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EDITORIAL

A escolha do tema da opressão racial se deu no contexto do debate suscitado pela votação
do projeto de Estatuto da Igualdade Racial. Em clima eleitoral, pareceu que, finalmente, seria
aprovado pela Câmara Federal. O projeto contava formalmente com o aval do presidente do
Senado, Renan Calheiros, e já havia passado nesta Casa. Mas, no momento da decisão final, foi
atacado por uma intensa campanha dos meios de comunicação, apoiada por acadêmicos, artistas
e juristas. Um manifesto contrário à aprovação do Estatuto foi entregue ao Congresso.
De nada adiantou a manifestação do movimento favorável ao Estatuto, que também entregou
um manifesto aos parlamentares. A saída diplomática foi adiar, sem data, a votação.
Verificou-se a montagem de um jogo de cena do lado do governo e do Congresso. E também
muita ilusão por parte daqueles que promoveram o Estatuto da Igualdade Racial. Mas,
independentemente do seu teor e das ilusões que se despertaram na possibilidade de o Estado
dar um passo institucional para paulatinamente reduzir a discriminação racial, o problema
continua de pé.
O que queremos com a discussão sobre a discriminação racial? Queremos apenas diminuir e
amenizá-la? Ou queremos erradicar toda forma de discriminação?
Entendemos que estas indagações são de fundo. Muito se discutiu em torno de questões como se
há ou não raças, se há ou não uma dívida histórica do país com os afrodescendentes, se cabe ou
não mover “ações afirmativas” em favor dos negros (e índios), se ainda prevalecem ou não as
teorias raciais do século XIX etc. Mas evitaram colocar as perguntas acima.
Nesta revista, os artigos demonstraram preocupação em revelar as raízes da desigualdade e dos
preconceitos raciais? Procuraram se colocar pela extinção de toda forma de opressão? Cabe aos
leitores observarem, caso achem pertinentes e necessárias tais questões.
O Estado brasileiro se declara multi-racial e tem como crime a discriminação racial. No
entanto, persiste a opressão racial. Não faltam disfarces para acobertar discriminações em
situações como, por exemplo, na seleção do trabalhador, na distribuição do tipo de trabalho,
na diferenciação salarial, no atendimento médico-hospitalar, na escola, nos tribunais, no
atendimento em geral etc. Verificamos que, quanto mais pobres são os negros - que é a
grande maioria -, mais acentuada, aberta e violenta é a discriminação. Está ai por que não
devemos limitar as reivindicações aos interesses de uma pequena camada de classe média de
afrodescendentes, que vem se formando nas últimas décadas.
O mar de discriminação nasce e se encontra nas relações de propriedade e de trabalho. E não
tem como ser esvaziado com a canequinha das políticas governamentais.
Ao contrário, coloca-se a necessidade de se eliminar toda discriminação. Não é possível desvincular
a situação da população negra da classe social a que pertence e muito menos separá-la da outra
metade da população branca explorada e pobre. Não se pode ignorar que os antigos escravos negros
constituíram a base de formação da classe operária no Brasil. Por isso, faz parte dela a maioria dos
afrodescendentes, que suportam também a opressão racial.
É impossível abolir a discriminação no capitalismo. Trata-se de uma luta histórica contra
a opressão racial, que não se limita ao Brasil. Ela se manifesta inclusive na África negra.
Ampliamos a visão para termos consciência do significado da luta histórica contra a opressão
racial. Esperamos que este número da Revista PUCviva contribua para ampliar a consciência e
para avançar o movimento social contra toda forma de opressão.
Erson Martins de Oliveira

PUC VIVA REVISTA

1
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2A TESOUREIRA: Carlos Alberto Shimote Martins
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CONSELHO EDITORIAL: Erson Martins de Oliveira; Hamilton Octavio de Souza;


Priscilla Cornalbas
EDITOR GERAL
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ÍNDICE
POR QUE FESTEJAR ZUMBI,
4 SE SÃO TANTOS ZUMBIS POR AQUI?
EMANOEL ARAÚJO

TEMPOS E HISTÓRIAS SILENCIADOS


6 MARIA ANTONIETA ANTONACCI

NEGRO NO BRASIL
12 HEBER FAGUNDES

ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL:


21 COMO ENFRENTAR A DISCRIMINAÇÃO?
ERSON MARTINS DE OLIVEIRA

TESTEMUNHOS DE POÉTICAS NEGRAS:


26 DE CHOCOLAT E A COMPANHIA NEGRA DE REVISTAS NO RIO DE JANEIRO
NIRLENE NEPOMUCENO (BEBEL)

A TERRA E OS DESTERRADOS:
35 O NEGRO EM MOVIMENTO
DAGOBERTO JOSÉ FONSECA

O ORFEÃO E A INGOMA: PEDAGOGIAS NEGRAS NAS


43 PRIMEIRAS DÉCADAS DO BRASIL REPUBLICANO
HENRY DURANTE

REDUZIR PARA QUEM?


53 GIVANILDO MANOEL DA SILVA

A FACE NEGRA DO RIO GRANDE DO SUL


59 ÊNIO JOSÉ DA COSTA BRITO

A IMPORTÂNCIA DO MUSEU AFRO


71 BRASIL NA REINTERPRETAÇÃO DA HISTÓRIA, DA ESTÉTICA E DA EDUCAÇÃO DOS NEGROS BRASILEIROS

LUIZ CARLOS DOS SANTOS

CENTRO DE ESTUDOS CULTURAIS AFRICANOS E DA DIÁSPORA


73 (CECAFRO/PUC-SP)
MARIA ANTONIETA ANTONACCI

TRAJETÓRIAS INTELECTUAIS NEGRAS: AS ROTAS DE BEATRIZ


76 NASCIMENTO
ALEX RATTS

NEGRA, MULHER, POBRE E CONSAGRADA


83 DAGOBERTO JOSÉ FONSECA

EDUCAÇÃO INFANTIL: CONSTRUÇÃO DE UMA EDUCAÇÃO


90 ANTI-RACISTA
LUCIMAR ROSA DIAS

A LINHA DE COR NA LITERATURA DE CHARLES CHESNUTT


104 ORISON MARDEN BANDEIRA DE MELO JÚNIOR

DUBLÊ DE OGUM
112 CIDINHA DA SILVA

ANEXO
117 “TESES SOBRE QUESTÃO NEGRA”

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POR QUE FESTEJAR ZUMBI, SE SÃO
TANTOS ZUMBIS POR AQUI?
Emanoel Araújo

Artista Plástico e Curador-Chefe do Museu Afro Brasil

Bravo! Dia 20 de Novembro é o Dia cos? Dos cristãos? Dos afro-descendentes?


da Consciência Negra, dedicado também a De quem?
Zumbi dos Palmares, que resistiu bravamen- Será esse Dia da Consciência Negra
te com seu povo formado de negros, índios e aquela forma patética e hipócrita da socie-
mamelucos na Serra da Barriga, em Alagoas, dade brasileira passar adiante a resolução dos
no século XVII. problemas criados pelos próprios donos da
Bravo! Hoje celebramos o Zumbi dos terra e do poder, na sua formação social in-
Palmares, mas celebramos o Zumbi morto justa e excludente?
pelos canhões do paulista Domingos Jorge Mas, afinal, por que festejar Zumbi e
Velho, que reduziu em cinzas o Quilombo não lutar pelas cotas nas universidades, no
dos Palmares, aquele reduto de vítimas da trabalho, e acabar com o trabalho escravo vi-
escravidão e das atrocidades dos aristocratas gente ainda hoje?
do açúcar do Nordeste Brasileiro.
Zumbi? Zumbi foi Cartola, na sua
Bravo! Dia 20 é o Dia da Consciên- genialidade musical, envolto na mais bran-
cia Negra – mas consciência de quem? Dos ca miséria das casas sem reboco, de tijolo
negros? Dos índios? Dos mulatos? Dos bran- aparente.

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POR QUE FESTEJAR ZUMBI...
Zumbi? Zumbi foi Milton Santos, o de Vila Matilde, Leci Brandão, Elza Soares,
grande doutor da Sorbonne, posto de lado Zezé Mota, Ruth de Souza, Nelson Sargen-
pela USP, Universidade de São Paulo. to, Oswaldo de Camargo, Sebastião Arcanjo,
Zumbi? Foram João Cândido, Luís Vicentinho, Joaquim Barbosa, Mãe Filhinha,
Gama, Teodoro Sampaio, Clementina de Je- Rappin Hood, Jéferson D.
sus, Pixinguinha, Carolina Maria de Jesus, o Zumbi são todas as crianças, a maior
beato José Lourenço, Henrique Dias, Grande parte delas negras, que usam crack nas ruas
Otelo, Mãe Senhora, Dona Menininha do de São Paulo, envoltas em trapos de dar
Gantois, Iya Olga do Alaqueto, André Rebou- vergonha a qualquer cidadão civilizado do
ças, José do Patrocínio, Paulo Colina, Estevão mundo.
Silva, Rafael Pinto Bandeira, Juliano Moreira,
Benjamin de Oliveira, Solano Trindade, Guer- Zumbi? Dia da Consciência Negra?
reiro Ramos, Arthur Timóteo, João Timóteo, Ora, tenham vergonha da exclusão, simbó-
Heitor dos Prazeres, Antonio Francisco Lisboa, lica e concreta, que se criou e que sustenta
Cruz e Souza, Manuel Querino, Paula Brito. o Brasil!

Zumbi são todos os negros, índios, Ou será que a célebre frase proferida
mulatos, brancos, cristãos e afro-descenden- pelo Padre Antonio Vieira, justificando a
tes das periferias do Brasil, das terras invadi- necessidade de se destruir o Quilombo dos
das pela velha ganância que sempre domi- Palmares, permanece?
nou este país. “O Brasil tem seu corpo na América e
Zumbi são ainda os que hoje ainda sua alma na África... Sem Angola não há ne-
lutam pela liberdade: Mestre Didi, Nenê gros. E sem negros não há Pernambuco...” P
uc

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TEMPOS E HISTÓRIAS SILENCIADOS
Maria Antonieta Antonacci

Profa. da PUC-SP e Coordenadora do CECAFRO - PUC-SP

A expansão da modernidade iluminista, Às Áfricas ao sul do Sahara foram atribuídos


com o pensamento científico e o conhecimen- caracteres a-históricos, sendo representados a
to letrado sob a égide da formação do Estado- região e seus povos pela ausência frente aos
nação na Europa marcou profundamente o paradigmas eurocentristas: sem códigos de
Ocidente e suas formas de olhar outros tem- escrita, sem arte, sem cultura, sem história e
pos, espaços, povos e culturas. As lentes de seus pelo “não ser do escravo”.
filtros culturais condicionaram leituras e lite- Chama atenção que, em documento
raturas, crenças e corpos a suas concepções de produzido em 1823, por homas Clarkson,
movimento, progresso, civilização e história. para apresentar à Câmara dos Comuns argu-
Expressando este domínio nos modos mentos contrários ao tráfico negreiro, con-
de pensar e interagir socialmente, Hegel, em forme interesses então emergentes entre in-
1830, na publicação de sua Filosofia da Histó- gleses, denunciou os “gemidos dos africanos
ria, considerou que a “África não é uma parte por causa do tráfico homicida”. Com base
histórica do mundo. Não tem movimentos, em pesquisas de relato de viagens de Mungo
progressos a mostrar (...) nós os vemos hoje em Park (escocês que realizou uma das primeiras
dia como sempre foram” (Hegel, 1995: 174). viagens às Áfricas no começo do século XIX)

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TEMPOS E HISTÓRIAS SILENCIADOS
e do Livro de Evidências (publicado por or-
dem do Parlamento Inglês com depoimentos
de muitos que estiveram em África), recha-
çou notícias que vinham e continuam “sendo
espalhadas em público no sentido de serem
os africanos criaturas d´outra espécie e que
tendo a África sido descoberta há uns pou-
cos de centos anos, os seus habitantes não
tem feito, como outros povos, progressos ne-
nhuns em civilização”. Têm-se, assim, fortes
indícios que formas de desmoralizar e de-
sumanizar os africanos, como de barbarizar
suas formas de poder, costumes e tradições
dorias traficadas e tangidas ao trabalho es-
eram recorrentes na Europa, na construção
cravo, ainda que passados séculos. É possível
de senso comum em torno de primitivismo e
rever tanto o aparente imobilismo histórico
isolamento dos povos do continente negro.
a que foram destinados, como ultrapassar
Significativamente, cento e nove anos imperativos nas relações de senhores versus
após as imprecisões e negligências de Hegel escravos.
em relação à África, em 1963, no limiar das
Na perspectiva do conflituoso pro-
independências de países africanos, Sir Tre-
cesso de escravização de africanos no Brasil,
vor-Hoper, frente a um auditório em Lon-
evidenciando que transgrediram, de múlti-
dres repleto de interessados em África, de-
plos modos, o “ser escravo”, o universo dos
negou mais uma vez o direito à história e ao
folhetos de literatura oral no Nordeste pro-
passado para os africanos, reafirmando “não
duziu, além de epopéias de lutas2, imagens
haver uma história da África subsaariana, mas
que narram rebeldias à condição escrava. No
tão-somente a história dos europeus no conti-
mural de Lênio Braga, na rodoviária de Fei-
nente, porque o resto era escuridão, e a escuri-
ra de Santana (BA), sob o latente corpo-a-
dão não é matéria da história.”
corpo de letra, voz e imagem constituinte da
Entretanto, práticas administrativas literatura oral de folhetos, este artista gravou,
de metrópoles européias, como a de Portu- em 1967, um painel de culturas populares
gal em relação ao governo de Luanda, des- nordestinas3.
de 1906, promovendo Questionários acerca
Neste, pintou em azulejos a xilogravu-
de usos e costumes gentílicos da província de
ra de Lucas Evangelista ou Lucas de Feira,
Angola, realizava inventários sobre comércio,
africano fugido da Fazenda Saco do Limão,
cerimônias, crenças, vestuário, habitações,
na primeira metade do XIX. Como “figu-
línguas, instrumentos musicais e “tradições
ra controversa” – cangaceiro salteador para
orais em relação a sua história”1.
uns, “para outros um negro que se recusava
Recorrendo a diferentes registros tex- a viver como escravo” –, juntou-se a outros
tuais, imagéticos e sonoros, como narrativas, fugitivos para roubar e distribuir “cabras,
memórias e performances de africanos, torna- cabritos, galinhas”4. Morto em 1849, após
se possível contestar discursos, imaginários, delação de outro africano fugitivo, que assim
práticas e ideologias dos chamados “tempos obteve perdão de seus “crimes”, a experiência
modernos”, que negaram historicidade às vivida por Lucas Evangelista e narrada, entre
Áfricas negras, como culturas, formas de ser outros textos, no ABC de Lucas, retoma lu-
e resistir de africanos escravizados no Brasil. tas cotidianas em torno da escravização de
Concentrando atenções e desenvolvendo lei- africanos no Novo Mundo. A imagética de
turas na contra-mão de pressupostos domi- seu corpo sensibiliza pelas brechas que abre
nantes, é possível acompanhar africanos da ao nosso olhar, conforme a figuração deste
diáspora para além da condição de merca- “Dragão da Maldade” (ver figura acima).

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TEMPOS E HISTÓRIAS SILENCIADOS
Com instrumentos de seu ofício de Seu livro Made in Africa, resultado de
ferreiro nas mãos, em jogos de revelar e es- viagem à África em 1963, para estudar há-
conder imagens, Lucas de Feira foi represen- bitos alimentares, constitui fonte fundamen-
tado em corpo de animal híbrido: rabo de es- tal para refutar construções ideológicas da
corpião, animal do mato que espreita e ataca modernidade européia, como para acompa-
de tocaia, de improviso; corpo de serpente,
nharmos rotas e circuitos que atravessaram
que sobrevive interligando terra e água; ca-
as Áfricas e que estabeleceram conexões en-
beça de arara ou papagaio, aves falantes que
memorizam e repetem palavras, interrogan- tre Brasil e África, “demonstrando
demonstrando influências
do. Para além de seu aspecto físico, importa recíprocas, prolongamentos, interdependências,
pensar nas simbologias transmitidas por este contemporaneidade motivadora nos dois lados
corpo de escravo fugido e morto, acompa- do Atlântico e do Índico.”
nhando zonas claras e escuras da imagem em Em sua forma peculiar de cronista,
que, na contraposição de corpo negro, ga- que tudo anota sem desprezar coisas mi-
nham destaque os sombreados esfumaçados údas e aparentemente irrelevantes (Ben-
de quem, tomando a palavra, forja o fogo da jamin,1987:223), os textos de Cascudo
inconformidade em luta pela preservação de guardam potencial para descobrimentos de
transparentes asas de liberdade. Transfigu- Áfricas em Brasis impregnados por matri-
rado em dragão – “Dragão da Maldade” –, zes de universos culturais africanos. Escrito
Lucas de Feira encarnou lutas de africanos para evidenciar a unidade “Brasil n’África e
em desiguais e criminalizados conflitos, re- África no Brasil” (Cascudo, 2001), seu livro
forçando a insubmissão a relações escravagis- contém abordagens e observações de grande
tas e reiterando conflitos no fazer-se de afri- atualidade, adensando e diversificando apro-
canos em trabalhadores escravizados contra ximações das duas margens atlânticas para
suas formas de submissão, ontem e hoje, nos além das formuladas por Pierre Verger, Ro-
Brasis, Américas e Áfricas. ger Bastide, Gilberto Freyre e outros.
Importa reter, a partir desta imagem, Nos rastros de alimentos africanos,
a cosmogonia de culturas africanas que não Cascudo mapeou rotas e circuitos que atra-
“fatiaram o mundo em reino humano, vege- vessaram as Áfricas e que fizeram parte da di-
tal, animal e mineral”, seguindo reflexões de
áspora de povos africanos no Novo Mundo,
Hampathê Ba; como também está subjacente
trazendo significativas contribuições para es-
na xilogravura a articulação dos quatro ele-
tudar contatos e incorporações entre povos
mentos fundamentais de culturas humanas
e culturas constituídas a partir da formação
– água, terra, fogo e ar. Em ancestrais culturas
do Atlântico Sul, abalando reducionismos de
africanas, o ar é representado por fumaça, que
diferentes naturezas em representações das
nesta assumida configuração de dragão advém
Áfricas negras.
de palavras de fogo, enunciando o poder da
palavra em matrizes culturais de povos cons- Centrando-se na banana, “o mais po-
tituídos em tradições de oralidade. No exercí- pular dos vocábulos africano no Brasil”, acom-
cio de seus falares, africanos em diáspora no panhou seu itinerário como expedicionário
Brasil expressaram sua humanização, preser- em missão de descoberta de um continente
vando transparentes asas de liberdade. velado. E revelou:
Em outras perspectivas, o cronista e A banana não é nativa do continen-
folclorista Câmara Cascudo, por seus estu- te africano, sendo recebida da Índia
dos, comentários e considerações, constitui-se através da África Oriental ou pelo
em importante referência para aproximações Sudão, descida do Egito e vinda pe-
àquelas lutas para evidenciar a falta de funda- los caminhos do Níger e do Zaire
mentos nas avaliações e conclusões dos cha- para as demais regiões do poente,
mados “iluministas” dos tempos modernos. do Camerum à União Africana.

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TEMPOS E HISTÓRIAS SILENCIADOS
E passando da Contra-Costa do mesmo sem pensar em contínuas negocia-
Atlântico, pelas Rodésias para An- ções entre senhores e escravos, Cascudo re-
gola, quando a Guiné a teria pelas gistrou autorizações de administradores da
vias das populações ao longo dos metrópole e da colônia para o exercício de
grandes rios do oeste negro. práticas culturais proibidas em Portugal e
em suas possessões africanas. Em ambiente
No rumo da banana para o Brasil,
brasileiro, o poder português “era compreen-
acrescentou que o “grande entreposto entre
sivo e tolerante para os escravos consentindo-
Congo e Portugal era a ilha de São Tomé”, de
lhes as trovejantes noites de batuque, os bai-
onde a banana chegou ao Brasil. Desde 1569 los, formalmente proibidos pelas Ordenações
há registro de bananeiras de São Tomé na do Reino.” Daí inventariar raízes africanas
Bahia, “competindo com as pacovas nativas.” em nosso patrimônio cultural, como “nas
Como base alimentar de africanos no Brasil, danças ginásticas do bambelô, coco-de-roda,
que preferiam as bananas de sua terra, assim zambê, no jogo de capoeira vinda de Ango-
nomeadas a partir da Guiné, já que eram co- la e ampliada no Brasil, nos cantos e, para o
nhecidas por denominações locais em outras sertão, no ‘desafio’ que se nacionalizou, pro-
regiões, Cascudo ainda concluiu que esta fru- funda e medularmente.” Reafirmando ques-
ta se impôs como tal e “ficou sendo banana, tões sinalizadas nas pelejas orais, este elenco
essencialmente no Brasil. Daqui é que o nome se lúdico amplia o campo de argumentações
espalhou e não da África do século XVI.” Nessa para pensarmos nos significados políticos
simples trajetória da banana entre Índia, Áfri- e estéticos de festas, danças e ritmos que,
ca, Brasil, articulou caminhos e caravanas de plasticamente, configuram corpos e rituais
muitos tempos e espaços, revendo perspecti- como monumentos históricos na transmis-
vas de isolamento da África. Voltado para a são de tradições, crenças, valores.
“normalidade africana”, para o que populares
Por diferentes caminhos, narrativas
povos bantos comem em seus cotidianos, ano-
orais e visuais evidenciam que memória e
tações de Cascudo evidenciaram laços entre
corpo constituem-se indissociavelmente en-
África e Brasil para além do tráfico de escravos
tre povos tributários de matrizes de oralida-
ou de recortes do continente negro.
de. Suas tradições, memorizadas em presen-
Entre outros enfoques, Cascudo ça de corpos, materializam-se em diferentes
concentrou-se em “autos populares brasi- gêneros não-verbais de narratividade ineren-
leiros, de inspiração negra”, captando en- tes à constituição de corpos enquanto arqui-
trelaçamentos culturais convergentes em vos vivos capazes de emitir “vozes do corpo”,
termos de “motivos, cenas, sketches sucessivos prolongadas em artefatos de suas culturas
encadeando enredo dramático, intercalado de materiais. Gestos, instrumentos sonoros,
bailados, cantos uníssonos e mesmo elementos ritmos, adereços, vestes, nutrientes, medica-
históricos” constituintes de reminiscências mentos, inscrições e outras expressões corpó-
de Congos ou Congada. Entre as chama- reas perenizam rumores de culturas latentes
das “heranças” africanas, nossas atenções em dobras da dominante civilização ociden-
voltam-se para “as vozes infalíveis” pelo tal cristã. “Trabalho alquímico da história: ela
Brasil inteiro, norte, centro e sul. Vocali- transforma o físico em social; (...) ela produz
dades inerentes a performances corporais, imagens de sociedade com pedaços de corpos”
festas, danças e instrumentos musicais. In- (CERTEAU, 1996: 256).
gredientes para alimentar – de memórias,
Em relação a memórias corporais, re-
tradições e crenças – corpos escravizados
latos de Made in África referem-se a danças
que sobreviveram reinventando suas práti-
e suas proibições na metrópole, como o lun-
cas e representações culturais. du, “tão insistentemente bailado que o rei D.
Nessa perspectiva de atualização de Manoel o proibiu, ao lado do Batuque da Cha-
costumes e tradições africanas no Brasil, ranga.” A época em que “esta dádiva coreo-

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TEMPOS E HISTÓRIAS SILENCIADOS
gráfica e melódica de Angola” apareceu no para a patuléia devota. Mas à vol-
Brasil, “não será possível apurar.” Mas, para ta de 1880 já não era m
mais
ais bailado
melhor sentirmos circuitos África/Brasil, em muito conhecido e sim canção, no-
dinâmicas de adaptações, rejeições e incor- tada por Silvio Romero. Foi essa a
porações de gestos e sentidos que conjugam forma sobrevivente.
práticas culturais de diferentes tempos, es-
paços e relações históricas, são significativas O alívio de Romero em relação à so-
suas análises do lundu no Brasil. brevivência do “lundu cantado, a canção do
lundu, que ganhou popularidade no plano da
Derramou-se o Lundu pelo Brasil e simpatia”, é exemplar de ambigüidades das
a memória bailarina nacionalizara-o elites brasileiras diante de hábitos, crenças e
sem recordar os bamboleios iniciais modos de ser africanos. A profundidade des-
em Luanda e, com variantes e acrés- tes desencontros entre grupos culturalmen-
cimos no dinamismo das ancas, do te distintos pode ser avaliada numa incisiva
Zaire ao Cunene, não exilando Ca- afirmativa de Silvio Romero, em 1907, em
binda na prática do saracoteio. tom categórico: “É impossível falar a homens
que dançam” (Romero, 1979: 57).
Tão minuciosa descrição da historici-
dade e movimento do lundu em trajetória Cabe ter presente que, nas memórias
pelas Áfricas e Brasis esbarra nos silêncios e de Equiano, feito prisioneiro por traficantes
na rigidez da modernidade em relação à Áfri- de escravos em sua aldeia ibo, no interior da
ca e seus vibrantes habitantes. A escrita poé- Nigéria, em 1745, depois batizado Gusta-
tica de Câmara Cascudo acompanhou o rit- vus Vassa, lembrando dias de festas, júbilo
mo do Lundu, sugerindo prováveis exercícios e bailes, com danças de homens, mulheres
etnográficos de danças com “dançarinas que e crianças, chegou a expressar: “Somos quase
agitam indecentemente os quadris”, conforme uma nação de dançarinos, músicos e poetas” 5.
Dicionário da Língua Portuguesa, de Morais
O reconhecimento da presença africa-
Silva, “senhor de engenho e dono de escravas e
na, de suas crenças e saberes, práticas e hábitos
escravos” em Recife (Cascudo, 2001: 57).
culturais, na contínua constituição de nossos
Definições dessa natureza permitem patrimônios, oscilaram entre intolerâncias,
avaliar exercícios de controle sobre corpos desqualificações, purificações, folclorização de
e instrumentos musicais em diferentes mo- suas expressões, em exercícios para promover
mentos, mesmo porque, no Brasil do século perspectivas apaziguadoras e legados tranqüi-
XIX, o lundu era dançado em festas até de lizadores, como ocorreu com o Lundu. Bani-
“bodas e batizados”. Sendo alvo de referên- do como ritmo e dança, foi integrado ao pan-
cias por parte de viajantes estrangeiros, como teão da história nacional em função de seus
Rugendas, Ribeyrolles, Spix e Martius, tal aportes isolados para “nossa música”.
insistência sugere o potencial que seu ritmo
e dança devem ter assumido na constituição Mais do que outros escritores de sua
de identidades, preservação e transmissão de época, Câmara Cascudo expressou incômo-
costumes e tradições via movimentos, confi- dos e estranhamentos de elites brasileiras,
guração espacial dos dançarinos e mesmo de pactuadas com ideários modernistas euro-
sensibilidades corporalmente memorizadas. peus, frente a crenças e costumes da “escra-
varia” africana. Formas renitentes e articula-
Chama atenção que, inicialmente, “teria
doras de identidades negras, em termos de
apenas o ritmo”, dançado ao som de zabumba
modos de ser, viver, estar e fazer parte do
e rabeca. “Pelo XIX o Lundu possui melodias ca-
mundo visível e invisível de culturas de ma-
racterísticas quando anteriormente era só ritmo.”
trizes africanas foram maquiadas, fantasiadas
Ao final do século XIX, “Esse lun- ou perseguidas em termos de “africanismos”,
du estava despido das umbigadas que deveriam ser extirpados, mestiçados e
patuscas que davam sal e pimenta domesticados.

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TEMPOS E HISTÓRIAS SILENCIADOS
Como se situam essas elites hoje, fren- turas intelectuais, econômicas e políticas
te à forte e marcante presença e contribuição do Ocidente precisam rever particularis-
de afro-ascendentes em nosso patrimônio mos atribuídos aos africanos;
tangível e sensível?
- torna-se imperativo rejeitar o axio-
Esta questão articula-se, visceralmen- ma segundo o qual a ausência de
te, a outras, trazidas por pesquisas e refle- escrita equivale à ausência de civi-
xões recentes, como as de Simon Battestine, lização e cultura, para assimilar o
em Escritura e texto: contribuição africana princípio de que se faz necessário
(1997), ao apontar para a presença histórica pesquisar modos de expressão, co-
e linguística de noventa sistemas de escritura municação e preservação de memó-
entre povos e culturas africanas. Provocando rias particulares da África.
uma “mutação de paradigma”, redefinindo o
próprio quadro no qual o pensamento racio- Isso não somente muda formas de
nal ocidental movimenta-se, traz ao campo compreensão de realidades africanas, como
epistemológico mudanças até então insuspei- impõe descobrir sistemas de significação lin-
tas, exigindo retorno crítico sobre noções e güística que permitam rever os próprios con-
conceitos fundamentais, os quais resultaram ceitos de escritura e de texto.
em formas de poder excludentes e violentas Não por acaso, os grandes narradores
no contexto da civilização ocidental cristã. da história da diáspora negra e da saga de
Com suas evidências, colocou o mundo oci- africanos no Brasil são os blocos e escolas de
dental em confronto com três noções: samba. Sob ritmo e instrumentos de percus-
- a África não é, por excelência, o con- são nacionalizados, corpos negros performá-
tinente da oralidade e de “povos sem ticos desfilam em espaços e tempos regrados
escrita”; sob a lógica de três dias de folias carnava-
lescas ao ano. E viva nosso colorido Brasil
- mentes conscientes dos efeitos desastro- africano, sempre a espera ou na esperança de
sos da projeção sobre a África de estru- que “pro ano que vem sai melhor”. P uc

Notas
1 Cf. Garcia Zilhão, Paulo. “Henrique Galvão: prática política e literatura colonial”, dissertação de Mestrado, História,
USP, 2006.
2 Cf. o folheto O Rabicho da Geralda, cantoria de tradição oral que percorreu o nordeste e centro-oeste do Brasil..
3 PEREIRA, Rubens. “Painel do vasto sertão”, in Revista Légua & meia, n. 1, julho 2002, Feira de Santana, pp. 124/128.
4 Reportagem “A última feira”. Jornal Correio da Bahia, 17/11/2002, pp. 3/6
5 Gustavus Vassa. Los Viajes de Equiano. La Habana, Editorial Arte y Literatura, 2002, p.7.

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NEGRO NO BRASIL
Heber Fagundes*

Ex-Coordenador da Sede Nacional da Educafro

1. Da colônia à república: a história se, por mais de quatrocentos anos, a exploração


do negro se perpetua física, sexual e intelectual de um povo que his-
É impossível entender a situação da po- toricamente faz parte do berço da civilização.
pulação negra sem antes traçarmos sua trajetó- Antes de serem seqüestrados e trazidos para
ria. Segundo o historiador Jacob Gorender1, a Inglaterra, Portugal, Brasil e tantos outros paí-
escravidão e o tráfico de seres humanos tiveram ses, os negros, em suas aldeias, vilas, condados
início em 1443, com os portugueses, que trafi- e principados, eram reis, príncipes, sacerdotes,
cavam negros da África para as ilhas do Atlân- sábios... Sem contar que, ainda no continente
tico e para a Europa. Anos depois, essa pratica africano, muito antes dos portugueses chega-
foi oficializada pelo Papa Nicolau, por meio rem, eles já desenvolviam a técnica da pecuária
da bula papal. O papa, atribuído de seu poder e do artesanato, e foram eles os primeiros a do-
apostólico em 1492, autorizou o Rei de Portu- minarem a arte do fogo e do ferro.
gal a capturar todos os pagãos, sarracenos e an- Ao longo desses anos de servidão, os
ticristos do continente africano e, logo depois, negros foram proibidos de cultuarem seus
estendeu esses poderes ao Rei da Espanha. A deuses, de viverem ao lado de suas famílias,
partir desse momento, iniciou-se e perpetuou- praticarem suas culturas e, sem dúvida, uma
* Militante do Movimento Negro. Atualmente, é consultor de políticas públicas e ações afirmativas da Educafro e consultor
de diversidade racial no mercado de trabalho. Também é representante da Educafro no pacto da valorização da diversi-
dade da cidade de São Paulo. Formação em Administração de Empresas pela Universidade São Francisco (SP) e graduado
em Matemática na USP-IME, na modalidade de estudante especial.

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NEGRO NO BRASIL
das mais graves violações aos olhos da ética, da quer tipo de política afirmativa. Os negros
moral e dos bons costumes, sem tirar a relevân- nada mais possuíam, a não ser o direito de
cia das demais, foi a violação da liberdade do perambular pelas fazendas e cidades à procu-
ser humano. Essa é uma das mais cruéis viola- ra de emprego. O que fazer então, sem teto,
ções que um povo pode sofrer. Nesse período, sem proteção, sem dinheiro, sem emprego,
os negros foram submetidos às vontades e aos sem profissão, sem nada? As terras agrícolas
desejos de outras pessoas, “dos senhores”, que de fácil acesso tinham sido apropriadas e,
por sua vez tinham como princípio a negação nas áreas urbanas, o excedente populacional
do homem negro, : Os “senhores” haviam re- causava um sério problema social. Segundo
cebido como cultura religiosa a idéia de que Alencar em sua obra A História da Socie-
a submissão desses povos era uma forma de dade Brasileira (1986)2, a Lei nº 601/1850
purgar seus pecados e dá-los o direito ao reino (chamada Lei de Terras) impedia o acesso às
de Deus, visto serem pagãos. terras devolutas, a não ser através da compra.
No Brasil, esse processo teve início por Essa lei foi editada por pressão da burguesia,
volta de 1530, com a economia do açúcar, e temerosa de que os escravos viessem a traba-
se estendeu até 1888. Nesse período, muitas lhar para si e adquirissem terras livres que o
vidas foram desperdiçadas para a construção país possuía, conduzindo a uma escassez de
dessa nação. Na segunda metade do século mão-de-obra ou até mesmo à formação de
XIX, a economia açucareira passou por deca- uma classe média negra.
dência devido ao processo de industrialização Abandonados à própria sorte, os al-
do país. Com isso, a princesa Isabel, pressiona- forriados, como força de trabalho, eram tro-
da pelos abolicionistas e por alguns senhores cados pelos imigrantes mais “qualificados”
que não possuíam mais condições de manter profissionalmente. A suposta inferioridade
os escravos em cativeiro, decidiu promulgar racial, aliada a maus costumes, primitivismo
a famosa “Lei Áurea”. Essa lei, na verdade, cultural e paganismo, era usada para desa-
foi um dos marcos da exclusão do negro no creditar o negro e descartá-lo como força de
Brasil. Antes dela, outras foram criadas para trabalho. Tais mecanismos serviam também
afirmar a exclusão do negro no Brasil, como a para assegurar algumas posições já ocupadas
“lei do ventre livre”, que libertava os filhos dos pelos brancos, preservando seus privilégios.
escravos que nascessem a partir daquela data, Todos esses fatores contribuíam para que os
separando-os de seus pais e do lastro familiar, negros não fossem incorporados ao merca-
e a lei do “sexagenário”, que joga à mercê os do de trabalho, ou então para que se con-
negros que tivessem alcançado a idade de ses- tentassem com as atividades braçais, mais
senta anos, entre outras. humilhantes e de menor representatividade
Antes dessas supostas libertações, vá- perante a sociedade.
rios negros se revoltaram contra a situação Face a esses fatos, que marcaram nossa
em que viviam. Começaram então uma for- história, podemos afirmar que a atual situa-
ma de articulação e organização chamada de ção do negro no Brasil permanece a mesma.
quilombo, símbolo de luta e resistência do Temos de levar em consideração, porém, que
povo negro que teve como principal líder esse processo de servidão e exclusão sofreu
Zumbi dos Palmares. modificações em suas formas e métodos ao
Voltando ao processo de exclusão do longo dos últimos 118 anos. E são essas for-
povo negro, podemos dizer que declarar mas e métodos que vamos focar.
abolida a escravidão é dar apenas meia liber-
dade aos escravos. A abolição deu aos escra- 2. A situação do negro hoje no mercado
vos uma liberdade mais teórica do que real. trabalho
Retirando-os das senzalas, em troca da ilusó- O Processo de exclusão do negro no
ria carta de alforria, jogando-os no mundo mercado de trabalho brasileiro vem se arras-
dos brancos sem indenizações e sem qual- tando desde o início da colônia. No entanto,

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NEGRO NO BRASIL
sua evidência documental se deu quando o pal motivo para a consolidação do negro em
governo brasileiro patrocinou a imigração locais de trabalho de menor prestígio? Essas
européia na segunda metade do século XIX. perguntas são respondidas com a Pesquisa
Nesse momento, a população negra alforria- Mensal de Emprego – PME3, realizada pelo
da era de aproximadamente 90%. E já estava IBGE no mês de novembro de 2006.
em vigor a lei Eusébio de Queiroz, que de- Os dados da pesquisa revelam que, em
terminava proibição do trafico de escravos. setembro de 2006, entre os empregados com
Então, o que tínhamos era uma população carteira assinada no setor privado (os que
negra à disposição do processo de industria- possuem maior proteção legal e melhores re-
lização, que estava em pleno vapor, tanto no munerações), 59,7% são brancos e 39,8%,
Brasil como em outros países do mundo. Po- negros (aqui representados por pretos e par-
rém, o que vimos foi à substituição de um dos). Outro dado que evidencia o descalabro
povo que outrora construíra essa nação por social é o rendimento médio entre negros e
uma elite falida, predominantemente bran- brancos. A pesquisa destacou que os negros
ca, vinda de várias partes de Europa, princi- recebem, em média, R$ 660,45. Esse valor
palmente da Itália e de Portugal. A alegação representava 51,1% do rendimento auferido
de tal atitude governamental era de que os pelos brancos, que é de R$ 1.292,19. Essa
negros não possuíam experiência e nem qua- desigualdade entre negros e brancos persiste,
lidade para assumir os postos de trabalho. As mesmo nas comparações dentro do mesmo
perguntas que ficam são: naquele momento, agrupamento de atividade, ou de posição
alguém poderia dizer que possuía alguma ex- ocupacional e até mesmo com a faixa de es-
periência em trabalhos que acabavam de ser colaridade. Em algumas regiões do Brasil, os
criados? Será que essa alegação não se perpe- negros recebem 36,9% dos rendimentos em
tua até os dias de hoje? O mérito tão presen- relação ao dos brancos. Veja o quadro a baixo
te hoje em nossa sociedade não foi o princi- e compare as regiões pesquisadas:

Rendimento médio real habitualmente recebido no trabalho


principal segundo a cor ou raça - setembro de 2006

FONTE: IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de Emprego.

O que também podemos perceber nesta pesquisa é que existe um fosso ainda maior quan-
do analisamos esses dados por grupos de atividade e posição ocupada. Vejamos a tabela abaixo:

Rendimento médio real habitualmente recebido no trabalho principal


segundo a cor ou raça para a população ocupada masculina, com
18 a 49 anos de idade e 11 anos ou mais de estudo

FONTE: IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de Emprego.

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NEGRO NO BRASIL
Como podemos entender que um tra- grande influência na qualidade de vida das
balhador branco da área da construção, com pessoas, e estão ligados, direta ou indireta-
qualificações e grau de instrução iguais às de mente, à saúde ou doença de uma população.
um negro, possa ter mais do que o dobro Nesse caso, a população negra é a mais afetada
de rendimentos, ou para ser mais preciso, nesses acontecimentos. Quem possui a menor
105,6% a mais do que um trabalhador ne- renda? Tem a menor quantidade de anos de
gro? Isso é um atentado a Deus! Por outro estudos? Mora nos locais periféricos? Em sua
lado, uma coisa é certa! Esses dados derrubam grande maioria, encontra-se desempregada?
por completo a tese de que os brancos estão Sem dúvida, os negros desde sua chegada ao
mais bem empregados, em maior número e Brasil foram colocados em segundo ou tercei-
recebem o dobro do que os negros devido ao ro plano em nossa sociedade. Sem nenhuma
grau de instrução, ou seja, aos anos a mais política pública capaz de amenizar a situação
de estudo. Após essa pesquisa, posições desse em que se encontravam e se encontram até
tipo se tornam insustentáveis. hoje, essa população mais uma vez encabeça
Existe ainda uma lacuna muito grande estatísticas, só que desta vez nos óbitos, por
na relação entre brancos e negros quando doenças que poderiam ser facilmente diag-
confrontamos os dados entre as mulheres e nosticadas e tratadas.
os homens. Segundo a pesquisa, as mulheres Mesmo com toda essa vulnerabilidade
brancas ganham, em média, R$ 1.046,48; social e biológica, os negros ainda possuem
já as mulheres negras, R$ 532,65, quase uma alta propensão para adquirir doenças
a metade. Essa exclusão fica mais latente como anemia falciforme, hipertensão arte-
quando comparamos os rendimentos dos rial, diabete, deficiência de glicose-6-fosfa-
homens brancos com os rendimentos das to, desidrogenase, alcoolismo, toxicomania,
mulheres negras, que chegam a ser, em desnutrição, mortalidade infantil elevada,
algumas regiões, três vezes maiores. Essa é a abortos sépticos, anemia ferropriva, DST/
realidade do Brasil em que vivemos e que, AIDS, DORT/LER, relacionadas ao traba-
para o mundo, é uma democracia racial. lho, transtornos mentais, coronariopatias,
Como diz Sueli Carneiro4 num artigo insuficiência renal crônica, cânceres e mio-
escrito para o manual “O compromisso das mas, entre outros. Todas essas patologias
empresas com igualdade racial”, do instituto não demonstram uma fraqueza do povo
Ethos, “O Brasil foi capaz de construir o mito negro, mas sim uma particularidade. A sa-
da democracia racial, agora deve ser capaz nidade ou enfermidade das pessoas é algo
de desconstruí-lo”. Para isso, é preciso que a complexo e está relacionada a vários fato-
sociedade brasileira passe por uma profunda res, entre eles a questão do meio ambiente
transformação sócio-racial e comece a físico, social, político e cultural, relacionan-
investir na eqüidade, desconstruindo essa do-se todos com as condições biológicas de
desigualdade gerada por muitos anos. Ou
cada ser humano.
revertemos essa situação agora, ou teremos
um colapso sócio-racial no Brasil... Estatísticas apontam que a porcen-
tagem de mortes por causa de diabetes é
3. O descaso da população negra com 27% mais alta nos negros (pretos e par-
a saúde dos) se comparados aos brancos. Um tra-
Ao longo de toda sua história, o Brasil balho da pesquisadora Vera Cristina de
não foi capaz de investir em políticas públicas Souza5 para o serviço público de saúde da
que visassem à saúde de sua população mais cidade de São Paulo, com mulheres ne-
carente, em especial da população negra, que gras e brancas, revelou a prevalência de
em sua maioria encontra-se em condições su- miomas em 41,6% nas mulheres negras
bumanas. O nível de renda, o acesso à edu- contra 22,9% nas mulheres brancas, e a
cação, as condições de moradia, o excesso de reincidência dos miomas em 21,9% em
trabalho e a alimentação inadequada exercem negras, contra 6% nas brancas.

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NEGRO NO BRASIL
A hipertensão arterial é a principal Podemos observar que há uma série
causa de insuficiência cardíaca, insuficiência de patologias que são predominantes e em
renal e de morte súbita. Em geral, a pressão maior índice no povo negro. Porém, é de ex-
arterial é mais alta nos homens e é prevalen- trema importância destacarmos que boa par-
te em negros de ambos os sexos, em quem te delas seriam evitadas e ou controladas caso
aparece mais cedo, é mais grave e tende a ser houvessem políticas públicas focadas. Tam-
mais complicada. Uma em cada dez mulhe- bém podemos dizer que boa parte do que foi
res que engravidam pela primeira vez tem construído até agora no campo da saúde da
hipertensão. população negra no Brasil não foi realizado
Uma das doenças genéticas mais co- nas escolas de saúde. Uma parte dessas pes-
muns no Brasil, entretanto pouco conheci- quisas foram realizadas e desenvolvidas pe-
da, é a doenças falciforme, que afeta um em los grandes laboratórios farmacêuticos, que
cada mil cidadãos brasileiros. Estimativas visam à comercialização dos medicamentos.
da OMS (Organização Mundial da Saúde) Outra parte foi um trabalho que vem sendo
apontam que a cada ano nascem, no país, realizado desde o começo da década de 1990
cerca de 2.500 crianças portadoras. A desin- a muitas mãos, graças a um número redu-
formação é tão generalizada que, até poucos zido de pesquisadores(as) da área da saúde,
anos atrás, quando esse tipo de doença pas- que disponibilizaram dados para pessoas do
sou a ser detectada pelo teste do pezinho, os movimento negro interessadas nessa área. Ao
pais peregrinavam a hospitais e consultórios mesmo tempo, temos as pressões ao governo
em busca de respostas sobre os sintomas que brasileiro por parte do movimento negro e
o filho apresentava. A maioria dos falcêmi- de alguns pesquisadores.
cos no Brasil são afrodescendentes. A África No que diz respeito ao governo, vi-
é um dos locais de origem da doença e a bai- vemos uma verdadeira onda de boas inten-
xa renda agrava a situação, pois os tratamen- ções. Porém, poucas são as situações em que
tos são caros. Como é hereditária, a doença as propostas saem do papel para a prática.
falciforme não tem cura, mas tem contro- Para que isso aconteça, o governo deve ser
le. Os médicos ressaltam a importância do capaz de promover algumas iniciativas po-
diagnóstico precoce e de medidas preventi- sitivas que poderiam dar início a uma trans-
vas para minorar as complicações da doença, formação nesse quadro, que do nosso ponto
que pode levar à morte. de vista são: desenvolvimento de uma po-
Também temos uma das mais graves lítica nacional para a anemia falciforme;
doenças do mundo, que é a AIDS. Embora criação de espaços para a participação de
não exista nenhuma evidência científica de representantes da população negra na es-
que pretos e pardos sejam mais suscetíveis trutura do Ministério da Saúde como um
ao HIV, entre 2000 e 2004 a porcentagem instrumento que viabilize a formulação de
de homens negros com AIDS passou de políticas públicas voltadas para esta popu-
33,4% para 37,2%, e de mulheres negras, lação; planejamento familiar; cuidados re-
de 35,6% para 42,4%. Segundo dados da dobrados durante o pré-natal, e espaço para
PNUD6, o foco de pessoas portadoras do ví- entidades do movimento negro no Conse-
rus e/ou com a doença em desenvolvimen- lho Nacional de Saúde, entre outras.
to se dá nos locais mais pobres, onde falta Se o Brasil não investir na área da
informação e as condições de vida são as saúde, poderemos viver epidemias parecidas
piores possíveis. Segundo estatísticas tam- com as que acontecem em países do conti-
bém da PNUD, entre os 10% da população nente africano, que possuem PIB inferiores
mais pobre do Brasil, 70% são negros. Com aos dos estados do nordeste brasileiro. Um
isso, podemos afirmar que essa doença, se já país que possui quase 50% de negros (pretos
não tiver, terá o maior número de infecta- e pardos) em sua população não pode fechar
dos entre a população negra. os olhos para situações gritantes como essa.

