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BAIXO SÃO FRANCISCO
IMPULSOS DE UMA (RE)OCUPAÇÃO URBANA

LIVRO FILME
SELMA BAPTISTA JESSICA CANDAL

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BAIXO SÃO FRANCISCO © TRANSPIRA

AUTORA FOTOGRAFIAS
Selma Baptista Shigueo Murakami

PESQUISA FOTOGRAFIAS ADICIONAIS


Alice Pizzaia Goltz, Caroline Blum Lucas Pereira Nery e Alice Pizzaia Goltz

TEXTOS ADICIONAIS PROJETO GRÁFICO


Jaques Brand, Renata Carvalho Rodrigues Souza Lucas Pereira Nery

REVISÃO REALIZAÇÃO
Alessandra Angelo Transpira

TODAS AS INFORMAÇÕES CONSTANTES NESTA OBRA


SÃO DE RESPONSABILIDADE EXCLUSIVA DA AUTORA

BAIXOSAOFRANCISCO.COM.BR

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

B222b
Baptista, Selma
Baixo São Francisco: impulsos de uma (re)ocupação urbana / Selma
Baptista; Fotografias: Shigueo Murakami, Lucas Pereira Nery e Alice
Pizzaia Goltz. – Curitiba: Produtora Transpira, 2020.
194p. il.; 24x20cm

Pesquisa: Alice Pizzaia Goltz e Caroline Blum; Textos adicionais:


Jaques Brand, Renata Carvalho Rodrigues Souza.

ISBN 978-65-00008-84-5

1. Antropologia urbana. 2. Arquitetura. 3. História. 4. Sociologia.


I.Título. II. Murakami, Shiqueo. III. Nery, Lucas Pereira. III. Goltz, Alice
Pizzaia.

CDU 572

Bibliotecária responsável: Maria do Carmo Mitchell Neis – CRB 10/1309


BAIXO SÃO FRANCISCO
IMPULSOS DE UMA (RE)OCUPAÇÃO URBANA

LIVRO
SELMA BAPTISTA
RUA SÃO FRANCISCO
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI
O
BAIXO
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8
HÁ UMA REGIÃO CENTRAL DA CIDADE DE CURITIBA,
MUITO POPULAR, QUE É CONHECIDA COMO
BAIXO SÃO FRANCISCO

O
O nome Baixo São Francisco é utilizado desde longa data e faz parte de um recorte
maior que vai até o Alto São Francisco, a parte alta, a oeste do centro histórico da cidade, e
também até o Cemitério Municipal São Francisco de Paula, mais a noroeste.
Essa área comporta parte do Centro Histórico de Curitiba englobando ruas como a
Treze de Maio, Riachuelo, Presidente Carlos Cavalcanti, São Francisco, Barão do Cerro
Azul, Trajano Reis e outras mais, adjacentes, que datam do princípio do povoamento.
Será que o Baixo é “baixo” em função de sua topografia, no caso, uma toponímia, ou
seria este adjetivo uma metáfora derivada de um valor moral, tendo o “alto” como local de
distinção dos mais ricos e o “baixo” como desvalorização dos populares de baixa renda?
Como terá sido nos idos tempos? Como foi se delineando o que conhecemos hoje?
Que possíveis determinações, se é que existiram, causaram esta distinção entre o “alto” e
o “baixo”, além da topografia?
E mais, seria o Baixo São Francisco um bairro, um trecho, um pedaço, um circuito, uma
área de preservação histórica, um lugar de lazer e de comércio como outro qualquer do
centro da cidade?
Em 1857, Curitiba tinha 3 mil habitantes e em 1863, 202 casas, sendo 10 sobrados. Na
década de 1850, o Baixo ainda não estava completamente habitado e, pelas indicações, o
limite da cidade estava na atual Rua das Flores. Contudo, em 1861, a cidade passou a contar
com 12 ruas importantes, destas, seis estão no Baixo: Rua do Fogo (Rua São Francisco),
Rua Direita (Rua Treze de Maio), Rua da Carioca (Rua Riachuelo), Rua do Rosário, Rua do
Nogueira (Rua Barão de Cerro Azul), Rua do Saldanha (Rua Presidente Carlos Cavalcanti).

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RUA SÃO FRANCISCO
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI
10
RUA SÃO FRANCISCO, ENTRE AS RUAS RIACHUELO E PRESIDENTE FARIAS
| ANO 1979 | FOTÓGRAFO: HARATON MARAVALHAS | COLEÇÃO/FUNDO:
FUNDO CASA DA MEMÓRIA | ACERVO: FUNDO CASA DA MEMÓRIA 11
No entanto, a compreensão do significado deste “pedaço” da cidade não pode ser
construída apenas pelo conhecimento do conjunto das suas ruas, mas fundamentalmen-
te pela interpretação do modo de inserção deste conjunto no todo da futura cidade, bem
como a continuidade das releituras e apropriações deste trecho ao longo dos séculos. Este
será nosso “percurso”: sair de sua localização e história e ir expandindo esta visão, voltan-
do, finalmente, ao nível mais interno, por meio da narrativa etnográfica, com uma contri-
buição interpretativa que possa acrescentar alguma compreensão ao recorte oferecido.

CAMINHANDO PELAS
PÁGINAS DA HISTÓRIA
Ao norte Curitiba vai à Bica do Campo
Ao sul até a Rua do Comércio e da Entrada
À leste vai à Rua da Carioca
A oeste até a Rua da Ladeira e mais nada [...]1

Vejamos o conjunto de ruas que conforma a região na qual aconteceu nossa perambu-
lação etnográfica.

“ [...] a cidade do andarilho tem uma história, nem a melhor nem a pior do mundo,
simplesmente histórias que configuram referências práticas e simbólicas em que se
reconhece ou se constrange nas ruas que perambula, lugares que conhece ou des-
conhece, espaços que gosta ou desgosta, contextos que lhe atraem ou passam de-
sapercebidos. Objetos, eventos não verbais ou verbais, ruídos ou matérias atiram-lhe
a atenção sensorial que delineia seu trajeto, seus atos. A cidade acolhe seus passos, e
ela passa a existir na existência deste que vive, na instância de seu itinerário, um traça-
do que encobre um sentido, algo que será desvendado ao seu final. Espaços, cheiros,

1 Trecho da canção de Paulo Vítola e Marinho Gallera, Choro de Rua.

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barulhos, pessoas, objetos e naturezas que o caminhante experiência em sua itinerân-
cia, não sem figuras preconcebidas. Sua caminhada é de natureza egocêntrica, fun-
cional, mas também poética, fabulatória e afetiva, e por que não dizer, uma caminhada
cosmológica como os jogos de memória que os tempos reencontrados proustinianos
encenam”.2

A Rua Treze de Maio é uma das primeiras ruas de Curitiba. Apesar de ter mudado de
nome algumas vezes ao longo do tempo, seu trajeto não foi alterado. No século XIX, “a rua
à direita da principal igreja local” era conhecida como Rua Direita, nome comumente dado
para ruas importantes em terras portuguesas. A partir de 1850 abrigou diversas institui-
ções: a Loja Maçônica da Fraternidade Curytibana, por exemplo, cujos integrantes eram do
movimento Republicano e Abolicionista, ali se estabeleceu a partir de 1855, bem como, por
volta de 1857, o Teattro Curitibano ali realizava seus bailes carnavalescos de máscaras. Em
1860 ganhou calçamento desde o canto do beco da Ordem Terceira até a Rua Riachuelo,
passando a ser chamada Rua Direita dos Alemães ou Rua dos Alemães. O nome vinha da
origem étnica dos seus moradores que, na maioria dos casos, dedicava-se ao comércio
de chapelaria e ferraria. Daí seu ótimo comércio e finas casas residenciais, que marcavam
uma identidade comercial e burguesa.3 No final de 1895 foi fundada a Comunidade Alemã
Católica de Curitiba, no Salão Hauer, esquina com a Rua Mateus Leme, com o intuito de con-
gregar e assistir aos alemães e descendentes. Este mesmo “Salão” tornou-se o Theatro
Hauer que, em 1897 exibiu pela primeira vez na cidade imagens em movimento: prenúncio
cinematográfico. Outro dado interessante é que em uma das reuniões ali realizadas entre
os amigos de maioria alemã, foi fundado o Coritiba Football Club. Vemos, portanto, como
na existência de uma só rua já se explicitavam relações que dariam uma futura face social
ao bairro: comércio, lazer, predominância étnica e burguesa, a julgar pela presença de uma
das edificações mais antigas, a Casa dos Guimarães, residência da alta burguesia que, no
século XIX, acabou por servir de ponto comercial. O que há de “popular” neste pequeno

2 ECKERT, Cornelia; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. Etnografia de rua: um


estudo de Antropologia urbana. Revista Iluminuras, v. 4, n. 7, 2003.

3 HOERNER JÚNIOR, Valério. Curitiba 1900. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte, 1984.

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exemplo, além da presença do comércio, talvez seja a criação de um clube de futebol. No
entanto, também neste caso, dentro da mesma moldura étnica e social.
Antes de homenagear o empresário e político Ildefonso Pereira Correia, o Barão do
Cerro Azul, o maior exportador de erva-mate do mundo da sua época, a Rua Barão do Cer-
ro Azul, já havia se chamado Rua do Louro, Rua do Nogueira e Rua da Graciosa. Após a eman-
cipação do Estado, ao receber a sede do governo na casa do Presidente Provincial Antonio
Barbosa Simas Nogueira, cuja residência ficava na esquina com a Rua de Serrito, atual Car-
los Cavalcanti, a antiga Rua do Louro passou a levar o nome do político, Rua do Nogueira. No
final do século XIX, mais uma mudança de nome com a construção da Estrada da Graciosa,
que passava pela Serra do mesmo nome e ligava a cidade com o litoral. Sua localização,
enquanto ponto estratégico de “entrada”, levou ao nome de Rua da Graciosa e foi esten-
dida até o Largo da Carioca (Praça Dezenove de Dezembro). A partir deste momento ela
passou a ser a rua “Estrada da Graciosa”.
Com a urbanização e industrialização seu trajeto passou a abrigar importantes cons-
truções como a Fundição Gottlieb Mueller, futura apropriação do moderno e atual Shopping
Mueller. O futuro reservou-lhe outras “conquistas” como o de vir a ser o local de concen-
tração de muitas instituições governamentais, chegando, rodeada de jardins, ao Palácio do
Governo, inaugurado em 1953.
A Rua Paula Gomes homenageia Francisco Paula Gomes (1802-1857), tropeiro origi-
nário de Curitiba, que fazia a rota entre o Rio Grande do Sul e Sorocaba (SP). Levado às
relações com a burguesia pelo autodidatismo e posse de bens pelo trabalho, foi um im-
portante interlocutor entre a classe alta e a população comum na emancipação do Paraná
da Província de São Paulo: integrante da Sociedade dos Campos Gerais investiu toda sua
fortuna em folhetos e boletins distribuídos em suas rotas.4
Conhecida como Rua do Saldanha, em 1870 a Rua Carlos Cavalcanti passou a ser cha-
mada Rua do Serrito, por ter um aclive. Pouco atraente e de escassa infraestrutura, na dé-
cada seguinte recebeu comércio de base como oficinas, depósitos de lenha e selarias. Os
estabelecimentos se localizavam no trecho que compreende o Largo Bittencourt (Círculo
Militar) e a Rua da Graciosa (Riachuelo). Com o falecimento do advogado por parte do Para-
ná na Guerra do Contestado, Conselheiro Joaquim da Costa Barradas, seu nome foi dado

4 AL-HANATI, Yuri. Reduto boêmio faz ação em prol da memória do Paraná. 18 dez. 2013. Disponível em: https://www.gazetado-
povo.com.br/vida-e-cidadania/reduto-boemio-faz-acao-em-prol-da-memoria-do-parana-53urcrdcl4koj9q0gdsfzd3ri/

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à Rua Conselheiro Barradas. Passados alguns anos, veio o nome atual, em homenagem ao
ex-presidente do Estado, Carlos Cavalcanti. Uma pequena rua de muitas responsabilidades:
levou em seu trajeto ascendente o peso de muitas homenagens políticas.
Até 1900 a atual Rua Presidente Faria não tinha denominação alguma, mas alguns
anos mais tarde passou a ser chamada de Rua Garibaldi.5 Seu nome definitivo homenageia
o segundo Presidente da Província, Joaquim de Almeida Faria Sobrinho, integrante da Maço-
naria Paranaense detentor da Comenda da Ordem da Rosa. Sua gestão como Presidente
ocorreu em meio à urbanização e foi marcada pela fundação da Sociedade Propagadora da
Erva-Mate, destacando o incentivo à indústria e o surgimento do sistema de bondes em
Curitiba. É uma importante rua do centro da cidade, passando pelo Prédio Histórico da Uni-
versidade Federal do Paraná e o Passeio Público. Contudo, atualmente, configura-se como
parte do “centro velho”, região marcada pela existência de prostíbulos que convivem com
alguns pontos de revitalização cultural como a Associação de Capoeira Angola Dobrada
(ACAD) e a Bicicletaria Cultural.
A atual Rua Riachuelo já foi Rua do Lisboa, Rua dos Veados, Rua do Campo, Rua da Ca-
rioca e Rua Carioca do Campo. O termo “carioca” indicava a presença de fontes d’água.
Em meados dos Oitocentos, era possível encontrar casas comerciais de tecidos, ferra-
gens, secos e molhados – a maioria delas pertencentes a portugueses ou luso-brasileiros.
Aberta, provavelmente no início do século XIX, a Riachuelo foi o berço do comércio na ci-
dade – característica que se mantém até hoje. É possível que a presença portuguesa tenha
dado a denominação de Rua do “Lisboa”, pela qual foi conhecida durante certo tempo. Em
1871 seu nome foi mudado para Rua Riachuelo, em homenagem à Batalha do Riachuelo, da
Guerra do Paraguai. Ao longo do século XIX esta rua também serviu, juntamente com a Ba-
rão do Serro Azul, como via de acesso ao litoral. Além disso, sua proximidade com o Largo
da Matriz e com o Mercado Municipal tornou-a merecedora de atenção dos governantes.
Problemas relacionados ao calçamento e ao estado de conservação dos imóveis locali-
zados na rua eram assuntos constantes nas pautas das reuniões da Câmara Municipal. A
década de 1880 foi significativa para sua urbanização. A partir de 1885, com a inauguração
da estrada de ferro, e no ano seguinte, com a criação do Passeio Público, ela tornou-se
parte de um eixo vital da cidade. Entre a estação ferroviária e o Passeio Público, boa parte

5 HOERNER JÚNIOR, op. cit.

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do ideário modernizador da cidade se fez presente nela. Ainda no século XX, com a chega-
da dos imigrantes, mudanças ocorreram no dia a dia do comércio e na própria feição das
casas, antes térreas: a rua ganhava seus primeiros sobrados. Ali surgiu, também, uma das
primeiras linhas de bonde da cidade, tornando-se passagem obrigatória para aqueles que
se deslocavam no percurso Alto da Glória – Batel. Na segunda metade do século os ale-
mães presentes na Rua Direita (Rua Treze de Maio) começaram a ampliar sua atuação na
Riachuelo, instalando ali tipografias, papelarias, relojoarias, lojas de louças e ferragens. No
início da década de 1900, já eram quatro casas do ramo, todas pertencentes a alemães.
Nesta mesma época vieram os artesãos italianos. Já eram várias as oficinas estabelecidas
ali e comandadas por eles: sapateiros, serralheiros, marceneiros, funileiros, relojoeiros e
um florescente comércio de calçados, armarinhos, botequins, farmácia, livraria, barbearia
misturadas a uma dezena de armazéns de secos e molhados. No entanto, a ascensão da
importância da via para a capital não durou muito. Após a utilização de bondes elétricos
que funcionaram entre 1913 e final dos anos 1940, a rua passaria por um recesso de inves-
timentos urbanos a partir da década de 1950, especialmente pela troca desse modo de
transporte pelos ônibus de linha.6 A década de 1950 também trouxe uma nova mudança
no perfil comercial da Riachuelo. Muitos dos netos dos primeiros imigrantes optaram por
profissões liberais ou outras atividades em vez de prosseguirem com os negócios da famí-
lia. Firmas foram fechadas e as lojas, na sua maioria, ocupadas por sírio-libaneses. A emi-
gração desta população moradora para outras regiões valorizadas pela iniciativa da gestão
pública fez com que a Riachuelo chegasse aos anos 1990 com uma alta taxa de vacância
dos edifícios residenciais que totalizava 40% (dados do Sebrae), permanecendo com gran-
de estoque habitacional nos 10 anos que se seguiram.7 Este é um dado importante para
compreendermos as propostas de revitalização que vieram a seguir.8
A Rua do Rosário é, assim como a Treze de Maio, uma das primeiras ruas da cidade.
Tão antiga quanto a igreja homônima, que existe, pelo menos, desde 1737. É a única que
conservou seu nome e sua extensão, dois quarteirões, ao longo dos últimos séculos. Nas

6 CRESTANI, Andrei Mikhail Zaiatz. As faces (in)visíveis da regeneração urbana: rua Riachuelo e a produção de um cenário gentrificado. Cad.
Metrop., São Paulo, v. 17, n. 33, p. 179-200, maio 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cm/v17n33/2236-9996-cm-17-33-0179.pdf

7 Idem.

8 Para uma completa avaliação desta rua, sugerimos o excelente trabalho: IUBEL, Aline Fonseca; CORDOVA, Dayana Zdebsky de;
STOIEV, Fabiano. As muitas vistas de uma rua: histórias e políticas de uma paisagem. Curitiba: Máquina de Escrever, 2014.

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PLANO DE CONSTRUÇÃO DE UMA CASA DE ALVENARIA A RUA AMÉRICA Nº 12, [ATUAL
TRAJANO REIS] JUNTO A JÁ EXISTENTE PARA O SENHOR JOAO FAUSTO.
ANO 1913 | RESP. PELA DIGITALIZAÇÃO: MARCOS CAMPOS / FERNANDO AUGUSTO | ACERVO: FUNDO CASA DA MEMÓRIA
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UM INTERESSANTE AFORISMO SEXUAL QUE REMETE A ESTA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO NOME “RUA DO FOGO”
FOI USADO NA CANÇÃO DE PAULO VÍTOLA E MARINHO GALLERA, “CHORO DE RUA”, COMPOSTA E ESCRITA PARA
A PEÇA “OH CURITIBA, NOSSA TRIBO, SALVE, SALVE!”, QUE ESTREOU NO TEATRO DE BOLSO EM 1980. ELA DIZ: “[...]
RUA DO FOGO, UMA VACA E UM TOURO, ESTÃO CURTINDO A MAIOR LUA DE MEL [...]”.

atas da Câmara de 1771, era a Rua Nova de Nossa Senhora do Rosário. Na Décima de 1810,
com 18 casas, era chamada sem o qualificativo “nova”.9 No século XIX era habitada por fa-
zendeiros e comerciantes. Em 1896, após insistência da sociedade, recebeu uma de suas
primeiras escolas: Escola da Divina Providência, localizada na esquina com a Rua Saldanha
Marinho. Na época era frequentada por 39 alunas ensinadas por três professoras que as
preparavam com o curso primário, música e trabalhos de agulha.10 No século XX foi local de
moradia de personalidades de destaque na sociedade curitibana, como José Hauer Sênior,
proprietário da primeira usina elétrica de Curitiba e que construiu ali a mansão conheci-
da como Castelo Hauer. Outro morador memorável desta rua foi o artista Waldemar Curt
Freyesleben, um dos fundadores da Escola de Música e Belas Artes do Paraná.
Ao longo da sua história, a Rua São Francisco já se chamou Rua do Hospício, do Terço,
e a mais antiga denominação – datada de 1786 – foi Rua do Fogo. Portanto, o nome atual
é aquele de 1867.11 A Rua do Fogo, no final da primeira década do século XIX, era um dos
caminhos para chegar do litoral à Vila.12 Não se sabe exatamente o porquê do seu primeiro
nome, entretanto era denominação muito comum em ruas luso-brasileiras, talvez porque,
em uso antigo, a palavra “fogo” significasse “casa de habitação, teto, abrigo”, e em algumas
possivelmente houvesse algum local onde os itinerantes pudessem pernoitar, e aquecer
sua comida. Outra hipótese é de que seu nome teria derivado da presença de prostitutas,
talvez em função de uma conjunção de fatores: por ser um dos locais com os imóveis
mais desvalorizados pela falta de infraestrutura, que, por sua vez, derivaria da urgência

9 KATO, Allan Thomas Tadashi. Paranaguá, Antonina e Curitiba, início do século XIX: reconstituindo espaços e a lógica de sua organização social. An.
mus. paul., São Paulo , v. 20, n. 1, p. 283-320, jun. 2012 . Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-47142012000100010. Acesso em: 27 jul. 2019.

10 OSNI. Divina Providência faz 100 anos. Jornal Tribuna do Paraná [online], 27 jul. 2002. Disponí-
vel em: https://www.tribunapr.com.br/noticias/parana/divina-providencia-faz-100-anos/
RUA SÃO FRANCISCO
ANO 1978 | FOTOGRAFO: HARATON 11 KATO, op. cit.
MARAVALHAS | REPRODUZIDO POR:
HARATON MARAVALHAS | ACERVO: 12 CRUZ, Ana Lucia R. B. da; PEREIRA, Magnus Roberto M. (org.). Onde moram os homens-bons de Curiti-

FUNDO CASA DA MEMÓRIA ba. In: CRUZ, Ana Lucia R. B. da; PEREIRA, Magnus Roberto M. (org.). Curitiba e seus homens-bons: espaço e socieda-
de na Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2011. p. 25.

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RUA TRAJANO REIS ESQUINA COM 13 DE MAIO.
ANO 1911 | PROCEDÊNCIA DO ORIGINAL: CID DEREN DESTEFANI | COLEÇÃO/
FUNDO: COLEÇÃO CID DESTEFANI | ACERVO: FUNDO CASA DA MEMÓRIA

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comercial, da agitação que atrai consumos de todas as espécies e retira
o tempo dos investimentos mais duradouros.13 A Rua do Fogo era um
dos acessos à vila e a maior parte de seus moradores se constituía de
pequenos agricultores que “plantavam para comer” e não moravam ali,
mas usavam estas suas casas para cumprir seus deveres religiosos ou
para vender o excedente do que produziam. No século XIX a Rua Nossa
Senhora do Terço (parte do que hoje é Rua São Francisco) era a segunda
rua em número de “homens-bons”: cidadãos respeitáveis da alta classe.
No entanto, ali residiam, lado a lado, o padre e o “dono de taberna”,
indicando, já desde aquele tempo, a coabitação de registros morais e
éticos pensados como opostos e, acima de tudo, a energia da mistura
de fronteiras.
O primeiro nome da Trajano Reis foi Rua do Cemitério e substituiu a
via de lamaçal que ligava a Igreja do Rosário ao Cemitério Municipal. Era
um logradouro cheio de comércios como açougues, armazéns de se-
cos e molhados, alfaiatarias e outros. Ainda durante o império, passou a
ser Rua América, nome usado até 1918. Durante a Revolução Federalis-
ta, a Rua América abrigou um quartel. Em 1918, a rua foi rebatizada com
seu nome atual em homenagem à memória de Trajano Reis, médico sa-
nitarista maçom que ali residia, falecido naquele ano.
Mas em termos da construção de uma moral burguesa podemos
fazer uma “leitura” complementar a partir das relações entre as institui-
ções religiosas deste começo.
O que a fundação de uma “igreja” pode nos contar acerca da cultura
urbana nestes primórdios?
Uma elevação a noroeste do povoado foi o local escolhido para eri-
gir a Igreja de São Francisco de Paula, um “genuíno portal de Curitiba”,
que se abria para as gentes, mas também para lendas e mitos, atos e
narrativas caminhantes que até hoje refletem a vida daqueles primeiros
habitantes da vila:

13 Um interessante aforismo sexual que remete a esta possível interpretação do nome


“Rua do Fogo” foi usado na canção de Paulo Vítola e Marinho Gallera, “Choro de Rua”, compos-
ta e escrita para a peça “Oh Curitiba, nossa tribo, salve, salve!”, que estreou no Teatro de Bolso em
1980. Ela diz: “[...] Rua do Fogo, uma vaca e um touro, estão curtindo a maior lua de mel [...]”.
[...] do alto do morro avistava-se, a leste, a linha contínua e sinuosa da Serra do Mar for-
mando uma faixa azul, e nas demais direções, até onde o olhar alcançava, uma vastidão
de campos com as manchas escuras dos capões de mato.
Nos declives, entre dois riachos, ficava a vila, pouco mais de uma centena de casas
brancas, tendo no centro a Igreja da padroeira, Nossa Senhora da Luz dos Pinhais. Mais
além, uma região de banhados indicava as nascentes de um grande rio. Para quem vi-
nha da estrada geral, a colina e a mata, que se estendia ao norte, ocultava a visão do
povoado. O ponto onde foi erguida a capela era o que primeiro aparecia aos olhos do
viajante.14

Era o ano de 1799. Um ano antes, realizando sua visita pastoral na Vila, o bispo de São
Paulo, Dom Mateus de Abreu Pereira, constatou a precariedade das três capelas existen-
tes, todas construídas entre 1714 e 1740: a Matriz, de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, a
de Nossa Senhora do Terço (atualmente a Igreja da Ordem, construída por imigrantes por-
tugueses e frequentada pela elite daquele tempo) e a do Rosário dos Homens Pretos de São
Benedito. Todas estas Igrejas foram construídas na parte baixa do espaço da Vila como um
todo.
A Igreja de São Francisco de Paula foi uma ideia que nasceu desta viagem do bispo e do
seu relacionamento com o rico fazendeiro Manoel Gonçalves de Guimarães em cuja pro-
priedade se hospedara e que ficava entre Ponta Grossa e Palmeira.
Em conversas sobre o estado das igrejas e tendo como suporte seu sucesso e sua no-
tabilidade na Vila, o fazendeiro sonhou com uma realização à sua altura: conduzir e ser o
responsável pela construção de uma igreja no alto do morro, que vislumbrava toda a Vila e
ao longe, a Serra do Mar.
Aqui já se delineou uma sutil relação entre o “alto” e o “baixo”, decorrente de uma ges-
tão do espaço físico e religioso a partir dos interesses dos mais poderosos.
Em termos da parte “baixa” do aglomerado da vila, a Igreja do Rosário estava na “borda
do centro” da Vila e compunha o trajeto dos ritos funerários e festejos religiosos. Ela estava
ligada à Igreja Matriz pela Rua do Rosário e pela Rua do Fogo, atual Rua São Francisco, fazendo,

14 AZEVEDO, Orlando; BAPTISTA, Vera Regina Vianna. Ruínas de São Francisco: dois séculos de história e mito. Fotográfica, Co-
municação e Editora, 2004. p. 10. Todas as informações relativas às Igrejas do período foram coletadas desta publicação.

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também, sua ligação com o Pátio da Ordem (em frente à Igreja da Ordem) indo
até o final do povoamento na Rua Carioca de Baixo, atual Riachuelo, região do
Rio Belém.
Portanto, como um dado interessante para os nossos propósitos, pode-
mos concluir que a vida religiosa da Vila começou na região baixa, onde tam-
bém o comércio se desenvolveu, onde estavam os córregos, as nascentes de
um grande rio, e, em razão destas características, o brejo, o lodaçal, as casas
mais pobres. Ali, a meio caminho da elevação a noroeste, ficava a Matriz de
Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, de frente para o sul.
Dando seguimento ao desejo de construir uma igreja no alto, em 1799 foi,
então, criada a Confraria de São Francisco de Paula, tendo Manuel Gonçalves
de Guimarães à sua frente, um civil, na medida em que as confrarias não eram
de natureza religiosa, e sim, institucional, ligadas ao Reino. Em 1800 foi aberto
o Livro de Despesas da Confraria, e, em 1809 ficou pronta a capela-mor e em
1811 foi oficializada pela bênção apostólica.

Pela ladeira que conduz à colina onde estava situada a capela, o povo se
acotovelava, abrindo alas, por cujo centro, a imagem veneranda do velho
santo passava, saudando os devotos no balanço do andor. [...] “E quando
o viam no seo habito de frade, austero e misericordioso, ríspido e meigo,
todos se ajoelhavam, mãos em súplica para o ceo, os olhos ennevoados
de lágrimas, n´uma prece afflictiva, n´um ciciar apressado de fé profunda.
Se o andor que o conduzia parava para descanso dos conductores, as
creanças acercavam-se d´elle, como para ver melhor o Sâo Francisco,
conhecer de perto o santo que protegia seos Paes”.15

Como nos conta em detalhes Orlando Azevedo e Vera Regina Vianna
Baptista em seu livro Ruínas de São Francisco, a notícia da intenção de
construir uma nova igreja no alto do morro gerou muita controvérsia. Por que
CAPELA DE SÃO FRANCISCO
ANO 1915 | REPRODUZIDO POR: MARCOS CAMPOS | PROCEDÊNCIA
DO ORIGINAL: INSTITUTO HISTÓRICO GEOGRÁFICO E
15 PERNETTA, Julio. A Capella de São Francisco. O Cenáculo. Curitiba: Impressora Paranaense, Anno
ETNOGRÁFICO DO PARANÁ | COLEÇÃO/FUNDO: COLEÇÃO
2, 45. Fasc., tomo II. 1896. In: AZEVEDO, Orlando; BAPTISTA, Vera Regina Vianna. Ruínas de São Fran-
JULIA WANDERLEY | ACERVO: FUNDO CASA DA MEMÓRIA
cisco: dois séculos de história e mito. Fotográfica, Comunicação e Editora, 2004. p. 10.

23
não reconstruir a Matriz de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais? As opiniões dividiram
a pequena Vila.
A situação era complexa: a Igreja Matriz naquela época era subordinada ao Estado,
e sua ação religiosa ao Padroado Régio, cuja jurisdição nas colônias era exercida
pelo Rei de Portugal. Era a Fazenda Real que controlava as finanças, que recolhia os
dízimos devidos às Igrejas e pagava a “côngrua” aos sacerdotes, ou seja, os salários. E
à população caberiam custos de edificação, recuperação e manutenção dos templos.
Isso tudo sem contar que:
Havia ainda as taxas para a celebração dos Sacramentos. Uma criatura, desde
o nascimento até a morte, tinha de pagar (segundo um camarista de Antonina em
1798): “[...] de oferta de batizar e vela, quatrocentos réis; de confissão anual, cento e
quarenta; de casamento e licença, quatro mil réis; de enterro três mil e quarenta réis,
isto é, sendo pobre, que sendo rico gasta daqui pra cima o que quer.” (AZEVEDO;
BAPTISTA, 2004, p. 19).
Diante disso aumentavam as divergências entre os padres e a população que se
sentia explorada. Mas a situação dos padres também se tornava cada vez pior e infe-
riorizada, dependendo da Câmara para receber seus salários. Ou seja, os padres co-
meçaram a fazer seus rendimentos à parte dos salários fixos.
Esta situação instável, de uma fronteira muito tênue entre o religioso e o financeiro/
econômico, levou ao fortalecimento das agremiações leigas e das irmandades que
até já realizavam ofícios religiosos de maneira independente.
Ainda segundo os autores citados, “era nas capelas filiais de organização leiga que
a fé se expressava com maior intensidade, sem tantas determinações e obrigações
vinculadas ao poder temporal” (AZEVEDO; BAPTISTA, 2004, p. 20-21). E mais, exer-
ciam uma função social paralela de congraçamento e ajuda mútua.
Os membros das irmandades obtinham ali a segurança de pertencer a um grupo
que lhes garantia apoio nos tempos difíceis, na doença ou na viuvez, e a certeza, no
fim, de um sepultamento digno (AZEVEDO; BAPTISTA, 2004, p. 20).
As igrejas e as irmandades foram se acomodando a esta situação, e cada qual se-
guiu seu destino, em meio à Vila que crescia.
Mas não a Igreja de São Francisco de Paula, que não saíra dos alicerces.
Depois de inúmeros percalços, em outubro de 1915 a capela-mor foi demolida.

24
VISTA AÉREA DA REGIÃO DO ATUAL SETOR HISTÓRICO. APARECE O PRÉDIO DE APARTAMENTOS QUE TEVE A PARTE DOS FUNDOS
DEMOLIDA PARA PASSAR A RUA NESTOR DE CASTRO. A FOTO MOSTRA A DEMOLIÇÃO DOS CASARÕES PARA ABERTURA DA NOVA RUA.
EM PRIMEIRO PLANO O ANTIGO TRAÇADO DA RUA SÃO FRANCISCO | ANO 1970 | FOTOGRAFO: SYNVAL STOCCHERO | COLEÇÃO/FUNDO:
COLEÇÃO SYNVAL STOCCHERO | PROCEDÊNCIA DO ORIGINAL: FAMÍLIA STOCCHERO | ACERVO: FUNDO CASA DA MEMÓRIA

25
26
PRAÇA PROFESSOR DOUTOR JOÃO CÂNDIDO. APARECE AO LADO DIREITO O
PRÉDIO DA UNIÃO CÍVICA FEMININA | SEM DATA | REPRODUZIDO POR: FERNANDO
AUGUSTO | PROCEDÊNCIA DO ORIGINAL: ROSNEL BOND | COLEÇÃO/FUNDO:
COLEÇÃO ROSNEL BOND | ACERVO: FUNDO CASA DA MEMÓRIA

27
28
Mas as Ruínas permaneceram como memória de uma persistência no tempo. De uma
igreja que seria, e nunca conseguiu ser.
Como escreveram Azevedo e Baptista:
O Alto de São Francisco foi sempre tema, cenário ou base de observação. A partir dos
desenhos ou relatos feitos, tentamos ajustar mentalmente o foco da imagem, na tentativa
de sobrepor a cidade atual à antiga, buscando elementos comuns, permanências, caracte-
rísticas que resistiram ao tempo (AZEVEDO; BAPTISTA, 2004, p. 35).
Em princípio podemos afirmar que, seguindo a metáfora dos historiadores citados,
também estamos tentando “ajustar mentalmente o foco da imagem”, intuindo alguns pa-
râmetros que sugerem “[...] permanências, características que resistiram ao tempo”, mas
também transformações, mudanças e apropriações, seguindo a passagem dos séculos
que nos separam daquele início.
O “alto” e o “baixo” surgem, então, como determinações que se colocariam como con-
figurações geográficas, certamente, mas também como decorrência da combinação de
aspectos da imbricação das relações de classe, da cultura popular e política, além, é claro,
do desenvolvimento da vila com seu comércio, sua moral conservadora e sua religiosidade.
Espaço e tempo. Paisagem.

