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JAPONESIDADES FEMININAS:
TRANSFORMAÇÕES E PERMANÊNCIAS
Santa Maria, RS
2016
Rosana Fabrin Lindorfer
Santa Maria, RS
2016
JAPONESIDADE FEMININAS: TRANSFORMAÇÕES E PERMANÊNCIAS
RESUMO
ABSTRACT
This article deals with gender relations and japonesidades in the context of a group
of nipponese women in Santa Maria, Rio Grande do Sul. Taking advantage of
directed interviews through open questions and face to face interactions, we sought
to point the relevance of multiple japonesidades concept to understand the field
formed by these women. It aims to demonstrate how organized their lives in Brazil,
considering the contrast between the moral and Japanese education compared to
Brazilian and how generations have been adapting in the midst of cultural
differences.
1
Aluna, autora; acadêmica do curso Bacharelado em Ciências Sociais da Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM).
2
Doutora em Antropologia Social, orientadora; Doutora em Antropologia Social pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (2001) e professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da UFSM.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................4
PRIMEIRAS IMPRESSÕES DO CAMPO, METODOLOGIA E CONSTRUÇÃO
TEÓRICA ..................................................................................................................5
A IDEALIZAÇÃO DA MULHER JAPONESA E SEU PAPEL SOCIAL E FAMILIAR
ENTRE OS SÉCULOS XIX E XX..............................................................................10
COMIDA E SOCIABILIDADE....................................................................................14
EXPLORANDO A COZINHA.....................................................................................19
FAMÍLIA, CASAMENTO E NOME............................................................................21
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................25
REFERÊNCIAS.........................................................................................................26
INTRODUÇÃO
Minha primeira inserção em campo foi em uma visita à casa de Senhora Naru
(nossa informante sobre o preparo do manju4, no projeto RS Mais Gastronomia)
acompanhada da Alexandra Begueristain da Silva5. Muitas aflições me percorriam:
havia o medo de ser mal interpretada, ou ainda não educada o suficiente, em
síntese, inadequada ao que essas mulheres esperavam de uma pesquisadora.
Todos estes temores se construíram pelos comentários dentro do grupo de pesquisa
de que “se japonês não simpatiza logo, ele não se abre mais”, e no meu caso essa
3
Termo utilizado entre aspas por entender que se trata de uma generalização.
4
Bolinho doce recheado com pasta de feijão azuki.
5
Na época, mestranda em Ciências Sociais/UFSM, que tinha como tema de pesquisa a religiosidade
das japonesas.
“simpatia” seria determinante para a realização da pesquisa. O receio também
provinha das leituras sobre a educação tradicional japonesa, sempre narrada como
muito rígida.
Chegando ao portão de madeira que dava entrada à residência (uma casa de
alvenaria, que tem ao seu arredor uma extensa horta onde se cultivam
hortifrutigranjeiros, localizada em um bairro a oeste da cidade), batemos palmas e
logo fomos atendidas por uma senhora amável, de feições doces e tranquilas. Esta
recebeu o abraço da minha colega, pois já se conheciam, e meu aperto de mão
caloroso, o mais interessado, simpático e pouco nervoso que consegui dar.
No caminho até a porta que dava entrada à cozinha passamos por belas
orquídeas em flor que ornamentavam a parede, elogiamos as flores e como estavam
bem cuidadas, recebendo em contrapartida alguma daquelas declarações que
demonstram modéstia, mas de forma resguardada, contida, como: “Ah, essas nem
estão tão bonitas”.
Nos direcionamos então à cozinha, que mais tarde eu entenderia ser o
cômodo onde, em geral, somente as mulheres recebem suas visitas. Durante as
entrevistas nas demais famílias nunca fui recepcionada por uma issei6 em outro
cômodo. Sempre me recebiam da mesma forma educada e gentil, mas sempre de
maneira resguardada e, na cozinha. Durante as pesquisas do RS Mais Gastronomia
entrevistei apenas uma nissei7, Akemi, a qual preferencialmente me recebia na sala,
exceto quando alguém da família já ocupava o cômodo.
