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20º Congresso Brasileiro de Sociologia

12 a 17 de julho de 2021

UFPA – Belém, PA

GT 18 - Sociologias Emergentes, Estudos Culturais e Pós(De)Coloniais

Ailton Krenak e a descolonização do pensamento no Brasil

Maria de Fátima Souza da Silveira

Doutoranda no Departamento de Sociologia da Faculdade de


Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, e bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico/CNPq.
Resumo

O intelectual indígena Ailton Krenak é uma das mais importantes lideranças do


movimento indígena no Brasil e uma das vozes mais originais do presente. Sua
atuação política e intelectual, no cenário local e internacional, vem contribuindo para
dar visibilidade à história, à luta e ao pensamento dos povos indígenas situados no
Brasil. Nosso objetivo é trazer algumas contribuições do pensamento indígena, a partir
da obra de Ailton Krenak, para a descolonização do pensamento e da política. O artigo
se inicia trazendo algumas das inquietações políticas e intelectuais que perpassam a
trajetória e o pensamento de Ailton Krenak, e que o levaram, segundo ele próprio, a
ingressar na luta política e na “guerrilha cultural”. Em seguida, refletimos sobre suas
ideias trazidas no livro “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019), em que o autor traz
uma visão indígena inédita a respeito do colonialismo, mas que também vai muito além
dele. Por fim, o pensador indígena recorre as narrativas indígenas para mostrar que o
pensamento dos brancos não é a única narrativa válida sobre o mundo, mas que há
uma diversidade de narrativas que podem nos inspirar a um envolvimento mais
profundo na relação com os outros seres e com a terra.

Palavras-chave: Ailton Krenak; Pensamento Indígena; Descolonização; Ecologia.


Introdução

Ailton Krenak é um intelectual e jornalista do povo Krenak, nascido em 1953 no


córrego de Itabirinha, no rio Doce, em Minas Gerais. O povo Krenak pertence ao grupo
linguístico Macro-Jê, cuja língua é denominada Borun, e habita atualmente uma
reserva de 4 mil hectares no médio rio Doce, depois de terem sido expulsos de seu
território tradicional que vai desde o litoral do Espirito Santo até Minas Gerais, entre o
vale do rio Doce e o São Mateus.

Desde o final da década de 1970 Ailton Krenak vem atuando na organização do


movimento indígena no Brasil, e teve uma participação importante na Assembleia
Nacional Constituinte, contribuindo para que os direitos indígenas fossem
reconhecidos na Constituição de 1988. É um dos criadores, ao lado de Chico Mendes,
da Aliança dos Povos da Floresta, e atualmente é uma das principais lideranças
indígenas no Brasil. Krenak é um sujeito de fala potente, e em 2020 ganhou o Prêmio
Juca Pato de intelectual do ano.

O objetivo desse artigo é trazer algumas contribuições do pensamento de Ailton


Krenak para a descolonização do pensamento e da política. Este artigo se inicia
trazendo certas inquietações políticas e intelectuais que perpassam a trajetória e o
pensamento de Ailton Krenak, e que o levaram, segundo ele próprio, a ingressar na
luta política e na “guerrilha cultural”. Trata-se especialmente do contexto histórico-
social e político que envolve as relações coloniais estabelecidas pelo Estado brasileiro
com relação aos povos indígenas situados no Brasil.

Em seguida, refletimos sobre suas ideias trazidas no livro “Ideias para adiar o fim
do mundo” (2019), em que o autor traz uma visão indígena inédita a respeito do
colonialismo, mas que também vai muito além dele. Em sua análise, o colonialismo se
fundamenta em uma ideia de humanidade profundamente racista, antropocêntrica e
excludente, que reduz seres humanos não-brancos a condição de “sub-humanidade”
e exclui da condição de sujeito todos os seres vivos e a própria mãe terra. O pensador
indígena recorre as narrativas de povos que compõem essa “sub-humanidade” para
mostrar que o pensamento ocidental não é a única narrativa válida sobre o mundo,
mas que há inúmeras narrativas que podem nos inspirar a um envolvimento mais
profundo na relação com os outros seres e com a terra.

