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A invenção republicana

Parte 1: a década do caos (1889-1898)

Capítulo 1: Absurdo, aventura e veto

As reconstituições correntes e depoimentos sobre o golpe de estado republicano de


15/11/1889 revelam um conjunto de acontecimentos marcado pela ideia de ausência. Ausência de
povo, de ânimo reativo oficial compatível com as glórias e a duração do Império, e de programa
consistente e unidade, por parte dos vitoriosos. Em menos de 24h, uma experiência institucional
septuagenária foi erradicada, sem que os sujeitos responsáveis por tal ousadia possuíssem algum
consenso minimamente suficiente para dar curso ao Brasil.
A ausência do povo não era surpresa. Em 1881, por meio da lei Saraiva, o Império havia
reduzido o eleitorado em 85%. Ainda, a despeito das intenções moralizantes da lei, as eleições nas
quais o partido do governo fabricava maiorias não acabaram.
O sistema partidário imperial foi construído ao longo de décadas. Em 1847, durante o
quinquênio liberal, foi criado o cargo de presidente do Conselho de Ministros, uma espécie de
fusível político. Ao dissolver a Câmara, amparado no Poder Moderador, e nomear o presidente do
Conselho, este nomeava os responsáveis pelas eleições legislativas; o governo não perdia eleição. A
virtual ausência de oposição em gabinetes no início da década de 1850 era, na visão de Nabuco de
Araújo, nociva à estabilidade da monarquia. Para ele, “o governo não deve buscar a erradicação do
partido contrário. Deve, mesmo, apoiar a eleição de oposicionistas esclarecidos e moderados. O que
estaria sendo ameaçado, se tal não fosse feito, é o próprio sistema representativo, falseado pela
unanimidade e a própria saúde do bloco vitorioso, pois, sem o inimigo em frente, havemos de
dilacerar-nos e dar um triste espetáculo à oposição”.
Para sanear esse problema, foi proposta a lei dos círculos (1855), que criava o voto distrital:
em cada círculo distrital, seria escolhido um parlamentar. Ainda, funcionários públicos de alto
escalão ficariam proibidos de concorrer no distrito onde exerciam suas funções. Buscava-se
aproximar representantes e representados e projetar sobre a Câmara as peculiaridades do localismo.
Em 1860, passou-se a eleger três parlamentares, e o círculo aumentou.
As discussões acerca do aperfeiçoamento da lei eleitoral não cessou. Em 1875, a lei do terço
garantiu que um dos três deputados eleitos em cada círculo seria da oposição. Em 1881, a lei
Saraiva impôs as eleições diretas, uma demanda que vinha desde a década de 1860, mas, ao impor o
censo literário e ao endurecer as regras sobre a comprovação de renda, diminuiu drasticamente o
eleitorado.
O último gabinete imperial, o do visconde de Ouro Preto, apresentou um projeto de
reformas. A crença era a de que o sistema havia elasticidade suficiente para absorver reformas,
tornando, por essa via, inócuas as propostas da propaganda republicana. As principais proposta de
Ouro Preto foram:
 Alargamento do direito ao voto
 Nomeação dos presidentes de província a partir de uma lista organizada pelos votos dos
cidadãos
 Temporariedade do Senado
 Reforma do Conselho de Estado, limitando-o a questões administrativas

É um engano supor que o golpe de 15/11/1889 foi a materialização de um projeto de utopia,