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NEGRO NO BRASIL
Temos de convir que muito se fez, principal- lho em terras próprias e embranquecer o país
mente nos últimos anos, mas ainda não é o com a maciça entrada de europeus 9
suficiente para sairmos das últimas posições Com esse processo, os negros passa-
do ranking da OMS. ram a ter apenas duas alternativas: uma parte
4. O negro e o processo de habitação da população liberta foi expelida para as ci-
no Brasil dades, ainda em formação no Brasil, e outra
parte dirigiu-se para o campo, constituindo
A partir do século XVI, iniciou-se no as terras quilombolas. Tais terras, em sua
Brasil um grande movimento de revolta dos maioria, não possuem título de propriedade
negros contra o sistema escravista da época. até hoje. Assim, passaram a ser disputadas
Nesse momento, os negros já alforriados e por especuladores, grandes proprietários,
outros que acabavam de fugir começaram produtores e extratores de bens naturais, que
a se organizar em forma de comunidades, na maioria das vezes não reconhecem o di-
futuramente denominadas quilombos. Essa reito das populações que vivem há gerações
prática foi crescendo e tomando maiores nessas terras, e nem mesmo os seus direitos
proporções. Nos quilombos, todos viviam sobre elas. Sem contar que muitas dessas co-
uma forma alternativa de organização social, munidades vivem isoladas, distantes das ci-
na qual tudo era comum. As sobras de pro- dades e dos grandes centros.
dução eram vendidas aos brancos das vilas
A primeira e maior parte dos negros,
vizinhas. Os senhores escravistas da época,
assim que terminada a escravidão, foi expeli-
percebendo o crescimento dos quilombos
da para as cidades que estavam em formação.
e o poder econômicos dos negros, fizeram
No Rio de Janeiro, muitos foram para a bai-
um movimento político para que o gover-
xada Fluminense, Cidade de Deus e vários
no se manifestasse a respeito. Com isso, em
morros cariocas. Em São Paulo, se concen-
1850 o governo brasileiro decretou a Lei de
traram nos bairros distantes do centro, como
Terras. Segundo Chiavenato e Afonso Soa-
a Favela de Heliópolis e a Zona Leste, e ago-
res 7, em seu artigo O Negro Migrante, “... ra se amontoam em casas verticais, como os
a partir desta nova lei as terras só poderiam Cingapura, CDHUs e tantos outros. A in-
ser obtidas através de compra. Assim, com a tenção não é a de constranger ou até mesmo
dificuldade de obtenção de terras que seriam desqualificar as pessoas que residem nesses
vendidas por preço muito alto, o trabalhador locais, e sim constatar o que nossa sociedade
livre teria que permanecer nas fazendas, como fez com a população negra. Pois a falta de
escravos”. Para completar, o governo brasi- investimento e de políticas públicas para a
leiro deu para o exército a tarefa de destruir população negra recém-liberta fez com que
todos os quilombos e suas plantações e levar locais como os citados fossem a única alter-
os negros de volta às fazendas dos brancos. nativa para os negros.
O exército se ocupou nesta tarefa até 25 de
outubro de 1887, ou seja, um ano antes da Em todos os estados brasileiros te-
lei áurea. mos situações semelhantes, e o fim dessa
situação está distante, pois, enquanto não
Um fato que nos deixa muito intriga- se fizer uma reforma habitacional nesse
dos é que a Lei de Terras não entrou em vi- país, isso não findará. Não basta aumen-
gor para os imigrantes europeus. Por quê? E tar o valor destinado ao financiamento da
muito pelo contrário, ao invés de aplicar a lei Caixa Econômica ou até mesmos fazer no-
para todos, o governo brasileiro beneficiou vos conjuntos habitacionais nos cantos das
boa parte dos imigrantes com grandes peda- cidades. É preciso fazer um projeto de mi-
ços de terras, sementes e dinheiro 8. Isto vem gração reversa, ou seja, dar condições para
provar que a Lei de Terras tinha um objetivo as famílias do campo permanecerem no
definido: tirar do negro a possibilidade de campo e, para as que queiram voltar, que
crescimento econômico por meio do traba- tenham condições de iniciar uma nova ca-

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17
NEGRO NO BRASIL
minhada, seja em suas terras ou em terras veremos que sempre se dá nos bairros mais
governamentais, com promessa de venda. necessitados e periféricos de nossa sociedade,
Da mesma forma para as famílias da re- como o Capão Redondo, Jardim Ângela etc.
gião urbana, pois construir grandes con- Com isso, podemos perceber que ainda hoje
juntos habitacionais como os Cingapura as crianças negras são afetas por mecanismos
e CDHUs e não dar condições para essas similares aos da primeira constituição brasi-
famílias manterem esses espaços é simples- leira, pois nesses bairros a predominância é
mente tirá-los das favelas ou locais de risco de moradores negros.
e construir favelas verticais para amontoá-
Passando para o ensino superior,
los. Muito já foi feito, mas é preciso um
que é o gargalo para o acesso de negros e
pouco mais de vontade política para erra-
pobres, podemos analisar o porcesso de
dicarmos essa situação.
educação dos negros sob duas óticas. A
5. A educação no Brasil primeira é a inversão de valores, ou seja, os
alunos que estudam a vida toda nas escolas
Para muitos países, as pessoas são o públicas das periferias saem do ensino mé-
maior patrimônio. Se essas pessoas forem dio sem perspectiva alguma, e os poucos
pobres e iletradas, toda a nação sofrerá. O que conseguem perceber que a continui-
Brasil não percebeu isso desde o Descobri-
dade nos estudos será um fator decisivo
mento, e ratificou esse quadro em sua pri-
para sua ascensão vão para as universida-
meira Constituição, de 1824. Trouxe, em
des particulares. Há assim uma inversão de
seu conjunto de leis, a negação do acesso
valores, ou seja, os negros e pobres pagam
à educação para os negros, como afirma
as universidades particulares, enquanto os
Chiavenato “a legislação do império proibia os
ricos estudam nas universidades públicas.
negros de freqüentar as escolas, pois eram con-
siderados doentes de moléstias contagiosas” 10. Na O outro ponto, que para nós é um
verdade, o que os poderosos sabiam é que dos principais fatores, é o vestibular. Para en-
o acesso ao saber sempre foi uma arma de tendermos esse processo, vamos citar como
transformação social, econômica e política exemplo a Universidade de São Paulo – USP,
para um povo. Com este decreto, os racistas que por sua vez tem um dos mais cruéis e
do Brasil fizeram com que os negros tives- meritocratas vestibulares do Brasil. Segundo
sem apenas as senzalas como único refúgio Frei David11 em sue texto “Universidades e
de subsistência e ascensão. A população Ações Afirmativas”:
negra ficou oficialmente nos porões da
o vestibular é uma das formas de
sociedade. Este decreto agiu no Brasil até
corrupção disfarçada que setores da
1889, com a proclamação da República.
sociedade brasileira usam para pri-
Porém, na prática, esse decreto funciona
vilegiar alguns. Esse processo é sim-
até os dias hoje.
ples de se entender, basta fazermos
Algumas pessoas podem não perce- uma analogia com uma corrida e de
ber esse processo de exclusão dos negros na um lado colocarmos uma pessoa e
educação, porém ele existe e é latente, seja darmos acesso aos melhores trei-
no ensino fundamental, médio ou superior. nadores, alimentação balanceada,
Em algumas cidades e bairros do Brasil, mui- equipamento técnico e deixarmos a
tas crianças em idade entre 4 e 7 anos não outra abandonada à própria sorte,
conseguem se matricular nas creches e nas quem vai ser a vencedora?
pré-escolas. Quantas vezes vemos reporta-
gens em vários meios e comunicação sobre Com essa afirmação e com base em
os pais que precisam passar a noite na porta todos os dados citados, podemos afirmar
de escolas e creches para matricularem seus que, inconscientemente, nossa sociedade
filhos? Se analisarmos onde essa falta de in- esta vivendo sob o regime da primeira Cons-
vestimento em educação infantil acontece, tituição. Ora, uma sociedade que exclui os

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NEGRO NO BRASIL
negros e os pobres do acesso à educação não ceito racial e a exclusão do povo negro. Sem
está percebendo o mal que está fazendo para dúvida, esse segmento é um dos mais impor-
si mesma. tantes para nossa sociedade; no entanto, é
ele um dos mais preconceituosos. Não estou
5.1 - As políticas de ações afirmativas tirando a relevância que os demais possuem;
que estão gerando a mudança em nos- quero apenas ressaltar que, em um país onde
sa sociedade a educação e a leitura são alguns dos últimos
Mesmo com todas essas práticas ma- hábitos da população, o que fica como meio
quiavélicas que tentam fazer sucumbir a as- de informação e formação é a mídia televi-
censão dos negros e pobres desse país, hoje siva, que por sua vez segue rigorosamente
os movimentos negros e várias pessoas da os padrões estabelecidos por uma sociedade
sociedade conseguiram driblar esses meca- branca e preconceituosa.
nismos. Já estamos alcançando alguns frutos Desde seu nascimento, a mídia vem
representativos no processo de inclusão dos concentrando esforços para elucidar de ma-
negros na educação, seja no ensino funda- neira pejorativa e estereotipada a imagem do
mental, médio ou superior. É lógico que essas negro. Foi assim quando iniciaram as tele-
mudanças não se deram do dia para a noite. novelas. Nesse momento, os negros não se
Foram fruto de várias lutas e reivindicações viam representados em papéis de destaque,
do movimento negro, como por exemplo: a sempre como coadjuvantes (empregados, es-
criação do Fundeb – Fundo para o Desen- cravos, ladrões etc.). Até mesmo quando o
volvimento do Ensino Básico (que substitui papel principal era protagonizado por um(a)
o Fundef ), a lei 10.639, que dispõe sobre o negro(a), como, por exemplo, em Escrava
ensino da história da África no currículo es- Isaura, a mídia sempre o descaracterizava.
colar. E no acesso ao ensino superior, o pro-
Porém, essa relação vem sofrendo mu-
grama Universidade para todos, o ProUni, e
danças ao longo dos anos. Hoje, após mais
as ações afirmativas em várias universidades
de meio século de mídia televisiva, o que
públicas estaduais e federais, seja por meio
pudemos perceber é que a discussão sobre o
do sistema de reservas de vagas (cotas), seja
negro na mídia vem se alterando, mas não
pelo sistema de pontuação.
por uma sensibilidade por parte dos grandes
Os dois projetos estão desmistificando donos dos meios de comunicação. É porque
essa questão da exclusão do negro ao acesso à cresceu a pressão do movimento negro em
educação. Já são mais de quarenta e cinco as relação a situações de racismos e preconceito
universidades públicas que adotaram alguma nos meios de comunicação, seja na publici-
forma de ação afirmativa. O ProUni já bene- dade, seja nas telenovelas etc.
ficiou mais de 300 mil estudantes, dos quais Também estamos tendo um imenso
50,8% são negros, ou seja, pretos ou pardos. crescimento de atores e atrizes negros(as),
Não quero dizer que a exclusão do negro na coisa que antes era restrita aos brancos. Não
educação tenha se esgotado, acabado, ou não podemos deixar de lembrar que, no ano
exista mais… Quero apenas ressaltar que, passado, tivemos um marco significativo na
devido a muito trabalho e luta dos militan- história da mídia do Brasil, quando o Mi-
tes do movimento negro, houve um avanço nistério das Telecomunicações deu concessão
nesta área. Ainda falta muito a se fazer, mas ao primeiro empresário negro dos meios de
acreditamos que, com a força da militância, comunicação, o senhor Jose de Paula Neto
essa situação se findará em breve. (Netinho), que constituiu a TV da Gente.
Também é uma imensa alegria poder ver em
6. O negro e a mídia todas as peças publicitárias a presença negra.
Como em vários outros segmentos da Nos papéis das telenovelas, já está constante
sociedade brasileira, a mídia faz um favor a presença de atores e atrizes negros(as). E o
significativo para a perpetuação do precon- melhor de tudo é que os negros estão dando

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19
NEGRO NO BRASIL
um show em qualidade, basta lembrarmos está alicerçada em um processo longínquo e
da última novela Cobras e Lagartos e já nos profundo de dominação e racismo, que preci-
recordaremos da personagem Foguinho, vi- sa ser superado. Essa constatação por si só nos
vido por Lázaro Ramos. O povo negro não revela que precisamos tanto de comprovações
quer favores; quer oportunidades. estatísticas e análises sérias, quanto de senso de
justiça, ética e compromisso social com a cons-
Se outros segmentos sociais desse país
trução da igualdade racial e social.
também tivessem abertura para agregar o
povo negro, certamente não teríamos esta- Como a sociedade brasileira vê os
tísticas gritantes e preocupantes em sua rela- outros e a si mesma pelas lentes do mito
ção. É como diz o professor Hélio Santos 12: da democracia racial, precisaremos ainda de
“Somos os melhores em todos os locais que nos muitas pesquisas sérias e de qualidade, acom-
deram oportunidades, foi assim no futebol, na panhadas de um debate público, não só para
música e no carnaval.” Se a sociedade brasilei- analisar e compreender a realidade racial,
ra der a oportunidade e o direito aos negros, como também para pensar formas e estraté-
todos nós ganharemos, pois um país é aquilo gias de transformações dessa realidade.
que sua população reflete, e atualmente a po- Vamos esperar “deitados em berço es-
pulação brasileira reflete desigualdades. plêndido” um movimento “natural” de cons-
trução da igualdade racial e de superação do
7. O recomeço. . . mito da democracia racial no Brasil? Pois,
O drama racial da população negra bra- sabemos, nada há de natural no racismo e na
sileira vai além das estatísticas. Não é preciso desigualdade. Existe, sim, uma construção
grandes dados para compreender e ver que ne- histórica, política e cultural que tende a ser
gros e brancos nunca estiveram em pé de igual- mantida pela elite e pela globalização da mi-
dade nos diversos setores do Brasil, como já foi séria, caso não façamos algo rápido, efetivo e
citado anteriormente (no mercado de trabalho, sério para a superação desse quadro.
na educação, no atendimento à saúde, na mí- Todos estamos sendo desafiados a su-
dia etc.). Em todos os setores da sociedade em perar o cinismo racial e reconhecer a dívida
que há a constatação de um quadro alarmante histórica para com a população negra. Ao sal-
de desigualdade e miséria, existe uma represen- darmos essa divida, assistiremos uma mudan-
tação significativa da população negra. Onde ça positiva na vida de toda população brasilei-
há mais concentração de riqueza, temos uma ra, pois a questão racial é uma realidade vivida
representação significativa de brancos. Isso nos por todos nós. Nesse sentido, a superação do
revela que a pobreza e a riqueza têm cor. Além racismo e da desigualdade deve ser vivida por
de enraizada na lógica do capital, tal situação todos os cidadãos brasileiros. P uc

Notas

1. Gorender, Jacob. O escravismo colonial. 5° Ed. São Paulo, A tica, 1988


2. Alencar, F. Etall, História da Sociedade Brasileira, copyright, 1986
3. Maria, Márcia Melo Quintslr: O MERCADO DE TRABALHO SEGUNDO A COR OU RAÇA PESQUISA MENSAL DE EMPREGO, in
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, Indicadores, Brasília, 2006
4. CARNEIRO, Sueli. Desigualdade Racial: fontes de conflitos e violência social, in, Instituto Ethos, Compromisso das empresas com a
promoção da igualdade racial, 1. ed. São Paulo: Instituto Ethos, 2006, p. 23-32.
5. Site: www.prefeituar.gov.br/saúde
6. Site: www.pnud.org.br/raca
7. Chiavenato, pag 100, e Soares, Afonso M. L - O Negro Migrante in Revista Sem Fronteiras, junho/86, pag 11.
8. Diegues Jr, Manoel - Etnias e Culturas no Brasil. Biblioteca do Exército, 1980
9. Chiavenato, pag 192-211
10. Chiavenato, J.J - O Negro no Brasil. Brasiliense, 1986 pag. 143. Obs. Em 1838 o governo de Sergipe reforça esta proibição lançando outra
lei a nível estadual.Vide: vários autores. “Negros no Brasil, Dados da Realidade”.Vozes, 1989, pag 52.
11. Site: www.educafro.org.br/cidadania
12. Santos, Hélio. Ninguém nasce racista, in, Caros Amigos. ed. 69 de dezembro de 2002, p.30-37

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ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL:
COMO ENFRENTAR A DISCRIMINAÇÃO?
Erson Martins de Oliveira

Prof. do Departamento de Artes da PUC-SP


E diretor da APROPUC-SP

O Estatuto da Igualdade Racial pro- Os promotores do movimento do


vocou divergências e divisões entre os inte- Estatuto e das Cotas contavam com o cli-
lectuais. Já havia sido aprovado no Senado, ma eleitoral. Sabiam do mal-estar das li-
e estava em tramitação na Câmara Federal, deranças parlamentares e da cúpula dos
quando uma comissão de “notáveis” entre- grandes partidos opositores silenciosos
gou aos presidentes das duas Casas um ma- (PSDB/PFL/PMDB), que expressaram a
nifesto contrário à sua aprovação definitiva. reação. Parte da cúpula do PT também es-
A partir daí, a votação na Câmara foi adiada, tava contra. O presidente da Câmara, Aldo
e só voltará na próxima legislatura. Rebelo, punha, por sua vez, restrições ao
critério de cota racial. O Ministro Tarso
Os senadores acharam, por seu próprio Genro (PT) e Aldo Rebelo (PCdoB) viram
bem, dar o voto favorável, considerando a mas- como solução trocar “cota racial” por “cota
sa votante negra (50% da população) e calcu- social”. Estabeleceu-se um jogo conceitual
lando que o destino do Estatuto da Igualdade entre exclusão racial e exclusão social. Foi
Racial seria o mesmo que o do Estatuto do Me- assim que o governo Lula retirou seu apoio
nor: aprovado, mas não aplicado. Estava quase à aprovação do projeto, que deveria ser vo-
certo que também passaria pela Câmara. tado até o fim do ano.

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21
ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL...
Os presidentes do Parlamento, os che- nascidos para diagnóstico de hemoglobino-
fes partidários e o governo puderam respirar patia (uma de suas manifestações é a anemia
aliviados. Afinal, todos ficaram contra a de- falciforme).
cisão final, bem no período eleitoral, de for- No Capítulo II, Do Direito À Educa-
ma que o movimento negro de classe média ção, À Cultura..., cria-se a disciplina de “His-
não tinha como culpar alguém em especial e tória Geral da África e do Negro no Brasil”.
retirar seu apoio ao governo ou apoiar qual-
quer outro partido. No artigo 29 do Capítulo III, Direi-
to À Liberdade de Consciência e de Crença
Os intelectuais e artistas (entre eles e ao Livre Exercício dos Cultos Religiosos,
Caetano Veloso e Ferreira Gullar) que assi- lê-se: “O Estado adotará medidas necessárias
naram o Manifesto anti-estatuto cumpriram para combater a intolerância com as religiões
seu papel servil perante o Congresso da bur- de matrizes africanas e à discriminação de seus
guesia branca. seguidores (...)”. Nesse capítulo, são previstos
O redator do Estatuto, senador Pau- o acesso aos meios de comunicação, restaura-
lo Paim (PT), considerou possível alterá-lo, ção de documentos, obras etc. e a garantia de
introduzindo as cotas sociais, constituindo “participação proporcional de representantes das
critérios híbridos de inclusão. Para quem religiões de matrizes africanas, ao lado da repre-
há dez anos negocia no Congresso e com sentação das demais religiões, comissões, conse-
o movimento negro, não custa fazer novas lhos e órgãos, bem como em eventos e promoções
adaptações. Se Lula ganhar, é bem provável de caráter religioso”. Artigo 30: “O Poder Pú-
que se façam mudanças no Estatuto, para blico incentivará e apoiará ações sócio-educacio-
torná-lo ainda mais restrito. As coisas se nais realizadas por entidades afro-brasileiras que
passam assim porque a tal inclusão racial desenvolvem atividades voltadas para a inclusão
e social se dá no âmbito da política parla- social, mediante cooperação técnica, intercâmbio
mentar e do Estado burguês. e convênios, entre outros mecanismos”.

Principais pontos do Estatuto Capítulo IV Do Financiamento das


Iniciativas de Promoção da Igualdade Racial.
Esperava-se, com a sua aprovação, Inciso VI – “incentivo à criação e manutenção
“combater a discriminação racial e as desigual- de microempresas administradas por afro-bra-
dades estruturais e de gênero que atingem os sileiros.” Fazem parte desse capítulo as cotas.
afro-brasileiros”. Entre as Disposições Pre-
Capítulo V, Dos Direitos da Mulher
liminares, consta: IV – políticas públicas:
Afro-brasileira. Consta de vários aspectos de
ações, iniciativas e programas adotados pelo
proteção da mulher afro-descendente (saú-
Estado no cumprimento de suas atribuições
de, violência, acesso a crédito).
institucionais; V - ações afirmativas: as po-
líticas públicas adotadas pelo Estado para a Capítulo VI, Do Direito dos re-
correção das desigualdades raciais e para a manescentes das Comunidades dos Qui-
promoção da igualdade de oportunidade. lombos às suas Terras. São tematizados o
reconhecimento, demarcação, legalização,
No artigo 4º, prevê-se “a reparação, reparações e proteção das comunidades
compensação e inclusão das vítimas da desigual- dos Quilombos.
dade e a valorização da igualdade racial”. No
parágrafo 1º, considera-se como programa de Capítulo VII, Do Mercado de Traba-
lho. Artigo 62. “Os governos federal, estadu-
ação afirmativa a “estipulação de cotas”.
ais, distritais e municipais ficam autorizados a
No Capítulo I, Do Direito à Saúde, promover ações que assegurem a igualdade de
estabelece-se o “quesito raça/cor” em docu- oportunidade no mercado de trabalho para os
mentos do SUS, igualdade de acesso e pes- afro-brasileiros e a realizar contratação prefe-
quisa de “doenças prevalentes na população rencial de afro-brasileiros no setor público e a
negra afro-brasileira” e exames nos recém- estimular a adoção de medidas similares pelas

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ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL...
empresas privadas.” No Art. 65, inciso II – “o porque fere o princípio de igualdade dian-
preenchimento de cargos em comissão do Grupo te da Lei; 3) O direito jurídico, a partir do
- Direção e Assessoramento Superiores – DAS conceito de raça, leva à divisão entre os bra-
da administração pública centralizada e des- sileiros e é fonte de ódio racial; 4) Há mi-
centralizada observará a meta inicial de 20% lhões de brancos também excluídos. Solução
de afro-brasileiros, que será ampliada grada- apresentada: melhorar o ensino e os serviços
tivamente até lograr a correspondência com a públicos para incluir a massa negra excluída,
estrutura da distribuição racial nacional ou, bem como a branca. Ao invés de medidas
quando for o caso, estadual observados os dados afirmativas (particulares aos negros), medi-
demográficos oficiais.” das universais.
O Capítulo VIII é dedicado às cotas, A resposta dos defensores do Estatu-
que incluem educação e emprego. De acor- to: a Lei diz que todos os homens são iguais,
do com o Art. 72, leis específicas, federais, mas na realidade histórica e social os negros
estaduais, distritais ou municipais poderão são discriminados, portanto a forma de se re-
disciplinar a concessão de incentivos fiscais parar esse dano é a das cotas e a afirmação de
às empresas com mais de vinte empregados direitos. Explicação comprovada pelos dados
que mantenham uma cota de, no mínimo, do próprio governo.
20% para trabalhadores afro-brasileiros. A maioria negra não é igual perante a
Capítulo IX, Dos Meios de Comuni- Lei. Mas a maioria branca também não o é.
cação. Art 74: “Os filmes e programas veicu- Ou seja, a esmagadora maioria é de trabalha-
lados pelas emissoras de televisão deverão apre- dores. Quem elabora a Constituição e as leis
sentar imagens de pessoas afro-brasileiras em é a burguesia. Todo ordenamento jurídico
proporção não inferior a 20% do número total foi construído sobre a propriedade privada
de atores e figurantes.” dos meios de produção e sobre relações capi-
Capítulo X, Das Ouvidorias Perma- talistas de trabalho.
nentes nas Casas Legislativas. Consta de pa- A discriminação racial assenta-se na
rágrafo único: “Cada Casa Legislativa orga- divisão de classe. Mas o movimento negro
nizará sua Ouvidoria Permanente em Defesa não admite essa realidade. Acredita poder
da Igualdade Racial na forma prevista pelo seu amenizar a opressão sobre os afro-brasilei-
Regimento Interno.” ros pela adoção de medidas particulares por
Capítulo XI, Do Acesso à Justiça. Art. meio do Estado, portanto do reconhecimen-
79: “É garantido às vítimas de discriminação to por parte da burguesia branca, representa-
racial o acesso gratuito à Ouvidoria Permanen- da pelos partidos da ordem.
te do Congresso Nacional, à Defensoria Públi- Por que o temor de que o Estatuto
ca, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário possa ser fonte de conflitos raciais e de riva-
em todas as instâncias, para garantia de seus lidade entre brancos e negros pobres? Porque
direitos.” a burguesia há muito chegou à conclusão de
Esperamos ter selecionado os princi- que é melhor a “paz social”, também nesse
pais aspectos do Estatuto, que, como se pode âmbito, para melhor explorar a maioria, for-
ver, abrange vários aspectos da vida social. mada pela classe operária, classe média pobre
e camponeses.
Questionamentos e defesa do Estatuto Nas últimas décadas, formou-se uma
Os opositores do Estatuto e das Co- camada negra de classe média, que vem se
tas usam os mais variados argumentos para incorporando vagarosamente aos valores
justificar a sua não aprovação. Alguns deles capitalistas. O movimento das cotas tem
são: 1) O Brasil deixaria de ser uma Nação aí sua base social. Não expressa as reivin-
para se transformar em uma confederação dicações da imensa massa de operários e
de raças; 2) O Estatuto fere a Constituição, camponeses negros, que vivem miseravel-

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23
ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL...
mente e sobre a qual recai a opressão de Os mentores do Estatuto e das cotas conti-
classe e a racial. nuarão a dizer que o problema não é de clas-
É um grande erro fortalecer as aspi- se, mas eminentemente de raça.
rações pequeno-burguesas, que separam a O aspecto da religião é mais um ponto
camada média pobre negra da imensa mas- crítico do Estatuto. Pretende que o Estado
sa de proletários e camponeses, de pobres e dê proteção à religião. Caberia ao poder pú-
desempregados, sobre os quais recai o maior blico coibir discriminações contra a religião
peso da dupla opressão – a social (de classe) de matriz africana, dar acesso aos meios de
e racial. O capitalismo usa fartamente a pe- comunicação e promover incentivos às ins-
quena-burguesia para seus fins sociais, polí- tituições religiosas para fins “sócio-educati-
ticos e ideológicos. vos”, portanto abrir as portas para a religião
O forte do Estatuto são as cotas para africana, da mesma maneira que faz com
a Universidade e para a mídia (presença no as demais (católica e protestante, principal-
vídeo de atores negros); e em seguida para mente). Ao invés de combater os privilégios
os cargos estatais (funcionalismo público). que o Estado e a burguesia dão às religiões,
No fundo, é o que se busca. A cota referen- que servem ideologicamente aos opressores e
te ao emprego em fábricas e comércio não é se assentam na defesa da propriedade priva-
uma exigência. O empregador que pretender da dos meios de produção, fazem a defesa e
extorquir o Estado, usando incentivo fiscal, querem ter os mesmos “direitos” (favores).
usará a cota. Os intelectuais contrários ao Estatuto
Por que os redatores do Estatuto não agiram como filisteus a serviço da burguesia
pleitearam a obrigatoriedade para os capita- branca. Elevaram a voz contra o Estatuto da
listas? Porque certamente se guiaram pelo re- Igualdade Racial, não no que tem de mes-
alismo pequeno-burguês de não lutar contra quinho perante a maioria negra, mas naquilo
o poder da propriedade privada dos meios que tem de denúncia do racismo. Não ques-
de produção, de onde emana toda a opressão tionaram o direito reacionário de o Estado
(social, racial, nacional etc.). proteger a religião.

Acreditam que o Estado burguês, por A resposta “Em favor do Estatuto da


atos parlamentares, pode fazer algumas con- Igualdade Racial” é uma peça liberal que
cessões e estabelecer proteções. Socorrem-se se socorre da hipocrisia da Convenção da
do aparato de domínio de classe e de sustenta- ONU e se apóia nos exemplos tais como os
ção da opressão racial para incorporar direitos expostos nos Estados Unidos (um dos maio-
a uma minoria negra. São ilusões reformistas res opressores dos africanos). Quer fazer crer
oriundas do PT e de uma ala clerical (Educa- que há um “caminho da construção dessa
fro etc.). As massas profundamente atingidas igualdade étnica e racial” por meio das cotas.
pela exploração não são mobilizadas para ar- Trata-se de um engano reformista e de uma
rancar concessões por meio da luta de classe. ilusão de classe média (a maioria negra ope-
Eleições, negociações parlamentares, movi- rária esmagada pela pobreza não tem como
mentação de intelectuais e abaixo-assinados alimentar tal quimera). Não será reduzida a
– esse é o campo em que se pretende vencer a opressão racial sobre metade da população
batalha contra a discriminação. do País com medidas paliativas para uma
ultra-minoria negra que ascendeu alguns de-
O problema central da escola, do
graus na escala social.
emprego e do salário de fome, que atinge a
esmagadora maioria, nem de longe é toca- A idéia de levar o Estado burguês a
do. Milhões de jovens negros não passarão reconhecer gradativamente a discrimina-
do ensino fundamental, uma grande parcela ção e assumir medidas compensatórias é
continuará a viver de migalhas e o desempre- utópica. E restringe a violência de classe
go não deixará de ser o maior dos tormentos. contra as massas.

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ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL...
Combinar as reivindicações das massas ria faz parte do proletariado e dos campo-
exploradas com as reivindicações neses, contando com uma classe média mais
raciais vasta, cujos laços com o capitalismo são mais
amplos e profundos.
O ponto de partida da luta contra a
discriminação racial está na organização das Para arrancar as reivindicações da bur-
camadas proletárias negras mais profunda- guesia, qualquer que seja, é necessário unir
mente atingidas pela exploração capitalista. negros e brancos explorados e oprimidos.
Por razões históricas, a população negra de São partes do programa da classe
classe média é pequena, comparada com as operária as reivindicações contrárias às dis-
massas proletárias e camponesas negras e criminações: trabalho igual, salário igual,
com a classe média branca. emprego a todos, escola a todos, em todos
A política proletária parte da situação os níveis, a cada um de acordo com sua po-
das classes sociais, sem desconhecer por um tencialidade e necessidade, saúde sem dis-
só segundo outras formas de opressão – a ra- criminação, acesso à moradia, fim da opres-
cial é de suma importância no Brasil, cujo são à juventude negra, igualdade política e
capitalismo foi introduzido na forma da es- social etc.
cravidão negra e índia. A matriz do prole- Há problemas imediatos que unem
tariado brasileiro está no trabalhador negro. os trabalhadores brancos e negros: o empre-
Não por acaso, quase 50% dos brasileiros são go e o salário. A reivindicação de emprego
afro-decendentes e a quase totalidade é de a todos, sem discriminação, só pode ser a
proletários e camponeses pobres. Está aí por escala móvel das horas de trabalho, em que
que a revolução proletária depende da massa se dividem as horas nacionais entre todos
negra trabalhadora; da mesma maneira que aptos ao trabalho; salário mínimo real: ne-
a sobrevivência do capitalismo depende de nhum trabalhador pode ganhar menos que
manter na inércia essa multidão oprimida. o necessário para a sobrevivência sua e da
As transformações sociais têm uma família; e escala móvel do reajuste salarial
tarefa particular no Brasil (como tem nos de acordo com a inflação.
Estados Unidos, Haiti, África do Sul etc.): Com esse programa de reivindicações,
pôr fim à opressão racial, que tem sua raiz é possível defender a vida da maioria, unir os
na escravidão. Ocorre que, entre os outros trabalhadores e enfrentar a opressão capita-
50% da população branca, também a maio- lista por meio da luta direta. P
uc

Artigo escrito em julho de 2006

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TESTEMUNHOS DE POÉTICAS NEGRAS:
DE CHOCOLAT E A COMPANHIA NEGRA DE
REVISTAS NO RIO DE JANEIRO
Nirlene Nepomuceno (Bebel)

Mestre em História Social pelo PUC-SP*

Introdução sobre a temática do negro nos anos de 1960


recaiu sobre sua marginalização no mundo
Este artigo busca mostrar a presença
do trabalho livre, do qual teria ficado de
negra, bem como formas não institucionais
fora em função de sua pretensa apatia e des-
de o negro organizar-se na sociedade brasi-
preparo para as novas exigências do capital
leira entre os últimos anos do século XIX e as
industrial, de acordo com as postulações da
primeiras décadas do XX. Organizações ins-
chamada “escola paulista”.
titucionais negras têm sido freqüentemen-
te objeto de pesquisas acadêmicas, caso da Estudos mais recentes, focados
imprensa negra e da Frente Negra Brasileira, na prática cotidiana e que privilegiam a
em São Paulo, do samba e das agremiações abordagem dos estudos culturais, trazem
carnavalescas negras, no Rio de Janeiro, e das evidências de que, mesmo preterido pelo
irmandades de pretos em várias regiões do branco, sobretudo a partir da política de
país. Contudo, concentrar atenções em prá- subvenção a imigrantes europeus, o negro,
ticas do segmento negro da população im- embora perdendo espaço como assalariado
plica deparar-se com um cotidiano no qual e como pequeno produtor independente1,
ainda há muito a ser desvendado e trazido jamais deixou de marcar sua presença em
à tona. A ênfase da produção historiográfica múltiplos espaços e afazeres nos centros ur-

* Ex-bolsista do Programa Internacional de Bolsas da Fundação Ford.

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26
TESTEMUNHOS DE POÉTICAS NEGRAS
banos em expansão. Longe de entregar-se à parisiense –, a cidade, capital econômica, po-
passividade, o negro, no contexto da ace- lítica e cultural do país, viveu intensamente -
lerada urbanização das cidades, forçou bre- mais do que qualquer outra cidade brasileira
chas, movimentando-se de várias maneiras, - a transfiguração do mundo capitalista, que
inventando e conquistando lugares a partir alterou desde a ordem e as hierarquias até as
de seus referenciais culturais de vida. noções de tempo e espaço de vários agentes
em suas práticas culturais. Esse dinamismo
Este estudo privilegia o Rio de Janei-
configurou, ao mesmo tempo, uma consti-
ro, cidade que, até a década de 1870, foi,
tuição de culturas próprias entre crescentes
provavelmente, não só a maior cidade negra,
setores das populações urbanas de valores,
mas a maior cidade africana do mundo, com
origens e tradições distintas, que acessaram
registro de entrada de mais de um milhão de
os novos centros sob estímulos da incipiente
africanos ao longo do século XIX, segundo
urbanização.
Mary Karasch2. No universo carioca, nosso
olhar volta-se para os primórdios da indús- A expansão urbano-industrial do Rio
tria do lazer, na virada dos séculos XIX e XX, de Janeiro e o surgimento de uma cultura
momento em que o espetáculo-como-negó- de prevalecentes raízes africanas estão inti-
cio começava a se firmar. Nesse mundo do mamente imbricados. Como lembra Ulloa4,
divertimento, não “reconhecido” pela lógica nesse período dinamizaram-se os processos
formal do trabalho “moderno”, visualizamos culturais que desembocaram na criação e no
uma predominante e marcante presença ne- surgimento de gêneros musicais e formas de
gra e dos costumes e tradições desse segmen- bailar como o lundu, a umbigada, o maxixe,
to da população, que culminou por romper o choro, as marchas de carnaval e o pagode.
com uma estética até então vigente e por di- As transformações sócio-políticas que abri-
fundir padrões culturais renegados por sen- ram o país à influência direta da Europa – no
sibilidades européias. campo da arte, das idéias e da ciência – tam-
Circos, cabarés, cafés-concerto, “cho- bém resultaram no crescimento do munda-
pes-cantantes” (ou “berrantes”), cinemas, nismo, quando o processo de socialização
teatro - sobretudo o gênero musicado ou re- deslocou-se da vida privada para a pública,
vista – e festas populares de cunho religioso, com a transformação dos salões de chá, te-
que reuniam em torno de si um público vo- atros e cafés no epicentro de formas de vida
lumoso e diferenciado no Rio de Janeiro da cultural cotidiana.
virada do século, revelam-se como campos O projeto de reestruturação da cidade,
profícuos de negociação entre as camadas porém, não envolveu todos os grupos. Fica-
populares e setores da cultura dominante. ram à margem os segmentos negro e pobre
Percorrer esses labirintos da diversão é sur- da população e parcelas expressivas da inte-
preender, com recorrência, “expressões do re- lectualidade que estavam em desacordo com
fazer de culturas negras em dinâmicas de iden- a imagem de cidade européia projetada para
tidade e diferença”3. Tal presença leva a inferir a Capital Federal. De acordo com Velloso5,
que uma substantiva parcela da população a exclusão fortaleceu a fragmentação social,
negra valeu-se do lúdico para reinventar suas com as camadas populares desenvolvendo
tradições audiovisuais entre nós. seus próprios canais participativos, vivendo
entre as tênues fronteiras da legalidade e da
Rio de Janeiro: vitrine das virtudes ilegalidade. Sodré6 considera natural, em
nacionais função da exclusão, que os negros reforças-
O Rio de Janeiro não escapou ao turbi- sem suas próprias formas de sociabilidade e
lhão de mudanças que caracterizam a virada os padrões culturais transmitidos principal-
do século XIX para o XX. Tendo por aspira- mente pelas instituições religiosas negras.
ção um modelo europeu de civilização e cul- Essas formas de sociabilidade sobressaíam
tura – mais precisamente, a “Belle Époque” nas festas ou reuniões familiares, onde se en-

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27
TESTEMUNHOS DE POÉTICAS NEGRAS
trecruzavam bailes e temas religiosos, insti- simples, mas com forte presença da música,
tucionalizando contatos interétnicos, já que da dança, chistes de duplo sentidos e diá-
também brancos eram admitidos nas casas. logos com a platéia, que abria espaço para
Na interação entre negros de diferen- trocas e improvisações e seria incorporada
tes etnias e saberes com imigrantes e bran- pelo teatro de revistas.
cos pobres, práticas ancestrais foram sendo Também no mundo circense pode-
reconfiguradas em diferentes direções, mes- mos surpreender a ruptura de padrões es-
clando-se, reelaborando-se para dar forma a téticos e a introdução de gestos e lingua-
novos produtos e práticas culturais. Como gens mais próximas das ruas, por meio dos
a confirmar que, na cultura popular negra, palhaços Benjamim de Oliveira, no Rio, e
não existem formas puras, sendo sempre “o Veludo, em São Paulo, que inauguraram
produto de sincronizações parciais e de en- uma linhagem de palhaços-cantores-ins-
gajamentos que atravessam fronteiras cultu- trumentistas negros. Benjamin incorporou
rais”7, deparamos-nos, na segunda metade às atividades acrobáticas, dominantes nos
do século XIX, com o mulato Teles (Joa- circos, representações teatrais que foram da
quim Duarte) e sua barraca “As três cidras do comédia ao drama, tornando-se “respon-
Amor”, uma das mais concorridas das festas sável pelo mais ousado exemplo de fusão
do Divino realizadas no Campo de Santana. cultural negro-americano-européia9, ao en-
Freqüentada “pela plebe e a burguesia, cenar no picadeiro, em 1909, com partitura
o escravo e a família, o aristocrata e o ho- transposta para banda de música, a ópera A
mem das letras”8, a barraca oferecia extensa Viúva Alegre, de Franz Lehar.
programação, cuja animação crescia propor- Interconexões da diáspora em palcos
cionalmente ao avançar das horas e à retirada cariocas
das “famílias”. Nesses momentos, a progra-
mação, iniciada em tons sisudos, ganhava O advento da República intensificou
outro caráter, com o mulato Teles e seus bo- a intolerância das autoridades para com a
necos dançando chulas lascivas, saracotean- presença de uma massa populacional pre-
do, bamboleando, dando umbigadas, termi- dominantemente negra, espremida em casas
nando, não raro, em batuque rasgado. Com de cômodos, cortiços e pequenas oficinas de
o cerceamento das autoridades imperiais ao trabalho na região central do Rio de Janeiro,
Campo de Santana, remodelado para aten- bem como com praticas sociais desses gru-
der a um novo tipo de público, e a repressão pos, sempre em bandos, dançando, cantando
a gestos e expressões de matrizes africanas de e tocando festivos instrumentos musicais que
expressão oral, sobretudo a partir dos anos ritmavam corpos em interações incompatí-
de 1870, é possível acompanhar a migração veis com uma “civilização à Europa”. Banida
de muitas dessas linguagens e expressões, de seus territórios e agredida em seus modos
ainda que sob novas roupagens, para outros de viver por reformas urbanas, campanhas de
espaços e formas de comunicação. assepsia e regeneração de costumes, a popu-
lação negra teve sua imagem justaposta à de
Nesses cenários, captamos o come-
desordem, violência e indisciplina, reagindo
diante Francisco Corrêa Vasques, aponta-
de distintas formas às legislações, dispositi-
do como um dos mais populares atores da
vos, regulamentos e instrumentos editados
época. Vasques, um mestiço que também
com o propósito de eliminar, controlar ou
foi empresário e dramaturgo, levou para as
adequar suas manifestações e experiências.
ruas do Rio muito de seu aprendizado te-
atral na barraca do Teles. Em suas “Scenas Mas, enquanto a intelectualidade bus-
Cômicas” – realizadas repentinamente nas cava na Europa a imagem de si mesma nos
esquinas da cidade ou em teatros -, em que subúrbios e guetos para onde havia sido ex-
freqüentemente advogava a causa abolicio- pulsa, a população negra e pobre redefinia
nista, ele lançou mão de uma linguagem formas de sobrevivência e elaborava, pouco

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TESTEMUNHOS DE POÉTICAS NEGRAS
a pouco, uma cultura de acentuada mar- espetáculos já denotavam o sucesso de uma
ca africana, que acabou por se pontuar nos produção”11. Em doze dias de exibição, a
espetáculos que então começavam a fixar- peça foi assistida por cerca de treze mil pes-
se em casas, ruas e setores da cidade onde soas12, uma média de pouco mais de mil es-
ganharam legitimação e formas musicais e pectadores por noite. Ao longo de quase um
coreográficas, com uma estética e uma filo- ano de atuação, a Companhia completou a
sofia de vida na contramão e, aparentemen- marca de quatrocentas apresentações em seis
te, incompatíveis com as concepções tidas estados – Rio de Janeiro, São Paulo, Minas
como dominantes10. Há de se notarem, nes- Gerais, Pernambuco, Bahia e Rio Grande do
te período, interconexões diversas de expe- Sul - e em cerca de três dezenas de cidades
riências vivenciadas entre artistas populares brasileiras13, um feito, se levarmos em conta
da diáspora africana, que se traduz em forte que os deslocamentos faziam-se por meio de
presença desses sujeitos no que poderia ser trem ou navio.
chamado de circuito Europa-Estados Uni- Cabe indagar por que aquele conjunto
dos-Caribe-Brasil, numa época em que a de black-girls e “jazz-band de azeviche”, cujas
arte feita por africanos e seus descendentes estrelas - “Rosa Negra”, “Vênus de Jambo”,
ainda era muito subestimada. Nessas “cultu- “Jandira Aymoré” etc. – eram praticamente
ras viajantes”, podemos observar a presença desconhecidas até subirem ao pequeno palco
de artistas negros brasileiros na Europa, bem do Rialto, atraiu tanto a atenção do público
como de artistas caribenhos e norte-ameri- e da imprensa, levando para a platéia expo-
canos em palcos populares cariocas, eviden- entes como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque
ciando entrelaçamentos e contínuos conta- de Holanda, Mário de Andrade, Prudente de
tos, trocas e também tensões entre diásporas Moraes Neto, Villa-Lobos, Tarsila do Ama-
negras de diferentes partes do mundo que se ral, além de Carlos de Campos, presidente
influenciavam mutuamente, apropriando- da província de São Paulo, e o ex-presidente
se e difundindo produtos culturais uns dos da República Venceslau Braz. A Companhia
outros, constituindo, como apontou Gilroy, Negra de Revistas insere-se no contexto do
dinâmicos processos no interior do sistema gênero teatral ligeiro14, verdadeira febre nas
Atlântico Negro. grandes cidades brasileiras, sobretudo no Rio
de Janeiro e em São Paulo, a partir das últi-
“Tudo Preto” roubando a cena teatral
mas décadas do século XIX. Profundamente
da Capital Federal
marginalizado pelos intelectuais da época
Nesse contexto de permanências e – e por vários outros da contemporaneidade
desdobramentos de ritmos, gestos e movi- – empenhados em erigir um “teatro de tese”
mentos corporais sinalizadores de tradições capaz de reformar gostos, comportamentos
de oralidade e de reinvenção de expressões, e costumes das platéias, o gênero era visto
sobe à cena teatral carioca, em 31 de julho como algo menor e sem valor literário. Con-
de 1926, a Companhia Negra de Revis- tudo, o teatro de revista mostrava-se como
tas, fundada pelo cançonetista, versejador um espaço privilegiado de debates constitu-
e compositor João Cândido Ferreira, o De ído, naqueles anos de 1920, por seus pro-
Chocolat, um baiano que chegou ao Rio na tagonistas – atores, diretores, escritores e
adolescência. Integrada apenas por pretos e músicos -, muitos dos quais negros, que se
mulatos (como se identificavam), a Compa- valiam do palco para negociar identidades,
nhia mudou o panorama teatral da Capital reivindicar territórios e criticar políticas de
Federal no segundo semestre daquele ano, governo, “modernidades” e costumes estran-
esgotando todas as noites a lotação do Tea- geirados. Assim, trabalhamos na perspectiva
tro Rialto, um espaço que, até então, tinha deste teatro como um palco de confrontos
fama de azarado. O primeiro espetáculo entre diferentes visões sobre temas centrais
do grupo, “Tudo Preto”, ficou um mês em da sociedade brasileira e de partilhas de ex-
cartaz, “numa época em que dez ou quinze periências negras do viver urbano.

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TESTEMUNHOS DE POÉTICAS NEGRAS
É o debate em torno dos relaciona- vestem-se como cozinheiros”. Trazendo nas
mentos étnico-culturais, por exemplo, que mãos utensílios de cozinha, panelas, frigidei-
De Chocolat suscita com sua peça “Tudo ras, o coro entoa:
Preto”, cujo enredo gira em torno do em- Deixamos as patroas
penho de um grupo de artistas em formar Artistas boas
uma companhia teatral “só com gente da Vamos ser
raça”, disposta a mostrar suas “habilidades”. Cheias de alacridade
Apoiando-se nas personagens Benedito, um E com vontade
baiano, e Patrício, um paulista, De Chocolat De vencer
põe em discussão situações que eram vividas, Seremos as estrelas
naquele momento, pela população negra, Chics e belas
como a de ser preterida, junto com suas cul- A dominar
turas, em favor do imigrante europeu. São Mostrando que a raça
comuns, no texto, referências a produtos Possui a graça
acentuadamente negro-africanos como sen- De encantar.
do os verdadeiros representantes da “alma Mesclando um discurso de ascensão
nacional”, o que evidencia a participação de social e orgulho racial no “Coro das Servi-
segmentos populares no debate em torno da çais”, ele sinaliza, num diálogo travado entre
constituição de uma pretendida identidade Patrício e Benedito, que a possibilidade de
para a nação. confrontos era latente, mas havia disposição
Em “Tudo Preto”, fica explícito que para enfrentá-los. Na peça, enquanto os ser-
Benedito (apenas coincidência com o nome viçais deixam a cena por um lado do palco,
do santo negro?) e Patrício simbolizam brasis Patrício e Benedito entram pelo outro, “ca-
diferentes. O primeiro seria o “Brasil real”, sacalmente vestidos”, apresentando-se com
impregnado pela cultura de seus ancestrais elegância.
africanos; Patrício, a representação do “Brasil Patrício (olhando para o lado que
desejado” (pelas elites), dependente do meio saiu o coro) – Lá vão elas, meu ami-
estrangeiro, desligado das coisas da terra, in- go, lá vão elas! Havemos de formar
fluenciado pelas “romanzas amacarronadas” a nossa companhia de revistas só com
do imigrante italiano. É essa influência que gente da raça... Só devemos aceitar
o baiano Benedito procura combater, evi- elementos pretos!
denciando que parcelas da população negra
tinham clara a noção de quem era o inimigo Benedito – Certíssimo! Lá vão elas e
a confrontar, bem como do debate que se vão contentíssimas!
travava em torno de uma identidade e cul- Patrício – Disso sei eu. Os patrões é
tura nacionais. que não estão nada contentes...
De Chocolat também sinaliza que os Benedito – Estão zangados e com
negros estavam decididos a romper, naque- razão. Mas que tenham paciência...
les primeiros anos depois da abolição, com Havemos de demonstrar a nossa ha-
uma hierarquia social que lhes reservava lu- bilidade. Em Paris, o Douglas não
gares determinados na estrutura da socieda- está com sua Companhia Negra de
de. É o que se deduz do quadro de abertura Revistas?
de “Tudo Preto”. Intitulado “Para a frente”,
nele o autor estabelece o jogo preto/branco Patrício – Justamente! E dizem que
a partir do figurino dos artistas, que cantam não tem um só elemento que não seja
juntos o “Coro dos Serviçais”. A marcação preto.
do quadro prevê “todos com vestidos pretos, Benedito – Muito bem: é o que de-
avental e adornos brancos, representando vemos fazer aqui – Tudo Preto! Deve
serviçais domésticos, enquanto os homens ficar interessantíssimo
interessantíssimo!!