A PRIMEIRA-DAMA DO ESTADO, ANITA RIBAS, DISTRIBUINDO CAPAS DE INVERNO A MENORES CARENTES NO PALÁCIO SÃO
FRANCISCO, SEDE DO GOVERNO NA EPOCA, ANTES DA CRIAÇÃO DA CASA DO PEQUENO JORNALEIRO DE CURITIBA.
ANO 1941 | REPRODUZIDO POR: FERNANDO AUGUSTO | PROCEDÊNCIA DO ORIGINAL: CASA DO PEQUENO
JORNALEIRO DE CURITIBA | COLEÇÃO/FUNDO: COLEÇÃO CAPEJO | ACERVO: FUNDO CASA DA MEMÓRIA

29
UM CO
ÇÃO A
NADO
30
30
ORA-
ALUCI-
O
ACUSAÇÕES E DEMANDAS MÚLTIPLAS, MÚTUAS E
MULTIFOCAIS, DISPUTAS, EMBATES PELO CONTROLE
DO ESPAÇO: REDUTO DAS CULTURAS DO POPULAR
QUE ALI FIZERAM SEUS TERRITÓRIOS, FRENTE AOS
PROJETOS INSTITUCIONAIS PARA UM LOCAL QUE,
AO LONGO DO TEMPO, TRANSFORMOU-SE EM
“ÁREA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO”.
31
Portanto, lado a lado com as propostas do governo municipal, vieram consolidando-se prá-
ticas de grupos alternativos que ali passaram a se concentrar com suas performances libertárias,
misturadas, como se poderia prever, a outras tantas, de consumos lícitos e ilícitos.
Uma parte considerável da vida noturna vem se desenvolvendo ali, com características mui-
to específicas.
No entanto, antes de nos voltarmos para estas questões do/no Bairro São Francisco, parece
oportuno conhecer e, numa perspectiva comparativa, fazer ressaltar, algumas questões frente a
situações semelhantes, em outros espaços e tempos da cidade.
Além desta perspectiva comparativa, que ilumina territórios obscuros, contrapondo regis-
tros que ressaltam semelhanças e diferenças e dando luz à uma compreensão mais íntima das
relações estruturantes, destacamos a possibilidade de identificar agentes mediadores da/na
constituição destes espaços e lugares, esclarecendo mais e melhor as determinações de situ-
ações ímpares.
Em termos desta perspectiva comparativa, escolhemos dois momentos de um único movi-
mento de lazer e consumo cultural da cidade, ainda que com nuances geográficas e temporais:
primeiramente, a época da constituição de uma prática de lazer “noturno” para uma cidade con-
servadora e elitista, que vai da década de 1940 até os anos 1980, aproximadamente. Finalmen-
te, usaremos estes dados para contrapor e iluminar a situação recente do Baixo São Francisco,
especialmente desde a época dos planos de revitalização até os dias de hoje, mediante várias
aproximações: histórica, etnográfica e arquitetural, à luz das políticas culturais para a região.
Da mesma maneira, parece oportuno trazer algumas palavras sobre as ações de “mediação”
que acontecem em contextos sociais, culturais e políticos demarcados por intenções analíticas,
como é o nosso caso.
No livro Mediação, cultura e política, organizado na forma de uma coletânea de artigos sobre
o assunto, além da riqueza das experiências multitemáticas de processos de comunicação inter-
cultural, aprendemos sobre o fundamento destes processos: a vida social é feita de diferenças.16
E é nesta “trama” que a comunicabilidade se constrói a partir mesmo dos conflitos e contra-
dições. E, como dizem os organizadores desta coletânea:

16 VELHO, Gilberto; KUSCHNIR, Karina (org.). Mediação, cultura e política. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001.

32
[...] o estudo de trajetórias individuais torna-se assim estratégico [...] as biografias são re-
levantes e potencialmente reveladoras [...] decisões e escolhas individuais dão-se em um campo de
possibilidades sociocultural, entremeado de relações de poder (AZEVEDO; BAPTISTA, 2004, p. 9).
Neste sentido, seguindo os autores, a vida social é um contínuo processo de “nego-
ciação” da realidade, “tendo como referência sistemas simbólicos, crenças e valores, em
torno de interesses e objetivos materiais e imateriais dos mais variados tipos” (AZEVEDO;
BAPTISTA, 2004, p. 10).
Quando tomamos conhecimento da vida cultural urbana de Curitiba a partir de 1920,
é possível imaginar a necessidade crescente de uma comunicabilidade mais extensa, en-
volvendo diferentes classes sociais, e até mesmo fazendo aparecer brechas e fissuras na
elite burguesa que desde seu início se consolidou de maneira muito fechada, exclusivista
e moralista.
Ainda que a Rua Cruz Machado seja um exemplo fundamental para as atividades de
lazer noturno que ali se concentraram desde os anos 1980 até 2000, a história das boates
em Curitiba não começou exatamente na Cruz Machado e nem neste período. Na realida-
de constituiu-se na região central uma espécie de “quadrilátero” do lazer/prazer que en-
volve muitas outras questões da produção cultural como um todo além do fato específico
das boates e da vida noturna stricto sensu. Tratou-se da construção de uma sociabilidade
que envolvia múltiplas determinações. Um fato social/cultural total: a questão econômica,
representações sociais poderosas sobre os direitos das classes abastadas, sobre as liber-
dades licenciosas dos mais ricos, sobre o comando dos bens materiais e simbólicos e seus
investimentos no lazer e prazer. Uma determinação do poder, da política e da economia
nas mãos das elites.
Antes de entrarmos no trabalho de Adherbal Fortes sobre o jazz na noite curitibana
dos anos 1950 em diante, vamos passar por dois outros trabalhos que reforçam nossa
abordagem de um processo amplo, multilocalizado e multifacetado no que se refere ao
lazer noturno, tendo como fio de uma costura indelével, a música.17

17 SÁ JÚNIOR, Adherbal Fortes de. Curitiba no tempo do Jazz Band. Curitiba: Artes & Textos, 2017.

33
A dissertação de mestrado de Marília Giller sobre o ambiente em que o jazz “vai
despontar” em Curitiba, e em várias outras cidades paranaenses, traz à tona dados muito
interessantes sobre a vida cultural da cidade entre os anos 1920 e 1940 que são relevantes
para compreendermos as vias paralelas e marginais das iniciativas em cultura e lazer.18
Como um contraponto aos acontecimentos das agendas mais ortodoxas e “respeitá-
veis” de concertos, recitais, óperas e peças teatrais, musicais ou não, o grande desenvolvi-
mento material e demográfico foi tratando de conectar os caminhos de atividades de lazer
e cultura à revelia dos olhos atentos daqueles que desejariam a rigidez das separações.
Reconta-nos a autora:

Por todos os lados havia um intenso movimento de operários construindo


“bungalovs” para os ricos burgueses e obras de embelezamento e melhoramentos
urbanos, fazendo com que a cidade mais parecesse um grande canteiro de obras.
Novos estabelecimentos comerciais e industriais surgiam e muitos ampliavam e
modernizavam suas instalações. Aviões aterrizavam e partiam com frequência dos
campos afastados do Portão em fantásticos “raids” aéreos. Um número crescente
de “Fords” e bondes apinhados de passageiros percorriam velozmente as ruas. Para
dar vazão ao incremento do tráfego e atendendo a reiterados pedidos da população,
iniciava-se a compra e desapropriação de terrenos para o alargamento da Rua 15 de
Novembro, anunciando-se para breve seu asfaltamento. [...] Nessa mesma rua, o
“footing” entre a Universidade e a Praça Osório aumentava no final da tarde. Operárias
e funcionárias seguiam apressadas em direção às suas residências ou ao encontro
dos rapazes. Senhoras e senhoritas da sociedade passavam em direção as primeiras
sessões do “Mignon” e do “Palácio”, enquanto os “almofadinhas” e intelectuais
dirigiam-se aos cafés para saber as últimas novidades. Bandos de universitários,
gárrulos, apoiados nas vitrines das grandes “magazines”, que proliferavam no centro,
observavam a passagem das “melindrosas”. Nas esquinas, os jovens aficionados pelo
esporte discutiam as últimas partidas de futebol e tênis e as vitórias no boxe, turfe e
automobilismo. Nesse mesmo horário, a Rádio Clube Paranaense – PRB-2, instalada
no último andar do Clube Curitibano, tocava matinês de jazz e maxixe. [...] A capital

18 GILLER, Marília. O jazz no Paraná entre 1920 a 1940: um estudo da obra O Sabiá, fox trot shimmy de
José da Cruz. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, Departamento de Música, 2013.

34
paranaense passava por intensas mudanças que faziam com que ela perdesse seus
contornos pacatos e provincianos para se tornar uma “moderna urbe”. E, assim
como a feição da cidade, os hábitos, a moda e o ritmo de vida dos seus habitantes
transformava-se aceleradamente.19

Da mesma maneira, o trabalho de Ana Paula Peters20 sobre o choro e o rádio, corrobora
esta visão de um processo comunicativo mais amplo e mais antigo em termos de lazer e
cultura urbana:

A Rádio Clube Paranaense foi ao ar pela primeira vez às 11 horas da manhã do dia 27 de
junho de 1924. A programação era basicamente constituída de música clássica, musi-
cais, noticiários e ainda o rádio teatro. Em 1930, com a ascensão das rádios, realizaram-
-se programas de calouros, geralmente embalados por regionais de Choro [...] nesta
época havia no seio da colônia polonesa de Curitiba, três grupos culturais: a Sociedade
Popular José Pilzudski, a União Polonesa e a Sociedade de Santo Estanislau e ainda o
Centro Teatral Polonês. [...] a Sociedade Zwiaçek Polski (Sociedade União Polonesa),
que ficava na Rua Carlos de Carvalho, tendo como presidente Sr. Francisco Lachowski
(MOROZOWICZ, 2000, p. 134). O trio composto pelas Sras. Renée Devraine (pianista),
Bianca Bianchi (violinista) e Charlotte Frank (violoncelista), bem como com a Sra. Clory
(cantora) e com mais alguns componentes da Sociedade Chopin. As primeiras trans-
missões aconteceram na residência de Livio Gomes Moreira, um médico e chefe do
Departamento de Correios e Telégrafos em Curitiba, decano dos radioamadores no
Paraná e pesquisador de assuntos relacionados com a comunicação. Nesse primeiro
momento, a Rádio Clube funcionava somente das 8h30 às 9h30 nas quartas e sex-
tas-feiras. Aos domingos a transmissão acontecia das 14h às 15h (BOLETIM INFOR-
MATIVO DA CASA ROMÁRIO MARTINS, Nas Ondas do Rádio. XVIII, n. 115, Curitiba:
Fundação Cultural de Curitiba, dez. 1996). Estas ações transformaram a PRB-2 num

19 Esta citação de Marília Giller, em sua dissertação de mestrado mencionada na nota anterior, refere-se ao arti-
go de Regina Elena Sabóia Iório, “A novella paranaense. O mais ‘arrojado’ empreendimento literário do Paraná nos anos
20”, publicado nos Cadernos da Escola de Comunicação, Unibrasil, v. 1, p. 36-55, out./nov. 2003.

20 PETERS, Ana Paula. Os regionais de Choro e os programas de auditório das rádios. In: OTTO, Tia-
go Portela (org.). Songbook do Choro Curitibano. Curitiba: Otto Prod., 2012.

35
dos fenômenos de comunicação de massa nunca mais visto em Curitiba (PETERS, 2012, p.
38 apud GILLER, 2013, p. 50-51).

[...] atrações nacionais e internacionais passaram pela rádio, fomentando o intercâmbio dos
artistas, que mantinham os repertórios atualizados. [...] A rádio, já instalada na Rua Barão do Rio
Branco, tinha auditório para até 700 pessoas, orquestra, conjuntos regionais e várias outras
formações musicais. O departamento de teatro tinha grande elenco. A PRB-2 organizou um
novo auditório de quase 400 lugares, na Rua Barão do Rio Branco, inaugurado em 1941. Co-
meçava uma fase de variedades, humor e programas de calouro e de auditório. Neste mesmo
ano, ocorreu um dos episódios mais lembrados de quem viveu estes programas, Orlando Silva
cantando “sem microfone” da sacada da rádio para o povo que estava na rua, por não ter con-
seguido entrar para assisti-lo no auditório da rádio. Este episódio foi lembrado por Vicente Mi-
ckosz, ex-radialista da Rádio Clube, fazia jus ao reconhecimento de Orlando Silva como cantor
das multidões. Este ano também marcou o surgimento de dois regionais: o regional da PRB-2,
sob o comando de Gedeon da Souza (interpretando num programa de nome Regional, músicas
caracteristicamente brasileiras, acompanhando os cantores regionais que atuavam na emisso-
ra) e o regional dos irmãos Otto.21
As emissoras foram um elo importante na disseminação desta produção que tinha, por um
lado, a presença das boates e seu negócio de “show business” promovendo a vida artística da
cidade, e, por outro, as redes de comunicação e troca musical/cultural lato sensu, que vieram
se constituindo em meio ao tecido social. Neste último sentido, nos referimos à formação de
grupos e bandas que atuavam em todos os locais de lazer, suas trocas, seu processo de comu-
nicabilidade específico.
Notamos que estes dados sobre as emissoras locais confluem com as informações ofere-
cidas pelo jornalista José Carlos Fernandes no artigo da Gazeta do Povo, de 25 de maio de 2013,
ainda que sobre um período um pouco posterior, “Quando a noite de Curitiba tinha um rei”:
“O empresário Paulo Wendt atuava em parceria com os produtores de rádio locais. Juntos,
faziam ‘combos’. Em dois dias na cidade, os artistas contratados por eles faziam shows nos
auditórios de emissoras como a Guairacá, Colombo e PRB-2, iam a clubes, teatros e terminavam

21 PETERS, Ana Paula. De ouvido no rádio: os programas de auditório e o choro em Curitiba. Dissertação (Mes-
trado) – Departamento de Sociologia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2005.

36
RUA SÃO FRANCISCO
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

37
RUA SÃO FRANCISCO, BAR NAKAROCHA
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

38
a maratona no disputado palco da boate Marrocos.” (FERNANDES, José Carlos, 2013,
Gazeta do Povo).
Ora, todas estas ações constituem-se em claras “mediações” culturais entre cam-
pos socioculturais distintos e, até certo ponto, opostos em termos das opções de lazer.
Ao trazer artistas populares que, por meio de “combos” circulavam em vários locais de
cultura e lazer para as classes populares, estas parcerias tinham, numa ponta, as classes
populares e o submundo, a “boca do lixo” curitibana, e na outra, as elites, e os agentes
“mediadores”, donos de boates e outros agentes envolvidos. Mas também, a partir de
meios de comunicação de massa, produziam eventos que, de maneiras diferenciadas,
satisfaziam a todos, aproximando e ressaltando as possíveis diferenças.
Mas o caso específico desta “mediação” cultural realizada na vida “noturna” da cidade
apresenta outras determinações muito oportunas para nossos interesses e que desta-
caremos a seguir, primeiramente a partir dos dados do livro de Adherbal Fortes, Curitiba
no tempo da jazz band, lançado em 2017, pela Editora Artes & Textos, Curitiba. Em segui-
da, pelo livro de André Wuicik sobre a Rua Cruz Machado, lançado em 2018, pela Editora
Íthala, Curitiba.
Analisando alguns dados destes dois trabalhos esperamos tornar evidente como a
trajetória dos mais notáveis donos de boates deste período que se inicia aproximada-
mente a partir de 1940, bem como a atuação de figuras proeminentes da sociedade, e,
na base desta estrutura, as atividades profissionais de um grande contingente de músi-
cos e bandas vieram construindo as relações subterrâneas da nossa vida cultural. E, final-
mente, em que sentido(s) esta análise esclarece as que buscamos elucidar no reduto do
“Baixo São Francisco”.

39
A FESTA DE 25 ANOS
O livro de Adherbal Fortes tem um enredo e uma narrativa muito interessantes.
Descreve uma “festa que durou 25 anos”, seus idealizadores, a feitura do(s) cená-
rio(s), os recursos e convidados, mas, acima de tudo, vai olhar com lupa os movimentos
de sua tessitura subjacente, cultural, musical, relacional.
Lá pelos meados dos anos 1940 os “cofres” estavam abarrotados de dinheiro vindo
da erva-mate, das madeireiras, e, principalmente, do “ouro verde”, o café.
As elites, os políticos e os bancos, numa trama de interesses confluentes, decidi-
ram, como num grande ritual das boas colheitas, comemorar em grande estilo. Embora
já existissem vários clubes neste então, considerando que a sociedade vivia de baile em
baile, de début em début, era necessário construir o “totem” da burguesia, a sede social
do clube mais emblemático da sociedade curitibana: o Clube Curitibano, na esquina da
Rua XV com Barão do Rio Branco.
Esta iniciativa, por sua vez, que se concretizou em 1950 com a inauguração do clube,
estava atrelada ao projeto dos festejos dos 100 anos da Emancipação do Paraná, previs-
ta para 1953, cujos preparativos já haviam começado no final dos anos 1940.
Este é o ponto forte de amarração da narrativa de Adherbal Fortes: o motivo e seus
encadeamentos, os cenários e os executores. E o fio que “costura” todo este enredo e
narrativa é a vida cultural, a música e seus artistas, executores de uma grande sinfonia
noturna, com todos os ingredientes imagináveis: dinheiro, poder, sexo, drogas e arte.
Deste encontro surgiram, e continuaram a escalar outras alturas, carreiras musicais
memoráveis: Beppi, Gebran Sabbag, Fernando Montanari, Geraldo Elias, Ari Lunardon,
Canhoto, Juquinha batera (irmão do Lápis), Acácio e Dirceu Godoy, Bráulio Prado, Lú-
cio (guitarrista), Hildofredo Alves Correa, Gerdau do Rosário, Raulzinho do Trombone,
Guarany Nogueira, Norton Morozowski, Lápis e tantos outros. Gerações se encadearam
nesta mesma trilha que, a bem da verdade, chegou até há pouco tempo, e, ainda persiste
neste conluio geracional. Muitos nomes importantes do jazz já se foram desta “festa”:
Maurici Ramos (baterista), Bráulio Prado (pianista), Tiquinho (baterista), Saul Trumpete
(trompetista), Gebran Sabbag (pianista) e tantos outros. No entanto, seguem atuando
muitos músicos que conviveram com eles.

40
Bailes e bandas: falamos de uma cidade que vivia de baile em baile, e que se a batuta es-
tava nas mãos de maestros como Angelo Antonello, Beppi, Genésio Ramalho, Osval Siqueira,
entre outros, quem comandava a “festa” era a elite curitibana.22
No entanto, há uma ressalva e o reconhecimento de um elo incontrolável bem como fun-
damental nesta história toda: nem tudo viveu muito tempo sob este “controle inicial” que, na
verdade, não era para impedir e sim para ter a posse das operações: o frenesi do aparecimento
das boates e a proliferação de uma legião de bons músicos cuja origem, insuspeitável, esta-
va nas bandas militares as quais, muito ao contrário do que se poderia pensar, não detinham
nenhum poder sobre as noites dos seus instrumentistas. Amparados por boas carreiras mi-
litares, estes músicos inovaram e deram um grande impulso ao nível musical na/da cidade.
Em primeiro lugar porque puderam dedicar-se totalmente ao estudo da música e à técnica
dos seus instrumentos. Disseminaram esta qualidade e deram acesso a todas as novidades
internacionais do momento, especialmente em termos do jazz, aos melhores músicos locais.
E, em relação às boates, seus donos constituíram uma nova categoria empresarial e so-
cial: não eram da “elite” e sim “mediadores” entre as classes sociais, que agora já desbordavam
as separações muito rígidas.
Interessante observar este dado das relações profissionais/musicais de perto na medida
em que elas vão, ao mesmo tempo, delineando a construção do que veio a ser chamado de “o
quadrilátero do prazer”, o espaço onde se concentraram, até os anos 1970 aproximadamen-
te, 35 boates. O “centrinho”, ou como também foi chamado por um cronista, “o triângulo das
bermudas curitibano”, em que maridos, noivos e namorados desapareciam nas noites frias de
Curitiba.
Tudo começou com acontecimentos e ações quase simultâneas envolvendo, logo no iní-
cio, o “grande mediador” da “festa de 25 anos”, Joffre Cabral e Silva, o idealizador da constru-
ção da sede social do Clube Curitibano, e seu papel nos desdobramentos desta primeira ação
empreendedora e mediadora entre as elites, os bancos, os políticos e a burguesia ascendente
do café. Depois da inauguração desta sede, em 1950, sua trajetória envolveu a seguir a criação
do piano-bar Manhattan, em 1954, no Hotel Mariluz, e culmina com a idealização e criação do
Santa Mônica Clube de Campo, inaugurado em 1961.

22 A dissertação de mestrado (op. cit.) da pianista, compositora e pesquisadora Marília Giller traz, também, muitas informações precio-
sas sobre o assunto e período. Há também vários outros artigos de sua autoria, um deles, na realidade, bem sintonizado com nosso tema, e
que, certamente, foi aproveitado por Adherbal Fortes: “O jazz em Curitiba nos anos 50”, publicado no site “Clube de Jazz”, em 2017.

41
Neste sentido, é interessante observar que, ao mesmo tempo em que se encadea-ram
ações e acontecimentos da elite local, elas vão se estendendo no tecido social urbano,
desbordando as iniciativa iniciais, acarretando novos empreendimentos e acontecimen-
tos: a criação da sede do Clube Curitibano, por exemplo, um arrojado empreendimento de
11 andares, trazia no seu bojo, no quarto andar, a boate Mignon, para deleite dos sócios.
Mas, no seu subsolo, foi criado outro ponto noturno, a Caverna Curitibana, no estilo taxi-
-dancing, que veio a tornar-se um ponto de fuga euforicamente concêntrico, uma espécie
de “buraco negro” da alegria, para onde convergiam os melhores músicos da época, suas
bandas, e a classe média ascendente em geral.
No entanto, para melhor expor esta hipótese, seria oportuno retroceder um pouco e
mostrar este “encadeamento” que sugerimos: conta-nos Adherbal Fortes que o moralis-
mo e a linha dura do militarismo do pós-guerra fez com que Eurico Gaspar Dutra deter-
minasse o fechamento de todos os cassinos no país, por volta de 1946. Por um lado, este
acontecimento desmantelou o Cassino Ahu, mas por outro, abriu suas portas para o pri-
meiro “dancing” da cidade e abrigou duas das primeiras orquestras curitibanas: a orquestra
Jazz Manon, e a Colúmbia (1949), como antecedentes do movimento que se seguiria.
Nesta época já existiam alguns clubes, tradicionais, que foram incorporando-se ao
movimento “festivo” da cidade: o mais antigo deles, de 1913, foi a Sociedade Duque de
Caxias, que, no período dos anos 1950 veio abrigar os “Chás Dançantes da Engenharia”, o
Clube Concórdia, de forte tradição alemã, razão pela qual teve seu nome anterior mudado
pelo ostensivo repúdio aos alemães no pós-guerra. Com este nome mudou-se para o Alto
São Francisco em 1938. E o Clube do Círculo Militar, criado em 1939.
De maneira esquemática poderíamos afirmar que se todos os clubes tinham suas or-
questras, uma cidade que vivia “ de baile em baile” logo abriu espaço para as mais famosas
do período: além da Colúmbia, de 1949, a imbatível e duradoura orquestra de Genésio Ra-
malho, a de Osval Siqueira, a 14 Bis, a Guarani e a de Ângelo Antonello, de forte participação
no segundo grande evento desta “festa dos 25 anos”, a comemoração do Centenário de
emancipação do Paraná, em 1953. E, certamente, a orquestra Beppi e seus solistas, um
caso ímpar. Uma trajetória paradigmática.
Tendo chegado a Curitiba em 1946, vindo diretamente da Itália, Beppi começou no
Cassino Ahu, na Orquestra Jazz Manon, e também no grupo musical da rádio PRB-2. Em
1949 passou a tocar na Orquestra Colúmbia. Em 1950 já passou para a boate Oásis, no Ju-

42
vevê, tendo tocado, também no Hotel Mariluz. No entanto, foi na Caverna Curitibana que
teve seu nome em néon, e, durante oito anos (1956-1964) deu vida ao taxi-dancing, uma
atividade que era, também, uma verdadeira escola de música, uma articulação inigualável
de músicos, e o auge musical e hedonista de uma cidade que havia até então vivido “de
baile em baile”, e que agora, finalmente, aprendia a “dançar” com as moças e os tickets da
Caverna.
Esta trajetória dupla, ou seja, a de Beppi e da Caverna, nos parece emblemática porque
ela não apenas atrai e concentra os melhores músicos daquele momento, ironicamente,
no espaço criado pela elite local, mas faz um movimento descentralizador e excêntrico,
espalhando música e músicos por todo o ambiente de lazer noturno da época, não apenas
em direção às boates que se multiplicavam no centro da cidade, mas também aos cafés,
bares, restaurantes e hotéis.
Um movimento de circulação muito indicativo deste “espalhamento” em todo o centro
da cidade, em direção às mãos de uma classe média ascendente, com dinheiro e vontade
de realizar um outro tipo de “festa”, não mais nas mãos exclusivas das elites.
E, na análise que pretendemos encaminhar, se a Orquestra de Beppi e seus solistas
não foi a única, pois na época também brilhavam outras como a de Genésio Ramalho, a
Guarani, a de Ângelo Antonelo, a de Osval Siqueira, e se todas elas faziam bailes ininterrup-
tamente, a demanda maior estava no complexo noturno das boates, as quais não viviam
de “orquestras” no sentido pleno da palavra, mas abrigavam grupos menores que se com-
punham e se dispersavam ao sabor dos acontecimentos corriqueiros e informais do lazer
noturno.
E é justamente nesta “amarração” de trajetórias, biografias e locais que o tecido social
do lazer noturno se adensa e adquire um sentido mais próximo ao que buscamos: aquele
que passa por músicos, pessoas, agentes, motivos, estabelecimentos avulsos e fugazes,
mas adquire um significado mais profundo quando situados em perspectiva.
E qual seria esta perspectiva?
Fundamentalmente aquela que nos é dada pela contextualização histórica, geográfica,
econômica, política e antropológica dos comportamentos, decisões e ações como, por
exemplo, a temporalidade que vai do final dos anos 1940 até o final dos anos 1970, quando
a “festa” acaba por falta de recursos no sentido mais amplo: acaba o dinheiro, as pessoas
que comandavam o processo não conseguem mais avaliar os riscos e perdem, inclusive

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suas próprias vidas, e, acima de tudo, quando o excesso banaliza as expectativas e os
resultados. Mais do mesmo acabou por esvaziar aquilo que dava vida e vigor àquela troca
extensiva de bens e relações, enfim, ao que atribuía sentido ao “consumo” e “distribuição”
dos bens simbólicos.
Mas que, também, registra e analisa as trajetórias de agentes significativos: sobre os
“sargentos músicos”, por exemplo, que causaram tão grande revolução musical na cidade, a
maioria acomodou-se em sua carreira rumo à aposentadoria segura e a vida estável. Alguns
poucos “gênios” trilharam caminhos muito excêntricos: dois deles, Airto Moreira e Raulzinho
do Trombone enveredaram por carreiras internacionais de grande sucesso. Outros se
acostumaram a viver sua maturidade e velhice em oportunos e raros momentos de spotlight.
Enfim, uma perspectiva que atribuía funções, lugar, reconhecimento e dava nome aos
agentes de maneira individual.
A respeito dos locais (boates), das redes relacionais que eram sustentabilidade a esta
trama, vamos nos voltar agora a um trabalho sobre a vida noturna da Avenida Cruz Machado,
de André Wuicik, publicado em 2018, Cruz Machado. Os mistérios da vida noturna de Curitiba.
Dez anos antes do lançamento deste livro, em 11 de março de 2008, O Díinamo, blog
curitibano coordenado por Josiane Orvatich e Terence Keller, publicou um poema de
Rodrigo Madeira que exprime o sentido desta rua, quase-mito, expondo suas “entranhas” de
maneira, digamos, visceral...

Uma rua à queima-roupa


curta, brilhante, sem fôlego [...]
rua-faca, rua-vício
a cruz machado termina
aos pés de uma catedral [...]

No primeiro momento do livro o autor situa o point da Cruz Machado, mostrando


sua localização e características gerais, contrastando o dia e a noite deste território do
“centrinho” da cidade. Durante o dia este “complexo” em nada difere de outras partes desta
região com seu comércio e agitação rotineiros: padarias, açougues, lojas de roupas, materiais
eletrônicos, consultórios, prédios de moradias, órgãos públicos, a valorizada Biblioteca
Municipal.

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Já introduzindo o tema do passado, com um olhar mais amplo e, ao mesmo tempo,
minucioso, Wuicik traça a “trama” das ruas adjacentes que, ao longo dos anos em que se
constituiu a tradição das boates, serviram como rede auxiliar, pontos de apoio deste “com-
plexo lascivo da urbe”: Saldanha Marinho, Visconde de Nácar e Alameda Cabral, principal-
mente. Pequenos hotéis disfarçados, encrustados nos prédios mais antigos, pontos de
trabalho das prostitutas e vendas de drogas.
Sua caracterização deste “centrinho” como as “entranhas” da cidade, o submundo,
aponta para a história das boates que ali existiram, e que marcaram época, ressaltando seu
modus operandi bastante peculiar.
As boates ainda existem, sem dúvida, mas há que considerar o seu modo de produção
nos tempos “áureos” que começaram lá nos anos 1950 e tiveram algumas fases bem mar-
cadas ao longo do tempo.
Mas vamos primeiramente voltar ao passado mais distante.
A construção da Cruz Machado como a “boca do lixo de Curitiba” foi um processo e
este fato é muito interessante para os nossos propósitos comparativos. Vamos usufruir
dos dados do jornalista André Wuicik.
A ocupação da rua começou por volta de 1670, quando foi levantado o Pelourinho, e,
em função da sua proximidade da Praça Tiradentes, foi uma das primeiras ruas a receber
habitantes. Com aproximadamente 650 metros de extensão, foi chamada de Travessa do
Ébano, Travessa do Thesouro e Travessa do Liceu. Uma via, por longo tempo, com um desti-
no “coadjuvante”, diz o autor.
E assim esta rua permaneceu séculos como um caminho muito estreito, com um co-
mércio crescente, muitos imigrantes judeus os quais, por volta dos anos 1960, construíram
ali uma sinagoga.
Mudanças importantes ocorreram e transformaram-na numa avenida de muito mo-
vimento: seu alargamento na gestão de Ivo Arzúa (1962-1967), como também, a transfor-
mação da Rua XV em calçadão, demandando novas vias de circulação no centro, fizeram da
Cruz Machado um corredor de muito movimento e visibilidade.
Tudo começou com a necessidade de “inventar” certo tipo de diversão noturna na
cidade, por aqueles que conheciam a vida com estes prazeres em outras capitais e fora
do país e, certamente, sentiam o desejo desta transformação e o poder de realizá-la com
seus investimentos.

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Pouco a pouco os restaurantes começaram a se transformar em boates, bares foram
sendo adaptados e até certo ponto sofisticados com a iniciativa de empresários “aventurei-
ros” que se compraziam em cultivar a presença de poetas, radialistas, jornalistas e intelectu-
ais boêmios das universidades e das redes de comunicação, principalmente, como rádios e
jornais.
Segundo o autor, antes do advento da Cruz Machado como o principal eixo do diverti-
mento adulto, a cidade já tinha “casas noturnas”, esparsas pelo centro e alguns bairros, inclu-
sive com shows de strip-tease. No entanto, eram de uma qualidade inferior às boates maio-
res, iluminadas com néon e com os shows de famosas atrações nacionais e internacionais
que viriam na sequência.
Enfim, com a “invenção” deste ponto noturno articulou-se um ethos boêmio com nítidas
características de um processo de consumo cultural situado numa zona “ambígua”, entre o
lícito e o ilícito, entre o explícito e o escondido, entre o prazer e a punição, na medida em que
ali era o locus da mistura explosiva e sedutora das drogas, sexo e comportamentos subter-
râneos.
O que começa a se construir a partir dos anos 1950 é um protagonismo dos donos de bo-
ates, com um perfil mais definido e uma carreira social ordenadora e definidora das relações
de consumo de produtos e de influências.
Os donos mais influentes escolhiam, eles próprios, as bailarinas, os músicos, os garçons
e cozinheiros, o cardápio, as bebidas e, de forma indireta, os clientes. Sim, porque eram em-
preendimentos dirigidos às classes sociais mais abastadas, perfeitos connoisseurs da vida
noturna, investidores no ramo.
E mais do que isso, um protagonismo que detivesse em suas mãos a escolha e contrata-
ção de todos os funcionários, músicos, bailarinas, artistas e strip-teasers. Enfim, que tratasse
das relações externas e internas ao empreendimento.
Assim é que também o cronista Aramis Millarch, um dos únicos jornalistas reconhecidos
como o comentador da vida curitibana na sua plena expressão narrativa e informalmente so-
ciológica, nos conta sobre as maneiras pelas quais empresários e elite divertiam-se ao mes-
mo tempo em que ia sendo tecida a trama das notícias da alta e média burguesia nas colunas
sociais dos jornais.
Como ele mesmo escreveu, “as alegres presenças nas madrugadas boêmias, lado a lado
com a publicidade das casas noturnas com fotos de belas garotas, artistas, dançarinas, show

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girls seminuas”, borravam, no nosso entendimento, a fronteira de classes sociais e o ethos
mais estrito de uma burguesia “conservadora”, ou, pelo menos, que a partir deste momento,
estivesse mostrando uma face “dupla”, dissimulada.
Ao mesmo tempo em que as boates se promoviam como espaços de troca, mediação,
consumo e lazer, socialites também se promoviam enquanto pessoas ricas, de bem com a
vida, descontraídas e “modernas”.
Portanto, o que podemos deduzir é que uma boa parte da elite era forte “aliada” deste
tipo de exposição e não se inibia em aparecer nos jornais lado a lado com show girls, strippers,
artistas, neste ambiente exótico para uma burguesia tradicionalmente conservadora.
O que parece interessante salientar das observações do autor do livro sobre a Cruz Ma-
chado é que este “submundo urbano” curitibano foi construído por uma cultura urbana dina-
mizada pelo esbanjamento, pelo glamour, pela inveja, pela competição e brigas num mundo
de relações entre a classe média e alta, de empresários poderosos e muito dinheiro, aliado
ao trabalho ancorado nas regras desregradas do subemprego, da prostituição, do consumo
de drogas, álcool e diversão, enfim, um mundo de prestação de serviços que também se
esforçava por se constituir.
Um estilo de vida que congregava os ricos, poderosos, e a “boca do lixo” num mesmo
local, enfim, um território regido por relações muito particulares. Como disse certa vez um
músico daqueles tempos, Fernando Loko, citado por Wuicik, “todo mundo tem sua cruz. A
minha é a Cruz Machado”.
De fato, muitos nomes conhecidos da música curitibana começaram a se projetar na-
quela época, convivendo com os dramas e as experiências avant garde daquele mundo. To-
cavam para os shows, tocavam música ambiente, tocavam para dançar. Tocavam suas vidas
numa “noite” que ansiava por diversão. A elite se divertia enquanto muitos carregavam suas
“cruzes”, especialmente aqueles que moviam este carrossel de prazeres, esta ostentação
competitiva de egos poderosos: músicos, bailarinas, cozinheiros, garçons, etc.
O que este trabalho de Wuicik acrescenta e relaciona ao que nos apresentou o livro de
Adherbal Fortes, são as relações internas a este mundo por meio de algumas trajetórias dos
donos das boates mais famosas daquele período, o que nos mostra seu estilo de “media-
ção” e colabora com nossa perspectiva comparativa na medida em que complementa a su-
gerida extensa rede de relações de troca daquele período. As boates como subproduto e
rede de apoio para um processo deslanchado pelas elites.