Abordar o ser “mulher japonesa”, a partir do ponto de vista geracional, me
levou a outros caminhos teóricos, que nas pesquisas anteriores ainda não havia
abordado. Em primeiro lugar as reflexões de Scott (1990), que propõem não pensar
as relações de gênero de forma estanque, como no raciocínio homens versus
mulheres, mas sim de forma relacional. Depois, há a crítica sobre pensar mulher no
sentido universal. Mesmo admitindo que em grande parte da história a mulher tenha
desempenhado papéis e posições subalternas, mulheres e feminilidades são
construções históricas, locais, portanto múltiplas. É como Michelle Rosaldo (1995)
busca argumentar em O uso e o abuso da antropologia: reflexões sobre o feminismo
e o entendimento intercultural, destacando que as dicotomias tendem a destacar e
reforçar as diferenças entre os sexos por termos puramente fisiológicos, e não os
6
Migrantes de primeira geração.
7
Migrantes de segunda geração.
papéis de ambos os sexos como resultados da ação humana nas diversas
sociedades. Por outro lado, a própria noção de identidade começa a ser repensada
na medida em que os sujeitos assumem posições e identificações múltiplas ao longo
de sua trajetória. Assim, identidades, sejam étnicas, geracionais, religiosas, de
gênero, entre outras, são retomadas como diferencias, relacionais e situacionais
(CARNEIRO DA CUNHA, 1987).
Diante destas reflexões advindas do campo e em consonância com a
perspectiva teórica de gênero é que estou pensando a ótica de “múltiplas
japonesidades”, conceito que Igor José de Renó Machado (2011) utiliza para
tensionar a ideia de uma identidade homogênea que acompanha muitos estudos
frente a experiências diferentes de viver/sentir/perceber o Japão nos processos
migratórios. O autor aprofunda os conceitos de Jeffrey Lesser (2001) de “identidade
hifenizada” e “identidade nipodescendente”, pois acredita que “a japonesidade vista
como múltipla permite que não analisemos as condições desses sujeitos como
‘menos ou mais’ japonesas, mas como japonesas à sua maneira” (MACHADO, 2011,
p. 15). E minha preocupação neste artigo é inspirada na mesma preocupação de
Machado (2011) ao instigar seus orientandos a “abrir espaço para a dissonância”.
No presente artigo vou me ater a utilizar o conceito aplicado a japonesidades
expressas em migrantes japoneses e seus descendentes que moram em Santa
Maria, RS, Brasil. Nesse sentido, as japonesidades expressam numerosas
alteridades que perpassam esses indivíduos que se constituíram entre dois países
distintos, com suas particularidades e modos próprios de vivenciar a experiência
nipônica (MACHADO, 2011). O autor entende que não se escolhe entre uma
identidade ou outra, mas é exatamente a “oscilação e transmutação” que compõem
essas particularidades.
Desta forma, foi o meu campo que colocou a questão da existência de uma
feminilidade japonesa construída pelas famílias migrantes em Santa Maria, que
supõe a mulher como forte, dócil e recatada. Tendo isso em vista, não é possível
deixar de discutir sobre as diferentes gerações de migrantes, seus vários vínculos
com a contemporaneidade e a sociedade brasileira. Descrevê-las através das
múltiplas japonesidades, parece-me uma forma de manter relações fundamentais ou
mesmo hegemônicas dentro da família (como a responsabilidade e respeito – por
vezes confundido com obediência aos mais velhos) com novos padrões de
relacionalidades, seja com parceiros/as não nipodecendentes, saída com amigos/as,
manter hábitos não aprovados para mulheres como fumar, namorar sem a intenção
de casamento, praticar outras religiões (que não seja o Budismo).
Com as issei, como citado anteriormente, percebendo sua educação contida,
sempre busquei o máximo de comedimento, fosse em palavras, gestos ou formas de
expressar. Nunca percebi nelas algum sinal que pudesse desconstruir essa barreira,
no entanto, ao ser apresentada a Akemi, fui recebida com um abraço caloroso,
sorrisos abertos e gestos expansivos. Desse encontro resultaram as dúvidas sobre
questões de geração, educação doméstica e gênero que pretendo desenvolver ao
longo do artigo. E foi o fato que me motivou decididamente a pensar o “ser mulher
japonesa” no Brasil, mais especificamente em Santa Maria/RS.