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TESTEMUNHOS DE POÉTICAS NEGRAS
Chamam a atenção, no diálogo, refe- persuadidos por uma comissão formada es-
rências a manifestações culturais negras que pecialmente pela Sociedade Brasileira de Au-
despontavam em outros países. Vale lembrar tores Teatrais – SBAT -, que considerou um
a eclosão, por esta ocasião, do New Negro “atentado aos nossos foros de civilização” a
Movement (Harlem Renassaince), nos Es- exibição de um grupo de negros na vizinha e
tados Unidos, do Negrismo, no Caribe, e, branca Argentina.
mais tardiamente, da Negritude, na França.
Podemos inferir que esses grupos inteira- Conclusão
vam-se e acompanhavam o que acontecia no O impacto provocado pela Companhia
mundo. Estavam atentos também à política Negra de Revista no meio teatral da Capital
e à situação do negro no Brasil e no estran- Federal e o sucesso alcançado pelo grupo po-
geiro, como demonstrado num outro trecho dem ser acompanhados pelos inúmeros regis-
da peça: tros dos jornais da época. Apesar do pioneiris-
Patrício – (...) o preto hoje, meu ve- mo de De Chocolat, saudado como “o pai do
lho, tem a sua posição na sociedade e teatro negro”16 no Brasil, sua trupe teatral foi
na política, isso em todas as grandes mantida, por décadas, à margem da história
Nações, até na América do Norte!... do teatro e da sociedade carioca. Passados oi-
progredindo!...
Estamos progredindo!... tenta anos de sua estréia, o silêncio em torno
do grupo só muito recentemente foi quebra-
O texto de “Tudo Preto” é permeado do com a publicação dos livros Um espelho no
por um discurso sutil, por jogos de palavras, palco, de Tiago de Melo Gomes, e Corações
que embutem pequenos recados e no qual de Chocolat, de Orlando Barros. Em parte, a
emerge freqüentemente uma África recriada Companhia Negra de Revistas foi vítima do
com base em memórias e tradições, seja na desprezo, inclusive acadêmico, imputado ao
reverência a ancestrais “homens de verdadei- gênero teatral ligeiro.
ro valor”, seja na apresentação de um “autên-
O silenciamento em torno do grupo,
tico batuque africano”. Apesar de valorizar a
porém, vai ainda além, já que os poucos es-
cultura negra, foi em termos de sentimento
tudos acadêmicos que se debruçaram sobre o
de pertença à condição brasileira que essa ên-
teatro musicado/ligeiro não fazem nenhuma
fase ficou acentuada na peça de De Choco-
referência às trupes teatrais negras dos anos
lat. Fica latente que afro-brasileiros estavam
de 1920. Depreende-se que elas foram vistas
produzindo uma identidade que não abria
como meras cópias sem originalidade de espe-
mão do africanismo nem da brasilidade.
táculos musicados que foram, eles próprios,
“Tudo Preto” reverencia uma ancestralidade
alvos do desdém de elites intelectuais de sua
africana, mas a reivindicação passa por um
época. Dessa armadilha, não escaparam nem
reconhecimento do negro como cidadão in-
mesmo intelectuais e artistas negros. Abdias
tegral do país.
do Nascimento, criador, na década de 1940,
A Companhia Negra de Revista fun- do Teatro Experimental do Negro, define o
dada por De Chocolat durou cerca de um TEN como a primeira experiência do gêne-
ano15, período em que percorreu diversas ro e classifica como “exótica”, “grotesca” e
regiões do Brasil, sempre atraindo um nú- “subalterna” toda iniciativa anterior à de seu
mero considerável de espectadores, apesar grupo. Em depoimento à revista Dionysos,
da campanha implacável movida por parte a brilhante atriz Ruth de Souza declarou:
da imprensa, incomodada com a presença “Houve os que aderiram com seriedade e
dos artistas negros num teatro localizado na outros que preferiram os espetáculos musi-
Avenida Rio Branco, epicentro da reforma cados – talvez por serem mais divertidos?”17,
urbanística do prefeito Pereira Passos. Con- evidenciando que a idéia de seriedade e te-
vidada a se apresentar na Argentina, não atro de revista não se coadunavam. O ator
pôde aceitar o convite. Seus diretores foram e escritor Haroldo Costa, em O Negro nas

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TESTEMUNHOS DE POÉTICAS NEGRAS
Artes Cênicas18, dedica menos de meia página para a não-cultura das massas. Para parce-
à iniciativa pioneira de De Chocolat e ao Te- las letradas de negros brasileiros, a aquisi-
atro Popular Brasileiro, de Solano Trindade, ção de respeitabilidade por parte da popu-
contra as onze páginas consagradas ao Teatro lação negra estava diretamente associada a
Experimental do Negro. mudanças de hábitos e de modos de vida,
Inferimos que práticas culturais, vo- que persistiam nas camadas populares e
zes, gestos, formas de sobrevivência e de que deveriam ser erradicados com a rege-
transgressão de populações negras perma- neração de comportamentos20. Nessa pers-
neceram “no domínio pouco igualitário pectiva, a cultura do riso e do humor crí-
e democrático das formas de julgamento tico performático estavam em desacordo
e avaliação que, plantadas no terreno da com os estilos comportamentais ditados
‘alta’ cultura”19 olham com menosprezo pela sociedade branca. P uc

FONTES DOCUMENTAIS
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
PEÇAS TEATRAIS – Arquivos da ª Delegacia
Auxiliar de Polícia
TUDO PRETO, de De Chocolat
PRETO E BRANCO, de Wladimiro di Roma.
Periódicos
A MANHÃ, , .
CORREIO DA MANHÃ, , 
FOLHA DA MANHÃ, , .
O GLOBO, , .
JORNAL DO BRASIL, , .
A NOITE, , .
GAZETA DE NOTÍCIAS, .
O PAIZ, .
CORREIO PAULISTANO, , .
O ESTADO DE SÃO PAULO, , 
O MALHO, .
FON-FON, .
CARETA, .
O CLARIM DA ALVORADA, 
O GETULINO, 

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Notas

1 SANTOS, Joel Rufino dos. “O negro no Rio pós-abolição: marginalização e patrimônio cultural”. Estudos Afro-Asiáticos,
n.15, 1988, p. 43.
2 KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 20.
3 ANTONACCI, Maria Antonieta. “Corpos negros desafiando verdades”. In:BUENO, Maria Lúcia, CASTRO, Ana Lúcia de
(Orgs). Corpo território da Cultura. São Paulo: Anablume, 2005, p. 29.
4 ULLOA,Alejandro. Pagode. A festa do samba no Rio de Janeiro e nas Américas. Rio de Janeiro: MultiMais Editorial Produções,
1998, p.114.
5 VELLOSO, Mônica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro –Turunas e Quixotes. Rio de Janeiro: Ed. Fundação GetúlioVargas, 1996.
6 SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. 2.ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998, p. 14.
7 HALL, Stuart. Da Diáspora. Identidades e mediações culturais. SOVIK, Liv (Org.). Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília: Rep-
resentação da Unesco no Brasil, 2003, p. 342.
8 ABREU, Martha. O império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira; São Paulo: Fapesp, 1999, p. 74.;
9 TINHORÃO, José Ramos. “Circo brasileiro: o local no universal”. IN LOPES, Antonio Herculano (Org). Entre Europa e
África. A invenção do carioca. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa,Topbooks, 2000, pp. 193-214. Uma das marcas
da atuação de Benjamim era o rosto caiado, recurso que utilizava para interpretar personagens brancos ou índios. Neste
caso, ele misturava à caiação tons róseos. Suas técnicas de maquilagem eram tão perfeitas que, muitas vezes, os amigos
não o reconheciam em cena. Além de Viúva Alegre, ele encenou no picadeiro Otelo, de Shakespeare, e várias peças de
sua própria autoria.
10 MOURA, Roberto. Antecedentes da chegada da Industria Cultural no Brasi – estudo realizado para o Centro Interdisciplinar de
Estudos Culturais da Escola de Comunicação da UFRJ entre os anos de 1993 e 1995. Não publicado.
11 MENCARELLI, Fernando, op. cit., p. 15. O autor aborda o período compreendido entre os últimos anos do século XIX, mas
é possível acompanhar o tempo médio de duração das peças de teatro ligeiro nos jornais da Capital Federal no início dos
anos de 1920. Raramente as apresentações estendiam-se para além de duas semanas.
12 A informação consta de anúncio publicitário da Companhia, publicado no jornal A Manhã de 15-08-26, p. 15.
13 Entre as muitas cidades visitadas pela troupe estão Petrópolis, Niterói, Campos (RJ); Campinas, Ribeirão Preto, São Carlos,
Araraquara, Sorocaba (SP); Itajubá, Três Corações, Barbacena, São João D’E1 Rei (MG); Recife (PE), Salvador (BA); Porto
Alegre e Pelotas (RS). Informações constantes em Barros, op. cit.., em especial no capítulo 4.
14 O gênero ligeiro engloba uma série de espetáculos musicais tais como a revista, a burleta, o vaudeville, a opereta, a
mágica etc, todos com muitas características em comum. Para maior detalhamento, ver MENCARELLI, Fernando. Cena
Aberta. A absolvição de um bilontra e o teatro de revista de Arthur Azevedo.Campinas, SP: Editora da Unicamp/Centro de
Pesquisa em História Social da Cultura, 1999. Especialmente o capítulo 2.
15 De Chocolat e alguns artistas deixaram o grupo alguns meses após sua fundação, criando em seguida a Companhia
Bataclan Preta, que desapareceu logo depois.
16 A Manhã, 12-10-1926, p. 6. “Nos Theatros”.
17 SOUZA, Ruth. Pioneirismo e luta. Revista Dionysos. Especial Teatro Experimental do Negro. MinC Fundacen, 1988, 121-130.
18 Texto não publicado, encomendado pela Fundação Palmares.
19 JOHNSON, Richard. “O que é, afinal, Estudos Culturais?”. In SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). O que é, afinal, Estudos Cult-
urais? 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 20.
20 CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. A luta contra a apatia. Estudo sobre a instituição do movimento negro anti-racista na
cidade de São Paulo (1915-1931). Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
- PUC-SP, 1993. O autor denomina “rede de vigilância” a atitude dos negros letrados paulistas de intervir nos corpos
negros, cotidianamente, buscando uma reformulação das regras de conduta, tais como conversas em tom baixo, o gosto
pela valsa, agir com cortesia e praticar a monogamia.

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ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL...

A TERRA E OS DESTERRADOS:
O NEGRO EM MOVIMENTO
Dagoberto José Fonseca*

Prof. Dr. da Unesp

As massas camponesas oprimidas e exploradas de nosso país,


reunidas em seu I Congresso Nacional, vêm, por meio desta
Declaração, manifestar a sua decisão inabalável
radical..
de lutar por uma reforma agrária radical
Declaração do 1º Congresso Nacional dos Lavradores e
Trabalhadores Agrícolas (1962)

Introdução dos dos centros urbanos de algumas cidades


de pequeno ou médio porte, com relações
A relação entre os negros brasileiros e a
sociais, festas e costumes com características
luta pela terra, tomada como tema de pesqui-
próprias.
sa, remonta a Quilombo dos Palmares, estudo
de Edison Carneiro1, escrito em 1944. No Será com as pesquisas e preocupações
entanto, na área referida pela denominação políticas, sobretudo de Clóvis Moura2, acer-
Estudos de Comunidade no âmbito da so- ca da resistência negra e os quilombos, em
ciologia e da antropologia, somente a partir 1959, que iremos ter uma produção docu-
da década de 1950 é que passou a haver uma mentalmente detalhada sobre essa realidade
atenção voltada para essas populações rurais. social no Brasil rural. Os quilombos brasilei-
A essa altura, porém, estas comunidades não ros começaram a interessar diversos pesqui-
eram tomadas como áreas quilombolas. Elas sadores da Sociologia e da Antropologia so-
foram analisadas como bairros rurais, afasta- mente depois de meados da década de 1980,

* Coordenador Executivo do Núcleo Negro da UNESP para Pesquisa e Extensão (NUPE) e assessor do NERA (Núcleo
de Estudos, Pesquisas e Projeto em Reforma Agrária) no Projeto DATALUTA – Banco de dados da luta pela terra.

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A TERRA E OS DESTERRADOS...
tendo como aporte teórico e metodológico a obteriam terras no Brasil mediante a compra
História. Não se considerava o capital cientí- ao Estado Imperial. O proprietário das terras
fico da Geografia como uma possibilidade de era o império, que não mais poderia doá-las,
pensar analiticamente o espaço, o território, mas somente vendê-las. Desse modo, a po-
a topografia e as relações sociais construídas pulação submetida à longa escravidão, mes-
e constituintes desses ambientes sociais. mo que recém liberta, não teria condições
Os estudos referentes à questão agrária financeiras para adquirir um bom pedaço de
no Brasil também não deram a devida aten- terra para viver com dignidade, para plan-
ção para o fato de que a maior parte das pes- tar, colher e manter o seu próprio sustento.
soas presentes nas lutas e conflitos no campo A imensa maioria negra manteve-se depen-
era de ascendência africana. Constatamos dente do trabalho existente nas terras de se-
isso no trabalho de Edmundo Muniz sobre nhores brancos ou migraram para as cidades
Canudos (1984), bem como nos artigos pro- grandes da época3.
duzidos nos anos de 1960 afim de pensar a Em fins do século XIX, quando já era
questão agrária, organizados por José Grazia- certa a abolição da escravatura, essa popu-
no da Silva e Maria Nazareth B. Wanderley lação trabalhadora que construiu o país e
(1980), e por Élide Rugai Bastos (1984). suas instituições sociais e culturais permane-
Eles não enfocaram essa população em mo- cia dependente das terras de seus senhores,
mento algum de seus estudos, pois ficaram como lugares de produção e de residência.
na análise de classe social e da expropriação Carregaria, ainda, a pecha pejorativa de que
da terra pelo grande ou médio capital, pelo era a culpada pelo atraso tecnológico, polí-
grileiro ou pelo latifundiário. tico, econômico e cultural do Brasil, além
Os inumeráveis estudos publicados e de que era constituída de “gente perigosa”,
não publicados que abordaram a população indolente e ignorante4.
negra no Brasil, suas histórias e suas cultu- Com essa visão preconceituosa e de
ras trataram, sobretudo, da parcela situada fundo eminentemente ideológico e político
na cidade, ou seja, os negros urbanos e seus é que essas populações tiveram enormes di-
movimentos. Mais recentemente, nos anos ficuldades em obter terras, a não ser quando
1980-1990, é que apareceram diversos estu- impuseram um processo de enfrentamento a
dos sobre as comunidades quilombolas e a
esta situação social, antes e depois da lei de
situação de conflito na terra.
terras e da lei áurea (1888).
O negro e a propriedade da terra – A população negra (africana e afro-
revendo Palmares brasileira) teve inúmeras dificuldades em
Desde o período escravista brasileiro obter terras, seja no espaço urbano, seja no
temos ciência de que as populações indígenas, rural. Nos espaços urbanos, ao longo dos sé-
africanas e afro-brasileiras submetidas ao sis- culos escravistas, as terras foram adquiridas
tema escravocrata não teriam grandes chances a partir da compra de alforria por parte da-
de obter grandes extensões de terra pela via queles que já estavam instalados nas áreas ur-
oficial, cartorial e patrimonial empreendida banas trabalhando como “negros de recado”,
e reconhecida pela coroa portuguesa e pelo em ocupações como carregar objetos, cargas,
império nacional, já que essas populações não senhores e sinhás pelas ruas, e também como
eram revestidas dos títulos nobiliárquicos dos quituteiras, lavadeiras, meninas, homens e
reinóis e dos brancos nacionais. mulheres de aluguel etc.5
Essas populações de descendência Com essa liberdade conquistada, eles e
africana não conseguiriam a posse da ter- elas puderam lançar-se a um outro esforço, a
ra, sobretudo após a promulgação da lei de saber, a compra de seu pedaço de terra. Mui-
terras, em 1850 (COSTA, 1987; MOURA, tas famílias negras residentes nas áreas centrais
1994: 69-79). A partir de então, apenas se das diversas cidades médias, pequenas e gran-

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A TERRA E OS DESTERRADOS...
des do país, proprietárias de terrenos, são fruto acesso a terra como proprietários deste bem
desse processo iniciado no século XIX. Várias material e simbólico.
irmandades negras localizadas e proprietárias
Nos séculos em que o sistema escra-
de vastos terrenos nestes espaços urbanos são
vista imperava soberano, se destacam as co-
oriundas do século XVIII e XIX, demons-
munidades quilombolas presentes em todo
trando o esforço de famílias e associações de
o território nacional. Há diversos quilombos
negros, alforriados ou não, para obterem sua
conhecidos no Brasil6. O mais popular é o de
propriedade, antes mesmo do século XX.
Palmares, pela sua existência, sua resistência
Nas cidades, os negros tiveram de lu- e seu projeto político-econômico e cultural
tar muito para manter esses espaços em suas de respeito e de acolhimento à diversidade
posses, mas muitos não conseguiram trans- social e produtiva do solo7.
mitir esse legado para as gerações futuras, na
A utilização democrática da terra e a
medida em que não tiveram condições de
riqueza do solo palmarino foram os susten-
pagar os pesados impostos ou tiveram boas
táculos de sua duradoura manutenção polí-
propostas comerciais em suas casas. Além
tica, cultural, econômica e histórica. Com
disso, muitos precisaram sair dessas áreas
isso, veio a ser também a pedra na bota co-
mediante processos políticos e empreendi-
mentos privados de urbanização, traçados a lonial portuguesa, ferindo diversos interesses
partir de uma lógica de expulsão dos negros nacionais, sobretudo por estar assentado em
para as longínquas periferias, afastando-os um solo profundamente fértil. Esse foi o
dos cenários decisórios de poder (SANTOS, principal motivo da tentativa de usurpação
1987; SINGER, 1985). das terras palmarinas, ou seja, a fertilidade e
a abundância de recursos naturais levaram os
Desde o período escravista, no Brasil, senhores de engenho e militares a elimina-
o poder público e a iniciativa privada, estive- rem a população deste grande e paradigmáti-
ram mantendo essa aliança com a finalidade co quilombo brasileiro (CARNEIRO, 1988;
de alocar as populações indesejadas, livres ou FREITAS, D.,1984; FREITAS, M., 1988).
escravizadas, longe dos espaços simbólicos
e logísticos de acesso ao poder, diminuindo Os homens e mulheres8 africanos e de
com isso a sua possibilidade de reivindicar sua ascendência desafiaram o regime escravis-
direitos sociais. Nesse contexto, as políticas ta e o jugo colonial, tentando conquistar sua
públicas direcionadas para essas populações liberdade e sua terra, em suma, sua humani-
empobrecidas e de descendência africana fo- dade. Fugiram para lugares distantes, longe de
ram articuladas a fim de retirá-las aos pou- tudo e de todos que os oprimiam, os repre-
cos, mas sistematicamente, para as periferias, sentantes da ordem e estrutura social vigente
onde eram alocadas em desassistidos conjun- à época. Esses lugares no meio do mato, de
tos habitacionais ou mantidas nas margens difícil acesso, foram chamados de quilombos,
de avenidas, córregos e áreas de risco (SAN- termo da língua ovimbundo (bantu), prove-
TOS, 1993; BÓGUS e WANDERLEY, nientes dos negros de Angola.9
1992). O complexo de mocambos, na capita-
No espaço rural, essas lutas e dificul- nia de Pernambuco (situado atualmente en-
dades não foram menores. Pelo contrário, tre os estados de Pernambuco e de Alagoas),
quando analisamos o período escravista bra- formou o Quilombo de Palmares, ao longo
sileiro, já que naquele momento a ocupação do século XVII, espalhado por toda a íngre-
das terras agriculturáveis e a sua extensão de- me e estratégica Serra da Barriga. O nome de
notavam um símbolo de poder. Uma equa- Palmares deu-se pela abundância da palmei-
ção simples que se desenhava para a realida- ra pindoba. A região palmarina era constitu-
de política, econômica e cultural era: quanto ída de uma vegetação vastíssima e exuberan-
mais terras, mais poder. Nesse quadro, os te10, com árvores frutíferas e muitos animais,
negros, em sua grande maioria, não tiveram além de ser bastante irrigada por córregos e

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A TERRA E OS DESTERRADOS...
rios. Dali eles tiravam a sua subsistência11, do o vírus de independência no Brasil. Para
e tinham a sua própria agricultura, pautada tanto, vinte e cinco expedições de militares
pela policultura12. Distantes da vida sofrida e mercenários foram para Palmares com esse
da escravidão, os negros cantavam nas noites intuito, entre os anos de 1654 a 1695, des-
de luar: truindo-o em 1695, com a morte de diver-
Folga Negro sos líderes, particularmente com a morte de
Branco não vem cá. Zumbi, no dia 20 de novembro.
Se vinhé Em pleno século XXI, a população de
Pau é de levá. descendência africana ainda luta pela perma-
Em Palmares, a maioria era de africa- nência na terra de seus antepassados quilom-
nos e seus descendentes, mas houve a presen- bolas em vários estados brasileiros. A maioria
ça significativa de brancos pobres que viviam das comunidades quilombolas está situada
na mendicância e de prostitutas, bem como na região nordeste, mas é significativo o nú-
de indígenas que também lutavam contra a mero de quilombos no sudeste, no norte e
exploração e a expropriação de suas terras no centro-oeste. Este perfil é compreensível
pelos colonialismos português e holandês. até pela dinâmica social imposta e pela den-
O Quilombo de Palmares teve muitas sidade populacional de negros escravizados
lideranças, das quais as mais conhecidas foram nestas regiões do país.
Ganga Zumba e Zumbi. O primeiro tornou- Há muitas comunidades quilombolas
se o rei de Palmares, recriando no Brasil uma sequer reconhecidas pelo poder público. Mes-
estrutura semelhante aos reinados da África mo aquelas que já o são não estão conseguindo
austral. Ganga Zumba não era um nome, com facilidade a titulação de suas terras e pro-
mas um título que significa “senhor” na lín- priedades. Este processo está bastante moroso
gua bantu. O segundo transformou-se em um em função do jogo político e dos interesses
grande líder militar, que lutou até o fim para econômicos presentes no campo, vinculados
a liberdade de seu povo. É importante desta- ao poder local e às artimanhas burocráticas as-
car que Zumbi também não era um nome, sociadas ao não registro em cartório das áreas
mas um título associado à noção de “espírito ocupadas há séculos pelos negros.
invencível”, bem como a Zambi, o nome de
Como já foi dito anteriormente, o
Deus entre algumas etnias bantu.
interesse nas terras quilombolas, desde
Os portugueses, após 1654, procura- Palmares, em diversos estados brasileiros,
ram empreender uma política de destruição não é tão-somente o de retirar as terras dos
do Quilombo de Palmares, pois ficaram pre- negros pelo simples fato de serem negros.
ocupados com a capacidade de organização Essas terras têm valor comercial e produ-
desses negros, sobretudo com as tentativas de zem renda, estão em pontos estratégicos
ocupação pelos holandeses na região. A des- geograficamente, são agriculturáveis, ser-
truição de Palmares fazia parte da agenda da vem para a pastagem do gado, estão próxi-
Coroa Lusa e da elite branca colonial. Bus- mas a pontos hidrográficos, isto é, aqueles
cavam com isso aprisionar, escravizar e tam- em que correm os rios, os córregos e as
bém assassinar todos os negros fugidos para cachoeiras (SILVA, 1981; SMITH e RI-
fazê-los um exemplo para todos os demais CARDO, 1979). Enfim, estão em pontos
potenciais revoltosos do Brasil Colonial. comerciais importantes, pois se antes eram
O que estava por trás desta preocupa- afastados dos centros urbanos e de decisão
ção de sesmeiros era a possibilidade de obter político-econômica, atualmente podem
as terras férteis dos quilombolas. A preocu- ser acessados com bastante facilidade, en-
pação da Coroa Lusa era de que Palmares contrando-se como “reserva ambiental” a
poderia influenciar a população branca po- ser explorada por qualquer fazendeiro ou
bre e a negra escravizada a lutar pela liberda- produtor no universo do agronegócio ou
de política e pela igualdade social, inoculan- do turismo rural e ecológico.

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A TERRA E OS DESTERRADOS...
A existência histórica e cultural e a resis- denotam que a luta pela terra no Brasil, segun-
tência social do quilombo de Palmares também do o imaginário, a cultura e a consciência polí-
influenciam o movimento agrário no Brasil. tica transmitida entre os membros e militantes
Diversos assentamentos têm os nomes emble- do M.S.T. remonta ao Quilombo dos Palma-
máticos de heróis e heroínas de Palmares, que res, e tem em Zumbi uma figura ímpar. Essas
lutaram pela liberdade e terra, tais como Zum- denominações colocam-se como hegemôni-
bi, Dandara, Quilombo etc. Na tabela abaixo, cas nos assentamentos do M.S.T. mediante a
se verifica a presença desses assentamentos, presença majoritária da população negra neste
que carregam consigo a marca da história de movimento social, além de sua consciência e
resistência da população negra no país, desde o identidade política em relação ao movimento
período colonial brasileiro. Os assentamentos palmarino do século XVII.

Tabela - assentamentos com denominações referentes à resistência negra13

Estado Município Assentamento Área Nº famílias Ano


AL Branquinha PA Zumbi dos Palmares 876 172 1996
BA Camamu PA Zumbi dos Palmares
BA Camamu PA Dandara dos Palmares 1452 70 1998
BA Conceição do Coité PA Nova Palmares 2243 104 1998
CE Crateús PA Palmares 4208 140 1995
CE Quixadá PA Olivença/Palmares 2046 58 1997
ES São Mateus PA Zumbi dos Palmares 1386 151 1999
GO Vila Propício PA Zumbi dos Palmares 992 22 2001
MA Nina Rodrigues PA Palmares II 12364 380 2000
MA Governador Edison Lobão PA Palmares 2680 97 1997
MG Uberlândia PA Zumbi dos Palmares 492 22 1999
MT Chapada dos Guimarães PA Quilombo 9000 144 1996
MT Dom Aquino PA Zumbi dos Palmares 1246 50 1996
PA Parauapebas PA Palmares 20405 876 1996
PA Parauapebas PA Palmares II 3383 133 1996
PE Bonito PA Serra dos Quilombos 893 70 1995
PI Luzilândia PA Palmares 1445 81 2002
PI Altos PA Quilombo II 393 9 1996
PI Altos PA Quilombo IV 329 36 1997
PI Altos PA Baixinha/Quilombo 800 141 1995
PI Altos PA Quilombo 393 18 1996
PR Querência do Norte PA Zumbi dos Palmares 801 25 1998
PR São Jerônimo da Serra PA Palmares 350 17 1999
PR Palmeira PA Palmares II 178 10 1999
RJ Campos dos Goytacazes PA Zumbi dos Palmares 8005 730 1997
RN Touros PA Quilombo dos Palmares 8055 300 1997
RN Maxaranguape PA Zumbi/Rio do Fogo 1633 72 1987
RO Nova União PA Palmares 9796 318 1996
RO Ouro Preto do Oeste PA Zumbi 1972 80 1996
RS Palmares do Sul PA Zumbi dos Palmares 1317 66 2000
SC Vargem PA Vitória dos Palmares 433 30 1996
SC Lebon Régis PA Conquista dos Palmares 416 32 1996
SC Passos Maia PA Zumbi dos Palmares 1745 102 1996
SC Passos Maia PA Conquista dos Palmares 429 21 1997
SC Quilombo PCT Quilombo 38 3 2000
SC Quilombo PCT Quilombo II 12 1 2000
SC Fraiburgo PA Dandara 439 33 2001
SE Macambira PA Zumbi dos Palmares 1907 80 1999
SE Malhador PA Dandara 3085 106 2002
SP Iaras PA Zumbi dos Palmares 1413 52 1998
SP Presidente Alves PA Palmares 1064 65 1999
BA Iguaí PA Zumbi dos Palmares 22 2003
RN Macaíba PA Zumbi dos Palmares 12 2002

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A TERRA E OS DESTERRADOS...
Essas denominações referentes à resis- violências perpetradas pelas políticas colo-
tência quilombola têm demarcado a consci- nial e patrimonial vinculadas à monocultura
ência e a história política do M.S.T., a ponto e ao latifúndio, excludentes da maioria da
de inferirmos que, na perspectiva desse mo- população brasileira.
vimento social, a luta pela terra no Brasil é Zumbi e os demais quilombolas, como
expressão da resistência negra, mas também Dandara, são vistos também pelo prisma do
do projeto político diferenciado do que é e martírio cristão-católico e pela devoção aos
pode ser o Brasil, no que tange à questão da antepassados, como fazem os Bantus que ori-
propriedade comunal do solo e da multipli- ginaram o Quilombo dos Palmares e tantos
cidade de produtos agrícolas. outros quilombos pelo país. Esses são os valo-
A presença negra e palmarina no ima- res místicos que revestem esse movimento so-
ginário do M.S.T. apresenta-se como a pos- cial, um assentado profundamente na vida do
sibilidade de que negros e não-negros devem povo negro e pobre deste país, outro nascido
estar juntos em um mesmo projeto de base no bojo do ideário da Teologia da Libertação,
social comunitária, que é contrário à pro- que tem lugar na estrutura política, cultural e
priedade privada do solo, bem como à mo- ideológica do M.S.T., como podemos depre-
nocultura agro-exportadora e ao latifúndio ender de O Vigor da Mística (BOGO, 2002).
na história e na cultura agrárias do país14.
Pensar a ocupação da terra no Brasil
Esses assentamentos foram originários é voltar irremediavelmente às relações ins-
a partir de 1995, quando das comemorações taladas pelas capitanias hereditárias, pelas
em todo o país dos trezentos anos da saga entradas e bandeiras, pela grilagem e pelos
e da memória dos palmarinos e, particular- posseiros, portanto pelas forças política e
mente, do assassinato de Zumbi. A figura e econômica, pelo extermínio de populações
a história emblemática deste herói negro que nativas e pela exploração escravista e capita-
lutou pela liberdade do seu povo, entre ou- lista. Os negros no Brasil lutam por terra e
tros fatores, trata da obtenção de terra fértil por liberdade nos quilombos e no M.S.T.,
e rica. Ela encontra eco entre os membros do considerando que essas são as bandeiras que
M.S.T. pelo fato de serem eles vítimas das fundamentam a luta e dão sabor à vida. P uc

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Notas

1 CARNEIRO, E. O quilombo dos Palmares. São Paulo: Nacional, 1988.


2 MOURA, C. Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições e guerrilhas. Porto Alegre: Mer-
cado Aberto, 4ª ed., 1988. Ver, ainda, REIS, João J. e GOMES, Flávio dos S. (Org.)
Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.
3 GEBARA, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil (1871-1888). São Paulo: Brasiliense, 1986; GRAHAM, Sandra
L. Proteção e Obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro (1860-1910).Trad.V. Bosi, São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
4 SCHWARCZ, Lilia M. K. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-
1930). São Paulo: Cia. das Letras, 2002; SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e
criação cultural na primeira república. São Paulo: Brasiliense, 4ª ed., 1995.
5 FONSECA, Dagoberto J. Negros Corpos (I)Maculados: mulher, catolicismo e testemunho. São Paulo: PUC,
Ciências Sociais, 2000; KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Trad. Pedro
M. Soares, São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
6 Ver REIS, João J. e GOMES, Flávio dos S. (Org.) Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil.
São Paulo: Cia. das Letras, 1996; MOURA, C. Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições e guerrilhas. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 4ª ed., 1988.
7 Todos os estudiosos do Quilombo dos Palmares são tributários das informações do rico baiano Sebastião da
Rocha Pita, senhor de engenho e das terras situadas às margens do rio Paraguaçu, que em 1724 escreveu a
História da América Portuguesa.
8 As mulheres negras tinham um papel de destaque na sociedade palmarina. Eram também detentoras de poder,
como acontecia no seio das nações e etnias bantos.
9 O que se sabe do passado desse quilombo é que foi criado nas últimas décadas do século XVI, sendo os seus
fundadores os africanos da etnia Jaga, povo do grande tronco cultural e lingüístico Bantu (Banto). Esse povo foi
considerado como indomável e amante da liberdade.
10 Havia também uma vegetação apropriada para o artesanato, que crescia sob a sombra das palmeiras como as
sucupiras, sapucaias, paus d’arco, imbiribas, canzenzes, louros etc. A riqueza hidrográfica, na região deste quilombo,
estava presente com os rios Ipojuco, Serinhaém e Una, em Pernambuco. Do lado do atual estado de Alagoas ban-
havam essa região os rios Paraíba, Mundau, Panema, Camaragibe, Porto Calvo e Jacuípe. Nesses rios, havia traíras,
carás, jundiás, caborjes, carapós, piabas e muçus. Os brejos do Paraíba possuíam crustáceos, como os pitus e os
caranguejos, além de jacarés. Com toda essa riqueza de fauna e flora, havia também muitas cobras (coral, cascavel,
surucucu, jararacuçu, jararaca, jibóia, caninana, jericoá, cobra verde etc.) Informação extraída de FONSECA, Dago-
berto J., dos artigos “Como era a vida em Palmares” (2003) e “De Palmares à Consciência Negra” (2002).

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A TERRA E OS DESTERRADOS...
11 Com essa vegetação de fibras, os palmarinos confeccionaram roupas e cordas para as paliçadas e cercas que protegiam
o quilombo. Dali eles tiravam a sua subsistência, bem como tinham a sua própria agricultura pautada pela policultura.
12 Os fundadores do quilombo de Palmares eram homens escravizados pertencentes às fazendas da região que
encontraram na oiteira da Barriga, atual Serra da Barriga, o lugar perfeito para implantarem o maior e mais
famoso quilombo da América, pela sua topografia elevada, com colinas, montes e rochedos, pela abundância e
diversidade da vegetação com árvores frutíferas.
13 Fonte: DATALUTA – MST - Banco de Dados da Luta pela Terra, 2003.
14 Os quilombolas em Palmares “produziam óleo de e coco e dendê, vinhos de frutas e uma
espécie de manteiga feita a partir das amêndoas de um tipo de palmeira. Cada família
ocupava um lote de terra, onde produzia para seu sustento – o excedente era guardado
nos armazéns do mocambo, para uso em emergências, como quando o inimigo incen-
diava roças”

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O ORFEÃO E A INGOMA
PEDAGOGIAS NEGRAS NAS PRIMEIRAS DÉCADAS
DO BRASIL REPUBLICANO

Henry Durante

Pesquisador da Associação Cultural Cachuera

Neste artigo, desenvolveremos uma Ao pautarem-se pelo ideal da cultura


análise das iniciativas educacionais do seg- européia, importantes intelectuais, no Brasil,
mento negro nas décadas de 20 e 30 do sé- constróem a imagem da cultura popular como
culo XX. Tais iniciativas nos parecem inte- a cultura do “diferente”, ou exótico. Esse “dife-
ressantes por representarem um contraponto rente” ora representou o atraso – os fatores de
à construção da identidade brasileira com impedimento da modernização do país ou da
base nos aspectos folclorizantes das culturas constituição de uma cultura no nível das cultu-
populares tradicionais. ras das grandes nações do mundo ocidental -,
ora representou a nossa contribuição à consti-
Como temos procurado demonstrar, tuição dessa cultura, como no caso modernista,
a identidade brasileira nos projetos educa- por exemplo. As interpretações variam de acor-
cionais, durante o período republicano, tem do com o momento social e político da história
se caracterizado pela exclusão das culturas republicana e dos grupos que formulam tais te-
indígenas e, sobretudo, negras, em compara- orias. Porém, de forma geral, nos parece haver
ção à moderna cultura ocidental, predomi- uma constante com relação a esse processo: tais
nantemente de matriz européia, considerada culturas têm sempre sido vistas como culturas
neste trabalho como cultura hegemônica. “bárbaras” ou “primitivas”.

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43
O ORFEÃO E A INGOMA...
Não foram poucos os pesquisadores ciais negros. Embora possamos afirmar que
que procuraram identificar manifestações durante o período abolicionista, ou mesmo
culturais dos negros, como os rituais dos can- imediatamente após ele, a escolarização ne-
domblés, a desequilíbrios mentais ou incapa- gra era dificultada, seja pelo preconceito,
cidade de se adaptar à cultura ocidental, pre- seja pelas más condições de vida, a educação
conceito que se estendeu à incapacidade de era um valor para o grupo. Conforme nota
aprendizagem das crianças vindas das classes Gonçalves, essa educação era vista:
populares, tratadas como crianças-problema.
ora (...) como estratégia capaz de
Basta-nos lembrar da tradição dos estudos de
equiparar os negros aos brancos,
psicologia social instituídos por Nina Rodri-
dando-lhes oportunidades iguais
gues e perpetuados, inclusive na educação,
no mercado de trabalho; ora como
por Arthur Ramos. Tal fato faz-nos considerar
veículo de ascensão social e por con-
tal grupo como estigmatizado.
seguinte de integração; ora como
Segmentos da elite liberal republicana instrumento de conscientização
definiram a escola como mola propulsora da por meio do qual os negros apren-
ideologia modernizante. É o fenômeno que deriam a história de seus ancestrais,
Jorge Nagle definiu como entusiasmo pela os valores e a cultura de seu povo,
educação. A escola passou então a ter o papel podendo a partir deles reivindicar
de disseminar a ideologia do brasileiro – des- direitos sociais e políticos, direito à
de que redimido pela educação – como povo diferençaa e respeito humano. 2
diferenç
ordeiro, responsável por conduzir a Nação no
rumo do progresso. Na música, há o incenti- Na ausência quase total de escolariza-
vo à utilização de corais e do canto orfeônico ção, outras, portanto, foram as instituições
como propagador do nacionalismo. Nesse responsáveis pela educação dos negros. Sa-
modelo, é central a exclusão da cultura negra lientamos que estamos tratando a educação,
nos programas escolares. A escola introduzia, neste caso, de forma mais ampla, atentando
assim, os padrões da música ocidental, como para sua importância como preparação para
a escrita musical e as escalas tonais, afim de, a vida na sociedade.
como nota Gilioli,“evitar o ´canto gritado’, Nesse sentido, destaca-se o papel de en-
expressão que qualificava – direta ou indire- tidades negras de caráter cívico e recreativo.
tamente – as técnicas vocais das etnias não- Tais instituições, além do caráter educacional,
brancas e ditas ´atrasadas´, manifestações também tinham fortemente o caráter assis-
estas que seriam ´dissonantes´, ou seja, não tencialista. Em geral, essas instituições sur-
estavam em conformidade com a música giam em virtude do convívio com os imigran-
ocidental moderna” 1. tes. Os negros inspiravam-se no exemplo das
Interessa-nos, portanto, verificar quais associações beneficentes e de mútuo socorro
as estratégias de manutenção ou reelabora- mantidas por colônias estrangeiras, como a
ção das culturas negras realizadas pelo pró- dos espanhóis, dos italianos e a dos portugue-
prio grupo, por representarem processos de ses, que possibilitavam o fortalecimento de
construção simbólica da identidade dos ne- sua identidade e a defesa dos seus interesses.
gros, portanto um contraponto, já que, até Duas entidades, no entanto, ultrapas-
então, tivemos sempre o negro excluído ou saram o caráter meramente assistencialista,
pensado pelo “outro”. embora sem abandoná-los, e imprimiram
Nossa pesquisa nos leva a identificar um caráter político às suas ações. Foram elas
alguns locais importantes para a definição ou o Centro Cívico Palmares e a Frente Negra
manutenção da identidade cultural negra, Brasileira. Quanto ao Centro Cívico Palma-
no período, que são as irmandades negras, res, acreditamos que sua importância maior
as festas populares e, principalmente a partir se deu no tocante à organização política do
do início do século XX, os movimentos so- segmento negro.

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Embora destaquemos a importância da do negro na sociedade, já que, como diz Bar-
atuação do Centro Cívico Palmares, acredi- bosa em seu depoimento, “sempre visava-se
tamos que as ações da Frente Negra Brasilei- a nossa própria recuperação, a nossa integra-
ra foram mais amplas, tendo esta, inclusive, ção social e uma união entre nós mesmos”.3
empreendido iniciativas no campo educacio-
Evidentemente, a cultura fazia parte
nal mais definidas, como o oferecimento de
dos encontros. Eram apresentadas manifes-
ensino primário às crianças negras.
tações artísticas, como poesias, apresenta-
Foi principalmente em consonância ções musicais, entre outras expressões. Era
com os objetivos de “elevação moral” e “in- incentivada a apresentação de temas ligados
telectual” da gente negra que a Frente Negra à identidade negra.
Brasileira pôs em prática algumas das suas
Embora a cultura figurasse entre as pre-
iniciativas, como a publicação A voz da Raça,
ocupações da Frente Negra ou na produção
jornal da imprensa negra, e os cursos de alfa-
de seus freqüentadores, a ênfase dada não foi
betização de adultos e o ensino primário.
no sentido da valorização de elementos da
Em paralelo com a atuação das ir- cultura tradicional, como a oralidade ou as
mandades, acreditamos que tais iniciativas festas populares. Mesmo a questão do encon-
representaram importantes manifestações de tro festivo ganhou conotação de “civilidade”,
resistência da cultura negra durante o perío- fato que se manifesta desde a adoção de deno-
do. Cabe perguntarmos, entretanto, quais os minações “importadas” de tais encontros até
valores da educação propagados pelos negros a auto-vigilância quanto a “excessos” ou “per-
nessas instituições. missividade” no comportamento do público.
Para responder tal pergunta, vale a As atividades dançantes eram realizadas após
pena analisarmos algumas ações da Frente as atividades consideradas formativas, como
Negra Brasileira referentes à educação. An- as palestras. Felix nota que:4
tes, porém, devemos atentar para o fato de A programação montada desta for-
que a Frente Negra tratava a educação de uma ma pela FNB cumpria uma finali-
forma bastante ampla e associada a práticas dade pedagógica que Ela tinha em
como as domingueiras e encenações teatrais. vista. (...) Acerca destes momentos
As questões da alfabetização e da escola pri- dançantes, as propagandas não uti-
mária eram tratadas no terreno da instrução. lizavam o termo baile. Tal medida
As domingueiras se constituíam em buscava evitar qualquer vinculação
encontros com o caráter de divulgação dos destes momentos com certos bailes
objetivos da Frente Negra e de assuntos de que a FNB tanto recriminava. Para
interesse da coletividade. Era espaço de con- referir-se a estes momentos (...) os
ferências, debates e difusão de ideologias. termos eram sarau dançante, con-
tradança, e até nomes meio afrance-
Analisando-se, em A Voz da Raça, de- sados do tipo soirée dansante
dansante..
poimentos de pessoas envolvidas, notamos
que era dada uma grande importância à Do ponto de vista da identidade,
questão do comportamento dos indivíduos nota-se um grande esforço em distanciar-se
negros. Era recomendado que se evitasse o da imagem negativa associada aos batuques,
alcoolismo, os cuidados com a saúde e com a denominação genérica usada para definir
higiene. Também era muito presente a ques- uma forma marcante da sociabilidade negra.
tão moral, simbolizada na formação para a Eram valorizados, nesses encontros, padrões
civilidade. Assim, eram recomendados os estéticos voltados ao gosto da sociedade bran-
cuidados com a família, entre outros elemen- ca, sendo que algumas soirées chegaram a ser
tos, e por outro lado, eram recriminados os realizadas em renomados clubes paulistanos,
comportamentos imorais. Podemos dizer que com ampla divulgação, como forma de se
um dos objetivos dessa ação era a integração aproximar deste segmento. Trata-se de uma

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estratégia de aceitação dos valores da cultura Ainda se encontra grupos escolares
hegemônica, uma procura em escapar do es- que recebem os negros porque são
tigma imposto pelo grupo opressor, que de- obrigados, porém os seus professores
fine tais batuques como expressão libertina, procuram menosprezar a dignidade
aceitando-se e incorporando-se os valores do das crianças negras deixando-as
deixando-as de
opressor, além de praticar-se a auto-vigilân- lado para que não aprendam...
cia e punição, fato que se configura em re-
presentativa vitória do preconceito. Junto ao problema dos professores,
também o sistema de ensino oficial, como um
Na procura pelo distanciamento do todo, era alvo de críticas dos frentenegrinos,
estigma imposto ao segmento negro, assim em particular, os conteúdos escolares. Havia
como na busca por melhores condições de a necessidade concreta, para a FNB, de, por
vida e ascensão social, as ações no terreno da meio da educação, criar uma identidade po-
instrução desenvolvidas pela Frente Negra sitiva, desconstruindo a identidade negativa
Brasileira intensificaram-se, principalmente imposta aos negros pelos segmentos hege-
a partir de 1933, passando a ir além das pa- mônicos da sociedade. Nos artigos dos fren-
lestras e conferências oferecidas aos freqüen- tenegrinos publicados em A Voz da Raça, é
tadores das domingueiras – as quais quase possível diagnosticarmos que era feita a crítica
sempre versavam sobre questões em torno com relação ao caráter de construção dos con-
da civilidade, com ênfase em temas como a teúdos escolares e a necessidade de o grupo
moral e os bons costumes. Tal fato também tomar iniciativa contrária, como no artigo de
pode ser compreendido em virtude da maci- Francisco Lucrécio, no qual este diz que
ça presença do analfabetismo entre os negros
na sociedade brasileira. (...) a técnica da Frente Negra era
reunir na sua sede negros e ele-
Como mostra do papel educativo que
mentos de outras etnias também.
desempenhavam as entidades negras, a inte-
Porque o processo também educa-
lectualização do negro é tema de grande pre-
cional é fazer com que os alunos
ocupação. Com relação a essa questão espe-
se identifiquem numa classe, desta
cífica, foi criada a Biblioteca da Frente Negra
maneira, terminava também com
Brasileira.
o preconceito, com a diferença de
Grande foi, nesse sentido, a impor- cor, de raça. Essa era a tese da Fren-
tância atribuída ao livro como instrumento te Negra. Por isso iniciamos tam-
de intelectualização do negro, pela Frente bém com a educação, achamos a
Negra Brasileira. Diante da necessidade de educação primordial, um elemento
obter o letramento – acesso a melhores con- básico para o processo de integra-
dições de vida na metrópole – valores como ção social. Ao passo que nas escolas
a oralidade, marcante na cultura afro-brasi- oficiais não se cogitava isso. É por
leira, não figuram como objeto de atenção da isso que eu acho que deve haver um
organização. Em seu lugar está o livro, que, processo de modificação do ensino
em artigos encontrados em A Voz da Raça, pedagógico para que as crianças se
adquire ares de “livro-bíblia”5. conscientizem de que somos tam-
Aliado à busca por ascensão social, ha- bém humanos e, como tal temos
via um fator determinante na iniciativa: ofe- que conviver. É só através da esco-
recer opções de educação favoráveis aos ne- la que se pode criar essa filosofia,
gros. Entenda-se isso como livrar os alunos começando com a criança. E com
negros do preconceito exercido por profes- isso, a Frente Negra foi pioneira.
sores em escolas freqüentadas por alunos de Não que não tivesse na escola pú-
outras etnias. No jornal A Voz da Raça, Felix blica as crianças negras, mas só que
localiza o seguinte depoimento de Olimpio determinadas linhas de conduta
M. da Silva a respeito 6: não eram as da Frente Negra.