1. Inquietações políticas

Em diversas entrevistas, Ailton Krenak conta que suas inquietações políticas e


intelectuais surgiram muito cedo, a partir do momento que teve que “se identificar como
índio” mesmo sabendo que “índio é um equívoco de português” (KRENAK, 2019a,
p.11). O fato, diz ele, é que esse “carimbo errado, equívoco, ficou valendo para o resto
das nossas relações até hoje” (KRENAK, 2019a, p.12).

Eu tenho a impressão que essa circunstância de a gente ter sido


encontrado aqui nos trópicos, nos psicotrópicos, e termos sido
confundidos pelos portugueses com uma coisa pré-estabelecida que
era essa gente que eles chamaram de índios, isso pode durar um
tempo, mas eu fico com uma visão que não é isso que vai prevalecer.
Que esse embrulho que rolou aqui, esse meio milênio de confusão vai
ser outra coisa lá na frente. (KRENAK, 2019a, p.32).

Em sua perspectiva, desde 1492 os brancos insistem em tratar os povos


indígenas como “uma coisa pré-estabelecida” (KRENAK, 2019, p.32). Assim, uma de
suas motivações iniciais era mostrar que “essa figura” construída pelo branco não diz
respeito aos povos indígenas, mas diz muito sobre o branco e sua pulsão colonizadora
e homogeneizadora (KRENAK, 2019a, p.11).

Segundo Krenak, sua inserção na luta política não foi uma escolha, e sim o
resultado do contexto de violência colonial experienciada pelo seu povo em suas
relações com a sociedade nacional e o Estado brasileiro, tensões e conflitos territoriais
que levaram ao exílio do seu povo, ainda durante a sua adolescência, na década de
1960.

Eu sou da geração do exílio do nosso povo, de quando muitas pessoas


saíram e foram para Goiás, São Paulo, Espírito Santo, Mato Grosso. É
como se fosse uma fuga meio sem destino, para um exílio que você
não sabia quanto tempo ia durar, mas eu acho que no fundo todo
mundo tinha uma esperança de poder voltar — meio parecido com
essa coisa dos nordestinos que vêm para o Rio e São Paulo, mas como
se fosse: “Vou ali e volto já”. Às vezes esse “volto já” não acontece e
caímos no grande oceano dos acontecimentos da vida. (KRENAK,
2018b, p.1).

Conforme relata, a experiencia do exílio, de “ser arrancado desse lugar e jogado


num outro ponto qualquer” levou a necessidade de “reinventar a si a e seu mundo”.
Nesses deslocamentos, percebeu que essa experiência estava sendo vivenciada não
apenas pelos coletivos indígenas, mas por diversos outros sujeitos que assim como o
seu grupo, haviam sido expulsos da terra para o urbano, tendo que reinventar sua
existência. Foi a partir disso que começou a observar as lutas dos trabalhadores, dos
sem-terra, e sentia que a sua luta não poderia ser individual, mas teria que abarcar os
coletivos a qual pertencia.

Eu não queria arrumar uma saída pra mim. Acho que foi daí que eu
atinei que tinha sentido fazermos uma luta mais aberta, que é quando
comecei a ver que tinha os Xavante, os Guarani, os Caingangue, que
tinham outras famílias também expulsadas de suas terras. (KRENAK,
2018a, p.1).

Ailton Krenak decidiu circular por diversos lugares do Brasil para conhecer de
perto a situação enfrentada por outros povos indígenas. Em suas palavras, seguiu para
lugares “onde os índios não podiam nem levantar a cabeça, porque os vizinhos
estavam fuzilando eles, e isso era desde o Kiriri do Nordeste até os Kaingang no Rio
Grande do Sul, ou os Bororo no Mato Grosso” (KRENAK, 2019, p.19).

