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outra travessia

Revista de Literatura nº 40/1


Ilha de Santa Catarina, 2º semestre de 2003.

dossiê:
revistas
literárias
revisitas

Curso de Pós-graduação em Literatura


Universidade Federal de Santa Catarina
Curso de Pós-graduação em Literatura
Centro de Comunicação e Expressão
Universidade Federal de Santa Catarina
Campus Universitário - Trindade
88040-900 - Florianópolis - SC
fone 48 331 9582
fax 48 331 6612

Ficha Técnica

Projeto gráfico e Editoração:


Amir Brito Cadôr

Capa editada por Amir Brito Cadôr, sobre Poem-Picture de Philip Guston.
Todas as imagens desta edição foram extraídas do catálogo da exposição do pintor
norte-americano Philip Guston na Addison Gallery of American Art, 1994.

Catalogação
ISSN 0101-9570

Editores
Carlos Eduardo Schmidt Capela e Susana Scramim

Conselho Consultivo
Adriana Rodríguez Pérsico (Universidad de Buenos Aires, Argentina)
Ana Luiza Andrade (Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil)
Andrea Pagni ( Universität Rostock, Alemanha)
Berta Waldman (Universidade de São Paulo, Brasil)
Ellen Spielmann(Universität Leipzig, Alemanha)
Ettore Finazzi Agrò( La Sapienza, Roma)
Flora Süssekind (Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasil)
Florencia Garramuño (Universidad de Buenos Aires, Argentina)
Francisco Foot Hardman (Universidade de Campinas, Brasil)
Gabriela Nouzeilles ( Princeton University)
Gema Areta (Universidad de Sevilla, Espanha)
Gonzalo Aguilar (Universidad de Buenos Aires, Argentina)
Graciela Montaldo( Universidad Simón Bolívar, Venezuela)
Helena Buescu (Universidade Nova de Lisboa)
João Cezar Castro Rocha (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)
Lucia Sá (Stanford University)
Luz Rodríguez Carranza (Leiden Universiteit, Holanda)
Maria Lucia de Barros Camargo (Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil)
Raul Antelo (Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil)
Roberto Vecchi (Università di Bologna)
Simone Pereira Schmidt (Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil)
Sonia Mattalia (Universidad de Valencia)
Sylvia Saítta (Universidad de Buenos Aires, Argentina)
Hugo Achugar (Universidad de la República, Uruguay)
Wander Melo Miranda (Universidade Federal de Minas Gerais)
Wladimir Antonio da Costa Garcia (Universidade Federal de Santa Catarina)

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Sumário

[apresentação] 05
[uma constelação: revistas entre vistas] 07
[Sobre revistas, periódicos e qualis tais] 21
[Asas de papel] 37
[Mediações e medidas] 59
[Revistas culturales y mediación letrada en América Latina] 65
[Circulação das idéias literárias no Folhetim] 73
[Fragmentos de uma poética verbivocovisual] 91
[No tempo da Gazetinha e depois] 115

21 Maria Lucia de Barros Camargo


37 Ana Luiza Andrade
59 Ettore Finazzi
65 Mabel Moraña
73 Marco Antonio Chaga
91 Jorge Wolff
115 Antonio Carlos Santos

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Apresentação

Se, como todos sabemos, navegar é preciso, nem por isso deixa
de ser, a travessia, arriscada. O giro da bússola e a contenção dos
desejos não bastam, no entanto, para estabelecer um istmo, mes-
mo precário, que assegure a manutenção do rumo, e o vigor do
remo. A travessia, tornada acaso, perde o melhor de si, como per-
de também caso o ir e vir se reduza aos rigores de uma rota cujo
cumprimento responde antes de tudo a exigências instrumentais,
ou burocráticas.
Estabelecido um destino, há infinitos caminhos que podemos
tomar, e esse infinito é paradoxalmente ampliado quando tal desti-
no se pluraliza em rede. Isso sem lembrar que mesmo os caminhos
são vários, já que inevitavelmente se bifurcam. Naufragada a nave
de anos de travessia, em viagens por vezes tumultuadas, premidas
por contingências que todo marinheiro conhece à exaustão, seus
despojos nos motivaram a reunir uma nova equipagem, e soltar
amarras na aventura de outra travessia — nem melhor e nem pior,
apenas outra.
Claro que experiências anteriores nos ensinam, e em certa me-
dida nos apartam. É difícil crer, no porto em que estamos, na exis-
tência de mares nunca dantes navegados. O nó da questão, de
todo modo, não parece mais estar no mar, mas antes no olhar com
que o contemplamos. A literatura e a cultura, maleáveis e moldáveis
porém moventes, pulsantes e imprevistas, incontornáveis, são a
água, matéria que singramos. Não se trata de abordá-la e tampouco
de explorá-la, como tanto já se fez; que flua como fonte que ali-
menta e excita e suscita nossa inteligência, imaginação e capaci-
dades crítica e analítica.
Essa outra travessia é portanto ensaio, isto é, diálogo. É
paradoxa, ao mesmo tempo alhures e ao lado. Não pretende servir
a império algum, mesmo porque este prescinde, o poder da frota
que tem: deixemos para ele o mar profundo. Nossa navegação, de
cabotagem, deve por isso estar atenta para as águas que margeiam,
porção que nos resta. O que não deixa de trazer vantagens: as
margens, afinal, são muitas, cada uma com contornos próprios,
imprevistos.
À equipagem da outra travessia compete antes de tudo orientar
a nau, imaginar roteiros, esboçar mapas, rasurá-los e rasgá-los. A
aventura estará aberta a todos os que a quiserem tentar. Claro que
marujos, não importa de onde, cujos vislumbres pulsem como fa-
róis, serão convidados a dela fazer parte: outra travessia irá publi-
car ensaios recentes de intelectuais de reconhecido renome, visan-
do a atuar de modo fomentador na cena cultural brasileira. Afinal,
nenhuma viagem vale a pena se perde de vista seu efeito instigador:
cada uma delas anunciando a seguinte, tão igual e diferente.
Este número — tal face de Jano — assume ser simultaneamente
porto a que chegou a travessia após 40 números, em pouco mais
de 20 anos, e porto de partida da outra travessia que agora se inicia

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— daí sua peculiar numeração: 40/1. Para um lugar de transição
nada mais apropriado do que propor reflexões acerca do periodismo
literário e cultural, tema articulador deste número. Introduzindo os
ensaios dos colaboradores convidados, os editores propõem uma
pequena trama de vozes diversas que em sua singularidade se
posicionam sobre o mesmo fenômeno e que nos convidam a parti-
lhar o horizonte por elas descortinado. A posição de outra travessia
frente à diferença lingüística da América Latina é a de não estimu-
lar a competição entre as duas línguas da colonização do espaço
latino-americano; por isso, outra travessia opta por não traduzir os
textos em espanhol.
O número 2 da outra travessia também faz parte do mesmo
processo de transição. Dedicado a Euclides da Cunha, nele a parti-
cipação dos colaboradores foi requestada pelos editores. A partir
do terceiro número, no entanto, outra travessia lançará chamadas
universais com base em propostas temáticas específicas. Os ensai-
os recebidos serão submetidos aos pareceres do conselho editorial
cuja composição foi sensivelmente alterada. Além de atuar na ava-
liação dos ensaios a serem publicados, o conselho também atuará
orientando a política editorial da revista. As viagens têm custos, às
vezes mais pesados que a bagagem, ou a carga. E como quem
financia demanda, só resta à equipagem se submeter. Parte dessas
mudanças na outra travessia respondem à necessidade de nos ade-
quarmos às normas das agências financiadoras das quais, para se
repetir a cada semestre, depende a outra travessia.
Finalmente, nessa jornada inicial gostaríamos de agradecer sin-
ceramente aos colegas que aceitaram fazer parte do conselho edi-
torial da outra travessia; e de também expressar nossa gratidão es-
pecial a Raúl Antelo, pelo apoio e pelas sugestões bastante valiosas
para a imaginação da paisagem na qual pretendemos nos confun-
dir, bem como pela seleção dos fragmentos que compõem a cons-
telação “revistas entrevistas”. Além disso, agradecemos a Wladimir
Antonio da Costa Garcia e a Juliane Bürger pela tradução de alguns
fragmentos, e a Amir Brito Cadôr não só pela qualidade do projeto
gráfico com que nos brindou, mas também pelo empenho em bus-
car ilustrações que estabelecessem um instigante diálogo entre a
literatura, a crítica e as artes visuais.

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UMA CONSTELAÇÃO: REVISTAS
ENTRE VISTAS

Avec le vers libre (envers lui je ne me répéterai) en


prose à coupe méditée, je ne sais pas d’autre emploi
du langage que ceux-ci redevenus parallèles: excepté
l’affiche, lapidaire, envahissante le journal – souvent
elle me fit songer comme devant un parler nouveau et
l’originalité de la Presse.

Stéphane Mallarmé - La Musique et les Lettres, in Oeuvres Complètes. Ed. H.


Mondor et G. Jean-Aubry. Paris, Gallimard, 1945, p. 655.

Com relação ao verso livre (não vou me repetir quanto a isso)


em prosa, com cesura pausada, eu não conheço outro emprego da
linguagem do que aqueles tornados paralelos: exceto o cartaz, lapi-
dar, invadindo o jornal – freqüentemente ele me fez sonhar como se
estivesse diante de um novo falar e da originalidade da imprensa.
Stéphane Mallarmé (tradução de Juliane Bürger).

***

J ournal, la feuille étalée, pleine, emprunte à


l’impression un résultat indu, de simple maculature:
nul doute que l’éclatant et vulgaire avantage soit, au
vu de tous, la multiplication de l’exemplaire et, gise
dans le tirage. Un miracle prime ce bienfait, au sens
haut ou les mots, originellement, se réduisent à
l’emploi, doué d’infinité jusque’à sacrer une langue,
des quelques vingt lettres – leur devenir, tout y rentre
pour tantôt sourdre, principe – approchant d’un rite la
composition typographique.

Stéphane Mallarmé – Variations sur un sujet: quant au livre, in Oeuvres


Complètes. Ed. H. Mondor et G. Jean-Aubry. Paris, Gallimard, 1945, p. 380.

Jornal, a folha estendida, repleta, recebe da impressão um re-


sultado injusto, simples impressão mal feita: ninguém duvida que a
brilhante e vulgar vantagem seja, aos olhos de todos, a multiplica-
ção do exemplar e, culmina na tiragem. Um milagre prima este
serviço, no sentido primitivo ou as palavras, originalmente, redu-
zem-se ao emprego, dotado de uma infinidade que pode consagrar
uma língua, com algumas vinte letras – vir a ser, tudo colabora para
fazer surgir, origem – aproximando a composição tipográfica de
um rito.
Stéphane Mallarmé (tradução de Juliane Bürger).

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Je préferè, devant l’agression, rétorquer que des
contemporains ne savent pas lire –

Sinon dans le journal; il dispense, certes, l’avantage


de n’interrompre le choeur de préoccupations.

Stéphane Mallarmé – Variations sur un sujet: quant au livre, in Oeuvres


Complètes. Ed. H. Mondor et G. Jean-Aubry. Paris, Gallimard, 1945, p. 386.

Prefiro, diante da agressão, retorquir contemporâneos que não


saibam ler –
Exceto no jornal: ele proporciona, certamente, a vantagem de
não interromper o coro de preocupações.
Stéphane Mallarmé (tradução de Juliane Bürger).

***

Un jornal est un lieu carré où les auteurs et le public


s’accouplent monstrueusement jusqu’à ce qu’il ne reste
plus que des imbéciles.

Et encore: c’est le lieu carré où l’auteur empoisonne le


public qui le rend stupide.

L’extrême rapidité d’ exécution et de lecture, la


succession également rapide des sujets et des jours –
l’absence de critique et de connaissance du lecteur,
c’est l’anarchie de la lettre où il n’y a plus de juges ni
de formes judiciaires ni de lois mais la fantaisie de
chacun et les moyens sommaires que l’individu
emploie toujours, – les exécutions de l’offre et de la
demande.

Paul Valéry – Cahiers II. Ed. Judith Robinson. Paris, Gallimard, 1974, p. 1150.

Um jornal é um lugar limitado onde os autores e o público


agrupam-se monstruosamente até que hajam somente imbecis.
E mais: é o lugar limitado onde o autor envenena o público que
o torna estúpido.
A extrema rapidez de execução e de leitura, a sucessão igual-
mente rápida dos temas e dos dias – a ausência de crítica e de
conhecimento por parte do leitor, é a anarquia da letra onde não
existem mais juízes de formas judiciárias nem de leis mas sim a
fantasia de cada um e os meios sumários que o indivíduo sempre
emprega, – as execuções de oferta e procura.
Paul Valéry (tradução de Juliane Bürger).

***

La lecture des journaux mène à tout lire comme des journaux.