Para a escrita deste artigo utilizei a análise de gravações e anotações que
reuni durante os projetos que participei ao longo da graduação. Com as quatro issei,
assim como com a nissei, procedi com entrevistas direcionadas por perguntas
abertas e interações face a face (GOFFMAN, 1985), que me permitiram criar uma
atmosfera agradável de diálogo e, com esta última, inclusive de amizade. Também
conheci indiretamente (por meio de acervos do Memorial e relatos das demais
entrevistadas) aspectos da vida de outras duas nissei. O tempo aproximado das
entrevistas com as issei variou entre uma e duas horas (exceto quando eram
focadas nas receitas, pois estas demandavam mais tempo) e com a nissei entre
duas e quatro.
Nas inserções em campo sempre fui apresentada como aluna e membro do
grupo de pesquisa do sensei André8, considerando o grande respeito a ele
direcionado pelo grupo, por se tratar de um professor (profissão muito respeitada no
Japão) pesquisador que exalta e dá visibilidade à cultura e trajetória destes
migrantes há aproximadamente 10 anos. Por seu intermédio eu, assim como todo o
grupo de pesquisa, sempre fui muito bem recebida pelos/as interlocutores/as em
suas residências. Segundo Victora, Knauth e Hassen (2000), o grau de formalidade
deve ser determinado segundo os objetivos e finalidades da pesquisa, e desta forma
sempre tentei equilibrar o grau de descontração para que as entrevistas soassem o
mais espontâneas possível, mas sempre dando atenção ao comedimento
necessário, importante para este grupo. Com Akemi, desde a primeira visita, percebi
que o modo de interação era diferente.
8
Sensei, em japonês, significa professor. E todas as informantes de primeira geração sempre se
referiam ao profº André Soares desta forma.
Akemi procurava um lugar na casa onde pudéssemos conversar
reservadamente, nas primeiras duas visitas me recebeu na sala, o lugar mais formal
da casa, mas depois me recebia na cozinha. Quando passamos a conversar neste
cômodo então eu não me sentia mais de uma “intrusa”, inclusive a mãe de Akemi
passava por nós, conversava algo descontraído (que eu só compreendia
posteriormente pela tradução de Akemi, por decorrência do sotaque carregado),
íamos para a sala quando eles desejavam jantar, e eu não afetava mais o dia a dia
da casa. Nossos laços foram se estreitando e pelo desenrolar das conversas
considerei não me tratar mais de apenas uma pesquisadora, mas de uma pessoa
confiável, com quem ela tinha a chance de conversar sobre experiências que nunca
compartilhou com a família, quase como uma amiga.
Reconheço, desde logo, as limitações no emprego de um estudo de caso,
desde os riscos de cometer generalizações até a possibilidade de eventualmente
não dar vazão a todos os aspectos que o tema merece, e entendo que tal estudo
poderia ser tomado como interpretação de minhas entrevistas com Akemi, por se
tratar da única migrante de segunda geração com quem tive contato direto. No
entanto, analisando todos os dados que recolhi e recompilei neste artigo, acabei por
compor uma pesquisa com muitas fontes: entrevistas, genealogias e revisões de
artigos e diários de outras experiências de pesquisa.
Akemi se tornou minha pesquisada, privilegiada, e sua trajetória acabou
guiando minha pesquisa e escrita, entretanto, considero que as análises que
compreendi a partir de nossa interlocução são válidas para problematizar e pensar
as questões de indivíduos que oscilam as suas organizações de vida entre duas
culturas distintas.
No Anexo A apresento a rede de relação da minha principal informante, em
forma de diagrama descritivo de parentesco, pois “interessa a organização dessas
redes, os intercâmbios realizados [...] à medida que essa informação permite o
entendimento da estrutura social na qual as redes se realizam” (VÍCTORA;
KNAUTH; HASSEN, 2000, p. 68). Utilizando as concepções de Rivers (1969), utilizo
o método genealógico para compreensão e demonstração das práticas sobre a
transmissão de nomes.
Na próxima seção volto um pouco no tempo para mostrar como se construiu o
forte discurso hegemônico sobre a mulher e a família tradicional japonesa.