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Temos, nesse caso, um interessante nacionais, tais como os hinos, o hasteamento
exemplo do projeto filosófico da FNB re- da bandeira, o pavilhão escolar e o Orfeão.
lacionado à identidade e a educação. Nesse
Gallego8, em seu trabalho sobre a ar-
caso, a educação é vista como ferramenta
quitetura temporal das escolas públicas de
para a eliminação do preconceito, a partir
São Paulo, entre 1890 e 1929, nos indica
do convívio em sala de aula de indivíduos de
que este fator compreende reconfigurações
diferentes etnias, para que, no convívio, os
no calendário escolar, organizando desde a
indivíduos se “identifiquem”.
data de matrícula, o início e fim das aulas,
Nota-se a valorização do papel da edu- os horários de entrada e saída, os períodos
cação também por parte do segmento negro. de exames e os feriados. Além disso, tam-
As crianças, tanto as negras quanto as de bém dizem respeito à arquitetura temporal
outras etnias, são vistas como seres a serem escolar os quadros horários “a serem seguidos
moldados, pela educação e pelo convívio, de na organização das atividades dos professores e
modo a se transformarem em indivíduos li- alunos (a divisão da semana e do dia de aula,
vres do preconceito. Conviver, inclusive, sig- as matérias e o tempo a ser dedicado ao ensino
nifica conviver com as diferenças. de cada uma delas, a hierarquia entre elas, o
Outras iniciativas, tais como a organi- tempo de descanso, a importância da pontuali-
zação de biografias dos fundadores da FNB dade, ordem e disciplina)”. Os festejos cívicos
e a galeria de antepassados heróicos, além passaram a ser obrigatórios para professores
do canto coletivo do Hino da Gente Negra, e alunos, como uma estratégia de difundir a
muito freqüente nas festividades da escola, ideologia republicana, atingindo, a partir da
representam outra faceta do projeto de cons- escola, o restante da sociedade.
trução de identidades promovido pela FNB: Tal estratégia, que visa à construção
a criação de símbolos negros. da identidade nacional, vale-se do calendá-
A busca pela de inclusão do negro na so- rio escolar ao “eleger e selecionar datas a se-
ciedade, entretanto, faz com que as atividades rem festejadas, [também] indica o que deve ser
educacionais da FNB amoldem-se aos padrões lembrado e, conseqüentemente, produz esque-
oficias de ensino das escolas paulistas das pri- cimentos”.
meiras décadas do período republicano, basea- O Estado opera no sentido da centra-
das nos padrões de racionalização do espaço e lização e controle administrativo do sistema
do tempo, na disciplina do corpo, na ideologia escolar, fazendo com que cada grupo escolar
modernizante e nos valores estéticos da cultura seja a ele subordinado. Do ponto de vista da
das nações européias e norte-americana. construção do nacionalismo na escola, pas-
A fim de compreendermos o grau de sou a ocorrer uma ressignificação das ativi-
ligação das atividades educacionais da FNB dades educacionais, portanto.
com relação aos programas oficias de ensino, Assim, a FNB, por ser uma escola
cabe aqui ressaltarmos que o desenvolvimen- isolada, urbana e mista, ao iniciar as ati-
to da escola republicana se dá em consonân- vidades de seu curso primário, em 1934,
cia com o processo político de consolidação procurou adequar-se aos programas ofi-
do Estado-Nação. Dessa forma, a escola - ciais de ensino, que definiam os critérios
forjada no processo de criação dos sistemas a ser seguidos nas escolas paulistas. Pro-
nacionais de ensino - passa a ter o papel de vas disto são a constância da execução do
formar crianças e jovens na ideologia desse Hino Nacional no início das principais
Estado, o que permite analisar mudanças na atividades letivas, como entrega de di-
chamada cultura escolar.7 plomas etc., e a adoção de datas cívicas,
Fatores preponderantes no desenvolvi- como o 7 de setembro, o Dia da Bandeira,
mento da cultura escolar republicanas são a or- entre outras datas instituídas pelo sistema
ganização do tempo e a construção de símbolos educacional republicano.

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Em seu programa, podemos perceber Feita esta análise, julgamos ser útil
a importância dada às avaliações e ao calen- demonstrar outra possibilidade de busca de
dário letivo. Em consonância com os progra- referenciais identitários, que diferentes orga-
mas das escolas paulistas, o curso primário nizações negras desenvolviam concomitan-
da FNB adotava o sistema de avaliações peri- temente. Tais iniciativas, configuradas nos
ódicas, por meio de boletins e exames finais. batuques, nas manifestações das confrarias
Os encerramentos de cada ano eram acom- negras, como as irmandades do Rosário, en-
panhados de festejos de encerramento, oca- tre outras, trazem representações das quais
sião que chegava a ser divulgada nos órgãos as entidades negras formais buscavam se
de imprensa, já que se tratava, como rezavam afastar, voltadas que estavam para a inclusão
as diretrizes do ensino das escolas públicas nos padrões oficiais de ensino.
paulistas, de mostrar ao conjunto da socieda- Nas comunidades tradicionais, urba-
de os benefícios do ensino republicano. nas ou rurais, eram praticadas outras pos-
A julgar os artigos analisados do jornal sibilidades de educação, havia diferentes
A Voz da Raça, podemos identificar o forte conhecimentos e formas de aprendizagem,
ligados à manutenção de identidade e dos
apego ao nacionalismo defendido por seus au-
traços de sociabilidade. Como nos lembra
tores. É buscada a união dos negros, cujos es-
Glória Moura:
forços e sofrimentos são fundamentais para a
grandeza da Nação que, se não corresponde a A questão da identidade nessas co-
tais esforços com a visibilidade e o reconheci- munidades é perpassada pela cultura
mento, ainda assim é a Nação brasileira a terra e pela posse da terra. Viver as tradi-
dos descendentes de africanos, que devem ter ções reinventadas, realizar as festas
a primazia do acesso aos benefícios básicos, dos santos, conhecer as histórias
como trabalho (mediante o treinamento via contadas pelos mais velhos, dançar e
educação), moradia etc. Essas garantias vêm cantar as músicas tradicionais, mes-
sendo negadas aos negros, em virtude da ame- mo quando introduzidos novos ele-
aça estrangeira, representada pela chegada de mentos, são traços comuns9.
imigrantes principalmente italianos, com seus
Percebemos, em nossas observações
ideais políticos revolucionários.
das festas populares tradicionais, que há, por
As ações educacionais da FNB, portan- parte dos adultos, o incentivo à participação
to, têm um forte apelo de nacionalismo, mas das crianças na organização e em certas par-
de um nacionalismo unificador das diferenças, tes rituais, desempenhando, por vezes, pa-
aquele que permite que mesmo um segmento péis determinados (bandeireiras, princesas,
tão prejudicado pela República possa ignorar personagens da realeza, capitães-mirins etc.).
as injustiças do passado em favor da exaltação As crianças, por sua vez, aprendem também
dos valores e símbolos da Nação. pela observação atenta e pela imitação dos
mais velhos. Nem sempre, terminada a festa,
Dessa forma, moral, construção de chega ao fim o aprendizado. No dia seguin-
símbolos e identidade negros (marcada pela te à festa, surgem as folias ou congadas de
exaltação do passado heróico de personali- lata, autênticas réplicas dos grupos adultos,
dades negras e pelo culto aos fundadores da formadas pelas crianças da comunidade, que
FNB), adoção de padrões oficiais de ensino improvisam instrumentos de lata e repetem,
(apesar de estratégias para minimizar o pre- sozinhas ou observadas pelos adultos, partes
conceito), busca pela integração do negro na do roteiro tradicional executado pelos mais
sociedade, apoio na exaltação dos símbolos velhos nos dias anteriores. Assim podem ex-
nacionais são as marcas das iniciativas educa- perimentar a memória e as habilidades do
cionais da FNB, as quais não se diferenciam canto e da dança, e aos poucos se preparam
muito das iniciativas de outras entidades ne- para ingressar nos grupos adultos com natu-
gras organizadas no período. ralidade. São os “filhos de peixe”10.

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Devemos lembrar também a impor- de construção de identidades das quais tais
tância do aspecto da oralidade, na cultura peças são, ainda, marcas nas comunidades
popular tradicional, principalmente de matriz onde são executadas. Embora reconheçamos
africana. A palavra, em muitas culturas africa- que hoje os sentidos contidos nelas podem
nas, é portadora de axé, possuidora de energia ter sofrido alguma alteração, ainda assim nos
vital. A palavra que plasma a realidade. permitimos fazer a nossa leitura, a partir do
Também no jongo, a oralidade de- panorama até agora apresentado.
sempenha um papel central, na dimensão (coro) Ô marinheiro, lá no mar re-
educativa. Ao lado da ancestralidade – para lampiô / Ô sereia, é de Angola / Ê
tornar-se jongueiro, é necessário descender Pai Xangô, auê
de jongueiro -, também deve o aprendiz ser
iniciado na arte da utilização ou manipula- (solista) Oi eu não sou daqui / Ora
ção do poder da palavra, ou seja, na capa- eu sou do lado de lá, aieiê / Quan-
cidade de criar pontos – a forma musical do do eu cheguei aqui / Eu vim ouro
jongo - e decifrá-los. Tal capacidade não se bateá, aieiê / Ouro bateia, bateia /
ensina, assim como não se ensina a dançar Ouro vamo bateá / Óia a pedra, tira
ou a cantar o jongo, pois: “[as crianças] não ouro / Tira ouro é no fundo do má,
aprendem, já nascem sabendo”.11 aieiê
Segundo Perez:
(coro) Ô marinheiro, lá no mar re-
as crianças e os jovens herdam esse lampiô...
saber e através das sucessivas repeti-
ções nas festas anuais lembram-se do (outro solista) / Oi o papai num veio
que já sabem de cor, apenas recor- / Ô mamãe me mandô, auê / Oi eu
dam. É o saber do coração. O saber tava no mare / A sereia me balanciô
de cor (...) Ao mesmo tempo, como / Oi na casa de Zambi / Rei ´té mi
esse saber do coração é corporal, se saravô / Rusário de Maria
desenvolve por meio dos sentidos,
Hoje seus nego chegô, oiê
através de um olhar sonoro, um
olfato visual, um olhar táctil, um Esta linda peça musical, apresentada
escutar palpável, um tocar olfativo, durante a Festa de Nossa Senhora do Rosá-
um palato sonoro, e assim, indefini- rio da cidade de Oliveira, Minas Gerais, nos
damente, nessa brincadeira e nesse parece dizer muito quanto ao processo iden-
jogo lúdico com os sentidos.12 titário negro, no Congado.
A seguir, faremos uma leitura de al- A figura do marinheiro, neste caso,
gumas peças musicais registradas por nós ou deve ser entendida em vista da travessia do
por outros pesquisadores em festas popula- Atlântico, empreendida pelo tráfico de afri-
res tradicionais e demais situações rituais13. canos escravizados. Durante a jornada, mui-
Temos realizado registros desse tipo desde a tos foram os mortos, jogados ao mar. Para
década de 1990, com auxílio de gravadores, alguns pesquisadores, isso explicaria a enor-
no início analógicos e agora digitais, além de me devoção a Yemanjá, no Brasil. Yemanjá
registros em vídeo. Nossos registros e entre- é a sereia e Angola é a referência de origem
vistas nos aproximaram dos batuques e con- possível, graças às estratégias de desarticula-
gos citados neste trabalho, nos quais há, sem ção das diferentes etnias africanas trazidas ao
dúvida, permanências e alterações de senti- Brasil, principalmente bantas (provenientes
do, dado o passar do tempo. de Angola, Congo e Moçambique, entre ou-
Não temos, com isso, a intenção de tras localidades), num primeiro momento.
fazer uma mitohermenêutica de tais peças. Xangô, embora seja orixá, deus cul-
Procuraremos lê-las pelo viés dos processos tuado entre os iorubás, portanto, também é

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lembrado, talvez pelo seu caráter de justiça, Nego comia no coxo, nego comia
ao lado de Zambi. no coxo, e agora come na mesa
(bis)
O solista quer se referir ao local de ori-
gem, ao enfatizar “Oi eu não sou daqui / Ora Salve a princesa Isabel, salve a prin-
eu sou do lado de lá”, sem esquecer que este cesa Isabel, que beleza
“lado de lá” também pode referir-se a Aruan-
da, lugar dos ancestrais, de onde exercem sua Nego comia no coxo, nego comia
influência na vida de seus descendentes que, no coxo, e agora come na mesa
quando chegaram aqui, vieram “ouro bateá”,
nos garimpos de Minas Gerais. O ouro, tam- Ao mesmo tempo em que a Princesa
bém, tirado do “fundo do má”, o “ouro em Isabel é saudada, nos batuques, como aquela
pó” é, para os congadeiros, equivalente ao que que trouxe a libertação, a incômoda presen-
há de melhor no indivíduo. Tirar ouro em pó ça do branco é manifestada, seja por meio da
é mostrar o melhor de si e de sua tradição. linguagem direta ou cifrada, característica do
jongo:
Também é lugar de manutenção de
identidades a ingoma, reunião de negros, Vovó na quer casca de coco no ter-
assim como tambor sagrado, utilizado na reiro
prática do jongo e de outros batuques, como
o candombe. Os batuques são, geralmente, Porque me faz lembrar
ainda hoje, manifestações intracomunitárias, Me faz lembrar dos tempos de ca-
nas quais os negros fazem a crônica do negro tiveiro
para o negro14. Neles, os indivíduos da co-
munidade utilizam-se, muitas vezes de lin- Utilizando-se do recurso da metáfo-
guagem cifrada, para falar das dificuldades ra, o branco é identificado como a “casca de
impostas socialmente, sem que indivíduos coco”, justamente por ser o “de fora”.
de fora da comunidade possam compreender Encontramos variação na Comunida-
o que se está querendo dizer. São comuns, de dos Arturos, em Contagem, Minas Ge-
nessa linguagem, o emprego de aspectos da rais, cantada pelo menino Romário, filho do
natureza, assim como deve haver o domínio capitão Dunga:
profundo dos elementos que cercam a vida
da comunidade, para se proceder ao “desen- Papai não gosta de casca de coco no
lace” dos pontos. terreiro
O de vera sá rainha
Nos batuques vamos encontrar, por-
Meu cativeiro16
tanto, referências ao processo de escravização
dos negros, assim como de sua liberdade, que, Por vezes, a linguagem direta é empre-
se é atribuída, muitas vezes, à Princesa Isabel, gada, como no caso do Candombe da Irman-
é anunciada pelos tambores, ou ingoma: dade de Jatobá, em Minas Gerais. O capitão
de congo João Lopes é quem tira o ponto:
Estava durmindo, a ingoma me Solista:
chamou Samba criola
Disse levanta povo, cativero já acabou15 que o branco num vem cá
coro:
Também no batuque de umbigada, ô, s’ele vié / pau vai levá17
do Oeste paulista, encontramos referência à Continua o capitão João Lopes:
libertação dos escravos:
s: ê na festa de preto / branco lá
Solista: num vai
Já acabou a escravidão, já acabou a c: se ele chega num entra / se ele
escravidão, que beleza entra num sai
sai

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Lembramos que o Candombe também metidos com suas causas próprias.
se insere no grupo dos batuques de terreiro, Fatores ideológicos, portanto, foram
sendo portanto, uma manifestação intraco- responsáveis pela não circulação das cultu-
munitária. Neste ponto, o capitão parece res- ras negras no desenvolvimento do processo
saltar esta qualidade, sendo o candombe um educacional brasileiro. Os segmentos não
momento reservado à liberdade de expressão hegemônicos, entretanto, buscaram manter
dos indivíduos e da comunidade, onde a pre- vivas suas manifestações culturais, entretan-
sença do branco não é desejada. to o fizeram fora da instituição escolar, que
Em outro candombe, é narrado o Mito a tais saberes estava fechada, estando, por
de Nossa Senhora do Rosário. O mito é uma outro lado, voltada ao racionalismo, à disci-
construção simbólica na qual a identidade plina, ao hiegienismo e ao desenvolvimento
negra é destacada como aquele capaz de su- do gosto do “belo”, associado à produção
portar as dores da escravidão, amparado por cultural de origem européia. Dessa forma, os
Nossa Senhora, santa que, encontrada no rio, saberes populares ficaram restritos a determi-
assumiu a cor negra, de seu povo protegido. A nados locais de afirmação de identidade dos
santa, retirada do mar, senta-se sobre o tam- grupos estigmatizados, como os batuques de
bu, tambor sagrado utilizado para a prática terreiro, as casas de cultos religiosos afro-bra-
do candombe. Esse tambor também recebe a sileiros, os congados etc..
denominação de Santana, mão de Nossa Se- Recentemente, tivemos aprovada a
nhora, em função do mito. Lei 10.639, que institui a obrigatoriedade
ô, Nossa Senhora, quando no mar do ensino de História e Cultura da África
apareceu / nego véi na bera da praia nas escolas. Será importante que tais leis não
ajueiô, auê / ei, o branco batia no sejam inspiradoras de romantismos respon-
preto / enquanto resovero a questã sáveis por uma nova construção idealizada
/ ô, Nossa Senhora chorô, ê / ei, eles do Brasil como resultado do primitivismo
resovia a questã / Nossa Senhora de uma África construída simbolicamente a
chorô / a lágrima caiu no chão / e da partir de elementos como o bárbaro, o não
lágrima assim brotô, auê / e foi no racional, o infantil, ou a sociedade “desor-
tambú ngoma / que Nossa Senho- ganizada” que se deixou escravizar. Os novos
ra já sentô, auê / solista: Tamburete curricula devem, ao contrário, ater-se para
a contribuição efetiva dos povos que para
Sagrado! coro: com licença auê
cá foram trazidos na constituição de nossa
Em relação a esse universo, podemos cultura, a partir da reelaboração de sua visão
constatar que os curricula e programas esco- de mundo, de suas práticas culturais, assim
lares são também construções ideológicas, como da reflexão acerca dos processos sim-
historicamente delineadas em função dos bólicos de exclusão da cultura oficial de que
interesses de grupos quase sempre compro- tais culturas foram objeto. P uc

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GALLEGO, R. de C. DIAS EM VERMELHO NO CALENDÁRIO: FERIADOS, FESTAS E COMEMORAÇÕES CÍVICAS NAS
ESCOLAS PRIMÁRIAS PAULISTAS (1890-1929). a. Reunião Anual da ANPEd. Anais.

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O ORFEÃO E A INGOMA...
GILIOLI, R. de S. “CIVILIZANDO” PELA MÚSICA: A PEDAGOGIA DO CANTO ORFEÔNICO NA ESCOLA PAULISTA
DAPRIMEIRA REPÚBLICA (1910-1930). São Paulo: FE-USP, . Dissertação (Mestrado).
HALL, S. A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE. Rio de Janeiro: DP&A, 
LEITE, D. M. O CARÁTER NACIONAL BRASILEIRO: HISTÓRIA DE UMA IDEOLOGIA. 6.ED. São Paulo: Ed.
UNESP, .
NAGLE, J. EDUCAÇÃO E SOCIEDADE NO BRASIL – 1920-1929. Araraquara: FFCLA, . (Tese de
Livre-Docência)
PEREZ, C. de S. B. JUVENTUDE, MÚSICA E ANCESTRALIDADE NO JONGO: SOM E SENTIDOS NO PROCESSO
IDENTITÁRIO.
São Paulo: FEUSP, . Dissertação (Mestrado)

Periódicos
A Voz da Raça. Editado pela Frente Negra Brasileira
Quilombo: vida, problema e aspirações do negro. Dirigido por Abdias do Nascimento.

Trabalhos de Campo / Registros de Acervo da Associação Cultural Cachuera!

Notas

1 GILIOLI, R. de S. “Civilizando” pela música: a pedagogia do canto orfeônico na escola paulista da Primeira República
(1910-1930). São Paulo: FE-USP, 2003. Dissertação (Mestrado). p. 232.
2 GONÇALVES, L. A. O. Negros e educação no Brasil. In.: LOPES, E. M.T., FARIA FILHO, L. M. e VEIGA, C. G. (Orgs.)
500 anos de educação no Brasil. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.p.337
3 Depoimento pessoal, apud FELIX, M. As práticas político-pedagógicas da Frente Negra Brasileira na cidade de São
Paulo (1931-1937). São Paulo: PUC-SP, 2001. Dissertação (Mestrado).s/p
4 FELIX, M. Opus cit., s/p.
5 Nesse sentido, ver os artigos de A Voz da Raça “evangelho”,v. 1, n. 16, p.2 (Rajovia), v.1, n.18, p.1 (Silverio de
Lima) e caminho “sacrossanto”, v.1, n.13, p.4 (Mariano)
6 Silva, O. M. da. O que foi a raça negra. A Voz da Raça v.1, n.32. São Paulo: FNB, 17 mar. 1933.p.2 e 4.
7 Entendemos aqui cultura escolar como o define Dominique de Julia “um conjunto de normas que definem
conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses
conhecimentos e incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que
podem variar segunda as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização).
8 GALLEGO, R. de C. Dias em vermelho no calendário: feriados, festas e comemorações cívicas nas escolas primárias
paulistas (1890-1929). 28a. Reunião Anual da ANPEd. Anais.
9 MOURA, G. Ilhas negras num mar mestiço: estudo de quilombos contemporâneos e sua sobrevivência na sociedade
brasileira. In.: SIMPÓSIO DE PESQUISA DA FEUSP, II. Anais. São Paulo: FEUSP, 1995.p.189.
10 Ver, a esse respeito, o vídeo “Filho de peixe”, dir. Paulo Dias. Associação Cultural Cachuera!.
11 Depoimento da jongueira Edna, para o trabalho de PEREZ, C. de S. B. Juventude, música e ancestralidade no jongo:
som e sentidos no processo identitário. São Paulo: FEUSP, 2005. Dissertação (Mestrado).p.75.
12 PEREZ, C. de S. B. Op. cit., pp. 75-6
13 Estes registros formam o Acervo da Associação Cultural Cachuera!, entidade, a qual faço parte, voltada à pes-
quisa e difusão da cultura popular tradicional.
14 Expressão utilizada por Paulo Dias no artigo “A outra festa negra”. In: Festa: cultura e sociabilidade na América
portuguesa. São Paulo: Hucitec, 2001. v.2, p. 859.
15 Peça cantada pelo jongueiro Gil, do Jongo de Piquete, durante Encontro de Jongueiros, realizado na cidade de
Guaratinguetá-SP, entre 21 e 22/11/03. Registro: Henry Durante.
16 Registro realizado por mim em janeiro de 2003, em visita à comunidade dos Arturos, Contagem (MG), no
encerramento do ciclo da Folia de Reis.
17 Registro realizado em 28/11/93, por Paulo Dias. Solista: capitão João Lopes

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O ORFEÃO E A INGOMA...

REDUZIR PARA QUEM?


Givanildo Manoel da Silva

Coordenador do Fórum Estadual de Defesa


dos Direitos da Criança e do Adolescente - SP

Que tempos são estes, em que é quase um delito


falar de coisas inocentes.
horrores!
Pois implica silenciar tantos horrores!
–Bertold Brecht
“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento.
Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”

Atualmente, não é possível pensar, no Para entender essa problemática, temos que
Brasil, a idade para responsabilidade penal entender o percurso da construção histórica do
sem pensar na relação histórica da socieda- conceito de criança e adolescente no Brasil, assim
de brasileira com a criança e o adolescente, como suas práticas e sua evolução legal, e como se
e em especial a quem se destinam as ações localiza a infanto-adolescência negra. Nos últimos
de responsabilização sobre a ausência de um anos as unidades de internação para adolescentes
projeto de nação, o não reconhecimento do autores de atos infracionais (FEBEM) e a campa-
protagonismo do povo excluído e, principal- nha pela redução da responsabilidade penal têm o
mente, do grupo social mais à margem da objetivo de controlar, principalmente a juventude
sociedade, o povo negro. negra que tem estado à margem do mercado de
Nesse olhar, as ações, na história da trabalho e do acesso aos bens materiais e imate-
infanto-juventude brasileira, negam, sub- riais, para justificar a ausência de políticas públicas
metem e oprimem os meninos e meninas que garantam a dignidade e os direitos da popu-
negras, e são por demais conhecidas – mas lação juvenil negra.
pouco reconhecidas – porque vivemos ou vi- Os conceitos de criança e de adolescen-
víamos o falso mito da igualdade racial. te são muito recentes, da perspectiva histórica.

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REDUZIR PARA QUEM?
Nos registros históricos, localizamos, na refor- daqueles filhos menores e sobre a
ma administrativa ocorrida no Império, 1840, libertação anual de escravos.
que há uma necessidade de reconhecer ou
O conteúdo, entretanto, anunciava
estabelecer hábitos das famílias da elite, mais
do que propriamente de reconhecer a infanto- claramente qual seria o verdadeiro destino
juventude. As crianças e os adolescentes não dos meninos e meninas nascidos a partir da-
eram reconhecidos como sujeitos com espe- quela data:
cificidades, em processo de desenvolvimento, Art. 1o: Os filhos da mulher escrava
mas sim entendidos como pequenos adultos, e que nascerem no Império desde a
objetos da ação dos adultos. data desta lei, serão considerados de
As crianças e adolescentes negros(as) condição livre.
não tinham qualquer status, pois eram mão-
de-obra escrava e não reconhecida como ci- §1o: Os ditos filhos menores
dadã na organização social da época. Não ficarão em poder e sob a autoridade
tinham status jurídico a não ser o de mer- dos senhores de suas mães, os quais
cadoria - que seguia as regras do comércio terão obrigação de criá-los e tratá-
estabelecido para aquele tipo de mercadoria! los até a idade de oito anos com-
pletos. Chegando o filho da escrava
Os precedentes do reconhecimento do a esta idade, o senhor da mãe terá
status de cidadão ou ser humano livre entra- a opção, ou de receber do Estado
ram pela porta dos fundos da história. Come- a indenização de 600$000, ou de
çou exatamente pelas crianças no nascedouro, utilizar-se dos serviços do menor
fruto de uma disputa renhida entre os escra- até a idade de 21 anos completos.
vocratas e os liberais (defensores do fim da No primeiro caso o governo recebe-
escravidão), que teve entre seus pontos altos rá o menor, e lhe dará destino, em
a aprovação pelo parlamento britânico da Lei conformidade da presente lei. A in-
Bill Aberdeen (1845), conferindo aos britâni- denização pecuniária acima fixada
cos poderes para reprimir o tráfico – o que será paga em títulos de renda com o
acabou isolando o Brasil nessa prática de co- juro anual de 6%, os quais se con-
mércio e exploração de mão-de-obra escrava. siderarão extintos no fim de trinta
Não satisfeitos com a situação impos- anos. A declaração do senhor de-
ta ao Brasil internacionalmente, os conser- verá ser feita dentro de trinta dias,
vadores, acuados, tentaram propor diversas a contar daquele em que o menor
possibilidades para manutenção ou poster- chegar à idade de oito anos e, se a
gação do fim da escravidão, não tendo êxito não fizer então, ficará entendido
na maioria das suas proposituras. Arquiteta- que opta pelo arbítrio de utilizar-se
da no Gabinete do conservador Visconde do dos serviços do mesmo menor.
Rio Branco, foi aprovada umas das leis mais
perversas para a infância e a adolescência: a A lei comprometeu definitivamente a
Lei do Ventre Livre (1871), que postergou o vida das crianças negras, arrastando-lhes des-
fim da escravidão por mais dezessete anos. de cedo para os serviços pesados e rompendo
com qualquer possibilidade de vivência da
O “belo” nome e enunciado da lei mar- infância ou juventude.
cou durante décadas os nossos livros de história,
sem que aprofundássemos o seu real caráter: Nessa mesma década, começávamos a
ter de forma disseminada a política importa-
Declara de condição livre os filhos da da Europa e executada no Brasil: as rodas
de mulher escrava que nascerem dos expostos ou enjeitados que eram imple-
desde a data desta lei, libertos os mentadas pelas Santas Casas de Misericór-
escravos da Nação e outros, e provi- dia. Consistia, em um primeiro momento,
dencia sobre a criação e tratamento em receber crianças enjeitadas (pobres ou

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REDUZIR PARA QUEM?
indesejadas) na calada da noite por meio de cente haviam avançado: a Declaração Univer-
um tubo cilíndrico, onde meninos e meni- sal dos Direitos da Criança (1959) e o Pacto
nas eram entregues, sem identificar aqueles de San José (1967) são alguns dos exemplos
que estavam do lado de fora. Escorregavam do olhar que estava sendo construído. Entre-
as crianças para dentro da instituição, que tanto, no Brasil, o olhar para crianças e ado-
“acolhiam” e “cuidavam” desses meninos e lescentes não se alterou nas décadas seguintes.
meninas até os catorze anos, idade em que Em 1964, depois do golpe militar, foi criada
teriam de trabalhar para pagar o atendimen- a Política Nacional do Bem Estar do Me-
to prestado pela entidade nor (PNBEM), que deu origem a Fundação
No inicio do século XX, o Brasil passa- Nacional do Bem Estar do Menor (FUNA-
va pelo processo de urbanização e industriali- BEM) e as Fundações Estaduais do Menor
zação, a mão-de-obra era fundamental - a do (FEBEM). Sua base doutrinária foi a da segu-
adulto era cara... Dessa forma, a mão-de-obra rança nacional, estabelecida pelo regime mili-
formada por crianças e adolescentes era a mais tar. Essa política em nada mudou o trato com
utilizada. Com a ausência de regras trabalhis- relação aos meninos e meninas excluídas.
tas, aqueles que menos tinham força acabavam Na década de 1970, com a pressão
cumprindo horários desumanos em situação que catalizava a abertura democrática, alguns
de insalubridade, e recebiam salários muito técnicos trabalhadores da área da infância es-
menores que os adultos. Essa situação só se boçaram o desejo de ver alterada a legislação
modificou quando os trabalhadores adultos, para a infanto-adolescência. Porém, durante
principalmente aqueles vindos da Europa, esse processo de sensibilização da sociedade,
com histórico de organização coletiva, reivin- um adolescente em um assalto acabou assas-
dicaram melhores condições de trabalho para sinando o neto de um ex-ministro do regime
os adolescentes (carga horária menor, defini- militar, provocando comoção e contribuindo
ção do tipo de trabalho que poderiam execu- para que esse ex-ministro se tornasse figura
tar os adolescentes etc.) e que fosse limitada a de destaque na elaboração da nova legisla-
idade para o ingresso no trabalho. ção, o que resultou em uma lei que em nada
Foi crescente a preocupação da socie- avançou, contrariando inclusive o avanço no
dade em relação à infância abandonada, que debate internacional. A ONU, em 1979, es-
perambulava pelas ruas das cidades, excluída, tabeleceu que aquele seria o Ano Internacio-
jovens que não eram de boa família. Foi então nal da Criança, e nesse ano o Brasil aprovou
que o juiz Mello Matos redigiu a primeira le- o Código de Menores, que fundamentava
gislação para pensar a situação dessas crianças a política adotada pela ditadura no trato a
e adolescentes em “situação irregular”, como crianças e ao adolescentes, reforçando toda
foi definido no Código de Menores de 1927, carga de equívocos e preconceitos existentes
que ficou mais conhecido como código Mello no primeiro código de menores.
Matos. Tratava a criança e o adolescente ex- A década de 1980 foi um marco na luta
cluída em uma outra categoria, a categoria pelo reconhecimento da infanto-adolescência
de menor. A esse público, era oferecido um de forma universal. O processo de abertura
acompanhamento como caso de policia ou democrática se acelerou, mas a situação da
caso de justiça numa perspectiva higienista, infância parecia ainda mais grave, pois a situa-
calcada no discurso da saúde pública da épo- ção de miserabilidade dos meninos e meninas,
ca. Deixa ainda clara a existência de duas ca- bem como sua execução, eram agora visíveis
tegorias de crianças e adolescentes: as crianças ao público brasileiro e à comunidade interna-
e adolescentes filhos da classe média e alta; e cional, que não entendia porque o Brasil tra-
a categoria dos menores, os excluídos e filhos tava suas crianças daquela maneira.
dos trabalhadores pobres. Nesse contexto de abertura e pressão
Nas décadas seguintes, as discussões no internacional, as entidades, profissionais,
contexto internacional sobre criança e adoles- parte do sistema de justiça, políticos, mo-

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REDUZIR PARA QUEM?
vimentos sociais e profissionais liberais se Mínimas das Nações Unidas para a Admi-
organizaram para mudar o marco legal da nistração da Justiça da Infância e da Juven-
infanto-juventude. tude - Regras de Beijing (Resolução 40/33
da Assembléia Geral, de 29 de novembro de
Assumiram-se então os pactos, trata-
1985) e Princípios das Nações Unidas para a
dos e normativas internacionais ratificados
Prevenção da Delinqüência Juvenil - (Dire-
pelo Brasil, que universalmente reconhecem
trizes de Riad 1988). O ECA, em seu artigo
como sujeitos de direito as crianças e adoles-
112, definiu como seriam o atendimento e a
centes, na Constituição Federal de 1988, no
aplicação das medidas sócio-educativas:
artigo 227 e posteriormente na lei comple-
mentar 8069/90 – Estatuto da Criança e do Art. 112. Verificada a prática de ato in-
Adolescente (ECA), que afirma que a socie- fracional, a autoridade competente po-
dade deve se responsabilizar pela garantia do derá aplicar ao adolescente as seguintes
bom desenvolvimento de todas as crianças e medidas: I – advertência; II - obriga-
adolescentes. Então, a base doutrinária foi a ção de reparar o dano; III - prestação
proteção integral e a prioridade absoluta a de serviços à comunidade; IV - liber-
esses cidadãos! dade assistida; V - inserção em regime
de semi-liberdade; VI - internação em
Um debate que tem se seguido ao lon-
estabelecimento educacional
go de anos no Brasil é a respeito da idade
mais adequada para culpabilização dos jo- A sociedade brasileira reconheceu as-
vens quando cometem um ato infracional, sim uma enorme dívida com a adolescência,
ou para melhor entendermos, um crime se- e se reconheceu como co-responsável no
gundo o Código Penal. processo de cumprimento da medida.
Primeiramente, seria importante esta- O discurso não é simplesmente aqui-
belecer qual o diferencial entre Pena e Medida lo que traduz as lutas ou os sistemas
Sócio-Educativa. As penas que são aplicadas de dominação, mas aquilo pelo que
aos adultos maiores de 18 anos garantem a se luta, o poder do qual queremos
responsabilização dos adultos quando esses nos apoderar... (Foucault)
cometem crimes, reconhecendo a consciência
plena dos atos cometidos. A Medida Sócio- Apesar do reconhecimento da imensa
Educativa é aplicada quando um adolescente dívida humana e social, o funcionamento dos
(de idade entre 12 e 18 anos), comete um ato órgãos de Estado (principalmente o Judiciá-
infracional, sendo que o adolescente deve ser rio e o Executivo) continuam dispensando
reconhecido no contexto em que cometeu o o tratamento do antigo Código de Menores
ato, ter respeitado seu processo de desenvolvi- aos adolescentes autores de atos infracionais.
mento e ser acolhido adequadamente, ver ob- A grande questão diz respeito ao porquê de
servadas as condições dignas para a compre- tal prática ainda não ter sido superada.
ensão do ato cometido, garantindo o acesso Quando observamos o quadro de vio-
à saúde, educação, lazer, esportes, segurança, lações dos Direitos Humanos de adolescentes,
sociabilização e condições de habitabilidade principalmente aqueles que são encarcerados,
adequadas ao cumprimento da medida. verificamos claramente que existe um profun-
A Medida Sócio-Educativa ficou esta- do recorte de raça, que aponta para uma políti-
belecida na Constituição de 1988, fruto de ca lombrosiana discriminatória que os governos
tentam esconder, por vezes apresentando dados
uma reflexão e construção de várias áreas do
viciados, que escondem o verdadeiro perfil dos
saber, e de uma postura anterior da legislação
adolescentes internados nas FEBEMs.
brasileira (o código penal de 1940 já definia a
imputabilidade para os maiores de 18 anos, e Analisemos o estado de São Paulo,
os adolescentes de 12 a 18 anos seriam inim- que detém 66% dos adolescentes internados
putáveis criminalmente), seguindo as Regras no país.

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REDUZIR PARA QUEM?
A FEBEM de São Paulo tem empre- e setenta milhões de reais) do orçamento
endido um esforço enorme para alterar o direto no ano de 2005. A título de com-
quadro real existente na instituição. De tem- paração, esse é quase o valor recebido pela
pos em tempos, a FEBEM contrata algum Universidade de São Paulo (USP), centro
grupo para simplesmente justificar a sua de excelência cientifica na América Latina, e
existência e se afirmar como entidade impar- ainda o motivo pelo qual o Judiciário interna
cial no cumprimento daquilo que determina adolescentes de forma ilegal, já que o ECA,
a justiça. Porém, observamos que a meto- em seu artigo 122, define em que condições
dologia utilizada sempre tenta provar que o(a) adolescente pode ser internado(a):
existe um processo de embranquecimento
Art. 122 - A medida de internação
dos adolescentes internos na instituição na
só poderá ser aplicada quando:
apresentação de seus dados de reclusos. No
entanto, quando analisada a metodologia, I - tratar-se de ato infracional come-
ela apresenta fragilidades. tido mediante grave ameaça ou vio-
A FEBEM-SP realizou, em 2006, uma lência a pessoa;
pesquisa para definir o perfil dos adolescentes II - por reiteração no cometimento
internos, que indica que a instituição hoje in- de outras infrações graves;
terna mais adolescentes de classe média (25%)
e nos oferece uma percepção da verdade deste III - por descumprimento reiterado
dado, incluindo o aspecto de que esses adoles- e injustificável da medida anterior-
centes, em sua maioria, seriam brancos! Isso mente imposta.
tenta justificar a ação do governo do Estado Ainda no parágrafo 2o:
de São Paulo nesses últimos dois anos contra
o ECA, tentando reduzir a idade para a res- Em nenhuma hipótese será aplica-
ponsabilidade penal. Passemos aos fatos que da a internação, havendo outra me-
acabam fazendo ruir essa tese. dida adequada.

Logo na apresentação da pesquisa, en- Entretanto, via de regra, o Judiciário


contramos frases de três adolescentes inter- não tem respeitado a lei e tem internado
nos que dela participaram: indiscriminadamente os adolescentes. Mais
de 80% dos internos não cumprem os re-
Aqui, se você não faz algum curso,
quisitos estabelecidos por lei, levando-nos a
você acaba se atrasando.
acreditar que as razões são mais culturais do
Então pra você não aumentar a sua que reais para essa política, como nos alerta
caminhada aqui, você acaba fazendo. Salete Magda de Oliveira:
No crime a gente tem de tudo; a Na verdade, estes adolescentes não
vida é muito boa quando você está são punidos pelo que fizeram, mas
na rua. Quando você vai preso é pelo que podem vir a fazer. A inqui-
que é ruim... sição a que são submetidos não per-
corre apenas atos, pessoas e objetos,
Eu tenho a oportunidade de ter
mas vasculha almas, tratadas pela
uma profissão aqui, mas o que eu
mentalidade punitiva como formas
posso ganhar com isso é pouco: o
desabitadas que devem estar a servi-
meu sonho de consumo é maior.
ço do procedimento
procedimento legal.
As frases acima denunciam o olhar
que a instituição tem dos internos, tentan- Outros aspectos chamam muito a aten-
do demonstrar que são os internos que não ção: por que a instituição fez uma pesquisa que
servem para a entidade, e não a entidade que tem como objetivo ser a mais imparcial possível
não serve para eles, o que parece querer ain- (e, pelo seu histórico, sabe que existem vícios
da justificar os R$ 870.000.000, (oitocentos institucionais que precisariam de uma pesquisa

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REDUZIR PARA QUEM?
interna e isenta), mas se decidiu por uma amos- de jovens negros ou afrodescendentes. A pes-
tragem de 1.190 adolescentes em um universo quisa do Programa da ONU para Desenvolvi-
de 5.970 (segundo a FEBEM)? Isso fere a uni- mento (PNUD -2006), por sua vez, constata
versalização, já que todos os jovens têm uma que, das 2,6 milhões de crianças na exploração
ficha personalizada de atendimento. infantil, 65% daquelas que estão na faixa de 10
a 15 anos são negras e 98% das 400 mil meni-
Essa política ilegal é o que tem justifi-
nas no país que são exploradas no âmbito do
cado o não investimento em políticas para os
trabalho doméstico são negras.
adolescentes e jovens, em especial os negros, e
o encaminhamento direto para a única política Não podemos deixar de reconhecer
que realmente o Estado executa para o conjun- que a campanha da redução da idade para res-
to da população negra, e em especial para o jo- ponsabilização penal tem, como fortes com-
vem: a política da contenção e do controle. ponentes, a tentativa do não reconhecimento
da dívida existente com o povo negro e o não
Analisemos os dados reais de como os
reconhecimento do Estatuto da Criança e do
governos têm tratado com descaso a infanto-
Adolescente em toda a sua dimensão. Isso
adolescência negra. Das mortes violentas em
posterga, mais uma vez, a possibilidade do
países que não estão em guerra, o Brasil tem resgate dessa dívida, que consistiria na garan-
o maior índice do mundo. O país é o terceiro tia da igualdade entre todas as crianças e ado-
no ranking geral em pesquisa realizada em lescentes, e de todas as condições necessárias
84 países, entre os anos de 1994 e 2004. para o bom desenvolvimento dos meninos e
Outra pesquisa importante é a da Orga- meninas desse país, principalmente os negros
nização Internacional do Trabalho (OIT). Os e negras. Novamente, evidenciamos o olhar
dados mostram que 45,5% dos desempregados da discriminação racial que lutamos para ne-
no Brasil são jovens, sendo que os jovens são gar, e que todavia se encontra no âmago de
30% da população, e desses mais de 70% são nossa cultura brasileira! P uc

Bibliografia

BONAVIDES, Paulo & VIEIRA, R. A. Amaral. TEXTOS POLÍTICOS DA HISTÓRIA DO BRASIL. Fortaleza: Imprensa Uni-
versitária da Universidade Federal do Ceará, s/d, p. -. In: CALDEIRA, Jorge e outros. CD-ROM
VIAGEM PELA HISTÓRIA DO BRASIL. São Paulo: Companhia das Letras, 
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Brasília, 
Fundação do Bem Estar do Menor. Pesquisa sobre o Perfil do Adolescente internado na FEBEM, SP, --
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
- PNAD , Brasília, .
MEZZOMO, Marcelo Colombelli . Aspectos da aplicação das medidas protetivas e sócio-educativas
do Estatuto da Criança e do Adolescente: Teoria e prática, Site do Curso de Direito da UFSM, Porto
Alegre, .
MUAZE, Mariana de Aguiar Ferreira, A DESCOBERTA DA INFÂNCIA: A CONSTRUÇÃO DE UM HABITUS CIVI-
LIZADO NA BOA SOCIEDADE IMPERIAL,
SÃO PAULO , 1999
OLIVEIRA, S.M. de. INVENTÁRIO DE DESVIOS: OS DIREITOS DOS ADOLESCENTES ENTRE A PENALIZAÇÃO E A LIBERDADE. Dissertação
de Mestrado. São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 
-A moral reformadora e a prisão de mentalidades: adolescentes sob o discurso penalizador , Artigo
publicado no site Scielo Brasil. São Paulo, .
Organização Internacional do Trabalho (OIT). Relatório sobre o desemprego no Brasil, Brasília , 
Organização das Nações Unidas (ONU), Convenção das Nações Unidas sobre os direitos da Criança
e do Adolescente, Genebra, 
Regras Mínimas das Nações Unidas para Administração da Justiça da Infância e Juventude – Beijing 
- Regras das Nações Unidas para Proteção de Jovens Privados de Liberdade - RIAD, 
Programa da ONU para Desenvolvimento (PNUD -), pesquisa sobre mortes violentas no Brasil.
Brasília 

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A FACE NEGRA DO
RIO GRANDE DO SUL
Ênio José da Costa Brito*

Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados


em Ciências da Religião PUC-SP e da UNIFAI

A Abolição não se fez acompanhar de também, prestar uma homenagem a Mário


um projeto de inclusão social e econômica, o Maestri, um dos principais responsáveis pelo
que jogou os ex-escravizados numa condição resgate da presença negra no Rio Grande do
sub-humana. Sem igualdade de condições, Sul. Como historiador, não só trilhou os ca-
seus direitos permaneceram no papel. A na- minhos da pesquisa, como também se dedi-
ção brasileira, lentamente, toma consciência cou à formação de outros pesquisadores(as)
da ingente tarefa de conceder cidadania real como as historiadoras Ana Regina Falkem-
a um grande contingente de afrodescenden- bach Simão e Valéria Zanetti.
tes, o que constitui o eixo central do debate Os livros apresentados procuram resga-
de políticas de ação afirmativa. tar as profundas raízes étnicas-culturais negras
Uma ação afirmativa se faz necessá- portalegrenses. Nas palavras de Maestri, “ape-
ria: resgatar a memória dos ex-escravizados sar de o Rio Grande constituir, de sua origem
que contribuíram ativamente na construção à Abolição, importante pólo escravista, o cativo
da nação brasileira, para que seus descen- negro-africano praticamente foi expurgado dos
dentes possam se orgulhar. As três resenhas cenários históricos reconstruídos” ( MESTRI
apresentadas têm esta intenção. Desejamos, apud ZANETTI, 2002: 11).

* Centro Universitário Assunção - UNIFAI. É autor do livro Anima Brasilis: Identidade cultural e experiência reli-
giosa. São Paulo: Olho d’água, 2000.