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Senão vejamos: os primeiros que serão reconhecidos como tais foram os irmãos Wendt,
Orlando e Paulo, principalmente o segundo, e, a seguir, Aldo Silvério Cardoso.
Paulo Wendt satisfazia estas características, era querido e bem aceito pela elite, seu
prestígio e seu dinheiro foram os motores daquele início do “círculo dos boêmios” de Curiti-
ba. Comprar a boate Elite (o nome é uma boa indicação do público ao qual se dirigia), na Rua
Marechal Deodoro esquina com a Praça Zacarias e transformá-la na primeira boate famosa
da cidade, a Marrocos, foi o início deste movimento que, como um todo, durou aproximada-
mente 40 anos, cheio de histórias, carreiras mirabolantes e um trágico incidente que marcou
o fim de uma época de exageros.
A partir daí, Paulo Wendt começou a criar uma variedade de boates, sempre para o mes-
mo público: a Cadiz e a Tropical, por exemplo, que ficava no Passeio Público. Variedade para
satisfazer a urgência de “novos lugares”, ou seja, sempre para agradar um “(sub)mundo des-
colado, culto, uma boemia praticamente caricata e impossível nos dias de hoje”.
Concorrentes da Marrocos eram a La vie en Rose e a Caverna, do Clube Curitibano. O fim
da Marrocos foi um trauma social, com o assassinato de Paulo Wendt, em 1966, em decor-
rência de uma briga na qual ele foi envolvido. Uma inesperada e lamentada ocorrência.
Nos anos 1960, duas das boates mais conhecidas estavam localizadas na Rua Barão do
Rio Branco: a Presidente e a Caverna do Clube Curitibano. No início dos anos 1970, mais duas
apareceram na região central: a Bugatti, de Edson Bertoldi, na Rua 24 de Maio esquina com a
Sete de Setembro, e a Moonlight, de Athayde Oliveira, na Rua Sete de Setembro esquina com
a Nunes Machado.
Fora do centro, a boate Quatro Bicos, na região do Cajuru, a primeira, que se sabe, a ser
comandada por uma mulher, a “Maria Japonesa”, talvez tivesse sido inspirada no modelo Ba-
taclan, da novela “Gabriela”, que estava fazendo muito sucesso na televisão em 1975.
Esta época marcou, também, o fim da famosa boate Stardust, cuja história interessante
nos narrou Aramis Millarch em uma de suas famosas colunas: durante a existência da boa-
te Marrocos, de Paulo Wendt, ele também mantinha um restaurante na Praça Osório para
onde convergiam os artistas e frequentadores dos fins de noite. Depois da morte de Paulo
Wendt, a viúva e um sócio transformaram o restaurante numa boate ao estilo da Marrocos,
a Stardust. Permaneceu por 18 anos, mas foi sucumbindo lentamente. Mudou várias vezes
de nome e de donos, mas sempre no mesmo lugar. Acabou nas mãos de um jovem japonês
enriquecido subitamente e falido rapidamente.

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Aldo Silvério Cardoso, a segunda figura emblemática, não era um dândi, da elite,
um bem-nascido, como a maioria dos que o antecederam no ramo. De origem humil-
de, se fez a partir do trabalho de pedreiro especializado em colocação de granitos. Um
graniteiro.
Tendo acumulado um bom capital, começou a investir no ramo, comprando boa-
tes e restaurantes seguida e incessantemente, começando na Vila Parolin, onde aca-
bou por montar sua primeira experiência bem-sucedida, a boate Marrom Glacé, uma
espécie de ensaio geral para o grande show que estava prestes a encenar na Cruz Ma-
chado.
No final da década de 1970, Aldo vai para o centro da cidade, para a Cruz Machado,
e sua estratégia desde o início foi extremamente adequada àquele modo de consu-
mo da vida noturna: seu objetivo não era lucrar com o mercado imobiliário, não era seu
interesse ser “dono” dos imóveis, mas sim usufruir daquilo que a fugacidade destas
relações lhe poderia oferecer. Assim, arrendava tudo o que podia e adaptava ao seu
modo de ver, ser e interpretar o desejo daqueles consumidores: boa comida, bebidas,
mulheres, música sertaneja e gaúcha, muita descontração e ampla festa dos sentidos.
Assim foi com Baila Comigo, Flicks, Ponto Zero, Viva a Noite, o Restaurante Tangará,
mais tarde transformado na Boate Lido. Nesta fase temos no momento inicial, a boate
Viva Maria!, logo depois a boate Metrô, que existe até hoje, e, neste percurso o restau-
rante Gato Preto, que, afinal, resistiu ao tempo e às mudanças de hábitos noturnos da-
quela época, guardando até hoje o elã dos tempos áureos da Cruz Machado.
Este novo “eixo da boemia pesada da cidade”, como diz o autor, a partir do momen-
to em que Aldo imprime sua “marca”, meados para o final dos anos 1970, primou pelo
esbanjamento, pela exposição feérica: as boates eram vistosas, opulentas, chamati-
vas, competitivas. Um novo ciclo dos mesmos investimentos em lazer, prazer, consu-
mo dos excedentes financeiros, que já davam mostras de grande transformação em
comparação com os “anos do ouro verde”, os agitados anos 1950 do sucesso cafeeiro.
Eram espaços enormes que, como diz o autor, competiam com os “bailões” em
movimento e espaço. De gosto popularesco, existiam para exibir seu luxo, suas mulhe-
res e seus frequentadores. De fato, mostravam um ethos muito diferente daquele dos
primeiros tempos: eram lugares que replicavam o “mundo”, e, acima de tudo, estavam
abertos “para todo mundo”. As pessoas queriam estar ali para serem vistas.

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Na realidade, diferentemente das boates de Paulo Wendt que desde o início de suas
atividades apontavam para um público mais socialite, mais glamuroso, mais exigente, o que
se desejava agora era um consumo alargado e popularesco.
Há que fazer uma observação interessante: aproveitando este começo deveras “ar-
rebatador” da Cruz Machado: muitos outros points, pequenos, médios, foram surgindo
nas frestas desta noite, neste pedaço da cidade, para todos como, por exemplo, o Waldo
X-picanha, o Amarelinho e o jazz “madrugueiro” do Saul Trumpet Bar, entre outros de menor
apelo para esta boemia.
Muitas outras presenças formavam esta cadeia produtiva e consumidora: gays e tra-
vestis passaram a fazer parte das equipes de shows, ensaiando e coreografando as garo-
tas que se exibiam nas boates, assim como eles próprios passaram a fazer seus próprios
shows. Esta incorporação abriu as portas para uma maior aceitação tanto destes profis-
sionais como de seu público, e facilitaram acordos com a polícia induzindo a um tratamento
mais ameno no controle das ruas.
Por outro lado, a abertura destas boates a uma população mais jovem e de classe mé-
dia mais periférica teve, por outro lado, um grande motor de propulsão: o sexo com maior
facilidade. Assim, lazer e sexualidade andavam pari passu com a expansão da vida noturna.
Outra presença considerável eram as drogas, especialmente a maconha e a cocaína.
Sem muitos riscos, seu consumo corria solto dentro das boates, enquanto a polícia con-
trolava o trottoir das prostitutas de rua, e os traficantes nos becos mais escuros e calçadas
afastadas do burburinho das casas noturnas.
Qual o sentido destas pontuações?
Em primeiro lugar, que existem determinações muito concretas para a conformação
do tecido social, e neste, para tudo aquilo que nos parece ser apenas fruto das individuali-
dades e dos desejos particulares.
Em segundo lugar, se pudéssemos narrar com palavras o que um caleidoscópio ima-
gético e imaginário pudesse realizar diante dos nossos olhos diríamos que o mesmo girar
do tempo e dos elementos dispostos no pequeno cone da vida produziram aspectos cor-
relatos e muito díspares. Giramos, e ele nos mostra imagens diferentes com os mesmos
elementos, sempre mutáveis e mutantes.
Enquanto os “25 anos de festa” da elite curitibana criaram suas condições de produção e
reprodução, o mesmo movimento em seus elementos constitutivos e suas determinações

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concretas produziu o que poderia ser pensado como o avesso, o forro necessário de
uma roupagem de dupla face: as boates que proliferaram vistosamente nesta fase
serviram de rede de apoio para o desbordamento frenético do excesso de desejo e
dinheiro, rumo à ocupação dos espaços alternativos da cidade, todos concentrados no
seu coração: o centro.
Há um contraponto à nossa espera: o que poderia aproximar e/ou afastar estes es-
paços em seus lugares e tempos diferenciados do nosso Baixo que nos permita iluminar
tudo aquilo que, estando tão próximo de nós, parece tão mais desconhecido?
Em que medida estes acontecimentos, tempos, lugares e relações poderão lançar
alguma luz sobre o que acontece, hoje, na noite do Baixo São Francisco, destacando suas
condições de produção e representação?
Em primeiro lugar, é importante observar que, enquanto o centrinho dos anos áure-
os das boates e sua vida noturna foi uma construção determinada, objetivada, de uma
ocupação direcionada por fatores primordialmente comerciais, o Baixo São Francisco
aparentemente se transformou num reduto de lazer noturno como derivação, como
uma espécie de decantação, de sobras e aproveitamentos, em vários sentidos, concre-
tos e metafóricos. Sentidos oriundos de sua condição histórica, portanto, concretos em
sua materialidade arquitetural, e outros, aparentemente impalpáveis, da mistura incon-
trolável dos desejos dos grupos que teimavam em tê-lo.
Aparentemente não houve uma intenção clara e determinada de fazer surgir ali o
que acabou por acontecer. Certamente muitos discursos institucionais apontavam
para a conformação de um reduto de lazer, de turismo e investimentos que valorizas-
sem a cidade. Mas o que aconteceu, realmente?
Quase como a borda de uma dobra do passado, revendo a história do aparecimento
de suas ruas principais e do seu todo desde os seus primórdios, vai ressurgindo diante
de nós uma espécie de casualidade funcional, involuntária, quase mítica, baseada em
fatores muito concretos como, por exemplo, o fato de ser reduto “histórico”, região de
tombamentos e preservação arquitetônica, um lugar da memória urbana. E esta borda da
dobra do tempo teima em desbordar.

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RUÍNAS SÃO FRANCISCO
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

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TRAJE
ETNO
FICOS
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54
ETOS
OGRÁ-
S
A SÃO FRANCISCO É ESTREITA, UMA VIA
DE PEDRAS PARA UM CARRO. PARTE DO
CALÇAMENTO SE DIVIDE ENTRE O ESTILO
HISTÓRICO E O ATUAL. NÃO TEM FIAÇÃO DE
LUZ APARENTE. TEM INÍCIO NO CRUZAMENTO
COM A RUA PRESIDENTE FARIA.
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Nesta esquina estão presentes um prédio alto em situação de abandono e ao lado,
a Praça de Bolso do Ciclista. A primeira quadra da rua é composta por basicamente duas
edificações, que em seu embasamento comportam muitas portas, que hoje em dia se en-
contram fechadas. Bares como o “Samba, Pastel e Birita”, o “Negrita”, o “Canto do Caita”
fecharam durante o período da pesquisa, e o “Camaleão Cultural” mudou de local para o
outro lado da rua. Foi aberto um novo estabelecimento de nome Caffeine, na esquina com
a Riachuelo, e, mais recentemente, outro bar do lado de onde era o “Negrita”, o “Corona”.
No pavimento superior do lado direito de quem sobe a rua está a escola CEAD Poty La-
zzaroto, Esta edificação é uma Unidade de Interesse de Preservação (UIP). A sensação
para quem olha no embasamento é que existem muitos estabelecimentos. Do outro lado,
a mesma coisa embaixo, muitas portas, em sua maioria fechadas, e em cima, um só bloco
homogêneo de construção. No tempo em que a música era permitida nas ruas havia uma
ocupação bem maior de pessoas, as calçadas e até mesmo a via de carros era palco para
dançarinos, pessoas de diferentes mundos que ali se encontravam. Posteriormente a este
período, passou a ser exigido o alvará para música ao vivo, e os bares foram intimados à
contratação de músicos a portas fechadas, com uso de antecâmara para que o som não
se propagasse para o ambiente externo. A rua foi perdendo seu movimento, e hoje em dia
encontra-se quase vazia, com exceção dos traficantes e usuários de drogas, perambulan-
do num vai e vem contínuo. Os bares, consequentemente, foram fechando suas portas.
Um caso interessante de (re)ocupação foi um grupo de mulheres negras, que se reunia
frequentemente com suas araras de roupas comerciando na calçada em frente às portas
fechadas dos bares. Um coletivo de brechós que, até então, realizavam suas compras vir-
tualmente, e passaram a ocupar o espaço público como estratégia de venda. O espaço
onde antes era a entrada de um bar, agora estava sendo ocupado por mulheres negras que
traziam malas e araras de bairros mais afastados da região central, fazendo uso do trans-
porte público, para ali conquistarem seu “espaço”. Com o tempo, e o sucesso das vendas, o
coletivo hoje se apropriou de uma das portas que então se encontravam fechadas, e agora
está instalado em uma loja física. A arte urbana é muito presente na rua: o graffiti e as tags.
A rua se apresenta quase como uma arqueologia contemporânea, com camadas de assi-
naturas, mensagens, desenhos.

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PRAÇA DE BOLSO DO CICLISTA
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

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RUA SÃO FRANCISCO
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

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RUA SÃO FRANCISCO
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

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ABRIL DE 2018
ABRIL DE 2018
Era sexta-feira por volta das 19 horas quando iniciei meu
Era sexta-feira por volta das 19 horas quando iniciei meu percurso pelo percur
Baixoso pelo Baixo
São Francisco. Desci no ponto do ônibus atrás do Teatro
São Francisco. Desci no ponto do ônibus atrás do Teatro Guaíra e atravessei Guaíra ae atravessei a
praça Santos Andrade. As escadarias do prédio Central
praça Santos Andrade. As escadarias do prédio Central da Universidade da Univer sidade Federal
Federal
do Paraná funcionavam como um tipo de arquibancada
do Paraná funcionavam como um tipo de arquibancada pública na Praça, pública na
aco- Praça, aco-
lhendo as pessoas que compartilhavam aquele espaço
lhendo as pessoas que compartilhavam aquele espaço com a feira noturnacom a feira
de noturna de
inverno, consumindo pastéis, pinhão cozido embalado
inverno, consumindo em
pastéis, pinhão cozido embalado em saquinhos desaquin papelhos
e de papel e
quentão em copos plásticos.
quentão em copos plásticos.
Dali,
Dali, subi pela Ruasubi pela Rua São Francisco, indo até quase o cruzamento com
São Francisco, indo até quase o cruzamento com a Barão do a Barão do
Serro Azul e, no bar Nakarocha, comprei uma cerveja. O
Serro Azul e, no bar Nakarocha, comprei uma cerveja. O atendente no atende nte no balcão,
balcão,
que parecia ser também o proprietário, tinha traços asiátic
que parecia ser também os. Ases-
o proprietário, tinha traços asiáticos. As televisões televisões es-
tavam ligadas e o assunto era futebol. As pessoas estava
tavam ligadas e o assunto era futebol. As pessoas estavam espalhadas, m espalh
algumasadas, algumas
sentadas em banquetas no balcão, outras ocupavam as
sentadas em banquetas mesas
no balcão, outras ocupavam as mesas de dentro dode dentro do bar
bar
ou apoiadas nas janelas, formavam grupos de conversas
ou apoiadas nas janelas, com outros frequenta-
formavam grupos de conversas com outros frequenta-
dores do lado de fora, na calçada.
dores do lado de fora, na calçada.
Sentei degrau da porta do edifício ao lado, que estava
Sentei no degrau danoporta do edifício ao lado, que estava fechado. Dofechad
meu ladoo. Do meu lado
um casal e um skatista conversavam. Não conseguia ouvir
um casal e um skatista conversavam. Não conseguia ouvir muito a conversa muitoquea conversa que
apenas se elevou quando chegou mais um conhecido deles
apenas se elevou quando chegou mais um conhecido deles e falaram, então, e falaram
em , então, em
ir a uma festinha “cheia de meninas gostosas”...
ir a uma festinha “cheia de meninas gostosas”...
Desci a rua novamente em direção à primeira quadra, por
Desci a rua novamente em direção à primeira quadra, por onde havia começado onde havia começado
a caminhada, quando fui abordada por um vendedor de
a caminhada, quando fui abordada por um vendedor de rosas. Falei em rosas.
tomFalei
de em tom de
brincadeira que não tinha nenhum “crush” para quem dar
brincadeira que não a rosa
tinha nenhum “crush” para quem dar a rosa e seu amigoe seu amigo
retrucou que eu devia comprar para mim mesma. As piadas
retrucou que eu devia comprar para mim mesma. As piadas continuaram, contin
eu uaram, eu
sorri e fiquei por ali um tempinho, conversando com o vende
sorri e fiquei por ali um tempinho, conversando com o vendedor, seu amigo, dor, um
seu amigo, um
skatista e mais alguns jovens numa rodinha, enquanto eles
skatista e mais alguns jovens numa rodinha, enquanto eles fumavam maconha. fumavam maconha.
Falamos sobre as rosas, sobre a diversidade de pessoas
Falamos sobre as rosas, sobre a diversidade de pessoas que decidem que decidem comprar
comprar
uma rosa e porque o fazem: desde aqueles que estão apaixo
uma rosa e porque o fazem: desde aqueles que estão apaixonados, aos que nados, aos que
querem se desculpar por algum ato impensado, até aquele
querem se desculpar por algum ato impensado, até aqueles que apenas s que apenas querem
querem
ajudar o vendedor. Falamos, também, sobre o preço das
ajudar o vendedor. Falamos, também, sobre o preço das rosas: quando rosas: quand
são ven- o são ven-
didas no Baixo, custariam cinco reais, já no Batel, dez. Come
didas no Baixo, custariam ntou-s
cinco reais, já no Batel, dez. Comentou-se, também,e, também,
sobre a quantidade de pessoas que trabalham com venda
sobre a quantidade de pessoas que trabalham com vendas ambulantes s ambul antes na noite
na noite
da região e como a maioria não considera esta atividade
da região e como a maioria não considera esta atividade um trabalhoum trabalh
“digno”. o “digno”.
Trocamos ideias sobre “arte urbana”, e ele estava seguro
Trocamos ideias sobre sobre
“arte urbana”, e ele estava seguro sobre o quanto o quanto todas
todas
aquela “camadas” de tinta são arte. Cada um deles tem
aquelas “camadas”s de tinta são arte. Cada um deles tem uma tag e asuma tag e as paredes
paredes
dos edifícios são suas telas. Assim, suas pinturas e desen
dos edifícios são hos são “assinaturas”
suas telas. Assim, suas pinturas e desenhos são “assinaturas”
divulgando seu estilo e nome.

62
Fui convidada por alguns deles a subir para a Praça do Gaúcho, onde existe a pista
de skate, mas resolvi ficar mais por ali mesmo enquanto alguns se demoravam a
decidir. Logo chegou mais outro parceiro, que vende “sedas” grandes e ficamos
por ali conversando.

Fui saindo lentamente. Não me sentia à vontade ali sozinha, na quadra entre a
Presidente Faria e a Riachuelo. Com a chegada de uma amiga, entramos em um
dos bares. Pedimos uma cerveja e ficamos curtindo um “ juke box” que tocava
preferencialmente funk. A mesa de bilhar estava vazia naquele momento. Encos-
tada no balcão, fiquei conversando um pouco com a bartender, que era, também, a
proprietária.

Ela nos contou que o movimento variava bastante, pois o consumo decorria mais
dos estudantes das instituições ao redor, e que, por isso tudo, tinha que tomar
muito cuidado com os traficantes para que não escondessem drogas dentro do
seu bar: numa batida policial ela poderia ser acusada de cumplicidade. Falando
sobre sua nova iniciativa, a proprietária disse que, embora estivesse reutilizando as
antigas instalações, ela oferecia uma nova “tematização”: outras bebidas, a deco-
ração e a maneira como as pessoas passariam a usar este “novo” espaço.

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Ouvir e refletir. Anotar. Este é o modus operandi da etnografia: como seria esta “nova”
maneira de “usar” este “novo” espaço? Perceber esta e outras tantas “maneiras” de usar os
bares e as ruas seria um desafio e uma longa caminhada.

A RUA SÃO FRANCISCO,


EMBORA TÃO CURTA, NOS
PRENDEU POR UM LONGO
TEMPO. PARECIA QUE NÃO
CONSEGUIRÍAMOS SAIR DALI
E SEGUIR ADIANTE.
As duas primeiras e únicas quadras da Rua São Francisco, saindo da Presidente Faria
em direção ao Largo da Ordem concentraram por um bom tempo nossa atenção. Cami-
nhando por ali no primeiro semestre de 2018, aconteceram outras anotações interessan-
tes. Entrar numa “rua” com intenções etnográficas não é como fazer um “passeio” por ela.
Significa entrar no seu fluxo de vida, na sua pulsação, e tentar acompanhar este movimen-
to, para que sejam geradas as interpretações.

64
Pessoal,
Creio que não soubemos nos expressar num post anterior, por isso
deletamos. Pedimos desculpas a quem possamos ter ofendido.
Não foi nossa intenção.
A falta de habilidade com as palavras fez com que não tenhamos
sido totalmente claros, e deixado abertos espaços para uma
interpretação que não reflete o que quisemos dizer. Seguimos de
braços abertos a toda la gente nesses nossos últimos dias na São
Francisco.
Saludos a todos.
Bar Negrita

65
MAIO DE 2018
[...] no dia 20 de maio, um domingo de Pentecostes, nos encontramos às 13
horas na Rua São Francisco.

As redes sociais haviam anunciado e convidado grupos de amigos e frequenta-


dores para uma festa “dupla” de encerramento das atividades de alguns bares
da rua e, ao mesmo tempo, outra comemoração da abertura de outro bar na
mesma quadra, na esquina com a Riachuelo. Seria uma festa coletiva. Muito
estimulante para observarmos este fluxo de abre e fecha dos bares que, desde o
início, tornou-se uma questão da nossa pesquisa.

Como era domingo e feriado, os bares e lojas estavam todos fechados. Apenas
o bar Samba, pastel e birita tinha meia-porta aberta.

Durante a tarde, o movimento imaginado pelos espectadores do evento via


redes sociais e a ideia de que ele “tomaria” a rua desde às 11 horas da manhã não
parecia se efetivar. Fomos para lá com a câmera de filmagem e a equipe toda.

Não sabíamos que um conhecido bar havia fechado no início de maio, no mes-
mo dia em que havia sido postada uma longa mensagem no Facebook, explican-
do as razões porque estavam saindo da São Francisco e fechando o bar ali. Não
sabíamos disso.

Ficamos sabendo naquele domingo sobre a repercussão daquela mensagem


de “despedida”, e das acusações de racismo e preconceito que ela despertou. E
agora, recontando nosso trabalho de campo, resolvemos publicar parte daquela
mensagem para que faça sentido no conjunto das observações etnográficas.

Nossa equipe de filmagem, ainda desconhecendo a situação preexistente,


discutia sobre as possíveis tomadas naquele início de tarde, e era acompanhada
pelo olhar atento de um rapaz de aproximadamente 25 anos, parado na frente
de um dos bares fechados. Logo percebemos que era o traficante “responsável”
pelo dia, e, para saber mais sobre nós se aproximou para pedir “brasa”.

Começamos as filmagens de algumas fachadas e o Samba, pastel e birita abriu


suas portas. Naquele domingo, recebia alguns clientes para o almoço, mas sem
música ou qualquer clima de “festa”.

No mesmo instante, o dono do brechó de roupas localizado em frente ao bar,


muito à vontade ainda de pijamas, arrumou a frente da loja e começou a lavar a
calçada. Poucos transeuntes circulavam por ali, mas sem parar. O único comér-
cio ativo naquele momento era o do traficante.
66
Com a chegada do restante da equipe de pesquisa resolvemos comer pastel como “almoço”, co-
mentando que seria a primeira e última vez que degustaríamos tal iguaria daquele lugar...

Logo um morador de rua se interessou pela filmagem e com a autorização da equipe começou a
“brincar” com o equipamento. O “encantamento” durou um tempo significativo, e ele ficou cerca
de meia hora conversando conosco e fazendo “suas filmagens”. Este fato também “relaxou” o
traficante que, com uma aparente tranquilidade, não tirava os olhos de nós, controlando nossas
filmagens e ouvindo nossas conversas, mesmo à distância. Todos nós ficamos mais tranquilos.

Como comentado por todos os que “habitam” aquela rua, o maior movimento se dá por causa dos
traficantes, sempre à disposição e à vontade para oferecer um “verdinho” e esconder sua merca-
doria nos vãos da arquitetura do local, nos bueiros, nas juntas dos paralelepípedos, nas frestas e
ranhuras de um edifício histórico qualquer. Seus “clientes” são estudantes, gente da classe média,
comerciários, passantes não identificáveis e, também, “alternativos”.

Pouco antes das duas horas começaram a chegar algumas pessoas no Samba..., mas ainda de
forma tímida.

A Prefeitura também realizava um evento ocupando a Praça de Bolso do Ciclista, o “domingo de


bolso”, que teria uma apresentação com um “sanfoneiro contador de causos”. Além de um equipa-
mento básico de som e um banner institucional, a ocupação institucional havia providenciado três
banheiros químicos.

Quando a apresentação começou não havia mais do que 10 pessoas, e quatro eram da Prefeitura.
Os donos de bares ao redor, que já começavam a abrir, disseram que esta tentativa da Prefeitura já
vinha acontecendo há alguns meses, mas de forma irregular, mês sim, mês não.

O movimento em geral permaneceu fraco até mais ou menos às 15h30, quando decidimos sair
dali e dar uma olhada no bloco de carnaval que sairia do Largo da Ordem, precisamente do “cavalo
babão”. O evento anunciava uma reunião de vários blocos de carnaval da cidade, juntos pela causa
LGBTI: uma reversão “carnavalesca” num momento de festividade religiosa (Dia de Pentecostes).

Por volta de 50 pessoas estavam na concentração, das quais umas 15 eram dos próprios blocos,
integrantes e músicos. Um dos estandartes estampava o nome de um dos blocos, Segura o Cu
ritiba..., e o outro, as cores LGBTI.

O grupo começou a descer lentamente em direção à parte baixa do Largo da Ordem, já com
música, tocando axés dos anos 1990 e marchinhas carnavalescas clássicas. A Feirinha do Largo já
estava praticamente toda desmontada e o bloco parou no chafariz em frente à Casa da Memória,
ficando por ali mesmo. Algumas outras pessoas se juntaram a eles, mas o número de participantes
permaneceu o mesmo por mais ou menos uma hora.

Por volta das 17 horas retornamos à Rua São Francisco para observar o andamento da festa de
“encerramento” dos bares. A rua já estava tomada de gente. Além do pastel e birita... e do brechó,
outros bares também tinham aberto suas portas, seguindo o movimento da rua. Um deles era o
Camaleão Cultural, inaugurado há apenas 45 dias, e que, assim como outros bares recém fechados
na mesma rua ofereciam um ambiente voltado a um consumo mais dirigido, com um cardápio de
chopes artesanais e comidinhas especiais. O dono estava preocupado em vir a ser, a partir daquele
67
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68
Nesta primeira quadra, há uma diversidade de uso quando olhada na parte inferior, nas portas aber-
tas, fechadas ou à espera de novo projeto de bar, de ocupação. Ali já estiveram outros bares, uma bicicle-
taria e, há mais de 20 anos, a parte superior do lado direito de quem sobe a São Francisco em direção à
Riachuelo, abriga uma escola de ensino fundamental para jovens e adultos a qual, a partir de 1998 passou
a chamar-se CEAD Poty Lazzarotto. Uma escola com mais de 3 mil alunos, funcionando nos três perío-
dos, convivendo com inúmeros problemas dentro e fora de suas instalações. O que podemos apreender
e aprender com esta quadra?
Assistindo recentemente a um documentário acadêmico, de alunos de Sociologia da Universidade
Federal do Paraná, do Departamento de Ciências Sociais sobre a Escola Poty Lazzarotto, pudemos ava-
liar, mediante o olhar juvenil deste trabalho, o movimento colorido e descontraído da entrada da escola,
num dia comum.23
O título do documentário, Travessias, já indica sua linha de abordagem, seu recorte, privilegiando o
lado positivo das oportunidades que aquela “congregação” diversa, heterogênea e multicultural significa
num mundo de adversidades para o crescimento humano. Os depoimentos colhidos revelam trajetórias
interrompidas de jovens brasileiros e de outros países latino-americanos, todos tolhidos por inúmeros
problemas sociais, familiares, subjetivos e intersubjetivos. Em nenhum momento este documentário su-
gere problemas que a escola teria pela sua localização nesta rua.
No entanto, em entrevista concedida pela direção da escola pudemos tomar conhecimento de al-
guns deles, graves e perturbadores para a manutenção deste coletivo cuja instalação antecede em mui-
tos anos qualquer plano de revitalização e reocupação que se tenha destinado à região.24
Ou seja, a Escola Poty Lazzarotto, com sua presença institucional, educacional, social e concre-
ta, está ali há muito tempo a despeito das dificuldades que enfrenta.25 E não são poucas: segundo este
depoimento, a mudança da rua começou há uns quatro ou cinco anos, quando teve início o projeto de
ocupação e reforma do espaço de canto na esquina com a Rua Presidente Faria, ou, a Praça de Bolso do
Ciclista, ligado ao movimento da “bicicletaria cultural”.

23 Documentário “Travessias”, realizado por alunos do PIBIC, UFPR, Departamento de Ciências Sociais, disciplina de Sociologia, 2016, direção Julia Paes.

24 Entrevista concedida pela Diretoria da Escola, em junho de 2018.

25 Esta escola faz parte do movimento de criação das escolas de supletivo, dos anos 1980. Em 1997 passou a funcionar com blocos de disci-
plinas atendendo coletivos de alunos, mantendo o supletivo individual. Em 1998 passou a chamar-se CEAD Polo Poty Lazzarotto.

69
RUA SÃO FRANCISCO
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

70
Neste início, quando a intenção era apenas a de promover a “mobilidade urbana” com o
uso das bicicletas, já trazia problemas por causa do barulho, com a reunião de muitas pes-
soas muito próximas da escola, e sua aglomeração à sua porta. Mas o que acabou acon-
tecendo na sequência foi piorando a situação desta convivência espacial: outros grupos
foram sendo atraídos por este movimento, especialmente os traficantes de drogas.
O que antes era um comércio comum foi sendo substituído por barzinhos, lanchone-
tes e pequenos restaurantes. Esta situação, por sua vez, trouxe a música na rua e as pes-
soas bebendo livremente nas calçadas, falando cada vez mais alto e descontraidamente. E
a droga encontrou um terreno fértil, inclusive entre os alunos da escola que, a partir desta
situação, já começaram a perder aulas, a ficar perambulando por ali.
Como evitar?
Desabafa a diretora: “era como se a escola não existisse... nunca tivesse existido ali...”.
As reclamações eram inócuas.
A entrevista denota uma consciência do lado positivo de uma convivência cultural
aberta e dinâmica, especialmente no que se refere à presença dos integrantes da antiga
“bicicletaria cultural”, que passavam filmes ao ar livre. Precisavam da “autorização” da esco-
la para fazer as projeções, e isso dava trabalho. Aos poucos desistiram, saindo dali. E acaba-
ram ficando aqueles que gostam de beber e de se drogar, afirma a diretora.
Os estudantes noturnos começaram a ficar com medo de vir, a escola perdeu muitos
alunos deste turno, especialmente. Ampliou-se a rejeição, muitos pais passaram a se pre-
ocupar com a presença das drogas e retiraram seus filhos.
As reclamações e pedidos de policiamento se intensificaram, mas a presença da polí-
cia foi sempre tímida e ineficiente. Ocasional, acima de tudo.
Seu relato reforça nossa percepção de que barzinhos abrem e fecham ininterrupta-
mente, mas que a “freguesia” vem permanecendo a mesma. E, de maneira indireta, o tráfi-
co de drogas começou a “entrar” na escola. Deste momento inicial em diante passou a ser
necessária uma vigilância contínua para que os traficantes não passassem a utilizar as de-
pendências da escola por meio de estudantes que começaram a agir como coadjuvantes
dos traficantes escondendo a droga dentro da escola. Continua a ser um risco contínuo.

71
Segundo informação da Diretora, há indícios de que muitos se “matriculam” para usar esta
prerrogativa para vender droga dentro da escola e/ou escondê-la nas suas dependências.
De 2012 até 2017, diz ela, o movimento veio enfraquecendo. O policiamento mais os-
tensivo em 2017, resultado da ação das mídias a respeito da região, e da repercussão deste
alarme nos órgãos públicos, fez com que esta primeira quadra da rua sofresse um esvazia-
mento durante alguns meses. Neste ínterim aconteceu o fechamento de alguns bares da
rua.
No entanto, relata nossa entrevistada, a música está voltando, e com ela, a presença
dos jovens na rua, bebendo e conversando alto, gargalhadas e gritos. O policiamento vem
acontecendo sistematicamente durante o dia, pela Guarda Municipal, mas à noite o movi-
mento está reacendendo.
Falamos sobre a questão dos alvarás como maneira de controlar a relação entre a es-
cola e o movimento dos bares. Em primeiro lugar ela afirmou que esta questão parece não
ser levada muito a sério. Em segundo, sua maior queixa seria a de que num espaço onde
existe uma “escola”, este tipo de atividade não deveria existir. Apenas comércio diurno
como lanchonetes, restaurantes, lojas, que fecham à noite. Como ela afirma, “a escola não
pode sair dali...” e, além disso, a razão do seu sucesso ao longo de tantos anos se deve à sua
localização: os terminais e a proximidade com outros centros de estudo como o colégio
Estadual do Paraná, a Universidade Federal do Paraná, entre outros. Sem dúvida há uma
grande incompatibilidade no compartilhamento deste espaço.

72
RUA SÃO FRANCISCO
ANO 2020 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

73
OS BARES DA RUA SÃO FRANCISCO
E O CAMALEÃO CULTURAL:
UMA “GENEALOGIA”?
O manifesto de “fechamento” de um conhecido bar suscita algumas considerações que
podem sugerir parâmetros de avaliação do panorama da contínua (re)ocupação do painel de
bares, lanchonetes e pequenos restaurantes desta região do “Baixo”. Por enquanto, estamos
na primeira quadra da Rua São Francisco.
O manifesto do bar:

Nunca fizemos textão, mas dessa vez se faz necessário, chegou


o dia de fecharmos as portas do Negrita da Rua São Francisco.
Decisão demorada, doída, cansada! Mas decisões tomadas são
sempre libertadoras... que nos abrem para novos horizontes.
O Negrita continua, o nosso desejo em servir bem por um preço
honesto para toda la gente! continua, mas o projeto da Rua São
Francisco é um ciclo que se encerra num misto de emoções.
Esse pedacinho nos trouxe muita alegria, mas também muita dor
e acima de tudo muita reflexão e sempre terá um lugar especial
no nosso coração.

74
Nunca foi lorota, sempre acreditamos que poderíamos contribuir
para uma renovação da forma de uso desta parte da cidade!
Sonhamos com uma transformação que vai além da
comodidade dos shopping centers e seus estacionamentos,
sonhamos com a ocupação do espaço público, com o uso da
calçada mais do que do asfalto, fazendo o centro da cidade
nosso bairro.
Sempre houve muitos obstáculos: a falta de apoio do
poder público, a alta criminalidade, questões financeiras, a
intransigência de quem não quer que nada mude nunca!
Mas nenhum obstáculo foi maior que a incapacidade de
convivência entre as diferentes classes sociais. Sem hipocrisia,
o grande problema aqui nunca foi dividir calçada com traficante,
mas certamente com os adolescentes da periferia. É uma triste
constatação da nossa própria limitação social!
Além de todos os problemas comuns a grandes aglomerações
como geração de lixo, barulho intenso e constante,
comportamento antissocial derivado do excesso de uso de
álcool e drogas, coloca aí no mix a disputa na ocupação do
espaço público entre a classe média branca e a parda da
periferia.
Rolam inúmeros conflitos e após cada um deles saímos um
pouco mais enfraquecidos, incrédulos e desacreditados.
Agora entendemos porque sempre foi muito dolorido escutar:
quando abrir em outro lugar eu vou!
Fechar as portas é uma confissão de que falhamos na ocupação
do centro da cidade. Nossa ideia de uma gentil gentrificação
ainda é um discurso que precisa de tradução para o dia a dia e
que ainda temos que trabalhar muito para isso. Assim, seguimos
trabalhando!