Foi a partir dessa circulação que percebeu que a tensão nas relações políticas
entre o Estado brasileiro e os povos indígenas não era uma situação limitada a
determinado contexto, mas estava sendo enfrentada a nível nacional, onde quer que
esses povos estivessem, estavam acontecendo conflitos, causados, em sua análise,
pela configuração colonial que está na base da relação estabelecida entre o Estado
brasileiro, a sociedade nacional e os povos indígenas.
Krenak ressalta que os povos indígenas são os “sobreviventes” das guerras de
conquista desse território e a memória viva da história de roubo e espoliação que está
na origem do Brasil. Da mesma forma, aponta que a política indigenista não existe
para “proteger os índios, mas para nos exterminar”. Com relação a FUNAI, Krenak a
situa como uma instituição colonial:

A República nunca vai existir sem uma agência de controle sobre os


índios, porque ela é colonial, então precisa de um braço armado para
vigiar os índios que subjugaram na guerra colonial. Houve uma guerra
colonial, nós fomos vencidos, e agora tem uma agência que vigia os
sobreviventes da guerra (KRENAK, 2021, p.1, grifos meus).

Assim, por trás dessa relação de tutela há o interesse em conter politicamente os


indígenas, que não esqueceram que são os donos da terra, e que “o Brasil não foi
descoberto, foi invadido”. Além disso, o autor vê o ataque aos territórios indígenas e
aos seus modos de vida como embasados na ideia de que esses povos deveriam
adotar (por bem ou por mal) o estilo dos brancos de lidar com a terra, isto é, deveriam
vê-la como mero recurso, mercadoria e explorá-la. Em suas palavras:

O que está na base da história do nosso país, que continua a ser


incapaz de acolher os seus habitantes originais — sempre recorrendo
a práticas desumanas para promover mudanças em formas de vida
que essas populações conseguiram manter por muito tempo, mesmo
sob o ataque feroz das forças coloniais, que até hoje sobrevivem na
mentalidade cotidiana de muitos brasileiros —, é a ideia de que os
índios deveriam estar contribuindo para o sucesso de um projeto de
exaustão da natureza. (KRENAK, 2019a, p.21, grifos meus).

O cenário de emergência do momento indígena, no final da década de 1970, era


o contexto da ditadura civil-militar, e os militares empreendiam um esforço imenso para
“acabar” de vez com os povos indígenas, fosse a partir do genocídio, fosse atuando
no sentido de “desfazer as formas de organização” das sociedades indígenas,
“buscando uma integração entre essas populações e o conjunto da sociedade
brasileira” (KRENAK, 2019a, p.21). Nesse contexto, o autor afirma que o movimento
indígena emerge:
[...] Como uma reação contra essa negação da nossa existência,
contra a negação dos nossos direitos históricos e de nossa
possibilidade de inventar outros jeitos de ser. Principalmente, implicava
respeitar os territórios onde nosso povo ainda conseguia manter a
resistência, se manter vivo (KRENAK, 2018b).

Em suas palavras, “o enunciado de uma identidade significa reivindicar o Brasil


de volta” (KRENAK, 2019, p.15). Como resultado das lutas indígenas, a Constituição
de 1988 reconheceu os direitos originários dos povos indígenas e anunciava uma
mudança na atitude do Estado brasileiro, que não se concretizou efetivamente, uma
vez que poucas décadas depois assiste-se de forma sistemática a negação desses
direitos: “Nem um centímetro a mais para terras indígenas”.

Segundo Ailton Krenak, a “tensão política” – que “não é de agora” e que não foi
interrompida com as conquistas alcançadas na Constituição de 1988 – se agravou com
a eleição de um governo assumidamente racista, antiindígena e comprometido com a
expansão do capitalismo predatório (representado pelo agronegócio) à custa dos
territórios indígenas. Nesse sentido, a luta agora é para esses direitos não sejam
dissolvidos.

Essa tensão não é de agora, mas se agravou com as recentes


mudanças políticas introduzidas na vida do povo brasileiro, que estão
atingindo de forma intensa centenas de comunidades indígenas que
nas últimas décadas vêm insistindo para que o governo cumpra seu
dever constitucional de assegurar os direitos desses grupos nos seus
locais de origem, identificados no arranjo jurídico do país como terras
indígenas (KRENAK, 2019a, p.20).