A IDEALIZAÇÃO DA MULHER JAPONESA E SEU PAPEL SOCIAL E FAMILIAR
ENTRE OS SÉCULOS XIX E XX
Essa relação entre comida e japonesidade também foi percebida por Érica
Rosa Hatugai, ao estudar um espaço associativo nipodescendente, quando relata:
Em contrapartida, a Senhora Naru9,10 contou que seus dois filhos e filha não
sabem nada da cozinha japonesa e nem possuem interesse em aprender. A
entrevistada Akemi confirma, apesar de ter aprendido muitas receitas com sua mãe,
não possui gosto especial pela cozinha oriental e somente permanece com sua
alimentação baseada nos pratos japoneses porque mora com seus pais, e como é a
mãe que prepara as refeições durante a semana, então os pratos continuam
fazendo parte do cotidiano alimentar. Akemi conta também que ela e o pai adoram
9
Migrante de primeira geração.
10
As entrevistas da Senhora Naru foram concedidas ao projeto As práticas culinárias domésticas dos
nipo-brasileiros: registrando e preservando um patrimônio intangível, inserido no Programa RS Mais
Gastronomia, Coordenação de Atividades e Pesquisa em Gastronomia /Casa Civil do Gabinete do
Governador de 2014.
pratos brasileiros e frequentemente se juntam para preparar arroz carreteiro, ou
galinhada, relata que a mãe não gosta muito, pois “acha o tempero muito forte, mas
o pai sempre gostou”.
Nesta última entrevista relatada, atentei ao fato do pai preparar pratos, e
questionei sobre o assunto, Akemi completou dizendo que ele sempre gostou, mas
como trabalhava fora geralmente não tinha muito tempo e que agora, depois de
aposentado, se dedicava mais. Recordei então quando filmamos o preparo do tofu e
a Senhora Aimi contava orgulhosa que seu marido gostava muito de cozinhar, e que
esse foi um dos motivos que os levou a construír uma cozinha a mais, que ficasse
fora de casa, para que ele pudesse fazer as frituras do peixe e outros pratos que
faziam “mais sujeira”. O interesse do marido da Senhora Aimi pela cozinha pode ser
comparado à divisão de trabalho dos homens gaúchos, que embora adorem assar
churrasco em finais de semana, ou eventos especiais, não são os responsáveis
regulares pela alimentação cotidiana. Em relação aos pesquisados, é interessante
sublinhar que se os homens entram na cozinha e preparam pratos então a “cozinha
japonesa” perde as características idealizadas de ser um espaço por excelência
feminino, pois existem maridos, filhos e netos ocupando este lugar.
De qualquer modo, sendo a autoridade masculina ainda muito forte nestes
lares, a cozinha como lugar - e não apenas como o espaço de preparar alimentos - é
até hoje o refúgio das mulheres, pois é nestes lugares que recebem suas visitas,
com intuito de não as receber na frente do marido, que muitas vezes ocupa o
cômodo da sala, pois as mulheres geralmente conversam sobre assuntos íntimos
(questões fisiológicas, sentimentais, familiares, entre outras) que causaria situação
vexatória se chegasse aos ouvidos dos homens.
Voltando a um possível desinteresse pela culinária por parte dos migrantes de
segunda geração, como Akemi, que não nega a habilidade exigida de uma “mulher
japonesa”, mas sempre que possível foge da função, houve relatos que
demonstraram em alguns sansei11 um gosto renovado pela cozinha das avós, pois
em duas falas das entrevistadas Akemi e Senhora Naru existiram menções a um
resgate das tradições gastronômicas por meio das netas e netos que buscam se
reintegrar à cozinha por diversos motivos. Exemplificado pela neta da Senhora Naru
gosta de aprender a cozinhar porque seu namorado, que não possui nenhum vínculo
11
Netos; Migrantes de terceira geração.
ancestral ou cultural prévio com o Japão, aprecia muito os pratos, principalmente
sushi e sashimi. Já o sobrinho de Akemi aprecia as receitas que remetem à sua
infância e assim busca junto a sua avó os saberes culinários.