Paul Valéry – Cahiers II. Ed. Judith Robinson. Paris, Gallimard, 1974, p. 1153.

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A leitura dos jornais leva a tudo ler como jornais.
Paul Valéry (tradução de Juliane Bürger).

***

A s pequenas revistas não participam do destino dos bons li-


vros que nascem sob o signo da obscuridade. O tempo de que
dispõem para vencer é muito breve; elas não podem aguardar os
vagarosos julgamentos da posteridade, as reabilitações, as modas e
as descobertas. No máximo, o colaborador que reúne em livro o
que deixou esparso em suas páginas se digna citar-lhe o nome. A
pequena boa revista desaparece na voragem, entre as toneladas de
papel impresso que saem todos dias dos prelos. O que dela sobra é
uma lembrança que os anos vão atenuando, e, às vezes, três cole-
ções: a do diretor, a do amigo do diretor (que é um colaborador
costumaz) e a do Fã Anônimo.
As pequenas revistas são o refúgio do que não cabe nos órgãos
bem nutridos das grandes empresas. Muitas vezes um refúgio inó-
cuo; outras, um reservatório de dinamite, uma bomba de ação re-
tardada que vai explodir nas gerações seguintes. Não serão obriga-
toriamente boas revistas, nem obrigatoriamente pasquins. Mas têm
sobre os chamados bons veículos de propaganda a vantagem de
depender pouco de conchavos e negócios: em suma, a indepen-
dência do lobo magro e livre diante do cachorro médio e lustroso
de coleira no pescoço.
Costumam ser obra primas do artesanato, cuja existência as con-
dições econômicas e as exigências estatais vão dificultando cada
vez mais. A começar pelo processo da fundação de uma revista, a
coisa antigamente era mais simples. Não havia registro oficial. O
problema financeiro consistia em cavar um anuncio aqui outro ali,
ou então apelar para algum recalcitrante Mecenas, em nome dos
bons princípios e da boa literatura. Seria extraordinário pagar um
artigo, talvez o colaborador se ofendesse.
Antigamente os adultos gostavam mais que hoje de brincar de
pequena revista. Para alguns homens que escrevem, há realmente
uma espécie de volúpia no semi-ineditismo. Dá um ar de recado,
de cumplicidade de grupo, que satisfaz a alguns pudores mais
conspirativos (digo conspirativo no sentido inocente da palavra).
Não pode ser outro o motivo que leva o grande escritor, o “blasé”
da publicidade, o astro dos cabeçalhos, a brindar obscuros rapazes
com uma produção que circulará em mil cópias. Ou então, talvez,
o sentimento de que vai ser lido por esses mil leitores com uma
intensidade multiplicada, uma ânsia de assimilação que vale o to-
tal de cinqüenta mil displicências dos leitores do grande órgão.
Pequenas revistas da província ou das capitais – que densidade
de esperança elas carregam! Que bela audácia de negar, que ilu-
são sobre o efeito de cada linha na sorte do mundo e dos homens,
que angústia com os pastéis de tipografia, que nobre desprezo pela
opinião contrária. E sobretudo, que vontade de crescer!
Conheci algumas dessas revistas, e a uma delas fiz referência
no domingo passado, com uma ligeireza de que me penitencio
agora amplamente, aproveitando a presença no Rio do seu diretor,
Arnaldo Pedroso d’Horta. A pequena revista chamava-se Proble-
mas e não chegou aos vinte números. Era mensal, mas o primeiro
aniversário foi comemorado no número dezesseis, porque essas

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revistas têm cronologia própria e independente das leis do univer-
so. Em S. Paulo tornou-se bastante conhecida, mas não teve quase
divulgação no Rio. Horta é um dínamo que trabalha manso, e no
princípio tinha a auxiliá-lo Rubem Braga, cujo “gênio folgazão”
disfarça as intermitências de uma atividade de “one dollar man”,
uma atividade que vem por acessos como a malária que o atacou
quando pescava nos matos do interior do Paraná. Bem, mas isso já
é outra história.
A revista Problemas não era brincadeira de principiantes (ela
foi fundada em 1937), mas por sua própria natureza tinha que se
manter relativamente discreta. O primeiro número apareceu com
um artigo de João Mangabeira sobre democracia – “A Democracia
Militante”, senão me engano. Oswald de Andrade publicou lá uma
famosa sátira ao integralismo. Ao lado desses e de outros nomes
feitos de padrinhos, havia os principiantes. A revista tratava de lite-
ratura, mas não só de literatura; havia muita política, principal-
mente internacional, e muita economia. Agitava-se a questão da
siderurgia, Rubem Braga fazia considerações sobre uma teoria de
Evandro Pequeno chamada bananismo, e publicava uma página
de forte lirismo sobre as “flores cobertas de poeira”, Arnaldo Pedroso
d’Horta, em comparação com a maioria dos diretores novatos, era
um gênio; mas um dia as finanças da revista se atrapalharam de tal
jeito que ele desistiu. Com os seus vinte números e a sua reduzida
circulação, Problemas desempenhou um papel significativo, nas
lutas democráticas do país.
A pequena tiragem era muitas vezes uma condição de eficiên-
cia das revistas quando tinham veleidades políticas. O que resulta
mortífero em cem mil exemplares, passa a ser apenas incômodo
em dez mil, e é tolerado abaixo de três mil. Mas isso não quer
dizer que o conteúdo seja inofensivo na mesma proporção. Tudo
aí é uma questão de tempo. O germe da verdade tem meios enge-
nhosos de transmissão: muitas vezes ele se recolhe dentro de uns
poucos indivíduos. Pode então transmitir-se por um bilhete, um
boletim, e se contar com uma revista, então a festa está feita. É o
caso da bomba de ação retardada.
Moacir Werneck de Castro – “Homens, Livros e Idéias: Pequenas Revistas”, in
Diário Carioca, Rio de Janeiro, 1944.

***

E n los años de guerra hubo poca oposición concertada a Sur,


en lo ideológico o en lo estético. Casi todos los hombres de letras
estaban de acuerdo con las opiniones del liberalismo, que
encontraban su expresión suprema en Sur. Tan sólo una pequeña
corriente nacionalista dentro del radicalismo –el grupo FORJA—
cuestionó el modelo liberal de elite, y acabaría siendo atraída por
el peronismo. Sur sería uno de los blancos de sus ataques en la
obra de críticos como Arturo Jauretche. Sin embargo, en general
puede decirse que la izquierda aún no lanzaba una crítica al libe-
ralismo, y el nacionalismo de derecha, aunque cobraba fuerza,
aún era bastante insignificante. A mediados de los cuarenta se
estableció una alianza entre los partidos políticos de Argentina, en
un intento por lograr que Perón no ganara las elecciones. En esas
circunstancias, la izquierda liberal pudo recibir bien las iniciativas
de Sur, como queda ilustrado por una nota de Leónidas Barletta,
publicada en su revista Conducta (“al servicio del pueblo”). En ella
Barletta agradece a Victoria haberle enviado un recorte de periódi-
co francés en que menciona a su compañía de teatro, “el teatro del

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pueblo”. Habla de “La inteligencia y extraordinaria labor de
acercamiento e intercambio intelectual que cumple esa cultísima
escritora que es Victoria Ocampo, en el extranjero, por amor a
nuestro país y nuestra querida ciudad”.
Los pequeños pero vociferantes grupos de izquierda se mostraron
menos deferentes. En su principal revista, Nueva Gaceta, hicieron
mofa de las pretensiones de Sur, especialmente en sus análisis de
los asuntos contemporáneos. El debate de Sur sobre MacLeish lo
encontraron tristemente carente de ideas; consideraron que el
análisis de Denis de Rougemont expresaba un “utópico y repudiable
aristocratismo”. En un número posterior la revista la emprendió
contra la “santa trinidad” de Borges, Bioy y Silvina Ocampo por su
muy selectiva antología de la poesía argentina, que había excluido
a escritores como Enrique Molina, José Portogalo y Álvaro Yunque.
La Nueva Gaceta pedía, en cambio, intelectuales comprometidos
que lucharan por la unidad y la liberación de la América Latina,
sacudiéndose el yugo de las potencias imperialistas. Apareció en
formato de periódico, con sombrías pero notables ilustraciones de
Antonio Berni, Raquel Forner y Emilio Pettorutti, entre otros. La
revista atrajo a algunos viejos escritores de Boedo, como Álvaro
Yunque, los hermanos González Tuñón y Roberto Mariani, junto
con una generación más joven de intelectuales comprometidos,
que incluía a Rodolfo Puiggrós, quien mucho después desempeñaría
un papel importante en la política cultural del segundo Peronato.
Estos escritores nunca serían publicados por Sur, pero es significa-
tivo que su actitud hacia la guerra, y después hacia el ascenso del
peronismo, no fuese muy diferente de la de Sur. Eran más estriden-
tes, subrayaban el compromiso directo y hacían mofa de la aristo-
cracia del espíritu, pero también sus debates se hacían en el nivel
de la práctica teórica. Sería Perón quien obtuviera el apoyo de la
clase obrera, no los intelectuales de la Nueva Gaceta.
Una crítica más radical llegaría de la derecha, que recayó en
generalizaciones antiliberales y antieuropeas y que presentó como
opciones el clericalismo, el hispanismo y los valores coloniales.
Un comentario sobre la revista más importante de esta categoría
general, Sol y Luna, capta bien su espíritu: su ideología es la de
“Castilla, pero la muy vieja, un olor de almidones añejos, el apaga-
do rumor de vigilia de gente en armas, el crepitar de los leños en
un auto de fe; todo eso se desprende de las 200 páginas de cada
número”. Y sin embargo, sus colaboradores eran distinguidos
intelectuales de derecha (Castellani, Marechal, Derisi, Máximo
Etchecopar) y su rechazo del liberalismo era coherente. Lo mismo
puede decirse de una revista posterior, Antología, dirigida Arturo
Cambours Ocampo, con importantes colaboraciones de Carlos
Ibarguren y Leonardo Castellani, entre otros. El nacionalismo de
derecha atacado tan violentamente por Borges encuentra su
expresión más clara en los periódicos neofascistas El Pampero y
Cabildo, cuyos nombres tan sólo invocan una tradición poderosa-
mente nacionalista. El primer número de El Pampero contiene un
poema estridente de Juan Criollo, “Ya está soplando el pampero”:
¡Lindo viento nacional
que de la pampa hasta el río
barre el bicharraquerío
La fauna internacional!
La “fauna internacional” florecía en las páginas de Sur, como
ese mismo año lo puso en claro Ramón Doll: “No consideró

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necesario la directoria de este bazar de importación (Sur) ocuparse
de todo lo que está pasando por aquí adentro, que se nos ha llenado
de humo la cocina y que las ratas carcomen los cimientos de la
nacionalidad”. Piadosos artículos sobre Congresos Eucarísticos,
combinados con xenofobia antisemita y los más burdos sentimientos
nacionalistas abundan en las páginas de estos periódicos, que
forman parte indudable del contexto de los años de guerra. Ilustran
una tendencia totalmente opuesta a los ideales de Sur.
A comienzos de los cuarenta aún eran pertinentes términos como
“izquierda” y “derecha”. Sin embargo, el advenimiento de Perón haría
superfluas todas esas clasificaciones, y constituiría la amenaza más
importante a la continuada hegemonia de Sur en la alta cultura.
John King – Sur. Estudio de la revista argentina y de su papel en el desarrollo
de una cultura 1931-1970. Trad. Juan José Utrilla. México, Fondo de Cultura
Económica, 1989, pp. 159-161.

