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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
CURSO BACHARELADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Mateus Tuzzin de Oliveira1

REFERÊNCIA

CARVALHO, José Murilo de. “Os três povos da República”. In: HOMEM, Amadeu
Carvalho; ISAÍA, Artur César; SILVA, Armando Malheiro da (Org.). A República no Brasil
e em Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2007. v. 1. p. 131-164.

José Murilo de Carvalho, historiador do Brasil Imperial e da primeira fase republicana


na história da terrae brasilis, membro da Academia Brasileira de Letras, inicia o capítulo de
sua autoria intitulado “Os três povos da República” com o propósito claro de aprofundar a
visão acerca do período em que se estabeleceu a paz oligárquica nas décadas iniciais da
Primeira República, compreendido entre 1904 e 1922, ano em que ocorre a primeira revolta
tenentista. Nesses anos, após décadas de intensos conflitos envolvendo as próprias
oligarquias, com maior ou menor grau de participação popular nos primeiros tempos depois
da proclamação, o País se viu em uma situação de relativa paz e acordo mútuo entre as elites
oligárquicas agrupadas em torno dos Partidos Republicanos dos diferentes estados. Mas José
Murilo de Carvalho vai além quando propõe a análise do povo e suas diferentes três faces,
aspectos de uma mesma realidade, durante esse período em que vigorou a paz velada de
tensões inadiáveis no seio das elites. Período em que o povo apareceu como massa de
manobra do jogo político eleitoreiro; enquanto dado tabelado na quantificação estatística e
censitária; e povo ativo que se esgueira nas brechas de um novo sistema erigido em velhas
estruturas, buscando reivindicar, subverter, conquistar.
Três foram as caras do povo, indica José Murilo de Carvalho. Contudo, nem todas são
equivalentes quando se considera a visibilidade, adverte em seguida. A mais visível das faces
do povo, durante esse recorte temporal de inícios do século XX, é a do povo das estatísticas, a