75
Em primeiro lugar, sua “adesão” a um projeto de ocupação da São Francisco ba-
seia-se numa ideologia da “boa” revitalização, da construção do “nosso” bairro no
centro da cidade. De onde vem esta ideologia? Teria uma origem? E mais, o adjetivo
“nosso” refere-se a que protagonistas? E em que sentido(s)?
Talvez não necessariamente este adjetivo possessivo signifique um lugar para
morar, embora muitas pessoas morem por ali. Esta “ocupação”, ao que tudo indica,
não trata desta dimensão, mas supõe, no seu aspecto discursivo, um espaço a ser
redefinido, à espera de novos desbravadores, conquistadores do incógnito, do vazio, do
domesticável.
Ora, esta crença trouxe muitos obstáculos. Crescentes, pelo depoimento.
E veio, portanto, a desistência pela incapacidade de vencê-los.

“(para nós...) a Rua São Francisco é um ciclo


que se encerra num misto de emoções”

O motivo da desistência vem quase como um pedido de compreensão:

[...] sempre acreditamos que poderíamos contribuir para uma renovação da for-
ma de uso desta parte da cidade! [...] Sonhamos com a ocupação do espaço pú-
blico, com o uso da calçada mais do que do asfalto [...].

Dentre os muitos motivos citados para esta “desistência” estão a falta de apoio
do poder público (não especificado e em meio às atividades de ações de revitalização
da rua e de outros lugares), a alta criminalidade (drogas? Crimes violentos? Assaltos?),
questões financeiras, e a intransigência de “quem não quer que nada mude, nunca”
(quem?).
Esta estratégia narrativa, aparentemente sentindo sua própria insustentabilida-
de, acaba por resvalar para o único “gargalo” das aflições:

[...] sem hipocrisia, o grande problema aqui nunca foi dividir calçada com trafican-
te, mas certamente com os adolescentes da periferia.
É uma triste constatação da nossa própria limitação social!
A “culpabilidade” difusa do início da explicação vai se afunilando em direção ao insupor-
tável de uma convivência específica, sobre a qual há nítida consciência:
O caso deste conhecido bar é, na verdade, um testemunho vivo das contradições que
vieram surgindo desde que todo o processo de “revitalização” do Centro Histórico teve início
em 2006, com o programa “Marco Zero”.
No entanto, com o plano do “Novo Centro”, os mesmos objetivos que estimularam a
ocupação do Centro Histórico acabaram por criar todos os seus crescentes problemas:

[...] além de todos os problemas comuns a grandes aglomerações como geração de lixo,
barulho intenso e constante, comportamento antissocial derivado do excesso de uso
de álcool e drogas, coloca aí no mix a disputa na ocupação do espaço público entre a
classe média branca e a parda da periferia.

O plano como um todo buscou promover o uso e a ocupação democrática dos espaços
urbanos de forma a propiciar a permanência da população residente e a atração da popula-
ção não residente, ações integradas que promovessem a reabilitação urbana e funcional, a
diversidade social, a identidade cultural e a vitalidade econômica da área central.
Teve como alguns objetivos:
• Ampliar e diversificar o movimento de usuários;
• Consolidar a área central como centro turístico e de lazer;
• Assegurar a preferência pelo deslocamento de pedestres e veículos não poluentes;
• Melhorar a qualidade do patrimônio paisagístico histórico e cultural.
Na realidade, a história de preservações e cuidados com o patrimônio histórico vêm
desde muito tempo, desenvolvendo-se como uma concepção de “cidade”. A partir de 2004,
foram criados planos setoriais e regionais para o planejamento urbano. Os planos setoriais
consistiam em transporte, sistema viário, patrimônio histórico, meio ambiente, dentre ou-
tros. Com a criação dos planos regionais foi criada a Regional Matriz, que contempla a área
central da cidade.
Foi a partir deste momento que a concepção de um Plano Diretor teve como diretriz a
revitalização da área central, inclusive com o incentivo à moradia no centro. Foi realizado um
diagnóstico detalhado e abrangente da área central, baseado nos planos setoriais de trans-
porte, sistema viário, patrimônio histórico, meio ambiente, e levantamentos como a situa-
ção econômica e perfil da população.
A partir deste diagnóstico, surgiram propostas e programas para intervenções na área
central, como o programa Marco Zero, o Novo Centro e o atual Rosto da cidade. Todos
estes são programas de atuação institucional no centro da cidade, na sua parte “histórica”.
Em 12 de janeiro de 2015 foi publicado um diagnóstico do centro da cidade feito pelo
Conselho de Arquitetura do Paraná (CAU) e sua conclusão sobre a necessidade de sua “re-
vitalização”. Na realidade esta discussão vem de muito antes, e haveremos de retomar o
assunto.
Aqui vamos nos ater ao ano de 2015, por razões metodológicas da nossa pesquisa.
Neste editorial do CAU concluiu-se que é a economia que determina “o perfil do centro
das grandes cidades” (Navolar, J. D., presidente do CAU/PR) a partir de algumas deter-
minações: a classe média motorizada abandonou o centro, enquanto as camadas mais
populares, que usam o transporte coletivo e que são oriundas dos bairros populares “ain-
da ocupam este espaço, forçando o comércio local a se adaptar ao novo perfil dos seus
frequentadores”. Este argumento converge com os dados que comentamos tanto em
relação à escola CEAD, no atendimento aos alunos de periferia, quanto às reclamações
que apareceram no “manifesto” de um conhecido bar. Ou seja, oportunidades que fazem
convergir as pessoas, e, ao mesmo tempo, geram os conflitos. Este documento também
aponta para o fato de que o “centro” se mostrava mais como um espaço de “passagem”
do que de “permanência”, com acentuada desvalorização imobiliária de muitos anos com
o abandono dos proprietários, o que suscitaria projetos de revitalização, recuperação dos
imóveis históricos e estímulo a uma “economia criativa” com investimentos em trabalho,
diversão, entretenimento e arte.
Um destes projetos de revitalização foi o da São Francisco.
Houve a estruturação da calçada acessível, ou seja, a proibição do estacionamento pa-
ralelo às calçadas tornando-as mais livres para o pedestrianismo, seu nivelamento e con-
serto da pavimentação, maior iluminação, como medidas tomadas para coibir o tráfico de
drogas que acontecia dentro de veículos, gerando insegurança na rua. Acreditou-se que a
retirada do estacionamento geraria maior visibilidade e que com o projeto de revitalização
as pessoas passariam a usar a rua como percurso a pé. E todo este “movimento” geraria

78
maior fluxo de pessoas, mais consumo, mais incentivo às iniciativas de lazer e cultura. Isso
de fato começou a acontecer mais intensamente a partir de 2014 com o movimento da
Bicicletaria Cultural, e, de fato, pudemos verificar isso nesta primeira quadra da São Francis-
co, que é onde ainda estamos “perambulando” etnograficamente, por meio de uma leitura
“pelo avesso”, ou seja, analisando os problemas da escola CEAD Poty Lazzarotto, o “ma-
nifesto de despedida” do bar e, na sequência, avaliando as entrevistas com Goura Nataraj,
o ativista que deu início ao movimento de construção da Praça de Bolso do Ciclista, e o
proprietário do Camaleão Cultural.
O que se pode observar é que o mesmo gesto institucional que cria e faz as mudanças
para “beneficiar” o desenvolvimento e a revitalização da área prevista, gera suas próprias
contradições.
Compreender e expor as possíveis maneiras como foram geradas estas contradições
se colocam como tarefas fundamentais deste trabalho que ora apresentamos.
Analisando os discursos de dois dos bares que, na nossa avaliação pertencem a uma
mesma “genealogia”, ou seja, não se percebem como “bares” unicamente, mas trazem ca-
racterísticas diferenciais marcantes, já podemos fazer algumas inferências:
– Há uma sugestão implícita nestes discursos de que o fluxo de pessoas da “periferia”
acumulando-se nesta primeira quadra da rua, ocupando-se de um lazer regado a drogas e
bebidas favoreceria a violência e o mau “comportamento”. Por esta razão, insinua-se que
um conhecido bar perdeu sua clientela mais classe média (com uma produção e cardápio
para um consumo “dirigido”) e desistiu do seu empreendimento por falta de segurança e
de consumo;
– O Camaleão Cultural, como seu inverso simétrico, na medida em que decidiu perma-
necer como bar, da mesma forma com um cardápio diferenciado, do lado oposto da rua,
resolveu apostar num estilo mais “híbrido”: ainda que com as mesmas condições de so-
brevivência, mesmos riscos e desafios, passou a investir numa linha de produção de even-
tos populares por ter alugado um espaço maior. Acima de tudo, resolveu “conviver” com o
ethos da rua.
Mas há um detalhe muito interessante nesta aproximação comparativa: enquanto
um dos bares se “implantou” nesta primeira quadra da rua, muito em função do estímulo

79
ideológico do processo de revitalização cultural da região, acreditando no “modelo”
ideológico de ocupação democrática e aberta, o proprietário do Camaleão Cultural veio ao
longo de muitos anos construindo uma relação pessoal com a rua, muito antes de vir a ter
um bar. Declarou em entrevista sua percepção deste último processo de revitalização: foi
uma grande especulação imobiliária, na qual os proprietários de imóveis lucraram muito
vendendo ou alugando seus imóveis por muito mais. Da mesma maneira, os comerciantes
vieram para cá movidos por esta perspectiva de lucro, e houve um período de verdadeira
“revitalização”. Depois de um ano e pouco, a Prefeitura abandonou a região, não fez
qualquer investimento em cultura, diminuiu a segurança, retirou até mesmo o totem da
polícia, e tudo foi se perdendo, novamente. O tráfico tomou conta.
E ele se pergunta: O que poderia justificar tal conduta dos órgãos públicos? Tanto in-
vestimento para nada?
Outro aspecto interessante, que aproxima a posição da proprietária de um conhecido
bar e a sua é a de que o único jeito é aprender a lidar com o modus operandi dos traficantes.
No “manifesto” de despedida o texto diz claramente que o problema não era lidar com os
traficantes, e sim, com “os pardos da periferia”. Para o dono do Camaleão, o bar é para to-
dos e é inútil tentar combater o tráfico: melhor conviver à distância, não deixar entrar no bar
para não se comprometer. E é isso:

“Tenho uma porta aberta para a rua.


Estou aqui para vender, não para julgar.
Todos são consumidores”.

Parece interessante que, em nenhum momento, nenhum dos bares se refiram à


presença do CEAD Poty Lazzarotto, “colado” aos seus bares.
Portanto, para uma compreensão mais abrangente é necessário um olhar mais amplo:
há aqueles que ali estão desde muito antes desta história toda de revitalização e ativismo.
Há muitos que ali estão apenas pelo hábito comercial, e não percebem nada além do peri-
go dos traficantes que afugentam seus fregueses. E há aqueles que foram ou são movidos

80
por um desejo genuíno de convivência e participação, insuflados por este vento da mobili-
zação cultural e cidadã, ou pelo seu próprio “perfil”.
E a São Francisco tem história e perfil para tudo isso ao mesmo tempo e agora. Seu
trajeto curto, suas lojas muito coladas, a sensação do perigo e, ao mesmo tempo, a atração
do exótico. Ela é, portanto, metafórica e metonímica. Daí sua face poética.
Mas esta primeira quadra da São Francisco não poderia ser compreendida em sua to-
talidade sem a presença do ativismo cultural que ali se instalou, com uma movimentação
absolutamente inovadora, com consulta aos comerciantes, democrática e inclusiva, rea-
lizada em sistema de mutirão e participação coletiva, dando origem à Praça de Bolso do
Ciclista, inaugurada em 22 de setembro de 2014.
Que relação poderia haver entre o ativismo n(d)esta rua e os processos de revitalização
da região, bem como com o perfil dos bares que ali se instalaram?
Esta é uma questão que procuraremos responder, aos “pedaços”. Tudo, nesta rua, su-
gere uma abordagem “espaçada”, uma observação caminhante, uma narrativa fragmenta-
da. Com rubricas, como portas se abrindo e fechando ao longo do texto.
Ouvindo a narrativa desta “epopeia”, narrada por seu ativista mais proeminente, Goura
Nataraj (Jorge Brand), é possível sugerir uma poética comparação desta ocorrência com
aquelas de antigamente, quando as crianças começavam a empinar pipas em vários luga-
res, ao mesmo tempo, em lugares distantes e sem qualquer tipo de comunicação entre
elas, além do vento. Vento vindo de várias direções, correndo em muitos rumos e com di-
ferentes intensidades. Esta pode ser uma boa alegoria para atingir uma interpretação sen-
sível destes fatos.
O Centro Histórico poderia ser pensado como o “sopro originário”, desde onde sopra
este vento, desde onde a cidade começou a crescer, a se desenvolver, a demandar mudan-
ças crescentes no modo de sua compreensão, cuidados e planejamentos.
Precisamos agora pensar nestes “ventos” de forma mais concreta, menos poética,
para finalizarmos com uma tessitura narrativa que faça sentido.

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82
ADENSANDO INFORMAÇÕES
As preocupações mais elaboradas com a cidade começaram com a expansão do nú-
cleo em direção às periferias, e sua inclusão pela mobilidade e infraestrutura: a partir de
1962, na gestão de Ivo Arzúa, começou a surgir a ideia da proposição de um “novo plano
para a cidade”. Em 1963 foi criada a URBS/S.A, para compor parceria com o Departamento
Municipal de Urbanismo.
Este “novo plano” surgiu quando a URBS buscou verbas para a construção do Viaduto
do Capanema (proposto pelo Plano Agache) junto à Codepar, e, para analisar a solicitação,
foi solicitado um novo planejamento urbano, via licitação, para a liberação de verbas à em-
presa que fosse vencedora.
Saindo vitoriosa deste concurso, a Sociedade Serete de Estudos e Projetos Ltda (SE-
RETE), esta empresa realizou, então, os estudos preliminares e produziu os diagnósticos
sobre a cidade. Tais dados acabaram em um contrato com o escritório paulista de Jorge
Wilheim, de onde, finalmente, saiu o Plano Preliminar de Urbanismo (PPU), aprovado pela lei
nº 2.828, de 31 de julho de 1966. Todo este processo de elaboração foi acompanhado por
um grupo de especialistas locais (Grupo de Acompanhamento Local), que, em seu tempo
passou a se chamar Assessoria de Planejamento e Pesquisa Urbana de Curitiba, e, em se-
guida, IPPUC. Era o ano de 1966.
Algumas mudanças e manutenções de diretrizes foram notadas por estudiosos, des-
de o Plano Agache até o primeiro Plano Diretor26:

O Plano Diretor, desenvolvido posteriormente pelo IPPUC a partir do PPU, propunha


a estrutura do Planejamento Integrado, o desenvolvimento preferencial da cidade no
eixo nordeste-sudoeste, a hierarquia de vias, o crescimento linear do centro principal
servido por vias tangenciais de circulação rápida, a caracterização das áreas de uso

26 Julio César Botega do Carmo, autor da dissertação de mestrado “A permanência de estruturas urbanas e a construção do conceito de cidade
na abordagem geográfica”, destaca que “o Plano Diretor de Curitiba de 1966 abandonou a concepção dos centros e adotou parâmetros diferen-
ciados por zona de densidade populacional para criar um novo zoneamento, ao contrário do plano Agache, no qual o zoneamento baseava-se no
preenchimento de espaços vazios do território, sem coeficientes definidos para as áreas da cidade, por ocupação progressiva a partir do centro”.

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preferencial ou exclusivo de pedestres, a extensão e adequação de áreas verdes, a
criação de uma paisagem urbana própria, a renovação urbana e a preservação histó-
rico-tradicional.

Interessante observar, seguindo a análise de José Luis Faraco, autor de O Plano


Diretor e a cidade sustentável, que não foram poucas as efetivas transformações na cidade,
negociadas e mediadas pela interferência de Jaime Lerner:

A expansão linear do centro principal, tal como ocorre hoje, mediante a ver-
ticalização, adensamento e diversidade de uso no Setor Estrutural, não era
diretriz nem do Plano Serete-Wilheim (65) e nem do plano final apresentado
pela equipe que constituiu o Ippuc (66). O que esses planos propunham era o
crescimento linear do centro principal em direção ao Batel, controlado por um
anel perimetral tangenciado por vias rápidas estruturais.27

Como destaca Faraco, Lerner e a equipe do Ippuc “adotaram uma posição de media-
ção entre os ideais do plano urbanístico e os interesses e possibilidades imobiliárias reais
nos Setores Estruturais”.
Além disso, para os nossos propósitos de compreensão da construção de um centro
adensado e sua relação com os planos de revitalização, há que salientar o sucesso do siste-
ma trinário, aplicado por Lerner, que consolidou a composição de um conjunto técnico de
três elementos fundamentais: sistema viário, uso do solo e transporte coletivo, e que pro-
piciou a grande mobilidade dos habitantes na expansão do adensamento para as regiões
ao longo dos eixos estruturais das zonas periféricas da cidade, bem como para a ocupação
das áreas centrais, por motivos de lazer, comércio, estudo e trabalho.28
Este sistema permitiu que, nas canaletas especiais para os ônibus, pudessem circular
carros coletivos muito maiores, com mais passageiros, em menos tempo. E mais, que os
usuários pudessem mudar de ônibus nos terminais sem ter que pagar outra passagem.

27 In: Plano Wilheim-Ippuc: conflitos e soluções para a Curitiba de 1966. Parte II de Notícias do Legislativo, Câmara Municipal, 10/11/2015.

28 “O sistema trinário diz respeito à área dos Setores Estruturais, envolvendo o conjunto de quatro quadras, entre as quais exis-
tem na margem duas ruas paralelas e laterais de sentido único para veículos em alta velocidade (vias rápidas), e uma rua cen-
tral, repartida em três vias: uma central exclusiva para ônibus e duas laterais para veículos em baixa velocidade.” (Idem).

84
Claro que todas estas inovações dinamizaram a circulação de pessoas: em 2015, data da
publicação desta reportagem, estimava-se que dois milhões de pessoas estivessem uti-
lizando a rede integrada de transporte (RIT), que, na verdade, nunca constou de nenhum
plano diretor.
A linha do urbanismo que vigorou desde 1971, quando Jaime Lerner foi eleito pela
primeira vez (1971-1975) e, de certa maneira nas vezes subsequentes (1979-1984 e 1989-
1993), além de ter sido governador por duas vezes (1995-1999 e 1999-2003), e mesmo na
gestão de Saul Raíz (1975-1979), seguiu assentada sobre a concepção de eixos estruturais
e transporte coletivo. A primeira linha de ônibus expresso começou em 1974. Portanto, a
cidade estava sendo revolucionada desde meados dos anos 1960.
Mas e o “anel central”?
A ideia desenvolvida ao longo dos anos foi isolar o centro do tráfego de veículos, priori-
zando a circulação exclusiva de pedestres nas suas ruas principais. O modelo do calçadão
da Rua XV foi aplicado a outras quadras do Centro Histórico, constituindo, ao mesmo tem-
po, as UIPs, investindo na memória do passado histórico.29
Por que toda esta extensa, embora sumária, exposição?
Porque ainda que num primeiro momento não se possa estabelecer claramente a in-
ter-relação entre estas inovações no desenvolvimento urbano, os ativismos culturais, os
planos de revitalização e o aparecimento de um estilo de vida noturna nesta região, a es-
peculação metodológica é uma poderosa arma intelectual para o conhecimento e a des-
coberta.
Mas o que aconteceu com as “bicicletas”?
Goura Nataraj nos conta com sua voz calma, segura e determinada, oriunda de sua ex-
periência na liderança pública e de sua formação intelectual e espiritual, que o movimento
cicloativista em Curitiba teve início lá nos anos 2004-2005, com várias intervenções cul-
turais nas ruas, e chegou ao ano de 2011 com a fundação da Associação CicloIguaçu e da
Bicicletaria Cultural.
O Programa Marco Zero, lançado em agosto de 2005 pelo prefeito Beto Richa, tem
como objetivo revitalizar dois grandes eixos centrais e seus entornos. O primeiro, que vai
da Praça Osório à Praça Santos Andrade, é formado pela Avenida Luís Xavier e a Rua XV

29 Informações obtidas no texto de Salvador Gnoato, “Curitiba, cidade do amanhã: 40 anos depois”, site Vetruvius, maio de 2006.

85
RUA SÃO FRANCISCO
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

86
de Novembro. O segundo, pelas ruas Barão do Rio Branco e Riachuelo, entre a Praça Eufrásio
Correia e o Passeio Público. Também fazem parte do estudo de revitalização de pontos como
o Terminal do Guadalupe e as praças Ruy Barbosa e Carlos Gomes, além de todo o Setor
Histórico.
Vale lembrar que vários movimentos artísticos vieram acontecendo de forma indepen-
dente e paralela desde o início do “Marco Zero”, com as ações do coletivo Interlux, por exemplo,
que, além das intenções estéticas propunham uma “apropriação” da cidade, reivindicando o
direito de “mexer” com a cidade. Exatamente como a Prefeitura estava fazendo com a urbe.
A questão que colocavam naquela época é muito indicativa de um “diálogo”: “Por que só a
publicidade? Por que só a instituição? Por que nós, como cidadãos, não podemos inscrever um
poema na rua, fazer uma performance ou defender o uso e a disseminação da bicicleta como
modo de viver, reivindicar uma ciclovia?”30
Parece importante lembrar que, a despeito de sua politização discursiva e mobilizadora
mediante um explícito antagonismo recheado de críticas sobre o marketing duvidoso da Pre-
feitura, sobre o processo de urbanização sem a produção de “cultura” para o povo, feita nas
ruas, ofertada democraticamente, o movimento ativista curitibano sempre esteve ligado a
grupos relacionados com a arte e o urbanismo, e, produzido pela classe média universitária.
Suas mobilizações sempre foram feitas por meio das redes sociais. Por outro lado, suas ações
ocorriam preferencialmente no centro da cidade. Sua forma de organização, fluida, com pau-
tas pontuais, agregações e desagregações de pessoas não lhes tiraria o caráter político, alerta
Analice O. Trindade em seu trabalho de mestrado, citado na nota nº 8.
Nesta época surgiu a ideia da construção da Praça do Ciclista: a rua estava esvaziada, de-
cadente, já havia ali uma oficina de bicicletas, e o pequeno terreno baldio e abandonado de es-
quina certamente oferecia uma excelente oportunidade, tendo em vista outras iniciativas do
mesmo gênero em outros países e cidades da Europa e Estados Unidos (pocket parks).
Em 2013 começaram as articulações para realizar em Curitiba o Fórum Mundial da Bicicle-
ta, quando, então, se inauguraria a Praça.

30 Como nos conta Analice O. Trindade em sua dissertação de mestrado sobre o movimento ativista em Curitiba, Vale a pena acre-
ditar na cidade: o movimento ativista em Curitiba e suas práticas, UFPR, 2016, as relações entre “ativistas” e “gestores públicos” mu-
dou ao longo de pouco tempo: desde os primeiros esboços de ações em 2005 até a efetivação da Praça de Bolso do Ciclista, inau-
gurada em 22 de setembro de 2014. Na sua leitura, estas ações passaram da “criminalização” à institucionalização.

87
Os objetivos não podiam ser mais adequados: ressignificar todo o trecho da São Francisco
e construir um exemplo vivo de como reocupar o centro da cidade. Em suas críticas às ações
institucionais concluíam que a Prefeitura fazia mudanças na “letra” (iluminação, calçadas...),
mas não no “espírito” do centro. Não teria havido sequer uma discussão com os moradores e
proprietários sobre o que estava acontecendo e o que poderia ser pensado como “ocupação”,
“revitalização”. Ficaram apenas no “formal” (pavimento, luz, pintura , limpeza das pichações),
sem qualquer investimento na parte cultural.
A Prefeitura não conseguiu terminar a Praça de Bolso para o fórum de 2014. Colocaram um
tapume com um banner.
O coletivo de ativistas decidiu, então, por um “mutirão”, depois de uma enquete com os
comerciantes: “O que você gostaria que existisse aqui?”
Decidiu-se pela Praça e de abril a setembro de 2014, todos os finais de semana a rua era fe-
chada, comerciantes ofereciam comida aos que trabalhavam ali, pessoas traziam frutas, bolos,
apareciam as caixas de som e muitos faziam música. Crianças brincavam, era um verdadeiro
“ecossistema”, comenta Goura em sua entrevista. O Negrita surgiu nesta época e nosso en-
trevistado comenta que nesta época ele não sentiu absolutamente nada em termos de uma
possível “gentrificação” dos hábitos, nada de conflitos entre classes sociais, entre os diferentes
usos da rua.
A partir deste momento começou a “implosão” da frequência.
Muitos bares abrindo, chope barato, a “galera na rua”.
E a classe média começou a frequentar a São Francisco pelo “programa” de ficar na rua, de
sentir-se livre e parte de um modo de vida diferente.
A queixa deste ativismo que floresceu ali na rua seria a de que a Prefeitura não investiu em
fazer acontecer programas culturais, e, ao contrário, passou a proibir happenings de rua.
Aquela convivência tranquila e pacífica de 2014, oriunda do fato de que as pessoas não
queriam ficar dentro dos bares se encaixava perfeitamente no discurso de ocupar a rua. Por
algum tempo, tudo corria bem. As reclamações do CEAD Poty Lazzarotto não repercutiam na
alegria da “festa”.
Mas o público se amplia, e aquele perfil de classe média se divertindo na São Francisco co-
meçou a se alterar com a presença dos “jovens da periferia”.
Esta mudança de “perfil” da ocupação não teve, na sua opinião, uma política de “redução de
danos”: instalação de banheiros químicos, a presença contínua, mas discreta do policiamento,

88
respeitando o “ecossistema” natural da rua que são jovens de classe média, de periferia, ar-
tistas, e mais: há uma especificidade desta quadra, que é ser uma espécie de “fundo de beco”.
E Goura brinca: “você olha para baixo, parece que é o fim... mas é o começo”.
Por fim, ele ressalta: “seria necessário por parte dos órgãos públicos reconhecer, aceitar
e até mesmo colaborar e incentivar o ambiente com uma ‘política positiva da boemia’”.
É o perfil da rua, é uma inclinação do bairro todo.
Resta a pergunta: Neste embate, quem venceu? Quem foi expulso? Quem permaneceu?
Ao que tudo indica, pelo menos, nesta primeira quadra, não foram aqueles que poderiam ter
resultado de um processo de “gentrificação”.
Se tomarmos o exemplo da “desistência” de alguns bares, e o aparente crescente su-
cesso do Camaleão Cultural, poderíamos ousar uma interpretação de que ele voltou-se a um
estilo originário de bares mais despojados, com a tendência de oferecer, junto com a bebida,
eventos musicais, culturais como um todo, ainda com parte dos frequentadores na rua. Uma
tendência ao happening feito em casa, pelas iniciativas dos particulares, sujeita aos boicotes
da fiscalização e policiamento.
Quando unimos as pontas deste macramê urbano, nas suas entranhas políticas, econô-
micas e ideológicas, podemos perceber a ocupação desta primeira quadra da São Francisco,
como que movida por estímulos e impulsos contraditórios que praticamente “desabaram”
sobre ela, inexoravelmente. A convivência de vários agentes em conflito já está nos indican-
do isso: há uma escola, que ali está há muitos anos, muito antes de aparecerem estes habi-
tantes “inovadores”, que está formalmente inserida no sistema educacional, e que se sente
desalojada, desatendida e ignorada por todos os outros habitantes do “pedaço” e, pior: pelos
órgãos públicos.
Houve um movimento ativista que, aparentemente, morreu de inanição.
E há um tímido movimento de reabertura de bares, marcado por uma desistência explo-
siva e uma nova iniciativa, agora mais híbrida, mais ao estilo da Trajano Reis.
Um trecho que se configura como um “fundo de beco” muito frequentado pelo tráfico,
e, ao mesmo tempo, por um policiamento esparso e desorganizado, deixando aos proprietá-
rios a função de “negociar” a dispersão dos traficantes e vendedores de drogas para longe de
suas portas, sem, contudo, incorrerem nos pisos falsos de qualquer descuido que aborreça
os donos dos pontos de distribuição.

89
RUA SÃO FRANCISCO COM RUA RIACHUELO
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

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91
SUBINDO A SÃO FRANCISCO
Iniciamos nosso percurso na Praça de Bolso do Ciclista, indo pela São Francisco em dire-
ção à Feirinha. Eram 11 horas da manhã e nós, os únicos nesta primeira quadra, assim como
a única bicicleta estacionada no paraciclo era a do nosso companheiro de pesquisa.
Seguimos subindo a São Francisco.
A rua estava toda sombreada neste dia ensolarado por causa dos prédios nos dois la-
dos, fazendo um corredor de vento, causando arrepios.
Nesta esquina morou uma figura conhecida da cidade, dos meios intelectuais, da boe-
mia, da cultura avant garde: o jornalista Jacques Brand.
Vamos passar-lhe a palavra, neste olhar de esquina:

O NOVO PERFIL DA BAIXARIA


Jacques Brand

Jornalista

2005

Vai de mal a pior a situação da esquina da São Francisco e Riachuelo, e trechos adjacentes, bem no
miolo da parte antiga da cidade, sem que os reiterados apelos dos moradores aqui do prédio às au-
toridades tenham resolvido coisa alguma. Já estamos pensando em levar os nossos agravos ao Va-
ticano ou às Nações Unidas.

É verdade que sempre houve uma viração endêmica ali na esquina, de prostitutas e travestis, coisa
que vem de longe e sempre foi tolerada pelos civilizados moradores do nosso prédio, com respeito

92
recíproco e distâncias bem guardadas. Mas a coisa mudou completamente a partir do instante
em que chegou, com sinistros paramentos e múltiplos tentáculos, Sua Horripilância, o Tráfico
de Drogas.

É uma pena, porque se trata de um dos trechos mais bonitos da velha Curitiba, o da quadra da
São Francisco que se estende entre Riachuelo e Barão do Cerro Azul, de valor sentimental para
os moradores da cidade e elevado potencial como atração turística. Gostaria de incluir nesta
admiração a quadra anterior da São Francisco, entre a Presidente Faria e a Riachuelo, mas não é
possível. Ali decisões construtivas absolutamente insensatas receberam o negligente carimbo
da municipalidade, com o resultado de que formou-se um corredor sombrio, úmido e malchei-
roso.

Por aí se vê, aliás, como o decantado planejamento urbano das gestões associadas ao Sr. Jai-
me Lerner, de nível internacional, só funcionava mesmo onde havia interesses de grossa fidúcia.
Nesses casos, eles enxergavam longe.

Aliás todo o centro de Curitiba vem pagando caro, em amarga moeda, pela imperícia, negligência
e imprevisão com que foi tratado ao longo das últimas gestões.

Mas voltando à nossa esquina.

O advento do tráfico, de dois ou três anos para cá, mudou o perfil da baixaria na esquina. Antes
eram algumas prostitutas, travestis, que levavam em frente os seus misteres com o mínimo de
atrito. Em quase 20 anos de residência ali perto posso testemunhar o profissionalismo deste
pessoal era raríssimo perturbarem a vizinhança.

Já o tráfico – mesmo se descontadas as simbioses, as interfaces, a interdisciplinaridade – é outra


estirpe, outro clã. É preciso reconhecer que são bem organizados. Trabalham em equipes que se
revezam em horário certo, com uma perfeita logística e serviços de apoio que não deixam faltar
sequer o lanche dos seus “funcionários”.

Tomaram conta das calçadas, estabeleceram-se nos desvãos mais confortáveis das fachadas
das lojas.

Não só durante o dia, mas a noite inteira, seja domingo ou feriado, chova ou deixe de chover, faça
lua cheia ou lua minguante, lá estão eles e elas.

Para quem mora ao lado, o que incomoda é o vozerio, são os gritos, o bradar constante, o siste-
ma de assovios e apitos que furam o silêncio noite adentro, pela madrugada. Nos andares mais
baixos do nosso prédio, ninguém mais sabe o que é uma noite tranquila.

Com o passar do tempo, vamos conhecendo nossos amáveis “vizinhos”. São gente como a gen-
te, de carne e osso. Choram, riem, contam histórias, fazem planos.

Tomados um a um, quase sempre mostram boa educação, falam com bom português, e até
“entendem” o nosso drama. Às vezes, peço, da janela do quarto andar, que baixem o volume das
vozes, e às vezes me atendem. Mas logo esquecem o pedido e voltam aos gritos, às gargalhadas,
aboletados no espaço que, afinal, é “público”.

93
Por hoje, ficamos assim, com o drama acústico
Por hoje, ficam os assim, com o dram dos pacatos moradores de uma região do centr
Por
dahoje, e. os assim, com o dramaa acúst acústico o
cidadficam ico dos
dos pacat
pacatos os mora
moradores
dores de de uma
uma região
região do do centr
da cidad
da cidade. centroo
e.
Toda uma outra fábula poderia ser contada, na
Toda uma perspectiva da tragédia social que esses brasil
Toda uma outra
outra fábula pode
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ria ser conta da,
da, na persp
perspectiva
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brasilei-
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s, marginalizados, representam. senta m.
Com certeza, a sociedade em geral não ficaria
Com certe za, a bem no retrato. Nem a polícia, que anda baten
Com certe deza, a socie
socie dade em
tigar.dade
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geral não ficaria bem no retrat o. Nem do
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vez de
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elecim entos bemquenoganh
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amo.com a políci
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em vez de inves Nem os estab elecim entos que . E, aliás, nem
ONGs, que nunc tigar.
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com aa misér
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ONG em por aqui. E, aliás,
aliás, nem
nem as as
ONGs, s, que
que nunc
nuncaa vi vi atuar
atuaremem porpor aqui.
aqui.
Nem os setores da saúde e assistência social
Nem os setor es dos governos, que deveriam estar oferecendo
Nem oscia
setor es da saúde
dadesva ee assist
saúdelidos. assistência
ência socia
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dos gover
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nos, que
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sistên
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a esses que dever
deveriamiam estar
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oferecendo
cendo as-as-
sistênciacia aa esses desva
esses desvalidos. lidos.
Nem a prefeitura, incompetente para fazer a sinton
Nem a prefe itura, incom peten te para ia fina dos alvarás e que, por sinal, tomou re-
Nem a prefe
mentitura, fazer aa sinton ia
cente
cente
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e a pior petenas
de todas temedi
paradas
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conte fina dos
xto. dos alvará
Autor alvaráss ee que,
izou o que, por
por sinal,
sinal, tomo
tomo uu re-
re-
cente ment
ment ee aa pior de todas as medi das nesse conte funcio name nto de mais três
bares na área.pior de todas as medidas nesse contexto. xto. Autor
Autor izou
izou o
o funcio
funcio name
name nto de mais três
bares na área. nto de mais três
bares na área.
Como se a São Francisco precisasse de confu
Como são!
Como se se aa São
São Franc
Francisco
isco precis
precisasse
asse de
de confu
confusão!
são!