lentamente amadurecido por duas décadas de ação republicana. Mais apropriado parece ser a
consideração de que, diante da erosão endógena da monarquia, formou-se erraticamente uma típica
coalizão de veto, capaz de incluir o delírio separatista domesticado pelo realismo federalista, o
ressentimento militar, a ética absoluta da dissidência política e o enfado de outros com o regime
monárquico. Os primeiros anos republicanos se caracterizaram mais pela ausência de mecanismos
institucionais próprios do Império do que pela invenção de novas formas de organização política. O
veto imposto ao regime monárquico não implicou a invenção positivista de uma nova ordem. O que
se seguiu foi uma completa desrotinização da política, um mergulho no caos.
Antes de proceder à necessária reflexão sobre a entropia dos primeiros anos da República,
importa considerar de modo sistemático o que foi vetado pelos republicanos: a engenharia política
do Poder Moderador. Isso possibilitará verificar o impacto gerado no curto prazo pela supressão do
padrão imperial, e perceber o que dele foi recuperado quando, no governo Campos Sales, a ordem
republicana definiu suas rotinas institucionais.
O Brasil amanheceu no dia 16/11/1889 sem Poder Moderador. O sistema político brasileiro
abriu-se para uma experiência, nos dez anos que se seguiram à proclamação, na qual ficou sem sua
chave política. Segundo a tradição imperial, as atribuições do Poder Moderador eram fundamentais
para estabelecer os limites e a dinâmica do corpo político. O Poder Moderador foi apresentado pelos
intelectuais da Monarquia como garantia para conter o espírito de facção, como guardião da
neutralidade. As prerrogativas do quarto poder são notórias: nomear senadores, dissolver a Câmara,
nomear ministros. Tem-se, dessa maneira, resolvido problemas cruciais da organização política: o
processo da geração do governo, a constituição e os limites da representação nacional e as relações
entre “centro” e “periferia” na estrutura do Estado. Tudo isso com a clara assignação de quem
detém o monopólio da escolha.
A história eleitoral e da constituição de governos no Império reforça essa percepção. Tudo
parece indicar a presença de um eleitor único, capaz de encarnar a vontade nacional a salvo das
distorções e do espírito de facção. Assim, a ação do imperador vinha a suprir o papel dos órgãos
mais normalmente autorizados a dar expressão à vontade popular e tinha função semelhante à de
um corpo eleitoral.
Se os partidos em geral retiram de sua relação com o eleitorado parte significativa de sua
identidade, os partidos monárquicos não se definem obrigatoriamente como casos de patologia
política. O problema todo é que só havia um eleitor. Seria tarefa da República inventar uma nova
dinâmica, capaz de erradicar o eleitor único, evitando, com iguai ênfase, o eleitorado clássico.
O veto a esse legado implicou o abandono de soluções tradicionais a questões cruciais e
pertinentes ao sistema político. O Brasil acordou no dia 16/11/1889 sem Poder Moderador, isto é,
sem ter qualquer resposta institucional a respeito de si mesmo: quem faz parte da comunidade
política, como serão as relações entre polis e demos, entre o poder central e as províncias, como se
organizarão os partidos e se definirão as identidades políticas. Enfim, sobre quem deverá mandar,
pois como disse Silvio Romero, “a questão toda hoje no Brasil é saber com que patrão se há de
estar”.

Capítulo 2 - os anos entrópicos (1889-1894)

A ideia de entropia, entendida como a associação entre estado de anarquia e elevado grau de
incerteza, se manifesta a partir da ruptura dos canais de integração entre polis, demos e governo,
definidos pela ordem imperial. O caráter entrópico da ruptura foi exponenciado pela legislação
errática republicana, que, ao tentar superar o vazio institucional provocado pela queda do Império,
produziu ainda mais incerteza. O abandono dos critérios monárquicos de organização do espaço
público inaugurou um período de dilatada incerteza política. Assim, a República Oligárquica, a
partir da política dos governadores, não se constituiu como contraponto negativo a ordem imperial.
Sua produção prática e retórica exigiu a expiação de seu passado imediato e pôde até mesmo
incorporar em sua elaboração institucional padrões e valores políticos já existentes no modelo
imperial.
A primeira equipe governamental republicana, que compôs o governo provisório chefiado
por Deodoro, era heterogênea, de origem e propósitos, além de ter como característica comum uma
total inexperiência na administração pública, a exceção de Rui Barbosa e Quintino Bocaiuva.
O componente caótico dos anos entrópicos teve, ainda, como ingrediente nada desprezível, o
comportamento do estamento militar. Presentes nos governos por meios dos Presidentes e dos
ministros Benjamin Constant e Eduardo Wandenkolk, os militares passaram a viver uma inédita
situação de hiperpolitização. Egressos de um regime que lhes confinava uma identidade
estritamente profissional, passam a realizar seu papel como dotado de missão de realizar com
pureza a verdadeira República. Invariavelmente, essa busca de verdade se traduzia em petições ao
presidente no sentido de perpetuar a ditadura e afastar da política a legião de casacas. De modo mais
direto, a onda de intervenções do governo central nas políticas estaduais contou com a significativa
participação militar, em postos oficiais e extra-oficiais por meio do Clube Militar.
O registro na retórica oficial da importância militar apareceu no decreto de reforma do
ensino militar, elaborado por Constant, positivista dissidente. O objetivo central é reconhecer a
missão altamente civilizatória, eminentemente moral e humanitária que de futuro está destinada aos
exércitos sul-americanos. O soldado é apresentado como cidadão armado, corporificação da honra
nacional.
Até o governo de Prudente de Moraes, a presença disruptiva dos militares é constante,
caracterizando o padrão desestabilizador apontado por JMC, sem que, no final, o estamento tenha
sido capaz de elaborar e implementar um projeto de controle exclusivo do regime, que lhe
permitisse colocar em prática a tão sonhada exclusão dos casacas. O drama do Governo Provisório,
então, circunscrevia os seguintes problemas: a baixa institucionalização dos mecanismos de
governo, a anarquia estadual decorrente dos impasses da opção federalista e, por fim, a
hiperpolitização dos militares.
A convocação da Constituinte trouxe problemas parecidos com aqueles de 1824: o conflito
de soberania entre Executivo e Legislativo. O relator do projeto da Constituição, Rui Barbosa, teve
de balancear duas correntes doutrinárias: o hiperfederalismo e o federalismo domesticado.
Partidário da descentralização administrativa desde os tempos de Monarquia, Rui Barbosa passa a
identificar na superexcitação mórbida dos hiperfederalistas a porta de entrada para a barbárie
caudilhesca composta de uma hobbesiana competição de potentados locais.
Aos Estados, foram-lhe dadas competências residuais:

Art 68 - Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos Municípios
em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse.

O texto final da Constituição apresenta inovações na história institucional brasileira. Este é o


caso da adoção do presidencialismo, que fortalecia em termos políticos o Executivo, fazendo-o
emanar da vontade geral, ao contrário da tradição do Império que o definiu como criação do Poder
Moderador. Outra novidade foi a indissolubilidade do Poder Legislativo, que, a partir de 1891,
passou a contar com um amplo leque de prerrogativas, que incluía o controle sobre o orçamento
federal, a possibilidade de criar bancos de emissão, o direito de legislar sobre as Forças Armadas, a
criação de empregos públicos federais, o direito de resolver definitivamente sobre tratados e
reconhecer os poderes de seus membros. Os dois principais momentos do Congresso eram a
votação do orçamento e a verificação de poderes.
Art 34 - Compete privativamente ao Congresso Nacional:
1º) orçar a receita, fixar a despesa federal anualmente e tomar as contas da receita e despesa de
cada exercício financeiro;
2º) autorizar o Poder Executivo a contrair empréstimos a fazer operações de crédito;
3º) legislar sobre a dívida pública e estabelecer os meios para o seu pagamento;
4º) regular a arrecadação e a distribuição das rendas federais;
11º) autorizar o governo a declarar guerra, se não tiver lugar ou malograr-se o recurso do
arbitramento, e a fazer a paz;
12º)resolver definitivamente sobre os tratados e convenções com as nações estrangeiras;
18º) legislar sobre a organização do Exército e da Armada;

As maiores novidades são, pois, o fortalecimento simultâneo do Executivo e Legislativo,


que terão fontes independentes de legitimidade. O que pelo Império foi estabelecido de modo
hierárquico, pois havia um poder superior capaz de dirimir as divergências entre os poderes, ficou,
com a lei maior de 1891, aberta ao acaso.
O artigo sexto, que trata da possibilidade de intervenção federal, é vago:

Art 6º - O Governo federal não poderá intervir em negócios peculiares aos Estados, salvo:
1 º ) para repelir invasão estrangeira, ou de um Estado em outro;
2 º ) para manter a forma republicana federativa;
3 º ) para restabelecer a ordem e a tranqüilidade nos Estados, à requisição dos respectivos
Governos;
4 º ) para assegurar a execução das leis e sentenças federais.