1
Acadêmico do curso Bacharelado em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM). Bolsista PIBIC/CNPq do projeto de pesquisa Capital Social e Desenvolvimento Regional no Rio
Grande do Sul: um estudo comparativo entre regiões. Contato: e-mail tuzzinmateus@gmail.com
totalidade do povo civil, a população quantificada dos censos. A segunda face, na ordem
estipulada por Carvalho, é a do povo das eleições, massa de manobra durante o ato máximo
de exercício da cidadania, constituída pelos legalmente aptos ao voto, adultos alfabetizados do
sexo masculino acima de 21 anos. Por último, a face menos visível, aquela relegada ao
segundo plano pela interpretação elitista da História, a que amargou o “Silêncio dos
Vencidos”, como sugere o título da obra de Edgar de Decca, é a face perturbadora do povo
ativo, insurgente, atacante frontal direto ou indireto do sistema político de governo vigente.
O povo das estatísticas, primeiro na ordem de análise e mais visível, aparece na
exposição de Carvalho numa referência aos recenseamentos de 1872 e 1920 feitos em toda a
amplitude do território nacional, ambos analisados por teóricos do período. Ao biólogo
francês Louis Couty coube o diagnóstico feito em 1881, tendo por base o censo de 1872, de
que o Brasil então constituía um País sem povo político, o que justificaria a atuação de
instituições elitistas e antidemocráticas como o Poder Moderador no Brasil Imperial. Em 1916
e 1925, o deputado Gilberto Amado, dispondo dos dados de ambos os censos limitou-se a
reproduzir a análise de Couty, buscando legitimar o berço do poder nas mãos das oligarquias
e inferindo a incapacidade de uma população supostamente apolítica em participar do governo
da nação. Encorajado pelas análises dos dois personagens anteriores, José Murilo de Carvalho
decide fazer a sua do panorama indicado pelos dados censitários referentes ao Brasil de fins
do Império e começo da Primeira República. Constata, lamentavelmente, o atraso do maior
país da América Latina; atraso de uma herança escravocrata, do analfabetismo, da
desigualdade social; atraso de um povo dependente de coronéis oligarcas e latifundiários, de
um país antidemocrático revestido de uma frágil capa liberal. As conclusões que extrai de sua
análise não variam substancialmente das de Couty e Gilberto Amado, admite Carvalho. No
entanto, antes de declarar a incapacidade da população, sua inaptidão ao sistema democrático
e representativo, como fizeram os dois intelectuais, o autor busca respostas em outra das faces
da população da Primeira República: a segunda das três elencadas. Procede, assim, à
investigação de como se comporta o chamado povo das eleições.
Recorrendo aos dados estatísticos das eleições presidenciais que tiveram lugar entre
1894 e 1930, Carvalho é forçado a constatar a quase total ausência de participação eleitoral do
próprio povo das eleições, isto é, os que dispunham do direito legalmente assegurado de
votar. Nem os intelectuais avant la lettre nem os cidadãos semianalfabetos nem o povo das
estatísticas demográficas. Ninguém; ou quase ninguém. O medo generalizado impedia o
exercício do voto. Os 7,8% da população total do País, os cidadãos com direito ao voto,
adultos alfabetizados, se abstinham sistematicamente de qualquer participação eleitoral. Até
mesmo na eleição mais disputada do período, em 1930, os índices de participação não
alcançaram os 6%. Como se não bastasse, a corrupção generalizada, permeando todas as
etapas do processo eleitoral, tornava ainda mais dificultosa a autenticidade da representação
no período apresentado, afetando inclusive a competitividade entre as diferentes candidaturas,
tão saudável à manutenção do programa democrático. Tudo isso contribuía para fornecer o
aspecto desagradável de dramatização fictícia republicano-democrática ao regime recém-
inaugurado, a encenação das elites oligárquicas vislumbrada na dança íntima dos coronéis.
Entre eleições fraudulentas e o coronelismo amedrontador reinante no cenário político
em época de pleito, o sonho democrático tendeu a fenecer, parece sugerir a análise de
Carvalho acerca das estatísticas do povo eleitoreiro, aproximando-se, portanto, das conclusões
de Couty e Gilberto Amado. Seja como for, aponta o historiador, o sacrifício do projeto
democrático era o preço a pagar por uma paz cuidadosamente velada no regime das
oligarquias, improvisada pelo arranjo de Campos Sales, a política dos estados. Em País de
analfabetos quem sabe ler é rei, parecia indicar a configuração estrutural da participação
política na Primeira República. Longe disso, e a despeito de qualquer mérito educacional ou
nível de erudição, em uma época em que o poder de participar do governo é restrito a menos
da décima parte de toda a população, o Brasil encontrou seus austeros “Inimigos da Sociedade
Aberta”, em uma referência ao título de outra obra, desta vez de Sir Karl Popper, nas figuras
nada carismáticas dos coronéis e latifundiários.
Apesar dos resultados pouco inovadores das análises referentes ao povo das
estatísticas e o povo das eleições, José Murilo de Carvalho não deixa de partir em busca do