94
Da esquina com a Riachuelo para cima já avistamos os stands de anúncios de almoço
colocados nas calçadas. Desde ali também podíamos ver um grupo de pessoas desenhan-
do os contornos dos edifícios, as fachadas históricas, o ambiente.
Nesta segunda quadra, os prédios de esquina com a Rua Riachuelo acompanham o for-
mato curvo da calçada. Quinas arredondadas. Mais suaves.
Seguindo o fluxo da rua, fomos observando os estabelecimentos mais antigos, com
certo ar de familiaridade, com pessoas mais velhas ocupando seus interiores. Todos con-
versando mais baixo e tranquilamente, tomando cerveja, café ou refrigerante, fumando,
sentados às mesas ou nas banquetas dos balcões. A maioria dos estabelecimentos trans-
pirava um ar interiorano, até.
São restaurantes, um café e bares que estão ali há muito tempo como o restaurante
Nonna Giovanna, o Mikado, o São Francisco, o Café Bella Vivenda, uma loja de artigos de pes-
ca, uma relojoaria, uma funerária, o bar Jokers, a lanchonete Nakarocha. Há os mais recentes
como o Bar do Fogo e o Chico Burguers. Inovador na paisagem é o prédio alto, na esquina
com a Rua Barão do Serro Azul. O Green Tower. Ele tem uma pequena galeria com a maioria
das lojas para alugar, mas neste ponto da rua, já no cruzamento com a Barão, o espírito do
lugar já se dissipou por completo. Aquele “ar” do passado ficou para trás como num enclave
do tempo e do espaço...
A paisagem desta segunda quadra encaminha outro jeito de “olhar”.
É mais diversificada e patrimonial: são nove estabelecimentos classificados como UIPs
e embora a maioria esteja fechada, a própria rua, de calçamento de pedras e calçadas mais
estreitas, dá ao caminhante o jeito de andar e de penetrar neste pequeno comboio histórico:
as edificações coladas umas às outras, demarcadas por cores e fachadas diferentes, com
um comércio variado, vão demandando do caminhante um deslocamento mais lento, mais
atencioso, mais perscrutador para dentro das poucas portas abertas.
Em seu livro Curitiba. Luz dos Pinhais, Rafael Greca de Macedo, atual Prefeito da cidade,
também faz um relato minucioso desta região, com seu tradicional rigor “poético”.31
Ele nos conta sobre o tecido urbano da cidade que, ao longo de três séculos teve sempre
um contínuo investimento em ideias e ações planejadas.
Como ele mesmo o define, um urbanismo constituído pela ordenação.

31 MACEDO, Rafael Greca de. Curitiba: Luz dos Pinhais. Curitiba: Solar do Rosário, arte e cultura, 2016.

95
Em suas palavras:

Em 1721, os Provimentos do Ouvidor Pardinho definem o perímetro do Rossio da Vila,


o correto arruamento, as medidas da praça da Matriz e a localização da igreja, assim
como impedem o abandono de casas e terrenos baldios – porque nestes sítios se fazem
a Deus e a El Rey os mores desaforos. Avançam em posturas urbanas de alinhamento do
casario, ocupação do solo, concessão de alvarás para novas edificações [...] o arrua-
mento de apenas 20 quarteirões. [...] Eram regras baseadas nas Ordenações Régias –
Ordenações Filipinas, inspiradas na organização dos municípios desde o antigo Direito
Romano. Em 1818, a população de Curitiba somava 11.014 habitantes, sendo 9.427
indivíduos livres (6.140 brancos, 3.036 mulatos e 251 negros) e 1.587 escravos, sendo
544 mulatos e 1.043 negros. Já havia a tendência de as pessoas gradas, de nível social
mais elevado, viverem próximas umas das outras nas chamadas ruas nobres, onde es-
tavam os palacetes, os solares e as “casas de família”. Havia uma norma legislativa em
1831, baixada pela Câmara, que proibia erigir choupanas ou casas com paredes de me-
nos de 18 palmos de altura nas principais ruas de Curitiba, criando um primeiro “Códi-
go de Zoneamento”, surpreendentemente eficaz em sua simplicidade: o binômio ruas
principais e sistemas construtivos deveria encarregar-se de selecionar a vizinhança,
afastando os indesejáveis para a periferia da cidade, ou o Rossio – hoje grafado como
“Rocio, o lugar onde começava o orvalho” [...]

Quando da criação da Província do Paraná, em 1853, Curitiba só tinha três lampiões a


óleo de peixe. Um na parede da Casa de Câmara e Cadeia, dois no Vista de Curitiba em
1888, da colina do Cemitério municipal. Zacarias de Góes e Vasconcellos logo enco-
mendou mais 20 lampiões-luminárias. Curitiba era sempre muito escura [...]

Em 1863, a rua das Flores já se definia pelo alinhamento de 40 edificações, além de 18


casas ou palacetes em construção. A praça da Matriz, campo verde da Igreja, tinha 43
casas e o sobrado da Câmara e Cadeia. Nas ruas atrás da Matriz, contavam-se outras
63 casas. Curitiba crescia, mas ainda era acanhada e muito escura. Finalmente, a 5 de
abril de 1874, por obra do vereador Doutor Pedrosa, foi inaugurada a iluminação pú-

96
blica a querosene, com 100 lampiões. Nesse ano, também foi inaugurado o Mercado
Público de Curitiba, no antigo terreiro do Pelourinho, hoje praça Generoso Marques. O
historiador Ermelino de Leão, no seu Dicionário Histórico, relata aquela primeira noite
iluminada: “Defronte à antiga Câmara Municipal, na atual Praça Tiradentes, foram er-
guidos três coretos e dois arcos de folhagens profusamente iluminados a lanternas.
Três bandas de música: a da Polícia, a dos Artistas Pedreiros e a da Sociedade 25 de
Março, se fizeram ouvir. [...] Ao som das bandas musicais e ao estrupido dos fogue-
tes, foram acesos os combustores da Praça da Matriz, orando em seguida o distinto
e saudoso paranaense Doutor João José Pedrosa, presidente da Câmara, a quem se
devia o melhoramento. Em seguida, as damas e os cavaleiros presentes improvisaram
um baile ao ar livre, que correu animado.” Desde então, nossa Curitiba passou a contar
com a poética figura do acendedor de lampiões.

O historiador, urbanista e arquiteto Irã Dudeque, no seu livro Cidade sem Véus. Doen-
ças, Poder e Desenho Urbano, apresenta uma planta do quadro urbano de Curitiba em
1875, ainda acanhada entre os vales dos rios Ivo e Belém. A sudoeste, a cidade come-
çava num descampado que dava origem a duas quadras da Rua Leitner. A sudeste,
pela Rua da Entrada, o Beco do Alecrim, antigo nome da atual Travessa Oliveira Bello.
Sucediam-se a Rua do Comércio (atual Marechal Deodoro) e a Rua das Flores; daí a
Rua Alegre (hoje Cândido de Leão), o Largo da Matriz, a praça do Mercado e o Beco do
Inferno, depois Tobias de Macedo.

Nas extremidades, de um lado do Largo da Matriz a Rua Nova (hoje Doutor Muricy), e
do outro lado o Caminho da Carioca (atual Riachuelo). Atrás da igreja principal, a Rua
Fechada (atual José Bonifácio), e paralela a ela a Rua do Rosário, cortada pela Rua do
Tesouro (hoje Saldanha Marinho) e pelo beco Botiatuvinha (Rua Nestor de Castro).

A rua defronte à Igreja da Ordem chamava-se Rua do Fogo (atual São Francisco). A atu-
al Barão do Serro Azul era Rua do Nogueira, cortada pela Rua Direita (atual Treze de
Maio) e a Rua do Saldanha (depois do Serrito, hoje Carlos Cavalcanti). (MACEDO, 2016,
p. 397-400).

97
Mas outras histórias da São Francisco deslizam em reportagens mais descontraídas, mais
recentes, como esta, de estudantes em seu trabalho acadêmico: a antiga “Rua do Fogo” abri-
gava a prostituição, que atormentava os moradores. Talvez deste fato decorra uma das razões
para o seu nome: o “fogo” dos encontros sexuais nos casarões que abrigavam pensões.
Mas não apenas. Há algo mais palpável concreta e historicamente: nos tempos coloniais ali
era a fornalha da única ferraria da cidade, onde hoje está o Instituto Guairacá Cultural, um centro
multicultural que administra dois teatros, editora, gravadora, que organiza cursos de capacita-
ção artística e promove o Festival de Ópera do Paraná.32
O que dizer desta “reencarnação” metafórica do fogo real do ferreiro e do “fogo” espiritual
da cultura? Há neste ambiente antigo e atual um despojamento que convida à fruição compar-
tilhada com grupos preferenciais, o que oferece, sem dúvida, um sentimento de identidade raro
nos nossos dias.
Ali entramos certamente conduzidos pelos atos culturais programados, mas também
guiados por isso que chamamos de “ambiência”. Como afirma Norberg-Shulz, o ato básico da
arquitetura deve ser a compreensão da vocação dos lugares, o espírito do lugar, o genius loci.33
Neste sentido, parece extremamente adequado investigar como as pessoas que vivem e
frequentam estes lugares percebem esta historicidade e vivem este contexto, relacionando-
se e interagindo com os outros habitantes, usuários e transeuntes.
Para Jean-Paul Thibaud, as ambiências são carregadas de conteúdos físicos, sociais, cul-
turais, de uso, temporalidade e diversos outros, que operam de modo inconsciente, na medida
em que se constroem nas relações cotidianas. Ou seja, as ambiências não se limitam a uma rela-
ção espacial, pois levam em consideração aspectos sensíveis e mutáveis dos ambientes como
as sensações térmicas, sonoras, olfativas, táteis, outras culturas e subjetividades locais.34

32 MATEUS, Francisco; PRESTES, Murilo; SOUZA, Roberty; KOKAZ, Luiz. São Francisco: da boemia à democracia. Orien-
tação das professoras Sandra Nodari e Rosiane Correia de Freitas. Rede Teia, 30 de junho de 2015.

33 NORBERG-SCHULZ, C. Genius loci: towards a phenomenology of architecture. New York: Rizzoli, 1980.

34 En quête d’ambiances. Éprouver la ville en passant (by Jean-Paul Thibaud, MētisPresses, Genève, 2015).

98
RUA SÃO FRANCISCO
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

99
Neste sentido, o recorte deste trabalho que apresentamos é extremamente adequa-
do porque busca compreender a relação “espaço-tempo” experimentado pelos sentidos.
E a vida noturna, a perambulação pelos bares do Baixo torna-se, da mesma forma e de
maneira especial, um olhar para dentro desta sensibilidade, um recorte fundamental e ra-
ramente pensado enquanto objeto de análise entre nós. Trata-se, por consequência, de
um “diálogo” com as existências anteriores do ambiente, e como se constituem as atuais.
Portanto, o aspecto arquitetural é importante, claro, mas há algo mais do que o concre-
to observável in loco, e que parece instalado, entranhado nas paredes, fachadas, janelas e
afrescos.
A arquiteta, urbanista e professora Iáskara Florenzano, expõe em entrevista uma inter-
pretação do espírito do lugar: falando sobre o Centro Histórico ela relembrou histórias das
ruas que construíram os primeiros espaços urbanos da cidade, apontando, entre outras
informações interessantes, o trajeto que passava pela São Francisco ia para o cemitério.
Caminho dos funerais, das carpideiras, das procissões, surge na sua interpretação a pos-
sibilidade de definir o genius loci daquele lugar como sendo o da morte. E, de fato, ali exis-
tiu a primeira funerária da cidade que nascia. E é muito sugestivo porque desde sempre,
também, podemos compor uma dupla presença neste cenário e roteiro: Thanatos e Eros.
Morte e prazer. O jogo de equilíbrio precário dos lugares e situações de risco, de suspense,
temor, desejo e curiosidade.
Entrar neste circuito hoje em dia parece nos instalar num conjunto de “jogos” de repre-
sentação muito estimulante para acompanhar o fluxo de bares, pessoas e mercadorias.
Oportuno recordar, mesmo resumidamente, uma classificação dos jogos baseada no tra-
balho magistral de Roger Caillois, Les jeux et les hommes, de 1958:
Os jogos do tipo álea, são aqueles cuja vitória se baseia na sorte, no acaso. Estes, por-
tanto, independem do jogador, do seu preparo, paciência ou inteligência. Aqui, o jogador
nem precisa confiar em si mesmo porque está nas mãos do “destino”...
Ainda que todos os tipos sejam ficcionais, ou seja, sempre está presente o caráter de
“simulação”, nos jogos miméticos, o jogador faz crer a si mesmo ou aos outros, de que é
outrem. O jogo é, em si mesmo, uma fuga de si mesmo para tornar-se outro: falamos aqui,
essencialmente, no jogo da representação, teatral ou não. A mimese é a invenção, a liber-
dade, a fuga das convenções, o improviso. Neste jogo o sujeito/jogador, usa de todos os
recursos para “fascinar” o espectador, enfim, o outro “jogador”, pois sem ele não há jogo.

100
Diríamos, sem dúvida, que os jogos teatrais são pura mimese, certamente.
No entanto a mimese é o fundamento do jogo incessante da construção daquilo que su-
pomos ser a realidade. A vida, a “realidade”, é fruto deste jogo incessante no qual estamos
todos envolvidos. A mimese é, portanto, a base das negociações que realizamos para man-
termos para os outros e para nós mesmos uma certa “identidade” que é, moeda de troca.
Finalmente em ilinx aparece uma das qualidades mais interessantes para pensar os jogos,
especialmente aquele desenvolvido nas performances de modo geral.
Sem dúvida as qualidades referidas a este tipo, quais sejam, a instabilidade da percepção,
o pânico, o medo, a exacerbação dos sentidos pela dança, música, sexo, a indução ao espas-
mo, ao choque, a sensação da perda do controle como em certas espécies de intoxicação
pelo uso de drogas, constituem, enfim, elementos da “vertigo”.35
Enfim, em situações como as que observamos em algumas ruas do Baixo, naquelas em
que se dá, mais nitidamente, a ocupação das ruas com o uso de drogas, música alta, bebida e
movimentação fora do controle, é possível pensar em jogos agônicos, ritualísticos, miméti-
cos, por excelência. Acima de tudo, públicos, nas ruas.
Da mesma maneira, complementando e buscando uma sensibilização em relação à per-
cepção destas ambiências, oportuno citar aqui Ítalo Calvino em As cidades invisíveis36. Uma
delas, em particular, induz à reflexão interpretativa sobre este nosso espaço:
Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferên-
cia dos arcos dos pórticos, de quais lâminas de zinco são recobertos os tetos; mas sei que
seria o mesmo que não dizer nada.
A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os aconte-
cimentos do passado; a distância do solo até um lampião e os pés pendentes de um usurpa-
dor enforcado; o fio esticado do lampião à balaustrada em frente e os festões que empavesa-
vam o percurso do cortejo nupcial da rainha; a altura daquela balaustrada e o salto do adúltero
que foge de madrugada [...] (CALVINO, 1990, p. 14).
Fica claro, nesta narração sobre Zaíra, que o autor nos convida a uma percepção poética
de um espaço urbano muito mais a partir das relações entre seus habitantes, da vida a se de-
senrolar ali, da vida que já se foi dali, certamente assentada em sua materialidade, mas além

35 BAPTISTA, Selma. O quarto: um ensaio de antropologia teatral. 2007. Disponível em: www.academia.edu

36 CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

101
dela. Neste trecho acima, os tempos verbais de passado e presente se misturam, porque a vida se
mistura em tempos, espaços, coisas e gentes.
Levando estes vários aspectos em consideração, o que dizer dos bares mais populares deste
trecho da rua?
Como vivem esta ambiência?
Em que aspectos assentam seus discursos de pertencimento?
Duas questões principais permeiam seus discursos: o envolvimento com a questão cultural,
ou seja, como seus proprietários se sentem ligados à produção de cultura local, e suas experiên-
cias com os planos de revitalização.
Antes, porém, de entrarmos por estas portas, vamos relembrar os planos de revitalização que
atingiram esta parte da cidade.
O ecletismo e o imigrante foram questões acentuadas na constituição do espaço urbano de
Curitiba, nos Planos Diretores, em especial no PPU. Tais características presentes nas edificações
viraram alvo da atenção do IPPUC durante o período ditatorial brasileiro quando entraram em
cena os primeiros Planos de Revitalização do Setor Histórico de Curitiba, a partir dos anos 1970 nos
governos de Jaime Lerner.37 (1971-1974) e Saul Ruiz (1975-1979).
A região do Baixo São Francisco encontra-se incorporada a esta classificação por conter algu-
mas das ruas mais antigas da cidade. A partir dos anos 1970 certas regiões passaram a compor
o Setor Histórico, sendo incorporadas pelos Planos de Revitalização de 1971, 1975, 2004 e 2012.
Ao analisar a região do Setor Histórico, o primeiro Plano de Revitalização de 1971 diagnosticou
o espaço como constituído por vários estacionamentos, pontos de transporte coletivo ligando
várias regiões da cidade e região metropolitana, equipamentos culturais, comércios variados, bo-
ates e trottoir.38 Com este Plano delimitou oficialmente o Setor Histórico, localizado entre o Bairro
São Francisco e o centro tradicional.
A partir dos estudos levantados percebeu-se que o Baixo, por ter prédios e paisagens históri-
cas, apresentava-se como uma região que combinava comércio com residências. De fato, vemos
que até hoje é comum as edificações terem essa dupla função. Há, também, pousadas e hotéis
de poucas estrelas.

37 A figura do arquiteto Jaime Lerner é marcante na história do urbanismo de Curitiba. Ele partici-
pou do PPU e deu prosseguimento às suas proposições em suas gestões como prefeito.

38 O documento não específica o significado do termo que pode referir-se tanto às calçadas das ruas, como também é co-
mumente usado para referir-se à prostituição, que utiliza a rua para o contato com os possíveis “fregueses”.

102
O Baixo é retratado com um centro velho, com poucos imóveis preservados e foco
das intenções de uma prefeitura ansiosa por estabelecer uma identidade histórica. A
proposta da prefeitura foi revitalizar e integrar esses espaços à vida urbana, beneficiando,
em sua perspectiva daquele momento, usuários e turistas.
Entre as medidas de preservação propostas destacavam-se: classificação das edi-
ficações (unidades monumento, unidades de acompanhamento e unidades incaracte-
rísticas), orientações técnicas para restauração, tombamento de edificações, incentivos
fiscais como a isenção de impostos municipais à recuperação e preservação das edifica-
ções, isenção de impostos às atividades comerciais que contribuíssem com a promoção
das unidades de preservação e o financiamento dos trabalhos de restauração (IPPUC,
1970).
Também foram enfatizadas as discussões sobre o controle das práticas sociais, res-
tringindo aquelas que não seriam condizentes com o perfil econômico do novo público
consumidor, os turistas.
Os espaços selecionados como representativos da história local foram importantes
para a construção do discurso hegemônico da cidade, estabelecendo uma relação en-
tre um padrão de vida urbano com as camadas médias detentoras de capital cultural e
simbólico. Os edifícios das classes abastadas ainda presentes na região central criaram a
imagem necessária da identidade nacional divulgada nos anos posteriores.
Concomitantemente às políticas de preservação, foram elaboradas normas especí-
ficas para garantir o controle do espaço público, com a proibição da “atividade do comér-
cio ambulante de qualquer natureza” (O Decreto Municipal nº 1.636, de 31 de dezembro
de 1971, publicado no Diário Oficial em 1971).
O Setor Histórico torna-se o cartão postal da cidade num processo disciplinar dos usos
do espaço público (como, por exemplo, a proibição do comércio de ambulantes), o que
sinalizou claramente para a transformação deste lugar em um espaço de consumo para
as classes mais abastadas, fazendo uma seleção de consumidores e clientela, inibindo a
presença da população mais pobre.
O Plano de 1975 foi uma continuidade do anterior, ampliando sua atuação. Além de
preservação propõe a reciclagem das edificações tomadas como mais significativas.

103
“Além os trabalhos de restauração, pretende-se dar um novo uso às edificações pre-
servadas que abrigariam atividades culturais e de animação, indispensáveis à revitalização
da área”.
A proposição então formulada tinha como objetivo básico salvar o que restava das edi-
ficações que compõem o casario do setor histórico, que já vinha sofrendo um processo
acelerado de descaracterização, o que só comprovava a ineficiência das ações da munici-
palidade.
Assim, “impunha-se uma posição mais realista quanto à destinação dos imóveis ainda
em boas condições de uso, a partir da ação direta do poder público” (Programa de preser-
vação da cidade. Revitalização do setor histórico. 1975).
O Plano elencou sete edifícios e especificou as seguintes características de cada um:
local, descrição, área de edificação, área do terreno, valor estimado, uso pretendido, valor
estimado para reciclagem.
Para realizar tais empreendimentos o Plano estimou o valor necessário como investi-
mento e as fontes de recurso que, além da prefeitura, envolveu a Embratur, responsável por
80% do valor. A garantia oferecida seriam os próprios imóveis (hipoteca).
Em 2004, o Marco Zero foi um programa de ação de revitalização urbana criada pelo
IPPUC que continha planos setoriais para a cidade (transporte, sistema viário, patrimônio
histórico, meio ambiente, dentre outros) e regionais para o planejamento urbano.
A área central passaria por novo projeto de revitalização, inclusive com o incentivo à
moradia na região. Foi realizado um diagnóstico detalhado e abrangente da área central,
baseado nos planos setoriais de transporte, sistema viário, patrimônio histórico, meio am-
biente, e levantamentos como situação econômica e perfil da população. A partir deste
diagnóstico vieram propostas e programas para intervenções na área central, como este
programa, o Marco Zero.
Em 2005, como parte do Plano, a Regional da Matriz fez a recuperação das calçadas em
petit-pavé ao redor da Matriz e na Praça Tiradentes. Também foi retirado o canteiro central
da Saldanha Marinho, a pedido dos comerciantes, bem como a recuperação de calçadas
e colocação de floreiras entre a Pça. Tiradentes e a Dr. Muricy, para impedir o acesso de
veículos.
Numa segunda-feira, 9 de janeiro de 2006, começaram as obras mais extensivas, ao
redor da Matriz: primeiro as laterais da Praça Generoso Marques e a primeira quadra da Rua

104
Prefeito João Moreira Garcez, chegando à esquina com a Tobias de Macedo. Foi pre-
visto que outras ruas passariam pela troca de asfalto nos dias subsequentes e que
a obra terminaria em março, com a inclusão da Cândido Leão (entre a Alameda Dr.
Muricy e a Praça Tiradentes), a Dr. Muricy entre as ruas Saldanha Marinho e XV de No-
vembro e a Travessa Nestor de Castro entre as ruas Barão do Serro Azul e a Rua do
Rosário.
Outras ações importantes foram a limpeza e desobstrução das galerias pluviais,
a limpeza das arcadas do Pelourinho, onde fica o Mercado das Flores, bem como da
cobertura e dos toldos do espaço próximo ao antigo Museu Paranaense, que viria a ser
revitalizado e tornado o Centro Cultural Paço da Liberdade (SESC) em 29 de março de
2009.
Após o Marco Zero, o próximo projeto de revitalização da área central foi o Novo
Centro, proposto em 2008, que enfatizava parcerias público-privadas, e começaria
com a Riachuelo em sua primeira etapa. Este plano desencadeou uma ampla discus-
são com os setores mais intelectualizados que percebiam, nesta proposta, uma nítida
intenção de “gentrificação” da região central, especialmente a do Centro Histórico.40
Como afirma Crestani no artigo citado, este Plano aliou um discurso de preserva-
ção do patrimônio histórico à justificativa de uma observada deterioração da atividade
e capacidade econômica da região, propondo atuar na valorização das ruas, em espe-
cial da Riachuelo. Uma proposta que veio acompanhada da alteração das regulações
do uso do solo, pelas quais novas políticas permitiriam significativas mudanças em re-
lação ao padrão de ocupação da área com importância patrimonial.41
Todo o processo começa, portanto, na Riachuelo, com o discurso da “valorização”
do espaço para a manutenção das condições de vida dos moradores e comerciantes
locais (CRESTANI, 2015, p. 185): reforma das calçadas, arejamento das esquina
para aumentar a segurança, nova sinalização de trânsito e turística, iluminação
privilegiando as calçadas, entre outras determinações mais técnicas quanto ao
cabeamento aparente. Simultaneamente a estas ações foram oferecidas consultorias

40 “A “gentrificação” é, por definição, um processo social de “filtragem” da cidade. Vem a desencadear um processo de recomposição social
importante de bairros antigos das cidades, indicando um processo que opera no mercado de habitação, de forma mais vincada e concre-
ta nas habitações em estado de degradação dos bairros tradicionalmente populares”. (MENDES, 2008 apud CRESTANI, op. cit., p. 182).

41 Idem.

105
e treinamentos de gestão empresarial, em parceria com o Sebrae, para “ajudar os comerciantes
da região a transformar sua cultura”.42
Como explica Crestani, pouco a pouco a identidade do projeto incorporava em seu slogan
um caráter comercial mais evidente: “o projeto pretende revitalizar o deteriorado comércio da
região histórica de Curitiba”.43 Enfim, de início a Riachuelo, mas podemos estender a mesma
racionalidade para a região como um todo, “(a Riachuelo) foi sendo associada a um produto de
marketing urbano, desconstruindo seu sentido simbólico e histórico, tornando o patrimônio um
segmento de mercado”.44
Citando um diretor da Thá Empreendimentos, o autor reforça este argumento no qual há,
de fato, uma “mecânica” que pode viabilizar os empreendimentos imobiliários na região central
otimizando “produtos” de metragens elevadas. Mas, conclui este profissional: “é o poder público,
com programas e políticas adequadas, quem fomenta diretamente o desenvolvimento das zo-
nas centrais em determinada direção”.
Concluindo estes breves comentários, destacam-se dois aspectos: em primeiro lugar, que
há uma “clara tendência” de favorecimento de um “estrato populacional” específico, normalmen-
te de maior poder aquisitivo. Em segundo lugar, este processo está ligado, fundamentalmente,
à alteração das regulações do uso do solo, que se expressaria, cada vez mais, sabemos hoje, nas
políticas que “permitiriam drásticas modificações quanto às permissividades relativas ao padrão
de ocupação da área com importância patrimonial”.45 Segundo este mesmo artigo, o foco dos
empreendimentos imobiliários buscou ressaltar um padrão espacial voltado a moradores jovens
que se alinhariam com um novo modo de habitar o centro. Entre os prédios históricos passam a
emergir grandes torres habitacionais. Para a execução deste Plano de revitalização foram sele-
cionadas algumas ruas, praças e o Terminal do Guadalupe.46

42 ROMAGNOLLI, L. Lojistas recebem apoio para melhorar atendimento. Gazeta do Povo, jul. 2009. In: CRESTANI, op. cit., p. 187.

43 Idem.

44 LEITE, R. P. (2002). Contrausos e espaço público: notas sobre a construção social dos lugares na Manguetown.
Revista brasileira de Ciências Sociais [online], v. 17, n. 49, p. 115-134. In: CRESTANI, op. cit., p. 187.

45 CRESTANI, op. cit., p. 188.

46 Nesta mesma época foi elaborado o projeto para o Bonde Turístico, com percurso de visitação histórica: Praça Eufrásio Correia,
Rua Barão do Rio Branco, Rua Riachuelo, Passeio Público, Teatro Guaíra, Rua XV de Novembro e Praça Eufrásio Correia.

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Rua Riachuelo e São Francisco
Rua Saldanha Marinho
Rua Emiliano Perneta
Terminal Guadalupe e Rua João Negrão
Praça 19 de Dezembro
Praça Carlos Gomes

O turismo também seria fomentado por meio das transformações pela qual passaria
a Riachuelo. Segundo este plano, e, segundo este “sonho”, futuramente a rua deixaria para
trás sua imagem de abandono, para se transformar em um “grande boulevard gastronô-
mico, com bistrôs, cafés e restaurantes, que dividirão com pontos de cultura os atrativos
locais, afirmou o prefeito”.47
Após a revitalização da Rua Riachuelo e da Rua São Francisco a mudança de gestão
interrompeu o andamento do programa. O projeto Novo Centro perdeu forças e as prio-
ridades foram outras, até aparecer o novo plano, o Rosto da Cidade, em março de 2019.

47 GAZETA DO POVO. Prefeitura publica edital para revitalização das calçadas da Riachuelo. 17 jul. 2009. Disponí-
vel em: http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo. phtml?id=906336. In: CRESTANI, op. cit., p. 191.

107
ETAPA 1 ETAPA 3
Pintura de 14 prédios públicos Recuperação da região das praças Tiradentes,
históricos. Casa Hoffmann, Casa Borges de Macedo e Generoso Marques.
Romário Martins, Casa da Memória,
Memorial de Curitiba, Arcadas de São ETAPA 4
Francisco, Palacete Wolf, Casa do
Recuperação da região entre as ruas Barão
Artesanato, Conservatório de Música
do Rio Branco e Riachuelo.
Popular Brasileira, Solar dos Guimarães,
Cinemateca, Teatro Novelas Curitibanas,
Cemitério Municipal São Francisco de ETAPA 5
Paula, Solar do Barão e a Casa da União Recuperação da Rua Trajano Reis, desde o
Paranaense dos Estudantes. Setor Histórico até a Praça do Gaúcho.

ETAPA 2 ETAPA 6
Recuperação da região entre o Largo da Recuperação da Rua Voluntários da Pátria desde a
Ordem e a Rua São Francisco. Praça Osório até a Praça Rui Barbosa.

Vamos agora ouvir aqueles que presenciaram estas transformações na São Francis-
co, desde 2012 (continuação do Plano de 2008, da Riachuelo) mais especificamente, de
maneira cotidiana e informal, quase sem qualquer publicidade, enfrentando o dia a dia do
tráfico, prostituição e esvaziamento de clientela até 2018, ano em que registramos estas
entrevistas.
Mas antes, mais algumas considerações sobre nossa pequena rua publicada na mes-
ma época em que registramos estas entrevistas, escrita para o jornal Gazeta do Povo pelo
jornalista Carlos Coelho, matéria publicada dia 22 de maio de 2018: “Ascenção e queda da
São Francisco: por que a revitalização da rua histórica falhou?”
“O que era há pouco tempo a rua mais cheia de vida da cidade é agora um esqueleto
agonizante de grafites e portas fechadas”.
A questão principal tratada neste artigo indica uma mudança de “perfil” da rua: o que
antes era uma incursão ao tradicional, diurna, para almoçar, fazer um lanche e caminhar
pelo espaço estreito com destino certo, com a chegada de bares “descolados”, como afir-
ma o autor, instaurou-se a versão noturna da rua, transformando-a em point de diversão.

108
Assim, vieram atrás os “hipsters, jovens alternativos altamente antenados em cultura,
cervejas artesanais e bicicletas”.
Como muito bem assinala o autor, de rua escura a São Francisco passou a ser “cenário
inspirador, meio Brooklin, meio Berlim, com grafites adornando os bonitos prédios históricos”.
Mas foi de repente, diz ele: “um clima soturno começou a tomar conta do espaço”. Bares
fecharam, as fachadas obstruídas indicam desistência e abandono. Ao que tudo indica o tráfi-
co está cada vez mais presente.
A bem da verdade, dos restaurantes tradicionais da rua, desde o Plano Novo Centro de
2012, apenas a Confeitaria Blumenau, na primeira quadra, fechou definitivamente. O restau-
rante Mikado, que havia fechado em dezembro de 2015, em razão da aposentadoria dos seus
donos originais, foi reaberto pelo casal Fukui no dia 16 de abril de 2016, no mesmo estilo, com
os mesmos funcionários e novos donos, depois de 25 anos de sucesso. E continua ativo.
O restaurante de massas Nonna Giovanna está na rua há mais de 40 anos. Só abre para al-
moço, atende a famílias e reuniões coletivas de grupos de empresários por reserva, e a todo o
público que ali chega da maneira mais informal e casual, especialmente aqueles que trabalham
no centro ou por ali passam por turismo ou compras no centro. Portanto, sua relação com a
rua é mais tradicional, de um comércio normal.
Outras impressões foram colhidas numa reportagem publicada em 2015, pela Gazeta do
Povo: para a costureira, estabelecida do mesmo lado dos restaurantes, a rua deveria ser pre-
servada para as futuras gerações porque é “histórica”, e, o resultado mais positivo da revitali-
zação teria sido, de fato, a mudança na segurança, em função da iluminação, porque as pesso-
as “tinham muito medo da rua”. No primeiro ano, declarou ela, “havia muitas portas fechadas”.
A situação foi muito semelhante para o proprietário do restaurante São Francisco, funda-
do em 1955 por um espanhol, Sr. Vásquez. Na opinião de Valentim Vásquez, filho do fundador
e proprietário desde 1961, depois da revitalização a rua ficou um tanto abandonada. Faltou
policiamento e continuidade no processo comercial. Talvez este tenha sido o olhar daqueles
que viam a rua em 2015, diariamente, de dia, de dentro dos seus lugares de trabalho.
Mas e o olhar dos donos de bares, aqueles que tiveram que enfrentar o alegado aumento
do tráfico de drogas e prostituição da rua, bem como a mencionada “invasão” das classes po-
pulares oriundas da periferia?
Como pudemos observar nos comentários acerca da primeira quadra, entre a Presidente
Faria e a Riachuelo, os bares tomados como referência lidaram com tudo isso de maneira bem

109
diferente: enquanto uns abandonaram a rua, o Camaleão Cultural alega ter encontrado uma
maneira “democrática” de lidar com esta situação, abrindo as portas para todos, barrando as
drogas para dentro do seu bar e fechando os olhos para o tráfico lá fora. Tocando a vida para
frente com muita música, diversão, uma programação cultural popular e autofinanciada. Mas
a maioria das portas continua fechada.
Nesta segunda quadra temos uma situação que suscita novos comentários: a presença
estável de três restaurantes antigos, cujos estabelecimentos são de propriedade destes co-
merciantes. Estão, portanto “estabelecidos” na rua desde há, pelo menos, mais de 30 anos.
Por outro lado, não convivem com a vida noturna desta quadra, ou, desta rua. E, ainda
que saibam e vejam algumas perambulações de traficantes e vendedores de drogas, ou, de
prostitutas e outros marginais, não têm qualquer relação direta com eles. A vigilância soli-
citada e desejada destina-se à proteção e à segurança dos seus fregueses habituais, bem
como, para que o medo não afugente novos frequentadores.
As interferências dos processos de revitalização da rua, e, mais especificamente, da qua-
dra, trouxeram benefícios evidentes porque iluminaram mais, embelezaram com novas cal-
çadas e pinturas dos edifícios abandonados.
Mas já em 2015, data destas entrevistas pela Rede Teia, reclamaram da falta de dinami-
zação do comércio, como esperavam.
Outro depoimento, raro nas notícias em geral, foi do representante da Associação dos
Moradores do Bairro São Francisco: com seu olhar de 53 anos de observação, a vida noturna
dos bares trouxe todos os problemas que os moradores nunca quiseram.
Diz este morador:

Desde o começo não estávamos otimistas com a revitalização. O bairro era mais seguro
antes dela. Quando Luciano Ducci nos chamou para conversar, falamos que não querí-
amos nada disso. Não existia tráfico de droga aqui no bairro, agora tem de sobra. Existe
policiamento, mas não é efetivo. No geral, o papel deles é mais de fiscalização. Só pra
dizer “estamos aqui”.

De maneira similar, para o proprietário do Chico Burguers, esta situação de abandono e


a presença crescente das drogas têm afastado seus frequentadores “de dois anos para cá”
(desde 2016, portanto). Ele não pretende sair do local, mas demanda mais policiamento.

110
Hoje, em 2019, as portas que continuam fechadas voltaram a ser pichadas, ocasio-
nalmente servem de abrigo e ponto de parada noturna, muitas vezes também diurna, de
vendedores de drogas e frequentadores em geral.
Mas, e os bares desta quadra?
O Bar do Fogo e o Jokers foram escolhidos, assim como o Camaleão Cultural na quadra
anterior, por apresentarem características interessantes, que estimulam nossa compre-
ensão de um possível “estilo” de ambiência noturna, que estamos procurando elaborar.
O Jokers, por exemplo, é oriundo de um bar anterior, do mesmo dono, o Circus, que
ficava logo na frente, do outro lado da rua.
Em 2015, em uma entrevista para a Rede TV Teia, o proprietário, Guto Dias, passa uma
visão positiva da revitalização recém-acontecida:

Tô achando bem bacana tudo isso que está acontecendo aqui na rua... a gente sem-
pre foi um batalhador pra que acontecesse isso. Demorou todo esse tempo pra que a
rua tivesse esse reconhecimento desse potencial que ela tem de entretenimento, de
gastronomia.

Esta visão do proprietário segue a mesma linha geral de atribuir ênfase à questão da
necessidade de um policiamento contínuo e eficiente, no entanto, já matizada pelo tipo de
experiência que eles têm com a “ambiência” noturna:

A pintura das fachadas, as calçadas e iluminação deixou a rua bem bacana... prostitui-
ção e tráfico sempre teve. Não sei se vão acabar com isso... e daí já não é mais com a
gente, é com eles lá.