A Constituição de 1891 certamente foi incapaz de definir com precisão um pacto político
suficiente para instituir os novos limites da comunidade política e suas relações internas. Ainda
assim, as opções assumidas em 1891 seriam fundamentais para configurar os impasses que a
República teria que processar. A estabilidade republicana, consolidada a partir do governo Campos
Sales, dependeu de uma tradução mais tangível da Constituição. Procurou-se operar nos silêncios da
lei.
São esses os principais ingredientes da República constitucional: opção federalista, com
presidencialismo; atribuições dilatadas do Legislativo; imprecisão nas relações políticas entre União
e estados; maior concentração de rendas e tributos nos estados e asfixia dos municípios. As Forças
Armadas foram declaradas obedientes dentro dos limites da lei, dotadas, pois, de prerrogativas de
interpretar e decidir a respeito da eventual legalidade da desobediência. À entropia, soma-se o
conflito entre o Executivo, agora dotado de limites legais, mas nostálgico de suas ilimitadas
atribuições iniciais, e o Legislativo quase unanimemente de oposição. O quadro agravou-se com a
tentativa de Deodoro de dissolver o Congresso e instaurar uma ditadura, o que levou à sua renúncia.
Ao assumir, Floriano intervém em quase todos os estados, o que não aplacou a instabilidade. A
durabilidade do governo de Floriano veio, paradoxalmente, dos conflitos que teve de enfrentar: a
Segunda Revolta de Armada e a Revolução Federalista, ambas em 1893. A clássica imagem do
inimigo externo, no caso apresentada como a ameaça monarquista, permitiu uma união entre
facções do Exército e o apoio do PRP em torno do governo. O preço pago foi a relutante aceitação
de eleições presidenciais para 1894. Assim, os anos entrópicos foram marcados por indefinição.

Capítulo 3 – a colmeia oligárquica (1894-1898)

Fechado o ciclo militar, com o término do governo de Floriano Peixoto, a experiência