A primeira geração de mulheres migrantes é atrelada de forma mais forte à
tradição japonesa e toma para si o lugar da cozinha. No entando, na segunda
geração, o contato e flexibilização do grupo aos costumes brasileiros, chegaram a
construir possibilidades de não total reprodução da cultura japonesa proclamada e
reafirmada pelos mais antigos. Esta geração foi considerada oficialmente a primeira
a casar com não japoneses (desconstruído pelo relato do tio de Akemi, na p. 19),
estudar em escolas mistas brasileiras, passar por processo de divórcio, ter filhos
“mestiços”, entre outros.
Já uma parte da terceira geração volta a estabelecer um vínculo de afirmação
da cultura japonesa, característica que o define distintivamente dos brasileiros, mas
uma japonesidade bem diferente daquela dos isseis, mais conectada à cultura pop,
elucidada por fãs de mangás, músicas, jogos e cosplay japoneses. Esse interesse
pela cultura pop oriental não é exclusiva dos nipodescendentes, mas há grande
parte deles que o compartilha.
Manuela Carneiro da Cunha (1987) argumenta que “a cultura original de um
grupo étnico, na diáspora ou em situações de intenso contato, não se perde ou se
funde simplesmente, mas adquire uma nova função” (p.99), e se torna, assim,
cultura de contraste, se torna mais perceptível e tende a se “simplificar e enrijecer”,
ganhando uma quantidade menor de traços que vêm a se tornar diacríticos. Seja de
primeira, segunda ou terceira geração, as japonesidades desse grupo se mantém
como “diferenciadoras” perante a cultura brasileira, mas a afirmação de uma
alteridade não faz com que neguem ou sejam alheios à cultura local. Esses sujeitos
oscilam entre as duas culturas, mas são “mais japoneses” quando estão com
brasileiros, pois essa identidade também é relacional e situacional, segundo a
autora, e é o contato com o outro que levanta as questões identitárias.
EXPLORANDO A COZINHA
Questionei Akemi, sobre os saberes femininos, o que foi repassado a ela em
termos de cuidados com a casa, preparo de alimentos, entre outros, e recebi
respostas, para meu espanto, bem específicas:
Da casa muito pouca coisa. Cozinhar, lavar roupa, no máximo estender uma
cama. Nosso negócio era a lavoura. O pai sempre ensinou que onde tá o
dinheiro é que tem que se focar, então a gente nunca deu prioridade pra
casa. Com nove anos a mãe me disse como era pra fazer a comida, sem
detalhes, e me largou, tem que se virar. Não ficam em cima, ensinando,
como vi com as minhas amigas brasileiras. São secos, sabe, difícil ver
carinho. (Akemi. Notas do diário de campo.)
A casa da família de Akemi, para quem olha de fora, não se distingue das
demais casas da região do bairro Alvorada. Um prédio de alvenarias de três
andares, no qual na parte térrea funciona um mercado. Como Akemi relata, a casa
não é muito arrumada, não lembra quando os souvenires (japoneses) expostos em
um balcão com porta de vidro, foram limpos pela última vez. Assim como rimos
juntas certa vez que me mostrou que havia sacos de arroz estocados na estante da
sala. Praticamente toda vez que chegava à sua casa me pedia para que não
reparasse na “bagunça”, que pessoalmente eu não via como uma gritante
desordem, apenas talvez não arrumada como a “casa das brasileiras”.
Como o chefe da família ensina a casa, a decoração e o “brilho das panelas”
não é uma preocupação relevante. Diferentemente do que vemos nas famílias
teutobrasileiras, onde a casa importa, onde tudo possui uma ordem e há
preocupação de que essa ordem seja mantida, para estas famílias, em especial para
as mulheres, a apresentação da casa carrega uma espécie de dignidade. Já para os
“japoneses” o foco deve ser direcionado para onde “está o dinheiro”, e é na
prosperidade que reside a dignidade desse grupo.