111
Solicitado a definir o significado da rua com uma palavra, ele responde: “Diversão... é o
que queremos oferecer aos nossos clientes. Que eles venham pra rua pra se divertir mes-
mo”.
A história do bar adquire um significado quase à altura de um empreendimento “histó-
rico” também, um “patrimônio” da vida noturna da região: estabelecidos em edifício próprio
desde 2001, conservando o padrão arquitetônico.
Mas em 2018, em entrevista à nossa equipe, o gerente do Jokers expandiu mais esta
visão do “antes” e do “depois” da revitalização que começou lá em 2012. São seis anos de
intervalo, preparando-se para o Rosto da Cidade que foi anunciado no início de 2019.
Para quem viveu esta rua antes da revitalização, o maior problema era a prostituição.
Mas o convívio era quase natural. Mais fácil de lidar do que com o tráfico, que afugenta os
fregueses.
No começo, ele nos diz, tudo foi mais difícil: mudou o perfil da rua, os carros não podiam
mais estacionar, havia congestionamento em frente do bar. Houve uma rejeição instantâ-
nea por parte dos frequentadores.
A droga nunca foi muito problemática para o bar por algumas razões bem compreen-
síveis: só é um bar de portas abertas até às 20h30. Depois o sistema de comandas para
entrar inibe aqueles que não são habituais, ou, que não sejam o público “dirigido” deles.
Além disso, o bar tem um “segurança” particular, constante, estacionado na frente, con-
trolando a entrada, dando e recebendo as comandas, o que impede qualquer parada mais
longa sem objetivo definido, mera perambulação usual de vendedores de drogas. É pos-
sível entrar e sair livremente, ficar conversando em frente ao bar, mas grupos suspeitos
são logo dispersados, e só se pode sair após pagar o consumo. Sem dúvida, este sistema
mantém as pessoas mais dentro do que fora, mesmo porque há um “fumódromo” interno.
Mas a droga entra, sim.
Há um contínuo monitoramento interno, fiscalização nos banheiros, acompanhamen-
to de suspeitos. Uma espécie de “convivência” vigiada.
O Jokers está preparado para oferecer muita música, especialmente o rock, comidas
e bebidas sem qualquer tipo de perturbação para a vizinhança: tem vedação acústica nas
pistas de shows, e à noite, mesmo com as portas frontais abertas, não se ouve nada na rua.

112
Por esta razão, nunca teve problemas de alvarás para funcionar.
Por tudo isso, o impacto da revitalização foi acima de tudo, operacional.
Com o tempo as pessoas foram se acostumando, o movimento voltou ao normal, mas
permanece a crítica sobre a falta de dinamização do comércio, o pesar de conviver com
tantas portas fechadas, tantos edifícios desocupados e malcuidados.
Parece interessante comentar que, em nenhum dos dois discursos, do dono e do ge-
rente, apareceu qualquer menção a um “comprometimento” com movimentos culturais
explícitos, embora ambos tenham comentado que sempre preferem dar oportunidade
aos artistas locais. O gerente também destacou que na parte interior do bar há um espaço
para exposições de arte, continuamente ocupado. Mas, acima de tudo, podemos afirmar
que eles estão ali para oferecer diversão, como bem declarou o dono, Guto Dias.
O Jokers é, acima de tudo, um empreendimento comercial, consciente do seu lugar e
seu papel na São Francisco, num bairro com grande potencial turístico.
Contrapondo-se a este estilo, o Bar do Fogo é, antes de tudo, um bar que se poderia
chamar de “orgânico”: nasceu da rua e para a rua. Um bar de “fluxo”, resultado das relações
que ali existem e que se ligam em redes por toda a cidade, ou, pelo menos, por todos os
circuitos culturais de jovens e pessoas “antenadas” com o que está “rolando”.
Em abril de 2019, ao completar cinco anos de sua jovem existência, inseri-lo num espa-
ço tão patrimonial e histórico, e, acima de tudo, na cadeia dos acontecimentos que marca-
ram a rua desde a revitalização de 2012, é uma verdadeira narrativa “épica”. É como se neste
recontar tudo começasse a fazer sentido, como se a rua parasse para ouvir sua própria
história, como se estivesse “encantada” consigo mesma.
A trajetória do seu dono, o próprio nome do bar, a maneira como foi “construído”, as
teias e redes que o mantêm, o movimento que lhe dá significado poderia ser resumido
numa frase: “fluxo de rua”. Sua existência é, como foi dito anteriormente, absolutamente
“orgânica”. O bar pertence a esta rua, esta rua pertence ao bar.
Joey sempre foi um “buscador”, um caminhante, um arguto colecionador de ex-
periências de vida. Jovem, curioso, destemido, sempre seguiu o “fluxo” da vida, e esta,
sempre o trouxe à São Francisco como frequentador.

113
Como se diz, a oportunidade sempre caminha ao nosso lado. E ele a agarrou.
Conhecia as pessoas, os comerciantes, os bares, os espaços fechados e viu sua
porta se abrir com uma sociedade que garantiu a fiança do aluguel, mas nenhum recurso
financeiro para estabelecer-se concretamente.
Ele queria um bar “de balcão” e uma parede lisa e contínua para fazer exposições.
Mas quando abriu as portas do espaço onde seria o bar deu de encontro com um amonto-
ado de lixo. Desta confusa profusão de restos vieram muitos recursos para a montagem do
bar: madeiras, fios, caixas, pallets... e muito trabalho.
Acima de tudo, a “argamassa” das relações que sempre soube construir: daqui e
dali foram aparecendo sugestões e doações que ele foi juntando e fazendo surgir o bar
cujo nome, diz ele com orgulho, foi o primeiro nome da rua, lá nas suas origens e mais, nun-
ca foi referência de “bons costumes”... o “fogo” das paixões, do descontrole e da quebra das
regras.
Ele ri. Na sua maneira de ver, a Prefeitura nunca “revitalizou” a rua. Fez algumas refor-
mas, consertou calçadas, colocou luminárias, e, com este desejo de “limpar”, de “clarear” a
rua, foi decretada a morte dos bares que tinham “fluxo de calçada”: não se podia mais beber
na rua, nem tocar na rua, nem ficar parado em frente aos bares que não tinham, de fato, lu-
gares internos adequados. Foi uma mudança de “estilo” sem oferecimento de alternativas.
Economicamente, foi um fracasso.
Como diz nosso entrevistado: “esta revitalização foi um tiro no pé”.
Resta saber de quem seria o pé.
Segundo nosso entrevistado, o que está havendo desde então é pura “resistência”: re-
sistir economicamente, resistir ao tráfico, resistir à própria Prefeitura que impõe regras e
proibições sem nada oferecer em troca.
Mas que troca seria possível?
Segundo Joey, a preservação e manutenção dos edifícios históricos é extremamente
cara e nenhum dono de bar poderia executar tais tarefas. Seria da competência do poder
público conservar estes edifícios e abri-los para a exploração de bares e restaurantes. A rua
cumpriria seu “destino”, enfim.
A questão que permanece em suspenso é: o poder público teria interesse e condições
financeiras de reformar estes edifícios históricos para ceder aos bares simples e despoja-
dos como o Bar do Fogo e outros semelhantes?

114
Ou teríamos aqui na São Francisco a mesma situação observada na revitalização da Ria-
chuelo, quando a parceria com as incorporadoras efetivou reformas e ocasionou a alegada
“gentrificação”?
Ao que tudo indica, por enquanto, a rua foi deixada ao seu próprio movimento, aquele do
“salve-se quem puder”. Esta é uma questão complexa. Voltaremos a ela, mesmo porque o
“abre e fecha” dos bares parece estar intimamente ligado a estas condições mais precárias de
sustentação, diante de um futuro (in)certo.
Há um sentido interessante suscitado pelo exemplo do Bar do Fogo: ao resistir às dificul-
dades financeiras e ao tráfico de drogas, os bares despojados fazem, à sua maneira, uma bar-
reira “democrática”, de múltiplas resistências/sobrevivências, dentro de um processo que o
próprio Joey denominou como sendo, fundamentalmente, fruto das relações entre frequen-
tadores de uma mesma “cultura”.
Tudo acaba sendo um fluxo: de pessoas, de mercadorias, de relações que envolvem gru-
pos de dentro e de fora da região, e mesmo, da rua. Contudo, unidos pela maneira de curtir a
vida e de viver as programações culturais.
É muito interessante acompanhar a caracterização que o próprio Joey faz do seu bar por-
que, ao descrever seu modus operandi, ele acaba por conceituar a dinâmica da vida noturna da
espinha dorsal do bairro como um todo: visualizamos a São Francisco e sua continuidade na
Trajano Reis como um percurso que constrói a “ambiência” noturna do bairro como um todo.
Vamos ouvi-lo.

[...] ninguém faz nada sozinho aqui. Aqui tudo se mistura. A menina que dança, o cara que
toca violino, o cara que desenha, o cara de publicidade, o músico... Todos estão colocados
frente a frente. Aqui é um ponto de encontro [...] e eu digo: eu não sou curador de nada,
mas ponho as pessoas em contato. Nunca seremos uma “galeria”, mas a parede deste bar
tá sempre cheia e já chamou a atenção de muitos artistas de verdade, muitos encontros,
conversas e projetos começaram aqui. Outro dia mesmo um guri que vende drogas pela
rua veio aqui, deixou sua latinha lá fora e pediu pra ver uma exposição do Retamozzo que
estava aqui... eu acho isso emocionante.

O mesmo network, ele afirma, acontece com a música e os músicos locais. Todos os esti-
los e gostos são contemplados: jazz, chorinho, samba, blues, rock, mpb...

115
Há uma programação variada, e ele paga cachê. Pouco, mas também não cobra entrada, “pas-
sa o chapéu” e mantém o bar pelas bebidas e comidinhas que serve. Entra e sai quem quer e quando
quer, com copos de plástico para beber e conversar na rua. Sim, ele tem problemas com o som,
fecha as portas depois das 22 horas, está sempre sob os olhos da fiscalização. “Normal”, diz ele.
Como ele definiria seu bar?

[...] a gente é uma série de coisas, com esse viés de produção local, desde a cerveja artesanal
desde a música, a fotografia, pintor de telas, grafiteiro, desde a coxinha que vendemos aqui [...]
a gente tem a “rede” como identidade. Ontem estava tendo jazz aqui, com uma exposição de
desenhos sobre o carnaval, e mesas com toalhas de chita. Temos uma linguagem visual, sonora.

E sobre a “limpeza” da rua proposta pela revitalização no sentido material quanto humano?

[...] fizeram algumas coisas mal e porcamente. Depois abandonaram. Agora estão tendo que
consertar. (sobre as calçadas)
Tem gente que chega aqui querendo mudar a rua.
Pera aí, cara. Mas essa rua é assim desde que ela existe.
O meu bar se chama “bar do fogo” porque o primeiro nome desta rua foi “rua do fogo”, devido à
prostituição que existia.
Agora eu chego aqui querendo que não tenha prostituta na porta do meu bar? Eu gostaria que
isso não existisse, mas é o trabalho delas, e deles que vendem drogas. Foi isso o que a vida deu
pra eles fazerem. Eu procuro conviver com todos da maneira mais harmoniosa possível. Só não
deixo traficante entrar no meu bar.

A São Francisco foi “invadida” pela periferia?

A rua tá aí pra ser invadida por todos, né? Eu acho que o pessoal da periferia tem mesmo que vir
pro centro porque o foco da convivência cultural tá todo no centro da cidade. Aqui tem isso e
aquilo. Vai lá na periferia... o que eles tem pra ver?

Enfim, ele justifica sua presença na rua ligando-se aos movimentos culturais que o precederam,
como a construção da Praça de Bolso do Ciclista, a existência das propostas da “bicicletaria cultural”.

116
Seu lugar na rua é dado, portanto, por uma filiação ideológica de defesa da cultura e
uma rotina de trabalho aberta e inclusiva.
Em relação às drogas, como para o Jokers, elas não constituem o problema mais grave.
Se o Jokers tem uma política de exclusão controlada (porque a droga entra pelas mãos dos
seus próprios fregueses), o Bar do Fogo não tem segurança própria na porta e não pratica a
exclusão declarada de pessoas suspeitas. Mas previne o contato com as pessoas suspei-
tas pela experiência.
Em resumo, seu controle é comportamental, é performático: as pessoas são reconhe-
cíveis pelos hábitos, pelo linguajar, pelos interesses, gostos e pela patota.
Este microcosmo funciona. Dá certo. Persiste. Resiste.
E, pelo que tudo indica, não dependeu diretamente da revitalização, embora nosso en-
trevistado reconheça que a parte de baixo da rua sofreu mais o abandono da falta de poli-
ciamento, mas, acima de tudo, pela ausência de comércio. Como ele declarou, a quadra de
cima sempre teve a sustentação dos restaurantes tradicionais. Eles, de forma sutil, sempre
estabeleceram uma frequência mais estável diurna, e, com isso, têm mantido os desocu-
pados e seus hábitos de perambulação mais afastados. Mesmo durante a noite.
A julgar pelas declarações de ambos os proprietários destes dois bares-ícones, a solu-
ção seria fundamentalmente investir no comércio de bares e restaurantes autossustenta-
dos, com boa infraestrutura, pari passu com a recuperação dos edifícios históricos, fecha-
dos por estarem nas mãos de particulares ou mesmo com a Prefeitura.
Mas isso levaria ao fim dos “bares de fluxo” por, talvez, poderem vir a produzir altera-
ções no uso do solo, nos valores dos aluguéis, nas restrições quanto ao uso dos edifícios
históricos para iniciativas mais despojadas?
Esta ainda é uma questão em aberto.
Será necessário continuar caminhando pela “espinha dorsal” do Baixo, em direção, a
seguir, à Trajano Reis.

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LARGO DA ORDEM
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

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LARGO DA ORDEM, IGREJA DO ROSÁRIO
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

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LARGO DA ORDEM, SOLAR DO ROSÁRIO
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

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ANTES DA DESCIDA,
O LARGO E AS IGREJAS
JUNHO DE 2018
“Entre o final da São Francisco e o começo do Largo da Ordem, cruzamos a Barão do Serro Azul,
subindo pelo calçamento de paralelepípedos. Ali já nos deparamos com dois edifícios históricos,
um deles sendo uma Unidade de Interesse de Preservação (UIP), que comportam, no térreo, o co-
mércio de uma loja de móveis, loja de lembranças de Curitiba, um sebo que também vende chope
e tem mesas para fora para receber os clientes. Ali também havia uma ruína, que durante o período
da pesquisa foi demolida e está em obras para uma nova edificação.

Do outro lado da rua, está a Casa da Memória, edificação modernista, e a Casa Romário Martins, de
arquitetura colonial, que hoje em dia abriga um museu.

E é a partir da Casa Romário Martins que a rua, até ali estreita, se expande tomando a configuração
de praça, com o marco central do antigo bebedouro dos cavalos que por ali passavam no passado
remoto da fundação da cidade, rodeada em sua maioria de edificações caracterizadas como UIPs.
Estamos no coração do Centro Histórico.

No alto, as Igrejas ocupam lugar de destaque. Dentre elas, a Igreja da Ordem e o Museu de Arte
Sacra.

Neste ponto, o sagrado e o profano se misturam e o silêncio religioso do passado volta a se in-
quietar com o barulho e a música, com tantas pessoas se divertindo à sua sombra melancólica: o
Curcumany Pub Bar e o Sal Grosso têm mesas espalhadas pela calçada em frente ao bar e música ao
vivo. Já o Quintal do Monge dispõe o seu próprio quintal interno, também com música ao vivo.

A música ao vivo tocada abertamente na calçada é uma característica forte deste percurso pelo
Baixo São Francisco. Em frente ao Sal Grosso sempre se encontram hippies que expõem seus ar-
tesanatos para os transeuntes. Ali também está o Teatro Universitário (TUC), que faz conexão pelo
subsolo com a Rua José Bonifácio no sentido à Praça Tiradentes.

A Igreja da Ordem e a praça do bebedouro fazem ligação com a Rua Mateus Leme, onde estão
presentes a Casa João Turim, o Centro Juvenil de Artes Plásticas o Conservatório de Música Popular
Brasileira, o bar Brasileirinho, o Antiquário Candelária e a Arcádia Sebo & Café.

A praça se afunila novamente para retomar a configuração de rua linear, porém ainda espaçosa, só
para pedestres, com mesas na calçada.

Vamos subindo em direção ao chafariz. O tradicional Bar do Alemão é estreito em relação à calçada,
porém comprido em seu espaço interno. Não conta com mesas para fora, e se difere no cardápio

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de comida tradicional alemã em relação às comidas mais comuns dos outros bares. Faz divisa com
a edificação modernista do Memorial de Curitiba, o qual contém uma praça interna que deriva do
mesmo pavimento da calçada externa. Apresenta palco e conta com atrações culturais e espaço
para exposições.

Este faz divisa com mais uma igreja, a Igreja Presbiteriana. Do outro lado da praça temos
a Casa Hoffman, que realiza atividades artísticas e culturais, o Espaço Carmela, um restau-
rante com pátio interno, o bar Caiçara, um vazio urbano, o 14 Bis Beer. Este trecho também
apresenta mesas no calçamento. Ao lado, a balada Verdant, sem relação com a calçada a
não ser as filas formadas para a entrada. E o Solar do Rosário, na esquina com a Rua Duque
de Caxias.
Chegamos, então, ao cruzamento com a Rua do Rosário, e na próxima quadra segui-
mos com a Igreja do Rosário, a fonte do Cavalo Babão, onde o calçamento se difere para o
petit-pavé.
A Avenida Jaime Reis tem início na Praça Garibaldi e, na esquina com a Trajano existe
uma panificadora, e, do lado, o Garden Hamburgueria, o bar Alchemia e o Tuba’s Bar. Todos
estes, opostos ao Palácio Garibaldi. Todos estes bares usam mesas na calçada, e motos
sempre costumam estacionar ali na frente.
Seguindo uma quadra acima, temos as Ruínas São Francisco e o Belvedere, restaurado
recentemente, localizados na Praça João Cândido. Nesta parte do trajeto estão, também,
restaurantes como o Madeiro, o Durski e o La Scuderia. Onde antigamente era o Fidel Bar,
com característica latina, hoje se encontra o Folia, um bar de samba. Bem próximo está o
Snack Bar, e o Quintal da Maria, onde também tocam samba.

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A Rua Treze de Maio deriva do cruzamento com a Jaime Reis, e desde dali para frente
vai em direção ao Teatro Guaíra. Nela se localizam companhias de teatro, o templo Hare
Krishna, o Dizzy Café Concerto e o Vitto Bar. Assim, depois desta volta pela conhecida
Praça do Relógio, lugar onde acontecem as feirinhas de domingo, chegamos, finalmente,
à descida da Trajano Reis.”

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PRAÇA GARIBALDI
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

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RUA TRAJANO REIS, BAR VILLA BAMBU
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

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TRAJANO REIS: ENTRE AS
IGREJAS E O CEMITÉRIO,
OS BARES

MAIO DE 2018
“[...] nos encontramos no chafariz do Largo da Ordem, conhecido como o “cavalo babão”, pontual-
mente às 18 horas. Ali já estavam algumas pessoas, sentadas na mureta, que, como nós, pareciam
estar esperando outras.

Um ponto de encontro muito difundido, popular e divertido.

Seguimos nosso trajeto em direção ao bairro, descendo a Trajano no contrafluxo dos carros.

No alto da Trajano, o primeiro bar: o Villa Bambu, com seu astral hippie dos anos 1960/1970, tanto
pela decoração de cartazes internos, quanto pela fachada do bar, com pintura figurativa, de cores
fortes, de inspiração psicodélica, chamou nossa atenção. Muitos frequentadores deste bar, que
pareciam habituais, mostravam uma identidade hippie, uma atualização dos anos de ouro do reg-
gae, um tanto rastafári...

Mas não apenas pelo visual.

Eram 18h30 quando chegamos ali e o som mecânico, vindo de dentro do bar, reforçava a atmos-
fera com clássicos de reggae e rock, inspirando umas 15 pessoas que já estavam em frente ao bar,
na calçada, em rodinhas de conversas com suas bebidas nas mãos. Como observado em outras
situações, muitos frequentadores trazem suas “próprias” bebidas, vinhos, destilados, em garrafas
plásticas. Dentro do bar, já se intensificava o fluxo de idas e vindas para pegar cerveja “litrão” em
garrafas, vendida no balcão, e usar o banheiro, unissex.

Num ponto em frente ao bar, um pouco deslocado para o lado, um duo de músicos argentinos
começa a montar seu “set” de percussão (objetos caseiros e recicláveis como baldes, garrafas pets
de plástico ou vidro, bacias de vários tamanhos) e já iam dispondo na calçada alguns instrumentos,
um deles o “exótico” didgeridoo, colocado sobre uma banqueta, ao lado de uma pequena mesa de
som de quatro canais e microfone. O duo, chamado Organic Beat, como informado, carrega seu
“kit musical”, mochilando.

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RUA TRAJANO REIS, BAR VILLA BAMBU
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

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Por volta das 19h30 já havia aumentado o público na frente do bar, onde só tem um muro pichado.
Já se fazia um grupo de aproximadamente 30, 35 pessoas e, então, ali pelas 20h30 os músicos já
foram testando o som e se posicionando, atraindo a “galera” à sua volta.

O cheiro da maconha se intensificava e o fluxo de transeuntes, também, nitidamente realizando o


que parece ser o modus operandi da rua: aquela “paradinha” para trocar algumas palavras com os
mais conhecidos, para sentir o astral, seguindo, então, no percurso dos bares até se amarrar um
pouco mais, por pura casualidade, num ou n’outro naquela noite. De bicicleta ou a pé, o importan-
te é marcar a presença, trocar informações, ter o que contar por aqui e por ali. Neste movimento,
neste “fluxo”, uma rede de relações vai se tecendo.

Uma figura rastafári se destaca.48

Ele é frequentador do bar e reconhecido na cena.

Quando chegamos ele estava sozinho, em seu “posto” na frente do bar, mas sua presença já reper-
cutia, pois muitas pessoas o cumprimentavam, algumas acenando de longe enquanto caminha-
vam no “fluxo”, outras conversando rapidamente com ele.

Descobrimos que ele mora na Barreirinha, e é formado em Filosofia.

Este era, aliás, o conteúdo das suas conversas, citando autores, teorias e debates “existenciais”.

Naquele momento do nosso percurso ele parecia já estar bastante alcoolizado quando se sentou
do nosso lado com duas amigas. O tema da conversa continuava, mas em dado momento ele
chegou a cair no meu colo, num desequilíbrio etílico para em seguida se recuperar, endireitando-se,
para logo em seguida continuar dormindo no colo de uma das amigas, despertando o interesse de
muitas pessoas ao redor que perguntavam se ele estaria “bem”. Ele foi uma das muitas personas
que vínhamos encontrando na região.

Outro tipo característico, diurno e noturno, é o “hippie profissional”: com suas lonas portáteis, dis-
pondo seus adornos em bijuteria (colares, pulseiras, brincos e anéis), sandálias e bolsas, cachimbos
para degustar algumas drogas, tudo de artesanato em couro, madeira, fibras e coco.

Se no início do anoitecer podíamos ver algumas crianças vendendo chicletes e balas, à medida em
que a noite avançava outros ambulantes, mais específicos, também começaram a aparecer: cigar-
ros orgânicos, sedas, isqueiros, dechavadores e apetrechos do universo canábico.

Esta movimentação causada pela instalação dos instrumentos musicais gerou um visível
reagrupamento em frente ao bar, até mesmo do outro lado da rua. O bar se esvaziou, todos
passaram a formar uma grande roda em torno da banda procurando um lugar melhor para apreciar

48 Rastafari, adepto do Rastafarianismo, movimento religioso de origem judaico-cristã, oriundo da Jamaica, com múltiplas expressões comportamentais,
tendo como ponto forte o reggae, as roupas, os cabelos, a marijuana, os adornos tradicionais como os dreadlocks e as cores verde, amarela e vermelha.

130
a apresentação. Parte da rua ficou ocupada, os ônibus e alguns carros passavam perigosamente,
diminuindo a velocidade.

A música começou e alguns mais animados dançavam ao redor da banda.

O uso de drogas foi se intensificando a partir desse momento, muitos espectadores preparavam
seus “baseados”, outros já fumavam livremente.

A maconha foi sendo oferecida para além das rodas mais próximas, sempre com muita naturalida-
de e cumplicidade por parte de todos os presentes.

Por volta das 21 horas, no momento em que o público já dançava em transe e o show parecia es-
tabelecido, decidimos agir como o costume local: equilibrar a observação entre o “fixo” e o “fluxo”,
percorrendo outros bares da região.

Continuando pela Trajano Reis, logo depois de atravessar a Treze de Maio, avistamos mais quatro
bares com certa concentração. Dois deles, o Havana e o Esfiha, haviam sido recentemente abertos
e os outros dois já eram mais “tradicionais”: o Sirene e o Hop Bar.

Dentre os novos bares há uma nítida diferença que pode contribuir na compreensão desta
dinâmica de abertura (manutenção) e fechamento de bares, bem como, certamente, no fluxo de
frequentadores: o Havana, por exemplo, naquele momento recém-aberto, disponibilizava música
mecânica de estilo latino na calçada, mas em seguida teve um boom de popularidade com a pre-
sença semanal da conhecida banda, de influência cubana, El Merekumbê. O Esfiha, seu vizinho, não
apresentava música, mas usufruía da circulação na medida em que oferecia comida e o Havana era
especializado em bebidas, drinques latinos e cervejas artesanais.

Neste ponto da rua o movimento de carros é mais intenso e agressivo, tornando a fronteira entre
calçada e rua mais delimitada e respeitada. No trecho do Villa Bambu, como observamos ante-
riormente, sendo um espaço mais largo e calmo, com calçamento de paralelepípedos, e, com um
fluxo de carros menor, a ocupação se torna mais alargada. Neste trecho antes da Treze de Maio o
calçamento é asfáltico, com faixas delimitadoras, portanto, mais propício à circulação de carros.

Por volta das 21h45, continuamos descendo em direção à Rua Paula Gomes e, no cruzamento entre
a Trajano Reis e a Carlos Cavalcanti, fomos abordados por um traficante que ofereceu um “cardápio”
de drogas: “verde”, “raio”, “bala”... recusamos educadamente para logo em seguida receber nova
oferta de outro que não nos havia visto recusar a venda anterior, com o mesmo “cardápio”...

Seguimos em direção ao outro núcleo de bares localizado no meio da quadra até a esquina com
a Paula Gomes. Desde ali já pudemos avistar mais dois bares com uma concentração maior à sua
frente, na calçada, mas com uma diferença: havia, também, um forte público dentro deles.

O primeiro, Paradoja, tinha público dentro e fora do bar porque ele oferece capacidade interna para
200 pessoas. Esta característica estaria “equilibrando” o fluxo de dentro e o de fora, e até mes-
mo gerando uma movimentação interna no bar na medida em que havia um espaço com mesas

131
e bancos no fundo, uma espécie de “praça”, liberada para fumar cigarros. Neste caso específico,
portanto, não seria a música em si mesma que estaria “segurando” os frequentadores dentro do
bar, mas a liberdade, conforto e segurança de uma área interna, privada.

Outro bar com características semelhantes e com forte concentração na calçada é o Purple Reis.
Com intenso apelo musical voltado ao rock e ao jazz, é um antigo casarão que manteve parte de
suas características originais. O interior do bar é recortado em cômodos, devido à planta original.
Há uma área de convivência, um piso superior e um ambiente maior na frente do balcão com me-
sas, cadeiras e algumas banquetas mais altas para mesas magras e altas de canto. Neste espaço
acontecem as apresentações musicais, do lado da janela frontal, não muito baixa, seguindo o
padrão dos casarões históricos com janelas para a rua.

O forte do cardápio é a pizza, servida em pratos e guardanapos de papel, próprios para este fim,
bem como chopes artesanais de várias marcas, uma especialidade da casa.

Por volta das 22 horas, em todos os bares que percorremos já podíamos notar o fluxo de calçada,
com rodas na frente de todos os estabelecimentos.

Seguimos em direção à Rua Paula Gomes e já sentimos a falta do tradicional O Torto, que estava
fechado e, portanto, o movimento desta quadra da Paula Gomes, entre a Trajano e a Duque de
Caxias estava praticamente inerte, com exceção de uma pequena lanchonete que abriu recen-
temente e o Olds Bar, com uma agitação considerável, mas dentro do bar com sinuca e música
mecânica.

Logo em seguida, uma das únicas “baladas” do bairro, o Paradis Club, na Rua Paula Gomes, se
preparava para realizar uma de suas festas mais tradicionais, “Só o soul salva”. Naquele momento,
perto das 23 horas o movimento era escasso e, segundo o segurança, havia apenas em torno de
20 pessoas na casa: “aqui o pessoal começa a chegar mais tarde mesmo. Quem vem antes é por
medo da fila que costuma se formar em dias das festas mais conhecidas”, afirmou ele.”

132
A TRAJANO REIS E A ESPINHA
DORSAL DO BAIXO SÃO
FRANCISCO
Estamos falando do final ou do começo da “espinha dorsal”, metáfora e metonímia
de um trajeto que vem lá da São Francisco, saindo da Presidente Faria? Ou, ao contrário,
que vem da Praça do Gaúcho e do Cemitério Municipal e vai desaguar na Praça de Bolso do
Ciclista?
Começo e fim de um caminho delineado pela experiência histórica do princípio da
fundação de uma grande cidade que, ao crescer, foi deixando os traços indeléveis de um
circuito entre a vida e a morte: as igrejas, no alto deste “circuito”, revelando a “elipse” da
vida e da morte, propiciando casamentos, batizados e extremas-unções numa repetição
cíclica e ritual das sociedades humanas. E suas “pontas” (São Francisco e Trajano Reis),
começo e fim desta caminhada, enterradas fundo numa história de águas (parte baixa,
Passeio Público, rios, fontes e inundações iniciais, onde viviam os pobres...), lama nas ca-
minhadas em direção às igrejas do alto e à descida escorregadia que, finalmente, levava
ao descanso, ao ponto final...
Tanto o registro histórico quanto a crônica jornalística apontam para o tom “ritual”
desta famosa rua:

Em princípio, um caminho lamacento que ligava a antiga Igreja do Rosário ao Cemi-


tério Municipal, Campo Santo mandado construir pelo conselheiro Zacarias de Góis
e Vasconcelos na chácara que pertencera ao padre Agostinho Machado Lima. Sua
primeira denominação popular foi rua do Cemitério, Posteriormente foi batizada de
Rua América [...] Por esta rua da última viagem passou grande parte dos funerais re-
alizados em Curitiba. Do mais simples “enterro de 3ª” até os pomposos com acom-

133
134
RUA TRAJANO REIS ESQUINA COM A PAULA GOMES
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

135
RUA TRAJANO REIS ESQUINA COM A PAULA GOMES
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

136
panhamento melancólico da banda da Força Pública. Todos eles com destino certo: a
antiga chácara do Padre Agostinho.49

Por outro lado, algumas reportagens jornalísticas “atualizam” estes dados com novas
figurações que ressoam ecos deste passado:

Desde o período colonial quando a via era caminho lamacento entre as missas de cor-
po presente na Igreja do Rosário e o então recém-inaugurado cemitério da cidade, até
as agitadas noites boêmias dos dias atuais, a Trajano Reis é uma via com camadas so-
brepostas de história social e arquitetônica que dizem muito sobre quem foi e quem é
o curitibano que nela vive e viveu.50

A Trajano de uns anos pra cá, entrou no circuito cultural da cidade que envolve boemia
e a chamada baixa gastronomia e este comércio ocupou os casarões, alguns sem mui-
to pudor com o patrimônio histórico [...].51

Sem dúvida os bares constituem a marca registrada deste “recorte” do bairro, a jul-
gar, primeiramente, pela pesquisa de campo realizada durante os anos de 2018/2019, bem
como pelas reportagens sistematicamente publicadas em jornais e revistas de aponta-
mentos turísticos.
Muitos, ou poucos points, serão sempre uma questão de momento, porque há sempre
que considerar um evidente e ininterrupto movimento de “abre e fecha” de bares em todo
o percurso, desde a primeira quadra da São Francisco. Alguns, apenas, têm se mantido ape-
sar das dificuldades impostas, segundo os informantes, pela Prefeitura, e pelo comércio de
lazer em si mesmo, bastante flutuante.

49 Coluna “Curitiba Naqueles Idos”, de 22 de janeiro de 2015, utilizando foto do acervo de Cid Destefani, da co-
luna Nostalgia, 2 dez. 1990. Gazeta do Povo. Foto original de autor desconhecido, tirada em 1911.

50 MOSER, Sandro. Um passeio pela Trajano Reis: uma rua com várias camadas de história. Jornal Gazeta do Povo, Urbanismo, 17 fev. 2018.
Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/haus/urbanismo/um-passeio-pela-trajano-reis-uma-rua-com-varias-camadas-de-historia/

51 Idem, citando fala do arquiteto Guilherme de Macedo.

137
Durante o tempo em que ali permanecemos foram vistos aproximadamente 12 bares
entre a Trajano Reis e a Paula Gomes, todos com características comuns, ou seja, a de que
os frequentadores se concentram nas calçadas, na maior parte dos locais e do tempo, ig-
norando as estruturas internas dos estabelecimentos. Percebendo esta dinâmica, muitos
bares, especialmente os mais sujeitos ao movimento de “abre e fecha”, não se preocupam
em ter alguma estrutura interna além do balcão de atendimento e do caixa, com uma atu-
ação muito simplificada, oferecendo bebida e/ou comida rápida, vendida e consumida em
circulação, no local.
Este modelo acaba por ser um círculo vicioso na medida em que o baixo investimento
pode dar algum lucro imediato, mas também os torna vulneráveis por acabar induzindo à
concentração nas calçadas, justamente o que é mais visado pela fiscalização municipal.
No entanto, em que sentidos, figurados, certamente, refazemos estes passos bus-
cando significados subjacentes nestes últimos ou primeiros 800 metros de uma rua já con-
sagrada pela vida noturna da cidade? Certamente este não é o único, nem talvez o mais
“badalado” circuito noturno de bares na noite curitibana.
Mas tem, com toda certeza, uma dinâmica especial.
E qual seria ela?
Como em todo o percurso já trilhado e observado, são as experiências de ocupação,
narradas por aqueles que ali vieram se estabelecendo, suas escolhas, motivos e perma-
nências que podem nos oferecer nosso ângulo de visão: de fato, seria impossível correr atrás
do fugaz, e, embora esta “fugacidade” seja uma espécie de identidade produzida pelo
modo de existência do circuito (o abre e fecha contínuo dos bares e a perambulação dos
frequentadores), é na sua contracapa que podemos “ler”, interpretar este substrato, esta
sedimentação que pode oferecer algum viés de compreensão desta referida dinâmica es-
pecial.
Portanto, vamos agora, “entrar” em alguns bares, a partir das palavras que ali “habi-
tam”, no discurso dos seus proprietários.
O Villa tem uma história dramática de continuidade.
Em 2018, o bar recebeu uma ordem de fechamento solicitada pelo Meio Ambiente e
expedida pelo Ministério Público, além de uma multa de R$ 100 mil, tudo em andamento
até hoje...
A violência estava sendo a tônica daquele momento crítico:

138
“[...] o pessoal da Ação Integrada da Fiscalização Urbana (AIFU), chega com es-
copeta, manda todo mundo sair do bar. Às vezes, o pessoal sai sem pagar, o pes-
soal vai embora e não volta mais...”
Com mais de 10 anos de existência no local, colado ao Largo da Ordem, onde
tudo acontece em termos de lazer e cultura, a inusitada e agressiva ação, munida e
protocolada com documento “oficial” para ser assinado na hora, sob coação, havia
gerado um prejuízo de mais de R$ 100 mil até aquele momento. O tom da declara-
ção sugere uma gestão muito indigesta. Incomum, até então.
O som, a música, os músicos, tudo muito problemático.
As denúncias sobre o barulho, sobre a perturbação aos vizinhos, ainda que
neste ponto específico os estabelecimentos se caracterizem mais como comer-
ciais, acabaram por causar repercussões um tanto “exageradas”, na opinião do
proprietário:

“[...] da vizinhança, 20% é morador, o resto


é comércio. Mas tem um vizinho que tem
parente na polícia e eles não perdoam. Nem
violão na calçada. Um simples ‘batuquinho’ e
já chegam três viaturas...”
“[...] na Europa é bonito. Aqui é vagabundo.
Vão contra o que era pra ser natural: tocar
na rua, atrair turismo. A Prefeitura quer que
o centro seja turístico, mas tem a questão da
repressão da música na rua.”
Mas esta situação chegou ao ápice quando foram presos um músico, um poeta,
um punk e um desconhecido...52

52 Esta tipificação é extremamente significativa, pois conforma o universo inteiro da frequência da rua, uma
vez que todo mundo que por aqui perambula é um pouco disso. Na massa de “desconhecidos”, na qual cabe-
mos todos, alguns se destacam pela identidade assumida e/ou atuada pelas outras categorias.