republicana não havia gerado respostas às questões institucionais deixadas em aberto com a queda
do Império. Permaneciam sob a sombra da incerteza as três variáveis cruciais para a sobrevivência
do regime: os critérios de geração de atores políticos coletivos; as relações entre o poder central e os
poderes regionais e os procedimentos de interação entre Executivo e Legislativo. Essas indefinições
são esperadas em momentos de transição. O singular nesse caso é que elas não foram aplacadas pela
nova Constituição. Ao instituir um regime baseado no presidencialismo, na autonomia dos estados e
no alargamento das prerrogativas do Legislativo, a Constituição de 1891 inovou, mas a acomodação
desses aspectos dependeu do desempenho dos atores políticos e de sua capacidade de gerar um
pacto não escrito. A construção desse pacto, otimizado no governo Campos Sales, tinha como
condição a erradicação da incerteza das três variáveis.
No ano de 1893, último do governo Floriano, a República enfrentou seus maiores desafios: a
segunda Revolta da Armada e a revolução federalista no RS. O bloqueio do porto da capital, o risco
de separatismo gaúcho e ameaças monarquistas angariaram apoio ao marechal de ferro. Lideradas
pela bancada congressual e pelo governo paulistas, as principais forças estaduais, como as de MG e
da BA, passam a apoiar o governo federal. O governo paulista oferece ao mesmo tempo suporte
político no Congresso e ajuda militar, por meio da força pública estadual, mobilizada contra os
federalistas gaúchos. Floriano era o mal menor, e, diante da sua fraqueza momentânea, os
republicanos civis trocaram o apoio presente pela futura posso do governo. Assim, o inimigo
externo gerou harmonia entre Executivo e Legislativo.
A aproximação entre Floriano e as elites civis apresentou importante inovação: a
organização, em 1893, do primeiro partido político nacional após a dissolução dos partidos
imperiais: o PRF. Sob a liderança de Francisco Glicério, buscava-se de forma prática a definição
dos critérios e dos procedimentos de geração de atores políticos fora das erráticas combinações
parlamentares e conspiratórias. Sua composição era extremamente heterogênea. O partido era
aberto a todos que quisessem concorrer para a consolidação das instituições republicanas, e tinha
como principal ponto programático a defesa da Constituição.
Do ponto de vista macropolítico, o PRF visava a resolver duas questões: criar um grupo
majoritário para sustentar o governo e preparar as eleições gerais de 1894, nas quais seriam
escolhidos o presidente da República, 1/3 do Senado e a Câmara de Deputados. Diante desses dois
desafios, o PRF logrou êxito: conquistou a presidência, o terço do Senado e a Câmara. A unidade na
Câmara, contudo, era ilusória. Na nova legislatura, o PRF tinha ao menos três grandes facções: os
radicais, fanáticos de Floriano; os reacionários, inimigos de Floriano; e os moderados. A identidade
partidária era, portanto, incapaz de conferir ao Legislativo maior previsibilidade. O governo
Prudente ora aparece como continuador de Floriano, o que causava a ira dos reacionários, ora como
civilista, traindo, segundo os radicais, os ideais republicanos.
As primeiras ações do governo Prudente de Moraes recaem sobre o empreguismo florianista.
Vários jacobinos são demitidos, com o afastamento em massa de funcionários públicos contratados
pelo antigo regime. Com relação aos militares, a política do novo governo civil visava o seu
afastamento da cena política. Os procedimentos adotados combinaram cooptação de oficiais
graduados com punição a focos de rebeldia, além da intenção de reduzir efetivos militares. No
Congresso, o governo sofre oposição do núcleo florianista do PRF. As relações entre o Executivo e
o Legislativo, entre 1894 e 1897, foram mediadas por Glicério: se, por um lado, o Congresso
tentava limitar o Executivo, por outro lado, o presidente tentava escapar desse controle. Exemplo