***

M eses antes del lanzamiento oficial de Mundo Nuevo, el pú-


blico latinoamericano tuvo noticias de la revista y de sus conflictivos
orígenes a través de la polémica que entablaron Roberto Fernández
Retamar y Emir Rodríguez Monegal. ¡Cedidas a la prensa por el
flamante director de Casa de las Américas, las cinco cartas que se
intercambiaron durante este duelo discursivo circularon profusa-
mente por América Latina gracias al trabajo de difusión de Bohemia
(Cuba), Siempre! (México), Marcha (Uruguay) y La rosa blindada
(Argentina). Con esta polémica comienza la historia pública de
Mundo Nuevo, un comienzo significativo por varias razones. En
primer término, porque las cartas anticiparon sensacionalmente la
aparición de Mundo Nuevo y, al hacerlo en los moldes polémicos
en que lo hicieron, generaron ciertos prejuicios y despertaron fuertes
expectativas en algunos sectores del público latinoamericano. En
segundo lugar, porque la lógica “amigo-enemigo” que dominó el
juego epistolar reflejó de manera más o menos aproximada la red
de solidaridades y rechazos que estructuraban el campo político
de los años 60.
En la primera carta, fechada el 1º. de noviembre de 1965, Emir
Rodríguez Monegal le anunciaba a Roberto Fernández Retamar su
decisión de dirigir una “revista literaria en París para América Lati-
na”. Según Monegal, la revista iba a representar “una oportunidad
para todos los que creemos en una cultura latinoamericana viva y
de hoy y, a renglón seguido, confesaba haber aceptado la dirección
de la misma “porque el grupo que me la ofrece (vinculado con el
Congreso por la Libertad de la Cultura pero no dependiente de él)
me asegura toda la libertad de elección y orientación”.
La sola referencia al Congreso por la Libertad de la Cultura
(disimulada por sutilezas semánticas que no lograron distraer la
atención de Fernández Retamar) dio origen al debate que se
prolongó hasta principios de abril de 1966. La filiación institucional
de Mundo Nuevo, por un lado, y las deudas políticas que trababa
el parentesco económico de la revista con el Congreso por la
Libertad de la Cultura, por otro, fueron los dos temas que enfrentaron
a Rodríguez Monegal y Fernández Retamar; y los puntos sobre los
que gira la respuesta del director de Casa de las Américas:

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...el Congreso de marras es una organización creada
para algo, que es, precisamente, lo contrario de lo que
nuestros países requieren. Financiado como está por
los Estados Unidos, tiene como única misión la defensa
no de “libertad de la cultura”, sino de los intereses
imperialistas norteamericanos, agenciándose para ello,
la colaboración de intelectuales de diversos matices,
algunos de los cuales no son hostiles a nuestras causas...
Si crees de veras que la sutil distinción semántica de
estar “vinculado con el Congreso por la libertad de
elección y orientación” en el nuevo Cuadernos que
preparas, me temo, Emir, que has sido sorprendido en
tu buena fe, de la que no tengo por qué dudar.
La campaña de impugnación originada en Cuba puso en guardia
a gran parte de la intelectualidad latinoamericana. Rápidamente
(“aún antes de haberse publicado el primer número”, como se quejó
muchas veces Rodríguez Monegal), Mundo Nuevo se convirtió en
objeto de estigmatización de las publicaciones más representativas
de la izquierda continental. Cada vez que pudo, la revista habló
del vacío de recepción con que la izquierda la había castigado,
vacío al que, en un lenguaje típico de Guerra Fría, dio en llamar “el
boycot cubano contra Mundo Nuevo”. De esta forma, la polémica
con Cuba se impuso por iteración en el macrodiscurso de la
publicación y llegó a consolidar uno de sus loci centrales no sólo
porque se trató del primer contacto que el público estableció con
Mundo Nuevo sino también porque el cruce de correspondencias
entre Rodrígues Monegal y Fernández Retamar tuvo toda la
apariencia de ser una suerte de “trauma fundacional” incrustado
en la autoimagen que construyó de sí misma la revista parisina.
Maria Eugenia Mudrovcic – Mundo Nuevo. Cultura y Guerra Fria en la
década del 60. Rosario. Beatriz Viterbo, 1997, p.11-13.

***

U n escritor no necesariamente es un intelectual, un intelectu-


al no necesariamente es un político, un político no necesariamente
es un revolucionario. Si llegó a haber una simbiosis entre el primero
y el último de los términos de la serie es porque la década de 1970
se caracterizó precisamente por una supresión casi total de las
mediaciones entre el campo literario y el campo político. Cuando
Mario Benedetti afirma que es necesario “un asalto al Moncada”
en la práctica artística, o cuando Julio Cortázar blande su consig-
na, “mi ametralladora es la literatura”, están provocando esa
simbiosis, que se revestirá de marcas retóricas típicas en la
discursividad de aquellos años. Este proceso resulta visible en el
proyecto de Crisis, y en él confluyen al menos tres “razones” dife-
rentes: a) la que, impulsada por la Revolución Cubana, tiende a
privilegiar al hombre de acción sobre el hombre de ideas; b) la
que, anclada en el pensamiento nacionalista y populista, identifica
a los intelectuales con la cultura de élite, ligada con los intereses
de la oligarquía; c) la que, originada en el romanticismo, tiende a
depositar en el pueblo cierto saber natural superior al saber rebus-
cado e inoperante de la cultura letrada: hombre común, sentimientos
nobles, saber natural, lenguaje sencillo. Por estas tres vías se llega

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a la anulación de la mediación intelectual: el escritor no se plantea
cómo intervenir en la vida política en cuanto intelectual, sino cómo
convertirse en hombre de acción mediante su integración al “cam-
po popular”. Como vimos, estas tres líneas no son para nada
novedosas e incluso los libros tan citados de Oscar Terán y Silvia
Sigal – entre otros – han caracterizado con acierto su irrupción en
las décadas de 1950 y 1960. Lo que interesa ver es cómo se recu-
pera esta tradición en la década de 1970 y, particularmente, cómo
lo hace Crisis. Quizás una de las más interesantes referencias que
pone de manifiesto, en fuerte contraste, la superioridad del hombre
de acción – “heroísmo”, “actitud combativa” – sobre el intelectual
– “desesperación”, “desencanto” – sea el fragmento del discurso
inaugural de Perón en el Primer Congreso Nacional de Filosofía,
realizado en Mendoza en Abril de 1949, y citado en la entrevista a
Fermín Chávez, publicada en el No. 25:

[...] la angustia de Heidegger ha sido llevada al extremo


de fundar teoría sobre la náusea... [...] del desastre brota
el heroísmo, pero brota también la desesperación,
cuando se han perdido dos cosas: la finalidad y la
norma. Lo que produce la náusea es el desencanto, y
lo que puede devolver al hombre la actitud combativa
es la fe en su misión, en lo individual, en lo familiar y
en lo colectivo.
Si tenemos en cuenta las tempranas adhesiones de la “nueva
izquierda” al existencialismo sartreano, estas advertencias de Perón,
a sólo un par de años de las primeras ediciones en castellano de El
ser y la nada, La náusea y Los caminos de la libertad, abrían una
brecha que muy difícilmente podría cerrarse. Crisis no hace sino
ahondar esa brecha en la “teoría” y en la “práctica”. (...)
Cultura popular, entonces, pero cuál cultura popular:
– ¿la producida por el pueblo?: sí éste es el criterio, en Crisis el
concepto “pueblo” puede asimilarse a grupos indígenas olvidados
(los onas en el nº. 3, las “culturas condenadas” en el nº. 4, los
mapuches en el nº. 40), a sectores sociales marginados (presos en
el nº. 3, alienados en el nº. 11, inmigrantes en los nº. 18 y 19), o
simplemente a “voces” (grafitis en el nº. 25, “voces sobre Gardel”
en el nº. 27, testimonios sobre el “rodrigazo” en los nº. 28 y 29).
– ¿la dirigida al pueblo?: en este caso, se incluyen los cantantes
y músicos populares (las dos notas con el título “Cantar opinando”
en el nº. 12 – Zitarrosa, Mercedes Sosa, Viglietti, Nacha Guevara –
y en el nº. 20 – Carlos Puebla, Pablo Milanés, Joan Baez) y los
trabajados de investigación sobre los llamados “géneros menores”
(Jaime Rest sobre novela policial en el nº. 15, Beatriz Seibel sobre
el circo criollo en el nº. 18, Jorge Rivera sobre el humor gráfico en
los nº. 34 y 35).
– ¿La que intenta una integración con el pueblo, una experiencia
compartida?: las notas más reiteradas de este tipo son referidas a
las formas de teatro popular (el teatro en la Revolución Cubana en
el nº. 6, dos notas sobre los trabajos de Augusto Boal en los nº. 14
y 19, las experiencias del Teatro Libre en Tucumán, narradas por
Haroldo Conti en los nº. 21 y 24).
– ¿la que se propone defender los intereses del pueblo (de don-
de popular sería quien “canta opinando” y no quien procura
estupidizar al pueblo cantando tonterías)?
Nada de esto se establece de un modo programático en Crisis, y
volvemos a lo dicho al comienzo: la revista parece demostrar una

travessia 40 / outra travessia 1 14


profunda desconfianza hacia los debates teóricos y una ilimitada fe
en la espontaneidad y la eficacia de la oralidad: Voz populi vox Dei.
José Luis de Diego – “El proyecto ideológico de Crisis”, in Prismas. Revista de
Historia Intelectual, Universidad Nacional de Quilmes, nº 5, 2001, pp. 133-
140.

***

L
“ a conformación de la red latinoamericana de revistas
corroboró hasta qué punto los sujetos políticos se constituyen en el
plano discursivo: ellas fueron uno de los escenarios donde los es-
critores se ratificaron como intelectuales, además de servir a la
difusión de los autores y textos latinoamericanos de la época. La
cantidad de revistas surgidas por entonces (de corta o larga vida,
según los avatares de la política y las posibilidades de
financiamiento) no es un dato menor. En tanto las revistas surgían,
incesantemente, la actividad de “puesta al día” y actualización del
estado de producción literaria continental fue una de sus
preocupaciones constantes. A través de dossier dedicados a auto-
res y a países del continente, que enfatizaban su carácter de “nuevo”
(“nuevos” escritores venezolanos, colombianos, uruguayos, argen-
tinos, salvadoreños, cubanos, etc.), de reseñas bibliográficas escri-
tas casi simultáneamente al momento de la aparición de las obras,
de entrevistas y menciones, y de la creación de premios literarios,
los mecanismos de consagración buscaron una renovación del
canon latinoamericano entre los autores del momento. En las re-
vistas puede rastrearse el proceso constante de reevaluación de la
producción existente y el intento por construir una tradición
partiendo de criterios estéticamente modernos, que acercaban el
horizonte del modernismo y las vanguardias y rechazaban los
telurismos, folklorismos y nativismos requeridos para América Lati-
na por una suerte de división internacional del trabajo artístico que
entonces se impugnó” (pp. 76-77)

“El mapa de la época que las revistas permiten constituir también


se caracteriza por su propia vocación cartográfica en esos años, los
discursos de las revistas inventaron sistemáticamente un objeto, al
hablar de él: Latinoamérica, la Patria Grande y su literatura. Muchas
sitúan esta creación, que excede la geografía, en la elección misma
de sus nombres: Casa de las Américas, Latinoamericana,
Hispamérica.
En las revistas confluyeron, por un lado, la recuperación del
horizonte del modernismo estético; por otro, un espacio de
consagración alternativo a las instituciones tradicionales e instancias
oficiales. Y, finalmente, la construcción de un lugar de enunciación
y práctica para el intelectual comprometido. En cierto modo, un
lugar que le provee un objeto, un espacio simbólico, un contexto o
un destino. Ese objeto o destino se denominó Latinoamérica.
Marcha, la pionera, afirmó a través de veinticinco años esta
voluntad de creación sostenida sin pausa por Carlos Quijano y
refrendada luego por Angel Rama en sus aspectos culturales. Si,
desde el punto de vista histórico, la Revolución Cubana condensó
esta aspiración en el país que se denominó “primer territorio libre
de América”, desde el punto de las revistas fue el legendario
semanario uruguayo uno de los primeros en reconocer este objeto
y constituirlo en lema de una lucha” (pp. 78-79)
Claudia Gilman. Entre la pluma y el fusil. Debates y dilemas del escritor
revolucionario en América Latina. Buenos Aires, Siglo veintiuno editores,
2003.
15 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003
***