O atual governo, saudosista da ditadura, nomeou um pastor evangélico para a


Funai, e tentou subordiná-la ao Ministério da Agricultura, como nos tempos da ditadura
civil-militar aberta. Segundo Barretto Fillho (2020), especialmente com relação à
Amazônia, o governo promove uma ofensiva final contra esses territórios:

[...] observa-se o desbloqueio absoluto –sem sequer um verniz de


regulação –dos vetores que configuram a economia de fronteira,
que sempre operaram na região, por meio tanto de posicionamentos
públicos, quanto de medidas governamentais, tais como: a reiteração
do argumento xenófobo de que a interferência estrangeira em
terras indígenas e na proteção ambiental dificulta o progresso do
país, a que respondem as diretrizes de não demarcar mais Terras
Indígenas, rever a criação de áreas protegidas e abrir tais
territórios ao desenvolvimento comercial; a desarticulação do sistema
de regulação ambiental, em especial a revisão em curso da
legislação sobre licenciamento ambiental de empreendimentos,
o relaxamento geral da fiscalização e o “assédio moral coletivo” a
que estão submetidos os profissionais desta área; o uso
sistemático de informações mentirosas e distorcidas sobre inúmeras
questões ambientais; a afirmação de que os dados sobre o
desmatamento gerados pelo Instituto Nacional de Pesquisas
Especiais são manipulados –que é parte da ofensiva mais ampla
contra a educação, a pesquisa científica e as instituições responsáveis
por estas. (BARRETTO FILHO, 2020, p.6).

Segundo Ailton Krenak:

Em 2018, quando estávamos na iminência de ser assaltados por uma


situação nova no Brasil, me perguntaram: “Como os índios vão fazer
diante disso tudo?”. Eu falei: “Tem quinhentos anos que os índios estão
resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer
para escapar dessa”. A gente resistiu expandindo a nossa
subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais.
Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes
umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos.
(KRENAK, 2019a, p.15).

Ailton Krenak foi profético, se o governo eleito parecia uma ameaça apenas
contra as chamadas “minorias”: os pobres, negros, indígenas e LGBTQ+, com a
pandemia de covid-19 todos os brasileiros, incluindo os brancos, foram alcançados
pela necropolítica do governo genocida que ocupa atualmente a presidência
(VIVEIROS DE CASTRO, 2020).

No que se refere aos povos indígenas, o pensador indígena acredita que esses
povos sobreviverão a mais esse ataque, uma vez que já contrariaram todas as
“previsões” e teorias colonialistas (mesmo no campo da esquerda) que apostavam que
esses povos “não sobreviveriam à ocupação do território, pelo menos não mantendo
formas próprias de organização, capazes de gerir suas vidas” (KRENAK, 2019a, p.14).
Para Ailton Krenak, o Estado brasileiro está em “plena dissolução” e atualmente
tornou-se uma “arma” contra a população (KRENAK, 2021). O autor sente um claro
incômodo com relação a ideia de nação brasileira, que nasceu negando a história
indígena. Ademais, considera a própria ideia de Estado nação uma ideia falida, datada
do século XIX.

Eu ainda sigo incrédulo com a possibilidade de uma nação brasileira,


uma certa dificuldade que me acompanha desde muito cedo quando
não aceitei me engajar em nenhum partido político. Eu nunca me filiei
em partido político, simplesmente porque nenhuma canga dessas me
cabia. E como dizia um sujeito rebelde e goiano que me ajudou a
fundar o Centro de Pesquisa Indígena, quando estava revoltado, dizia:
“Não bota canga em mim não". Era seu jeito de se rebelar. (KRENAK,
2019b, p.2).

Krenak considera que os brancos são incapazes de cumprir as leis formuladas


por eles mesmos, diante disso não vê mais como plausível “repensar um contrato
social”: “teríamos que pensar o tipo de sociedade que queremos ser” (KRENAK,
2019b, p.38). O autor propõe que “a gente deveria pensar outras formas de fazer o
que nós chamamos de política” (KRENAK, 2019b, p.38), e convida-nos a olhar para
as inúmeras estratégias utilizadas pelos povos indígenas para enfrentar cenários tão
terríveis quanto este que vivenciamos no presente.

Em sua perspectiva, os indígenas sobreviveram atuando como coletivos,


recorrendo as suas próprias narrativas, ao seu modo de pensar e se relacionar com a
vida, e rejeitando uma “ideia de humanidade” que suprime e nega “a pluralidade das
formas de vida, de existência e de hábitos”.