139
“[...] foi no ano passado. Estavam tocando, a PM
chegou já recolhendo o equipamento. Jogou
a caixa de som no porta-malas. Era sexta ou
sábado por volta das 20h. Os punks jogaram
coisas na polícia, a polícia revidou, bateu numa
galera. O pessoal que saiu daqui saiu todo
ensanguentado, todo mundo foi pro hospital
antes de ir pra delegacia. Os caras bateram
bastante, os policiais apanharam, a galera não
aguentou e revidou [...]”

Nem mesmo a licença de “músico” estava mais servindo de garantia e, depois que al-
guns deles ficaram acorrentados na frente do bar, durante uma ação policial, os músicos
ficaram com medo de tocar ali.

“[...] mataram o bar. Era um bar cultural e virou


só um bar e desde que estamos sem música o
bar está no vermelho. Estamos tentando ativar
a cozinha para ver se dá lucro [...]”

Depois disso não puderam mais combinar nada com músicos, nada mais puderam
oferecer-lhes que colocasse o bar nesta cadeia de reciprocidades que constitui o am-
biente de lazer noturno: nem bebida, nem alimentação, nem os cachês que resultavam
do “passar o chapéu”...

“[...] agora aqui trabalham só três televisões.


Este é o nosso som atual [...]”

A verdade é que a repressão policial sempre esteve atrelada a duas questões


fundamentais: uma delas é a que se expressa no comportamento “sonoro” dos

140
bares, e isso está ligado essencialmente à questão dos alvarás de funcionamento, e,
concomitantemente, baseada no controle dos decibéis que, excedidos, causam perturbação
ambiental. Esta repressão mais agressiva, inicial, veio sendo, ao longo dos últimos anos,
controlada por um acordo tácito entre a Prefeitura e os bares: a internalização da música,
do som, dos happenings culturais/musicais.

“[...] segurar as portas dos bares. Quem tem


espaço vai conseguir mais clientes. É perigoso
insistir em tocar na rua porque o bar acaba tendo
responsabilidade sobre quem toca na rua [...]”
A outra questão, mais subjacente e sutil, seria o confronto entre o projeto cultural para
a região, e aquele que veio se desenvolvendo ali, de forma espontânea. Aparentemente, e,
como acontece de forma usual, os embates são tratados, primeiramente, a partir das suas
formas expressivas, externas, sem avaliar suas determinações mais profundas, internas.
Neste sentido, parece oportuno ouvir o que este proprietário pensa da sua inserção na
produção cultural da região:

“[...] o pessoal, principalmente os sul-america-


nos, viajantes, indicavam o bar para os músicos
tocarem. A gente conseguia dar uma grana pro
cara, passar o chapéu, dar uma janta. Quase to-
dos os sons muito bons. Dali surgiam convites
para pessoas de outros lugares. Mas o pessoal
deixou de vir. Uma pena porque era um monte de
artistas que são formadores de opinião [...]”

141
Primeiramente, é notável o destaque para a música.
Em segundo lugar, em nenhum momento ele fala de qualquer estilo em particular, ou
preferência, ou especialização que o bar pudesse ter neste sentido. Assim, a música apa-
rece mais como um produto vendável e preferencial. Uma condutora dos sentidos e ações.
E o proprietário, em seu depoimento, alia seu bar à uma existência coletiva, prévia, do
seu entorno: cita o Largo da Ordem, fala de uma certa corrente de trocas por meio da mú-
sica. Só menciona a comida como alternativa para salvar seu movimento.
E, por fim, melancolicamente, afirma que a repressão municipal “matou” seu bar, e que,
sem a música ao vivo, de rua de modo especial, tornou-se apenas “mais um bar”. Sem pre-
ver nada, estamos no tema da rua: a morte.
No entanto, apesar de no passado ter sido o caminho do cemitério, aquela referência
melancólica e lúgubre, hoje revela um astral que parece apontar muito mais para uma certa
hybris, no sentido mitológico grego:

A húbris ou hybris é um conceito grego que pode ser traduzido como “tudo o que
passa da medida, um descomedimento. Uma presunção, arrogância ou insolência
(originalmente contra os deuses) que, com frequência acaba sendo punida. Na antiga
Grécia, aludia a um desprezo temerário pelo espaço pessoal alheio, unido à falta de
controle sobre os próprios impulsos, sendo um sentimento violento inspirado pelas
paixões exageradas [...]53

Vamos caminhar um pouco mais, sempre com cuidado, lembrando que, segundo o
aforismo mitológico grego, “aquele a quem os deuses querem destruir, primeiro deixam-
-no louco.”54
Na frente do Purple Reis o movimento é intenso.
Gente dentro, gente fora, um entra e sai ininterrupto.
E a música rolando solta, em bom tom, dentro do bar, ao pé da janela que dá para a rua,
enfim, um velho casarão histórico, uma unidade de preservação (UIP) reocupada para o
lazer.

53 CALAZANS, Selma. Hybris. 27 dez. 2009. E- Dicionário de termos literários, de Carlos Ceia. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/hybris/

54 Idem.

142
No começo de 2016, Henrique, que já era proprietário do bar O Pensador desde 2006,
na Rua Visconde do Rio Branco, Mercês, soube de um casarão histórico disponível no meio da
Trajano Reis.
O Pensador é um local pequeno, de esquina, e muito prestigiado, especializado em jazz,
blues e afins, bem como em cervejas artesanais, e eles queriam expandir dentro do mesmo
perfil.
A Trajano Reis era uma rua esfuziante nesta época, com aproximadamente 30 bares num
espaço de três ou quatro quadras. Com um público flutuante, nenhum dos bares naquela
época tinha música ao vivo como eles pensavam em fazer e que seguia a prática do Pensador.
Ao fazer uma avaliação do local, ele nos conta que sempre observou o grande fluxo de
pessoas circulando nas calçadas porque, na realidade, todos os bares tinham (e ainda têm)
aquele apelo de “rua”: pegar comida e bebida no balcão e ficar em frente ao bar, conversando.
Este “pega e leva”, como diz, acaba causando muito transtorno na rua, juntando todo tipo
de pessoas que nem estão consumindo nos bares, que muitas vezes trazem bebidas de ou-
tros lugares, e, com isso, também trazem as drogas, a aglomeração e as confusões.
Conhecedor da região, ele sabe que desde há 10, 15 anos, sempre houve esta tendência
de ficar na porta dos bares, especialmente depois da lei antifumo: as pessoas saíam para
fumar na frente dos bares, mas voltavam pela programação.
Apesar das dificuldades inerentes a esta rua, diz ele, como o constante perigo de batidas
policiais afugentando muitos fregueses preferenciais e também muita heterogeneidade de
pessoas em movimento, ali existe um público muito “cultural”, apesar de não ser um padrão
burguês, e eles queriam apostar nisso. Além do mais, gostaram imediatamente da casa: o
leiaute, o pé-direito alto, lugar grande como sempre quiseram para poder ampliar a oferta de
música, bandas e grupos. Na realidade, diz Henrique, não escolheram o Baixo, e sim, a casa...
Por outro lado, há que considerar a ousadia e o desafio estimulante de “entrar na
contramão” da rua: onde todos os preços são baixos, quando a comida não é o grande atrativo,
onde não se tem quase onde sentar, e a música é transitória e fugaz, o Purple Reis trouxe um
interior convidativo para ficar e acompanhar a programação, um cardápio definido de gosto
popular e qualidade (pizzas), uma bebida-padrão (cervejas artesanais), uma programação de
alto nível (jazz e blues com músicos de primeira qualidade).
Além disso, também exibem exposições, fazem workshop de cervejas, não cobram
entrada e os preços são equivalentes ao geral dos bares.

143
Como o bar consegue equilibrar as finanças com este projeto, mais elaborado do que
o comum?
São vários os aspectos interligados, e o proprietário revela sua experiência no manejo
diferenciado de público e consumidor: tirar o público da rua evita confusão com a vizinhança,
e isso se consegue com a música na parte interna, com vedação e controle do som. Ainda
que o bar lote, as pessoas só ficam na rua nos intervalos para fumar e conversar, enquanto
aguardam a retomada musical. Este público é naturalmente “irrequieto” pelo próprio modus
operandi da rua, da mobilidade dos fluxos, de uma certa insaciedade da noite e do lazer. No
entanto, este esforço traz recompensas na medida em que este mesmo público é sensível
à ideia de que, acima de tudo, está consumindo cultura, ou seja, há um ethos operando
nestes comportamentos de “consumo” fortemente ancorados numa identidade coletiva
diferenciada. Voltaremos a esta questão no final.
Outro aspecto, muito relevante, é a questão de como o Purple Reis compreende sua
participação no mundo cultural da rua, do bairro, enfim.
Em princípio, há uma avaliação de que, depois do Wonka Bar, fechado há uns quatro ou
cinco anos, a rua teria ficado “sem cultura”, e que o Purple estaria trazendo de volta esta
possibilidade de fruição. De certa maneira, há um “diálogo” com este passado, que reforça
a ideia de que ao longo deste tempo teria havido uma precarização no modo de produção
cultural local, da rua em si.
Falta de investimentos diante da pressão da fiscalização, falta de recursos financeiros
para adaptar os bares às exigências do Meio Ambiente, portanto, perda dos alvarás, perda
das performances musicais ao vivo, deixando a rua à mercê de um fluxo ainda mais indeter-
minado, mais fugaz, mais vulnerável às intempéries do tráfico sempre crescente.
Sem dúvida há por parte do entrevistado a compreensão de que as manifestações de
rua (performances musicais, entre outras...) derivam, em primeiro lugar, de uma demanda
reprimida, e que é muito interessante que exista em seu próprio estilo. Ele não compactua
com a visão geral de que estas manifestações não teriam tanta qualificação artística, de
que seriam parte desta referida precarização cultural.
Se como afirma o dono do Purple, a intenção nunca foi apenas vender comida e bebida
para as pessoas permanecerem na rua e sim criar um “espaço cultural” como um elo de

144
convivência nesta cadeia de consumo de fluxo, então seria possível afirmar que a música
passaria a ser, neste projeto, mais um produto agregador de valor identitário tanto para o
bar quanto para a rua.
Ainda reafirmando sua ideia de que rua e bar formariam um todo dinâmico, ele conta
como convidou o grupo Guairacá, que costumava tocar na Rua XV, perto da Praça Osório,
para se apresentar no Purple Reis, e deu certo. Pode existir o movimento de fora para
dentro, e isso aumentaria a troca, a rede comunicacional cultural. Portanto este “entra e
sai” dos bares, este fluxo de consumo, esta perambulação e as ofertas de shows internos
aos bares em nada seriam excludentes. A dinâmica cultural da região, e desta rua em
particular, está assentada neste modo de ser.
Finalizando, na sua opinião, este “abre e fecha” de bares faz parte desta cultura de lazer
da Trajano e seria uma vocação, assim como a que existe na São Francisco, na Itupava, na
Coronel Dulcídio e na Vicente Machado: apelo de gente na rua, bares icônicos. É possível,
mas acreditamos que exista algo mais nesta questão identitária do Baixo. Vamos seguindo
na caminhada.55

55 O Purple Reis sofreu um grande incêndio em 12 de outubro de 2018. A fachada, histórica ficou preservada do fogo, mas a des-
truição interna foi total. Proprietário e locatários fizeram a reforma, com recursos próprios. Mais uma pincelada trágica na rua...

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RUA PAULA GOMES
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

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O TORTO
O Magrão (Arlindo Cruz) é uma figura “orgânica” no e do bairro.
Um “transplante” que deu certo: de Mauá, na região do ABC paulista, traz as marcas de
uma formação cultural simples e interiorana, de gente mais humilde cujos laços de cons-
tituição se assentam fortemente na família. Veio a reboque de um irmão e aqui teceu suas
relações começando nos bairros até chegar ao coração da cidade.
Com esta alma comunitária, depois de algumas andanças trabalhando em bares de
Curitiba, encontrou com muito esforço e dedicação, seu nicho despojado e vital na região
do Baixo.
Fez e faz desta circunstância, sua casa: um modelo aparentemente contraditório que
faz do seu lugar um misto de botequim e sala de visitas de sua própria casa. Sim, porque não
faz concessões apenas para atender demandas externas, que não venham e não se ade-
quem ao seu modo pessoal de ver a vida e dirigir seu negócio. E sua casa.
Não vende chopes, só cervejas, e, preferencialmente, em garrafa, pois considera que
a garrafa socializa: “quem compra um chope compra só pra si mesmo, já a garrafa pode ser
compartilhada, dividida entre os amigos...”
E por que uma comida além do famoso bolinho de carne? Se alguém chega à nossa
casa, oferecemos o que se tem, de coração, como dizemos sempre.
Música? Só mecânica, dos velhos tempos, como Moacir Franco, Jerry Adriani, Odair
José, Altemar Dutra, Irmãs Galvão... arriscando, vez ou outra, um Roberto Carlos e congê-
neres. Não segue nenhum padrão atual, não faz questão de fazer da música um produto
vendável, não quer música ao vivo, nem mesmo um violãozinho de canto.
Segundo ele, O Torto foi o primeiro bar do bairro a ter um fluxo de calçada.
De fato, com um bar tão pequeno, a galera se espalha na calçada da frente, claro, mas
com dois detalhes importantes: não estão curtindo música alta, apenas conversam, e ele,
o Magrão, todas as noites, limpa toda a frente do bar. Não suporta sujeira na entrada de sua
pr[opria casa.
Assim já se passaram mais de 10 anos.

147
Ali, mais velhos e mais jovens, porque estão misturados como numa família, o suceder
das gerações se incumbe de manter a frequência como na vida dos grupos comunitários:
uns vão saindo de cena, outros vão chegando e a vida segue.
O Magrão tornou-se uma figura atuante no cenário cultural da cidade, sempre a partir
do seu point de vista: de sua quadra vê o mundo da cultura, da arte, da política, das relações
humanas, enfim.
Disse a Gazeta do Paraná:

“O Torto bar é organizador da quadra cultural de


Curitiba, que acontece nas proximidades do es-
tabelecimento, reunindo música, apresentações
teatrais e brincadeira. A 5ª edição, realizada em
2013 chegou a reunir seis mil pessoas”.

Acabou a Quadra Cultural, um grande orgulho para Magrão e uma inciativa de forte sig-
nificado para compreender como esta figura emblemática do bairro entende sua presença
ali, em termos sociais e culturais, mas também políticos.
As várias edições deste evento tiveram, efetivamente, uma perspectiva de “ver o
mundo a partir do meu quintal”, pois a Paula Gomes foi o cenário destas apresentações e
o próprio Magrão justifica:

“A intenção era atrair os parentes dos que


frequentam o bar, com ídolos contemporâneos
da idade dos mais velhos. Já pensou você colocar
sua cadeira em frente à sua casa e assistir a um
show com seus ídolos?”

Ou seja, uma reunião “de família”, no quintal de casa, seguindo seu modelo de vida, de
cultura e, certamente, de política. Mas quando ele, como suposto agente cultural, quis sair
de sua rua, de sua casa e ir para o Teatro Guaíra, a coisa degringolou: ataques ao bar, ao

148
projeto da Quadra Cultural, ordem de fechamento do bar, reclamações surgidas a partir do
holofote inesperado.
Ele voltou para casa.
A decepção, os sonhos e o cotidiano deram a esta figura uma intensa loquacidade, nele
está cada vez mais presente, um líder comunitário cuja casa, o bar, continua sendo o point
de vista mais politizado e, ao mesmo tempo, mais familiar do seu entorno. Um locus que
traz em sua representação, portanto, em sua compreensão, a ambiguidade dos mitos: o
que ele pode ser, na realidade, está em aberto.
Um líder que não se importa muito em comentar as revitalizações urbanas (detalhes
municipais), a atividade dos traficantes (uma convivência inevitável e controlável), a presen-
ça da violência (assunto da polícia).
Todavia, enquanto parte de uma tipologia dos bares, como viemos desenhando até
aqui, parece interessante avaliar que O Torto faz parte de uma atmosfera clandestina, ou de
um clã sem destino, que, apesar de soar como voz no deserto, compõe um modo de estar
ali no bairro, e é isso o que nos importa.
Bares e públicos se configuram mutuamente.

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150
WONKA
Chegando ao final de um percurso concreto, ou seja, caminhando efetivamente e, ao
mesmo tempo, ao longo desta ideia de uma coluna dorsal do bairro, é, também, chegado
o momento de um salto em direção à dimensão do passado. Normalmente se pensa nos
saltos em direção ao futuro, no entanto, na maioria das vezes, para compreender o presente
é preciso retroceder.
Em 2005, a refilmagem de Tim Burton para o filme A Fantástica Fábrica de Chocolate
estreou no Brasil. Um dia antes desse lançamento, um bar abria as portas do seu porão no
centro de Curitiba, prometendo experiências como as de Charlie, no filme, ao visitar a fá-
brica. Era 21 de julho, inauguração do Wonka Bar. Passaram-se 11 anos e a dinâmica cultural
da cidade mudou. Uma nova geração iniciou-se na vida noturna. Novos ritmos musicais
entraram em alta. A lei antifumo, que entrou em vigor em 2011, induziu a clientela a ficar
mais na rua. Tudo isso, somada à crise econômica que afeta o país desde 2014, gerou que-
da no número de clientes e pesou para que a proprietária da casa, Ieda Godoy, tendesse
pelo seu fechamento. Ex-proprietária dos extintos Dromedário e Poeta Maldito, Ieda enten-
de que as coisas mudaram. ‘Surgiram outros públicos, para outros cenários. A cidade como
um todo está em outro momento. Inclusive eu. Acho que deu o tempo da casa’, explica,
sem conter algumas lágrimas. O legado não é só a história do bar, mas todas as pesso-
as que se envolveram com música e arte por influência dele. Muita gente que participa da
cena atual de Curitiba nasceu lá. O legado do Wonka são os músicos que passaram por lá e
estão espalhados pela cidade.

“Muitas noites me marcaram… lembro de uma em que pedi para a Edith [de Camargo]
interpretar “Blue Velvet” na abertura do show (o Wandula tocou muito lá!) e fiz algo di-
ferente. Coloquei um voal fechando toda a frente do palco, a banda posicionada, uma
luzinha fraca e delicada sobre cada músico, comecei projetando a cena do filme com
som, aí o som e a imagem da cena se misturavam à banda tocando baixinho atrás.
Quando Isabella Rosselini começou a cantar, tirei apenas o som do filme e a banda e

151
Edith entraram com tudo, fazendo a música sobre a cena. Quando terminaram, tirei
o tecido e o show prosseguiu. Ficou muito bonito.” As lembranças são de Ieda Godoy,
proprietária do Wonka Bar, que fecha as portas em definitivo nesta semana após 11
anos de vida. O Wonka pavimentou o caminho da Rua Trajano Reis, o inferninho de
Curitiba. Poucos anos depois de sua inauguração, em 2005, dividia porta com o tam-
bém finado Blues Velvet. Criou-se como um refúgio underground, em que seres com
Heinekens long neck ou taças de vinho fritavam nas paredes estilizadas para logo de-
pois se esconder naquele porão. Foi palco para eventos literários (o Vox Urbe), peças
de teatro e baladas estranhas, como a Club Silêncio – em que a ideia era dançar com
seus próprios fones de ouvido no meio de uma quietude generalizada. O Wonka tam-
bém abriu espaço para bandas curitibanas iniciantes, caso da Farol Cego, que estreou
um show estrondoso em 2013; e levou grupos conhecidos, como Supercordas e Les-
tics, este durante o festival “Noites de Inverno”. Entre outros que não lembro. Teve até
um improvável e sudorento show da Gretchen, aquela, em 2012. Plural ou sem identi-
dade? O bar teve muita identidade. Destemido, encarou tudo passionalmente. Fiz no
Wonka coisas que outro bar jamais fez. Diria que foi o bar mais inteligente que Curitiba
já teve”, diz Ieda. “Mas cansei de ir dormir todo dias às 6 horas da manhã, às vezes até
mais tarde. O Wonka dividiu sua existência entre duas Curitibas. A que havia antes da
lei antifumo, em 2009 (o inferninho virava um fumaceiro e até sua cueca cheirava a ni-
cotina depois da noitada) e a que veio depois, com o aumento do número de bares na
Trajano Reis, bares cujo público-alvo são pessoas que gostam simplesmente de ficar
na rua e fazer dela sua balada improvisada.”56

Os happenings do bar, observados em retrospectiva, tornam-se muito reveladores


deste locus cultural que o Wonka bar criou, como um nicho identitário de marcas profundas
e indeléveis. Mas não apenas eles: há que observar a ativa participação de Ieda Godoy na
comunidade do Baixo, na vida política e cultural como um todo.

56 Declaração de Ieda Godoy, Bem Paraná, Junho de 2016. Por ocasião dos comentários sobre o fechamento do bar.
Temos, assim, uma trajetória pessoal da proprietária, e uma identidade do bar, colhidas
mediante uma pesquisa em jornais pelo período de 13 anos, que se cruzam e que levantam
várias questões interligadas. Vamos a eles.
Qual seria o sentido desta retrospectiva para os nossos propósitos de uma (re) confi-
guração reflexiva da sugerida espinha dorsal do Baixo?
Qual seria a representatividade do Wonka para que ele seja retomado, aqui e agora,
submerso nesta esparsa iluminação destes lugares intervalares, intermediários e liminares
que são os bares?
Melhor dizendo, como pensar os bares?
Já de início, estamos falando de memórias constituídas num jogo permanente da rela-
ção entre tempo e espaço o qual, justamente, configura a ideia de lugar dentro de um espa-
ço maior que o envolve.
Haveria, portanto, uma construção concreta e simbólica, os lugares, enquanto decor-
rência da ação interativa de grupos solidários, oponentes, comunitários e/ou institucionais.
Os bares, portanto, são lugares, recortáveis de um todo que seria o espaço urbano,
constituídos pela experiência cultural das pessoas que os frequentam. E não há memória
coletiva sem um contexto espaço/temporal. Uma cidade, e/ou um bairro, neste sentido, se-
ria uma entidade constituída de lugares, falas, silêncios, lembranças e esquecimentos. Mas
também de todo o esforço para sua preservação, e dos processos de recriação, inventivi-
dade, enfim, das ocupações e reocupações sucessivas.
Enquanto lugares, assim constituídos, são, também, entidades morais, como afirmou
Roberto DaMatta, na medida em que resultam das ações sociais e despertam emoções,
sentimentos, constroem imagens, representações que se espraiam na cultura em geral e
nas artes, em particular.
Ainda seguindo o autor, poderíamos pensar os bares situados bem no âmago desta
intersecção dialética entre a casa e a rua, que demarca a sociabilidade brasileira. Apenas
que, neste caso, os bares em geral tornam-se lugares intermediários, de passagem, que
não são bem a casa e nem totalmente, a rua.57 Um lugar de negociações dos pressupostos
culturais que existem para serem preservados, ou, destruídos.

57 DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

153
No entanto, com o advento dos bares mantidos preferencialmente pelos fluxos de rua,
mais do que nunca esta ausência de demarcação no espaço público (interno e externo: casa
e rua) se faz presente e, no caso do Baixo, veio se tornando foco de muitas disputas e emba-
tes com o poder público.
Neste sentido, há bares que, como o Wonka, no seu tempo, foram criando espaços in-
ternos (físicos, com ambientação de porão, e metafóricos no sentido de acolhimento con-
ceitual: a casa) nos quais grupos solidários construíram e constroem histórias particulares,
decorrentes de ações ligadas a processos baseados em fortes identidades pactuadas como
sendo cult, underground, libertária, democrática, vanguardistas, etc.
Ainda nesta trilha, é oportuno incorporar as pontuações do antropólogo Marc Augé que
designa os lugares como identitários na medida em que são vividos e experimentados como
um conjunto de possibilidades, prescrições e proibições.58
Acima de tudo, como reforça o autor, são lugares da memória, nos quais as pessoas não
fazem a história deliberadamente, mas vivem na história.
Portanto, o que a experiência do Wonka nos conta?
Em primeiro lugar é importante lembrar aspectos da trajetória de Ieda Godoy, a proprie-
tária, no ramo desde os anos 1990, como produtora e mediadora cultural. Por exemplo, em
2011, no Wonka, foi organizada uma festa reunindo os frequentadores dos três bares que
fizeram história na noite curitibana e que foram conduzidos por ela: O Poeta Maldito (1991),
Dolores Nervosa (1992-1994) e Dromedário (1994-2001). Um percurso que vai do improviso,
O Poeta Maldito, até a sua consolidação, com o Dromedário, como agitadora cultural.
Ela exerceu ininterruptamente uma curadoria que era ao mesmo tempo ampla e diversi-
ficada, sem deixar de ser dirigida a um público de gosto aprimorado, tanto na música, quanto
no teatro, e nos happenings literomusicais. Dos exemplos listados no lote de reportagens,
há que se destacar os que se inserem no movimento firme e deliberado em direção à cons-
tituição do bar enquanto um espaço cultural: as leituras poéticas e de outros gêneros lite-
rários no Porão Loquaz, as apresentações do Wandula, happenings fortemente inspirados
no movimento beatnik, as homenagens a cantoras e compositoras de pendor feminista, a
publicação do jornal O Ovo, e os três anos consecutivos do Wonka Jazz Project, que reuniu os
mais significativos músicos do estilo da cidade.

58 AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 2004.

154
Enquanto formadora de opinião, Ieda também sempre esteve envolvida com as de-
mandas do bairro no sentido do bom funcionamento das relações entre os bares e a muni-
cipalidade/comunidade, atuação importante considerando a tensão que as envolvem. Em
resumo, tais aspectos apontam para a íntima relação entre o consumo cultural e a especi-
ficidade deste público que ao longo dos anos recebeu e atribuiu uma identidade alternativa
ao bar e a si próprios.

155
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RE- 157
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TÓRIA
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158
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ANSI-
A 159
VOLTANDO O OLHAR PARA O COMEÇO DESTA
DESCIDA, OU SUBIDA, PELA TRAJANO, É O MOMENTO
DE RETOMAR A PROPOSTA DE CONSTRUIR UMA
TIPOLOGIA DOS BARES DESDE A PRAÇA DE BOLSO
DO CICLISTA ATÉ AQUI. NOSSA SUGERIDA ESPINHA
DORSAL DO BAIXO.

Mas uma tipologia com que objetivos? E mais, construída de que maneira?
Primeiramente, a ideia de que a ocupação deste trajeto pelos bares teria acontecido
e continua se dando de maneiras variadas, mas particulares, só poderia ter sido realizada
etnograficamente, ou seja, por meio do conhecimento presencial, interior, de dentro para
fora dos bares e seus modelos de gerenciamento. Mais do que dos seus gerenciamentos,
dos motivos das suas escolhas, suas maneiras de ver o local e a si próprios como parte
deste lugar.
História e contingência. Narrativas.
Assim é que, mapeados os locais, depois de várias perambulações e andanças etno-
gráficas pelas ruas do bairro, as escolhas dos estabelecimentos que comporiam esta ti-
pologia em construção e as futuras entrevistas foram se determinando naturalmente, ao
longo da mesma rede de acontecimentos e relações que orientou a presença deles ali: lo-
calização, espaço físico, frequência externa e interna. A seguir, a aparência das fachadas, o
modo de ocupação da rua, os movimentos de fluxo e de fixação das pessoas, as atividades
LARGO DA ORDEM
2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

161
internas e externas dos bares. Mas ainda havia um aspecto discursivo que só apareceria
mais adiante, nas entrevistas, ou seja, fatores subjetivos das escolhas.59
A seguir vieram as anotações sobre tipos de vizinhança, relatos de casos de violência,
intervenções policiais e fiscalização em geral. Estes dados estiveram sempre relacionados
à implantação de planos de revitalização e ações no espaço escolhido e, ao longo do tempo.
Aos poucos, foram surgindo os protagonistas: bares, donos, públicos e municipalidade,
organicamente ajustados a alguns motivos centrais:
• As razões comerciais, ligadas ao fato de ali ser um ponto turístico, de contínuo
movimento. Todos os bares se ajustam como podem, para sobreviver. E esta é
uma questão importante: as contínuas demandas da fiscalização municipal, e as
condições financeiras de cada bar na efetiva adaptação dos seus espaços inter-
nos, vão determinando sua permanência ou fechamento. Neste sentido, nossas
escolhas seguiram pari passu as escolhas dos proprietários e daqueles bares que
permaneceram no período da pesquisa, porque o movimento de abre e fecha é
ininterrupto;
• As razões culturais, especialmente aquelas ligadas ao fato de ali se configurar ple-
namente um espaço histórico, de contínua visitação, quer estejam ou estivessem
ocupando um edifício tombado, ou não;
• As razões ideológicas, ligadas a uma espécie de síndrome participativa: estar aon-
de as coisas acontecem. O centro, o núcleo das manifestações populares, artesa-
nais, expositivas, expressivas, performáticas no pleno sentido da palavra, ou seja,
para ver, ouvir, sentir o gosto, estar junto e se expressar cultural e politicamente.
Estas razões sempre estiveram atreladas a um certo perfil dos proprietários, ge-
rentes, em acordos implícitos e/ou explícitos, com os frequentadores. Como foi
dito anteriormente, bares e público se determinam mutuamente.
Assim, desde o encontro da Presidente Faria com a Rua São Francisco, o começo ou o
final da espinha dorsal deste nosso recorte, esta primeira quadra mostrou um nítido es-
pelhamento entre os bares supostamente mais engajados política e culturalmente. Como
foi narrado em detalhes, um não resistiu às pressões da invasão de populares e do tráfico
de drogas, muito explícito nesta quadra. A influência da proximidade física e discursiva do

59 Conforme a inspiração dos estudos sobre “modelos de tomada de decisões”, especialmente aqueles da Antropologia de KEE-
SING, Roger. Statistical models and decision models of social structure: a Kwaio case. Ethnology, v. VI, n. 1, jan. 1967.

162
precursor movimento ciclista, libertário, de anseios democráticos vinculados à construção
da Praça de Bolso do Ciclista, não foi suficiente para manter os propósitos destes jovens que
acreditavam numa convivência naturalizada entre as classes sociais, na construção de uma
presença exótica e autêntica em meio a um ambiente desfavorável às suas propostas. O
segundo, o Camaleão Cultural, foi e tem sido mais capaz de lidar com as adversidades da
quadra, ampliando seu espaço interno e sua oferta de eventos culturais, abrindo suas por-
tas para todos e qualquer um, visando escapar de todos os preconceitos, notadamente os
de classe, e, acima de tudo, lidando com maleabilidade com os traficantes. Uma convivên-
cia objetiva, minimamente pactuada.
Na segunda quadra, ainda que haja uma maior diversificação, com a presença de res-
taurantes tradicionais, os bares, propriamente, realizam esta tipologia de maneira bem
clara: o Bar do Fogo, intensamente ligado aos movimentos populares, ao mesmo tempo
é reduto preferencial de frequentadores de uma categoria mais artística. Assim como o
Camaleão Cultural, realiza uma convivência múltipla, aberta, e comercialmente produtiva
na medida em que também vem se adequando aos padrões exigidos pela municipalidade,
internalizando a música, controlando, desta maneira, a poluição sonora exagerada. Em re-
lação ao tráfico de drogas, mantém a mesma posição de uma convivência pactuada: “eu
não vejo vocês, não venham vender na porta do meu bar.”
Estes dois bares, o Camaleão Cultural e o Bar do Fogo, realizam o protótipo do bar en-
quanto locus de uma ligação mais orgânica com as propostas de cunho ideológico, cultu-
ralista e popular: a ocupação dos espaços pela população, os direitos à expressão livre dos
grupos e movimentos artísticos/culturais. Podem tender à estabilidade, mas seus projetos
flutuam à mercê da exploração imobiliária, e da clientela preferencial. Se por acaso entra-
rão na vaga do abre e fecha dos bares será sempre uma questão em aberto.
O Jokers é um projeto de lazer noturno consolidado: profissionalismo, clientela fiel,
estabilidade patrimonial. Serve como contraponto nesta tipologia, mas não sofre com os
entraves causados nem pelo tráfico e tampouco pela fiscalização municipal. Também não
está atrelado ao gosto popular de apelo ideológico, de grupos particulares de interesse.
Atende aos curtidores de rock e blues, tem um cardápio acessível, mas de classe média/
alta. Suas preocupações mais evidentes são com o controle do acesso, ou seja, comandas
e entrada de pessoas muito descabidas, e a constante batalha contra o uso de drogas na
parte interna.

163
Para todos estes bares, as ações de revitalização causaram desajustes iniciais, mas
assim como não acrescentaram significativamente, também não mudaram muita coisa.
Passados os tempos de mútuas acusações e indignações, tudo parece ter voltado ao nor-
mal. As calçadas mais largas e a iluminação foram sinais positivos, sem dúvida, mas o tráfi-
co continua. As pichações tem sido perseguidas e controladas, mas os investimentos co-
merciais não parecem ter se ampliado significativamente e o número de estabelecimentos
nestas duas primeiras quadras vem se mantendo igual.
Seguindo...
Mesmo dentro de uma maior diversidade de ofertas, a Trajano e seu entorno realizam
a mesma tipologia fundamental que viemos desenhando: tomamos o Villa Bambu como
um híbrido, na medida em que se coloca como um bar popular, aberto e barato, mas que
não está ligado a qualquer grupo de interesse mais específico como o Camaleão Cultural ou
o Bar do Fogo, ou seja, sua frequência é, de fato, de fluxo: entra e sai qualquer pessoa que
queira consumir o que está à venda, seja bebida, comida ou música. É um point de visibili-
dade.
O Purple Reis poderia ser pensado como um contraponto ao Jokers, no presente, e ao
Wonka, em retrospectiva: em relação ao Jokers, há uma aproximação em termos de esta-
bilidade gerencial, objetividade de projeto e manutenção de uma proposta que é, diferen-
temente do Jokers, comprometida no discurso e na prática, com grupos de interesse que
têm uma identidade mais engajada culturalmente. Seu aspecto comercial está subsumido
numa espécie de aura vanguardista que, em muito, ressoa o Wonka nos seus tempos de
auge. Ele está, nesta tipologia, como um bar de fixos e fluxos na medida em que mantém
público na calçada, compartilhando da noite, fazendo rodas de conversas, bebendo e se
encontrando nos intervalos dos shows, e também, dentro, com mesas e assentos, como
um típico pub. À sua maneira, é também um bar híbrido, embora não na proposta, mas na
complementação entre o dentro e o fora. Tem um público fiel e dirigido, mas usufrui do
movimento de calçada.
Por sua vez, o Torto se apresenta metafórica e metonimicamente como um bar peri-
férico, ou seja, metaforicamente seria periférico por não ser um bar da moda e estar mais
afastado dos points centrais da rua principal, e, metonimicamente, por estar numa relação
de contiguidade com a rua principal, a Trajano Reis. Quase um botequim, numa rua lateral,
a Paula Gomes, encontra-se deslocado fisicamente, mas também dentro desta tipologia.

