437 Tel.: (14) 6822-2536' Fax: (14) 6821-3981 São José dos Campos
E-mail: cte@sp.senoc.br E-mail: bot@sp.senac.br Tel.: (12) 3929-2300 • Fax: (12) 3929-2300
Centro de Tecnologia em Administra~ão e Negócios Campinas E-mail: sjc@sp.senac.br
Tel.: (l1) 221-9622 • Fax: (11) 221-9407 Tel.: (19) 3737-8300 • Fax (19) 3737-8301 Sorocaba
E-mail: con@sp.senoc.br E-mail: com@sp.senac.br Tel.: (15) 227-2929' Fax (15) 227-2900
Centro de Tecnologia em Beleza Catanduva E-mail: sar@sp.senac.br
Tel.:(l1) 287-6199· Fax: (11) 287-5858 Tel.: (17) 522-7200 • Fax: (17) 522-7279 Taubaté
E-mail: ctb@sp.senoc.br E-mail: cot@sp.senac.br Tel.: (12) 232-5066' Fax: (12) 232-3686
ltaquera Franca E-mail: tau@sp.senoc.br
Tel.: (11) 6944-5488' Fax: (11) 6944-9022 Tel.: (16) 3723-9944 • Fax (16) 3723-9086 Votuporanga
E-mail: itq@sp.senoc.br E-mail: fro@sp.senoc.br Tel.: (17)421-0022' Fax: (17) 421-9007
Santana Guaratinguetá E-mail: vat@sp.senac.br
Tel.: (l1) 6973-0311 • Fax: (11) 6973-0704 Tel.: (12) 522-2499 • Fax (12) 522-4786
E-mail: ono@sp.senoc.br Grande Hotel Campos do Jordão
E-mail: gua@sp.senac.br Hotel-Escola SENAC
Santo Amaro Itapetininga Tel.: (12) 260-6000' Fax: (12) 260-6100
Tel.: (11) 5523-8822 • Fax: (11) 5687-8253 Tel.: (15) 272-5463 • Fax: (15) 272-5177 E-mail: ghj@sp.senoc.br
E-mail: som@sp.senoc.br E-mail: ipe@sp.senoc.br Grande Hotel São Pedro
Tatuapé Itapira Hotel-Escola SENAC
Tel.: (l1) 293-9188 • Fax: (11) 294-2437 Tel.: (19) 863-2835 • Fax: (19) 863-1518 Tel.: (19) 3482-1211 • Fax: (19) 3482-1665
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Vila Prudente Jaú
Tel.:(l1) 272-6588. Fax: (11) 6163-3219 Tel.: (14) 622-2272 • Fax (14) 621-6166
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Guarulhos Jundiaí
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