[...] Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e


me alimentei delas, da criatividade e da poesia que inspirou a
resistência desses povos. A civilização chamava aquela gente de
bárbaros e imprimiu uma guerra sem fim contra eles, com o objetivo de
transformá-los em civilizados que poderiam integrar o clube da
humanidade. Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas
“pessoas coletivas”, células que conseguem transmitir através do
tempo suas visões sobre o mundo. (KRENAK, 2019a, p.14).
2. Ideias para adiar o fim do mundo

O filósofo argentino Enrique Dussel vê 1492 como o momento de inauguração


da Modernidade, que nasce, em sua perspectiva, “quando a Europa pôde se confrontar
com o seu “Outro” e controlá-lo, vencê-lo, violentá-lo: quando pôde se definir como um
“ego” descobridor, conquistador, colonizador da Alteridade constitutiva da própria
modernidade” (DUSSEL, 1993, p.8). Enquanto para os brancos 1492 inaugurava a
modernidade, para os povos indígenas essa data anunciava o fim do mundo, o maior
genocídio da história (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p.141).

Os mais de quinhentos anos de uma história machista, colonial, racista e


capitalista, de um modelo predatório jamais visto, levou o mundo ao Antropoceno e a
ameaça anunciada do fim do mundo, ou melhor, do fim da espécie humana.

Para Ailton Krenak, a pandemia revela a falência desse modelo. Segundo este
autor, o pensamento dos brancos “entrou numa espécie de crise epistemológica” que
gera a necessidade repensar todas as bases sobre as quais foi estabelecido
(KRENAK, 2021). Uma dessas bases centrais é precisamente a ideia de humanidade
típica desse modelo predatório de existência, responsável por toda espécie de
racismo.

É em torno dessa “humanidade que pensamos ser” que gira as reflexões trazidas
por Ailton Krenak no livro Ideias para adiar o fim do mundo (2019). Em sua análise, foi
a partir da colaboração “entre pensadores com visões distintas originadas em
diferentes culturas” que possibilitaram uma crítica dessa noção, expondo sua
particularidade cultural e histórica. Afinal, “somos mesmo uma humanidade?” Como
foi construída essa ideia de humano que é considerada universal, mas que na
realidade foi imposta a todos pela colonização do pensamento, do mundo e do
imaginário?

Em primeiro lugar, Ailton Krenak situa esse conceito de humanidade como parte
do mundo dos brancos. Em seguida, sustenta que essa ideia de humanidade é colonial
e absurda por separar a ideia do “humano” da ideia de “natureza”, por separar os
humanos dos demais seres. Foi desse modo que os brancos excluíram da noção de
sujeito todos os seres não-humanos e a própria terra. O mundo foi despojado de vida
e sentido.

Em sua perspectiva, não existe um “nós” separado da natureza, não existe uma
“humanidade” de um lado, e a “terra de outro”, não é possível se descolar do todo, não
há nada “que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que
eu consigo pensar é natureza” (KRENAK, 2019, p.10). Krenak critica essa humanidade
que se vê como superior aos demais seres e ao próprio mundo, e que se coloca no
direito de dominar a natureza, como se fosse algo separado dela ou como se ela
estivesse ali para o seu dispor.

Depois de abstratamente se separar da terra e dos demais seres, os mesmos


homens brancos ricos foram moldando o conceito de ser humano a seu bel-prazer,
qualificando tudo aquilo que diferia de si como uma sub-humanidade, e transformando
a humanidade em uma espécie de “clube” bem restrito (KRENAK, 2021). O autor
destaca que essa noção de humanidade foi construída pela sociedade cristã-
capitalista, a partir de uma verdadeira “abstração civilizatória” que se dá a partir do
“divórcio com a terra”.

Em sua perspectiva, o colonialismo sustenta-se “na premissa de que havia uma


humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida,
trazendo-a para essa luz incrível” (KRENAK, 2019, p.7). Ainda em suas palavras, o
“chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe
um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade,
que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história” (KRENAK,
2019, p.7). Em sua perspectiva, essa ideia de humanidade está “na base de muitas
das escolhas erradas que fizemos”, e segue sendo utilizada para justificar “o uso da
violência” (KRENAK, 2019, p.7-8).