Quando entramos na cozinha, visivelmente não encontramos nada que difira
de uma cozinha comumente encontrada nas residências locais, mas basta abrir uma
gaveta ou começar a cozinhar que a diferença se apresenta. Nas cozinhas visitadas
utensílios “brasileiros” e “japoneses” se mesclam. Em termos de utensílios
japoneses, em todas as residências pesquisadas encontramos os pequenos bules e
xícaras usados para servir chá verde, símbolo de hospitalidade no Japão. As
colheres shamoji12, os owan13 e os hashis14 também sempre foram encontrados,
assim como as panelas elétricas que facilitam o preparo do arroz japonês.
Na cozinha da Senhora Naru foi onde encontramos a maior variedade de
apetrechos “japoneses”, o que é justificado por ela preparar tofu, dorayaki e manju
12
Colher para arroz japonês.
13
Tigelas utilizadas para servir arroz ou sopa.
14
Varetas utilizadas como talheres.
para vender, e para isso é importante que tenha os materiais adequados, muitos
deles podem ser facilmente substituídos por produtos locais, como a Senhora Naru
esclareceu, porém “não fica igual”.
15
Adaptação do curry indiano, tempero aromático e apimentado, que foi adotado pela gastronomia
oriental.
mulheres que garantiram o direito de explorar os espaços sociais externos ao lar.
Hoje elas são avós, e dentro das suas famílias constituídas no Brasil se sentem na
função de perpetuar as tradições do país de origem entre filhos e netos.
Em entrevista, Akemi conta como o avô era enfático ao exigir que seus filhos
colocassem o nome de origem japonesa em todos os netos, a mãe de Akemi e um
tio mais velho acataram, pois moravam próximos ao avô e este comandava o núcleo
familiar. Porém todos os outros três tios nomearam seus filhos com nomes
compostos, um brasileiro e um japonês, pois “moravam longe e então fizeram como
acharam melhor, mas sem contar pro vô”.
Outra exigência feita pelo avô era que os filhos casassem com
nipodescendentes, o que resultou no acobertamento da informação, por parte da
família, da união marital de um tio com uma brasileira, assim como dos filhos desta
união, considerados “mestiços”. Considerando que seria uma grande desonra para o
avô que seu filho homem16 não tivesse perpetuado a linhagem japonesa, a família
preferiu manter sigilo e evitar desavenças.
Conta ainda que seu pai não manteve as mesmas exigências em relação aos
nomes dos netos, mas ficava muito feliz quando eles tomavam a iniciativa. Porém se
manteve firme no desejo de ter os filhos e a filha casados com nipodescendentes.
Para a infelicidade de seu pai não foi o que aconteceu, tanto Akemi, como seus dois
irmãos homens casaram-se com brasileiros/as. Relata que sobre a decisão dos
homens não houve muita discussão sobre o assunto, porque, segundo Akemi, “são
homens, e homem pode, mas com mulher é diferente”. Em anexo apresento o
diagrama descritivo de parentesco que demonstra como esses nomes e casamentos
se deram no núcleo familiar de Akemi.
O livro Herdeiros, parentes e compadres, de Ellen F. Woortmann ajudou a
pensar essas relações familiares e geracionais a partir do Keim17. A autora
demonstra como as famílias de colonos de origem alemã se utilizam do Keim para
organizar os casamentos, primando por pretendentes que pertençam a “troncos
familiares” de Keim mais “forte” e “bom”, que remete ao caráter, capacidade de gerar
filhos homens, força de trabalho, entre outras características consideradas
indispensáveis, por eles, para um bom matrimônio.
16
No Japão a linhagem é repassada apenas pela linhagem paterna.
17
Pode ser traduzido como “princípio germinativo”.
Assim como as famílias de primeira geração por mim observadas, o
casamento não era tido como uma escolha individual, mas como algo decidido pelo
grupo familiar. Era a geração mais velha do núcleo familiar que tomava as decisões,
como quando os casamentos eram arranjados por Miai18. Já na segunda geração,
poucos foram os que aceitaram ter seus casamentos arranjados pelas famílias.
Woortmann (1995, p. 143) explica que “há casos de ruptura com a família,
envolvendo o casamento com alguém de Keim ruim [...]”, e que por implicar em uma
escolha individual então as consequências também devem ser sofridas de forma
individual, como quando o cônjuge não aprovado manifestar as características
negativas previstas pela família.