dessas limitações era a política financeira de Prudente. O governo não encontrou apoio parlamentar
para implementar medidas de saneamento fiscal, como cobrança em ouro de parte dos direitos
alfandegários, imposto de renda e ampliação dos impostos sobre o consumo.
A ação de Prudente de Moraes em relação aos estados visou à regulamentação do artigo
sexto da Constituição, que versava sobre intervenção federal. O objetivo era duplo: assegurar, pela
ameaça de intervenção, a lealdade dos governos estaduais e de suas bancadas no Congresso. O
procedimento adotado foi ineficaz, pois atribuiu à precisão de um dispositivo constitucional o poder
de criar a subordinação dos poderes estaduais ao Presidente. O equilíbrio será conseguido no
governo Campos Sales, sem alterações constitucionais, ou mesmo sem debates parlamentares.
Os dois primeiros anos de governo apresentaram, pois, grande paralisia do Executivo,
acuado pelos ecos da Rua do Ouvidor, pelo protesto militar e pela anarquia congressual. A partir de
1897, Prudente se afasta do PRF e passa a apoiar-se em SP, MG, BA e PE, que representavam as
maiores bancadas congressistas. O que se verificou na prática foi a quebra da estrutura partidária de
intermediação. Ao implodir o PRF, o presidente só reconhece os chefes estaduais. O PRF e o
Legislativo são elementos de anarquia se não se se subordinam aos poderes estaduais em direta
conexão com o poder central. Além disso, a tentativa de assassinato de Prudente lhe dá ainda mais
apoio. Além de provocar alteração na psicologia das massas, o atentado permitiu ao presidente
começar o governo. Com a fuga de Glicério para SP, Prudente impõe-se ao Congresso e pode
encaminhar duas questões importantes para a dinâmica republicana: a sucessão presidencial e a
renegociação da dívida externa. O Exército, fator de desestabilização, sofre desprestígio por conta
de Canudos.
Da análise do governo de Prudente de Moraes, depreende-se que a estabilidade do novo
regime dependia da existência de um pacto, capaz de regular ao mesmo tempo as relações entre o
Executivo e Legislativo, a constituição de atores políticos e a interação entre poder central e poderes
regionais. Em 1897, Prudente tentou resolver suas relações com o Legislativo. A fórmula
encontrada implicou o reconhecimento de que as fontes de poder do Legislativo deveriam ser
localizadas nos Estados. A experiência do governo Prudente significou também um veto das elites à
tentativa de organização partidária imaginada por Glicério: a via de um partido único. A fraqueza e
a derrota final do PRF podem ser atribuídas à heterogeneidade política de seus adeptos.
O ato final do governo Prudente de Moraes foi o encaminhamento do processo sucessório. O
nome de Campos Sales foi lançado pela BA, seguindo-se o apoio de PE, MG e SP. O candidato,
além de escolher a questão financeira como ponto central do governo, deu mostras de como seria
feita a estabilização do sistema federativo em sua gestão. As ameaças à forma federativa foram
variadas durante os anos entrópicos: intervencionismos provocados por governos militares,
movimentos militares em vários estados e a tentativa de Prudente de regulamentar o artigo sexto da
Constituição de 1891, no sentido de torná-lo mais preciso e utilizável. Para Campos Sales, o artigo
era intocável:
“Tenho, pois, por dever primeiro do Executivo Federal, nas relações com os listados, o escrupuloso
respeito das fronteiras demarcadas pelo art. 6.° da constituição, cuja necessidade foi antevista,
com admirável sagacidade, pela sabedoria do legislador constituinte. É essa uma condição de paz
interna...”
Assim, a ordem imaginada por Campos Sales se assemelha a uma colmeia mandevilleana,
descrita no poema The Grumbling Hive:
Their Crimes conspired to make 'em Great;
And Vertue, who from Politicks
Had learn'd a Thousand cunning Tricks,
Was, by their happy Influence,
Made Friends with Vice