Para os brancos, haveria “uma humanidade, vamos dizer, bacana. E tem uma
camada mais bruta, rústica, orgânica, uma sub-humanidade, uma gente que fica
agarrada na terra” (KRENAK, 2019, p.12). Seriam “os quase humanos”, todos aqueles
povos “que insistem em ficar fora dessa dança civilizada, da técnica, do controle do
planeta. E por dançar uma coreografia estranha são tirados de cena, por epidemias,
pobreza, fome, violência dirigida” (KRENAK, 2019, p.33-34).

Os humanos que “insistem que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles
que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas
beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios,
quilombolas, aborígenes — a sub-humanidade” (KRENAK, 2019, p.11). No final das
contas, talvez se trate mesmo de dois tipos de gentes: “gente que precisa viver de um
rio e, no outro, gente que consome rios como um recurso” (KRENAK, 2019, p.25).

As andanças que fiz por diferentes culturas e lugares do mundo me


permitiram avaliar as garantias dadas ao integrar esse clube da
humanidade. E fiquei pensando: “Por que insistimos tanto e durante
tanto tempo em participar desse clube, que na maioria das vezes só
limita a nossa capacidade de invenção, criação, existência e
liberdade?”. Será que não estamos sempre atualizando aquela nossa
velha disposição para a servidão voluntária? (KRENAK, 2019, p.).

Para Krenak, “o nosso apego a uma ideia fixa de paisagem da Terra e de


humanidade é a marca mais profunda do Antropoceno” (KRENAK, 2019a, p.29). A
tentativa de manter esse modo de existência mesmo sabendo de sua
insustentabilidade levou a criação do que ele chama de “mito da sustentabilidade”, que
foi “inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de
natureza” (KRENAK, 2019a, p.10). Krenak questiona: o que estão tentando sustentar?

Enquanto a humanidade está se distanciando do seu lugar, um monte


de corporações espertalhonas vai tomando conta da Terra. Nós, a
humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas
mesmas corporações que devoram florestas, montanhas e rios. Eles
inventam kits superinteressantes para nos manter nesse local,
alienados de tudo, e se possível tomando muito remédio. Porque,
afinal, é preciso fazer alguma coisa com o que sobra do lixo que
produzem, e eles vão fazer remédio e um monte de parafernálias para
nos entreter. (KRENAK, 2019a, p.11).

O autor contrapõe a visão indígena andina “Sumak Kawsai” (bem viver) à visão
europeia do bem-estar social. O que diferencia a concepção indígena seria a ausência
da noção, implícita na ideia de bem-estar social, de que a terra está aqui para ser
consumida e transformada em mercadoria para o bem-estar dos humanos,
considerada a espécie escolhida pela criação. Na concepção indígena a terra não está
aqui para nos servir, tudo é troca, relação. O dado mais marcante do pensamento dos
brancos está, em suas palavras, no fato de que “nós achamos que podemos consumir
a Terra. Essa é a ideia do bem-estar. Para o bem-estar humano, a gente pode
consumir a Terra”, e “mesmo quando utilizamos a ciência e a tecnologia, o propósito
é aumentar a capacidade de exaurir esse organismo” (KRENAK, 2020b, p.13).

Em sua análise, é preciso “despertar, porque, se durante um tempo éramos nós,


os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos
sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não
suportar a nossa demanda” (KRENAK, 2019a). Assim, seria preciso deixar de lado
uma perspectiva que vê a vida como escassez, que é a marca da humanidade cristã-
capitalista, e abrir-se para a abundância de Gaia.

Todas as histórias antigas chamam a Terra de Mãe, Pacha Mama,


Gaia. Uma deusa perfeita e infindável, fluxo de graça, beleza e fartura.
Veja-se a imagem grega da deusa da prosperidade, que tem uma
cornucópia que fica o tempo todo jorrando riqueza sobre o mundo…
Noutras tradições, na China e na Índia, nas Américas, em todas as
culturas mais antigas, a referência é de uma provedora maternal. Não
tem nada a ver com a imagem masculina ou do pai. Todas as vezes
que a imagem do pai rompe nessa paisagem é sempre para depredar,
detonar e dominar (KRENAK, 2019a, p.30).