164
Não é um point especializado, vende o já tradicional bolinho de carne e cerveja em garrafa,
não faz concessões em termos de música: só toca o passado, em reprodução mecânica, é
pequeno o suficiente para caber uma mesa de bilhar e alguns fregueses sentados. O resto
do pessoal fica em pé, conversando. É um bar. Um preferido, um bate o ponto cotidiano,
regido por uma persona inconfundível, o Magrão, que adora futebol e entende um pouco de
tudo, uma pessoa engajada politicamente que poderia ser um político ou um líder comuni-
tário não fosse seu gosto de ficar em casa, no Torto Bar.

165
166
BARES E BARCOS NO
FLUXO DA HISTÓRIA
Bordéis e colônias são dois tipos extremos de heterotopia, e se imaginarmos, afinal,
que o barco é um pedaço de espaço flutuante, um lugar sem lugar, que vive por si mes-
mo, que é o fechado em si e ao mesmo tempo lançado ao infinito do mar e que, de
porto em porto, de escapada em escapada para a terra, de bordel a bordel, chegue até
as colônias para procurar o que elas encerram de mais precioso em seus jardins [...]. O
navio é a heterotopia por excelência. Nas civilizações sem barcos os sonhos se esgo-
tam, a espionagem ali substitui a aventura e a polícia, os corsários.65

65 Foucault (2009, p. 421-422, grifos nossos).

UMA NOITE NO BAIXO


UES SOUZA
RENATA CARVALHO RODRIG
SOCIÓLOGA
2018
evento no
s tempo de acompanhar um
A Bod egu ita fec hou em ma io de 2018, mas ainda tivemo com plemen-
O bar densa, que podem
ista r Lud mill a, a pro prietári a, uma figura controversa e
bar e entrev osfera do nosso recorte.
que segue permeando a atm
tar esta percepção de astral

!
Muchachos y muchachitas

Amigos e amigas!
, latinidade, e ocupações nas
egu ita est á encerra ndo suas atividades gastronômicas
A Bod
a.
calçadas na cidade de Curitib
projetos, novos caminhos.
i trazendo novidades, novos
Um delicioso vento soprou aqu uirí-
novo tempo, pois não conseg
tem como continuar nesse
Infelizmente, a cocinita não dedicação que prezam os des de
s com a mesma qualidade e
amos oferecer nossas delícia
o início.
167
Uma nova vida nos espera.

Resistir muitas vezes é deixar fluir. Acreditamos também que cumprimos nosso papel
como agentes da resistência cultural numa cidade que, a cada dia que passa, mostra sua
face mais reacionária, machista e fascista; a face lustrosa de uma elite ignorante que se
incomodou com as nossas ocupações, com a arte e com a alegria contagiante de nossos
clientes. Eles não admitem sorrisos gratuitos!

Continuaremos resistindo em outras frentes e os convidamos para fazerem o mesmo de


onde estiverem!

Até breve! Manteremos contato.

Besitos e saúde mental!

PRIMEIRO ATO:
AVEDUO MUJERES LATINAS, 22 DE ABRIL DE 2018
A noite começou às 20 horas na Rua Inácio Lustosa, no bar Bodeguita, onde ocorreu a entrevista na
noite anterior, com a produtora cultural Ludmilla, que, nesta noite, transformou seu bar/café em um
espaço de show de uma dupla musical de mulheres argentinas que vão apresentar músicas de mu-
lheres latino-americanas em homenagem à Mercedes Sosa.

O pequeno espaço de 20 m2 tornou-se um palco. As artistas se posicionaram de costas para o bal-


cão, de frente para a plateia que se dividiu entre aqueles que estavam dentro e fora do estabeleci-
mento.

Dentro cabiam em torno de sete pessoas sentadas em mesas e cadeiras altas enfileiradas junto à
parede de maneira que apenas duas pessoas poderiam estar em cada uma, sentadas, uma de cada
lado da mesa. Duas pessoas acomodaram-se no chão, à porta que dividia a plateia de fora e de den-
tro. Algumas ficaram em pé, amontoando-se próximas à porta, encobrindo parcialmente a visão do
show para as que estavam do lado de fora.

Do lado de fora, as pessoas se distribuíam em três mesas, algumas cadeiras avulsas, outras sen-
tavam-se à porta do edifício ao lado fazendo de qualquer pedaço de concreto um banco, e outras
permaneciam em pé.

As pessoas que estavam nas mesas mantinham uma conversa constante, enquanto as demais pa-
reciam estar mais atentas ao show: conversavam pouco, aplaudiam a cada final de música, colocan-
do-se de frente para as artistas e reagindo aos comentários delas em uma e outra canção.

Violão, microfone e uma caixa de som permitiam que de todos os ângulos o som fosse apreciado.
Em alguns momentos a cantora também tocava uma alfaia.

168
Ao longo da performance de pouco mais de uma hora, muitas ações foram acontecendo: pessoas
chegavam e iam, alguns pedestres passavam pela calçada, reconheciam amigos, cumprimentavam
e ficavam, ou cumprimentavam e iam embora. Outros pedestres, curiosos, paravam por alguns mi-
nutos, observavam a apresentação e seguiam seu caminho.

Havia também um jovem morador de rua, conhecido como Júnior (apresentado pela Ludmilla no
dia anterior, durante a entrevista) que permaneceu do lado de fora. Seu comportamento destoava
dos demais: ele andava de um lado para o outro freneticamente, emitindo grunhidos, gritos, e às
vezes, reagindo à música cantada em espanhol, gritando “Hola! Vamonos!” entre outras frases em
espanhol, levando o público e as artistas ao riso. Outras vezes, porém, seu comportamento parecia
também incomodar e assustar. Não se dirigia a ninguém com palavras, as encarava, fazia gestos e
caretas difíceis de serem compreendidos num primeiro momento. De pessoa em pessoa ele ia re-
cebendo um cigarro, um gole de vinho, uma cachaça ou cerveja.

Num determinado momento uma clareira se abriu em torno dele dando espaço para sua agitação
que acabou competindo com a apresentação musical durante alguns minutos. Ficamos sem saber
para onde olhar: se para o show ou para o próximo gesto imprevisível do jovem que, em determinado
momento, pegou uma cadeira de plástico, atravessou a rua e ficou olhando tudo à distância.

Atrás do balcão, a comida era preparada e servida.

Duas garçonetes se dividiam para atender aos pedidos de pouco mais de 30 pessoas. O fluxo de
pessoas andando para os fundos, onde ficava o banheiro, ou se dirigindo ao balcão para fazerem os
pedidos também compunham o agito interno. Passando na frente das artistas, era como se tudo se
transformasse em plateia ou palco. Sorrisos, pedidos de desculpas tentavam amenizar a inevitável
intromissão na cena artística. Tudo muito compreensível para todos.

Ao longo da noite, a dona do estabelecimento saía de trás do balcão inúmeras vezes para cumpri-
mentar os clientes que, pelas conversas longas com cada um, evidenciavam relações de convivência
de algum tempo.

“Viemos aqui prestigiar” parecia uma maneira de dar apoio ao bar ou à pessoa da produtora, e, ao
mesmo tempo, de sentir-se parte de um coletivo social e cultural.

Passando das 21 horas, lembramo-nos de que haveria uma batucada em homenagem à dona Ivone
Lara no bar A Caiçara, que havia começado às 19 horas e deveria acabar às 23 horas. Decididos a não
perder mais esta oportunidade da noite, seguimos pela Inácio Lustosa, andando em direção à Trajano
Reis, duas quadras acima, onde as duas ruas se cruzam.

SEGUNDO ATO:
Caminhando pela Trajano, logo fomos abordados por uma moça jovem, branca, loira, bem-vestida,
encostada numa parada de ônibus, que mexia no seu celular: “Querem um tapinha, um baseado?”

169
Recusamos e seguimos pela Trajano, na direção do Largo da Ordem.

Mais adiante, na esquina com a Paula Gomes, vários jovens negros, muito bem-vestidos, de bonés,
moletons, calças ou bermudas, que também faziam o mesmo métier de oferecer um cardápio de
drogas. Se estivessem andando poderiam ser confundidos com todos e quaisquer transeuntes da
região, na busca de um bar.

Mas destacavam-se pela imobilidade.

Ouvimos um assobio. Reconhecemos um amigo na calçada do Purple Reis.

Atravessamos a rua e, encostado a um carro, o amigo nos saúda: “E aí? Vão indo pra onde?” Retor-
namos a pergunta: “E você? Tá indo pra onde?”

Respondendo que estava avulso naquele momento, contou que se programava para ir a uma disco-
tecagem no Espaço 351, por volta das 23 horas.

Decidimos permanecer com ele, então, e pudemos observar o mesmo ritual seguidamente: cumpri-
mentos, breve conversa e, em seguida, a pergunta-passe: “E aí? Tá indo pra onde?”

Mesmo parados, há uma expectativa latente de sair e ir para outro lugar. O movimento é uma forma
de se estar ali.

Ficamos parados em torno de duas horas naquele pedaço, comprando cerveja no bar do lado do
Purple Reis, dois chopes por R$ 10,00. Na calçada, os carros serviam de apoio para as costas, para os
copos, os casacos...

Outros grupos se amontoavam do outro lado da calçada, próximos à parede, formando um corre-
dor de gente, tortuoso, móvel e espremido, por onde iam passando outros pedestres, ciclistas e, às
vezes, até mesmo skatistas.

Este corredor ia se reconfigurando a todo o momento, de acordo com o movimento do encontro


dos amigos e conhecidos que iam se descobrindo entre as pessoas, se organizando, se desorgani-
zando.

As conversas vão delineando círculos, linhas, pares frente a frente.

Para estar ali é preciso maleabilidade.

Do mesmo modo como se pode desejar ser conduzido para outros lugares e experiências, o que
pode implicar em mudar de ideia, de rumo e expectativa, também se deseja convencer possíveis
companhias para outros lugares e atividades.

Assim, mentes e corpos se movimentam, se encolhem ou se esticam para caber ou fazer caber ou-
tros desejos e corpos nos espaços estreitos das calçadas e dos planos, de forma sincrônica.

Assim, quando as calçadas já estão superlotadas, é fatal que se expandam em direção às ruas, inva-
dindo o espaço do tráfego contínuo de carros. Além disso, as pessoas atravessam as ruas incessan-

170
temente, muitas vezes tropegamente, com os sentidos visivelmente alterados pelo uso de bebidas
e drogas.

Não é incomum, portanto, que motoristas se irritem, que buzinas soem, que insultos se propaguem
no ar.

Às 23 horas fomos para o Espaço 351, com nosso amigo e os amigos dele. Uma galera. Este é outro
dado fundamental desta convivência: ao longo da noite, novas pessoas são agregadas ao grupo,
reconfigurando a formação, mudando o assunto, trazendo novas impressões e relatando novas ex-
periências. Da mesma maneira, outras pessoas se desagregam. Este movimento é contínuo.

TERCEIRO ATO:
Na entrada do edifício fomos recepcionados por dois homens altos e fortes, de terno. Eles nos de-
ram boa noite, não sorriram, simplesmente pediram nossos documentos, anotaram nossas identi-
dades em comandas e nos devolveram tudo junto.

O lugar era dividido em três áreas: do lado de fora havia um espaço ao ar livre, com bancos de ma-
deira, mesas e algumas árvores. Havia, também, um food truck vendendo cachorro-quente, o único
alimento da festa.

Dentro do recinto, havia um longo balcão em meia-lua, onde fomos atendidos por uma mulher. Do
outro lado, outro balcão para guardar os casacos e fazer o pagamento na saída.

Esta área é escura, as paredes são grafitadas e a música, alta, sai de outro espaço, separado por uma
porta vai e vem: passando por ela entramos no coração do lugar, a pista de dança.

Neste espaço um DJ e um MC dividiam um pequeno palco, elevado, onde estava a mesa de som.
Duas grandes caixas de som ecoavam um som tão alto que era impossível conversar, o que na rea-
lidade é absolutamente adequado: quem vai querer ou poder conversar numa pista de dança deste
estilo rap ou dubstep?

Depois de alguns minutos estávamos em sete pessoas numa mesa, com a produtora da festa.
Todos compartilhávamos nossas impressões sobre o cenário musical, racismo, ideologia política,
discotecagem... tudo imbricado, misturado, aos pedaços, num ritmo semelhante a tudo o que nos
rodeava e envolvia.

Assim acabou nossa noite.

Às três da manhã estávamos em casa.

De fato, como apontou o dono do Purple Reis, apesar de um possível tom cultural diferente, o Baixo
seria apenas mais um dos points da noite curitibana. Para comprovar sua afirmação bastaria men-
cionar os clusters da Itupava, da Vicente Machado, Coronel Dulcídio...

171
Se existe um modo particular de se estar e pertencer ao Baixo São Francisco, dentro do recorte desta
espinha dorsal que viemos traçando, caminhando etnograficamente, entrando nos bares escolhidos
propositalmente para compor esta tipologia, então algumas palavras mais são necessárias.

Sem dúvida, se olharmos apenas para a presença dos bares, para o movimento e disputa dos es-
paços e clientela, este argumento que igualaria o Baixo aos outros redutos pode proceder. Mas não
resistirá se nos aproximarmos do ethos que domina a região quando ouvimos alguns discursos que
ecoam por ali, desde a Rua São Francisco até o final do percurso. E mais, desde o passado.

Vamos ouvir a Ludmilla, do extinto Bodeguita.

Ludmilla, o que é o Baixo?

“Eu acho muito legal poder falar sobre isso aqui. Uma porque sou atriz e sou produtora cul-
tural e outra porque também tenho um olhar muito da comunidade local, porque minha
mãe é vizinha da Paula Gomes, vizinha do bar do Torto há 16, 17 anos. Então eu estou mui-
to envolvida com a comunidade daqui. Essa expressão Baixo São Francisco para mim, acho
que nada mais é do que a gentrificação ocorrendo no bairro da cidade. Eu tenho um olhar
um pouco mais humanizado para isso. A pergunta é se esta cultura promovida na região
atende a todos. Se ela atende os idosos, às mulheres, se ela atinge a comunidade que fun-
dou aqui, os luteranos, ou ela atinge apenas os hipsters somente [...].

Então, um povo cultizinho começa a promover uma cultura forte e exclui os moradores.
Eles acabam colocando valores altos nos imóveis, a comida que custava X acaba se tor-
nando três X. Acaba excluindo as pessoas que formaram o bairro décadas anteriores. En-
tão, eu acho que a gente tem que tomar um pouco de cuidado nisso, sabe. A gente tem
uma cultura aqui em Curitiba também, justamente porque é uma cidade de passagem, os
curitibanos – da gema, se é que eu posso brincar com isso – não tem o costume de poder
sair tanto à noite. A ocupação das ruas é diferente.”

Aqui no Baixo as pessoas ocupam mais a rua?

“Sim, mas ocupam mais a partir de 2014 mesmo. Aí eu fico perguntando: Cadê os idosos?
Eles não têm o direito de ocupar essas ruas também? Cadê a comunidade local? [...] eu sou
paulista, morei na Europa por muitos anos, morei na América Latina. E é interessante que
em alguns bairros desses locais têm idosos compartilhando, comendo, bebendo, aprovei-
tando tudo o que o jovem está promovendo. E eu sinto que aqui, no Baixo São Francisco,
infelizmente não acontece. E eu tomo muito cuidado aqui na Bodeguita para a gente poder
acolher estas pessoas. Para que a cultura não fique limitada aos jovens. Eu acho que a cul-
tura tem que ser permissiva e democrática a todos e todas. Então, eu tenho um pouco de
medo de falar de Baixo São Francisco. Acho que a gente tem que tomar muito cuidado com
a gentrificação mesmo.”

172
E a questão das drogas, Ludmilla? Existem posições antagônicas: uns querem legalizar a ma-
conha, outros acham que isso aqui vai virar uma cracolândia...

“Já virou, não é? E todas as críticas dizem que isso vem com o pessoal da periferia, ok? Mas
o pessoal da periferia não pode estar no centro bebendo, fumando? Eu tenho muito medo
disso. As mulheres periféricas não poder vir ao centro, gastar R$ 10,00 de passagem e po-
derem beber, usar sua droga? Acho muito delicado este assunto.”

Nas conversas com as pessoas duas coisas chamam a atenção: a ocupação das ruas e o uso das
drogas. Você acha que o São Francisco poderia existir como existe hoje sem a droga, Ludmilla?

“Acho que não. Acho muito polêmico isso. Eu tive o primeiro bar no São Francisco em 1996,
o Cabaret Pagliat. Não tinha drogas, né? Aliás, comprar droga em Curitiba era bem compli-
cado. Hoje em dia a gente sabe quem vende drogas na Trajano.”

De fato, é público e notório não apenas quem vende, mas também quem compra, e, realmente, os
jovens que perambulam em frente aos bares são, em geral, consumidores da maconha e da bebida
barata. Os compradores de cocaína, em geral, circulam de carro, param nas ruas laterais e costu-
mam causar confusões pela violência contra menores e mulheres. Da mesma maneira, os usuários
do crack acabam anulados, nos becos das ruas mais vazias. Mas, de maneira geral, todos os tipos de
drogas estão disseminados pelo circuito dos bares.

Como você vê a ocupação do Baixo, Ludmilla?

“O Baixo São Francisco tem uma forma mais underground de ocupação. Curitiba vem de
nichos undergrounds. Curitiba tinha muito disso. A gente veio de uma cidade do Leminski...
“Curitiba não tem mar, mas tem bar...” Só rockabilly. Imagina, década de 1990 a gente tinha
um nicho guita, grunge, pós-punk muito forte. Nós tínhamos muitas bandas que eram re-
ferência punk. Isso é muito legal na cidade. Mas a cidade foi se tornar plural mesmo depois
de 2010.”

E o que seria consumir cultura, Ludmilla?

“Para mim é se permitir experienciar novas oportunidades por tudo isso que a gente vive,
né. É um olhar mais sociológico. Mas é tudo isso que a gente está experienciando; é a co-
mida, é a música, as pessoas com quem eu posso conversar. É uma permissão, eu acho.”

Cultura como permissão.

Interessante... tá indo pra onde?

173
PARA
NÃO C
CLUIR
174
174
CON-
R 175
[...] o espaço contemporâneo talvez não esteja ainda inteiramente dessacralizado
– [...] talvez não tenhamos ainda chegado a uma dessacralização prática do espaço.
E talvez nossa vida ainda seja comandada por um certo número de oposições nas
quais não se pode tocar, as quais a instituição e a prática ainda não ousaram atacar:
oposições que admitimos como inteiramente dadas; por exemplo, entre o espaço
privado e o espaço público, entre o espaço da família e o espaço social, entre o es-
paço cultural e o espaço útil, entre o espaço de lazer e o espaço de trabalho; todos
são ainda movidos por uma secreta sacralização.60

Quando tentamos compreender a dinâmica que preside as relações de ocupação e


reocupação contínuas, presentes no Baixo São Francisco como um todo, nosso primei-
ro impulso é de atribuir sentido a este processo a partir das determinações expressas
nas disputas mais explícitas no controle do espaço público, ou seja, os embates com a
municipalidade no tocante às condições de uso dos edifícios, tombados ou não, sua
preservação e manutenção, a convivência da habitação convencional do bairro com a
frequência noturna na região. Portanto, configura-se uma situação de um motivo cen-
tral e declarado, mas composto por determinações subjacentes pouco conhecidas em
profundidade.
Seguindo a inspiração foucaultiana supracitada, o que sacraliza uma situação, um
modo de pensar e agir são os antagonismos que se (re)produzem continuamente no te-
cido social, que não são desvelados inteiramente, e que, portanto, são tomados como
dados, naturalizados: aceita-se que a situação de conflitos no Baixo seja porque a Pre-
feitura age de forma autoritária e truculenta muitas vezes, e os bares e seus frequenta-
dores possuem um modus operandi não aceitável pelos padrões de ocupação oficiais.
Ao retomarmos as primeiras páginas do nosso trabalho e atentarmos para as con-
dições formadoras da cidade emergente não podemos deixar de observar a coerência
deste argumento para compreender aqueles primeiros embates e antagonismos dilu-
ídos na simples proposta da fundação de uma igreja como a Igreja de São Francisco de
Paula, aquela que seria e não foi e que hoje, como há séculos, permanece como ruína.61

60 FOUCAULT, M. Outros espaços. In: Ditos & escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 413.

61 A partir da p. 8.

176
Já naquela gestão do espaço público, no início do século XVIII, aconteceu uma nego-
ciação entre a elite, representada pelo rico fazendeiro Manoel Gonçalves de Guimarães, e
a autoridade eclesiástica, o bispo de São Paulo, Dom Mateus de Abreu Pereira, no sentido
de projetar, no elevado monte a noroeste, o sonho de uma capela que fosse a represen-
tação de uma elite que almejava diferenciar-se da vida religiosa, empobrecida das capelas
mal construídas e sem manutenção efetiva da região do baixo, além de marcar a posição
das classes enriquecidas deste começo. De fato, a vida religiosa da vila havia começado em
capelas simples, numa Igreja Matriz malcuidada, e na continuidade dos ritos religiosos, em
outras pequenas capelas e irmandades, que seguiam um trajeto definido pela prática so-
cial: desde as margens lamacentas do Rio Belém, no início da rua do Fogo e Riachuelo, em
direção à Matriz e ao cemitério.
Mas não apenas nos ritos religiosos como os funerais, casamentos, batizados, extre-
mas-unções, mas na vida social como um todo, no comércio, nas festividades e experi-
ências transgressoras, inquietantes dos intervalos e frestas. Este seria, segundo Foucault
(2009, p. 415), o lugar das heterotopias:

[...] lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição
da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias
efetivamente realizadas, [...], espécies de lugares que estão fora de todos os lugares,
embora eles sejam efetivamente localizáveis.

É neste sentido que a utopia de construir a Igreja de São Francisco de Paula, lá no alto,
nasceu desde dentro deste mesmo tecido social no qual a relação entre as classes sociais
que se constituíam e da cidade que erigia seus edifícios, gerava, ao mesmo tempo, seus
antagonismos nas disputas pelo controle do espaço e da vida.
Em sendo assim, a configuração do alto, e do baixo, surge como regiões topográficas e,
ao mesmo tempo como expressões dos desejos dos poderosos. Essa negociação entre a
elite e a igreja é duplamente sacralizada na medida em que está ligada aos ritos sacramentais
e também ao controle, encoberto, da vida cotidiana da cidade em formação: a configura-
ção do alto e do baixo, justamente, acaba por constituir, para além da geografia, uma região

177
moral,62 na qual estão dadas e não explicitadas a exaltação do poder da elite e da igreja, pactua-
das, no alto, em contraposição à vida concreta dos cidadãos, no baixo.
O sonho da construção da Igreja de São Francisco de Paula foi desta maneira a projeção de
um locus do poder, ou seja, a expressão de uma utopia, “posicionamentos sem lugar real... espa-
ços essencialmente irreais” (FOUCAULT, 2009, p. 414).63
A se julgar por esta argumentação, no baixo de então a vida seguiu pulsando à revelia, mas à
mercê do controle institucional de forma continuamente conflitante e inquietante, gerando, no
seu bojo, suas próprias utopias. Dado este grande salto no tempo, ao longo do nosso trabalho e
da constituição da sugerida espinha dorsal do Baixo, vemos esta relação entre utopias e heteroto-
pias vir sendo recolocada, ininterruptamente.
Se a Igreja de São Francisco de Paula resta, em suas ruínas, como a representação fracassa-
da de uma utopia que não se realizou, isso não quer dizer que o poder não tenha encontrado ou-
tras maneiras de se representar naquele espaço, da mesma forma sacralizado, agora por meio
da constituição do centro histórico, espaço concreto e institucional, patrimonialista, também
sujeito a regras, controles e interdições.
Recolocam-se as heterotopias inquietantes e desafiadoras na ocupação deste espaço, fren-
te às representações institucionais sacralizantes objetivando valores, comportamentos e ações
de preservação diante dos processos um tanto desregrados e transgressores de reocupação.
Sucedem-se os exemplos desta mesma relação entre utopias e heterotopias, todos gerados
neste mesmo tecido social, sustentado pelas condições específicas deste espaço nos dias atu-
ais: um Centro Histórico, regido por normas, valores, interdições, proibições do poder público
que, ao mesmo tempo, e, de forma até mesmo contraditória, propõe maneiras de fomentar o
turismo, a circulação no centro da cidade, favorecendo o transporte coletivo e investindo nos
planos de revitalização urbana local. Como escreveu Foucault na citação em epígrafe:

[...] talvez não tenhamos ainda chegado a uma dessacralização prática do espaço. E talvez
nossa vida ainda seja comandada por um certo número de oposições nas quais não se pode to-
car, as quais a instituição e a prática ainda não ousaram atacar: oposições que admitimos como
inteiramente dadas [...]

62 O terno moral, no sentido foucaultiano está ligado aos modos de sujeição social às nor-
mas e condutas vividas como dadas, impostas pela ordem e poder vigentes.

63 Parece que o destino desta igreja atesta para o seu caráter de utopia de fato: jamais foi concluída.

178
Neste sentido, seguir o movimento de abre e fecha dos bares da região, mostra-se
organicamente ligado ao modo de consumo e de circulação, atrelado ao modo ainda não
totalmente pactuado entre gestores e produtores culturais, lato sensu, no modo de ocupa-
ção do solo deste centrinho.
E este embate se torna cada vez mais compreensível quando encaramos, de um lado
os bares (e seu modo majoritário de consumo de fluxo) como heterotopias, ou seja, lugares
onde são forjados os modos alternativos de existência e que são vias de escape, de nítida
função compensatória, e do outro, o poder público no seu afã de manter e preservar a re-
gião como locus sagrado da memória. Um claro embate entre uma utopia e as incessantes
heterotopias que a cercam, que a contêm e desafiam.
Que relações existem entre utopias e heterotopias que possam esclarecer um pouco
mais estes conflitos destas (re)ocupações?
Ao retomarmos as pontuações contidas no item A festa dos 25 anos, bem como os
comentários sobre o quadrilátero do prazer e/ou a boca do lixo no centro, que não é e nunca
foi histórico (de anseios preservacionistas), percebemos que, apesar de ter sido também
considerada como o eixo da boemia pesada da cidade ao seu tempo e de causar distúrbios
policialescos, este pedaço da cidade nunca foi uma região sacralizada, no sentido foucaul-
tiano: seus fluxos de consumo não foram tanto uma disputa entre classes sociais, mas, aci-
ma de tudo, expressaram os conflitos dentro da própria burguesia em sua competição pelo
controle do poder e do dinheiro. Tampouco sofreram as injunções de ocuparem edifícios
tombados, com necessidades particulares de preservação, e nunca foram partícipes de
projetos e intenções culturais, institucionais. O luxo e o esplendor de suas fachadas sequer
desafiavam a elite conservadora. Ali se borravam as fronteiras entre as classes sociais, e a
burguesia endinheirada se promovia como avançada, vanguardista, conhecedora e libe-
rada. Lugares abertos para todo mundo, replicavam o mundo sem quaisquer constrangi-
mentos.
Ali, certamente, viveu uma utopia, aquela que diz respeito ao forjamento de uma aura
liberada e vanguardista desta burguesia mais financeira do que cultural, mas os embates
que surgiram não configuram oposições tipicamente sacralizadas.
De fato, que motivos encobertos poderiam ter presidido aquela experiência de lazer
noturno? Que razões encobertas impulsionaram aquela concorrência febril exposta no
abre e fecha frenético das boates?

179
As boates eram, na realidade, um modelo híbrido: uma forma utópica cuja natureza foi,
ao mesmo tempo, heterotópica: lugar de construção e afirmação de uma imagem deseja-
da do status quo, e, simultaneamente, espaço de transgressões sociais, quebra naturalizada
das normas vigentes da moral burguesa. Onde estariam as oposições encobertas, suposta-
mente tidas como dadas? Estas podem ser compreendidas agora, a posteriori, intelectual-
mente, mas não eram vividas como embates, oposições que não derivassem meramente
da concorrência comercial, explícita.
Por esta razão é que as perseguições policiais sempre aconteciam preferencialmen-
te nas ruas que circundavam as boates e quase nunca dentro delas. A não ser em casos
de violências mais graves, como foi, por exemplo, a morte de Paulo Wendt, emblemática
neste sentido, no interior da boate Marrocos, de sua propriedade, em 20 de julho de 1966.
A dessacralização, por sua vez, é também uma relativa aproximação teórica às ideias
foucaultianas, na medida em que a perda das energias utópicas daquela época, em suas
situações particulares, foi acontecendo não por antagonismos colocados e enfrentados
entre oponentes visíveis. Não foi gerada uma compreensão desveladora das suas condi-
ções de produção e pelas transgressões em si mesmas, e sim pelo enfado do excesso, pela
banalização da fruição secreta e burguesa das transgressões supostamente ocultas.
Por outro lado, ao não existirem oposições claramente definidas entre dois oponentes
(por exemplo, elite e povo), os mecanismos da mediação, que poderia ter sido exercida pe-
los donos de boates, não se configurou, como vimos.
Entre 1940 e 1980, enquanto o lazer noturno esteve nas mãos da elite local, os agentes
mediadores, como, por exemplo, Jofre Cabral, situavam-se entre a elite (burguesia) e a po-
pulação local, abrindo aos poucos sua f(r)esta para a participação popular, como forma de
expandir seus investimentos. Um exemplo notório desta situação, mais democrática por
assim dizer, foi a presença da boate A Caverna, como iniciativa destes mediadores, no mes-
mo local em que estava implantado o coração da diversão noturna dos ricos e poderosos:
o Clube Curitibano.
Mas, a partir do momento em que este processo todo da construção de um lazer no-
turno na/da cidade foi desbordando destes nichos controlados pela elite, como vimos, em
direção à ocupação do centro, abrindo suas portas para quem quisesse entrar, seu papel
de mediadores esvaiu-se completamente, e os donos das boates foram peças orgânicas
no desenvolvimento deste lazer noturno, nunca seriam mediadores.

180
Portanto, o aparecimento de um novo processo de sacralização/
dessacralização social e cultural realizada na noite da cidade, só voltaria a aparecer
na situação atual do Baixo São Francisco. E foi exatamente sobre este tema que
nos debruçamos.
Ainda com Foucault (2009, p. 420-421), o traço fundamental das heterotopias
é a sua função de compensação, a qual:

Se desenvolve entre dois polos extremos. Ou elas têm o papel de criar um


espaço de ilusão que denuncia como mais ilusório ainda qualquer espaço
real, [...]. Ou, pelo contrário, criando um outro espaço, um outro espaço real,
tão perfeito, tão meticuloso, tão bem arrumado quanto o nosso é desorga-
nizado, maldisposto e confuso [...]

Que lugar ocupariam os bares selecionados para comporem nossa espinha


dorsal num imaginário triângulo da mediação que sugerimos aqui para continuar a
refletir sobre o atual processo de sacralização/dessacralização proposto por Fou-
cault e adotado por nós como metodologia complementar?64
Tendo o ápice do triângulo como o ponto fixo, ou seja, o poder instituído que
estabelece o sistema das oposições fundamentais, é a relação entre as utopias e
as heterotopias que acaba por configurar um trânsito percebido como o fluxo das
impermanências, sempre em relação ao ápice e às contingências deste tempo e
espaço vividos. Tanto os bares como o modus operandi das suas frequências, aca-
bam por ser cooptados, engolidos literalmente, neste fluir incessante. Uma vora-
gem de estabelecimentos, pessoas, drogas, música, bebidas e o que mais estiver
nas ruas. Um verdadeiro jogo das impermanências.
Desta mesma maneira, o abre e fecha dos bares está neste jogo como con-
sequência da relação entre seu fundamento utópico, e sua efetivação enquanto
uma heterotopia: um lugar das compensações, real e efetivo, mas que ao perder
esta funcionalidade compensatória, perde também sua força transgressora, ou
seja, seu poder de dessacralização do real. Mas perde, também, seu sentido de

64 Necessário esclarecer aqui que a concepção de um triângulo da mediação vem do estruturalismo e que, ape-
sar de que Foucault não pertencer a esta corrente intelectual, ele se utilizou de alguns pressupostos deste método.

181
existir, ficando à mercê de um movimento avulso, deambulatório, meio insano, esparso e
fugaz. Movimento gestionado pelo tráfico? Talvez.
Importante salientar aqui que esta dinâmica atinge preferencialmente os bares de
perfil participativo, atuante em termos reivindicatórios, receptivos aos alternativos e antena-
dos, como, por exemplo, o ex-Negrita, o Camaleão Cultural, o Bar do Fogo e o Wonka, no
seu tempo. Este último é um caso paradigmático, como vimos. Os outros, o Jokers, o Villa
Bambu, o Purple Reis e o Torto, fogem, parcialmente, a esta determinação.
O que se evidencia, portanto, é que os bares com propostas culturais e alternativas
colocam-se, de início, como utópicos, e, no movimento de sua construção e consolidação,
passam a ser efetivamente heterotopias, na medida em que cumprem sua função compen-
satória, realizando os desejos e formas de vida dos seus grupos preferenciais. Mas estão
sujeitos às intempéries destes desejos, e, eventualmente, não conseguem manter suas
propostas por variadas razões, todas ligadas a este modelo fundamental.
Os bares inquietantes, como foi o Wonka, por exemplo, cumpriram, e outros ainda po-
dem vir a cumprir, a importante tarefa de explicitar este movimento pendular entre as uto-
pias e as heterotopias, e, novamente de volta ao vazio da ineficácia transgressiva, quando
o que é visceral na construção do universo cultural perde o sentido. Lembrar suas noites
frenéticas é, ao mesmo tempo, presentificar uma melancólica constatação da impossibi-
lidade da total e definitiva dessacralização: o fluxo das impermanências é a mais profunda
realidade da existência das sociedades.

182
RUA SÃO FRANCISCO
ANO 2016 | FOTÓGRAFA: ALICE PIZZAIA GOLTZ
184
PRAÇA DE SKATE DO GAÚCHO
ANO 2019 | FOTÓGRAFO: SHIGUEO MURAKAMI

185
186
BAIXO SÃO FRANCISCO
IMPULSOS DE UMA (RE)OCUPAÇÃO URBANA

FILME
JESSICA CANDAL

187
HIP-H
NO CO
NO
188 BA
HOP: DOCUMENTÁRIO ETNOGRÁFICO
ACOMPANHA O COTIDIANO DE
DOIS PERSONAGENS, MANO JHOW
E KBU, PELA CENA HIP-HOP NO
BAIXO SÃO FRANCISCO, BAIRRO
LOCALIZADO NO CENTRO-

ORRE,
HISTÓRICO DE CURITIBA.

DIREÇÃO CAMILA MACEDO


EVANDRO KBU
JESSICA CANDAL
MANO JHOW
ANO 2020

AIXO
GÊNERO DOCUMENTÁRIO
DURAÇÃO 22’55”
190
PRAÇA DE SKATE DO GAÚCHO – ELENCO DO
DOCUMENTÁRIO “HIP-HOP: NO CORRE NO BAIXO”
ANO 2018 | FOTÓGRAFO: LUCAS PEREIRA NERY

190
BAIXOSAOFRANCISCO.COM.BR/#FILME

191
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