I l y a mille raisons de s’intéresser à la forme-revue. On peut


l’aborder en historien, comme Michel Winock l’a fait pour Esprit,
afin d’éclaircir un point d’histoire (la revue s’est-elle ou non
compromise avec le régime de Vichy en 1940? n’a-t-elle pas fait
preuve d’une indulgence coupable vis-à-vis du communisme
stalinien dans l’après-guerre?). Ou de façon scientifique, comme
Anna Boschetti et Nilo Kauppi, pour expérimenter une méthode.
La revue devient un “champ”, un système de relations sociales doté
d’une logique qui lui est propre et qui commande son évolution. À
l’intérieur de ce champ, toute pratique – la publication d’un article,
l’affirmation d’un goût ou d’un mépris, une prise de position
politique – est considérée comme une stratégie. On peut raconter
le vie d’une revue, comme on le fait d’une personne: c’est le cas
d’Auguste Anglès pour La NRF, des années de formation à l’âge
mûr. Et se donner parfois l’impression d’y participier: n’est-ce pas
le cas de Philippe Forest dans son Histoire de Tel Quel?
Tandis que les articles publiés par la revue sont pour l’historien
des documents ou des preuves, pour le sociologue le produit de
déterminations sociales, pour le biographe des compléments
d’information, venant s’ajouter aux correspondances et autres fonds
d’archives, le principe de Critique invite à les traiter en eux-mêmes
comme des textes, comme des textes critiques et des textes
susceptibles à leur tour de singularité tient avant tout à un ensemble
de traits négatifs: pas d’effet de maquette, pas de ligne éditoriale,
pas d’interrogation politique, pas vraiment de finalité intellectuelle,
peu d’implication affective (chez celui qui la dirige ou chez ceux
qui la font). La seule histoire de Critique paraît être celle des textes
qu’elle a publiés.
Sylvie Patron – Critique 1946-1996. Une encyclopédie de l´esprit moderne.
Paris. Editions de L ´IMEC, 1999, p. 7

travessia 40 / outra travessia 1 16


Existem mil razões para que haja o interesse pela forma-revista.
Pode-se abordá-la enquanto historiador, como Michel Winock o
fez para Esprit, com a finalidade de esclarecer um ponto da história
(a revista se comprometeu ou não com o regime de Vichy em 1940?
Ela não provou uma indulgência culpável diante do comunismo
estalinista no após-guerra?). Ou de modo científico, como Anna
Boschetti e Nilo Kauppi, para experimentar um método. A revista
torna-se um “campo”, um sistema de relações sociais dotado de
uma lógica que lhe é própria e que comanda sua evolução. No
interior deste campo, toda prática – a publicação de um artigo, a
afirmação de uma preferência ou de um desprezo, a tomada de
uma posição política – é considerada uma estratégia. Pode-se con-
tar a vida de uma revista, como o fazemos com uma pessoa: é o
caso de Auguste Anglès e La NRF, dos anos de formação à idade
madura. E dar a impressão, por vezes, de participar dela: não seria
o caso de Philippe Forest em Histoire de Tel Quel?
Enquanto os artigos publicados pela revista são para o historia-
dor documentos ou provas, para o sociólogo o produto de determi-
nações sociais, para o biógrafo complementos de informação, vin-
do a acrescentar às correspondências e outros fundos de arquivos,
o princípio de Critique convida a tratá-los por si próprios, como
textos, como textos críticos e textos suscetíveis por sua vez à singu-
laridade que se devem sobretudo a um conjunto de traços negati-
vos: sem efeito de esboço, sem linha editorial, sem questionamento
político, sem verdadeira finalidade intelectual, pouca implicação
afetiva (por quem a dirige ou produz). A única história de Critique
parece ser aquela dos textos que publica.
Sylvie Patron (tradução de Juliane Bürger).

17 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


***

I t must also be noted that Modernism arrived quickly in countries


that had well-established literary traditions. Yet it was only with the
activities of the Canadian Authors’ Association in the early 1920s
that a general interest in Canadian writing began to develop. Two
confederations poets, Charles G.D. Roberts and Bliss Carman, had
to leave Canada to make their literary reputations, while Archibald
Lampman, Duncan Campbell Scott, and others remained to languish
in relative obscurity in Canada. Reminiscing about his return to
Canada from Oxford in 1923, F. R. Scott noted that there “ was very
little culture coming out of Montreal at that time.”
Louis Dudek argues that little magazines are “embattled literary
reaction of intellectual minority groups to the commercial middle-
class magazines of fiction and advertising which had evolved in
the nineteenth century”. But in Canada there was little of an
intellectual majority to rebel against. F.R. Scott, A. J. M. Smith, and
Leo Kennedy took the first tentative steps towards a Modernist poetry,
and they were able to level criticisms at the Canadian Authors’
Association and the Confederation poets; but they themselves had
to establish a national setting in which their writing could be
presented. The Canadian magazines of the 1920s were not very
bohemian when compared with their English parallels, Blast or The
Egoist, and the commercial magazine was not very strong in Canada
in 1920. Magazines available to the educated middle class were
likely to be American products such as Harper’s, The Atlantic
Monthly, and Scribner’s Magazines. Canadian periodicals that
attempted to compete with these publications in the late nineteenth
century, such as the Dominion Illustrated Monthly, Massey’s Maga-
zines, and Our Monthly, could not match the American magazi-
nes’ financial resources, and quickly disappeared. A notable
exception was Canadian Magazine, which lasted for three decades.
Modernism, then, had a slow and tentative start in Canada. It
would be until the 1940s that Modernism, equipped with embattled
little magazines, would re-enact the cultural drama in Canadian
terms. It can also be argued that it was not until the 1960s that
avant-garde literary magazines began to appear in Canada — some
fifty years after the outburst of radical European Modernism. In
Canada, modernist evolution went through a series of gradual shifts,
beginning with very moderate experiments, proceeding through
stages of radical political and aesthetic development, until the entire
range the modern revolution was explored. This will be our story.
Ken Novris - The Little Magazine in Canada 1925-1980 its role in the
development of Modernism and Post Modernism in Canadian Poetry. Toronto,
ECN Press, 1984, pp. 8 -9.

travessia 40 / outra travessia 1 18


Deve ser notado que o Modernismo chegou rapidamente em
países que tinham tradições literárias bem estabelecidas. Contudo,
foi somente com as atividades da Associação Canadense de Auto-
res, no começo dos anos 20, que um interesse geral por autores
canadenses começou a desenvolver-se. Dois poetas Confederados,
Charles G.D. Roberts e Bliss Carman, tiveram que deixar o Canadá
para construir suas reputações literárias, enquanto Archibald
Lampman, Duncan Campbell Scott e outros permaneceram enfra-
quecidos, em relativa obscuridade no Canadá. Rememorando acer-
ca de seu retorno de Oxford ao Canadá em 1923, F.R. Scott obser-
vou que “havia muito pouca cultura saindo do Canadá naquele
tempo”.
Louis Dudek argumenta que aquelas pequenas revistas são “a
conturbada reação literária de grupos minoritários às revistas co-
merciais classe-média de ficção e publicidade que tinham tomado
conta do século dezenove”. Mas no Canadá havia muito pouco de
uma maioria intelectual contra a qual rebelar-se. F.R.Scott,
A.J.M.Smith e Leo Kennedy deram as primeiras tentativas de cami-
nhada na direção de uma poesia modernista, e eles foram capazes
de elevar críticas à Associação dos Autores Canadenses e à Confe-
deração dos Poetas; mas eles mesmos tiveram que estabelecer um
cenário nacional no qual seus escritos pudessem ser apresentados.
As Revistas Canadenses dos anos vinte não eram muito boêmias se
comparadas às suas correspondentes inglesas, Blast, ou The Egoist,
e a revista comercial não eram muito fortes no Canadá em 1920.
Revistas disponíveis para educar a classe média eram provavelmente
as produções americanas tais como Harper’s, The Atlantic Monthly
e Scribner’s Magazine. Periódicos canadenses que tentaram com-
petir com estas publicações no fim do século dezenove, tais como
Dominion Ilustrated Monthly, Massey’s Magazine e Our Monthly
não puderam confrontar as fontes financeiras das revistas america-
nas e desapareceram rapidamente. Uma notável exceção foi a
Canadian Magazine, a qual durou por três décadas.
O Modernismo, então, teve um começo lento e hesitante no
Canadá. Somente nos anos quarenta é que o Modernismo, equipa-
do com pequenas revistas polêmicas, re-colocariam em pauta aque-
le drama cultural em termos canadenses. Pode também ser argu-
mentado que somente nos anos sessenta é que revistas literárias de
vanguarda começaram a aparecer no Canadá – algumas depois de
cinqüenta anos da explosão do Modernismo Europeu radical. No
Canadá, a evolução modernista deu-se através de uma série de
mudanças graduais, começando com experimentos moderados e
continuando através de etapas de desenvolvimento político e esté-
tico-radicais, até que uma inteira extensão da revolução moderna
fosse explorada. Esta será nossa história.
( Ken Novris, Tradução Wladimir Garcia).

19 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


travessia 40 / outra travessia 1 20
SOBRE REVISTAS, PERIÓDICOS E
QUALIS TAIS.
Para Antonio Dimas
Maria Lucia de Barros Camargo
Universidade Federal de Santa Catarina - CNPq

1
1980. Uma foto em preto e branco (ou cinza e amarelo claro?), E por falar em Minas, nas Gerais, o
feita de contornos imprecisos, de claro-escuro, ocupa cerca de dois leitor de 1980 certamente se
lembraria daquela talvez menos
terços da capa do primeiro número de uma nova revista. No centro nobre “Travessia”, então referência
da foto, um pequeno barco à vela, quase um esboço. Esmaecido, certa nos cânones da música popular
seu contorno apenas se deixa entrever sobre o brilho das águas brasileira “de qualidade” (para usar o
que refletem a luz tênue e fosca de um sol em meio à névoa. Soli- qualificativo de José Miguel
tária travessia. Como uma sorte de moldura, à esquerda da foto, Wisnick), popularizada, desde o
festival de 1967, na voz de seu autor,
duas linhas verticais e paralelas atravessam toda a capa, formando Milton Nascimento, e, depois, na de
uma coluna em que se inscrevem letras grandes, uma sobre a ou- sua principal intérprete, Elis Regina.
tra: TRAVESSIA. Completando a moldura, no alto da foto, um sub-
2
título, provavelmente o que se deixa primeiro ler nesta capa: Revis- Evidentemente, toda esta capa, tal
ta de Literatura Brasileira. No rodapé, a legenda impossível para a como um poema, poderia ser
analisada detidamente: as palavras
foto que o encima: “Contribuição das vanguardas”; “As propostas ou os fragmentos de versos que se
do grupo Sul”; “O ensino da literatura”; “Estudos críticos”; “Rese- destacam pela posição (por
nhas”; “Poesias”. Apesar do estranhamento suscitado pela foto no exemplo, “estúpidas”, “novo”,
centro da capa, subtítulo e rodapé, lidos em conjunto, poderiam “velho”), o que fica na capa e o que
produzir, no leitor afeito às coisas do mundo literário, a expectati- está por trás, na contra-capa (“A
primeira”, “achei”, “achei”,
va de estar diante de uma típica “revista literária”. Para estes leito- ‘quando”, “achei”, “os olhos”), os
res, além do explicativo subtítulo, a palavra Travessia ainda pode- efeitos da fragmentação, etc. Deixo
ria evocar tanto um longínquo tópico da literatura, o da viagem, tudo isso, no entanto, para outra
quanto, mais proximamente, a grande travessia na literatura brasi- oportunidade.
leira do século XX, aquela empreendida por Riobaldo, seja na
memória, seja na reescritura da vida, seja no deserto do Sussuarão
– grande sertão, veredas.1
2000. O chamativo vermelho vivo atrai o olhar para a capa,
sem fotos e sem figuras, de uma nova revista. Naquela superfície
vibrante destacam-se, não sem um certo acanhamento, as letras
brancas, bem no centro, palavra sobre palavra, formando um pe-
queno retângulo à moda de poema: “revista de/ literatura/ brasilei-
ra/ Teresa”. O nome – Teresa – é subtraído ao poema homônimo
de Manuel Bandeira, inscrito parcialmente na capa e com ela qua-
se se confundindo no mesmo vermelho, com exceção, é claro, da
última palavra do primeiro verso, a mesma Teresa do título em
branco. Apenas o brilho e o leve relevo das letras, das palavras dos
versos do poema - filigrana sem fio, marca d’água sem transparên-
cia - traçam o esboço que mal os distingue, produzindo, no entan-
to, um belo efeito estetizante.2 A prescindibilidade do nome do
poeta, omitido nos créditos, remete à idéia de um campo fechado
de conhecedores da literatura brasileira, de amantes da nossa poe-
sia modernista, potenciais leitores de uma revista literária, que po-
derão reconhecer esta Teresa e outras Terezas e Theresas.
Guardadas as devidas diferenças de tempo, requinte gráfico,
possibilidades técnicas de produção e impressão e visível disponi-
bilidade orçamentária, ambos os periódicos definem-se como Re-
vista de Literatura Brasileira. O termo “revista de literatura”, ou “re-
vista literária”, evoca aquele tipo de publicação periódica inde-
pendente das instituições, de tiragem reduzida, de alcance restrito
por vocação, que recusa grandes públicos, não dispõe de circuitos

