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12 a 17 de julho de 2021
UFPA – Belém, PA
Em seguida, refletimos sobre suas ideias trazidas no livro “Ideias para adiar o fim
do mundo” (2019), em que o autor traz uma visão indígena inédita a respeito do
colonialismo, mas que também vai muito além dele. Em sua análise, o colonialismo se
fundamenta em uma ideia de humanidade profundamente racista, antropocêntrica e
excludente, que reduz seres humanos não-brancos a condição de “sub-humanidade”
e exclui da condição de sujeito todos os seres vivos e a própria mãe terra. O pensador
indígena recorre as narrativas de povos que compõem essa “sub-humanidade” para
mostrar que o pensamento ocidental não é a única narrativa válida sobre o mundo,
mas que há inúmeras narrativas que podem nos inspirar a um envolvimento mais
profundo na relação com os outros seres e com a terra.
1. Inquietações políticas
Segundo Krenak, sua inserção na luta política não foi uma escolha, e sim o
resultado do contexto de violência colonial experienciada pelo seu povo em suas
relações com a sociedade nacional e o Estado brasileiro, tensões e conflitos territoriais
que levaram ao exílio do seu povo, ainda durante a sua adolescência, na década de
1960.
Eu não queria arrumar uma saída pra mim. Acho que foi daí que eu
atinei que tinha sentido fazermos uma luta mais aberta, que é quando
comecei a ver que tinha os Xavante, os Guarani, os Caingangue, que
tinham outras famílias também expulsadas de suas terras. (KRENAK,
2018a, p.1).
Ailton Krenak decidiu circular por diversos lugares do Brasil para conhecer de
perto a situação enfrentada por outros povos indígenas. Em suas palavras, seguiu para
lugares “onde os índios não podiam nem levantar a cabeça, porque os vizinhos
estavam fuzilando eles, e isso era desde o Kiriri do Nordeste até os Kaingang no Rio
Grande do Sul, ou os Bororo no Mato Grosso” (KRENAK, 2019, p.19).
Foi a partir dessa circulação que percebeu que a tensão nas relações políticas
entre o Estado brasileiro e os povos indígenas não era uma situação limitada a
determinado contexto, mas estava sendo enfrentada a nível nacional, onde quer que
esses povos estivessem, estavam acontecendo conflitos, causados, em sua análise,
pela configuração colonial que está na base da relação estabelecida entre o Estado
brasileiro, a sociedade nacional e os povos indígenas.
Krenak ressalta que os povos indígenas são os “sobreviventes” das guerras de
conquista desse território e a memória viva da história de roubo e espoliação que está
na origem do Brasil. Da mesma forma, aponta que a política indigenista não existe
para “proteger os índios, mas para nos exterminar”. Com relação a FUNAI, Krenak a
situa como uma instituição colonial:
Segundo Ailton Krenak, a “tensão política” – que “não é de agora” e que não foi
interrompida com as conquistas alcançadas na Constituição de 1988 – se agravou com
a eleição de um governo assumidamente racista, antiindígena e comprometido com a
expansão do capitalismo predatório (representado pelo agronegócio) à custa dos
territórios indígenas. Nesse sentido, a luta agora é para esses direitos não sejam
dissolvidos.
Ailton Krenak foi profético, se o governo eleito parecia uma ameaça apenas
contra as chamadas “minorias”: os pobres, negros, indígenas e LGBTQ+, com a
pandemia de covid-19 todos os brasileiros, incluindo os brancos, foram alcançados
pela necropolítica do governo genocida que ocupa atualmente a presidência
(VIVEIROS DE CASTRO, 2020).
No que se refere aos povos indígenas, o pensador indígena acredita que esses
povos sobreviverão a mais esse ataque, uma vez que já contrariaram todas as
“previsões” e teorias colonialistas (mesmo no campo da esquerda) que apostavam que
esses povos “não sobreviveriam à ocupação do território, pelo menos não mantendo
formas próprias de organização, capazes de gerir suas vidas” (KRENAK, 2019a, p.14).
Para Ailton Krenak, o Estado brasileiro está em “plena dissolução” e atualmente
tornou-se uma “arma” contra a população (KRENAK, 2021). O autor sente um claro
incômodo com relação a ideia de nação brasileira, que nasceu negando a história
indígena. Ademais, considera a própria ideia de Estado nação uma ideia falida, datada
do século XIX.