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A FACE NEGRA...
Rediscutindo o mito fundador da socie- caminho percorrido foi longo. Após as gran-
dade sulina des secas nordestinas de 1777, 1779 e 1792,
o Rio Grande tornou-se o principal centro
Ao longo das últimas três décadas,
charqueador do país.
Mário Maestri vem contribuindo com suas
inúmeras obras para dar aos estudos sobre a O processo de modernização dos sa-
escravidão no Brasil, e em especial no Rio laderos no Prata, com a introdução de novas
Grande do Sul, consistência analítica e res- técnicas e novas relações de produção, ini-
paldo documental. ciou-se na Argentina, em 1830, graças a An-
toine Cambacères, estendendo-se às hacien-
A reunião de oito estudos do autor
das uruguaias e às charqueadas pelotenses. O
sobre a sociedade escravista riograndense
trabalho assalariado livre consolidou-se nas
nomeada Deus é grande, o mato é maior!
primeiras, enquanto que, nas charqueadas,
Trabalho e resistência escrava no Rio Grande
predominou a mão-de-obra escravizada.
do Sul 1 oferece uma vez mais aos seus lei-
tores textos densos e esclarecedores sobre a Em 1880, o cientista Louis Couty
escravidão no período colonial na sociedade (1854-1884) realiza um minucioso estudo
riograndense. comparativo entre os saladeros do Prata e as
charqueadas sulinas. Para ele,
Desmontar o mito da democracia pasto-
ril, que é um mito fundante da sociedade sulina, não havia lugar para dúvidas: a
e resgatar a contribuição essencial do trabalha- menor rentabilidade da charque-
dor escravizado na formação do Rio Grande do ada em relação ao saladero devia-
Sul são os eixos aglutinadores do livro. se essencialmente à diferença de
mão-de-obra utilizada na produção
A oposição do trabalhador escravizado
(MAESTRI,2002: 24).
O recente debate no âmbito da his-
toriografia brasileira sobre a compatibilida- Para Peter Eisenberg, essa “inferiorida-
de ou incompatibilidade da escravidão com de” do trabalho escravo com relação ao livre
o desenvolvimento tecnológico-produtivo deve ser matizada por diversas razões, entre elas,
trouxe à tona a questão atinente à superação a falta de sua divisão interna. A baixa produti-
da escravidão. vidade das charqueadas seria devida ao número
reduzido de trabalhadores, o que impossibilita-
Se não houve incompatibilidade va implantar uma divisão técnica de trabalho,
entre relações escravistas e produ- fator dinamizador da produtividade.
ção capitalista, a superação do es-
cravismo deve ser procurada, ne- O processo de ocupação pelos portu-
cessariamente, em causas exógenas gueses dos atuais territórios sulinos iniciou-
à formação social escravista. Porém, se em 1680, com a fundação da colônia do
se houve tal contradição, a oposição Sacramento, e terminou por volta de 1875,
do trabalhador escravizado surge com a chegada das levas migratórias de ale-
como fator essencial na explicação mães e italianos.
da crise e superação do escravismo Nesse processo, a presença e a contri-
(MAESTRI, 2002: 17). buição do trabalhador negro foi permanente,
embora a historiografia brasileira e, especial-
Para Mário Maestri, a charqueada mente, a gaúcha as tenham ignorado até pou-
gaúcha presta-se a essa discussão, pois, no sé- co tempo atrás. No entanto, os rastros docu-
culo XIX, empregava cativos e trabalhadores mentais deixados pelos quilombos sulinos são
livres. O mesmo acontecia na indústria sala- inúmeros : toponímia local, editais da Câma-
deril da Argentina e do Uruguai. ra provisionando capitães do mato e proces-
Das práticas corambreras aos salade- sos criminais. Dentre as informações colhidas
ros e às charqueadas sul-rio-grandenses, o sobre os quilombos nos processos criminais,

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A FACE NEGRA...
destacam-se: o amplo relacionamento com a guro do que as fileiras dos exércitos
população escravizada, o desequilíbrio sexual em luta (MAESTRI,2002:61).
e a motivação social - e não ética - das ações.
Rio Pardo, com suas charqueadas, era
Os quilombos do Rio Grande do Sul, outro município que abrigou uma densa
formados por crioulos e africanos, eram pe- população escrava. Uma vasta documenta-
quenos mas aguerridos, e sofreram forte e in- ção atesta a presença de quilombos na área,
cansável repressão por parte das autoridades. como o da serra do distrito do Couto, prova-
Com baixa população feminina e sem crian- velmente fundado pela Preta Vitória. A par-
ças, produziam alimentos para sobreviver, e tir de 1853, a Presidência da Província ado-
não eram totalmente isolados do mundo se- tou uma nova política: o escravo capturado
nhorial. Os quilombolas construíam ranchos só seria devolvido ao seu senhor mediante o
e abrigos, ou habitavam abrigos de ocasião. pagamento dos custos da captura.
As principais aglomerações urbanas da Os quilombos continuaram surgindo:
Colônia e do Império possuíam gran- na estância do Gravataí (1854), na freguesia de
des concentrações de trabalhadores Santa Maria da Boca do Monte (1854), na Ser-
escravizados. Fujões faziam-se passar ra Geral (1855), nas serras do Taquari-Mirim e
por libertos ou negros livres ou per- rio Pardinho (1857), nos rios Pardo (1863) e
maneciam nas imediações das aglo- Pardinho, e colônia de Soledade (1866).
merações, onde fundavam pequenos
Nos anos 1870, começava a cair em
quilombos (MAESTRI, 2002: 43). valor absoluto a população escravi-
O quilombo do Negro Lucas, na Ilha zada sulina. Cativos foram libertos
dos Marinheiros, destruído em 1833, era um para que integrassem os Voluntá-
destes pequenos mas prósperos agrupamen- rios da Pátria, durante a Guerra do
tos de trabalhadores escravizados. Paraguai. Com o fim do tráfico in-
ternacional, o preço do trabalhador
As charqueadas no município de Pe- escravizado subira e o Sul passara a
lotas, com grande concentração de trabalha- exportar cativos para o Centro-Sul
dores escravizados, eram autênticos estabe- do país (MAESTRI, 2002: 75).
lecimentos penitenciários. Tinha um ritmo
de trabalho infernal, ultrapassando dezesseis Nos últimos anos da escravidão, vol-
horas diárias sob intensa vigilância. A docu- tou a crescer o fenômeno quilombola, com a
mentação sobre os quilombos em Pelotas, reação desesperada e violenta dos charquea-
com freqüência, se refere a fugas. dores para reter seus escravos.

Na década de 1830, os quilombolas da A democracia pastoril


Serra dos Tapes – situada a vinte quilômetros
Antes mesmo da fundação oficial da
de Pelotas - deram preocupações, trabalho e
capitania de São Pedro, em 1727, o cativo
despesas à Câmara Municipal e à Presidência
africano já tinha sido introduzido no Sul. No
da província, além de aterrorizar com saques,
entanto, a historiografia, até recentemente,
roubos e assassinatos os moradores da região.
negava a sua presença e importância. Essa vi-
Na Guerra Farroupilha, em 1835, escraviza-
são foi questionada na década de 1970 com
dos eram alistados, e senhores convocados li-
bases documentais. Em 1980, Maestri dava
bertavam cativos para substituí-los. Quando
por comprovada a utilização do trabalho es-
os escravizados colocaram
cravo nas primeiras fazendas de criação. Ra-
zões metametodológicas bloquearam o deba-
em prática a consciência de que,
te nos anos seguintes.
‘se Deus é grande, o mato é ainda
maior’, um bom número [de escra- A reprodução natural dos animais, des-
vos] procurou um refúgio mais se- de o tempo das missões – jesuítas e espanhóis

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A FACE NEGRA...
introduziram o gado no Sul – era a base das ria e literatura tendo como suporte o pensa-
atividades pastoris sulinas, que exploravam o mento de G. Lukács.
couro e a carne com baixa produtividade-ren-
No início dos tempos, história e lite-
tabilidade. As razões da baixa produtividade-
ratura nasceram como ser único e in-
rentabilidade são várias: escassez e alto custo
distinto. Lentamente como parte do
de mão-de-obra livre ou escravizada e ausên-
longo processo de tomada de cons-
cia de técnicas criatórias, entre outras.
ciência do homem de sua existência
Nas grandes fazendas de criação, o ser- social, as duas disciplinas diferencia-
viço doméstico, o beneficiamento dos cereais, ram-se, singularizaram-se e especiali-
a produção de alimentos (charque, farinha zaram-se (MAESTRI, 2002: 125).
etc.), a abertura de valas divisórias e a cons-
trução das tradicionais cercas de pedra eram Para o autor, a unidade e a diversidade se
quase monopólio servil. Os africanos foram fazem presentes nas relações entre história e li-
pouco utilizados como cativos campeiros por teratura. Dentro de suas especificidades, ambas
desconhecerem o pastoreio extensivo. buscam compreender as experiências humanas
e “devem registrar não a aparência mas a essência
O gaúcho - cruzamento da raça bran- dos fenômenos” (MAESTRI, 2002: 134).
ca com a indígena - trabalhava com certa
autonomia como peão. Quando desempre- A tendência atual de reduzir a história
gado e vagamundo, não ameaçava a pro- a uma narrativa em prosa, a uma descrição
priedade fundiária, mas sim o gado. Daí “positiva e atrativa dos fatos”, rejeita o desa-
ser visto como um elemento perigoso pelos fio explicativo. A maximização dessa tendên-
proprietários. A retórica latifundiário-pasto- cia pode levar a uma substituição da história
ril escondeu a tensão entre os proprietários pela literatura ou pelo cinema histórico. Já o
de terra e os peões pela democratização do desafio da literatura é o de expressar a estru-
latifúndio pastoril. tura profunda dos fatos. Por isso, o romance
histórico deve superar as visões historiográfi-
Os avanços produtivos na fazenda pas- cas superficiais e resgatar a memória e a voz
toral sulina foram lentos. Com a introdução dos silenciados.
das cercas, registrou-se um aumento relativo
de produtividade. Maestri ilustra essas idéias com o exa-
me do mito da democracia pastoril no Rio
A cerca das fazendas não impedia Grande do Sul. Sua premissa é que:
apenas a fuga dos gados, diminuin-
do o trabalho dos peões e pasteiros. as reconstruções gentis da história
Ele constituía prova material e sim- sulina alcançam alto grau de consen-
bólica da apropriação privada dos so precisamente porque são produtos
campos anteriormente indivisos de uma manipulação e generalização
(MAESTRI, 2002: 117). de realidades históricas que fundem,
num discurso mítico, expectativas
A população escrava cresceu na provín- das classes populares, do presente, e
cia após a proibição do tráfico (1850), graças visões do mundo das elites, do pas-
a um crescimento vegetativo. Entre 1874 e sado (MAESTRI, 2002: 139).
1884, o Rio Grande tornou-se o maior ex-
portador de cativos para o centro-sul. A literatura tem contribuído, direta
ou indiretamente, para a fixação de uma vi-
Maestri aprofunda a reflexão sobre o
são edênica do passado sul-riograndense, e O
mito da democracia sulina num diálogo com
Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, é um dos
a literatura, ilustrando-o com a análise da
textos que mais contribuiram nesse processo.
obra clássica de Érico Veríssimo, O Tempo e o
Vento. Apresenta, primeiramente, um denso Érico Veríssimo reconheceu a impor-
e erudito ensaio sobre as relações entre histó- tância do cativo na gênese do Rio Grande

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A FACE NEGRA...
do Sul, mas literalmente eliminou sua con- a elevação do preço dos trabalhadores es-
tribuição. cravizados.

A recriação ficcional da gênese da O esquecimento dos afro-gaúchos


civilização gaúcha do autor não
Quais são as raízes africanas do povo
possui sequer um personagem ne-
gaúcho? Para responder a essa difícil ques-
gro, mesmo secundário, com ros-
tão, os historiadores contam com os dados
to e nome, que dê corpo, anime e
históricos, os africanismos do falar regional,
registre, ficcionalmente, a impor-
as religiões afro-gaúchas e as contribuições
tância dos trabalhadores escravi-
africanas no folclore.
zados naqueles idos. E, como sa-
bemos, sem personagens, não há De 1737 a 1888, houve a presença
narrativa ficcional (MAESTRI,
(MAESTRI, massiva de cativos “angolanos”; em 1818, os
2002: 143). “minas” já são majoritários, especialmente nas
regiões charqueadoras. Em 1856, os cativos
No entanto, trabalhadores escraviza- provenientes do Golfo da Guiné eram maioria.
dos estavam presentes entre os ocupantes das Constata-se, também, um aumento de núme-
primeiras sesmarias sulinas e continuaram ro de moçambicanos. Pode-se inferir que,
chegando após a fundação do Rio Grande,
em 1737. para milhares de cativos, às difíceis
condições de existência sob a escra-
A utilização sistemática do braço vidão, ajuntava-se, comumente, um
escravo nas fazendas e, sobretu- doloroso isolamento cultural e lin-
do, na produção tritícola, explica güístico (MAESTRI, 2002: 179).
a alta incidência da mão-de-obra
escravizada no primeiro levanta- O trabalhador negro escravizado não
mento demográfico conhecido no tem lugar no imaginário histórico e étnico
Rio Grande do Sul, de 1780. Nesse gaúcho. “É como se seu sangue e suor jamais
momento, encontravam-se já ple- tivessem regado o solo fértil sul-rio-grandense”
namente estruturadas a produção e (MAESTRI, 2002: 183).
a sociedade escravista sulina (MA- Contudo, até a Abolição, o Sul era
ESTRI, 2002: 157). uma importante província escravista. O pri-
A atividade saladeiril, antes artesanal, meiro levantamento demográfico (1780) in-
qualificou-se em 1780, e passou a empregar dicou que 24% da população era negra, e o
mais trabalhadores escravizados; em 1840, a primeiro censo nacional sobre a população
região contava com quarenta mil. Este nú- servil apontou a província como a sexta no
mero caíu para trinte e um mil com a Guer- rol das escravistas.
ra dos Farrapos, mas voltou a crescer entre A historiografia tradicional, numa
1870-1880, atingindo o número de oitenta operação ideológica e pluridisciplinar, co-
mil escravizados. mungando com as teorias “racistas-científi-
cas” do final do século XIX, embranqueceu e
Os dados disponíveis sugerem que, enobreceu as raízes históricas do Rio Grande
até 1850, o Rio Grande do Sul teria do Sul. Passou-se do racismo antinegro para
sido comprador de cativos (MAES- o racismo científico.
TRI, 2002: 160).
Para os historiadores positivistas rio-
Após 1850, passou a exportar, man- grandenses, o Rio Grande do Sul nasceu do
tendo um relativo crescimento demográfico trabalho livre. Essa é a visão popularizada
da população escrava. Entre 1874 e 1884, pela obra de Érico Veríssimo. “As ‘cirurgias
exportou 14.302 cativos para os centros plásticas’ historiográficas e ficcionais patrocina-
produtores de café. Negócio rentável, dada das pelas elites possuem sempre o objetivo - im-

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A FACE NEGRA...
plícito ou explícito - de conservar e imobilizar campo social, político e religioso. Além disso,
o presente” (MAESTRI, 2002: 192). contribui para uma reflexão sobre aspectos te-
óricos da política cultural brasileira.
Nas últimas décadas, um novo ciclo
mítico começou a ser construído, o teuto- Outra contribuição importante é a do
italiano. Esta operação silencia, nega e des- diálogo com a literatura, vertente ainda pou-
conhece a dinâmica do processo colonizador co explorada pela historiografia. A recriação
e ainda reforça o mito do Rio Grande do Sul ficcional contribui para formar, consolidar e
como produto do trabalho livre. O esque- ampliar o imaginário social. A narrativa fic-
cimento da contribuição dos trabalhadores cional da gênese da civilização brasileira traz
escravizados tem conseqüências históricas e no seu bojo promessas e ameaças que podem
sociais, pois contribui para a desqualificação ser desveladas e avaliadas pela historiografia.
Maestri faz este movimento com precisão ci-
sócio-racial do afrogaúcho e fomenta ten-
rúrgica em sua análise do mito fundante do
dências racistas.
Rio Grande do Sul.
Maestri conclui com um depoimento
Ler Deus é grande, e o mato maior é
pessoal, no qual faz memória de sua contri-
desfrutar da pesquisa de um historiador cio-
buição para a implantação e o desenvolvi-
so do seu oficio e das suas implicações sócio-
mento da pesquisa sobre a escravidão colonial políticas. Leitura prazerosa e enriquecedora.
no Rio Grande do Sul. Aponta, também, os
riscos da historiografia atual, os ganhos dos Pelotas, uma cidade escravista
estudos sobre a escravidão no Sul e os desa-
A coleção Malungo, editada pela Uni-
fios que permanecem. Nas suas palavras:
versidade de Passo Fundo (RS), apresenta
o fundamental é compreender que mais um livro, intitulado A escravidão urba-
o futuro dos estudos escravistas no na em Pelotas – RG (1812- 1850)2, da histo-
Rio Grande do Sul está sobretudo riadora Ana Regina Falkembach Simão.
nas mãos de vocês, jovens estudan- A autora é uma das pioneiras no es-
tes e futuros historiadores de nosso tudo da escravidão colonial urbana no Rio
estado (MAESTRI, 2002:2002: 216). Grande de Sul. O trabalho tematizado é
sua dissertação de mestrado, defendida em
Realces 1993 na PUC-RS, com orientação de um
Deus é grande, o mato é maior realiza dos mais importantes estudiosos do tema no
com sucesso o resgate da presença e da con- Rio Grande do Sul, Mário Maestri. Para ser
tribuição dos trabalhadores escravizados na publicada, a dissertação passou por modifi-
constituição do Rio Grande. Até 1850, o Rio cações na forma e no conteúdo, mantendo
Grande, com sua massiva população negra, todo o vasto material factual e ampliando o
ocupou lugar de destaque entre as principais diálogo com novos textos, como nos diz a
regiões escravistas do Brasil. própria autora.
O texto de Mário Maestri voltado O trabalho meticuloso com a do-
para a experiência escravista sulista lança lu- cumentação primária e o diálogo crítico
zes sobre questões importantes que até hoje com historiadores envolvidos com a te-
nos inquietam: como repensar nossos mitos mática da escravidão possibilita à autora
fundadores? Quais são os nossos modelos de realizar com clareza e profundidade o seu
identidade cultural? Como construir a nação objetivo:
e a identidade brasileira, numa era globali-
contribuir para uma compreen-
zante, sem negar o seu passado?
são plausível do passado escravista
Maestri desvela as matrizes de muitos brasileiro, sobretudo no que tange
medos ainda presentes na sociedade brasileira, à escravidão nas cidades (SIMÃO,
os quais impedem o nascimento do novo no 2002: 20).

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A FACE NEGRA...
Organizado em seis capítulos, a saber, ção original”, explicada por ter se tornado
“A sociedade escravista brasileira”; “Pelotas: um pólo charqueador.
o moderno, a opulência e a escravidão”; “Pe-
O charque esteve presente no Rio Gran-
lotas: busca da alforria”; “A possibilidade de
de desde os primórdios, charque artesanal. Com
resistência”; “Os escravos e a possível famí-
as grandes secas nordestinas de 1777, 1779 e
lia”, e “Entre a saúde e a doença”, o livro tem
1792, o Sul, com sua produção industrial - in-
como eixo organizador a renitente e diuturna
troduzida por José Pinto Martins - consolidou-
tentativa dos trabalhadores escravizados de
se como pólo charqueador, mantido por uma
melhorarem suas condições de vida. Tenta-
massa de trabalhadores escravizados. O desen-
tiva marcada seja pela acomodação, seja pela
volvimento da indústria saladeiril enriqueceu a
resistência.
população senhorial, sem contudo diminuir os
Escravidão e alforrias em Pelotas rigores do trabalho servil.

Para a historiografia atual, a presença As manumissões representavam um


escrava na fazenda gaúcha é indiscutível. No dos caminhos mais cobiçados pelos
entanto, o trabalho rural nos primórdios não cativos para obterem a liberdade.
foi exclusivamente escravista. Contou com a Desde a Antigüidade até os tempos
mão-de-obra familiar e do peão. No século modernos, as alforrias fizeram parte
XIX, viajantes que passaram pelo Sul mencio- da estrutura escravista. (SIMÃO,
naram o cativo campeiro (Saint-Hilaire, Ni- 2002: 67).
colau Dreys, Arsene Isabele e Carl Steidler). Beneficiando tanto cativos como se-
A consolidação da indústria do char- nhores - forma de capitalização, substitui-
que, na segunda metade do século XVIII, ção de trabalhadores idosos –, as alforrias
estruturou e ampliou a presença de cativos. poderiam ser onerosas ou não. Em Pelotas,
Escravos “novos” foram introduzidos em na concessão de alforrias, as mulheres predo-
grande número. Em 1780, dos 17.923 ha- minaram, seguidas dos pardos e crioulos. Os
bitantes de Pelotas - importante centro ur- africanos receberam poucas manumissões.
Nos períodos de crise econômica e política
bano -, 5.138 eram negros (28,6% ). Após a
as alforrias aumentavam, como por exem-
proibição do tráfico, em 1850, o Rio Grande
plo, durante a Guerra dos Farrapos (1835-
do Sul passou a exportar escravos, mantendo
1845).
proporcionalmente a população cativa.
Comparando as manumissões conce-
A mão de obra cativa desempenhou
didas com a população cativa, elas não eram
um papel fundamental no desenvolvimento
expressivas. Em 1833, o censo apontava para
das cidades brasileiras. O cativo urbano, es-
Pelotas uma população escravizada em torno
pecialmente o de ganho e o de aluguel, go- de 5.623 habitantes; as alforrias representa-
zava de uma certa mobilidade, mas não era vam apenas 1%
mais bem tratado do que os cativos rurais. As
“Posturas Municipais”, os relatos dos viajan- Formas diversas de resistência servil
tes e a documentação oficial o comprovam. A resistência servil, as negociações e
Como Simão relembra, as acomodações eram componentes essen-
o cativo ao ganho não vivia uma ciais da história social do Brasil colonial e
relação não–escravista... (SIMÃO, imperial. Contudo, a polarização dos estu-
2002: 50). dos privilegiava ora a acomodação (Gilber-
to Freyre), ora a resistência (Clóvis Moura).
Pelotas, fundada em 1812, passou à Autores como Stuart Schwartz, Kátia Mat-
condição de Vila em 1830, e de cidade, em toso, João José Reis, Eduardo Silva e Silva
l835. Nasceu urbanizada e bem localizada. Lara, entre outros, tentam uma via média, a
Para alguns historiadores, teve uma “forma- do consenso e acomodação.

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A FACE NEGRA...
Para a autora, essa perspectiva analí- e o segundo, por uma intensa rede de solida-
tica pode desviar a compreensão da história riedade tecida entre os cativos.
social se olhar o trabalhador só como sub- No exame dos processos de crimes,
misso. Na verdade, ele resistiu no dia-a-dia outras expressões de sexualidade vivida pelos
de diversas maneiras e ainda por meio de cativos vieram à tona: concubinato, ciúme,
roubos, homicídios, lesões corporais e até traições e até casos de estupros.
suicídio individual e coletivo.
A leitura de Resistência e acomodação
A análise de processos crimes, em Pe- revela-nos uma pesquisadora cuidadosa, pre-
lotas, de 1832 a 1849, documenta bem a ocupada em não diluir o escravismo na cida-
resistência . Um crime muito comum era o de, mas em resgatar a sua presença marcante
roubo, roubo de jóias e roupas. Roubava-se em Pelotas. Tendo como cenário a cidade de
com o intuito de melhorar as condições de Pelotas, narrou minuciosamente os fazeres e
vida. Homicídios e lesões corporais, além de os dramas vividos pelos trabalhadores escra-
serem muito freqüentes, desvelavam a vio- vizados entre 1812 e 1850
lência do sistema escravista.
Simão trata com maestria a dialética
Quanto ao suicídio,
entre resistência e acomodação e dialoga com
... deve ser analisado levando-se em seus pares a partir de um amplo levantamen-
consideração as más condições de to de dados. Contudo, as pesquisas historio-
vida a que a maioria dos escravos gráficas têm evoluído rapidamente, disponi-
estava sujeita, e não um ato plane- bilizando para os pesquisadores informações
jado para prejudicar o senhor (SI- preciosas que possibilitam a ampliação das
MÃO, 2002: 108). pesquisas sobre determinados temas. A te-
mática da sexualidade e da família, tratadas
Simão consultou livros de batismo
seminalmente no livro, merecem uma am-
(1812-1852) e de casamentos (1821-1845)
pliação, como sugere Mário Maestri.
da Igreja matriz de Pelotas e processos crimes
da primeira metade do século XIX, na busca O que surpreende na leitura de Resis-
de indícios da presença da família escrava na tência e acomodação é que certas teses da au-
sociedade pelotense. tora continuam em vigor até hoje. As vinte e
Constituir família, tanto na área rural sete tabelas, repletas de dados, nos convencem
quanto urbana, exigia criatividade e persis- de que raça era um critério determinante não
tência por parte dos cativos e também uma só na sociedade colonial, como na atual.
certa benevolência dos senhores, que procu- Os dados apresentados convidam aos
ravam tirar proveito da permissão dada. leitores a olharem de frente a discriminação
Para a autora, tão presente no país. O momento é favorável,
uma vez que a nação está sendo convocada
a instituição familiar , nos padrões a pensar projetos alternativos e políticas de
convencionais, não faz parte signi- ação afirmativa para ressarcir desigualdades.
ficativa do dia-a-dia do cativo” (SI-
MÃO, 2002: 123). A qualidade e a importância desse
livro vão aparecendo aos poucos durante a
Pelos dados dos registros de batismo, leitura.
descobriu serem os padrinhos forros ou es-
cravos; a paternidade era pouco indicada, e Resgate da presença negra no Rio
só às vezes mencionava-se a madrinha. Grande do Sul
Encontrou, ainda, tanto a presença de Calabouço urbano: escravos e libertos
um “grupo familiar semi-estável”, como de em Porto Alegre (1840-1860)3, estruturado
um “parentesco construído”; o primeiro es- em sete capítulos, convida seus leitores a um
tabelecido por mães, padrinhos e afilhados, olhar receptivo de uma Porto Alegre negra e

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A FACE NEGRA...
desconhecida. O mérito do texto de Zanetti víncia em 1773 e foi elevada a vila em 1898.
é o de estar colado a uma ampla documen- Tornou-se um importante centro urbano,
tação que desperta nos leitores o desejo de com um intenso comércio, fato constatado
observar cuidadosamente a cidade. pelos viajantes Saint-Hilaire, Arsene Isabele
e Nicolau Dreys. A crise de carestia de 1840-
A realidade de uma Porto Alegre es-
1860 não atingiu a cidade. Só em 1854, ela
cravocrata vai se desvelando e desfazendo vi-
sofreu devido ao alto preço dos alimentos e à
sões historigráficas romantizadas e desafian-
redução do rebanho bovino.
do-nos a repensar o mito fundador da bela
cidade sulina. Cidade e campo no Brasil escravista
estiveram interligados. No entanto, a histo-
Porto Alegre; da gênese à presença riografia priorizou o estudo da escravidão no
escrava campo (célula sócio reprodutiva dominante).
Os territórios sulinos, disputados por A presença do escravo no espaço urba-
portugueses e espanhóis, permaneceram iso- no é inegável, os inventários e as taxas demo-
lados por quase dois séculos. Com uma eco- gráficas revelam o quanto a cidade dependia
nomia distinta da das áreas de monocultura, da mão-de-obra escrava. Em Porto Alegre,
voltados para a prática produtiva criadora, em 1780, 36% dos habitantes eram escravi-
comercializavam o couro. zados; em 1861, 23% da população do mu-
Com a fundação da colônia do Sa- nicípio ainda era escrava.
cramento, em 1680, a coroa estendia até O número de alforriados da cidade era
o Prata seu domínio e procurava resolver a baixo, entre eles muitos homens com mais
crise econômica que assolava a região, con- de 65 anos.
trolando o comércio do couro. O século
XVIII, nos seus primórdios, vê o começo Para muitos senhores, a alforria se-
do povoamento com a doação das sesmarias ria a solução mais prática e eficiente
(1730-1740) e a crise no final com a queda de livrar-se de um dispêndio com os
da procura de animais. cativos improdutivos... ZANETTI,
2002: 66)
O desenvolvimento das atividades
charqueadoras exigiu mão-de-obra escrava em O perfil eclético do trabalhador urbano
grande escala. A média de trabalhadores num - de carregador de palaquins à cabungueiros,
estabelecimento saladeiril era de 80 cativos. de quitandeiras a lavadeiras, de remadores a
prostitutas - deve-se ao fato de ele atender às
Foi com o início da produção do necessidades estruturais da produção (Jacob
charque, no final do século XVIII, Gorender)
que o Brasil meridional pôde estru-
Os escravos de ganho e de aluguel - a
turar sua economia num verdadei-
primeira modalidade só praticada na cidade,
ro sistema escravista de produção.
a segunda também no campo - povoavam o
(ZANETTI, 2002: 43)
dia-a-dia da escravidão urbana. O sistema
A expressiva população cativa foi peça de ganho levava o cativo a pensar na com-
fundamental na sociedade sulina e se fez pre- pra de sua liberdade com o pecúlio ganho.
sente em todos os seus poros. Contudo, feitas as contas, o pecúlio não era
suficiente para viver, razão do alto índice de
Porto Alegre nasceu na estância de
alcoolismo e roubos.
Jerônimo de Ornellas, um dos primeiros
sesmeiros chegados em 1732. O Instituto Em geral, após três anos de traba-
Histórico e Geográfico do Rio Grande fixou lho produtivo, o senhor recuperava
a data de 23 de março de 1772 como a da o capital investido em um cativo
fundação da cidade. Porto Alegre desenvol- (inversão inicial). O ganhador era
veu-se rapidamente, chegou a capital da pro- um bom investimento nos momen-

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67
A FACE NEGRA...
tos de prosperidade econômica... Do conflito à solidariedade
ou mesmo em época de crise. (ZA-
Para estabelecer o padrão de criminali-
NETTI, 2002: 86)
dade em Porto Alegre, a autora analisa os pro-
O antigo sistema de alugar cativos vi- cessos criminais, sempre ricos em informações
gorou na cidade; os anúncios pululavam nos sobre o cotidiano de escravizados e forros.
jornais. Entre 1840 e 1860, foram veiculados O ano de 1850 teve uma incidência
404 anúncios de aluguel. As Santas Casas, alta de crimes, explicada, em parte, pela ins-
por exemplo, alugavam muitas amas-de-lei- tabilidade econômica, política e social da
te. A de Porto Alegre começou a ser constru- província.
ída em 1803 e terminou só em 1826.
A falta relativa de mão-de-obra que
A Câmara Municipal – responsável pelo
ocorria no Rio Grande, causada pela
cuidado das crianças, ao criar, junto da Santa
redução do número de escravos de-
Casa em 1838, a Casa dos Expostos - com sua
pois da Guerra Farroupinha, e pela
Roda - institucionalizou o abandono.
exportação de cativos desta região
Anexa ao prédio da Santa Casa para o Centro-Sul, incentivaria os
de Misericórdia, a Casa da Roda crimes (ZANETTI, 2002: 126).
funcionou por 96 anos, de 1838 a
Na década de 1840, os crimes de vio-
1934. Nesse período, ao todo 2.544
lência superaram os contra a propriedade.
crianças enjeitadas teriam sido aten-
Nos anos de 1850, diferentemente, a incidên-
didas. (ZANETTI, 2002: 95)
cia maior foi de crimes contra a propriedade.
A Santa Casa zelava pelo futuro de me- Naquele período, Zanetti localizou processos
ninos e meninas. Aqueles eram empregados por porte de armas, por fugas, por roubo de
fora do estabelecimento. As meninas, expos- tecidos, por má conduta e ainda os processos
tas, permaneciam na casa, muitas trabalhan- de dez escravos condenados à morte. A pena
do como amas-de-criação até o matrimônio, de açoites era muito freqüente. Em 1857, foi
quando recebiam o dote de casamento for- substituída em parte por multas.
mado com o dinheiro ganho com o trabalho.
A criminalidade se fazia presente no
O dote das órfãs atraía muitos pretendentes
mundo dos forros; o crime da violência era o
que, depois de usá-los, abandonavam suas
mais comum. Forros com má conduta eram
esposas. A repetição desse fato levou a Santa
expulsos da província. Nos trinta e dois pro-
Casa a pagá-lo em parcela.
cessos contra pessoas livres, figuram a violên-
A Santa Casa possuía escravos com- cia física, os castigos excessivos aplicados nos
prados ou doados e ainda alugava trabalha- escravizados e as tentativas de reescravizar pes-
dores especializados. Depois da proibição do soas libertas como os crimes mais freqüentes.
tráfico (1850), muitos africanos livres foram
Não se pode esquecer que
recebidos e empregados como trabalhadores
escravizados. o ato criminoso do cativo era tam-
A administração pública, além dos bém, uma negação da sua condi-
presos, alugava cativos e libertos para traba- ção servil, já que a luta contra sua
lharem nas obras públicas. A cadeia velha, coisificação constituía necessidade
que abrigou os presos de 1812 a 1841, foi cotidiana imposta pelo sistema. O
substituída em 1855 pela casa de Correção, crime representava a luta do cativo
vulgo ”Cadeião”. Os presos trabalhavam e contra sua dominação (ZANETTI,
recebiam pecúlio. 2002: 149).

A escravidão doméstica também este- As inúmeras formas de punição com


ve presente em Porto Alegre e nem ela livrava os castigos corporais, a prisão, a prisão com
os escravizados dos maus tratos trabalhos forçados e a pena de morte por

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68
A FACE NEGRA...
enforcamento não quebraram a resistência vizados. Os casamentos entre escravizados,
escrava. também, foram escassos.
A cidade oferecia maiores possibili- As irmandades - a mais importante
dades aos escravizados para se relacionarem, era a de Nossa Senhora do Rosário, criada
seja com outros cativos, seja com forros ou por iniciativa dos negros em 1786 - se cons-
homens brancos pobres e livres. tituíram em espaços culturais de devoção e
solidariedade. Espaços de preservação de
Forros foram julgados até mesmo
costumes africanos como os cucumbis ou
por excesso de castigos em seus ne-
quicumbis, candombes, cordões, blocos, ba-
gros. As sevícias e maus-tratos não
tuques e a macumba.
eram exclusividade dos amos bran-
cos (ZANETTI, 2002: 160-61). As manifestações religiosas não só
eram permitidas, como também incentiva-
No pólo oposto, redes de solidarieda- das pela Igreja e pelo Estado, que buscavam
de eram tecidas entre esses segmentos. Até por meio delas o controle dos escravizados.
senhores se envolviam com cativos, especial- No entanto, a religião não presta só para o
mente com detentores de poderes mágicos. controle, mas também pode ser subversiva.
No entanto, a documentação não deixa dú-
vidas, o cativo urbano sofria violência. O Es- As manifestações religiosas e cultu-
tado era cúmplice estabelecendo regras e leis, rais negras foram também estandar-
fiscalizado e castigando. te sob o qual a população escravi-
zada, liberta e livre de ascendência
A ampliação dos estudos sobre a fa-
africana lutou para adquirir o di-
mília colocou na agenda a sexualidade de
reito a uma identidade. Os diversos
cativos e forros. A prostituição feminina de
requerimentos feitos à Câmara de
cativas, forras e mulheres brancas na cidade
Porto Alegre por cativos e forros
era intensa, como nos mostram as fontes do-
cumentais. O concubinato, o amasiamento e pedindo licença para se reunirem
a amizade ilícita também eram freqüentes e para danças e batuques comprovam
incomodavam a Igreja e as autoridades civis. o quanto as manifestações culturais
e religiosas constituíam elemento
O envolvimento amoroso de cativos e de resistência cultural e social (ZA-
libertos inúmeras vezes reproduzia a violên- NETTI, 2002: 201).
cia da sociedade escravista. Os crimes pas-
sionais eram freqüentes. O comércio sexual As posturas municipais, os Livros
entre senhores e cativos se deu de muitas ma- de Rol de Culpados do Cartório do Júri
neiras e por diversas razões. Fato que elevou e os jornais sul-riograndenses (1847-
o índice de miscigenação. 1860) confirmam que os escravizados
resistiram de diversas maneiras. Os jor-
Comumente, os cativos criaram nais freqüentemente anunciavam fugas
seus espaços cotidianos, estabe- de trabalhadores escravizados da cida-
lecendo regras e padrões morais, de e do campo e fugas para o Estado
alheias às pregações religiosas. Sem Oriental, bem como denunciavam prá-
o espaço privado para o amor, bus- ticas de acoitamento.
caram alternativas sexuais com o
O tema do suicídio entre escravos
consentimento ou não dos amos
é pouco estudado no Brasil, seja devido
(ZANETTI, 2002: 188).
aos problemas com as fontes, seja devi-
As pesquisas historiográficas têm do às dificuldades que a análise do fato
apontado para a presença da família escrava envolve. As causas são inúmeras: insu-
na colônia. Em Porto Alegre, a análise de 44 cesso de uma fuga, medo dos castigos e
inventários post-mortem (1840-1860) revela condições de vida em geral dos escravi-
uma pequena presença de família de escra- zados. Assim:

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69
A FACE NEGRA...
a alta ocorrência do autocídio pode e deficiências. Não é perfeito, assim como
sugerir as legítimas condições
condições de vida outros modelos não o são. Mas, não pode ser
dos cativos. Nos anos 1840-50, nos rejeitado tout court, muito menos lido redu-
jornais e em relatórios de presidentes tivamente.
da província, identificamos quinze
Essas propostas, que afirmam dar
suicídios ocorridos no Rio Grande
ao cativo o lugar de sujeito, negam
(ZANETTI, 2002: 212).
a sua resistência ao apresentá-lo
O texto de Calabouço urbano: escra- como ser social que tendia essen-
vos e libertos em Porto Alegre (1840-1860), cialmente à passividade e à acomo-
recheado de dados empíricos e com informa- dação (ZANETTI, 2002: 118).
ções minuciosas, surpreende o leitor a todo
O “novo revisionismo” não nega a re-
o momento. Muitos são os méritos do livro,
sistência, mas a pensa num processo de resis-
os quais podem ser conferidos pelos leitores
tência adaptativa, que oxigeniza uma visão
numa leitura atenta.
bipolar tão presente na leitura da escravidão.
Para finalizar, gostaria de retomar uma E mais, as pesquisas, a cada dia, graças à aber-
questão se que se faz presente no livro. Zanetti tura e organização dos arquivos, avançam.
reage contra o que chama de “novo revisionis- Os novos dados levantados sinalizam para
mo histórico” da escravidão, que faz uso de a capacidade dos escravizados em apropria-
categorias como “acordo sistêmico”, “pacto rem-se dos códigos coloniais, rearticulando-
social”, “negociação”, “adaptação”, ”coisifica- os com seus próprios valores e necessidades.
ção” e “cooperação das classes”, classificadas
Essa breve pontuação quer reabrir a
ironicamente como típicas da social-demo-
reflexão, e não negar a importância do texto
cracia (Cf. ZANETTI, 2002: 118).
de Zanetti. Como lembrava o filósofo Sócra-
Sem dúvida, o novo modelo explica- tes, “a vida sem reflexão não vale a pena ser
tivo da escravidão traz no seu bojo lacunas vivida”. P uc

Notas

1 MAESTRI, Mário. Deus é grande, o mato é maior. Trabalho e resistência escrava no Rio
Grande do Sul. Passo Fundo: UPF, 2002..
2 SIMÃO, Ana Regina Falkembach. Resistência e acomodação. A escravidão urbana em Pelo-
tas-RS(1812-1850). Passo Fundo: UPF, 2002.
3 ZANETTI,Valéria .Calabouço urbano. Escravos e libertos em Porto Alegre (1840-1860). Passo Fundo: Universi-
dade de Passo Fundo, 2002.

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A FACE NEGRA...

A IMPORTÂNCIA DO MUSEU AFRO BRASIL


NA REINTERPRETAÇÃO DA HISTÓRIA
DA ESTÉTICA E DA EDUCAÇÃO DOS NEGROS BRASILEIROS

Luiz Carlos dos Santos

Sociólogo, prof. da Escola Vera Cruz e da


Unibero; consultor do Museo Afro Brasil

Fomos acostumados, por meio da Com algumas exceções, os museus po-


escola e, posteriormente, pelos veículos dem ser comparados com livros cujos textos
de comunicação de massas, a pensar o são, majoritariamente, “coisas” concretas em
lugar do negro, na sociedade brasileira, que o nosso primeiro impulso é, geralmente,
como o lugar da exclusão, da não repre- pegar, tocar, sentir, para realizar a imagem
sentação, da fantasmagoria e do exótico. e, só assim, registrar o real. Portanto, é na
Fomos acostumados e quase nos acomo- “concretização” que as coisas parecem se ex-
damos aos lugares para os quais fomos plicar melhor, pelo menos numa visão mais
empurrados. tradicional da história ocidental, que vê no
registro escrito a modalidade privilegiada da
Ao mesmo tempo, o senso comum
memória comunicacional.
representa os museus como espaços de co-
nhecimento congelado, o que já foi e merece Para um museu como o Afro Bra-
ser guardado e, indo um pouco mais além, sil, cuja perspectiva de construção é di-
como espaço da cultura expropriada. Espaço nâmica e nasce em um tempo em que o
de preservação estética de objetos e história conceito de museu passa por profundas
de civilizações submetidas. mudanças, é necessário ir devagar com o

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71
A IMPORTÂNCIA DO MUSEU AFRO...
andor, pois além de o santo ser de barro, produzindo aparelhos de televisão, em série.
ele também é um orixá. Mas, no caso do Museu Afro Brasil, as ima-
gens expostas e a sua própria concepção es-
Somos todos sabedores da vocação
tética funcionam como uma contracorrente,
institucional dos museus de registrar e his-
transformando os sujeitos que foram histo-
toriar os acontecimentos sociais, dimensio-
ricamente silenciados em agentes significati-
nados, seja no grupo ou no indivíduo, e ex-
vos de um modo de pensar, ver e viver que
pressos por meio dos sons, sentidos, objetos,
dilui o recalque imposto e o transforma em
imagens, cores e materiais diversos, veículos
matriz, como já dissemos, da brasilidade.
imediatos e estéticos da cultura. Mas gos-
taríamos ainda de contribuir para repensar Cremos que o acervo do Museu Afro
o lugar de destaque de um museu cuja ca- Brasil, com suas mais de quatro mil peças,
racterística central é recontar, através de seu permanentemente expostas num espaço ge-
acervo, a história de uma das matrizes mais ograficamente privilegiado, o Parque do Ibi-
importantes da formação social brasileira. rapuera, com entrada gratuita para os seus
visitantes – em média 6 mil pessoas por mês
O racismo, instituído há mais de qui-
– sem divulgação regular na imprensa, con-
nhentos anos, constituiu-se com a formação
cede-nos a possibilidade e o prazer de nos
social brasileira e, de forma plástica, “natura-
enxergarmos em um espelho onde deixamos
lizou-se” como o espírito das relações raciais
de ser sombras e espectros para nos vermos
no país e vulgarizou-se como sombra da ex-
imagens, sons e sentidos-produtos de civili-
pressão sonora e visual dessa mesma relação.
zações que, seqüestradas e expropriadas de
Não é o amarelo ou vermelho que se seu espaço geográfico cultural, fizeram His-
opõem ao branco, mas sim o negro, e é por tória com os seus corpos e crenças, transfor-
meio de imagens animadas e espetaculariza- mados em memórias cheias de vida e ener-
das de maneira fugaz e sucessiva que a so- gia, forjadas na luta e na persistência de ser
ciedade forja identidades, como se estivesse e viver livre. P
uc

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A FACE NEGRA...