21 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


3
Agradeço a Renata Telles, que me comerciais de distribuição e venda, nem deseja um mercado de
chamou a atenção para essa consumo amplo. São geralmente idealizadas e produzidas por gru-
possibilidade de um certo
pos de intelectuais - poetas, críticos, artistas, escritores, em suma –
mascaramento, na capa das revistas,
de sua verdadeira condição que nelas encontram o veículo de suas idéias, de seus princípios
institucional, universitária, já que estéticos e políticos, de suas obras, ou seja, da produção crítica e
esta poderia afastar leitores, criativa desse mesmo grupo.
especialmente para a venda em
grandes livrarias, como é o caso de
Podemos imaginar a surpresa de nosso hipotético e desavisado
Teresa, que tem distribuição leitor quando, ao virar a capa das nossas “Revistas de Literatura
nacional apesar da tiragem de Brasileira”, encontra outro tipo de informação, outro subtítulo: em
apenas 1.000 exemplares, o que, Travessia, no verso da capa e encimando os créditos do periódico
afinal das contas, nem é tão pouco lemos - “Revista do Curso de Pós-Graduação de Literatura Brasilei-
se considerarmos as precárias
tiragens brasileiras.
ra – UFSC”, seguido de local e data: “Florianópolis – 2o. semestre
de 1980 – No. 1”; em Teresa, no rodapé do verso da página de
4
Estas marcas ainda pesam quando rosto, lemos: “Teresa é uma publicação do programa de pós-gra-
precisamos definir, por exemplo, o duação da área de Literatura Brasileira do Departamento de Letras
que é e como deve ser uma revista
Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
“científica” de literatura, ou um
“periódico”, como agora se diz. Humanas da Universidade de São Paulo” (grifos meus).
Voltarei a esse ponto mais adiante. A duplicidade da definição, ou a indefinição, não é ex-
5
clusividade das duas revistas tomadas aqui como mote para estas
Servem como exemplo, além de
Travessia e Teresa, a Revista reflexões: o subtítulo ostentado na capa, mais genérico, evoca as
Brasileira de Literatura Comparada “revistas literárias” e delas se aproxima; seu outro, quase escondi-
(da Associação Brasileira de do nas dobras da capa, mais específico, especialista, desfaz a pri-
Literatura Comparada – ABRALIC), a meira leitura: o segundo e discreto subtítulo – talvez mais adequa-
Revista da ANPOLL (da Associação
do, posto que menos charmoso – subtrai Travessia / Teresa do cam-
Nacional de Pós-graduação e
Pesquisa em Letras e Lingüística – po das “revistas literárias” como veículos de formações indepen-
ANPOLL), e várias outras publica- dentes para inseri-las no campo institucional das revistas universi-
ções do mesmo tipo, incluindo-se as tárias, “científicas”. Mas se a possibilidade de equívoco ou de que-
que não evitam demonstrar, na capa, bra de expectativa do leitor pode ser fruto de um cálculo editorial,
seus vínculos acadêmicos, de que é
de uma estratégia “de mercado” para atrair o amante de literatura e
bom exemplo a Gragoatá – Revista
do Programa de Pós-graduação em não apenas o “especialista”3, a duplicidade de designação pode
Letras (UFF). ser lida também como um sintoma dos lugares cambiantes ocupa-
dos pelos dois periódicos que tratam de literatura e, especialmen-
6
O que chamamos de “tradicional”, te, das mudanças institucionais da própria literatura. Tais oscila-
neste caso, remonta apenas ao
século XIX, data anterior, como
ções parecem conter a própria historicidade deste gênero de publi-
sabemos, à criação de universidades cação, forma fragmentária e moderna, cujas origens se confundem
no Brasil: “La organización com o lugar e com as formas do literário na modernidade, especi-
universitaria del saber sobre la almente com a consolidação da crítica como forma de saber. Po-
literatura le otorgó históricamente un demos ler aí, nestas significações oscilantes, nessas ambigüidades,
nuevo estatuto de existencia cultural
a la literatura misma, al consagrar
traços de uma história que, embora recente, porta as marcas de
por medio de disciplinas escolares la uma tradição.4
disolución [...] de la anterior unidad A história deste gênero derivado do jornal se confunde com a
de las ‘Bellas Letras” [...]. La
própria história da imprensa periódica e determina, de algum modo,
organización universitaria del
estudio y la enseñanza de la os múltiplos sentidos da palavra “revista”. Observando alguns de
literatura, tal como se los practica seus usos contemporâneos, e ficando, por enquanto, no campo da
hasta nuestros días, no se remonta literatura, vemos que “revista” denomina, direta ou indiretamente,
más alla del siglo XIX.” Altamirano, um conjunto grande e diversificado de periódicos, podendo desig-
Carlos; Sarlo, Beatriz. Literatura /
nar, igualmente: a) periódicos institucionais, ligados a universida-
Sociedad. Buenos Aires: Hachette,
1983, p. 90. des ou a associações científicas5; de algum modo, estas revistas
trazem também, em seus subtítulos, marcas das áreas disciplinares
constituídas pela forma de organização dos estudos literários na
universidade, destacando-se o estudo da literatura nacional, uma
das mais tradicionais formas de organização desse saber6; b) perió-
dicos independentes e de tiragens reduzidas, em que a palavra re-
vista, geralmente no subtítulo, tem o poder e a função de anunciar
ao leitor que se trata de uma publicação periódica que não é o
jornal, a que se acrescentam seus campos de atuação, distintos,
nestes casos, das áreas disciplinares constituídas: poesia, cultura,
literatura e arte, ou seja, variações sobre o mesmo tema; neste con-
junto também encontramos os periódicos em que a palavra “revis-

travessia 40 / outra travessia 1 22


7
ta”, mesmo ausente em títulos e subtítulos, designa tais publica- O primeiro grupo pode ser
ções através da menção nos editoriais de lançamento7; e c) perió- exemplificado com Babel – Revista
de Poesia, Tradução e Crítica; Sibila
dicos de ampla circulação, como é o caso de Cult – Revista Brasi- – Revista de Poesia e Cultura;
leira de Cultura. Inimigo Rumor – Revista de Poesia;
Coyote – Revista de Literatura e Arte;
É interessante notar como a palavra funciona, inclusive, ao ser e a portuguesa Relâmpago – Revista
repelida, ou melhor, pela recusa ao termo inevitável - revista -, de Poesia; para o segundo grupo,
como se vê no editorial de lançamento de quaisquer: cito Sebastião – novos olhos sobre a
poesia brasileira; Cacto – Poesia &
quaisquer é um periódico mas não é uma revista, porque Crítica; Rodapé – Crítica de
antes de mais nada é um espaço de criação e, como se Literatura Brasileira Contemporânea.
vê, não se presta a rever o acontecido, ainda que se espere Todos essas revistas são publicações
seja lido, visto, relido e revisto muitas vezes. Em quaisquer em circulação no momento em que
convivem autores, sempre convidados, com larga e escrevo.
reconhecida obra ao lado de jovens que já têm produção 8
Rocha, Valdir de Oliveira.
digna de nota. Trata-se de um espaço, de veiculação da “quaisquer por quê?” em quaisquer
criação, muito aberto, em que, no entanto, não cabe tudo n.1. São Paulo, outono 2000, p. 1. A
e qualquer um, porque tem compromisso assumido com afirmação de um “compromisso com
a qualidade.8 a qualidade” é uma espécie de lugar-
comum, um topus para os editoriais
Ao afirmar negando, ou negar reafirmando, o editor de quais- de lançamento de revistas (seja qual
quer procura diferenciar o novo periódico do que seria um concei- for o sentido de “qualidade”), assim
to de revista, inscrito na composição e etimologia da palavra. Mas, como a afirmação de “abertura,
porém não para todos”.
na verdade, parece que a diferença que deseja marcar estaria na
ausência, em quaisquer, de ensaios críticos, de resenhas, de estu- 9
Houaiss, Antonio e Villar, Mauro de
dos, enfim, daquele tipo de texto que costuma freqüentar as revis- Salles. Dicionário Houaiss da língua
tas de literatura e que podemos encontrar em quaisquer dos perió- portuguesa.Rio de Janeiro: Objetiva,
dicos elencados, independentemente de sua inserção. Ao destacar 2001, p. 2454. As mesmas
(in)definições se repetem em outros
a “criação”, quaisquer parece recusar o segundo termo do binômio dicionários.
que constitui o campo literário (ou das artes, de um modo geral):
criação e reflexão, ou seja, literatura e crítica.
Como se vê, não é necessariamente o tipo de texto que distin-
gue, por exemplo, Teresa (periódico acadêmico, universitário), Ini-
migo Rumor (periódico dirigido por poetas e publicado por uma
editora) e Babel (periódico publicado por um grupo de poetas e
intelectuais), ou mesmo Cult, mas a presença, em todas, de criação
e crítica: ensaios, resenhas, poemas, contos, autores tanto contem-
porâneos quanto canônicos, colaboradores reconhecidos e desco-
nhecidos. Quais seriam os critérios para, efetivamente, distinguir
um tipo de revista de outro? Mas para pensarmos um pouco sobre
tais elementos, é preciso, antes, perguntar: afinal, o que é uma
“revista”?
Quando buscamos a palavra em seu estado de dicionário, ve-
mos que o verbete aparece duas vezes. Num deles, encontramos
as acepções derivadas de “re + vista”, ou seja, o ato de examinar,
de ver outra vez, de ver detidamente, de inspecionar (que inclui o
uso militar do termo, “passar tropas em revista”), definição que se
aplica, em sentido amplo, ao exercício da crítica, matéria das re-
vistas; no segundo verbete, e o que em princípio nos interessa mais
diretamente, lemos que “revista” é a
publicação periódica, destinada a grande público ou a
público específico, que reúne, em geral, matérias
jornalísticas, esportivas, econômicas, informações
culturais, conselhos de beleza, moda, decoração etc.
[Algumas revistas destinam-se a um público especializado,
assumindo, portanto, um determinado formato:
jornalístico, científico, literário, esportivo etc.] ETIM trad.
do ing. review ‘publicação periódica dedicada
principalmente a críticas e ensaios’.9

23 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


10
Martins, Ana Luíza. Revistas em Neste verbete, o dicionário registra a abrangência da palavra e
revista – Imprensa e práticas a grande diversidade de tipos de publicação periódica que o termo
culturais em tempos da República –
São Paulo (1890-1922). São Paulo:
pode designar, incluindo dos mais especializados aos mais genéri-
EDUSP : FAPESP : Imprensa Oficial cos. Ou seja, as dificuldades para definir com precisão o tipo de
do Estado, 2001, p. 45. Nas várias periódico que se designa com o termo “revista” não se resolvem
outras menções que farei deste através dos dicionários. E sequer o manuseio das distintas publica-
estudo, fonte principal das informa- ções que levam o nome “revista” é suficiente para identificá-las
ções históricas que utilizei, citarei
apenas as páginas, entre parênteses,
entre si, nem para distingui-las, seja de um jornal, seja de um livro.
no corpo do texto. Estudando as revistas de São Paulo no início do século XX, a
11
historiadora Ana Luiza Martins defronta-se com essas mesmas difi-
Ana Luíza Martins lembra que o
termo hebdomadário – ou seja, a
culdades e abre as tentativas de definição citando também um di-
publicação com periodicidade cionário:
semanal – foi utilizado pela primeira
vez por Voltaire, em 1758; embora a O dicionário Le Robert informa que, derivada da palavra
marca principal deste tipo de inglesa review, data de 1705 o primeiro uso do termo
periódico seja o preciso intervalo de revista, hoje mais divulgado no sentido de publicação,
7 dias que separa uma edição de definindo-o como: “publicação periódica mais ou menos
outra, isto é, seu período, a palavra especializada, geralmente mensal, que contém ensaios,
“hebdomadário” designaria também
contos, artigos científicos etc., apresentando como
uma publicação “de cunho
informativo técnico e político” (p. sinônimos seus correlatos magazines, hebdomadários,
43). O termo anais também se anais e boletins”.10
define, desde sua origem latina, a
partir do tempo, significando o Tomados como sinônimos, os vários correlatos – magazines,
registro ou a narração dos aconteci- hebdomadários, anais e boletins – ampliam a imprecisão e a varie-
mentos de cada ano; relativamente dade do termo.11 Destes, é o primeiro que parece apontar, ao me-
às publicações, o termo é usado na nos parcialmente, para a distinção entre os dois grandes tipos de
acepção de “publicação regular ou
periódico de caráter científico,
revista, ambos com muitas variantes, que se vão delineando e se
literário ou artístico”, segundo o opondo ao longo da própria história deste tipo de publicação: as
Houaiss; já o termo boletim está revistas de variedades, para grandes públicos, e as revistas
associado, inicialmente, ao especializadas, para pequenos e seletos públicos.
diminutivo, isto é, aos informes
breves, mas, no campo das Esta grande divisão dicotômica (redutora, é certo, porém útil
publicações e segundo o mesmo nesta etapa da discussão) entre os periódicos de leitura amena, de
Houaiss, trata-se de “publicação caráter lúdico, e aqueles altamente especializados, dedicados às
periódica destinada à divulgação de últimas descobertas científicas, está na história das primeiras pu-
atos oficiais e governamentais, ou de
blicações periódicas. Ana Luíza Martins registra, por exemplo, que
entidades de classe, instituições
privadas etc.” (p. 481), o que mostra o francês Journal des Savants (1665-1795) é considerado o pionei-
como esses termos podem ser muitas ro dentre o periodismo literário, enquanto na Alemanha o
vezes intercambiados e utilizados, periodismo se inaugura com o que podemos chamar de precursor
de fato, como sinônimos para das revistas científicas, a Acta Studiorum (1682-1731), que,
“revista”.
publicada em latim, veiculava exclusivamente assuntos científicos
12
Ocioso lembrar que o inglês, o – matemática, botânica e física – e era dirigida a um determinado e
novo latim, vem se tornando a restrito público leitor. De um certo modo, já nos primeiros periódi-
língua “oficial” das publicações cos de que se tem notícia, a literatura (e a incipiente crítica), parte
científicas contemporâneas. da vida social letrada, é veiculada em vernáculo para os “muitos”
que sabem ler, enquanto as ciências “duras”, que dizem respeito à
pequena comunidade que domina seu código, utilizam veículos
auto-discriminados, inclusive pelo uso da língua.12 A partir de
Chartier e Martin, Ana Luíza Martins registra que, no século XIX,
Não obstante o sucesso do gênero, as revistas conheceram al-
guma discriminação por parte de especialistas, que alegavam pola-
rização de seus conteúdos. Por um lado, recriminavam o caráter
rigorosamente científico de algumas, dirigidas a leitores
especializados; por outro, o conteúdo absolutamente frívolo das
demais, como os magazins semanais de Londres, que selecionavam
de pronto o receptor, longe de interessar o leitor mais sério. (p. 40).
Frívolos ou não, é importante lembrar, com Habermas, que a
primeira forma de articulação institucional da crítica, e que tem
parte considerável na consolidação do conceito moderno de lite-
ratura, se dá nos periódicos do século XVIII: “Las gacetas de crítica
artística y cultural como instrumentos de la crítica de arte