povo em sua ação propriamente dita, ofuscada pela história dos dominadores. Considerando
importante ressaltar essa atividade existente do povo da rua, à margem do sistema de governo
excludente das oligarquias e tão obscurecido por uma tradição historiográfica elitista, o
historiador vai a busca do terceiro povo, ou melhor, da última das caras dos três povos da
Primeira República.
As insurreições populares dos primeiros tempos da República são comparadas por
Carvalho, no que refere a seu elemento desencadeador e as condições sociais em que se
deram, com as do período regencial e do Segundo Reinado no Império. Durante a regência, o
povo serviu-se das brechas sinalizadas pelas cisões internas e disputas entre as diferentes
oligarquias para agir contra o regime naquele contexto social determinado. Em seguida, já no
Segundo Reinado, quando as oligarquias descobriram no Poder Moderador uma forma de
conciliar as disputas e estabilizar seu poder faccioso, pode-se ter a impressão de que as
revoltas populares, não encontrando mais espaço para a ação, deixaram de existir. Não, atesta
Carvalho, o povo da rua não se tornou observador inerte, joguete passivo; as revoltas
populares apenas mudaram de natureza. Assim como no Brasil Imperial, as revoltas do povo
da rua na Primeira República tiveram duas fases. A primeira, indo desde pouco antes da
proclamação até 1904, na Revolta da Vacina, simbolizou um momento intenso de convulsão
política e instabilidade, deslindando em boa parte a insatisfação do povo, que não participou
da proclamação mas fez-se sobremaneira presente nesses primeiros anos do novo sistema
político de governo. Depois de Campos Sales e a política dos estados, ainda em 1904,
comparáveis à descoberta no Segundo Reinado da estabilidade propiciada pelo Poder
Moderador por parte das oligarquias, iniciou-se uma segunda fase de ação na trajetória dos
movimentos populares nessas primeiras décadas do século XX; o povo das ruas insurgiu-se,
no campo e na cidade, seja na figura de beatos e bandidos ou na de militares e operários, nas
expressões do historiador. Tratava-se agora de rasgar o véu ultrapassado do regime
estabelecido e apresenta-lo à luz das ideias messiânicas, progressistas, higienistas, etc. O
sistema oligárquico carregou em seu ventre, durante esses anos da Primeira República,
movimentos de caráter popular acentuados, tanto no rumo do progresso, como na tentativa
utópica de tentar fazer girar para trás a roda da história. Movimentos messiânicos como o de
Canudos e, mais tarde, o Contestado, buscavam, dentre outras coisas, suprir a carência do
líder carismático no sistema político oficial e deslocar o foco da miséria social para outra
atmosfera, ao mesmo tempo em que evitavam romper com a moral tradicional da população.
Compostos essencialmente por sertanejos, todos esses movimentos de insurreição no interior
do País, incluindo o Cangaço (embora não-messiânico), foram impiedosamente massacrados
pelas tropas do governo. Sorte ligeiramente distinta tiveram as revoltas populares ocorridas no
ambiente urbano, como a da Chibata, de 1910, e as grandes greves de 1917-1919. Por
apresentarem maior visibilidade frente ao cenário internacional e imigrantes europeus,
salienta Carvalho, o governo viu-se na eminência de articular medidas de repressão mais
brandas. Destacando-se também nesse cenário conflituoso do sistema de oligarquias em
inícios do século XX, os intelectuais, em maioria republicanos, senhores do progresso e da
ciência, agrupavam-se em torno de duas grandes fileiras, conforme indica Carvalho: os que
eram descrentes e pessimistas em relação à capacidade do povo brasileiro frente à
modernização, e os chamados “missionários do progresso”, que buscavam remediar os males
raciais, educacionais e higiênicos da população nas cidades e no interior. Ironicamente,
nenhum dos dois grupos divergia quanto ao ponto considerado principal, o de que era
impossível no Brasil um regime político que abarcasse a participação da população no
governo. Nesse sentido, nenhuma das elites intelectuais foi democrática. Aliás, em todos os
seus aspectos mais básicos e essenciais, a Primeira República do Brasil defrontou-se com a
impossibilidade da democracia.
Finalizando sua análise, José Murilo de Carvalho conclui que a própria República
incubou desde o início dentro de si os mecanismos que haveriam de consumi-la na Revolução
de 30, quando a aventura oligárquica sob a capa liberal não mais pôde se sustentar sem fazer
concessões ao “elemento indesejado” na forma republicana e no sistema democrático de
governo: o povo. Elemento decisivo nesse processo de dissolução foi o terceiro dos três povos
da República, o povo da rua. Nem Couty, nem Gilberto Amado, nem qualquer outro
intelectual da época discerniu corretamente a importância do povo ativo, insurreto,
contestador da ordem instituída. Coube à José Murilo de Carvalho, ao lado de alguns outros,
fazer a distinção e situar a população dos primeiros decênios do século XX no lugar que lhes é
historicamente reservado, a de agentes ativos do processo por que se move a história e
transitam as formas de interação sociais.

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