CENTRO DE ESTUDOS CULTURAIS


AFRICANOS E DA DIÁSPORA
(CECAFRO/PUC-SP)
Maria Antonieta Antonacci

Profa. da PUC-SP e Coordenadora do CECAFRO - PUC-SP

Estranhamentos e intolerâncias sócio- res de História da África, culturas africanas e


culturais colocaram à margem da expansão do afro-brasileiras, de diferentes níveis e áreas de
Velho sobre o Novo Mundo falares, viveres e atuação. Nesse processo, produzir material de
saberes de povos de ancestrais tradições de ex- ensino, reunir acervo escrito, sonoro, visual,
pressão, comunicação e memorização, como cinematográfico e bibliográfico, como supor-
as dos ameríndios, africanos, árabes, ciganos e tes para fazer avançarem, entre nós, referen-
outros. Cosmogonias, injunções cultura/natu- ciais acerca de dinâmicas culturais historica-
reza, valores e relações, concepções de corpo, mente experimentadas nas diferentes Áfricas e
artes, sensibilidades, religiosidades – histori- suas diásporas, do passado e do presente, sem
camente ignorados ou tratados como índices perder de vista seus potenciais devires.
hierarquizadores de povos e culturas frente a Pensamos em problematizar formas de
cânones letrados e científicos do expansionis- conhecer e interagir em perspectivas de África
mo europeu –, a partir de resistências culturais para além do conceito espacial geográfico do
limítrofes, vêm rompendo barreiras históricas. definido continente africano. Nesta direção,
Daí pensarmos na organização de um propor pesquisas em torno de África/Áfricas
Centro de Estudos Culturais Africanos e da pressupõe questionar categorias de tempo, es-
Diáspora na PUC-SP, reunindo pesquisado- paço e relações da civilização ocidental que, ao
res de diferentes campos de conhecimento e se expandir promovendo diásporas de povos e
instituições para promover pesquisas, discus- culturas africanas, colocou-nos na contingên-
sões, encontros e prestar assessoria a professo- cia de apreender histórias, memórias, tradições,

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73
CENTRO DE ESTUDOS CULTURAIS...
valores, crenças, costumes, comunicações e sig- Ainda neste sentido, em face das “no-
nificações em contínuas reconstituições desde vas formas de racismo”, Stuart Hall argu-
as raízes e circuitos do chamado Atlântico Ne- menta que:
gro, conforme expressão de Paul Gilroy1.
as anteriores têm sido poderosamente
Enfatizando marcas e procedimentos transformadas pelo que chamam de
de disjunções/interações reconstituintes, ou ‘racismo cultural’. Isto é, as diferenças
em processos de migração “entre lugares des- na cultura, nos modos de vida, nos
lizantes”2 a partir de interconexões entre lin- sistemas de crença, identidade e tra-
guagens orais, visuais e escritas, produzidas dição étnica, hoje são mais importan-
em deslocamentos populacionais e derivas tes do que qualquer coisa que tenha
culturais desde a chamada “modernidade”, a ver com formas especificamente ge-
pesquisas e atividades deste Centro priorizam néticas ou biológicas do racismo.6
as diferenças étnico-culturais, as diversidades
históricas e visam à abertura de diálogos para Tratando de racismos no plural e aten-
formas de coexistência dessas diferenças, sem tando para mecanismos gerais associados a
reducionismos a um pastiche sem história. práticas racistas locais, Hall alerta para especi-
ficidades históricas de relações raciais em cada
Nessas preocupações com cultura, acom-
panhamos questões levantadas em estudos em configuração cultural:
torno da diversidade a partir de modos de ser, vi- em cada sociedade o racismo tem
ver, expressar e significar relações entre si, com os uma história específica que se apre-
outros e o meio circundante, conforme perspec- senta de formas específicas, particu-
tivas de “incoporações seletivas”3 em processos lares e únicas, que influenciam sua
de encontros, confrontos e intercâmbios cultu- dinâmica e tem efeitos reais que di-
rais. Essas abordagens, promovidas por estudio- ferem entre uma sociedade e outra.
sos de língua e literatura, história e antropologia,
artes e comunicações, semiótica e psicanálise do Acompanhando estas argumentações,
Centro de Estudos Culturais Contemporâneos propomos um Centro de Estudos Culturais Afri-
da Universidade de Birmingham, representam canos e da Diáspora na PUC-SP, tendo presen-
o “enfraquecimento dos limites tradicionais entre te que a natureza e a historicidade das questões
as disciplinas e o crescimento de modos de pesquisa raciais no Brasil – impregnadas por noções de
interdisciplinar que não se encaixam facilmente ou sincretismo, democracia racial, homem cordial,
não podem ser contidas nos limites das áreas de co- mestiçagem, luso-tropicalismo – instituíram-se
nhecimento existentes.” 4 em interações com políticas raciais colonizadoras
das Américas e Áfricas frente lutas de africanos,
Em seus atuais desdobramentos, es-
afro-caribenhos, afro-americanos e afro-brasilei-
critores e militantes do cultural studes têm
ros em diálogos com suas ancestrais tradições.
voltado atenções para o pós-colonialismo;
Em contexto brasileiro de abertura para mercados
questões de raça, cultura e comunicações;
africanos, de “políticas afirmativas” em relação a
culturas negras e culturas liminares, dialética
diferenças étnico-culturais, cotas nas IES, de ins-
de identidades, enfrentando estereotipias e
tituição de História da África, Culturas africanas
essencialismos raciais e culturais a partir de
e afro-brasileiras em todos os níveis de ensino, a
contra-narrativas em torno de nação, língua
compreensão da premência de estudos que não
e civilização. Alertando para conexões entre
percam de vista interações África, Brasil e Caribe
“a escravidão, a opressão colonialista, o domí-
na constituição de nossas culturas, heranças pa-
nio imperial e a poesia, a ficção, a filosofia da
trimoniais e experiências históricas apontam para
sociedade que adota tais práticas”, Edward
singularidade do CECAFRO na PUC-SP.
Said advertiu para “atitude textual” do Oci-
dente em relação a outros povos e culturas, No reconhecimento do fazer-se destas cul-
em “seu poder de narrar, ou de impedir que turas em circuitos pelo Atlântico também foram e
se formem ou surjam outras narrativas”5. são valiosas leituras e diálogos com pesquisadores,

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74
CENTRO DE ESTUDOS CULTURAIS...
poetas, músicos, contadores e cantadores, escritores diásporas, utilizaram seus corpos, saberes, cren-
e historiadores africanos que não perderam de vista ças, habilidades para traduzirem suas tradições
memórias, tradições orais, ritmos, valores, costu- e incorporarem seus costumes em experiências
mes e imagens de culturas negras do Continente vividas em Áfricas do Novo Mundo.
Africano e nas Áfricas da Diáspora, como Joseph Potencializar pesquisas, discussões, en-
Ki-Zerbo, Jean Vansina, Hampâté Bâ, Cheik Anta contros em torno de linguagens que abordem
Diop, Stuart Hall, Kabenguelê Munanga, Elikia tempos e territórios de memória, história e
M´Bokolo, Kasady Wa Mukuna, Paul Gilroy, oralidades africanas em injunções com seus an-
Antony Appiah, Boubacar Barry, Elisée Soumoni, cestrais e descendentes em diáspora, por meio
Cheikh Hamidou Kane, Chinua Achebe, Os- de diversificados inter-relacionamentos com
mane Sembene, Wole Soyinka, Ahmadou Kou- tradições escritas, orais e visuais reconstituintes
rouma, Ruy Duarte de Carvalho e muitos outros de matrizes africanas no Brasil e nas Américas,
que acompanham como povos africanos lutaram são ações que estão na base dos interesses des-
e lutam contra o silêncio, o esquecimento, a desfi- te Centro de Estudos Culturais Africanos e da
guração, por direitos a um passado, a suas histórias, Diáspora na PUC-SP. Organizar workshops e
patrimônios e cidadania. mini-cursos, acompanhar e ampliar possibi-
Conforme Hamidou Kane: lidades de professores e alunos, de diferentes
áreas e níveis de ensino, a trabalharem com evi-
No silêncio cavaram grutas de rit- dências de cultura material, proverbial, artística
mos, relâmpagos luminosos de gui- e sonora de afro-descendentes fazem parte de
tarra, profundos vales de lendas.7 nossas intenções.
Configurando o saber e a poética da A partir de atividades desta nature-
oralidade no corpo-a-corpo com a expansão za, pensamos reunir acervos bibliográficos,
da hegemonia do letramento ocidental, Kane artísticos, sonoros, fílmicos, organizando
expressou a síntese da tragédia vivenciada por na PUC-SP um centro de referências sobre
povos de culturas africanas: Que poder tem o Histórias das Áfricas, Culturas Africanas e
sol do saber deles contra a sombra de nossa pele?8 Afro-brasileiras.
Mas como destacou Ruy Duarte de Carvalho,
Atualmente, o CECAFRO vem sendo
“o barco da escrita navega na corrente fria da lín-
coordenado pelos professores Enio de Sou-
gua com a corrente quente da linguagem” 9.
za Brito e Maria Antonieta Antonacci. Não
Percorrendo textos, diferentes lingua- nasceu órfão. Seus padrinhos, Kabenguele
gens e expressões culturais entre “rotas e raízes” Munanga (USP) e Josildeth Gomes Consor-
no Atlântico, vem tornando-se possível entre- te (PUC/SP) confirmam o interdisciplinar,
ver rastros e rumores de como homens, mu- o interinstitucional e sua emergência entre
lheres e crianças, das Áfricas continentais e das circuitos África/Brasil. P uc

Notas

1 GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo; Rio de Janeiro, Editora 34 UCAM, 2001.
2 Cf. BHABHA, Homi. O local da cultura, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1998.
3 Cf. HOGGART, Richard. As utilizações da cultura, Lisboa, Editorial Presença, 1973;THOMPSON, E.P. Costumes em Comum,
São Paulo, Companhia das Letras, 1998;WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura, Rio de Janeiro, Zahar, 1979.
4 HALL, Stuart. “Raça, cultura e comunicações: olhando para trás e para frente dos Estudos Culturais”, in What is
Cultural Studies?, London, Arnold, 1996. Tradução de Helen Hugues e Yara Khoury
5 Cs. SAID, Edward. Orientalismo, São Paulo, Companhia das Letras, 1991 e Cultura e Inperialismo, São Paulo, Com-
panhia das Letras, 1995, pp. 11/14.
6 Idem.
7 KANE, Cheikh Hamidou. Les gardiens du temple. Paris, Presence Africaine, 1972.
8 KANE, Cheikh Hamidou. Aventura ambigua, São Paulo, Editora Atica, Coleção Autores Africanos, 1982.
9 CARVALHO, Ruy Duarte, palestra na PUC-SP e na USP, abril/maio 2004.

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A FACE NEGRA...

TRAJETÓRIAS INTELECTUAIS NEGRAS:


AS ROTAS DE BEATRIZ NASCIMENTO
Alex Ratts*

Mestre em Geografia e Doutor em Antropologia USP

Beatriz Nascimento (1942-1995) é meiro momento no Centro de Estudos Afri-


uma das âncoras em minha travessia pelo canos da Universidade de São Paulo, poste-
Atlântico Negro (GILROY, 2001), o vasto riormente no Arquivo Nacional no Rio de
e denso complexo cultural e político quali- Janeiro, para onde a família destinou a maior
ficado e marcado pela presença de africanos, parte de seu acervo pessoal de textos, poe-
afro-europeus e afro-americanos. Outras mu- mas, fotografias e livros. Por fim, tive acesso
lheres e outros homens negros vivenciaram a acervos particulares da família e de outros
contextos semelhantes, sendo pouco ou não intelectuais ativistas1.
reconhecidas(os) pelos segmentos intelectuais No artigo A ilusão biográfica, Pierre
social e racialmente hegemônicos, a exemplo Bourdieu trata a noção de trajetória como
de Lélia Gonzalez (VIANA, 2006), Eduardo deslocamento entre espaços sociais, entre
Oliveira e Oliveira e Hamilton Cardoso. posições, mais que trajetos entre dois pontos
A pesquisa acerca da trajetória inte- geometricamente distintos (BOURDIEU,
lectual de Beatriz Nascimento, especialmen- 1996). É nesse sentido que me remeto à
te de sua obra escrita, publicada e inédita, “transmigração” de Beatriz Nascimento, pri-
narrada em audiovisuais, se deu em um pri- meiramente de Aracaju, Sergipe, para a cida-

* Graduação e pós-graduação – Instituto de Estudos Sócio-Ambientais da Universidade Federal de Goiás;


coordenador geral do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-Descendentes (NEAAD/UFG).

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TRAJETÓRIAS INTELECTUAIS NEGRAS...
de do Rio de Janeiro, no estado homônimo, curso de especialização em História na Uni-
no final do ano de 1949. A família, composta versidade Federal Fluminense, concluído em
pela mãe, dona-de-casa, pelo pai pedreiro e 1981. Viajou duas vezes ao continente afri-
por dez filhos, dentre os quais Beatriz com 7 cano, para Angola e para o Senegal, o que lhe
anos de idade, viaja para o Rio. Esta mobili- proporcionou tanto a confirmação quanto a
dade territorial familiar se insere no contexto ampliação e revisão de algumas de suas idéias
da migração dos nordestinos para o sudeste, acerca da trajetória da população negra entre
constituinte dessas áreas – Nordeste e Sudes- África, Europa e América.
te – como regiões-identidade em confronto.
Sua obra mais conhecida está nos
A família passa a residir em Cordovil, Zona
textos e na narração do filme Ori, dirigido
Norte do Rio, área suburbana: “nós viemos
por Raquel Gerber, com circulação nacional
de Sergipe com uma intenção de meus pais de
e premiação internacional. Beatriz Nasci-
que nós crescêssemos. Vir para a cidade grande.
mento estava cursando mestrado na Escola
É a grande dinâmica da migração” (NASCI-
de Comunicação da UFRJ, com orientação
MENTO, 1989).
de Muniz Sodré, quando foi assassinada em
Esse “crescer” se destaca em sua esco- janeiro de 1995 após discussões com o mari-
laridade e na de suas irmãs. Na cidade do do violento de uma amiga que ela então de-
Rio de Janeiro, Beatriz Nascimento se des- fendia. Posso dizer que o Brasil perdeu uma
loca da Zona Norte para a Zona Sul, onde intelectual ativista de grande estatura. Cabe
reside até sua morte. Em 1968, aos 24 anos, agora retornar ao seu pensamento.
ela ingressa no curso de História na Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro, perfazendo Percursos do pensamento
um percurso semelhante ao dos estudantes Enquanto historiadora, pesquisadora
negros(as) oriundos das classes populares, e intelectual, Beatriz Nascimento, ao longo
que atravessam ao barreiras de raça, gênero, de sua produção comunicada em textos es-
classe e procedência. Conclui a graduação critos e falados, abordou temas e noções que
em 1971. No mesmo período, faz estágio em concernem à da questão racial. Optei por fo-
técnica de pesquisa no Arquivo Nacional, calizar reflexões que são fundamentais para
com orientação do historiador José Honório a contemporaneidade: racismo, quilombo e
Rodrigues. Posteriormente, torna-se profes- corporeidade negra. O(a) leitor(a) pode ob-
sora de História da rede estadual de ensino servar como essas noções se relacionam.
do Rio de Janeiro. Em 1974, em plena di-
tadura militar, participa de reuniões em que Racismo
ativistas negros(as), muitos dos quais com Os textos publicizados de Beatriz Nas-
formação acadêmica, decidem criar grupos cimento entre os anos de 1974 e 1990 nos
de estudo e intervenção. É o caso do Grupo permitem delinear suas idéias acerca do ra-
de Trabalho André Rebouças (GTAR) fun- cismo, especialmente sobre as formas prati-
dado na Universidade Federal Fluminense, cadas na sociedade brasileira contra a popu-
no qual ela se destaca como protagonista. lação negra. De início, o que ela denomina
É nesse período que ela começa a pu- de “um emaranhado de sutilezas” (NASCI-
blicar enfatizando a necessidade da formação MENTO, 1977a) é uma trama de fios finos
de pesquisadores negros, especialmente no e complexos, mas astuciosos. Quer dizer,
campo da História e dos estudos das rela- tratado como velado ou mesmo inexistente,
ções raciais e do racismo (NASCIMENTO, o racismo no Brasil se mostra como uma so-
1974a, 1974b). Nos levantamentos de sua fisticada rede de pensamentos e ações, que
produção, encontrei registros de comunica- varia de acordo com determinados contex-
ções em eventos acadêmicos (1976b, 1977c), tos. Multifacetado em sua existência, é um
entrevistas na grande mídia impressa (1976b, fenômeno que merece análises e possibilida-
1977a) e ensaios. Beatriz Nascimento fez um des de reação multidimensionais.

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TRAJETÓRIAS INTELECTUAIS NEGRAS...
Em 1974, no artigo Por uma história ódio? Os aparentes paradoxos devem ser
do homem negro, tendo como tema princi- desvendados.
pal a flagrante despreocupação da academia Beatriz Nascimento radicaliza a inves-
brasileira com os temas vinculados à história tigação dos efeitos do racismo sobre a pes-
da população negra, no máximo, reduzidos soa negra. Esta ida à raiz de um fenômeno
aos genéricos estudos da escravidão, Beatriz tão intricado levou-a a por em questão o ser
parte de uma forte motivação que excede negro como uma identidade atribuída pelo
preocupações de uma pesquisadora restrita Outro, o ser oposto, o branco (1974b). Neste
aos muros universitários. A eleição do tema ponto, cabe uma reflexão sobre a idéia de ser
de estudo vem da vida experimentada em negro que, em seus textos, não pode ser vista
condições raciais desiguais (NASCIMEN- como estanque. A autora abordou a noção
TO, 1974a: 42). de negro em face de um racismo múltiplo.
Atenta à diferenciação das situações Portanto, não caberia em seu pensamento
racistas e à dubiedade de suas interpretações, uma concepção essencialista de negritude.
Beatriz se mostra como pensadora de um fe- À semelhança de Neusa Santos Souza, para
nômeno que se multiplica como se, aparente- quem “ser negro não é uma condição dada, a
mente, não tivesse fim. Um dos dilemas que priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se
ela focaliza se situa no entendimento de que negro” (Souza, 1982: 77), suas preocupações
um ato, uma situação, é predominantemen- voltaram-se igualmente para esse proces-
te racista. Na sociedade brasileira, em geral, so, em que um segmento étnico-social tem
mas especificamente no segmento negro, há problemas para ser e tornar-se ele mesmo e,
pessoas que se recusam ou demoram a reco- também pela falta ou afastamento de refe-
nhecer a emergência do racismo (Idem: 42). rências negras positivas, deseja ser ou tornar-
Em artigo que dá seqüência ao mencionado, se o Outro.
uma das proposições de Nascimento diz res-
peito ao estudo “do negro” face à identidade Quilombo
nacional em que a suposta democracia racial Entre 1976 e 1994, Beatriz Nasci-
emerge como idéia central (1974b: 65). mento abordou essa temática, destacando-se
A exemplo de outros(as) pensadores(as) entre os(as) pesquisadores(as) desse campo,
negros(as), Beatriz destrincha os mecanis- por seu tempo e profundidade de dedicação,
mos racistas na vida diária, com destaque abrindo vários aspectos (toponímia, memó-
para as relações interpessoais e para o âm- ria, relação entre África e Brasil, territoriali-
bito profissional e, em especial, o acadêmi- dade e espaço) e exercitando a confecção de
co. No entanto, a ela interessava a pessoa diversos “produtos” de seu trabalho (entre-
negra vista como uma totalidade, passado e vistas, artigos, poemas, filme).
presente, mente e corpo. Retornando à sua Em seu principal projeto de pesquisa
experiência pessoal, ela desvenda um dos (1978), Beatriz Nascimento reitera as críti-
mecanismos comuns de reação da pessoa ne- cas à historiografia de pouco ou nenhum in-
gra ao racismo que também se prolonga para teresse sobre o tema, considerado fenômeno
além da infância: a busca por ser a melhor, do passado, e às interpretações reducionistas
a primeira, combinada com uma certa dose, de um fenômeno tão vasto e variado no tem-
parcialmente auto-imposta, de invisibilidade po e no espaço. O projeto se baseava em cin-
(NASCIMENTO, 1982). co hipóteses, que, por falta de financiamento
e devido à largueza dos objetivos, foram re-
Como pode o preconceito contra
duzidas a três:
a população negra ser, ao mesmo tem-
po, violento e sutil, latente e manifesto? 1. O que ficou conhecido na historiogra-
Como é possível que na sociedade brasilei- fia como quilombos são movimentos
ra, entre negros e negras e entre negros(as) sociais arcaicos de reação ao sistema
e brancos(as) exista tanto amor quanto escravista, cuja particularidade foi a

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TRAJETÓRIAS INTELECTUAIS NEGRAS...
de iniciar sistema sociais variados, em mo, ela o estende até o simbolismo de um
bases comunitárias. território de liberdade, não apenas referente
a uma fuga, mas uma busca de um tempo/
2. A variedade dos sistemas sociais englo- espaço de paz (NASCIMENTO, 1989).
bados no conceito único de quilombo
se deu em função das diferenças insti- Alguns intelectuais brasileiros têm re-
tucionais entre esses sistemas. sistência a essa noção “ideologizada” de qui-
lombo. Como na idéia de “negro”, em sua
3. O maior ou menor êxito na organi- obra, há um “ser” que é muito mais um “tor-
zação dos sistemas sociais conhecidos nar-se”, um “vir a ser”, sempre passível de
como quilombos deu-se em função crítica. Não há aqui nenhuma reificação3.
do fortalecimento do sistema social
Corporeidade
dominante e sua evolução através do
tempo (NASCIMENTO, 1981)2. O filme Ori documenta os movimentos
negros brasileiros entre 1977 e 1988, passan-
Sua crítica à historiografia dos quilom-
do pela relação entre Brasil e África, tendo o
bos brasileiros partia do reduzido número de
quilombo como idéia central e apresentando,
títulos dedicados ao tema, que eram, em ge-
dentre seus fios condutores, parte da história
ral muito descritivos, e que generalizavam o
pessoal de Beatriz Nascimento. O título do
termo “quilombo” a partir de situações como
filme provém de uma palavra yorubá, língua
a de Palmares. Incluindo nessa crítica Edison
utilizada na religião dos orixás, que significa
Carneiro e sua edição de 1966 de O Quilom-
cabeça ou centro e que é um ponto chave de
bo dos Palmares, Beatriz Nascimento refere-
ligação do ser humano com o mundo espiri-
se a Clóvis Moura para enunciar a existência
tual (NASCIMENTO, 1989).
do fenômeno do aquilombamento durante a
escravidão e em quase todas as regiões brasi- As mulheres e os homens africanos
leiras, “mesmo naquelas onde o regime escra- experimentaram uma travessia de separação
vista não possui maior significação”, e indaga: da terra de origem, a África. Nas Américas,
“como explicar historicamente um processo sem passaram por outros deslocamentos, como
atentar para sua dinâmica e diferenciação no a fuga para os quilombos e a migração do
tempo?” (NASCIMENTO, 1978) Ela amplia campo para a cidade ou para os grandes cen-
o tema acrescentando e destacando a relação tros urbanos. Para Beatriz Nascimento, o
entre o quilombo africano e o brasileiro, no principal documento dessas travessias, força-
século XVIII (1985), idéia presente em Ori, das ou não, é o corpo. Não somente o cor-
fomentada após a viagem a Angola. po como aparência – cor da pele, textura do
cabelo, feições do rosto – pelas quais pessoas
O discurso de Beatriz Nascimento sobre
são identificadas e discriminadas.
o tema é notoriamente denso e variado. Na sua
pesquisa há uma busca que é científica, além de O corpo é também pontuado de sig-
pessoal e coletiva como pertencente ao grupo nificados. É o corpo que ocupa os espaços
étnico que estudava (NASCIMENTO, 1982a: e deles se apropria. Um lugar ou uma ma-
259-260). Nesses artigos de apresentação preli- nifestação de maioria negra é “um lugar de
minar da pesquisa e um póstumo (1997), per- negros” ou “uma festa de negros”. Não cons-
cebo uma série de cuidados que se vêem escri- tituem apenas encontros corporais. Trata-se
tos e ditos nos seus textos. de reencontros de uma imagem com outras
imagens no espelho: com negros, com bran-
Para Beatriz Nascimento, o quilombo,
cos, com pessoas de outras cores e complei-
especialmente Palmares, podia ser conside-
ções físicas e com outras histórias.
rado como um projeto de nação, protagoni-
zado por negros, com a inclusão de outros O corpo é igualmente memória. Da dor
segmentos racial e socialmente subalternos. – que as imagens da escravidão não nos deixam
Quando assume a vertente ideológica do ter- esquecer, mas também dos fragmentos de ale-

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TRAJETÓRIAS INTELECTUAIS NEGRAS...
gria – do olhar cuidadoso para a pele escura, no (e não coisa) no quilombo, na casa de culto
toque suave no cabelo enrolado ou crespo, no afro-brasileiro, num espaço de encontro e/
movimento corporal que muitos antepassados ou diversão, no movimento negro, diante do
fizeram no trabalho, na arte, na vida. espelho ou de uma fotografia.
A cabeça sintetiza tudo isso. Rosto e Desta forma, o corpo negro pode ser,
cabelo são marcas da raça social e política também em parte, aquele que foge, mas
que nos diferencia. Cabeça – intelecto, me- que conquista temporadas de tranqüilidade,
mória, pensamento. Cada um tem o direito aquele que se recolhe no terreiro e sai da ca-
de fazer essa viagem de volta. Olhar-se no marinha refazendo, em movimento, narrati-
espelho da raça e reconstruir sua identidade vas de divindades africanas. Pode ser o jovem
e seu corpo, pensando na sua trajetória e nas que dança sozinho ou em grupo ao som do
rotas do povo ao qual se sente vinculado. funk, pode ser a mulher ou o homem que
Para Beatriz Nascimento, o corpo ne- delineia suas tranças ou seu penteado black.
gro se constitui e se redefine na experiência Pode ser igualmente aquele que se “fantasia”
da diáspora e na transmigração (por exemplo, de africano num desfile de escola de samba.
da senzala para o quilombo, do campo para O corpo negro pode se estender até se
a cidade, do Nordeste para o Sudeste). Seus confundir com a paisagem e com toda a Terra,
textos, sobretudo em Ori, apontam uma sig- numa geopoética africana ou afro-brasileira, pois
nificativa preocupação com essa (re)definição Nanã é o orixá que representa a própria terra. O
corpórea. Neste tema, a encontramos discor- corpo negro pode ser (re)definido no olhar de
rendo acerca da sua própria imagem, da “perda Beatriz Nascimento para suas várias imagens:
da imagem” que atingia os(as) escravizados(as) diante de sua foto de primeira comunhão em
e da busca dessa (ou de outra) imagem perdi- que ela não se reconhece mais e afirma seu afas-
da na diáspora (NASCIMENTO, 1989). A tamento do pensamento cristão; diante do re-
autora se refere à perda das imagens africanas, trato de sua irmã Carmem na pose de formatura
de África, das várias Áfricas, que afeta o reco- como normalista, o que indica um sonho de
nhecimento da pessoa negra. trajetória intelectual; na visão de uma diva como
Em Ori, a câmera subjetiva nos coloca Marilyn Monroe, um ideal de beleza ocidentali-
no lugar daquele(a) que foge mata adentro, zado disseminado pelo mundo.
nos deixando pressupor uma pessoa “só com Ao “ler” os seus textos escritos ou fa-
a roupa do corpo”, com pouca ou nenhuma lados e sobretudo ao ver as suas poucas ima-
bagagem material, alguém que corre e talvez gens em movimento, me arrisco a afirmar
se arranha e se machuca na fuga. Por conta que ela demonstrava profundo senso de sua
das imagens que se sedimentam ao longo do figura. Imagino que ela não agia como se es-
que convencionamos chamar de História, o tivesse encenando ao fazer uma conferência
corpo negro é, em parte, o corpo raptado em ou uma declaração para um documentário4,
África, jogado em porões de navios negreiros, mas como se construísse essa imagem com a
acorrentado em senzalas, obrigado a trabalhos consciência de quem se vê e de quem é vista.
forçados; o corpo vestido de algodão cru ou Mais ainda, deduzo que Beatriz o fazia como
de rendas, mas descalço porque escravizado, quem sabe a importância da definição visual,
que se movia das cozinhas para as ruas. além da aparência, para as pessoas negras no
Certamente, para o período escravista, mundo contemporâneo, em especial nas so-
a pesquisa iconográfica e relativa a represen- ciedades que foram escravistas e onde opera
tações sociais pode nos apontar outras ima- um preconceito de marca como a brasileira.
gens. O que nos interessa no pensamento O corpo negro a que Beatriz se refere
de Beatriz Nascimento é a interrelação entre pode ser, então, aquele que porta carências
corpo, espaço e identidade que pode ser re- radicais de liberdade, que procura e constrói
feita por aquele(a) que busca tornar-se pessoa lugares de referência transitórios ou dura-

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TRAJETÓRIAS INTELECTUAIS NEGRAS...
douros. Lugares transitórios como os desfiles Neste sentido, com a noção correlata de
das escolas de samba e os bailes black (NAS- trasantlanticidade, presente, mas não explicitada
CIMENTO, 1989). O corpo negro se move em Ori, mas contida em textos inéditos, Beatriz
por essa cartografia cultural, consciente ou antecipa formulações que somente no final dos
inconscientemente, em transe ou em trânsi- anos de 1990 e na década atual ganham foco,
to, embalado em trilhas sonoras do Atlântico a exemplo da idéia referida de Atlântico Negro,
Negro, acústicas e/ou mecânicas: afoxé, con- contexto no qual ela própria figura como pessoa,
gada, samba, blues, jazz, reggae, funk etc.. persona, personalidade, como uma individua-
lidade forte (SANTOS, 2002), uma intelectual
Seguindo viagem: transmigração e
insurgente (HOOKS & WEST, 1991), presença
transatlanticidade
que tem seu lugar como referência de um pensa-
Nos textos narrados em Ori, Beatriz mento inquiridor e confrontador (SAID, 2005).
Nascimento trabalha com a noção de trans-
migração que pode ser conceituada como os Beatriz Nascimento, em sua trajetó-
deslocamentos sócio-espaciais, ou seja, entre ria, provoca um deslocamento da imagem da
diversos espaços sociais, da população negra mulher negra inferior-serviçal-objeto (NAS-
em variadas escalas – local, regional, nacional CIMENTO, 1974a; 1990) para a de mulher
e transnacional. Esse aspecto amplia em efeito negra falante-pensante-intelectual-poeta-ati-
de zoom a abordagem da questão racial, que vista. A profundidade de sua imagem é cor-
para muitos é algo restrito, de âmbito local. relata à espessura de seus textos. Puc

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TRAJETÓRIAS INTELECTUAIS NEGRAS...
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Notas

1 Este artigo contempla uma parte dos levantamentos contida e abordada num livro recente (RATTS, 2006).
2 Essa pesquisa acerca de quilombos, desde o projeto até o relatório conclusivo (1981), com as revisões, recortes
e delimitações que foram necessárias, apesar de feita num curso de especialização, teria hoje o porte de um
mestrado.
3 Acerca desse ponto, ver a compreensão da autora de que o agrupamento de escravizados de Jabaquara, em
Santos, São Paulo, formado às vésperas da abolição, mesmo denominado de quilombo, não o era em face de
ter sido organizado por “pessoas de fora” desse segmento e por se constituir em local precário, numa “cidade-
favela” (NASCIMENTO, 1979).
4 Refiro-me às suas aparições no filme Ori, sobretudo durante a conferência Historiografia do Quilombo, proferida
na Quinzena do Negro na Universidade de São Paulo em 1977 e no documentário Abolição de Zózimo Bulbul,
de 1988.

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NEGRA, MULHER, POBRE E
CONSAGRADA
Dagoberto José Fonseca*

Prof. Dr. da UNESP

Nunca é demais afirmar que a mu- de dessas mulheres em relação às brancas,


lher, na sociedade brasileira, padeceu com os quanto pela quase não existência de famílias
desmandos e o enorme poder conferido aos “negras” - o sistema escravista não previa a
homens. Desde a colônia, os homens exerce- constituição dessas famílias na prática coti-
ram, a partir das instituições e das ciências diana -;ainda, pela interpretação de que elas
médicas, um forte controle sobre a conduta, não seriam bons modelos de conduta moral,
o comportamento e, sobretudo, o corpo da de comportamento civilizado e cristão para
mulher, fosse portuguesa, africana, indígena as outras mulheres; e finalmente, pela com-
ou afro-brasileira. O controle das instituições preensão de que elas eram cultural, sexual e
estatais e clericais sobre a família e, acima de teologicamente “perdidas”.
tudo, da mulher e do seu corpo, particular- No período escravista, o imaginário
mente ao “sul”, era sistemático. luso, patriarcal acerca das mulheres africanas
O investimento massivo e o controle e afro-brasileiras estava construído sobre vá-
das instituições estatais e clericais recaíam rios estereótipos, mas eles tinham seu cerne
mais sobre as mulheres brancas, pois não no corpo e na cor dessas mulheres, uma vez
havia muitas condições de se fazer isso em que se enfatizava a força que residia nesse
relação às “negras”; tanto pela quantida- corpo e o poder de sedução e de repulsão que

* Coordenador Geral e Executivo do Núcleo Negro da UNESP para Pesquisa e Extensão.

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83
NEGRA, MULHER, POBRE...
a sua cor irradiava sobre homens e mulheres diferente que, não mais submetido à escra-
de origem lusa, inclusive os da Igreja1. vidão, reivindicava seu direito de seguir sua
A associação da mulher com o mal, vocação religiosa.
com o demoníaco, já estava presente há sé- A Igreja Católica e as Congregações
culos no imaginário ocidental2. A misoginia Religiosas, em sua maioria, não conside-
sofrida pela mulher por parte do Estado e, raram a Lei Afonso Arinos que entrou em
fundamentalmente, pela Igreja, foi apontada vigor em 1951, tipificando como contraven-
por Anne Barstow, quando afirmava que es- ção penal a atitude de pessoas e instituições
sas instituições a viam como um ser envolto que impediam o acesso ou discriminavam
em mistérios e perigos vinculados à desarti- “negros(as)”. Havia um nítido descompasso
culação do poder masculino a partir de suas entre a Igreja Católica e o Estado Brasileiro
ligações estreitas com bestas satânicas3. no tocante à assimilação e à integração do
Porém, quando da escravização da afro-brasileiro nos seus espaços internos.
população africana na Europa e no “Novo Esses foram o imaginário e a repre-
Mundo”, essa mentalidade ganhou novos sentação social dos afro-brasileiros no seio
contornos, se atualizou. Aos africanos e às de nossa sociedade que observamos nas res-
africanas, foram imputados o monopólio postas dos superiores, formadores de diversas
de pertencer ao mal4, sendo invariavelmen- Congregações Religiosas quanto à presença
te associadas(os) ao Diabo em diversos po- de negros na Vida Religiosa e na Igreja Ca-
emas e charges ditos populares. No período tólica em 1960. As respostas manifestaram
republicano, a ligação do(a) “negro(a)” com que as cúpulas da Igreja Católica no Brasil
o mal, com a sujeira, com a animalidade apa- e suas Congregações Religiosas faziam uma
rece, também, nas piadas. leitura rasteira, baseada em um senso co-
Casa-Grande e Senzala de Gilberto mum pautado na manutenção da exclusão
Freyre e várias obras literárias e “científicas” dessa população das esferas de decisão do
difundiram uma imagem da afro-brasileira país, fosse como integrante do Estado, fosse
lasciva, devotada ao sexo, aos prazeres car- como membro das instituições da sociedade
nais, que, às vezes, denunciavam a violência e da Igreja Católica.
sexual contra ela. Mas essas obras, no geral, Fragoso denunciou o racismo das au-
apenas fizeram eclodir e/ou consolidar, por toridades eclesiásticas e religiosas no país.
meio de suas narrativas, antigas e novas fan- Além do que, revelou que os interesses he-
tasias patriarcais e machistas, que mantive- gemônicos da Igreja Católica no Brasil e de
ram a “negra” ou a “mulata” no papel de ani- suas Congregações mantinham-se basica-
mais e objetos sexuais de seus senhores5. mente os mesmos do período escravista, ou
Essa visão vigente na sociedade brasi- seja, o monopólio étnico-racial branco do
leira empurra irremediavelmente a popula- ambiente clerical e religioso no país, a des-
ção afro-brasileira para um pólo oposto ao peito do Concílio Vaticano II6.
hegemônico que é cristão, branco e mascu- A atualização da Igreja no Concílio
lino. Consolidando o imaginário de que os Vaticano II (1962-1965) tinha como funda-
(as) “negros(as)”, sobretudo elas, não têm o mento estabelecer novas relações culturais,
perfil adequado para seguir nas hostes cris- políticas, religiosas e diplomáticas com o
tãs, seja pelas suas histórias, seja pelos sím- mundo não cristão, mas sobretudo compre-
bolos que portam em seu corpo. ender, dialogar e enfrentar as novas deman-
A sociedade brasileira e a Igreja Cató- das sociais que surgiam no seu “quintal”. Os
lica no país foram forjadas por este imagi- movimentos de negritude, os de mulheres e
nário racista, machista, classista do período os de trabalhadores, que se espalhavam pela
escravista. Obstacularizaram as vocações Europa, Estados Unidos e América Lati-
afro-brasileiras por medo e ignorância deste na exigiam da Igreja uma atuação pastoral,

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NEGRA, MULHER, POBRE...
evangélica e profética para poder influenciar Na encíclica Pacem in Terris (1963),
e não perder espaços em um mundo cada João XXIII reconheceu o papel da mulher
vez mais secularizado. Além disso, ela temia no mundo moderno. Ele percebeu que a
o avanço ideológico das teses marxistas e a mulher era uma nova força social8. O Vati-
expansão da área de influência política e mi- cano II refletiu oficialmente sobre a questão
litar dos socialistas nessas e em diversas ou- da mulher em todos os níveis. Na perspecti-
tras regiões do planeta. va da atual antropologia teológica, a mulher
Desse universo de questões, detere- é vista, também, como “imagem de Deus”.
mo-nos somente no impacto que o movi- Inicia-se um processo de desvincular o femi-
mento de mulheres e o de negros exerceram nino do pecado; elas são associadas a Maria,
nas mudanças da Igreja Católica e seu reflexo não a Eva9.
entre as religiosas no Brasil, na medida em Na Constituição Gaudium et Spes, ex-
que projetaram uma nova identidade a essas plicita-se que na comunidade humana não
mulheres e as fizeram olhar para si e formu- deve haver qualquer discriminação, seja por
larem um novo imaginário coletivo, sobretu- sexo, por raça ou por cor. E, ainda, se reco-
do a partir de sua inserção no meio do povo nhece a dignidade pessoal da mulher, e não
pobre e trabalhador, majoritariamente femi- somente a do homem. Ela, também, é con-
nino e negro, presente nos centros comuni- vidada a participar da vida cultural da socie-
tários das periferias urbanas e rurais do país. dade e da Igreja, na missão de evangelizar.
A luta pela igualdade de direitos e de Às leigas se abre espaço para trabalhar para a
oportunidades na história e em diferentes Igreja no Apostolado dos Leigos10.
sociedades é antiga por parte das mulheres. O Concílio Vaticano II refletiu e buscou
Essa luta, porém, ganha força, expressão e adequar-se à realidade emergente do mundo
visibilidade dependendo da conjuntura eco- secular e moderno. As mulheres, a partir de
nômica, política e cultural de cada realidade. seu lugar social - de marginalização -, reivin-
Na década de 1960, pela junção de diversos dicam maior espaço de atuação na sociedade
fatores, principalmente pela expansão do ca- civil e poder de decisão nas esferas públicas e,
pitalismo, impondo a um número maior de também, nas eclesiásticas. A teologia que an-
mulheres que se tornassem força de trabalho, tes refletia sobre a presença do feminino no
substituíssem homens na produção, e ainda ambiente sagrado e social, a partir de um pon-
pela revolução sexual desencadeada pelas pílu- to de vista tradicional e masculino, percebeu
las anticonceptivas disseminadas na socieda- nela – mulher – a possibilidade da Igreja e de
de, o feminismo europeu e norte-americano suas Congregações dialogarem com um femi-
tornou-se manifestação deste amplo movi- nino consciente de sua força na construção do
mento de mulheres a se tornar em um novo projeto cristão-católico.
ator político importante no cenário mundial, No entanto, baseada em sua experiên-
capaz de reivindicar sua cidadania plena e se cia como vice-provincial de sua Congregação,
mostrar como donas de seu corpos. Anunciação diz que, muitas vezes, os homens
Diante deste fato, o Papa João XXIII, (padres) atrapalham a Vida Religiosa:
em 3 de maio de 1961, encaminhou uma
mensagem à União Mundial de Organiza- Quando ia fazer visitas a essas co-
ções Femininas Católicas, dizendo: “refletin- munidades; os padres não me leva-
do sobre a unidade essencial e fundamental do vam a sério, diziam: “É jovem”. Eu
mundo em Cristo e em sua Igreja, examinais estava ali em nome da Congregação
como a mulher católica pode e deve ser, em seu e a minha atividade era essa. Então,
lugar, pelo fato de sua natureza, de sua provi- eles começaram a me respeitar mais.
dencial vocação e aptidões, fonte de instrumen- Eu acho que eles juntaram as duas
to de unidade na família, na vida social, na coisas, uma por eu ser negra
negra,, a ou-
a
tr p
tra o se ove ,
porr serr jjovem,
m mmas eera
as ra aa vvice-
ice-
sociedade, na vida nacional e internacional”.7

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NEGRA, MULHER, POBRE...
provincial. Eu senti muito isso no O depoimento da irmã Bela é esclare-
Maranhão, o padre fugiu o tempo cedor:
inteiro, não quis falar comigo”.
Esse trabalho de inserção quando
Liberdade considera que: as irmãs começaram, aí foi aquele
‘vuuum’ todo mundo quis ir pras
esses homens da Igreja atrapalham sim,
casas. Todo mundo queria ir. Di-
sabe por quê? Dificilmente você encon-
ziam: vamos para inserção. (...) Lá
tra um homem que tem uma comu-
todo trabalho que fazemos, toda a
nhão com a espiritualidade negra, uma
articulação, é tudo por nossa conta.
comunhão inculturada, uma caminha-
Lá a gente tem uma vida de negro,
da de aceitação da mulher ... de igual-
de liberdade e de muito trabalho.
dade. É uma das coisas que sofro muito
nas liturgias, porque amo as liturgias, Configura-se assim a lógica de que, de
preparo muitas e dá muito trabalho, um lado, as “negras(os)” trabalham fora do
antes, durante e depois, na hora eu convento para viver de maneira mais livre. De
fico muito irritada, porque os homens outro lado, há Congregações que entendem
falam muita bobagem, sem nenhum que elas (eles) devem fazer a missão no meio do
aprofundamento bíblico e infelizmen- povo, em um meio social de que não deveriam
te acabam reforçando preconceitos seja ter saído. E, ainda, elas vão para a inserção para
pelas palavras, seja pelos gestos. permanecerem próximas(os) da realidade social
Outra, ainda, diz: “os padres, esses ho- em que nasceram, e não pretendem negá-la.
mens, atrapalham a Vida Religiosa. O que a Neste processo, a inserção, também, é
gente sente é que Vida Religiosa Feminina é o lugar, por excelência, da construção de uma
mão de obra barata da Igreja”. nova identidade por parte dessas e outras re-
As religiosas afro-brasileiras que ingres- ligiosas. Ali elas se apresentam, antes de tudo,
saram nas Congregações, no final dos anos de com o seu corpo, com o seu ser mulher. Assim
1960 e nas décadas posteriores, tiveram uma é que na inserção elas utilizam as disposições
presença marcante nessa nova modalidade de conferidas pelo Vaticano II, pelas alterações
ser Igreja e de ser religiosa, muito embora isso das normas e/ou constituições, retirando o
praticamente não seja mencionado nos diver- hábito e usando roupas comuns, seculares11.
sos trabalhos acerca desse tema. A presença do hábito nas religiosas
A importância das afro-brasileiras pode ser, a priori, interpretado de duas ma-
é inegável na Vida Religiosa. No entanto, neiras que são complementares. Uma é o fato
destacam-se dois pontos fundamentais para de que o uso do hábito por algumas religio-
compreendermos esse processo que leva es- sas ou congregações, ainda hoje, faz parte do
sas mulheres à inserção. O primeiro é que processo de distinção entre alguém que tem
a maioria das Congregações faz com que a o corpo sagrado de outro – o leigo –, que não
“negra” vá trabalhar fora do convento, no teve o seu sacralizado institucionalmente. A
meio do povo, na rua, para afastá-la do am- distinção entre um corpo e outro, uma pessoa
biente conventual (espaço de formação, da e outra, demarca, além do respeito, a distância
intelectualidade; lugar da segurança, longe social e o poder religioso e político daquela
do mundo e do pecado, enfim, da “branca”). que veste o manto sagrado do povo comum12.
O segundo é que, se a opção delas foi pela Assim, ele deve ser folgado, bem largo e com-
inserção, em sua maioria, o fizeram para per- prido – cobrindo a cabeça, os cabelos, os bra-
manecer distante do olhar normatizador do ços e as pernas das suas usuárias.
poder conventual e, às vezes, das discrimina- Segundo nos informa Maria Aguiar, a
ções étnico-raciais, sexuais e sociais presentes sua congregação, as Irmãs do Amparo, dis-
nestes ambientes. cutiu essa questão no último capítulo geral

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NEGRA, MULHER, POBRE...
(1995), na Itália. A maioria das religiosas O uso de vestimentas “comuns” trans-
presentes diziam que sem o hábito ficava forma a religiosa em uma mulher também
mais fácil cair em tentações, ficavam mais ex- “comum”. Ela se iguala fisicamente às outras
postas”. Ela aboliu o hábito e observa que: mulheres, muito embora haja alguns gestos cor-
porais característicos das religiosas, provenientes
De fato você fica mais exposta. Mas, de sua formação. Isso propicia a desmistificação
por que tenho que me proteger den- do “corpo sagrado” da freira e aguça a curiosida-
tro de uma roupa? A proteção será de masculina, tornando-a objeto de desejo14.
que é exterior ou interior? Todas
essas discussões. Surgia também o Maria Aguiar, neste sentido, afirma:
fato de que é mais fácil se locomo- Agora, tenho que considerar que as
ver de ônibus. Outra coisa que para cantadas em mim são freqüentes, mas
nós foi muito forte, era a facilidade nunca de mulheres, sempre de ho-
que, às vezes, a sociedade colocava. mens. No caso de mulheres, nunca
Hoje, não tanto, mas quando você percebi; de homem, eu, ainda, brinco.
vê uma irmã de hábito, tudo é para As cantadas existem, as paqueras são
ela. Ela é a primeira da fila, a pri- freqüentes, mas lido com normalida-
meira que vai sentar. E o povão? Por de. Outro dia, me perguntaram: “ee se
que a gente tem que se diferenciar alguém te der uma cantada mesmo, o
do povo que caminha com tanto que você faz?
faz?” Respondi: “se
se achar que
sofrimento? Por que tenho que ter vale a pena, insisto, se não vou embo-
preferência numa sociedade onde ra. Eu sei que não é compromisso pra
sempre o pobre é discriminado? E mim. Só gosto e falo: “oba
oba”..
eu coloco-me diferente do pobre,
A irmã Liberdade diz:
coloco-me mesmo com essas vestes
bem diferente dele? Quantas vezes Olha, isso acontece muito, princi-
a gente já presenciou isto? Fila de palmente para nós negras quando
banco, irmã passa na frente. estamos dançando, jogando, brin-
cando com o corpo. As pessoas me
Elas dizem: perguntam e, também, acham que
estou me oferecendo e depois da
ah, mas realmente a freira tem as
dança, à noite, então elas vêm me
suas vantagens, são as prerrogativas
cantar. Isso acontece de monte.
que temos nessa sociedade.
O desuso do hábito pelas religiosas é parte
Lá é verdade, na Europa, apesar de da emergência e do apogeu da teologia da liberta-
ser uma Europa muito sem religião, ção entre nós, nas décadas de 1970, 1980 e início
mas a vestimenta conta. dos anos de 1990, da implantação de diversos tra-
A outra é que o desuso do hábito por balhos pastorais e missionários nas mais paupérri-
essas mulheres consagradas, particularmente as mas periferias e pela elaboração de uma evangeli-
afro-brasileiras, têm sido uma estratégia para se zação inculturada15 na América Latina.
aproximar do povo, não querendo confrontar Com esses trabalhos milhares de reli-
a Igreja Católica, não rompendo com os votos giosas, especialmente as negras, deixaram os
de obediência às suas superiores. O desuso do hábitos e outras nunca chegaram a usá-los.
hábito implica, também, em não negar a sacra- As jovens “irmãs”, à época, não os adotaram,
lidade do seu corpo, mas a afirmação indubitá- visto que, atrapalhavam suas locomoções por
vel de que todos os corpos, independentemen- trilhas, barrancas de morros, escadarias, para
te das vestimentas que os cobrem, são sagrados subir nos ônibus, etc. Seus corpos precisa-
por imposição divina, posto que “o corpo hu- vam estar livres para testemunharem com o
mano é templo do Espírito Santo” 13. povo a fé e a esperança na transformação so-

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NEGRA, MULHER, POBRE...
cial e na construção do Reino de Deus na terra ção, mas apenas do seu apoio institucional.
e para otimizar as suas atividades. Elas romperam com os antigos estigmas que
recaíam sobre a Vida Religiosa Feminina no
O reflexo do movimento de mulhe-
Brasil de que não trabalhavam, não eram pro-
res em geral, e o feminista em particular,
dutivas e dependiam do dote familiar.
na sociedade, na Igreja e na Vida Religiosa
também se faz sentir nessa retirada do há- Aos poucos essas mulheres retiraram a pe-
bito, quando vemos que elas investiram em cha de que queriam segurança, social e material,
seus corpos para construir sua identidade fe- e estavam à espera de um homem invisível, eté-
minina e sua personalidade de mulher, sua reo, que as iria salvar e as encaminhar ao paraíso.
negritude. Despir-se das vestes sagradas era Dessa forma, também, venceram o Complexo
desafiar a segurança que elas davam. Mesmo de Cinderela16 que portavam, enquanto mulhe-
com medo desse novo, elas se obrigaram a res e enquanto freiras. Em suma, deixaram de ser
estabelecer contatos afetuosos com todos. aquelas “crianças” negras dependentes que viviam
à espera do Cristo Rei e da providência divina.
Doroth salienta:
O Concílio Vaticano II mudou drastica-
Antes, eu falava: ‘nossa, acho que por mente a referência e o imaginário que cercava
isso que tenho que andar com essas as “irmãs”. Muitas, inclusive, deixaram de fazer
roupas, e tal, para cobrir isso, pra tapar trabalho assistencial-caritativo e começaram a
esse corpo que é feio, que é essa coisa desenvolver um trabalho preponderantemente
do demônio, que os homens vão olhar militante, em alguns aspectos até político-par-
pra mim ... porque eu sou negranegra.. tidário. Muitas, ainda, construíram uma iden-
A abertura dos conventos para a saída tidade de mulher, positivando a sua sensuali-
das religiosas propiciou, também, a entrada dade e, no caso específico das afro-brasileiras,
dos leigos nestes espaços, fazendo com que, aos iniciaram o resgate de sua auto-estima; de suas
poucos, fossem alterados a referência e o ima- identidades sexual e étnico-racial a partir da sua
ginário que o povo tinha dessas mulheres celi- história corporal, vinculando-se ao movimento
batárias. Os conventos passavam a se abrir para negro e ao de mulheres.
encontros de formação religiosa das comunida- Anunciação diz: “a dança afro que fiz,
des populares (Comunidades Eclesiais de Base uns seis meses, me ajudou muito. Não só a dan-
– Cebs), aproximando o sagrado e o devocional çar, mas também uma série de valores, de au-
do profano, da gente simples da periferia urba- toconhecimento”.
na e rural. O fato de as religiosas, especialmente
Entretanto, a mulher afro-brasileira
as negras, morarem nas inóspitas periferias com
em estado de religião que não usa o hábito é
o povo, sofrendo com ele foi um elemento es-
invariavelmente confundida como leiga, pelo
sencial nessa aproximação e nessa mudança de
fato de não ter os “vícios corporais” das freiras
imagem que se tinha dessas mulheres.
tão salientados, como já mencionara Marcel
Muitas casas comunitárias e várias reli- Mauss in Técnicas Corporais17, mas, principal-
giosas no trabalho de inserção têm se manti- mente, por ser “negra”. Ela não é notada. Isto
do do salário que ganham com suas atividades demonstra que o imaginário machista e racis-
junto aos leigos, a maioria como professoras. ta ainda existe, pois não a tem como uma mu-
Essas religiosas, afro-brasileiras e “brancas”, lher de vida consagrada e celibatária. Assim, é
não querem viver do dinheiro da Congrega- comum se ouvir: “Você não parece freira”. P uc

Bibliográficas
BARSTOW, A. L. CHACINA DE FEITICEIRAS: UMA REVISÃO HISTÓRICA DA CAÇA ÀS BRUXAS NA EUROPA, Rio
de Janeiro: Ed. José Olympio, trad. I. Tupy, .
BROOKSHAW, D. RAÇA E COR NA LITERATURA BRASILEIRA, Porto Alegre: Ed. Mercado Aberto,
trad. M. Kirst, .