travessia 40 / outra travessia 1 24


institucionalizada son creaciones típicas del siglo XVIII.”13 É o de- 13
Habermas, citado por Beatriz Sarlo
senvolvimento da imprensa que irá consolidar, no século seguinte, e Carlos Altamirano, op. cit. p. 93.
a figura do crítico como um profissional e a atividade crítica como 14
Agradeço esta informação a Paulo
categoria cultural moderna, já desvinculada da unidade das “belas Emílio Lovato.
letras”.
15
O Dicionário Houaiss registra, no
Se a crítica literária e das artes se institui primeiro através do verbete “magazine”, as seguintes
periodismo para depois se tornar um saber universitário, o saber acepções: “1.estabelecimento
científico estava ligado às agremiações e às academias científicas, comercial que expõe e vende grande
que sustentavam (e freqüentemente ainda sustentam) as revistas variedade de mercadorias organiza-
especializadas, meio de comunicação entre seus membros, entre das de acordo com o gênero delas;
2. B. publicação periódica, em
pares. É interessante observar que, até hoje, uma revista de grande formato de revista, ger. ilustrada, que
prestígio, a britânica Nature, preserva ainda alguns traços dos anti- trata de assuntos diversos; [...]
gos protocolos de comunicação, de anúncio das recentes desco- GRAM.VOC. considerado gal. pelos
bertas científicas dentro daqueles círculos: a carta aos confrades, puristas, que sugeriram em seu lugar:
ou aos pares da Royal Society, hoje as “Letters to Nature”. Por isso loja, revista . ETIM [...] de mesma
origem [árabe mahazin], através do
mesmo, até alguns anos atrás, uma comunicação dessa ordem, re- inglês magazine (1731) acp.
latando avanços e resultados de pesquisas ao grupo que poderia ‘depósito de informações’, ou seja,
não apenas entendê-las, mas especialmente avaliá-las e legitimá- ‘publicação periódica que contém
las, era introduzido pelo “Dear Sir”14, marca, ao mesmo tempo, da informações variadas sobre um
subjetividade própria à correspondência e da tradição dos infor- assunto ou que veicula informações
sobre assuntos variados’.” (p. 1810).
mes científicos tão plenos de objetividade.
No capítulo dedicado às revistas científicas e institucionais
paulistas, Ana Luíza Martins registra a importância dessas revistas
como elemento “aglutinador e decisivo para a subseqüente cria-
ção de entidades” (p. 327), isto é, associações científicas e institu-
tos de pesquisa, que freqüentemente dependiam de anúncios de
laboratórios farmacêuticos para manterem seus periódicos. Exem-
plo interessante, citado pela pesquisadora, é o caso da Revista da
Sociedade Científica de São Paulo, criada em 1905, e que funcio-
nava como elemento legitimador da própria Sociedade, um dos
raros espaços para conferências científicas na provinciana São Paulo
dos inícios do século XX. Destinada à publicação dos trabalhos
inéditos de seus sócios, o primeiro número continha 60 páginas
redigidas em francês (passando depois a contar com 16 páginas
em folheto bilíngüe): “trazia características muito próprias, sem ilus-
tração, com artigos transcritos de publicações estrangeiras, ou de-
senvolvendo pequenas teses científicas” (pp. 336-337). É digna de
nota, dentre as conferências proferidas na Sociedade, a “miscelâ-
nea de títulos de que escapavam ao tratamento científico, mas que
se valiam daquela associação [a Sociedade Científica de São Pau-
lo] para legitimar o rigor e a seriedade das pesquisas, a despeito de
inscritas na chave da área de humanas” (p. 337). Ou seja, tal como
preconizava o Positivismo, era preciso eleger a “ciência” como o
único saber válido, em detrimento das “humanidades”, considera-
das de cunho bacharelesco. E o mais curioso é que as “humanida-
des”, para se legitimarem, buscassem (como ainda buscam) se con-
fundir com as “ciências”, para não serem confundidas (como o são)
com as “amenidades”, cujo lugar estaria nos populares magazines.
A palavra “magazine” serviria para designar, segundo nossa his-
toriadora, “a revista ilustrada por excelência, representativa de uma
demanda de caráter ligeiro e de teor fortemente publicitário”15 (p.
43), definição que evoca a origem etimológica da palavra: deriva-
da do árabe mahazin, nosso “galicismo” se aplica aos bazares, aos
armazéns, aos grandes estabelecimentos comerciais que expõem e
vendem de tudo um pouco. Fiel a sua origem, o magazine/revista
também é um depósito de informações diversas, lugar de veiculação
de tudo um pouco, dirigido a um público amplo e, evidentemente,
regido pela lógica comercial, isto é, a do mercado. Como um sinô-
nimo para magazine, a expressão “revista ilustrada”, este gênero

25 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


16
Uma hipótese, a ser desenvolvida periódico tão difundido no século XIX, ainda hoje serve para de-
em outro lugar e hora, é a de que signar estas revistas de grande circulação, de variedades, geralmente
Bravo pode ser lida como sucedânea
“fin-de-siècle” daquela outra revista
de caráter ameno, e tributárias da grande evolução tecnológica das
de cultura mundana, Kosmos, tão artes gráficas e das possibilidades de impressão, que também mar-
bem estudada por Antonio Dimas caram, definitivamente, além do tipo de texto ali veiculado, as ino-
em Tempos eufóricos: análise da vações estéticas na própria linguagem literária. A título de exem-
Revista Kosmos: 1904-1909. São plo, podemos pensar em diversas revistas ilustradas ou magazines
Paulo: Ática, 1983.
contemporâneos, como a hebdomadária Veja, as mensais Cult e
17
Cf. Ana Luíza Martins, pp. 54-55. Bravo16, e muitas outras de distintos níveis e temáticas.
18
Dentre as revistas ilustradas do século XIX que tão fortemente
Estudando os suplementos
literários dos anos 50 (século XX), usavam e faziam avançar as técnicas de ilustração gráfica, vale a
Alzira Alves de Abreu registra que “A pena lembrar a Revista Moderna, Magazine Quinzenal Illustrado,
origem de alguns suplementos destinada aos públicos português e brasileiro e, como soía aconte-
literários se encontra nas páginas ou cer, impressa em Paris. Nela foi publicado o romance A ilustre casa
suplementos femininos, onde se
de Ramires, de Eça de Queirós, devidamente fatiado em folhetins,
misturavam receitas culinárias,
moda, assuntos infantis e poesia, e para um mesmo número, por exemplo o número 9, anunciava-se
como é o caso do Jornal do Brasil, tanto o “retrato artístico do grande escritor brasileiro Machado de
do Diário de Notícias e do Diário Assis” como o suplemento de modas, com 4 páginas de gravuras
Carioca, entre outros. Os suplemen- reproduzindo os últimos modelos parisienses.17 Este híbrido conví-
tos estavam voltados para a vida
vio, num mesmo periódico, entre a literatura de grandes autores e
familiar; a mulher era, ainda nesta
década, a grande consumidora da a moda destinada a atrair o público feminino perdurará ao longo
produção literária, de poesias, do século XX, e produzirá, também, acaloradas discussões sobre o
crônicas, romances. Muitos lugar da literatura, entre a “torre de marfim” e as páginas dos jor-
escritores tinham basicamente no nais e das revistas ilustradas.18 E não podemos esquecer que, ainda
público feminino os seus leitores,
e especialmente no século XIX, o adjetivo “ilustrada” alude não
como Érico Veríssimo”. “Os
suplementos literários: os intelectu- apenas às imagens gráficas, signo de modernização e de “progres-
ais e a imprensa”, em A imprensa so” tecnológico, mas também à função moderna de “ilustrar”o pú-
em transição: o jornalismo brasileiro blico leitor, à missão civilizadora. É o mesmo Eça de Queirós quem,
nos anos 50. Alzira Alves de Abreu ao apresentar a Revista Moderna, em 1897, enfatiza:
(org.). Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1996, p. 21. Mas o melhor serviço desta Revista será quando nos guie
19
Eça de Queirós, A Revista (artigo
através da obra incessante da civilização – ou antes vigie
de apresentação da “Revista à beira da imensa torrente da civilização, e rapidamente
Moderna”), em Notas Contemporâ- detenha e colha as obras melhores, antes que todas
neas. Obras de Eça de Queiroz, vol tumultuariamente passem e mergulhem no escuro mar
II. Porto: Lello & Irmão, 1958, p. que as devora. Pensemos que a França escreve cada ano
1568. dez mil livros! e a Inglaterra catorze mil! e a Alemanha
20
dezasseis mil! E quantos quadros se pintam! E quantas
Apud Altamirano e Sarlo, op. cit.,
p. 94. estátuas se modelam! E quantas conclusões da ciência! E
quantas invenções da fantasia! Toda essa produção rola
com brilho vacilante: e como poderiam, aqueles que não
vivem parados a observar a estranha corrente, saber do
bom livro, ou da fina obra de arte, ou da descoberta do
saber, ou da gentil elegância, se a Revista, com rápida
segurança, não escolhesse e apanhasse, dentre a vaga
fugitiva, a obra que merece ficar, enquanto outras se
embrulham e somem na névoa que tudo apaga? [...] Nem
me retardo mesmo em a louvar pela graça e luxo com
que ela se veste e se adorna, para passear, conduzindo o
seu público, através da civilização...19

Fazendo o elogio da imagem e da cultura transmitida em resu-


mos, Eça destaca o papel de “guia” que as revistas culturais exerce-
riam através das escolhas do “melhor”, para com isso ilustrar os
espíritos e os corpos elegantes – função pedagógica, crítica e legis-
ladora, essencialmente moderna, que presidirá durante muito tem-
po o funcionamento do campo das publicações periódicas “cultu-
rais”, formadoras de “opinião”. A Revista se transforma, assim, no
próprio “juiz artístico”, o crítico profissional que, para Habermas,
“asume una tarea peculiarmente dialéctica: se considera a la vez
como un mandatario del público y como su pedagogo.”20 Sobre a