Para Ailton Krenak, a pandemia revela a falência desse modelo. Segundo este
autor, o pensamento dos brancos “entrou numa espécie de crise epistemológica” que
gera a necessidade repensar todas as bases sobre as quais foi estabelecido
(KRENAK, 2021). Uma dessas bases centrais é precisamente a ideia de humanidade
típica desse modelo predatório de existência, responsável por toda espécie de
racismo.
É em torno dessa “humanidade que pensamos ser” que gira as reflexões trazidas
por Ailton Krenak no livro Ideias para adiar o fim do mundo (2019). Em sua análise, foi
a partir da colaboração “entre pensadores com visões distintas originadas em
diferentes culturas” que possibilitaram uma crítica dessa noção, expondo sua
particularidade cultural e histórica. Afinal, “somos mesmo uma humanidade?” Como
foi construída essa ideia de humano que é considerada universal, mas que na
realidade foi imposta a todos pela colonização do pensamento, do mundo e do
imaginário?
Em primeiro lugar, Ailton Krenak situa esse conceito de humanidade como parte
do mundo dos brancos. Em seguida, sustenta que essa ideia de humanidade é colonial
e absurda por separar a ideia do “humano” da ideia de “natureza”, por separar os
humanos dos demais seres. Foi desse modo que os brancos excluíram da noção de
sujeito todos os seres não-humanos e a própria terra. O mundo foi despojado de vida
e sentido.
Em sua perspectiva, não existe um “nós” separado da natureza, não existe uma
“humanidade” de um lado, e a “terra de outro”, não é possível se descolar do todo, não
há nada “que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que
eu consigo pensar é natureza” (KRENAK, 2019, p.10). Krenak critica essa humanidade
que se vê como superior aos demais seres e ao próprio mundo, e que se coloca no
direito de dominar a natureza, como se fosse algo separado dela ou como se ela
estivesse ali para o seu dispor.
Para os brancos, haveria “uma humanidade, vamos dizer, bacana. E tem uma
camada mais bruta, rústica, orgânica, uma sub-humanidade, uma gente que fica
agarrada na terra” (KRENAK, 2019, p.12). Seriam “os quase humanos”, todos aqueles
povos “que insistem em ficar fora dessa dança civilizada, da técnica, do controle do
planeta. E por dançar uma coreografia estranha são tirados de cena, por epidemias,
pobreza, fome, violência dirigida” (KRENAK, 2019, p.33-34).
Os humanos que “insistem que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles
que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas
beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios,
quilombolas, aborígenes — a sub-humanidade” (KRENAK, 2019, p.11). No final das
contas, talvez se trate mesmo de dois tipos de gentes: “gente que precisa viver de um
rio e, no outro, gente que consome rios como um recurso” (KRENAK, 2019, p.25).
O autor contrapõe a visão indígena andina “Sumak Kawsai” (bem viver) à visão
europeia do bem-estar social. O que diferencia a concepção indígena seria a ausência
da noção, implícita na ideia de bem-estar social, de que a terra está aqui para ser
consumida e transformada em mercadoria para o bem-estar dos humanos,
considerada a espécie escolhida pela criação. Na concepção indígena a terra não está
aqui para nos servir, tudo é troca, relação. O dado mais marcante do pensamento dos
brancos está, em suas palavras, no fato de que “nós achamos que podemos consumir
a Terra. Essa é a ideia do bem-estar. Para o bem-estar humano, a gente pode
consumir a Terra”, e “mesmo quando utilizamos a ciência e a tecnologia, o propósito
é aumentar a capacidade de exaurir esse organismo” (KRENAK, 2020b, p.13).
Considerações finais
DANOWSKI, Deborah & VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio
sobre os medos e os fins. 1. ed. Florianópolis: Culture e Barbárie, 2014.
____________. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras,
2019b.
_______. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020a.
______. "Humanidade vive divórcio da vida na Terra". João Pedro Soares. DW.
29.03.2021. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/humanidade-vive-
div%C3%B3rcio-da-vida-na-terra-diz-ailton-krenak/a-57015686.
_______. Posfácio a Ideias para Adiar o Fim do Mundo, de Ailton Krenak. 2020.
Disponível em:
https://www.academia.edu/42777533/Posf%C3%A1cio_a_Ideias_para_Adiar_o_Fim_
do_Mundo_de_Ailton_Krenak