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NEGRA, MULHER, POBRE...
DOCUMENTOS PONTIFÍCIOS. VATICANO II – CELIBATO SACERDOTAL: UMA OPÇÃO DE AMOR, São Paulo: Ed.
Loyola, .
DOWLING, C. COMPLEXO DE CINDERELA, São Paulo: Ed. Melhoramentos, trad. A. E. F. Miazzi, ª
ed., .
FONSECA, D. J. A PIADA: DISCURSO SUTIL DA EXCLUSÃO – UM ESTUDO DO RISÍVEL NO “RACISMO À BRASILEIRA”,
São Paulo: PUC/SP, Dissertação de Mestrado, Programa de Ciências Sociais, .
FRAGOSO, H. UMA DÍVIDA PARA COM OS NEGROS NO BRASIL, in Negro, quem te amaldiçoou?, Petrópo-
lis: Revista de Cultura Vozes, a/, nº , jan-jul., .
FREYRE, G. CASA-GRANDE E SENZALA, Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, ª ed., .
MAUSS, MARCEL. As Técnicas Corporais, in Sociologia e Antropologia. São Paulo: E. PU/EDUSP,
Trad. M. W. B. de Almeida e L. Puccinelli, .
QUEIROZ JR., T. PRECONCEITO DE COR E A MULATA NA LITERATURA BRASILEIRA, São Paulo: Ed. Ática, Série
Ensaios, Vol. , .
RANKE-HEINEMANN, UTA. EUNUCOS PELO REINO DE DEUS – MULHERES, SEXUALIDADE E A IGREJA CATÓLICA,
Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos, trad. P. Fróes, ª ed., .
SANTISO, MARIA T. P. A MULHER, ESPAÇO DE SALVAÇÃO, São Paulo: Ed. Paulinas, trad. I. F. L. Ferreira,
Col. Missão Mulher, .
SICUTERI, R. LILITH A LUA NEGRA, Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, trad. N. Telles e J. A. S. Gordo,
.
TEXTO OFICIAL DO CELAM. SANTO DOMINGO: NOVA EVANGELIZAÇÃO, PROMOÇÃO HUMANA, CULTURA CRISTÃ,
JESUS CRISTO ONTEM, HOJE E SEMPRE, São Paulo: Ed. Loyola, ª ed., .

Notas
1 Ver BROOKSHAW, D. Raça e Cor na Literatura Brasileira, Porto Alegre: Ed. Mercado Aberto, trad. M. Kirst, 1983;
FREYRE, G. Casa-Grande e Senzala, Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 25ª ed., 1987.; QUEIROZ JR., T. Preconceito de
Cor e a Mulata na Literatura Brasileira, São Paulo: Ed. Ática, Série Ensaios,Vol. 19, 1982.
2 Ver SICUTERI, R. Lilith a Lua Negra, Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, trad. N. Telles e J. A. S. Gordo, 1985. RANKE-
HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo Reino de Deus – Mulheres, Sexualidade e a Igreja Católica, Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos
Tempos, trad. P. Fróes, 2ª ed., 1996; BARSTOW, A. L. Chacina de Feiticeiras: Uma Revisão Histórica da Caça às Bruxas na
Europa, Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, trad. I. Tupy, 1995.
3 Cristina Larner nos informa que, “normalmente, a feitiçaria, o último estágio do mal nos seres humanos, era sexualmente rela-
cionada às mulheres na mesma proporção que a santidade, o último estágio do bem, era sexualmente relacionada aos homens”.
Citação extraída de BARSTOW, A. L. op. cit., p. 33.
4 Ver a maldição de Noé sobre Cam, Gênesis, Cap. 9- vers. 19-27. Bíblia Sagrada, São Paulo: Ed. Paulinas. FONSECA, D.
J. A Piada: Discurso Sutil da Exclusão – Um Estudo do Risível no “Racismo à Brasileira”, São Paulo: PUC/SP, Dissertação de
Mestrado, Programa de Ciências Sociais, 1994, p. 107-28. BARSTOW, A. L. op. cit., p. 175-94.
5 David Brookshaw afirma, “a fusão de mito e realidade na imaginação popular (...) cria uma evidente dicotomia entre a huma-
nidade branca cristã e a bestialidade preta pagã”. BROOKSHAW, D. op. cit., p. 15.
6 FRAGOSO, H. Uma Dívida para com os Negros no Brasil, in Negro, quem te amaldiçoou?, Petrópolis: Revista de Cultura
Vozes, a/82, nº 1, jan-jul., 1988, p. 124-57.
7 SANTISO, Maria T. P. A Mulher, Espaço de Salvação, São Paulo: Ed. Paulinas, trad. I. F. L. Ferreira, Col. Missão Mulher, 1993, p. 46.
8 Idem. p. 46.
9 Idem. p. 47.
10 No decreto sobre o Apostolado dos Leigos, se explicita o convite às mulheres leigas: “e, como em nossos dias, as mulheres
têm participação cada vez maior em toda a vida da sociedade, é de grande importância sua participação igualmente crescente
nos campos do apostolado da Igreja”. Citação extraída de SANTISO, M.T. P. op. cit., p. 48.
11 O uso do hábito, segundo o Concílio Vaticano II, passa a ser facultativo, mesmo porque não há necessidade de manter
um vestuário que remonta à população campesina européia da Idade Média. O Vaticano II, assim, até nas roupas buscou
atualizar a Igreja e as suas Congregações, aproximando-a do povo.
12 Documentos Pontifícios. Vaticano II – Celibato Sacerdotal: Uma Opção de Amor, São Paulo: Ed. Loyola, 1993.
13 BÍBLIA SAGRADA. Epístolas de São Paulo: Primeira Epístola aos Coríntios, São Paulo: Ed. Paulinas, Cap. 6,Vers. 19, p. 2155.
14 Vale salientar que o hábito suscita, em muitos homens, essa curiosidade por mulheres que portam “uniformes” ou par-
ticipam de ‘instituições fechadas ou totais’, como diria Goffman, Gilberto Velho ou M. J. Goldwasser.
15 Texto Oficial do CELAM. Santo Domingo: Nova Evangelização, Promoção Humana, Cultura Cristã, Jesus Cristo Ontem, Hoje
e Sempre, São Paulo: Ed. Loyola, 3ª ed., 1993.
16 Ver DOWLING, C. Complexo de Cinderela, São Paulo: Ed. Melhoramentos, trad. A. E. F. Miazzi, 36ª ed., 1981
17 MAUSS, Marcel. As Técnicas Corporais, in Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP´, Trad. M. W. B. de Almeida
e L. Puccinelli, 1974.

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A FACE NEGRA...

EDUCAÇÃO INFANTIL
CONSTRUÇÃO DE UMA EDUCAÇÃO
ANTI-RACISTA
Profa. Ms. Lucimar Rosa Dias

Doutoranda pela Faculdade de Educação da USP*

Quem deve ensinar, o que deve ser ativa, que constrói suas próprias opiniões,
ensinado e onde ensinar? que sabe manifestar seus sentimentos, suas
dúvidas, seus desejos, sonhos e fantasias. Es-
Pesquisas cada vez mais avançadas nas
tamos cada vez mais preocupados em organi-
áreas médicas, educacionais e também da
zar lugares nos quais a criança possa de fato
psicologia indicam que a fase inicial da vida
se constituir como sujeito atuante, partici-
de um ser humano tem muita importância.
pativo e crítico. Acreditamos que as crianças
Desde a concepção até os seis anos, as coisas
que tenham acesso a esse tipo de ambiente
que vivemos, expressamos e aprendemos po-
crescerão de um modo melhor, com chances
dem produzir marcas que ficarão presentes
de serem respeitadoras das diferenças entre
ao longo de nossas vidas, ajudando-nos a vi-
as pessoas, mais educadas, criativas, hones-
ver melhor ou impedindo que isso aconteça.
tas, preocupadas com a coletividade, com
Além disso, é uma fase na qual se aprende
maior capacidade de resolver os problemas
rapidamente e em grande quantidade.
sociais, políticos e econômicos, enfim, crian-
Estas descobertas “criaram” fazeres ças que vivam sua infância de modo seguro
educativos nos quais estão presentes a cer- e que cresçam sendo cidadãs, cientes de seus
teza de que a criança pequena é uma pessoa direitos e deveres.
* Membro da Comissão Assessora de Diversidade para Assuntos Relacionados aos Afrodescendentes (CADARA/
SECAD/MEC); Consultora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT.

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EDUCAÇÃO INFANTIL...
Toda essa expectativa gerada pelo co- que chegam à escola por meio de diferentes
nhecimento sobre o desenvolvimento do ser recursos; todavia, o papel do educador, que é
humano passou a influenciar as ações desen- ensinar, continua de pé.
volvidas por quem educa e trouxe a certeza Atualmente, sua função, mais do que
de que essa educação não é para criar o cida- transmitir informações, é transmitir conhe-
dão do futuro, mas sim do presente. Quando cimento, ou seja, junto com seus alunos pro-
pensamos na atual sociedade, as expectativas ceder “a leitura de mundo”, refletir e filtrar
aqui levantadas parecem meras utopias. E o os conteúdos é de suma importância. Os alu-
são, mas no sentido que Paulo Freire dá ao nos continuam recorrendo ao educador para
termo, isto é, a partir da crítica transforma- compreender, discutir e comentar as infor-
dora, que anuncia outra realidade. Essa nova mações adquiridas, tranformando-as, nesse
realidade anunciada é a utopia. Portanto, es- diálogo reflexivo, em conhecimento.
tamos buscando, pela ação e pela reflexão,
transformar a nossa realidade em algo me- É claro que não excluímos a possibili-
lhor. Buscamos a nossa utopia de um mundo dade de que as crianças também trazem aos
melhor fazendo-a acontecer a cada dia. seus professores conhecimentos, mas isso
acontece desde antes da televisão e da inter-
A vida está repleta de momentos em net adentrarem o espaço da escola. Desde
que educamos. Em todos eles, é possível per- sempre, temos alunos que investigam, são
ceber a tentativa de aplicação de um modo curiosos, elaboram questões e nos propõem
educativo que esteja em consonância com es- pensarmos juntos, construindo um fazer pe-
sas descobertas. Os pais, independentemen- dagógico colaborativo e solidário. Se é assim
te da classe social em que se situam, tentam quando tratamos da educação em geral, ima-
dialogar mais com seus filhos, nos lugares ginem a dimensão desses questionamentos
em que desenvolvem a educação informal. quando nos referimos à educação infantil.
Sempre há tentativas de ser mais atrativo, Período de vida em que o sujeito está apren-
explicar mais o que se quer, trabalhar mais dendo quase tudo: seu nome, falar, andar,
com a sedução do que com a obrigação. Um diferenciar letras de números e palavras de
exemplo disso, é o que ocorre nos grupos desenhos; questiona-se sobre quase tudo. Por
religiosos, que cada vez mais tem trabalhos que chove? Por que sou menino? Por que sou
voltados especificamente para as crianças menina? De onde vêm os bebês? Onde vi-
pequenas usando linguagem apropriada - vem as formigas? Quem cresce mais rápido,
desenhos, histórias e até brinquedos - para o elefante ou a zebra? Por que somos de cores
informar suas crenças. diferentes? São tantas as questões, e tão inu-
Essas mudanças nos modos de educar sitadas, que os educadores se vêem, muitas
são perceptíveis, também, na educação for- vezes, atônitos. No entanto, quando conse-
mal. Ainda que haja a aceitação de alguns guem concretizar o seu currículo a partir das
educadores da premissa de que a escola não questões apresentadas pelas crianças, perce-
consegue mais “competir” com os meios con- bem que a riqueza e o grau de aprendizagem
temporâneos de transmissão de informações, vão muito além do que a formalidade dos
de valores e de atitudes - revistas, jornais, currículos previstos nos propõe.
internet (para algumas) e principalmente a Nesse universo de questões, inclui-se
televisão. Ao mesmo tempo, convive-se com o tema do respeito às diferenças raciais. As
outra premissa, de que muitas coisas que an- crianças também se perguntam: por que te-
tes se aprendiam no espaço doméstico, hoje, mos cores diferentes? Por que sou branca e
aprendem-se na escola. Essas situações pare- ele é negro? Por que meu cabelo é crespo e o
cem contraditórias e, por isso, produzem nos dele é liso? É durante esses questionamentos
educadores uma sensação de barco à deriva. que um educador atento percebe as mani-
Na realidade, uma situação não exlui a outra. festações de rejeição às diferenças e tem por
Convivemos cada vez mais com informações obrigação pedagógica trabalhar com elas,

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EDUCAÇÃO INFANTIL...
construindo com as crianças o princípio de deixar que o outro faça o que quiser, do jeito
que as diferenças entre os seres humanos são que quiser. O respeito é sempre a negociação
um valor e não devem ser utilizadas para in- entre os diferentes modos de ser, estar e fazer,
feriorizar as pessoas. Como sabemos, nesse e isso inclui possibilidades de pensar juntos
processo de descoberta, questionamento e e também de tentar convencer o outro sobre
manifestações, as crianças negras estão em determinadas coisas, mas sobretudo implica
desvantagem, criadas numa sociedade racista não querer exterminar o outro, nem odiá-
e discriminadora. As crianças brancas muito lo, subjugá-lo e inferiorizá-lo. Ignorar a sua
cedo percebem-se portadoras dos bens sim- origem, impedir que conheçam a produção
bólicos e materiais que a branquitude lhes dos seus antecedentes, impedir os sujeitos de
dá nesse país. E as crianças negras, também, gostarem de si mesmos, a exemplo do que
percebem que a negritude lhes traz desvan- tem sido feito com as crianças negras bra-
tagens. Com isso se estabelece uma relação sileiras. Precisamos incluir como papel fun-
desigual entre as crianças, quase sempre damental da escola problematizar o racismo,
conflituosa, e infelizmente, não são todos que mata o que de mais belo os sujeitos têm,
os educadores que percebem que esse é um qual seja, a capacidade de amar o outro com
tema do universo infantil e que precisa ser suas singularidades. Isto é, aprender a viver
contemplado na organização dos conteúdos e a conviver com quem é diferente de mim.
a serem trabalhados ao longo do ano. Por Ensinar isso é tarefa que cabe ao familiares,
isso, foi necessário instituir a Lei 10.639/03 mas também aos educadores, principalmen-
e suas diretrizes, que obrigam as escolas pú- te aos educadores de crianças pequenas.
blicas e privadas a incluirem no currículo a
história e cultura afro-brasileira e africana.
O ensino- aprendizagem sobre o respeito
às diferenças raciais na Educação
Há pelo Brasil afora várias experiências Infantil
de inclusão no currículo desse tema. Ele tem
No Brasil, a Educação Infantil, desde
recebido diferentes denominações: respei-
1996, com a LDB - Lei de Diretrizes e Bases
to às diferenças raciais, tolerância, trabalho
da Educação - 9394/96, passou a ser um di-
com a diversidade, diversidade étnico-racial,
reito da criança, independentemente de sua
pluralidade cultural, promoção da igualdade
condição social. Todos os meninos e meni-
racial etc. Sem aprofundarmos na questão da
nas de 0 a 6 anos devem ter garantido o seu
denominação - que é importante, mas não
direito de acesso à educação básíca.
será foco de nossa reflexão -, o fundamental
é sabermos que a escola está sendo chamada a Vitórias assim, mesmo que ainda lon-
incluir no seu currículo um trabalho pedagó- ge de se concretizarem, surgem a partir das
gico com o tema da educação das relações ét- constatações de que os seres humanos preci-
nico-raciais, seja por meio da legislação, como sam de amparo, principalmente no começo
é o caso do cumprimento da Lei 10.639/03 e de suas vidas, pois é nela que se originam as
de suas diretrizes, seja porque nossa realidade bases da aprendizagem sobre os valores, ati-
indica que desde muito cedo os educandos tudes e também sobre a sua identidade e a
precisam aprender a conviver com o outro, identidade do outro. Quem sou eu? Quem é
respeitando-o em seu jeito de ser física e psi- ele/ela? Por que ele/ela é diferente de mim?
cologicamente, respeitar o seu modo de estar Como a construção da identidade é sempre
no mundo com suas crenças, desejos e idéias, uma relação com o outro, as crianças fazem
e com seu modo de fazer, isto é, sua cultura, perguntas sobre as diferenças entre as pessoas
seu jeito de produzir e reproduzir a vida. e constróem suas percepções de superiorida-
Tal respeito, obviamente, não significa de, inferioridade, igualdade e desigualdade.
passividade diante do outro, ausência de con- Meninos e meninas nessa faixa etária,
flitos e discussões sobre pontos de vistas. Não como já dissemos, devem ser considerados
estamos advogando que respeitar significa como sujeitos de direitos e portadores da ca-

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pacidade humana de pensar sobre a vida nos entrou no banheiro para fazer xixi,xixi,
mais diferentes aspectos. Eles fazem pergun- como era menino ele pediu licença,
tas sobre si mesmos, sobre a natureza, sobre eu falei que podia entrar. Ele entrou
a vida, e também formulam respostas sobre e parou. Ficou olhando para o me-
esses mesmos temas a partir do que vêem, nino. Eu falei: - Porque você está
ouvem e sentem ao seu redor. olhando no Paulo, Lauro.? Ele falou
É a partir da concepcão de criança ca- assim: - Ah! Tia porque ele é assim?
paz de refletir sobre o seu dia a dia, de questio- Eu falei: - Assim? Assim como?. Ele
nar e problematizar as diferentes informações respondeu: - Assim! Então, eu falei:
recebidas pelos diversos meios a que tem aces- - Assim como? Ele respondeu: - Ele
so que tratarei o tema da educação infantil: é preto, a cor dele é preta, ele é pre-
desafios e proposições para a construção de to... Eu falei ele é assim porque ele
espaços educativos de respeito às diferenças nasceu assim é a cor, ele é negro ...
raciais e do processo de construção de uma Porque eu já tinha alguma informa-
educação anti-racista na educação infantil. ção que não deveria falar preto tinha
que ser negro, que era a raça eu re-
É certo que a vida nas cidades levam as forcei. Ah! Ele é negro, você quer
crianças a entrarem cada vez mais cedo para dizer a cor dele é negra. Ele é assim
as escolas. Por diferentes motivos, alguns por- porque ele nasceu assim é a raça, tem
que os familiares precisam trabalhar, outros raça branca... tem raça negra. Ai ele
porque as pessoas têm cada vez menos filhos falou assim: _- mesmo se ele tomar
e sentem a necessidade de companhias, ou banho e você esfregar muito com
ainda por outros motivos. O fato é que as a bucha e com o sabão ele não vai
crianças chegam hoje às escolas com seis me- ficar branco? Eu falei: - Não porque
ses de vida e passam de quatro a seis horas ele nasceu assim, ele é assim. Então
nesses espaços educativos.
o Lauro me perguntou: - E se ele pe-
Em alguns casos, a educadora ouve gar e arrancar tudo o corinho dele -
a primeira palavra dita pela criança em sua ele usou a palavra corinho - E se ele
vida, vê o primeiro passo, ajuda a tirar a pegar e arrancar tudo o courinho
fralda, ensina a comer, conhece melhor os dele não vai nascer outro branco?
amigos da criança do que os próprios pais, Eu respondi: - Não vai nascer outro
porque é ela quem passa com elas longas ho- branco porque ele é negro. Ai que
ras. Sendo assim, as educadoras terão uma ele foi entender que a criança tinha
função importante na constituição da iden- aquela cor. O que eu achei engraça-
tidade dessas crianças. Pois é também nessa do é que eles já convivam e o Lauro
faixa etária que a criança se pergunta e per- não havia percebido a cor do Paulo
gunta aos outros sobre as diferenças sexuais, pelo rosto ele só percebeu quando o
de classe e de cor/raça. Vejamos um exemplo menino estava nu, ai ele percebeu.
disso, contado por uma professora:
Poderia fazer uma extensa reflexão so-
Havia um menino, como tem, mas bre o conteúdo desse diálogo, mas não é o
era um outro menino, bem negro, caso. Dele, quero destacar três aspectos. Pri-
negro, negro... Eu fui dar banho e meiro, ele apresenta um fato bem corriqueiro
na hora do banho eles tiram a roupa nas escolas de educação infantil: uma criança
ficam nus. Tirei toda a roupa dele e olhando para a outra percebe-a diferente de
tinha um menino bem branquinho, si mesma. Segundo, a sensação de estranha-
branquinho, branquinho, branqui- mento do menino branco diante da visão do
nho, branco mesmo. Ele não era menino negro. Terceiro, a percepção da pro-
do nivel 2, ele era do nível 4. Eu fessora diante do fato. Ela considera o estra-
estava dando banho no nível 2. Ele nhamento como uma questão que deve ser

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problematizada/refletida e, por isso, pergun- construído. Na escola, ele é mediado pela
ta ao menino branco sobre essa sensação. A educadora, que tem a responsabilidade de
perspicácia da professora em permitir que o proporcionar momentos nos quais as refe-
menino branco dialogue com ela sobre suas rências positivas relativas a todos os grupos
impressões e tenha a oportunidade de refletir humanos estejam presentes, possibilitando
sobre as diferenças raciais existentes entre os que as crianças aprendam a importância da
seres humanos é um ato sábio e pedagógico. diversidade.
A atitude dela é exemplar porque ela envolve Não podemos considerar que uma edu-
o menino numa conversa. Convida-o a ex- cadora seja comprometida quando silencia
pressar seus sentimentos e permite-lhe que diante do sofrimento de uma criança que não
manifeste o que está pensando. Ao mesmo é aceita pelo grupo por algum tipo de marca,
tempo, apresenta-lhe outras referências para como ser negra, ser gorda, usar óculos ou por
compreender a “negritude” que lhe causou outro motivo qualquer. Temos visto por meio
tanta estranheza. Outra atitude poderia ter de várias pesquisas que, dentre as muitas mar-
sido tomada pela professora, ela poderia cas que são objetos de discriminação e precon-
simplesmente, considerar que uma criança ceito, portanto de dor, as preponderantes são:
de 4 anos, como era o caso, estava falando ter a pele negra (nas suas várias tonalidades) e
bobagem, atrapalhando o trabalho dela e ter cabelos crespos (nos seus mais variados ti-
encerrar o assunto com uma bronca ou pior pos). Crianças da mais tenra idade, devido as
ignorando a atitude do menino branco. No suas heranças de origem racial (cor e cabelo),
entanto, ela percebeu um rico momento de são expostas a convivência hostil e a ironia de
aprendizagem, e não o dispensou. Isso é o colegas e em muitos casos dos próprios educa-
que se espera de uma educadora comprome- dores (o que é mais grave).
tida com uma educação reflexiva.
Isso de fato se constitui em crime
Na educação infantil, está estabeleci- contra as crianças negras, pois sabemos que,
do que a função da educadora é de cuidar para se desenvolver de modo positivo, a
e educar. A dimensão desse cuidar não se criança depende de um suporte psicossocial.
restringe tão-somente à manutenção das Isso significa, ente outras coisas, trazer para a
condições básicas de higiene, alimentação e escola conteúdos que foram por muito tem-
segurança. Estão contidas nessa dimensão as po negados como pedagógicos, tais como o
necessidades de o educador cuidar da criança, cohecimento da cultura de outros povos que
também, nos aspectos relativos a sua subje- não os europeus. A história dos negros brasi-
tividade, individualidade, identidade. Certo leiros e do continente africano, assim como
dia, lemos uma frase que dizia: “Quando vejo a dos indígenas. Podemos e devemos diver-
uma criança, ela me inspira dois sentimentos; sificar as referências de nossos crianças sobre
ternura pelo que ela é, respeito pelo que poderá as populações existentes. Compreender que
ser”. Creio que essas palavras expressam bem o povo negro e indígena possui história de
a dimensão do cuidado na educação infantil, luta e resistência, possui cultura, cria arte,
porque se as educadoras tem responsabilida- músicas, danças etc. Possibilitar que as crian-
de com os aspectos objetivos da dimensão do ças aprendam sobre si mesmas, pois falar dos
cuidado, também a têm, na mesma medida, povos africanos é compreender a história de
com os aspectos subjetivos. todos os brasileiros e é também contribuir
Para ser considerada comprometida na construção de novos olhares desse grupo
com uma educação séria, de qualidade, de- para si mesmos e de outros grupos para ele.
mocrática e anti-racista, uma educadora tem Reivindicamos que é necessário abor-
de estar atenta ao processo de construção dar, na educação infantil, aspectos que tra-
da identidade das crianças. É na interação tem da relações raciais porque as marcas
social, entre as crianças e seus pares e entre raciais, cor, cabelo e aspectos culturais são
as crianças e os adultos, que esse processo é elementos presentes no cotidiano das crian-

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ças nesta faixa etária, suscitando-lhes curiosi- tantes. Só o convencimento das educadoras
dades e conflitos que não podem ser descon- de que essa é uma questão pertinente e que
siderados. Muitas vezes, a educadora percebe faz parte do seu dia-a-dia e, por isso, precisa
prontamente esses conflitos e curiosidades, ser pedagogicamente abordada fará com que
e age sobre eles, como pudemos ver no re- esses marcos legais de fato criem vida e ga-
lato da professora. Outras vezes, cala-se por rantam às nossas crianças de todas as origens
medo de tocar num assunto que a sociedade étnico-raciais uma educação que promova a
brasileira quis esconder, sentindo-se despre- convivência entre os pares desconstruindo a
parada para abordá-lo. percepção da desigualdade. Muitas experiên-
cias por todo o Brasil já estão sendo reali-
O silêncio, nesse caso, é mais que uma
zadas, e pretendo, a partir dos itens que se-
omissão, é um crime, contra a humanidade.
guem no texto, colaborar para que inúmeras
Calar-se, é negar sua contribuição para que
outras sejam concretizadas.
crianças sejam capazes de compreender o
mundo que as cerca e dar-lhes referenciais que A percepção da igualdade, na diferença
não sejam racistas, preconceituosos, sexistas.
É preciso oportunizar-lhes outros modos de Sabemos que a educação, como proces-
ver as pessoas que as cercam, possibilitando- so, não pode eliminar as desigualdades que têm
lhes questionar as informações que recebem por base estrutural a economia, mas temos cer-
nos diferentes ambientes em que convivem. teza de que ela pode colaborar na construção
do que chamamos de percepção da igualdade
Os marcos legais para trabalharmos as entre os seres humanos. Como disse Paulo
questões relativas à construção da identida- Freire: “Se a educação sozinha não transformar a
de de modo que consideremos os aspectos sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.”
raciais como importantes já existem desde Vivemos numa sociedade que construiu a idéia
1998, quando foram lançados os Referen-
de igualdade formal, segundo a qual “todos são
ciais Curriculares da Educação Infantil. Este
iguais perante a Lei”, sem muitas preocupações
documento recomenda que:
com a concretização dessa igualdade. Por isso,
O desenvolvimento da identidade é possível conviver com essa idéia e, ao mes-
e da autonomia estão intimamente mo tempo, na vida cotidiana ver pessoas serem
relacionados com os processos de so- inferiorizadas pelas marcas que trazem em seu
cialização. Nas interações sociais se corpo ou pelo modo como vivem e não nos
dá a ampliação dos laços afetivos que incomodarmos muito. Afinal, “todos são iguais
as crianças podem estabelecer com perante a Lei”.
as outras crianças e com os adultos, Por isso, cremos que seja papel funda-
contribuindo para que o reconheci-
mental da educação como um todo e da edu-
mento do outro e a constatação das
cação infantil em particular possibilitar que
diferenças entre as pessoas sejam va-
as crianças compreendam e percebam que o
lorizadas e aproveitadas para o enri-
ambiente escolar é igualitário na sua concre-
quecimento de si próprias.
tude, exatamente porque respeita e discute as
Atualmente, temos as Diretrizes Cur- diferenças. Para isso, não adiantará muito as
riculares Nacionais para a Educação das Rela- educadoras usarem algumas frases de efeitos
ções Étnico-Raciais e para o Ensino de História muito comuns no meio educacional: “para
e Cultura Afro-Brasileira e Africana - DEER, mim as crianças são iguais”, “eu trato todos do
advindas da Lei 10.639/03, que legitima os mesmo jeito”, “aqui na sala não tem diferença
trabalhos que abordam este tema em qual- de cor”, “eu nem percebo a cor dos meus alu-
quer etapa da educação básica. Apesar desses nos”, ou “eu não presto atenção se tem preto ou
marcos, sabemos que a inclusão na prática da branco na sala”. Todas essas falas estão imbuí-
educadora de ações voltadas para esse aspecto das do princípio da democracia, mas no sen-
virão da sua certeza de que eles são impor- tido em que Maclaren critica. Segundo ele:

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uma das perversões sub-reptícias da bientes quando essa existir. Mesmo que ain-
democracia tem sido a maneira pela da não consigam verbalizar isso, percebem.
qual os cidadãos têm sido convida- Por vezes, há educadoras que sustentam essa
dos a se esvaziarem de toda a sua desigualdade sem se atentar. Nas instituições
identidade racial e étnica, de forma de educação infantil, há sempre imagens de
que, aparentemente, eles se apresen- bebês, fotos, gente disposta a pegar no colo
tam nus diante da lei. (2000: 42) e dar carinho. Será que todos as crianças de
todos os grupos raciais são objetos desses
A atitude que estas frases revelam está carinhos? Às vezes, as educadoras repetem
longe de ser a da educadora comprometida formas interativas preconceituosas e discri-
com uma educação igualitária. Pelo contrá- minatórias; noutros casos, percebem racismo
rio, quando não “vemos” as diferenças raciais nessas relações, mas se calam.
presentes nas salas de aula da educação in-
fantil, colaboramos para que as crianças que Tanto o silenciamento quanto o desco-
passam por nós mantenham as idéias de per- nhecimento tornam-se procedimentos desu-
cepção da desigualdade de modo forte e ina- manizadores, porque reproduzem e mantêm
balado. O velho ditado “quem cala consen- situações dolorosas vividas por pessoazinhas tão
te” é muito verdadeiro neste caso. Calarmos pequenas. Mais uma vez recorro àquela profes-
diante das questões suscitadas pelas relações sora para demonstrar, com seu relato, situações
raciais entre as crianças é colaborar para que de rejeição/aceitação presentes o tempo inteiro
as crianças negras cresçam tímidas, temero- nas salas de aula da educação infantil.
sas, envergonhadas de si mesmas e sintam Embora seja educação infantil a
que a escola não é um ambiente que lhes
gente acha que não existe precon-
acolhe, já que nega sua história e cultura e
ceito, mas existe. Não que a crian-
não a protege da violência da discriminação
ça em si seja preconceituosa, ela...
e do preconceito raciais. E que as crianças
ela... ela reproduz as atitudes dos
brancas cresçam acreditando na superiorida-
adultos, as atitudes dos adultos...
de que a brancura lhes dá, sentindo-se boni-
Então era assim as vezes na hora
tas, inteligentes e seguras.
da roda, ciranda, cirandinha, ati-
Cabe às educadoras fazerem a sua par- rei o pau no gato. Tinha criança
te no que diz respeito a desconstruir a idéia branca que não aceitava pegar na
de que um grupo de pessoas é melhor do que mão de criança negra. Isso com
outro. É preciso desconstruir essa percepção 1[ano], 2 [anos] lá no berçário,
berçário,
de desigualdade legitimada, assegurada, per- você não sabe o porquê. Parece que
mitida, camuflada na idéia abstrata de igual- assim a criança negra ou escurinha
dade. Precisamos estabelecer percepções de ele sentem dificuldades de aceita.
igualdade, e isso só ocorrerá se provocarmos Como também tem criança que se
uma ruptura no que está estabelecido. apega demais a outra. Uma crian-
Como fazer? ça negra, por exemplo, você vê
muito assim, uma criança negra
Uma criança, desde bebê, na convi- se apega muito a criança de pele
vência percebe quando é mais aceito pelos clara,, eu acho não sei se é porque
clara
adultos do que outra. Não é difícil para elas chama muito atençao dela então ti-
reconhecerem quem recebe mais carinho, nha criança que não aceitava...
mais beijos, mais abraços. Elas observam
quais fotos são mais expostas, se os lugares As educadoras têm, diante dessa rea-
destinados a determinada criança é ou não lidade, uma função importante, que é a de
privilegiado. Todas as crianças: brancas, ne- proporcionar às crianças o que estamos cha-
gras, asiáticas ou indígenas são capazes de mando de percepção da igualdade, isto é, a
perceber a desigualdade instalada nos am- partir das atividades realizadas no seu fazer

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pedagógico a educadora possibilitará que as Essa percepção deve fundamentar-se
crianças percebam que não há somente uma no princípio de que as pessoas são portado-
cor de pele bonita, não há apenas um tipo de ras dos mesmos direitos de serem amadas,
cabelo que é “bom”. Todos os cabelos têm cuidadas, ensinadas, respeitadas e educadas.
sua beleza, vantagens e desvantagens. Enfim, Podemos partir de trabalhos organizados
o ambiente escolar deve fornecer informa- em projetos com objetivos pedagógicos, os
ções explícitas e implícítas de que todos os quais tragam informações positivas sobre o
tipos raciais têm valor. povo negro e indígena, preferencialmente;
ou sobre qualquer outro grupo que possa
Vale a pena destacar algumas caracte-
ser estudado.
rísticas das crianças nessa faixa etária e, por
conseguinte, apontar alguns caminhos me- Não sabemos todas as estratégias de
tológicos para o trabalho com as diferenças como abordar os temas relativos ao modos
raciais na educação infantil. de combater o racismo em sala de aula e ob-
ter resultados positivos. O tema não é novo,
Proposições para a construção de mas a busca por sua instituição na escola é.
espaços educativos que promovam a Por isso, há muitas dúvidas e incertezas, po-
percepção de igualdade na diferença rém não existe outra forma de descobrir as
melhores estratégias, sem ser o exercício do
Por onde ir? “ O caminho se faz ao caminhar...”
fazer pedagógico, ato que implica ação-refle-
Devemos ficar bem atentas para xão-ação. Nosso grande mestre Paulo Freire
que o trabalho com essa temática parta disse: “no momento, porém, em que se começa
de questões que motivem as crianças e a autêntica luta para criar a situação que nas-
sempre que possível ele será incluído em cerá da superação da velha, já se está lutando
temas já consolidados no currículo da pelo ser mais” (1987: 34). É nesse sentido
educação infantil. A apresentação de di- freiriano que na própria ação da educadora
cas para a inclusão desse trabalho no co- vai se desenhando o melhor caminho a ser
tidiano da escola implica esclarecer que seguido, o ser mais pedagógico.
a construção da percepção da igualdade Apresentaremos algumas sugestões
racial necessita do compromisso das edu- baseadas nos conteúdos previstos nos Re-
cadoras com assumir o princípio de que a ferenciais Curriculares Nacionais da Edu-
diferença é um valor. Isso quer dizer que cação Infantil, na nossa experiência como
é necessário construir metodologias, ati- educadora anti-racista e na experiência de
vidades, material didático para propor- outras professoras que conosco foi com-
cionar o entendimento desse princípio. partilhada nas muitas andanças que temos
Mais do que debater com nossos peque- feito pelo Brasil. Entretanto, longe de ser
nos a impertinência do racismo, deve- um modelo estático a ser seguido, são pos-
mos construir com eles idéias positivas sibilidades que devem ser apropriadas pelas
sobre os diferentes povos. A partida para educadoras e ressignificadas, considerando
uma educação anti-racista na educação a idade de suas crianças, o grau de refle-
infantil não é o discurso moralizante de xão, as condições objetivas que os gestores
“como é feio ser racista ou preconceituoso” proporcionarão, e é claro, o acúmulo que
ou de como “não devemos discriminar o cada educadora vai adquirindo ao longo do
amiguinho, pois todos são filhos de Deus”. fazer. Essa tarefa, que pode ser, no ínicio,
Falas muito comuns entre as educadoras árdua, na medida em que as educadoras a
desejosas de ensinar uma postura mais exercitam, compreendem a grandeza nela
adequada ao seus alunos em situações contida e vão realizand ações que concre-
conflitantes. São bem intencionadas, po- tizam os princípios apresentados, ela vai se
rém produzem pouco efeito na constru- torna uma atividade prazerosa e alentadora,
ção da percepção de igualdade. fazendo de cada educador anti-racista um

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cidadão ético e feliz por cumprir com seu ditar na capacidade de todas as
dever de educar. crianças com as quais trabalha. A
postura corporal, somada à lingua-
O banho, a troca de fraldas, o sono - gem gestual, verbal etc., do adulto
os cuidados do corpo que vão além... transmite informações às crianças,
Nos momentos de banho, da mudan- possibilitando formas particulares
ça de fraldas ou quando se põe para dormir, e significativas de estabelecer víncu-
há uma intensa troca de toques. Por isso, es- los com elas. É importante criar si-
ses momentos são especiais para as crianças. tuações educativas para que, dentro
Neles, elas percebem se estão sendo tocadas dos limites impostos pela vivência
com carinho, raiva ou indiferença. Elas tam- em coletividade, cada criança pos-
bém vão percebendo quem é a criança prefe- sa ter respeitados os seus hábitos,
rida e porquê, de que modo ela é convidada ritmos e preferências individuais.
a se alimentar. Da mesma forma, ouvir as falas das
crianças, compreendendo o que elas
Na relação estabelecida, por exemplo,
no momento de tomar a mamadeira, estão querendo comunicar, fortale-
seja com a mãe ou com o professor ce a sua autoconfiança (p. 31).
de educação infantil, o binômio dar e A tarefa da educadora que se pretende
receber possibilita às crianças aprende- anti-racista deve incluir a conversa pedagógi-
rem sobre si mesmas e estabelecerem ca. Falar com um bebê enquanto lhe dá ba-
uma confiança básica no outro e em nho, troca as fraldas ou o faz dormir dizendo-
suas próprias competências (v. 2: .17)
lhe como são lindos seus olhos - sejam eles
Esse processo vai construindo a auto- azuis, pretos, amendoandos, “puxadinhos”
confiança da criança e dando-lhe informações ou de qualquer outro formato e cor. Como
corporais, visuais e de oralidade sobre ela e so- sua pele é macia, seja branca nas suas infinitas
bre os outros. É importante, portanto, que a variações ou negra, também nas suas infini-
educadora observe seu modo de atuar nesses tas variações, ou ainda como seus cabelos são
momentos. Reflita sobre quem escolhe pri- gostosos de serem acariciados, sejam crespos
meiro para receber esses cuidados. É sempre a ou lisinhos - são formas de construir um auto-
mesma criança? Por qual motivo? Como olha conceito positivo na criança. Um dos conte-
para cada uma das crianças quando as está ali- údos a serem trabalhados com as crianças de
mentando ou dando banho? Como as chama? 0 a 3 anos de acordo com o RCNCEI, v. 2,
Dá-lhes apelidos? Quais? Por quê? Como toca é o Reconhecimento progressivo do próprio
seus cabelos? Penteia-os? O que lhes diz? corpo e das diferentes sensações e ritmos
Essas interações dão às crianças referên- que produz (p. 30). Para as crianças de 3 a
cias positivas ou negativas sobre si mesmas, 6 anos, os RCNEI são ainda mais explícitos,
sobre seu jeito de ser, sobre seus cabelos, a cor pois afirmam que um dos conteúdos a serem
de sua pele, seus olhos. As educadoras nessa trabalhados com as crianças nessa idade é o
interação estarão mediando as intepretações respeito às características pessoais relacionadas
entre o que os pares (as outras crianças) pen- ao gênero, etnia, peso, estatura etc. (v. 2: 38).
sam e o que cada criança pensa de si mesma. Portanto, para educadores, essas atitudes lon-
No volume 2 do RCNEI, está colocado: ge de serem uma ação de boa vontade, são um
cumprimento do dever profissional.
A auto-estima que a criança aos
poucos desenvolve é, em grande Movimento. - expressividade, equílibrio,
parte, interiorização da estima que coordenação...
se tem por ela e da confiança da
qual é alvo. Disso resulta a neces- As maneiras de andar, correr, arre-
sidade de o adulto confiar e acre- messar, saltar resultam das interações

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sociais e da relação dos homens com dito, ou porque estão cantando daquele jeito
o meio; são movimentos cujos signifi- etc. Querem repetir, refazer, fazer diferente.
cados têm sido construídos em função São momentos oportunos para introduzir a
das diferentes necessidades, interesses percepção de que todos os povos, inclusive o
e possibilidades corporais humanas povo negro, têm músicas para diferentes situ-
presentes nas diferentes culturas em ações: nascimentos, mortes, casamentos e ani-
diversas épocas da história (v. 3: 16). versários, entre outras festividades. Investigar
isso será uma caminhada estimulante. Tam-
Movimentar-se faz parte da ação hu-
bém é o momento ideal para questionar mú-
mana. Nós nos movimentamos instintiva-
sicas e brincadeiras musicais que sejam pre-
mente; porém, graças à capacidade humana conceituosas. Muitas destas brincadeiras estão
de refletir sobre o que faz, muitos movimen- mantidas nas salas de aula sob o argumento
tos foram transformados em simbologias, de que fazem parte do folclore brasileiro, mas
adquirindo significados particulares para sabemos que a sociedade brasileira produz e
cada grupo ou comunidade. É por isso que, reproduz o racismo, por isso, temos que in-
em algunas culturas, os homens beijam- clusive reconstruir coisas do nosso folclore. É
se em sinal de respeito e, em outras, isto por isso que somos sujeitos pensantes: somos
é proibido. Nesse conteúdo, está uma rica capazes de mudar coisas.
oportunidade de as educadoras trabalharem
com as crianças os gestos que servem como Podem surgir desses conteúdos pes-
meios de comunicar algo e suas possibilida- quisas sobre lugares do continente africano,
des distintas dependendo da cultura. Tam- tipo de dança e música, rituais, produção de
bém, é pertinente o estudo de danças pro- instrumentos musicais, enfim, muita ação e
duzidas em diferentes culturas ou mesmo as aprendizagem na qual estarão presentes as
danças existentes no Brasil que agregaram duas dimensões do trabalho com a música na
elementos das culturas negras, indígenas e educação infantil: o fazer musical e a aprecia-
brancas. Crianças ainda bem pequenas gos- ção, e também a aprendizagem sobre a histó-
tam de dançar ao som de músicas que po- ria dos negros brasileiros e da África, dando
dem ser oriundas de váriados grupos étni- cumprimento ao que prevê a Lei 10.639/03
cos-raciais. A capoeira é, nesse âmbito, um e as DEER.
universo muito importante, pois conjuga a Artes visuais - o fazer artístico, a apre-
música, a dança, o jogo. ciação e a reflexão.
Os jogos, as brincadeiras, a dança e Todos os povos representam artistica-
as práticas esportivas revelam, por mente sentimentos, desejos, fatos ou idéias
seu lado, a cultura corporal de cada que fazem parte de um determinado momen-
grupo social, constituindo-se em to histórico de suas vidas. No trabalho com
atividades privilegiadas nas quais o as artes visuais, é importante proporcionar às
movimento é aprendido e significa- crianças o contato com os mais variados ti-
do. (RCNEI, v. 3: 20) pos de manifestações artísticas, modelagem,
Apresentar para as crianças esse univer- esculturas, instalações e telas, entre outros.
so de dança, ritmos e práticas esportivas será Elas devem aprender a apreciar a arte já pro-
bastante instigante e cheio de novidades. Do duzida e ser estimuladas a produzir também
mesmo modo, podemos pensar os conteúdos a sua arte. Nesse processo de ensinar e esti-
relativos às músicas. Todos os grupos huma- mular o contato com a arte, muitas escolas
nos cantam, então, porque não proporcio- têm realizado trabalhos de apreciação, refle-
nar às crianças desde muito cedo o encontro xão e fazer artísticos a partir de trabalhos de
com músicas de vários lugares do mundo? As pintores famosos, como Picasso, Miró etc.
crianças são muito curiosas, como sabemos. Neste conteúdo, não podemos per-
Elas ouvem e querem saber o que está sendo der a oportunidade de apresentar para as

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crianças a produção das artes visuais dos Falar e escutar, práticas de leitura e
povos africanos e indígenas. Elas são ri- práticas de escrita.
quíssímas e ampliarão bastante a concepção
das crianças sobre quem faz arte. A idéia de educação infantil, ao promover ex-
que a população negra brasileira e africana periências significativas de aprendi-
produz artes visuais ainda é muito restrita. zagem da língua, por meio de um
Sempre que vemos alguém falar da arte ne- trabalho com a linguagem oral e
gra, a pessoa está se referindo à capoeira, à escrita, se constitui em um dos es-
comida ou a alguma coisa do tipo. Faz-se paços de ampliação das capacida-
necessário ampliar esse universo. Propomos des de comunicação e expressão e
que em todos os níveis da educação infan- de acesso ao mundo letrado pelas
til, ao trabalhar o conteúdo Fazer Artístico, crianças. Essa ampliação está rela-
as crianças possam conhecer os “fazeres ar- cionada ao desenvolvimento gra-
tísticos” de diferentes povos, com destaque dativo das capacidades associadas
para os povos negros, sendo postas sempre às quatro competências lingüísticas
a se perguntarem como e por que esses po- básicas: falar, escutar, ler e escrever.
vos produzem arte, pois tais perguntas per- (RCNEI, v. 3: 108)
mitirão que elas se aproximem de histórias, Há uma tendência na escola a valori-
crenças e valores dos grupos estudados. Tal zar excessivamente o ensino da linguagem
procedimento também se aplica ao conteú- escrita, desvalorizando a linguagem oral.
do Apreciação em artes visuais; como já dis- Os RCNEI chamam nossa atenção para o
semos, ao lado de Picasso, é preciso colocar fato de que devemos estabelecer na prática
artistas negros brasileiros e africanos. As re- educativa espaços para o desenvolvimento
comendações nos referenciais para este tipo das duas habilidades, dentre outras. Para
de trabalho é que: as educadoras que desejam realizar uma
educação anti-racista, a linguaguem oral
As crianças podem observar ima-
deve de fato ser valorizada, pois muitos
gem figurativas fixas ou em movi-
povos negros e indígenas tinham-na como
mento e produções abstratas. Se for
única forma de comunicar e transmitir
dada a oportunidade para o traba-
os conhecimentos do grupo. Atualmente,
lho com objetos e imagens da pro-
a linguagem escrita ganha cada vez mais
dução artística (regional, nacional
espaços, mesmo entre povos que tinham
ou internacional), se for possibilita-
forte tradição oral. Isso não quer dizer
do o contato com artistas, as visitas que devamos desvalorizar esse modo de
às exposições etc., o professor estará transmissão de conhecimento. É uma óti-
criando possibilidade para que as ma oportunidade para pesquisar com as
crianças desenvolvam relações en- crianças as muitas contribuições dos povos
tre as representações visuais e suas negros e indígenas na construção do nosso
vivências pessoais ou grupais, en- idioma; por exemplo, há palavras que são
riquecendo seu conhecimento do produção destas populações e não explici-
mundo, das linguagens das artes e tamos isso para nossas crianças. Quem não
instrumentalizando as como leito- fala lenga-lenga, xodó, jaburu etc.? E de
ras e produtoras de trabalhos artís- onde vêm esses nomes?
ticos. (RCNEI, v. 3: 96)
Tanto para o desenvolvimento da
Dar às nossas crianças oportunidade linguagem oral como da linguagem escrita,
de conhecer modos de representar o mundo a contação de histórias ocupa um lugar de
e os sentimentos de diferentes povos é cons- destaque. Nesse sentido, vale identificar as
trurimos com elas a concepção de igualdade pessoas do bairro que são consideradas bons
e irmandade entre os seres humanos. Todos ou boas contadores ou contadoras de cau-
são capazes e fazem arte. sos e convidá-los(as) a participar das aulas.