travessia 40 / outra travessia 1 26


atividade deste crítico (um especialista diante do público leigo, 21
Embora duvide da brasilidade
cuja autoridade emana de sua “opinião cultivada”, e um mandatá- deste periódico, Nélson Werneck
rio deste mesmo público diante dos artistas) que atua nas publica- Sodré não hesita em atribuir-lhe a
ções periódicas – jornais e revistas ilustradas –, Sarlo e Altamirano designação “jornal”. Cf. História da
imprensa no Brasil. 2ª. ed. Rio de
lembram que, embora profissionalizada, esta atividade crítica ain- Janeiro: Graal, 1977, pp. 24 e ss. Já
da não constitui uma “disciplina”. Nem veículo próprio. A crítica Paulo Duarte enfatiza a indefinição:
como um saber institucionalizado e gozando de outra ordem de “Hipólito José da Costa Pereira
prestígio, somente ocorrerá com o que denominam “ciclo da críti- Furtado de Mendonça [...] fundou
ca universitária”, que disporá de sua própria rede de veiculação. em Londres, em junho de 1808,
aquele primeiro jornal, ou melhor,
É no mínimo curioso lembrar que a própria história do aquela primeira revista mensal [...]”.
periodismo no Brasil começa com uma publicação cujo subtítulo Apud Ana Luíza Martins (p. 47).
é uma tradução de “magazin”: Armazem Literario é o aposto ao 22
A revista no Brasil. São Paulo:
título do famoso marco inaugural da imprensa brasileira, Editora Abril, 2000, p. 18.
freqüentemente considerado como nosso primeiro “jornal”.21 Mas
nada aqui é ponto pacífico: 23
Assim como “hebdomadário”, a
palavra “jornal” está marcada pelo
Numa discussão sem fim, há quem atribua o pioneirismo tempo: apesar das divergências
[como revista] ao Correio Braziliense, que o exilado gaúcho quanto aos seus caminhos
Hipólito José da Costa editou em Londres de 1802 a 1822. etimológicos, o certo é que o
provençal “jorn” = “dia” está na base
Com o subtítulo “Armazem Literario”, cerca de cem páginas
desta tradução do latim tardio
e conteúdo mais opinativo e analítico do que noticioso ou “diurnale”. Em sentido estrito, o
informativo, o Correio Braziliense, marco inaugural da jornal é a publicação diária, com
imprensa brasileira, bem poderia, para os padrões da época, notícias dos fatos do dia relativos a
ser chamado de revista [...], mas é mais comumente tratado quaisquer assuntos. O Dicionário
como jornal.22 Houaiss registra, todavia, a extensão
do termo para “qualquer periódico”
Se, por um lado, a história de nossa imprensa tem conside- (p. 1687).
rado como “jornal” um periódico cujo subtítulo é uma tradução
do francês magazin, ou seja, “revista”, acrescido de um “literário”
em sentido amplo de tudo que se escreve, lettera, letra, por outro o
que essa mesma história considera uma revista cultural em sentido
forte, a Revista Brazileira, trazia ao ser lançada, em meados do
século XIX, o subtítulo “Jornal de Sciencias, Lettras e Artes” – o
que, evidentemente, não faz deste magazine uma “revista científi-
ca”, um journal of chemistry, por exemplo. Como se vê, nesta his-
tória, sequer a distinção entre “revista” e “jornal” é inequívoca:
seriam o papel jornal, o tamanho, a disposição das matérias em
colunas e o formato in folio suficientes para caracterizar um perió-
dico como jornal, distinguindo-o das revistas? 23 Ou, por outro ân-
gulo, seria o tipo de matéria veiculada, ou melhor, os gêneros tex-
tuais adotados – ensaios, crítica, resenhas, poesia e ficção, enfim,
matéria opinativa, analítica e criativa – suficientes para caracteri-
zar um periódico como revista? A base da distinção entre ambos os
gêneros periódicos deveria vir dos sentidos implicados nas própri-
as palavras que os designam, isto é, o jornal seria o periódico que
apresenta, relata, noticia o mais imediato e efêmero, o dia-a-dia,
enquanto a revista seria o periódico que passa em revista, exami-
na, analisa, opina sobre os temas de que trata? Ou, em outras pala-
vras: o jornal pressupõe um curto intervalo de tempo entre uma
edição e outra, um dia, enquanto a revista requer intervalos mais
longos, necessários à tarefa analítica?
Os casos empíricos mostram que a resposta é negativa. Neste
terreno movediço, Ana Luíza Martins menciona ainda outro crité-
rio, mesmo que não exclusivo nem suficiente, para distinguir as
revistas dos jornais: “o que os distingue com freqüência é a exis-
tência da capa na revista, acabamento que não ocorre no jornal;
mais do que isso, é a formulação de seu programa de revista, divul-
gado no artigo de fundo, que esclarece o propósito e as caracterís-
ticas da publicação” (p. 46). Pelo critério da capa, mesmo com
relação a periódicos mais recentes, mantêm-se as imprecisões: como

27 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


24
Ana Cristina Cesar, em Correspon- classificar, por exemplo, o auto-denominado “jornal” Versus, que
dência incompleta, Ana C.; org. entre 1975 e 1978 publicou, com periodicidade predominante-
Armando Freitas Filho e Heloísa
Buarque de Hollanda. Rio de
mente bimensal, poemas, contos, ensaios, resenhas, entrevistas e
Janeiro: Aeroplano, 1999, p. 154. reportagens, sempre envoltas em chamativas capas? Ou ainda Bei-
Grifos meus. jo, dissidência da editoria de cultura do também encapado
25
hebdomadário Opinião, a que Ana Cristina Cesar, uma de suas
Não entro aqui no mérito das
criadoras, se refere quase ao mesmo tempo como “a revista” e “o
matérias veiculadas, o que poderia
aproximar ainda mais este suple- jornal”: “Chegou o Montenegro e a revista se animou. Não adian-
mento de uma revista, e, até, de uma ta, é isso mesmo. Ficou resolvido que vamos parar com definições
revista “universitária”, especialmente teóricas e manifestos e grupos para discussão e apresentação da
na área da cultura, das humanida- linha do jornal”.24 Poderíamos incluir Versus e Beijo no gênero re-
des. Não por acaso, boa parte dos
vistas e, no limite, até os suplementos de jornais, como o Mais! , da
ensaios ali publicados tornaram-se
capítulos de prestigiados livros. Folha de S.Paulo, que em seu formato mais recente abandonou as
folhas soltas e adotou o tamanho tablóide.25 Por outro lado, um
26
Depoimento de Antonio Candido suplemento que marcou época, o Suplemento Literário D‘O Esta-
a Marilene Weinhardt. Cf. do de S.Paulo, sem capa e com o mesmo formato do jornal em que
Weinhardt, Marilene. O Suplemento
Literário D’O Estado de S.Paulo:
se encartava, foi planejado para funcionar como uma revista, se-
1956 -1967 . Brasília: Instituto gundo seu idealizador, Antonio Candido:
Nacional do Livro, 1987, vol.II, pp.
449-450. Um dos pressupostos é que não havia revistas literárias
naquele momento no Brasil. Regulares, boas. Então o
27
Trata-se da revista que, nos anos Suplemento deveria preencher um pouco a função de uma
40, marca a institucionalização de revista. [...] Já haviam existido muitas delas. Havia algumas
um tipo de crítica que já podemos
que duravam e passavam. No momento não havia
chamar “universitária”. A esse
respeito, e mais especialmente sobre nenhuma revista satisfatória, duradoura. Então eu achava
a atuação do “grupo Clima”, ver o que o suplemento deveria preencher em parte as funções
estudo de Heloisa Pontes, Destinos de uma revista literária. Mas não podia ser uma revista
mistos: os críticos do grupo Clima literária, isto é, não podia ter artigos maiores de cinco,
em São Paulo (1940-1968). São seis laudas, porque era um jornal, de artigos curtos. Mas
Paulo: Companhia das Letras, 1998. com um tom, uma estrutura que revelasse as preocupações
28 de uma revista literária. Por exemplo, as seções. Seções
Op. cit., p. 94.
de Literatura Estrangeira, seções de Teatro, de Cinema,
como uma revista faz.26

Esta caracterização do suplemento remete, de um lado, ao pa-


drão e ao conceito de revista literária adotado por Clima27, e, de
outro, à tradicional prática da crítica literária no jornal, ou melhor,
à dimensão dos textos que ocupavam os rodapés literários; de um
certo modo, Candido parece ter operado, com sucesso, a síntese
entre a crítica “jornalística” e a crítica “especializada”, tema de
tantas polêmicas na constituição da crítica brasileira em meados
do século XX. Opera-se aqui, em chave “elevada” e num mesmo
veículo, a coexistência, mencionada por Beatriz Sarlo e Carlos
Altamirano, dos dois “ciclos” da crítica, isto é, a crítica profissio-
nal, ligada aos grandes periódicos, aos meios de comunicação de
massa, e a crítica como um saber específico, ligada à universidade:

Los usos del término crítica anudaron, por decirlo así, en


una misma categoría, los dos ciclos y los diferentes tipos
de discursos que circulan a través de sus respectivas redes,
que no han podido coexistir sin afectarse mutuamente.
Lo que contribuye a explicar, entre otras cosas, las dos
“almas” que forcejean en la definición de la crítica como
actividad intelectual: la crítica como ejercicio del gusto y
la sensibilidad, y la crítica como producto de un saber
objetivo. Entre estos dos paradigmas, que tienen como
ideal dos modelos de discurso, el discurso “artístico” sobre
la literatura y el discurso “científico”, se producen
combinaciones y variantes.28

travessia 40 / outra travessia 1 28


A coexistência dos dois modos de crítica pressupõe, evidente- 29
Op. cit., p. 97.
mente, a autonomização do campo literário e intelectual, de um
30
lado, e a institucionalização universitária do saber literário, de ou- Trata-se do discurso de posse de
Ênio Silveira como membro titular
tro. Neste último caso, se inclui também a rede de publicações, do Pen Club do Brasil, pronunciado
como os livros e as revistas “acadêmicas” (universitárias ou não). E em 20 de agosto de 1991. cf.
o surgimento destas revistas faz com que a distinção entre revistas Moacyr Félix (org.). Ênio
e livros seja arbitrária quanto a distinção entre jornais e revistas. E Silveira:arquiteto de liberdades. Rio
aqui deixamos o campo dos magazines e dos jornais, sem que, de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, pp.
77-78. a Encontros foi publicada, de
necessariamente, entremos no território das “revistas científicas”. fato, até 1981 e não até 1980.
Freqüentemente muito semelhantes, salvo pela promessa de pe-
31
riodicidade, as revistas culturais “acadêmicas”, ou de cunho pre- Encontros com a Civilização
Brasileira, no 1. Rio de Janeiro, 1978,
dominantemente universitário, tendem a se parecer com os livros, pp. 7-8. Grifo meu.
talvez por fazerem parte do mesmo circuito. Mas, segundo Sarlo e
32
Altamirano, a diferença entre estes dois tipos de publicação não é A respeito destas distinções, Ana
meramente técnica: Luíza Martins cita a definição de
revista dada por Clara Rocha, bem
Toda revista incluye cierta clase de escritos (declaraciones, como a distinção que esta pesquisa-
dora traça entre revistas e livros.
manifiestos, etc.) en torno a cuyas ideas busca crear
Embora apenas técnicas e até
vínculos y solidariedades estables, definiendo en el interior superficiais, reproduzo-as aqui:
del campo intelectual un “nosotros” y un “ellos”[…]. Ético “uma ân:revista é uma publicação
o estético, teórico o político, el círculo que una revista que, como o nome sugere, passa em
traza para señalar el lugar que ocupa o aspira a ocupar revista diversos assuntos, o que [...]
marca también la toma de distancia […] respecto de otras permite um tipo de leitura fragmen-
posiciones incluidas en el territorio literario. […] Otro tada, não contínua, e por vezes
seletiva. [...] é um tipo de publicação
rasgo, que puede tomar a veces la forma de libro pero
que, depois de re-vista, se abandona,
parece inherente a la forma revista, es que ésta amarelece esquecida, ou se deita
habitualmente traduce una estrategia de grupo.29 fóra. Enquanto objeto material, a
revista distingue-se do livro por ser
É ilustrativo observar as duas fases da Revista Civilização Brasi- mais efêmera: só os bibliófilos, os
leira: a primeira, publicada entre 1965 e 1968, define-se como estudiosos e certos interessados
Revista a partir do título (e do editorial-manifesto do número 1), pelas letras e pelas artes guardam a
uma vez que o formato, os textos e o tamanho (alguns números revista. Essa efemeridade [...] tem a
ver com a sua solidez material.
têm mais 300 páginas) lhe dão toda aparência de livro; já a segun- Enquanto o livro dura [porque é mais
da, Encontros com a Civilização Brasileira, publicada entre 1978 e resistente, tem uma capa sólida a
1981, resta indefinida. É a voz retrospectiva de seu editor, Ênio protegê-lo], a revista é [pode ser]
Silveira, que, despida de falsas modéstias (e descontando-se um mais frágil em termos de duração
certo exagero no auto-elogio), define-a como revista: material. [...] é normal que o livro
tenha reedições, e já não o é tanto
Marco refulgente [...] foi a edição da Revista Civilização que apareça uma segunda edição de
uma revista. Ainda outra característi-
Brasileira, que teve curso de maio de 1965 a dezembro
ca: uma revista é em geral menos
de 1968, sendo interrompida com a promulgação do Ato volumosa do que um livro. E, last but
Institucional n o 5 (que equivaleu à cristalização da not least, uma revista é quase sempre
ditadura), e ressurgiu, teimosamente, sob o nome a manifestação de uma criação de
Encontros com a Civilização Brasileira, de julho de 1978 grupo: ao contrário do livro que,
a julho de 1980 (sic). Considerada nos meios culturais e salvo algumas excepções, costuma
universitários do Brasil e do mundo inteiro como um ser produzido por um só autor.[...]
[sic]”. Clara Rocha, Revistas
padrão de dignidade da intelligentsia brasileira diante das
Literárias do Século XX em Portugal,
forças do obscurantismo, essa publicação, em suas duas Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da
fases, constitui um dos maiores galardões de minha Moeda, 1985, pp. 33 e 25, apud Ana
carreira e marcará para todo o sempre a presença da Luíza Martins (pp. 45-46).
editora na história cultural do país.30