Em uma analogia podemos tomar o caso de Akemi, que casou com um
brasileiro e foi uma decisão difícil, sua mãe foi quem mais se opôs, “até mesmo a vó,
que era bem mais velha e morou muito mais tempo no Japão não ficou assim, e
dizia pra mãe que como a gente tava morando aqui [no Brasil] ela tinha que aceitar”.
Sobre os nomes dados às crianças, os irmãos nomearam os filhos com nomes
compostos, um japonês e um brasileiro. Akemi foi a única que nomeou o filho
exclusivamente em japonês.
Akemi, hoje, é divorciada, processo que foi de difícil compreensão por parte
de seus pais, assim como o casamento. Existiram discussões sobre o assunto
durante muito tempo, inclusive com auxílio de alguns parentes mais liberais, que
tentaram explicar para seus pais que “hoje, no Brasil, isso não é mais motivo para
vergonha”. Após o divórcio voltou a morar com os pais, como antes de casada.
Questionei sobre esse fato, do porque não ter ido morar sozinha, e obtive a
declaração de que ela e os irmãos sempre prezaram, em primeiro lugar, pelo bem
estar dos mais velhos e considerando as dificuldades de comunicação dos pais,
devido ao sotaque japonês ser muito forte, pela idade avançada que apresentam, e
ainda por considerar que as cunhadas brasileiras não teriam cuidados adequados e
paciência, preferiu estar próxima e acompanha-los na velhice. E aqui, mais uma vez,
o respeito aos mais velhos é expresso e confirmado em sua fala. Vemos que, apesar
dos primeiros desafios de casar fora e ter uma vida individual que a família nem
conhece, a responsabilidade com os pais é uma herança que não se perde e nem
da qual se desvencilha.
18
Em japonês: Casamento arranjado.
Após o filho sair de casa para ingressar em uma universidade, conta que
“namorou bastante”, mas que nunca pensou em morar junto novamente, pois
considerando o desgaste psicológico que foi convencer os pais do término do seu
relacionamento passado, não estaria disposta a atravessar essa situação
novamente, “pois namoro sem intenção de casamento é considerado vulgar para
eles”. Minha informante também tem o hábito de fumar, no entanto nunca o fez na
frente dos pais ou irmãos, segundo ela todos sabem, mas isso não significa que
comentem entre si, ou a questionem diretamente. Relata ainda que inclusive a sua
avó materna fumava na frente dos netos, mas afirma que o seu avô “morreu sem
saber”. Mas ela não é a única que passou por processo de divórcio, outras nissei
que moram em Santa Maria também se divorciaram, e inclusive casaram-se
novamente.
Muitas práticas se resignificaram e os choques geracionais causam
desavenças entre pais e filhos. Outros exemplos que tomei conhecimento foi de
Suko, que não compartilha da religião budista dos pais, se declarando Testemunha
de Jeová. Sakura igualmente não segue os preceitos do budismo, sendo assídua na
Umbanda, mas declara que jamais contará isso aos pais ou algum outro membro da
família, pois para ela essas religiões carregam um estigma muito forte e negativo, e
eles nunca entenderiam.
Hoje, a primeira e a segunda geração de migrantes já lida com o choque
geracional proveniente da terceira geração, os sansei desestabilizam muitas das
lógicas dos avós, mas isso não os afasta de expressar as “japonesidades à sua
maneira”. Como exemplo, utilizo uma narrativa de Akemi: seu filho, que mora
distante da cidade natal, deixou certa vez os cabelos crescerem e ostenta algumas
tatuagens pelo corpo. Akemi conta que quando o viu logo expressou sua
preocupação com a reação da avó, considerando que passariam as festividades de
final de ano juntos, e para espanto da própria Akemi, seu filho cortou os cabelos no
dia seguinte. Ela usa esse exemplo para reforçar a ideia de que os respeito aos mais
velhos é uma moral muito forte repassada pelas gerações de nipodescendentes, e
que apesar de não ter esperado tal atitude, ficou orgulhosa pela iniciativa e pelo zelo
aos avós que demonstrou com isso.