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EDUCAÇÃO INFANTIL...
Chamar avós de diferentes gerações para que para propostas criativas de trabalho,
contem histórias de sua infância - sempre muitas vezes os temas não ganham
tendo o cuidado de trazer pessoas que repre- profundidade e nem o cuidado
sentem a diversidade étnico-racial - para as necessário, acabando por difundir
crianças é uma atividade muito agradável. estereótipos culturais e favorecen-
Também, cabe aqui o convite a militantes de do pouco a construção de conheci-
grupos indígenas e negros para que contem mentos sobre a diversidade de reali-
histórias de suas vidas. Podem ser convida- dades sociais, culturais, geográficas
dos clubes ou associações que se reúnem a e históricas. (RCNEI, v. 3: 154)
partir do critério de etnicidade ou raça. Essas
pessoas e grupos darão um sabor e um ritmo Este item e suas subdivisões são tão
especial aos momentos dedicados ao desen- ricos para o trabalho da educação anti-ra-
volvimento da linguagem oral e escrita. Elas cista que, por mais proposições que faça-
poderão ensinar cantos típicos, de seu tempo mos, não será possível abarcar minimamen-
ou grupo, parlendas, ditados etc. te todas as possibilidades que ele traz. Para
facilitar um pouco mais nossa reflexão, des-
Em ambas as habilidades, é preciso
tacamos alguns itens deste eixo estabeleci-
criar um espaço para a literatura. Ela será o
das nos RCNEI v. 3, procurando o quanto
veículo pelo qual as crianças tomarão contato
possível indicar caminhos para o trabalho
com contos, lendas, mitos e histórias africa-
e o desenvolvimento de atividades de uma
nas e indígenas. Achamos muito natural que
educação anti-racista.
as crianças brasileiras conheçam a história
da Chapeuzinho Vermelho, dos três porqui- Organização dos grupos e seu modo
nhos, do gato de botas, todos contos de cul- de ser, viver e trabalhar, os lugares
turas européias, e nada conheçam dos contos e suas paisagens, objetos e suas
africanos e indígenas, povos com presenças transformações, os seres vivos e os
tão fortes em nosso cotidiano. Vamos contar fenômenos da natureza.
para nossas crianças as histórias: caçadores de
Um dos conteúdos previstos no RC-
aventuras, contos africanos ou a história dos
NEI para as crianças nessa faixa etária prevé
reizinhos do Congo. Há caminhos para en-
que devamos estimular a participação em
riquecer o universo infantil com referenciais
atividades que envolvam histórias, brinca-
de literatura que vão além dos europeus; o
deiras, jogos e canções que digam respeito às
que precisamos é estar alertas quando reali-
tradições culturais de sua comunidade e de
zamos nosso planejamento para que a rique-
outros grupos (v. 3: 165). Já abordamos em
za dessas produções não seja ignorada.
outros momentos desse texto como podemos
Natureza e sociedade fazer isso. Esse trabalho implica, também, o
conhecimento de seus pares e suas histórias,
Algumas práticas valorizam ati- saber de onde veio o seu amigo, conhecer
vidades com festas do calendário histórias da vida de sua colega, relacionar as
nacional: o Dia do Soldado, o Dia profissões e os saberes que pais, avós, tios e
das Mães, o Dia do Índio, o Dia outros parentes reúnem. Tudo isso faz parte
da Primavera, a Páscoa etc. Nessas desse eixo e proporciona às crianças muitas
ocasiões, as crianças são solicitadas informações que as ajudarão a compreen-
a colorir desenhos mimeografados der a diversidade de pessoas que as cercam.
pelos professores, como coelhinhos, Porque há muitas pessoas de origem asiáti-
soldados, bandeirinhas, cocares ca trabalhando com vendas, por exemplo, e
etc., e são fantasiadas e enfeitadas por que outros grupos de origens diferentes
com chapéus, faixas, espadas e pin- trabalham com coisas diferentes? É um tema
turas. Apesar de certas ocasiões co- que abre margens para muitas abordagens e
memorativas propiciarem aberturas
aberturas estimula a conhecer o outro.

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EDUCAÇÃO INFANTIL...
As crianças poderão construir maquetes se permitimos às crianças se perguntarem
de sucatas para representar as diferentes paisa- como os diferentes povos registravam as
gens de lugares da África, rompendo com a quantidades de coisas que possuíam, sejam
idéia mais divulgada na mídia de que este é elas alimentos, animais ou outra coisa qual-
apenas um continente devastado. Podem-se quer. Há um espaço riquissímo no estudo
mostrar vídeos, fotos ou filmes nos quais os do conhecimento matemático para incluir
lugares e as paisagens sejam diferentes, pos- a produção do povo africano. É no estudo
sibilitando que compreendam o continente da geometria que recomendo o maior en-
africano em toda a sua riqueza, em diferentes foque. Podemos estudar as muitas formas
épocas. Poderão produzir desenhos compara- geométricas que existem partindo de dese-
tivos entre Brasil e África. Turmas diferentes nhos africanos. Essas formas estão presentes
podem realizar projetos com lugares e paisa- no cotidiano dos povos africanos, nos pen-
gens distintas e depois trocarem entre si seus teados de cabelos, nos desenhos dos tecidos,
conhecimentos. No que se refere aos objetos nas pinturas e esculturas, na produção do
e suas transformações, também nesse âmbito artesanato ou em jogos e brincadeiras ou
podem-se realizar trabalhos comparativos so- mesmo na simbologia religiosa e na repre-
bre a utilização de um objeto, por exemplo, os sentação dos valores. Uma breve pesquisa
talheres - quais culturas usam talheres ou que na internet dá ao educador inúmeros exem-
tipo de objetos são utilizados para a alimenta- plos de desenhos que podem ser explorados
ção? São sempre iguais? Por que são diferen- junto às crianças.
tes? Em que são diferentes? Sempre foram do
mesmo jeito? As mesmas questões podemos Considerações finais
fazer sobre instrumentos musicais.
Tivemos duas intenções principais ao
Há sempre a possibilidade de o pla- escrever este texto. A primeira, de caráter
nejamento incluir a questão da diversidade mais objetivo, é a de colaborar com as edu-
cultural, destacando as populaçõe negras e cadoras que trabalham na educação infantil
indígenas - por serem estas as que mais so- no encontro de caminhos para implemen-
frem preconceito e discriminação. Quando tação da Lei 10.639 , aprovada em janei-
os educadores forem tratar do conteúdo seres ro de 2003, que altera a Lei de Diretrizes
vivos, será uma excelente oportunidade para e Bases da Educação e inclui no currículo
verificar os efeitos que o trabalho pró educa- oficial de escolas públicas e privadas de En-
ção anti-racista vêm produzindo, pois neste sino Básico a obrigatoriedade do ensino da
momento a educadora poderá explicitar a temática História e Cultura Afro-brasileira
problemática do preconceito e da discrimi- e Africana e cumprimento aos princípios
nação com as crianças. Observar suas reações, das Diretrizes Curriculares Nacionais para
coletar suas idéias sobre os diferentes povos e, a Educação das Relações Étnico-Raciais e
se necessário, produzir intervenções afim de para o Ensino de História e Cultura Afro-
reforçar suas atitudes anti-discriminatórias, Brasileira e Africana de 2004. A segunda,
verificando o quanto está fortalecida a percep- intenção mais subjetiva, está permeada do
ção da igualdade de direitos entre elas e iden- desejo de ter ampliado o número de pessoas
tificando quais são, ainda, as necessidades do que compreendam o currículo da educa-
grupo para melhorarem seus conhecimentos ção infantil como fonte inesgotável da qual
sobre o tema e adquirirem uma atitude positi- jorram possibilidades de matar a sede exis-
va diante das diferenças étnico-raciais. tente na educação brasileira de conteúdos
que transmitam conhecimentos positivos
Matemática - Jogos e aprendizagem sobre os povos negros e indígenas e que os
de noções matemáticas. considerem conhecimentos absolutamen-
Alguns conteúdos específicos da te indispensáveis para que nossa sociedade
matemática podem ser abordados com o possa eliminar o racismo, o preconceito e a
olhar da educação anti-racista, sobretudo discriminação. P
uc

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EDUCAÇÃO INFANTIL...
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A LINHA DE COR NA LITERATURA DE
CHARLES CHESNUTT
Orison Marden Bandeira de Melo Júnior

Mestrando do Programa de Pós-Graduação


em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP

Este texto tem por objetivo mostrar algumas considerações finais pertinentes ao
o tema da linha de cor na obra literária de autor e a nós, seus leitores.
Charles Waddell Chestnutt, escritor afro-
americano que se tornou conhecido por Conhecendo Charles Waddell Chesnutt
seus contos e por trazer, pela primeira vez Charles Chesnutt nasceu em Cle-
na literatura americana, o problema da se- veland, Ohio, em 1858, mas passou a sua
gregação pelo ponto de vista do negro ame- infância e juventude em Fayetteville, Caro-
ricano. Para que o leitor se familiarize um lina do Norte. Era neto de Waddell Cade,
pouco mais com sua obra, apresentaremos fazendeiro branco dono de escravos, e de sua
o conto he Sheriff’s Children (Os filhos amante negra, Ann Chesnutt, que se tornou
do Xerife), que faz parte de uma coleção de a governanta (housekeeper) da casa grande
contos intitulada he Wife of His Youth and (vide Figura 1). Para Bone (1965), mesmo
Other Stories of the Color Line (A Esposa da não tendo feito o ensino médio, Chesnutt
Sua Juventude e Outras Histórias da Linha era um autodidata que lia vorazmente e que,
de Cor). Faremos, também, algumas pon- sozinho, aprendeu taquigrafia e, posterior-
derações em relação ao conto e ao proble- mente, direito. Foi, então, professor por
ma racial representado na obra, bem como nove anos, e teve ainda alguma experiên-

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A LINHA DE COR NA LITERATURA...
cia no ramo do jornalismo em Nova York. e escreveu três romances: he House Behind
Finalmente, se estabeleceu em Cleveland, Cedars, em 1900, he Marrow of Tradition,
sua cidade natal, onde trabalhou como ta- em 1901, e he Colonel’s Dream, em 1905.
quígrafo em tribunais. Em 1887, passou no Para os autores, viver apenas da pena trou-
concurso da Ordem dos Advogados. Nesse xe a Chesnutt uma diminuição permanente
mesmo ano, seu primeiro conto foi publi- do seu padrão de vida, razão pela qual ele
cado. Em 1899, esse e outros contos foram decidiu voltar ao seu trabalho de taquígra-
colecionados em um livro intitulado he fo. Desse período até a sua morte, em 1932,
Conjure Woman. Em 1899, foi publicado o o autor afro-americano escreveu um outro
livro he Wife of His Youth and Other Stories romance, que não chegou a ser publicado.
of the Color Line, outra coleção de contos. Para Gates Jr. e McKay (1997), no entanto,
De acordo com Kranz e Koslow os historiadores da literatura afro-americana
(1999), he Wife of His Youth and Other concordam que Chesnutt, quase sozinho,
Stories of the Color Line é uma coleção de inaugurou uma verdadeira tradição literária
contos que apresenta personagens mestiças afro-americana nos contos.
e seus problemas com ambas as raças. Por Conhecendo o Conto The Sheriff’s
essa mesma razão, Bone (1965) já declarava Children
que Chesnutt era o contista afro-americano
pioneiro em criar ficção que lidava com o O conto he Sheriff’s Children é parte
problema da color line (linha de cor, a linha de uma coleção cujo título é he Wife of His
que separa brancos de negros). Ele insistia, Youth and Other Stories of the Color Line, ainda
com seus editores, pela liberdade para contar não traduzido para a língua portuguesa1. Em
histórias sobre a color line sob outro olhar: o 1899, quando he Sheriff’s Children foi publi-
do afro-descendente. cado, a guerra civil americana já terminara. O
fim da guerra civil em 1865, com a vitória da
Figura 1 União, destruiu tanto a possibilidade de os es-
Árvore genealógica de Chesnutt (BROWNER, 2001) tados do sul dos Estados Unidos se separarem
da União quanto a continuidade do sistema
escravocrata no país, declarando, assim, o
fim da escravidão dos negros (FRANKLIN,
1966). Entretanto, o que a guerra civil não
conseguiu eliminar foi o sentimento segre-
gacionista e preconceituoso dos brancos em
relação aos ex-escravos e seus descendentes.
Esse sentimento chegou, inclusive, a ser lega-
Kranz e Koslow (1999) afirmam, ainda, lizado nos estados do sul, pois até o ano de
que Chesnutt é considerado o primeiro escri- 1885, a maioria desses estados tinha constitu-
tor profissional afro-americano. Houve, é cla- ído leis que separavam brancos e negros nos
ro, outros escritores afro-descendentes antes transportes públicos; os negros não podiam
dele; no entanto, ele foi o primeiro a receber entrar em locais “brancos”, como hotéis, bar-
a posição real de romancista e contista. Além bearias, restaurantes, teatros etc.
disso, conforme Gates Jr. e McKay (1997), Franklin (1966) declara ter a linha de
Chesnutt foi o primeiro escritor negro a lutar cor (color line) sido firmemente estabelecida
por suas publicações em uma indústria publi- em 1896, quando a Suprema Corte adotou
citária controlada por brancos, objetivando a doutrina de “segregados, mas iguais”, que
propagar mensagens de cunho social. consolidava o separatismo racial americano.
Encorajado pelo sucesso dos seus con- A segregação de jure, ou seja, a que represen-
tos, de acordo com Gates jr. e McKay (1997), ta a separação de “grupos definidos com base
Chesnutt dedicou-se totalmente à literatura em diferenças ‘raciais’ ou étnicas putativas

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A LINHA DE COR NA LITERATURA...
(...) formalmente separados por lei” (CASH- que, após o julgamento, se o prisioneiro tives-
MORE, 2000, p. 505), foi conhecida, nos se de ser linchado em seu condado, ele mesmo
Estados Unidos, como Jim Crow, sendo este proporia o linchamento.
um nome comum de escravo que intitulou
Na prisão, Tom declarou ao xerife que
a canção de homas Rice; nela, os negros
não cometera o crime e lhe revelou sua ver-
eram retratados como “idiotas engraçados,
dadeira identidade. Tom queria que seu pai o
congenitamente preguiçosos, mas com uma
libertasse, mas o Xerife não concordou com o
aura de felicidade infantil” (CASHMORE,
pedido; conseqüentemente, Tom apoderou-
2000, p. 284).
se da arma do pai e o ameaçou de morte. O
O conto utiliza-se desse contexto só- Xerife não esperava tal reação do prisioneiro,
cio-histórico da segregação racial que ocor- pois “ele confiara na covardia e subordinação
ria no sul dos Estados Unidos. O local no do negro na presença de um homem branco ar-
qual o enredo acontece é Branson County mado como algo óbvio”2 (CHESNUTT, 1998,
(Condado de Branson), no estado da Caro- p. 40). Nesse ínterim, a filha branca do Xe-
lina do Norte, que, na vida real, foi um dos rife, Polly, entrou furtivamente na delegacia
estados que desejavam a secessão e, com ela, e atirou em Tom. Obviamente, ela não ima-
o prolongamento da escravidão. A indicação ginava em quem atirara – seu meio-irmão.
de tempo encontrado no conto é de que a Tom foi ferido no braço e não teve saída a
trama aconteceu dez anos após a guerra civil, não ser permanecer na cela. Seu pai voltou
ou seja, em 1875, levando-nos a concluir que para casa e não conseguiu dormir naquela
todas as personagens negras representadas na noite. Havia uma batalha interior que não
obra eram segregadas, mas livres. permitiu que ele ficasse em paz. Durante a
O protagonista do conto é Tom, um insônia, ele ponderou sobre a situação e de-
mestiço cuja mãe, Cicely, fora a amante negra cidiu achar uma solução para libertar seu fi-
do Xerife Campbell. Tanto a mãe quanto o lho. No entanto, ao chegar à cela, no outro
filho foram vendidos pelo xerife quando este dia, notou que Tom tirara o curativo da sua
passava por uma crise financeira e precisava ferida e sangrara até a morte.
de dinheiro para pagar suas dívidas. Só depois
de muitos anos, já livre, Tom conseguiu voltar Algumas ponderações sobre
à sua cidade natal, Troy. Porém, no momento The Sheriff’s Children
em que chegava à cidade, foi preso por ter, O conto inicia-se com a construção
supostamente, matado um homem branco, o do espaço físico no qual a trama acontece.
Capitão Walker. Walker servira na Guerra Ci- Temos, assim, a descrição feita pelo narrador
vil e nela perdera um braço, o que o tornava do Condado de Branson como um distrito
um herói de guerra. isolado do estado da Carolina do Norte, o
Enquanto Tom estava preso, um gru- mais conservador do país. A sociedade local
po de homens da cidade decidiu a sua sorte. é simples, não havendo nenhuma família
Tendo em vista o crime que acreditavam ter o rica, mesmo antes da Guerra Civil america-
negro cometido, eles propuseram que o preso na. Apesar de a guerra não ter perturbado
fosse linchado, apesar de haver um, entre eles, a ordem do condado, o narrador nos revela
que o queria na fogueira. O Xerife Campbell que os seus habitantes viviam dias de incerte-
foi avisado do complô contra seu prisioneiro za e de sentimento de derrota, já que a União
por um negro amigo da família, o Sam. Por vencera a guerra civil, derrotando os estados
isso, diz a Polly que iria à delegacia devido a que queriam a secessão e a continuidade do
uma turba que queria linchar o negro (nigger). sistema escravocrata; entre esses, estava a Ca-
Dirigiu-se à penitenciária para evitar que tal rolina do Norte.
plano chegasse à execução, e lá declarou aos A cidade de Troy, cidade fictícia em
concidadãos que seu prisioneiro teria de ser um estado real, a Carolina do Norte, nos
julgado em uma corte marcial. Afirma, ainda, diz o narrador, com uma população de qua-

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A LINHA DE COR NA LITERATURA...
trocentas a quinhentas pessoas, era o mais tre a elite às idéias de diferenças raciais inatas
próximo daquilo que se constituía uma cida- e de degenerescência [grifo do autor] mulata”
de. Focalizando do texto o narrador, vemos (1976, p. 67).
que ele, após a descrição da remota cidade Vejamos alguns desses relatos encon-
de Troy, prossegue no enredo, com o relato trados em Viagem ao Brasil (2000), referen-
da morte do Capitão Walker e da prisão do tes ao negro encontrado no Brasil:
possível suspeito, um “mulato” (mulatto) que
fora visto indo na direção da casa do Capi-  No Rio de Janeiro, o casal vê um grupo
tão, na noite do assassinato, e saindo da ci- de negros a dançar ao clarão de uma
dade de Troy, na sexta-feira de madrugada. A fogueira e escreve: “Não se podem con-
escolha do termo mulato pelo narrador não templar esses corpos robustos, nus pela
pode passar despercebida. Mikhail Bakhtin, metade, essas fisionomias desinteligen-
autor da obra Questões de Literatura e de tes, sem se formular uma pergunta, a
Estética (1993), afirma que “uma linguagem mesma que inevitavelmente se faz toda
particular no romance representa sempre um vez que a gente se encontra em presen-
ponto de vista particular sobre o mundo, que ça da raça negra: ‘Que farão essas cria-
aspira a uma significação social” (1993, p. turas do dom precioso da liberdade?’ O
135). É essa linguagem carregada de signi- único meio de por um termo às dúvi-
ficação ou de “ideologia” que procuraremos das que nos invadem então é de pensar
analisar. nas conseqüências do contato dos ne-
Carone (2002) declara que o termo gros com os brancos. Pense-se o que se
“mulato” tem um sentido discriminatório, já quiser dos negros e da escravidão, sua
que determina que o mestiço seria equivalente perniciosa influência sobre os senhores
ao mulo, “animal híbrido e infértil derivado do não pode deixar dúvidas em ninguém”
cruzamento do jumento com a égua ou do cava- (pp. 66-67).
lo com a jumenta” (2002, p. 14). Não nos de-
 Ao relatar sobre os caracteres gerais
teremos em uma análise das teorias raciais tão
da população amazônica, escreve refe-
em voga na segunda metade do século XIX.
Gostaríamos de destacar, no entanto, o zoólo- rente à escassa população branca: “Ela
go suíço Luiz Agassis, cujas teorias raciais in- apresenta o singular fenômeno duma
fluenciaram a doutrina da supremacia branca raça superior recebendo o cunho
não só nos Estados Unidos, como também no duma raça inferior (...)” (p. 239).
Brasil. De acordo com a enciclopédia interati-
 De volta ao Rio de Janeiro, ao escrever
va Compton (1995), Agassiz, após ter aceita-
sobre a educação da mulher no Brasil:
do a cadeira de história natural na Universida-
“(...) há também uma ausência de edu-
de de Harvard em 1848, tornou-se o primeiro
cação doméstica profundamente entris-
diretor do Museu de Zoologia Comparativa
tecedora: é a conseqüência do contato
daquela instituição, onde permaneceu até
incessante com os criados pretos e mais
1873, ano da sua morte.
ainda com os negrinhos que existem
Entre 1865 e 1866, o zoólogo suíço sempre em quantidade nas casas. Que
comandou uma expedição científica ao Bra- a baixeza habitual e os vícios dos pre-
sil. Com sua esposa Elisabeth Cary Agassiz, tos sejam ou não efeito da escravidão, o
escreveu o relato dessa viagem em uma obra certo e que existem” (p. 438).
intitulada Voyage au Brésil, que foi publicada
em 1867 e, no Brasil, recentemente reeditada  Ao comparar os traços físicos do negro
na coleção O Brasil Visto por Estrangeiros du- ao do macaco: “Como os macacos de
rante a comemoração dos quinhentos anos braços compridos, os negros são em
do nosso país. Skidmore afirma que esse livro geral esguios: têm pernas compridas e
foi largamente citado no Brasil e “deu curso en- tronco relativamente curto” (p. 486).

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A LINHA DE COR NA LITERATURA...
Não devemos, portanto, esquecer sua face amarela empalidecida de terror, com
que as idéias do zoólogo suíço encontra- um aspecto horripilante, na semi-escuridão do
ram, na elite intelectual brasileira, um solo compartimento”2 (CHESNUTT, 1998, p.
fértil. Sílvio Romero, por exemplo, declara 39). Nosso narrador declara, ainda, que o
que “Agassiz provou [grifo meu] que as ra- Xerife olhou para aquele covarde miserável
ças humanas distinguem-se entre si na mesma (cowering wretch) com um olhar de desdém e
proporção em que se distinguem a fauna e a nojo misturados.
flora de sete ou oito centros diversos do mun- O Xerife ou Coronel Campbell é des-
do” (1980, p. 108). Publicada em 1888, crito como um homem acima da média no
a História da Literatura Brasileira revela a condado em educação, riqueza e posição
preocupação do autor em tomar posição social. Graduou-se na Universidade Esta-
em relação ao complexo mundo das teorias dual, onde teve contato com a literatura e a
raciais da segunda metade do século XIX. filosofia. Quanto à guerra civil, foi, a priori,
Declara, portanto, ser poligenista ao dizer: um defensor ardente da União, opondo-se à
“Eu acredito na origem poligenista do homem, secessão do seu estado; entretanto, diante da
defendida por Morton, Nott, Agassiz, Littré força da opinião pública, cedeu às circuns-
e Broca” (1980, p. 107). Concorda, ainda, tâncias e alistou-se no exército dos estados
com a superioridade da raça branca, a portu- do sul, servindo com distinção e chegando
guesa, porque o português, “sem ser o único, é ao posto de coronel. Era respeitado por to-
o principal agente de nossa cultura” (ROME- dos e foi escolhido por eles como o candida-
RO, 1980, p. 104). to mais competente para o cargo de xerife.
Banton (1967, p. 34) nos lembra, Como xerife, hesitou quando seu filho, com
ainda, que em 1863 o Dr. James Hunt, fun- uma arma na mão, pediu-lhe que fosse liber-
dador da Sociedade Antropológica de Lon- to. O narrador nos informa que havia nele
dres, em seu discurso On the Negro’s Place uma batalha interna: a luta entre o amor à
in Nature, assertou que as analogias entre o sua vida e seu dever como representante da
negro e o ape (macaco) são mais numerosas lei. Ele comenta que a “influência pernicio-
do que entre o europeu e o ape (macaco). sa da escravidão de homens envenenou as reais
Afirmou, ainda, que as diferenças entre o eu- fontes da vida e criou novos padrões de justiça”3
ropeu e o negro são muito maiores do que (CHESNUTT, 1998, p. 39). O que o narra-
as diferenças entre um gorila e um chimpan- dor não nos fala é que a luta interior do Xeri-
zé. Concluiu, portanto, que negro é inferior fe reside no fato de que ele não tem uma voz
intelectualmente ao europeu e que se torna própria, um discurso próprio. A sua voz faz
mais humanizado quando se subordina na- um coro com as vozes de todos os seus con-
turalmente a ele. cidadãos, que se referem ao negro como ni-
gger. Diante de todas as batalhas vencidas de
Essa subordinação era esperada pelo
Campbell, houve uma que ele não vencera: a
Xerife de Troy, quando foi ver Tom na ca-
da reprovação alheia. A palavra Nigger usada
deia. O narrador nos relata que, quando o
pelo Coronel foi a mesma palavra usada por
Xerife foi ameaçado de morte pelo prisionei-
aqueles que queriam ver Tom linchado.
ro que se apoderara de sua arma, ele tinha
como senso comum que o negro seria covar- A enciclopédia virtual Wikipedia
de e subordinado na presença de um homem (2001) afirma que o substantivo nigger é
branco armado. Para ele, ao rebelar-se contra um termo bem controvertido para desig-
essa subordinação, Tom estaria demonstran- nar os descendentes de africanos, tendo
do o seu lado animalesco. Essa idéia é con- sido associado à idéia da inferioridade ne-
firmada pelo narrador, que inicia a descrição gra. Nigger tornou-se um termo bastante
do herói mulato como se ele fosse um animal pejorativo e abusivo quando usado por
encurralado em uma jaula. Vejamos: “o pri- pessoas de outras raças. No caso da nos-
sioneiro estava agachado em um canto da cela, sa narrativa, ele foi usado, também, por

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108
A LINHA DE COR NA LITERATURA...
aqueles que queriam que o delegado lhes sua atitude contra os negros é pecaminosa.
entregasse o preso Tom para ser linchado. No entanto, de acordo com a he African-
O linchamento era uma forma comum American Registry (2005), uma organização
dos brancos mostrarem a sua suposta su- educacional que nos conta a história dos
perioridade sobre os niggers. No CD-Rom negros americanos, cada órgão da socieda-
African-American History: Slavery to Civil de oferecia legitimidade à hierarquia racial.
Rights (1995), lemos que, entre os anos de Conforme seus relatos, os ministros bran-
1890 a 1900, 1.217 linchamentos foram cos pregavam que Deus era branco e que
infringidos à população negra. As vítimas condenara os negros a serem seus servos; os
eram chicoteadas, intimidadas e mortas cientistas mediam os crânios, os cérebros,
por ofensas, quer elas fossem reais, triviais as faces e as genitais dos negros, buscando
ou imaginadas (BANTON, 1967). Foi provar que os brancos lhes eram genetica-
exatamente por essa razão que, sendo cien- mente superiores; professores brancos, en-
te da sua condição de nigger, Tom sabia sinando apenas crianças brancas, dizendo
que a única maneira de permanecer vivo que os negros eram menos desenvolvidos
era a fuga. Ao ser, no entanto, baleado por do que os brancos cognitiva, psicológica e
Polly, o narrador nos fala que a sua bravura socialmente.
deu lugar a uma apatia empedernida. “Não Finalmente, gostaríamos de aludir
havia nenhum sinal em sua face de medo ou à maneira escolhida para a morte de Tom.
decepção ou sentimento de qualquer tipo”4 O narrador nos diz que “o prisioneiro tirara
(CHESNUTT, 1998, p. 44). o curativo da sua ferida e sangrou até a mor-
Voltemos ao relato do narrador sobre te durante a noite”7 (CHESNUTT, 1998,
a batalha que se trava no espírito do Xeri- p. 46). O Tom que ali se encontrava era o
fe após Tom ser baleado. O Xerife e Polly mesmo que, na infância, fora vendido a es-
voltam a casa, onde, no silêncio da noite, o peculadores pelo próprio pai; o mesmo que,
narrador descreve os momentos nos quais quando livre, acreditou que a educação o li-
Campbell é submetido a uma experiência vraria da sua condição de negro; o mesmo
de “iluminação” espiritual, na qual “o véu que, condenado injustamente pelo assassina-
da carne com suas paixões obscuras e precon- to do Capitão Walker, prefere suicidar-se a
ceitos é retirado por um momento e todos os cair nas mãos daqueles cuja raça ele mesmo
atos da vida de alguém se sobressaem na cla- acreditava pertencer mais. Esse quadro final
ra luz da verdade”5 (CHESNUTT, 1998, p. do conto nos remete ao que Irene Machado
44). Nesse momento “revelador”, o narra- nos ensina sobre a enunciação, dizendo: “A
dor nos declara que o Xerife reconheceu enunciação não é apenas o verbal, mas refere-
que havia “pecado” contra seu filho bio- se a tudo que contribui para a sua apreensão.
lógico por não lhe ter dado a vida que seu O não-dito é também comunicação” (1995,
pai lhe dera e, ainda, por não lhe ter dado p. 70). É no silêncio da morte de Tom que
a liberdade, enviando-o ao norte do país, escutamos o brado de vitória de todos aque-
onde ele gozaria de mais privilégios e teria les que, no conto, queriam o fim da raça
mais oportunidades de se tornar um ho- negra. Mas era também o brado de vitória
mem honrado. Diante de todo esse mar de do próprio Tom, que mostrava àqueles lin-
culpa, decide, então, criar um plano que chadores que era o dono do seu destino e
possa salvar Tom e, assim, “expiar seu crime que preferia terminar a sua própria vida a
contra seu filho – contra a sociedade – contra cair nas mãos daqueles que se sentiam livres
Deus” 6 (CHESNUTT, 1998, p. 45). para linchar e açoitar, queimar e ameaçar,
Há, nesse trecho, a inserção da voz da sabendo que teriam, como apoio, “a polí-
religiosidade. Parece-nos, até, que o narra- cia e os jornais e a corte e o juiz e o júri e
dor, implicitamente, convida o leitor ameri- os pregadores para que nada lhes acontecesse”8
cano a ouvir a voz da divindade e a crer que (SMITH, 1994, p. 182).

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109
A LINHA DE COR NA LITERATURA...
Considerações Finais portados, e só as comunidades envolvidas
tinham deles conhecimento. O segundo
Charles Chesnutt tornou-se um mar-
crime é representado pelo Xerife Campbell,
co na literatura americana, e não só no seu
que, movido pela opinião pública, fazia par-
tempo. Precisamos lembrar que, como afro-
descendente, ele sofreu todas as sanções im- te daqueles que não sujavam as mãos com o
postas pela lei Jim Crow. No entanto, dife- linchamento, mas que permaneciam em si-
rentemente da personagem por ele criada, lêncio diante dos crimes. “O não-dito é tam-
o Xerife Campbell, ele não cedeu à opinião bém comunicação” (MACHADO, 1995, p.
alheia nem se refugiou nos braços da religio- 70). Apesar de ser uma personagem fictícia,
sidade para se exonerar da culpa do silêncio. o Xerife representava todos aqueles que se
Pelo contrário, Chesnutt bradou, por sua conformavam com o status quo e se calavam
obra literária, a denúncia à segregação, à li- em face das atrocidades cometidas contra os
nha de cor, tão claramente delimitada na so- negros americanos.
ciedade americana. Charles Chesnutt marcou a literatura
A obra he Sheriff’s Children delata americana como um homem que, mesmo dian-
dois tipos de crime: o crime do linchamento te de represálias, ousou contar ao mundo, por
e o do silêncio. O primeiro crime é represen- meio de suas personagens fictícias, o que a lei
tado pela multidão de cidadãos da cidade de Jim Crow representava para ele e para todos os
Troy que queria assassinar Tom. De acordo afro-descendentes. Ele nos convoca, também,
com Zangrando (1991), entre os anos de a sair do marasmo do comodismo e a transfor-
1882 e 1968, mais de 4.743 pessoas foram mar o nosso silêncio em palavras de denúncia
linchadas. Ele declara que as estatísticas não do fantasma do preconceito racial que ainda nos
contam toda a história, tendo em vista que ronda, em pleno século XXI, tanto no país de
muitos casos de linchamento não eram re- Chesnutt, quanto no de Sílvio Romero. P uc

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A LINHA DE COR NA LITERATURA...
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Main_Page >. Acesso em:  nov. .

Notas

1 Em inglês, ele é encontrado no site <http://faculty.berea.edu/browners/chesnutt/Works/Stories/sheriff.html>.


2 Minha tradução da oração: “He had relied on the negro’s cowardice and subordination in the presence of an
armed man as a matter of course”.
3 Minha tradução da oração: “The prisoner was crouched in a corner, his yellow face, blanched with terror, look-
ing ghastly in the semi-darkness of the room”.
4 Minha tradução da oração: “the baleful influence of human slavery poisoned the very fountains of life, and cre-
ated new standards of life”. (transportar para nota)
5 Minha tradução da oração: “There was no sign in his face of fear or disappointment or feeling of any kind”.
6 Minha tradução da oração: “the veil of the flesh, and its obscuring passions and prejudices, is pushed aside for a
moment, and all the acts of one’s life stand out, in the clear light of truth”.
7 Minha tradução do fragmento: “atone for his crime against this son of his – against society – against God”.

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DUBLÊ DE OGUM

Cidinha da Silva*

Diretora do Instituto Kuanza

T udo começou com uma brincadeira,


quando ele ainda era criança. O
menino subia na cisterna com a capa
de prata colada ao pescoço, espada de
plástico azul em punho e gritava: pelos
poderes de Graiscow. Depois pulava no
chão fingindo voar. A família preocupava-
se porque ele já era um moço com sombra
de bigode e não abandonava o brinquedo
infantil, mesmo que o desenho-animado
não passasse mais na TV. Às vezes ficava
emburrado, pensativo. A mãe atribuía o
fato ao fim do seriado.
* Autora de “Cada Tridente em Seu Lugar e Outras Crônicas” (2006) e “Ações Afirmativas em Educação:
experiências brasileiras” - 3a edição (2003).

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112
CONTO

A os treze, completados em 24 de abril,


muniu-se da capa e da espada e parou
no portão da casa, de braços cruzados,
olhar muito firme. Assim ficou por longos
minutos. A avó, que morava na casa de
cima, disse que aquilo já passava dos
limites e deveriam levá-lo a um psiquiatra.
Levaram. A gota d’água para tomar tão
difícil e dolorosa decisão familiar foi o dia
em que o menino enfrentou um cachorro
com sua espada de plástico, dizendo
coisas esquisitas: “Não ouse me enfrentar,
levantar a cabeça ou os olhos para me ver
que sua cabeça rolará serra abaixo”.

M arcaram a consulta com uma


psiquiatra. A avó foi junto. Primeiro
a médica explicou às duas mulheres como
trabalhava. Disse que não existiam loucos,
mas pessoas inadaptadas ao mundo em
que viviam, em sofrimento mental ou
espiritual. Em alguns casos, havia pessoas
com deficiência de certas substâncias ou
excesso de outras no organismo, coisa que a
medicina ortomolecular já estava tratando.
O importante era ter abertura para entrar
no mundo da pessoa afetada e procurar
compreendê-la, sem julgamentos. Alertou
também que trabalhava com os sonhos
e como se tratava de um adolescente, a
família precisaria concordar em participar
do tratamento.

A avó olhou para a filha, achou tudo muito


estranho, principalmente o negócio dos
sonhos, mas se era para o bem do menino,
concordava. Como nos casos de decisões
mais sérias, quem tomava a frente era a
avó, estava todo mundo de acordo, leia-se,
a mãe, pois o pai, sempre embriagado e
ausente, nem via o que se passava.

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113
CONTO

O menino contou um dos sonhos. Ele


se vestia como o Homem de Ferro,
personagem dos quadrinhos, e uma matilha
de cães o atacava. Ele desembainhava a
espada e cortava a cabeça de todos, um
por um. Tomado por ira terrível, cor tava
também a cabeça dos passantes que o
obser vavam e não lhe rendiam graças.

E m outro, ele morava num país distante,


onde todo mundo era preto e ele também.
Vivia no coração da montanha mais alta e os
moradores avisavam aos estrangeiros que
aquela era a casa de um homem jovem, muito
grande e muito forte, ferreiro de profissão.
O trabalho na forja só era interrompido
quando alguém subia a montanha. Ele se
dirigia ao incauto e dizia: “O que te traz aqui,
viajante? Por que tomaste minha estrada?”
Alguns respondiam que andavam a esmo,
a procura de um caminho; outros ouviram
dizer que se rogassem a ele, o guardião
da montanha e da forja, seus caminhos
seriam abertos. Ele ria jocoso e indagava:
“Como posso te abrir os caminhos se não
tens um rumo a seguir?” E então explicava:
“Embora aches que me procuras, buscas a
ti mesmo e não te faltarei. Mas o caminho
deverá ser feito por ti. Posso te conduzir
em meus braços, mas a travessia será tua.”
“E se eu não quiser, posso desistir?” Ele ri,
dessa vez um riso estrondoso, de desdém
e malícia. “Não há escolha, humano tolo e
incrédulo. Quem chega até aqui é obrigado
a atravessar.” “Você me chamou de humano.
Você, por acaso, não é gente?” “Não despeje
mais tolice do que tua cabeça comporta. Tu
vieste aqui para conhecer os teus mistérios,
os meus, não te é dado saber. Prepara-te,
pois vais atravessar a montanha comigo.”

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114
CONTO

E cada pessoa que chegava a esse


momento, não continha um grito de
horror quando via o abismo de cerca de
dois metros de largura que separava os
dois lados da montanha. Como atravessar
aquilo? Aquele homem sozinho até poderia
fazê-lo, mas como atravessar com alguém
no colo?

A lheio às conjecturas dos viajantes, o


homem se concentra diante do fogo.
Retira a espada da forja, mira o horizonte,
corta para a direita, para o centro e para
a esquerda. Coloca-a acima da cabeça,
amparada pelas duas mãos, deposita-a
novamente na forja. Ajoelha-se no chão,
parece fazer uma prece. Abre os braços e
diz palavras desconhecidas. Toma a espada
outra vez e ordena ao homem que o
aguarda: “Siga-me, viajante!” “Para onde?”,
ele pensa. “Para o abismo?” Pergunta-se
o que fora fazer ali, despede-se da vida,
pois é certo que vai morrer. E se fugisse?
Impossível, conclui. O homem da espada
era um potente guerreiro de um lugar
chamado Ifé e o alcançaria em poucos
passos. Isso se não o transformasse em
pedra, bicho ou grão, por meio de algum
raio, ou coisa que o valha. Poderia cortar-
lhe a cabeça com a espada. Não, era mais
prudente esperar a morte certeira no
abismo.

O ferreiro, muito sério e determinado,


chega a menos de um metro do
buraco fundo que separa os dois lados
da montanha e chama o homem: “Venha,
é chegada a tua hora”. Finca a espada na
pedra e pega o homem de oitenta quilos
em seu colo. Ele se agarra ao pescoço
do ferreiro como um bebê. O ferreiro

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115
CONTO
retira a espada do chão, ergue-a para o
céu, flexiona os joelhos e voa para a outra
margem. O homem, quando abre os olhos, já
está em terra, na margem oposta. O ferreiro
dá outra ordem: “Siga por aquela estrada e
encontrarás o caminho! Não olhe para trás.”
“Não entendo, a estrada não é o caminho
de volta?” O ferreiro ri e diz que sua par te
está feita.

A médica impressiona-se com a riqueza


de detalhes dos sonhos do garoto e
pergunta o que eles despertam nele. O garoto
diz sentir-se aquele homem, o que cor ta as
cabeças, é de ferro e voa com uma espada
na mão. Um dublê de Ogum, ela intui.

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ANEXO

TESES SOBRE QUESTÃO NEGRA


(APROVADA NO QUARTO CONGRESSO DA INTERNACIONAL COMUNISTA, NOVEMBRO DE 1922)

1. Durante e depois da guerra, desenvolveu-se entre os povos


coloniais um movimento de rebelião contra o poder do
capital mundial, movimento que fez grandes progressos. A
intensa penetração e colonização das regiões habitadas por
raças negras introduz o último grande problema do qual
depende o futuro do desenvolvimento do capitalismo. O
capitalismo francês admite que seu imperialismo, depois da
guerra,só poderá se manter mediante a criação de um império
franco-africano, unido por uma via terrestre transaariana.
Os maníacos financistas do EEUU, que explorarem em
seu território doze milhões de negros, se dedicam agora
a penetrar pacificamente na África. As extremas medidas
adotadas para derrotar a guerra de Rrand evidenciam de
que modo a Inglaterra teme a ameaça surgida contra suas
posições na África. Assim como no Pacífico o perigo de
outra guerra mundial aumentou devido à competição entre
as potências imperialistas, assim também a África aparece
como objeto de suas rivalidades. Além do que, a guerra,
a revolução russa, os grandes movimentos protagonizados
pelos nacionalistas na Ásia e os muçulmanos contra o
imperialismo, despertaram a consciência de milhões de
negros oprimidos pelos capitalistas, reduzidos a uma
situação de inferioridade há séculos, não somente na África
mas também nos EEUU.
2. A história reservou aos negros dos EEUU um papel importante
na libertação de toda raça africana. Faz trezentos anos que
os negros norte-americanos foram arrancados de seus
países natais na África e transportados para América onde
passam pelos piores tratamentos, além de serem vendidos
como escravos. Há 250 anos trabalham sob o açoite dos
proprietários norte-americanos. Foram eles que derrubaram

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117
TESES SOBRE QUESTÃO NEGRA...
os bosques, construíram as estradas, plantaram o algodão,
colocaram os trilhos das ferrovias e mantiveram a aristocracia
rural do sul. Sua recompensa foi a miséria, a ignorância, a
degradação. O negro não foi um escravo dócil, recorreu a
rebelião, à insurreição, a fuga para recuperar sua liberdade.
Mas seus levantes foram reprimidos com sangue. Mediante a
tortura foi obrigado a se submeter. A imprensa burguesa e a
Igreja se associaram para justificar sua escravidão. Quando a
escravidão começou a competir com o trabalho assalariado
e se converteu em um obstáculo para o desenvolvimento
da América do Norte capitalista, teve de desaparecer. A
guerra de secessão, empreendida não para libertar o negro,
mas para manter a supremacia industrial dos capitalistas
do norte, colocou o negro diante da obrigação de eleger
entre a escravidão do sul e o trabalho do assalariado do
norte. Os músculos, o sangue, as lágrimas do negro “liberto”
contribuíram para o estabelecimento do capitalismo norte-
americano e quando, convertida em uma potência mundial,
os EEUU foram arrastados para a guerra mundial, o negro
norte-americano foi declarado em condições com o branco
para matar ou morrer pela democracia. Quatrocentos mil
operários de cor foram incorporados nas tropas norte-
americanas, formando os regimentos de Jim Crow. Assim
que saíram da fogueira da guerra, os soldados negros, de volta
a “sua pátria” foram perseguidos, linchados, assassinados,
privados de todas as liberdades ou postos nas prisões.
Combateram, mas para afirmar sua personalidade tiveram
de pagar muito caro. Perseguiram-nos ainda muito mais que
durante a guerra para lhes ensinar a “se conversarem em
seu lugares”. A grande participação dos negros na indústria
após a guerra, os espírito de rebelião que despertaram neles
as brutalidades de que são vítimas, coloca aos negros da
América, e sobretudo os da América do Norte, na vanguarda
da luta da África contra Opressão.
3. A Internacional Comunista contempla com grande satisfação
que os operários negros explorados resistem ao ataques
dos exploradores, pois o inimigo da raça negra é também
o dos exploradores brancos. Este inimigo é o capitalismo, o

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118
TESES SOBRE QUESTÃO NEGRA...
imperialismo. A luta internacional da raça negra é uma luta
contra o capitalismo e o imperialismo. Na base desta luta
é que deve se organizar o movimento negro: na América,
como centro de cultura negra e centro de cristalização
dos protestos dos negros; na África como reserva de mão-
de-obra para o desenvolvimento do capitalismo; na América
Central (Costa Rica,Guatemala,Colômbia,Nicarágua e demais
repúblicas “independentes” onde predomina o imperialismo
norte-americano) em Porto Rico, Haiti, São Domingos e nas
demais ilhas do Caribe, onde os maus tratos infligidos aos
negros pelos invasores norte-americanos provocaram os
protestos dos negros conscientes e dos operários brancos
revolucionários. Na África do Sul e no Congo, a crescente
industrialização da população negra originou diversas formas
de sublevação. Na África oriental, a recente penetração
do capital mundial impulsiona a população nativa a resistir
ativamente ao imperialismo.
4. A Internacional Comunista deve assinalar ao povo negro
que não é o único que sofre a opressão capitalista e do
imperialismo, que os operários e os camponeses da Europa,
Ásia e América também são suas vítimas, que a luta contra
o Imperialismo não é a luta de um só povo, mas de todos
os povos do mundo que na China, Pérsia, Turquia, Egito, e
Marrocos os povos coloniais combatem com o heroísmo
contra seus exploradores imperialistas, que estes povos
se sublevam contra os mesmos males que consomem os
negros (opressão racial, exploração industrial intensa), que
estes povos reclamam os mesmos direitos que os negros:
liberdade de igualdade industrial e social.
A Internacional Comunista, que representa os operários
e camponeses revolucionários de todo o mundo em
sua luta por derrotar o imperialismo, a Internacional
Comunista, que não é somente uma organização de
operários brancos da Europa e da América, mas também
dos povos de cor oprimidos, considera que seu dever
é alentar e ajudar a organização internacional do povo
negro em sua luta contra o inimigo comum.

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119
TESES SOBRE QUESTÃO NEGRA...
5. O problema negro converteu-se numa questão vital de
revolução mundial. A III Internacional, que reconheceu
a valiosa ajuda que puderam trazer para a revolução
proletária as populações asiáticas nos países semicapitalistas,
considera a cooperação de nossos camaradas negros
oprimidos como essencial para a revolução proletária que
destruirá o poder capitalista.
Por isso o IV Congresso declara que todos os comunistas
devem aplicar especialmente ao problema negro as “Teses
Sobre a Questão Colonial”.
6. a) O IV Congresso reconhece a necessidade de manter
toda a forma de movimento negro que tenha o objetivo
socavar e debilitar o capitalismo e o imperialismo, ou deter
sua penetração.
b) A Internacional Comunista lutará para assegurar aos negros
a igualdade de raça, a igualdade política e social.
c) A Internacional Comunista utilizará todos os meios ao
seu alcance para conseguir que os sindicatos admitam os
trabalhadores negros em suas fileiras. Nos lugares onde
estes últimos têm o direito nominal de se filiarem aos
sindicatos, realizará uma propaganda especial para atraí-los.
Se não se consegue, organizará os negros em sindicatos
especiais e aplicará particularmente a tática da frente única
para forçar aos sindicatos a admiti-los em seu seio.
d) A Internacional Comunista preparará imediatamente um
Congresso ou Conferência geral dos negros em Moscou.

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