A virtude da república está nos estados, mais potentes do que a rua do Ouvidor ou d que os
quartéis. A eles está garantida a intocabilidade pela Constituição de 1891. A eles caberá o
enquadramento do demos sem preocupações formalistas a respeito da legalidade de seus
procedimentos. Ilegalidades locais serão a condição necessária para a legalidade republicana. Assim
imaginou Campos Sales: vícios privados, virtudes públicas.

Parte 2 – A política demiúrgica (1898-1902)

Capítulo 4 – saindo do caos: os procedimentos do pacto

Na história republicana brasileira, o governo de Campos Sales representa o início da


rotinização do regime. A fim de deixar para trás a entropia dos anos anteriores, Sales tinha em
mente a importância das eleições de 1900, que renovariam a totalidade da Câmara e 2/3 do Senado.
O próprio funcionamento da Câmara contribuía para tornar o resultado das eleições mais
imponderável. Segundo a Constituição de 1891, a decisão final a respeito da composição do
Congresso cabia a ele próprio, por meio da Comissão Verificadora de Poderes. A ausência de uma
Justiça Eleitoral autônoma fazia com que as eleições fossem controladas pelos Executivos
estaduais, durante as apurações e pelo Legislativo, no reconhecimento final dos eleitos e na degola
dos inimigos. Como a presidência da Comissão Verificadora de Poderes estava a cargo do
parlamentar mais idoso presumidamente eleito, questão estava, segundo Campos Sales, entregue a
um certificado de idade.
A inovação política promovida por Sales constituiu em alterar o regimento interno da
Câmara. O objetivo era restringir ao mesmo tempo o alto grau de aleatoriedade presente no critério
de idade e reduzir o poder que a Câmara tinha sobre a sua renovação. A partir da mudança
promovida, o presidente da Comissão Verificadora seria o mesmo da legislatura anterior. A nova
origem da Comissão implicou a perda da soberania do Legislativo, dada a definição atribuída aos
diplomas. As eleições já vinham praticamente decididas antes que a Comissão deliberasse a respeito
dos reconhecimentos. Na verdade, ela opera como garantia extra para impedir o acesso do inimigo
ao parlamento. Na maior parte dos casos, a degola da oposição é feita na expedição dos diplomas
pelas juntas apuradores, controladas pelas situações locais. Em caso de dúvida a respeito da eleição
de algum postulante, o novo modelo recorria à tese da presunção: opera-se a presunção a favor
daquele que se diz eleito pela política dominante no respectivo estado. Os fraudulentos são os
outros, os que não dispõem do apoio dos chefes estaduais. Mandato legítimo é todo aquele que tem
por origem a política oficial de seu Estado.
A montagem da reforma do regimento demandou busca de apoio político. Antecipando o
padrão de articulação política que desejava impor, a negociação não foi congressual. Campos Sales
dirigiu-se diretamente aos chefes estaduais mais importantes para tornar a modificação do
regimento efetiva. Na rede de cumplicidade construída, a primeira peça foi representava pelo
presidente de MG, Silviano Brandão. O caminho defendido pelo presidente tem por objetivo
garantir a legitimidade da Câmara, e é nesse sentido que se dirige a outro membro da colmeia
oligárquica, Luiz Vianna, presidente da BA. O ciclo de consultas se encerra com a correspondência
entre Campos Sales e Rodrigues Alves, senador por SP. Fechado o ciclo, o governo pode contar, no
mínimo, com o apoio das bancadas desses estados: 37 deputados mineiros, 22 paulistas e 22
baianos. A adesão dos pequenos estados é quase automática, pois constituem o lado oculto da
autonomia estadual. Economias decadentes, sem vínculos com o mercado externo, estavam privadas
do maior filão tributário dos estados, os impostos de exportação, e, por isso, dependiam
frequentemente do socorro do Tesouro federa.
A política adotada – alcunhada por Campos Sales de política de estados – recebe ampla
aceitação dos chefes dos poderes estaduais. Ela significa um congelamento da competição nos
estados: os grupos detentores do poder, no momento da realização do pacto, adquirem condições de
eternização nos governos estaduais. Estavam definidas as bases do grande condomínio oligárquico
caracterizado, segundo Rui Barbosa, pelo absolutismo de uma oligarquia tão opressiva em cada um
de seus feudos quanto a dos mandarins e paxás. Assim, o verdadeiro período eleitoral ocorria entre
as eleições e a reunião das juntas apuradoras: a luta dos candidatos para obtenção, a qualquer preço,
de diplomas que os habilitassem ao julgamento da Comissão Verificadora de Poderes. Ainda, as
grandes questões já estavam tratadas por um eixo que excluía o Legislativo enquanto instituição. O
presidente falava diretamente aos estados, e o comportamento do Legislativo será função da
extensão do acordo entre aquelas partes. Portanto, a simples modificação do regimento da Câmara
revela uma nova distribuição de poder. Nela, não há lugar para a res publica, nem há cidadãos. Os
atores relevantes são os estados, e o Parlamento será extensão de seus domínios.
Como toda ordem emergente, essa também tratou de negar o passado. A referência negativa
da ordem, contudo, não era o modelo imperial, mas, sim, os anos entrópicos da Primeira República.
A engenharia política da política de estados pode ser enquadrada como sendo a busca de um
equivalente funcional do Poder Moderador. O Poder Moderador havia dotado o sistema imperial do
controle sobre quatro dimensões básicas de ordem:
1. A dinâmica legislativa, por meio das prerrogativas de dissolver a Câmara e nomear
senadores;
2. As eleições, pela legislação excludente e pelos poderes conferidos ao governo para realizá-
las;
3. As administrações regionais, por meio da nomeação dos presidentes de província;
4. O processo de geração de atores políticos, visto que, com o Poder Moderador, o Imperador
era o único eleitor relevante no modelo.