O autor faz referências as diversas culturas, em especial as culturas nativas da


América, em que a terra “continua sendo reconhecida como nossa mãe e provedora
em amplos sentidos, não só na dimensão da subsistência e na manutenção das
nossas vidas, mas também na dimensão transcendente que dá sentido à nossa
existência” (KRENAK, 2019a, p.22).

Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias,


cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos
nessa humanidade. Nós não somos as únicas pessoas interessantes
no mundo, somos parte do todo. Isso talvez tire um pouco da vaidade
dessa humanidade que nós pensamos ser, além de diminuir a falta de
reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que
fazem essa viagem cósmica com a gente. (KRENAK, 2019a, p.15).

O pensamento indígena concebe o mundo como povoado de seres-sujeitos,


todos dotados de alma/espírito. Para Krenak, o pensamento colonial moderno, ao
retirar “o sentido” dos demais existentes “considerando que isso é atributo exclusivo
dos humanos” terminou por liberar “esses lugares para que se tornem resíduos da
atividade industrial e extrativista” (KRENAK, 2019, p.24-5).

No Equador, na Colômbia, em algumas dessas regiões dos Andes,


você encontra lugares onde as montanhas formam casais. Tem mãe,
pai, filho, tem uma família de montanhas que troca afeto, faz trocas. E
as pessoas que vivem nesses vales fazem festas para essas
montanhas, dão comida, dão presentes, ganham presentes das
montanhas. Por que essas narrativas não nos entusiasmam? Por que
elas vão sendo esquecidas e apagadas em favor de uma narrativa
globalizante, superficial, que quer contar a mesma história para a
gente? (KRENAK, 2019a, p.10).

Considerações finais

A “colonialidade do saber” e o eurocentrismo (LANDER, 2005) impôs o modo de


existência dos brancos e suas formas de pensamento e conhecimento como as únicas
perspectivas existentes e válidas sobre o mundo. Até recentemente, o pensamento
indígena continuava sendo visto pela ciência dos brancos como inferior, uma vez que
produzido por povos “primitivos” e “selvagens”. Recusava-se ao pensamento indígena
as “características de uma verdadeira imaginação teórica”, e mantinha-o
“perpetuamente na antessala do verdadeiro conhecimento (a Ciência)” (VIVEIROS DE
CASTRO, 2018, p.71).

No momento em que se reivindica a descolonização do pensamento nessa terra


nomeada América Latina (LANDER, 2005), pensamos ser fundamental que a
descolonização represente, principalmente, um olhar sobre o pensamento que já
florescia por aqui “muito antes de esta “quarta parte do mundo” ser batizada de
América e, portanto, bem antes de nela ser pensada uma América Latina” (Perrone-
Moisés, 2006, p.242). O pensamento indígena, destaca a antropóloga, pode ser
considerado “uma visão da América Latina, já que também está nela”, mas “a
extrapola, tanto no tempo como no espaço. No tempo, porque a antecede e continua
vivendo nela. No espaço, porque seu solo é o continente” (Perrone-Moisés, 2006,
p.242).

No Brasil, o diálogo com o pensamento indígena ainda está no início. Apesar


disso, as vozes indígenas presentes no debate intelectual e político já foram suficientes
para que possamos apreender sua potência cosmopolítica, descolonizadora e
revolucionária.

O pensamento indígena retrata uma cosmovisão completamente distinta da


ocidental, e traz uma visão do humano que se opõe à formula ocidental “homem versus
natureza, ou cultura versus natureza, paradigma central do Ocidente” (DORRICO,
2019, p.243). No momento em que percebemos a farsa emancipatória da modernidade
(DUSSEL, 1993), as injustiças e desigualdades que perpassam a visão capitalista-
cristã da existência, mostra-se urgente descolonizar nosso imaginário e repensar
nossa relação com o mundo para que possamos continuar desfrutando da vida na
terra.

Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a


Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos, não só aos que em
diferente graduação são chamados de índios, indígenas ou povos
indígenas, mas a todos (KRENAK, 2019, p.24-5).
Referências bibliográficas

BARRETTO FILHO, H. T. Bolsonaro, Meio Ambiente, Povos e Terras Indígenas e de


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COHN, SÉRGIO (ORG.). AILTON KRENAK. SÉRIE ENCONTROS. RIO DE JANEIRO:


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