Vemos, portanto, a importância da primazia masculina nas famílias
nipodescendentes de Santa Maria. Quebrar a tradição é duro, mas possível, até
mesmo inevitável, como entendia a avó de Akemi, mas os homens não são
questionados quanto as suas escolhas. As mulheres, diferentemente, só podem ser
ousadas em algumas questões que mais parecem rebeldia escondida, do que
contestação (como fumar escondido ou manter práticas religiosas duplas), mas na
hora de decidir cuidar dos pais, a obediência ao costume não é questionada.
A autoridade paterna, assim como o respeito aos mais velhos é o traço que
permanece para homens e mulheres, mesmo que em graus diferentes, levando em
consideração o tio de Akemi que acabou por ocultar a paternidade de filhos
provindos de uma união com uma brasileira, mas neste exemplo o silêncio também
foi uma forma de respeito, mesmo que temeroso. E meu interesse até aqui é mostrar
como essa identidade é situacional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao migrarem para o Brasil, não foi possível, para essas famílias, manter o
mesmo padrão cultural vivido no Japão, e a ruptura se mostrou lenta e dolorosa,
como demonstrado pelos choques geracionais e contrastes de pensamentos. De
toda forma a ligação com o Japão não foi perdida, mas resignificada. As famílias se
reorganizaram com o passar das gerações, assim como as estruturas familiares e as
questões de gênero.
Mesmo inseridas no país adotivo, as mulheres issei mantiveram vínculos
como elucidado pela culinária caseira, a educação repassada aos filhos e os desejos
de que os filhos casassem com descendentes, o que foi resignificado pela segunda
geração mesmo a contragosto dos pais, pois a inserção nas escolas locais e a
relação com os brasileiros tornou-se inevitável.
E é nesta experiência japonesa no Brasil que, por meio da pesquisa que deu
origem a este artigo, foi possível observar que as japonesidades são construídas a
partir das múltiplas experiências vividas pelos sujeitos, e por isso são tão amplas,
pois cada um possui a sua maneira de expressar essa oscilação entre culturas e
vivências. Se a japonesidade da primeira geração se expressa mais com a
valorização da descendência e da comida, a segunda geração mantém um vínculo
mais forte com predicados morais, como o respeito aos mais velhos. A terceira
geração, por meio da internet, conecta-se com o Japão atual, e tem o interesse
voltado à cultura pop contemporânea daquele país. As mulheres, antes
resguardadas e passivas ante aos homens da casa, com o passar das gerações
escolhem seus cônjuges, divorciam-se, namoram, casam-se novamente, escolhem
outras religiões.
Essas identidades relacionais, situacionais e diferenciais compõe as
japonesidades que ao final, permitindo-me uma analogia, podem ser comparadas às
casas e às cozinhas. Existem elementos japoneses ao lado de elementos
brasileiros, a maioria é útil e possuem suas funções específicas, alguns servem
somente como adereços e não são muito acessados, permanecendo nas gavetas, e
ao final a coexistência destes não faz com que aquele ambiente seja visto como
mais ou menos japonês.
Essa multidão de alteridades que constituem os sujeitos não demonstra
incompletude ou somatória de identidades, como ainda bem cita Machado (2011).
São japoneses e brasileiros, porque constroem características inerentes aos dois,
concomitantemente, e isso de forma alguma os faz ser menos ou mais japoneses ou
brasileiros, mas o são os dois, à sua maneira.
REFERÊNCIAS
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Memória Coletiva e Teoria Social. São Paulo:
Annablume, 2003.
=
Chikashi Amaya
Maria
Ayumi
João
Hiromi
Carla = Hiroki =
Hideyo Anita Akemi
≠ Michel
Relação de consanguinidade
Yukio
Falecimento
≠
Hisato Ichiro Izumi Harumi Kasumi Isami
Divórcio
Japonesa mulher com nome de japonesa Japonês homem com nome de japonês
Homem nipodescendente com nome de
Brasileira mulher com nome de brasileira japonês
Brasileiro homem com nome de brasileiro
Akemi mora com os pais após o divórcio.
Mulher nipodescendente com nome de
brasileira e de japonesa Homem nipodescendente com nome de Obs.: Uso a terminologia “nome de” conforme
Ego brasileiro e de japonês fala da entrevistada.