Os primeiros anos da República não deram respostas duradouras a essas questões. A


suposição implícita é a de que a mudança de regime não altera os valores básicos da construção do
mundo público, daí a legitimidade de se tratar o novo modelo a partir dos antigos problemas. Com o
governo Campos Sales, na medida em que cada estado foi assignado a um grupo de exploradores
privilegiados, sem que o governo federal se preocupasse com os métodos utilizados para a
perpetuação dessas facções no poder, as relações entre demos e polis saem da esfera nacional e se
realizam no plano das políticas estaduais. O confinamento das relações entre demos e polis na esfera
estadual fez com que o governo federal ficasse desobrigado de tratar o problema da incorporação e
da participação como questão política nacional. O tratamento dado pelo pacto oligárquico trataram
de três problemas para a estabilização do regime simultaneamente: as relações do Executivo e
Legislativo, Poder central e estados e a geração de atores políticos legítimos. O Poder Legislativo se
transforma em expressão da distribuição estadual do poder e terá um comportamento cuja
docilidade será extensão do acordo entre o Presidente e os estados.

Capítulo 5 – Os fundamentos da nova ordem: os valores do pacto

Os termos práticos do arranjo de Campos Sales diziam respeito à constituição da ordem


política republicana, visando a dotar a esfera pública de maior governabilidade por meio do
congelamento da competição política via reconhecimento das oligarquias regionais como
proprietárias das parcelas estaduais do demos e como únicos atores relevantes. A proposta definia,
pois, ao mesmo tempo os critérios de formação dos atores políticos bem como as bases da ação
coletiva legítima, entendida como ação organizada das oligarquias.
Ele aponta que o modelo contém dois aspectos distintos: um se refere aos procedimentos e o
outro aos valores substantivos. O primeiro aspecto são o conjunto de procedimentos postos em ação
para obter estabilidade e dotar a República de um padrão mínimo de governabilidade. Eles se
resumem à montagem da política dos estados e à operação da Comissão de Verificação de Poderes.
O segundo diz respeito aos valores que Campos Sales atribuiu ao seu modelo, notadamente uma
concepção despolitizadora e administrativa do governo, dotado da atribuição de resguardar o
interesse nacional. A existência de dois aspectos distintos no interior do modelo torna plausível um
tratamento endógeno a respeito da crise da República Velha. A despeito da ação de forças exógenas,
tais como a rebeldia militar dos anos 20, o protesto operário e o desencanto das camadas médias
urbanas, o próprio modelo continha os fundamentos de sua decadência, dada a incompatibilidade
entre procedimentos que autorizavam uma ética egoísta e predatória e os valores que, obcecados
pelo ideal de pura administração, exigiam dos atores um comportamento baseado em uma ética
altruística.

Capítulo 6 – os novos âmbitos do absurdo

Antes de considerar os problemas que esse esquema tinha, é necessário reconhecer uma das
virtudes do modelo. Uma vez aplicado no governo Campos Sales, ele caracterizou as rotinas
políticas do regime republicano até 1930. A sucessão de Campos Sales, por exemplo foi inaugurada
na nova ortodoxia. O nome de Rodrigues Alves foi legitimado por consultas do Presidente aos
chefes estaduais. Campos Sales justificou a indicação pela necessidade de dar continuidade a sua
obra de administração. A sucessão manifestou a plena aplicação do modelo: procedimentos e
valores apareceram como reciprocamente adequados. A maximização dos custos da oposição fez
que durante a Primeira República só tenham ocorrido três eleições presidenciais competitivas
(1910, 1922, 1930) num total de 8.

Conclusão

O golpe republicano abriu caminho para uma década de enorme incerteza política, na qual
os canais de integração entre polis, demos e governo ficaram abertos ao acaso e astúcia. O pacto
constitucional de 1891 paradoxalmente injetou mais incerteza nesses anos caóticos. A autonomia
radical dos Estados e do Legislativo, dotado inclusive do atributo e se autofabricar, contracenam
com a definição de um Executivo forte e politicamente irresponsável. O governo Prudente de
Moraes exibe exemplarmente este padrão de dificuldades, pela contínua tensão entre Executivo e
Legislativo e pela possibilidade de geração e operação de um ator coletivo – o PRF – fora do
controle do governo central.
O governo Campos Sales toma como referência negativa não o Império, mas, sim, os anos
entrópicos da Primeira República. O resultado foi uma combinação entre uma retórica
construtivista, presente na obsessão regeneradora de um governo de “pura administração”, e o
reconhecimento de uma distribuição natural de poder entre as oligarquias estaduais. O dilema de
Campos Sales pode ser descrito da seguinte forma: os oligarcas locais eram os atores mais
apropriados para a definição de um pacto circunstancial, capaz de definir regras mínimas de
governabilidade. Mas isso não garantia que fossem atores aptos a desempenhar as funções
pedagógicas e altruísticas, definidas na parte substantiva de seu modelo. A adesão dos oligarcas à
política dos estados foi pragmática, visto que congelou a competição regional, permitindo a
eternização do poder das facções que naquele momento possuíam vantagens comparativas.
Os problemas do modelo começam a surgir a partir de duas contingências: o surgimento de
dissidências oligárquicas dotadas de recursos suficientes para persistir na oposição e a disparidade
entre suas premissas procedural e substantiva.
O primeiro problema aparece nas sucessões presidenciais de 1910 (Campanha Civilista),
1922 (Reação Republicana) e 1930 (Aliança Liberal). Nos três momentos, importantes segmentos
do condomínio oligárquico foram, por distintas razões, preteridos. Em todos eles, o comportamento
dos atores dissidentes seguiu padrão semelhante: acenar para o demos, com vagas promessas de
regeneração do regime, como mecanismo de obtenção de posições mais competitivas na polis.
O segundo problema torna o modelo Campos Sales aparentado da esquizofrenia. Enquanto
os procedimentos legalizam o comportamento egoísta, interessado e extralegal das oligarquias no
tratamento de suas parcelas do demos, os valores de Campos Sales desenham uma política nacional
voltada para a pura administração, na qual a ideia tradicional de competição política aparece como
inessencial e nefasta.

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