Embora este discurso do editor, feito dez anos após o encerra-


mento da publicação, estabeleça a relação metonímica ou de con-
tigüidade entre os dois periódicos, a Encontros com a Civilização
Brasileira fora definida pelo mesmo Ênio Silveira, no editorial do
nº 1, como “uma coleção de livros [...] [que] amplia a linha de
conduta intelectual que, de 1964 a 1968, cercou de tanto apreço a
Revista Civilização Brasileira.”31 Comparando as duas séries, é difí-
cil dizer o que faria da segunda uma coleção de livros e não uma
revista, e vice-versa.32 Neste sentido, a diferença entre uma “anto-
logia de ensaios” em livro e a Encontros estaria, efetivamente, na

29 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


33
Não cabe aqui desenvolver esta marca temporal, em sua periodicidade, sua fatal efemeridade. 33
análise, mas apenas registrar que a Tem razão Ana Luíza Martins quando constata que apenas o exa-
Revista foi lançada, em 1965, como
reação, ou instrumento de resistên-
me caso a caso, através do “artigo de fundo” ou do editorial de
cia ao golpe militar de 64, articulan- lançamento, pode auxiliar no entendimento do sentido que a pala-
do o discurso do grupo de intelectu- vra adquire ao ser estampada numa capa. Isso para não dizer que
ais que se organizava em torno do uma revista é o que seu editor chama de revista. Ou seja, a cada
editor Ênio Silveira e tinha o Partido revista, uma revista.
Comunista como referência comum.
Este lugar de resistência estava Em sua indecidibilidade, a palavra “revista” tem valores duplos,
fortemente marcado e propiciado contraditórios, e se aplica a contextos distintos. A dicotomia que
pelo contexto político do momento vínhamos registrando entre as “revistas ilustradas”, os magazines
em que a Revista foi lançada –
do século XIX, e as “revistas científicas”, não levava em conta o
momento irrepetível, obviamente, à
época do lançamento da Encontros, outro contexto, o do surgimento daquelas “revistas literárias”, as
que já não tem como manter a “pequenas revistas”34, nem o daquelas acadêmicas, com “cara de
mesma estratégia. Estes e outros livro”, como é o caso da Revista Civilização Brasileira. Beatriz Sarlo
aspectos podem demonstrar como e Carlos Altamirano lembram que
ambas, a Revista e a Encontros
fazem jus aos respectivos nomes. [...] hay que distinguir entre la publicación periódica
34 ‘culta’, dirigida al conjunto de las capas ilustradas de la
Lionel Trilling, escrevendo em
comemoração aos 10 anos da Parti- middle class y que tuvo su reinado sobre todo en el siglo
san Review, uma militante revista XIX, de lo que hemos denominado revista literaria o
literária, refere-se a ela e similares intelectual, que es típica de nuestro siglo [XX]. Esta última,
como “little magazine”. A tradução como señala [Lewis] Coser, ‘apareció em escena después
argentina opta, mais adequadamente que habia tenido lugar uma diferenciación considerable
por “revista literária”, enquanto a entre el público de escritores literários, artísticos y, en um
tradução brasileira fica com o literal
certo grado, políticos’[...]. Solo entonces la revista se
“pequena revista”. Ver: Trilling,
Lionel. La funcion de la revista convierte em uma de las principales formas de
literaria. La imaginación liberal. Trad. organización del território literário y vehículo de esas
Enrique Pezzoni. Buenos Aires: estratégias llamadas escuelas o tendencias. 35
Sudamericana, 1956; e, do mesmo
autor, A função da pequena revista. Pensar as revistas literárias como formas organizadoras do campo
Literatura e sociedade: ensaios sobre literário e artístico significa considerá-las ao mesmo tempo como o
a significação da arte e da idéia elemento que institui e dá voz a grupos de artistas e intelectuais,
literária. Trad. Rubem Rocha Filho.
que, elegendo afinidades, valem-se das revistas para constituir-se e
Rio de Janeiro: Lidador, 1965, pp.
113-123. O titulo original do livro, para defender e propagar novos valores literários, estéticos e, tam-
publicado em 1950, é The liberal bém, políticos. Este tipo de revista, “una de las redes de la crítica”,
imaginacion. O artigo sobre a funciona, portanto, como elemento formador e legitimador do pró-
Partisan Review já fora publicado em prio grupo que a faz, garantindo, a seus participantes, visibilidade
1946. Nele, de um modo geral,
e reconhecimento e, muito freqüentemente, antagonismos e con-
Trilling defende as “pequenas
revistas”, isto é, as revistas literárias, flitos, na proporção direta ao grau de polêmica e de novidade sus-
como a reserva de qualidade, ou da citado pela produção do grupo. Não é preciso lembrar que o reco-
boa literatura, contra o gosto médio, nhecimento se dá, inicialmente, no restrito público leitor que cons-
contra a satisfação das massas ou a titui o campo de legitimação que lhe é próprio, ou seja, o grupo de
manipulação propagandística em
letrados que a pode ler e louvar. Glórias maiores são geralmente
prol de qualquer ideologia. Opõe a
literatura ao populismo e vê nessas póstumas (pelo menos à própria revista), e apenas o trabalho do
revistas literárias o necessário tempo (e da crítica) irá institucionalizar os novos princípios, auto-
reservatório de qualidade e de res e valores no cânone literário. Não por acaso, Raymond Williams
resistência contra o conformismo. destaca a manifestação pública de um grupo através de um perió-
35
Carlos Altamirano e Beatriz Sarlo, dico como uma das formas de organização das formações cultu-
Literatura / Sociedad. Buenos Aires : rais independentes, distintas das instituições, que, “sob os nomes
Hachette, 1983, p. 96. de ‘movimento’, ‘escola’, ‘círculo’, e assim por diante, ou sob o
36
rótulo assumido ou recebido de um determinado ‘ismo’, são tão
Raymond Williams, Cultura,Trad.
importantes [...] particularmente na história cultural moderna [...]”.36
Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 62. Elemento estruturante das “formações”, este tipo de revista pode
37
ser encontrado no Brasil, ainda em finais do século XIX, nas revis-
Andrade Muricy elenca 29 revistas
simbolistas, a mais antiga de 1890.
tas simbolistas que, coerentemente com a defesa da “torre de mar-
Cf. MURICY, José Candido de fim”, excluem-se dos círculos mais amplos e mundanos freqüenta-
Andrade. Panorama do movimento dos pelo parnasianismo.37 Mas serão as revistas modernistas, já
simbolista brasileiro. 2ª. ed. Brasília: bastante estudadas, que irão consolidar entre nós este tipo de “pe-
Conselho Federal de Cultura e quena revista”, que, mesmo sem se caracterizar como “revista ci-
Instituto Nacional do Livro, 1973,
pp. 1208-1212.
entífica”, não deixa de ser especializada, dedicada a públicos “se-

travessia 40 / outra travessia 1 30


38
letos” de leitores, um público feito de “pares”, que reuniria as con- Este periódico se inclui, explicita-
dições necessárias para apreender a nova “qualidade literária”, para mente, no gênero “jornal”; na página
5 do primeiro de seus 7 números,
fruir os novos princípios estéticos e críticos que passam a ser divul- publicado em 20 de janeiro de
gados por tais periódicos, geralmente de baixa longevidade (sofri- 1926, um quadrinho em destaque no
am do “mal dos sete números”, como dizia ironicamente Olavo alto e à direita anunciava: “Leiam
Bilac). Klaxon, Terra Roxa e outras terras38, A Revista, Estética, Re- terra roxa o melhor jornal literário
vista da Antropofagia, e, mais tarde, Festa, formaram e informaram do Brasil. Quinzenalmente crónicas
de arte, musica, teatro, poesia e
o modernismo brasileiro e consolidaram um novo conceito de “re- filosofia. Inéditos dos melhores
vista literária”.39 escritores modernos. Todo brasileiro
É verdade que poderíamos lembrar, como contra-argumento his- culto deve assinar terra roxa”. Terra
roxa e outras terras [introdução de
tórico, que já no início do século XIX a divulgação do Romantismo
Cecília de Lara]. São Paulo: Martins :
se fazia através dos periódicos.40 No entanto, foi no caminho das Secretaria da Cultura, Ciência e
especializações e do processo de autonomização do campo literá- Tecnologia, 1977 (reprodução fac-
rio que as revistas literárias e culturais ganharam, paradoxalmente, similar). Os sublinhados são meus.
seu espaço e prestígio. Ou seja, à redução e à especificação do 39
É curioso constatar que, a despeito
público correspondeu um ganho de reconhecimento, um maior da sua importância histórica, estas
capital simbólico, mesmo que a posteriori. É preciso considerar, revistas não passariam, hoje, pelo
neste aspecto, as mudanças relativas ao lugar que a literatura ocu- crivo dos “qualis”, já que o tipo de
pava na sociabilidade, já que, como diz Antonio Candido, a litera- protocolo adotado na escolha de
tura era, por aqui, o fenômeno central da vida do espírito: colaborações se pautava pelo grau
de afinidade com o grupo, ou de
a literatura tem sido aqui, mais do que a filosofia e as pertencimento a ele, e não por um
sistema supostamente universal de
ciências humanas, o fenômeno central da vida do espírito.
“arbitragem por pares”. O conceito
[...] O poderoso ímã da literatura interferia com a de pares, nestas revistas, é outro.
tendência sociológica, dando origem àquele gênero misto Mas são inegáveis a sua importância
de ensaio, construído na confluência da história com a e o seu grau de “impacto na área”,
economia, a filosofia e a arte, que é uma forma bem fortes a ponto de criar o paradigma
brasileira de investigação e descoberta do Brasil. [...] esta estético e crítico do século XX e de
linha de ensaio, – em que se combinam [...] a imaginação propiciar um novo cânone literário.
e a observação, a ciência e a arte, – constitui o traço mais 40
Ana Luíza Martins aborda o caso
característico e original de nosso pensamento. [...] da Niterói, Revista Brasiliense,
funciona como elemento de ligação entre a pesquisa Ciências, Letras e Artes, com apenas
puramente científica e a criação literária.[...] Ora, nos dois números, publicados em Paris
nossos dias houve uma transformação essencial desse em 1836: “De proposta abrangente,
estado de coisas. Deixando de constituir atividade pretendendo-se revista de alta
sincrética, a literatura volta-se sobre si mesma [...]; ao cultura, vinha com o mesmo
objetivo de Ilustrar o País. [...]
fazê-lo, deixa de ser uma viga mestra, para alinhar-se em balizou o surgimento do Romantis-
pé de igualdade com as outras atividades do espírito.41 mo nas letras brasileiras, gênero que
presidiu o seqüente conjunto de
Falando em meados do século XX, Candido descreve, de um revistas literárias, fortemente
certo modo, o momento em que a mentalidade universitária e aca- influenciadas pelos cânones
dêmica se implanta no Brasil, como resultado da criação das uni- românticos”. Op. cit. p. 49. Quanto
versidades e suas faculdades de filosofia, ciências e letras, ocorrida às outras revistas românticas, a
autora remete a Werneck Sodré.
nos anos 30. Momento também em que a crítica se institucionaliza
como área de conhecimento, primeiramente sob a forma dos estu- 41
Cf. Antonio Candido, Literatura e
dos historiográficos das literaturas nacionais e depois sob o aporte sociedade: estudos de teoria e
da teoria da literatura, criada entre nós como disciplina universitá- história literária. 5ª. ed. São Paulo:
ria apenas na década de 60. Até então, o lugar onde se veiculava a Editora Nacional, 1976, especial-
mente pp. 130 e ss. O ensaio em
produção dos críticos, isto é, o lugar da crítica, eram as revistas destaque, “Literatura e cultura de
literárias e, especialmente, o rodapé dos jornais. O que justifica, 1900 a 1945 (Panorama para
mais uma vez, a referência ao projeto de criação do Suplemento estrangeiros)”, traz nota informando
Literário d’Estado de S.Paulo, lançado em outubro de 1956, conce- que foi escrito em 1950.
bido, como vimos, para preencher a “lacuna” de boas revistas
literárias, mas que cumpria, ele também, um projeto formador,
civilizador. No entanto, diferentemente das preocupações de Eça,
a formação agora deveria advir da nova “mentalidade universitá-
ria”. Alzira Alves de Abreu constata os vínculos do grupo do
“Estadão” com a Universidade de São Paulo:

Diferentemente do Rio de Janeiro, onde se encontravam


os melhores suplementos do país, São Paulo se

31 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


42
Abreu, op. cit., p. 53. caracterizava por ter o melhor centro universitário do país.
43
O Estadão, em sua nova orientação, deveria refletir essa
Substituindo-se o “literário” por marca. A seção cultural de O Estado de S. Paulo,
“cultural”, pode-se dizer que este é,
até hoje, o papel exercido pelos
reformulada como suplemento, foi concebida, segundo
suplementos, como é o caso da palavras de Antonio Candido, “como uma espécie de
Folha de S.Paulo e seu Mais!. cruza entre o suplemento e a revista literária, isto porque
São Paulo não tinha uma boa revista literária”.42
44
Op. cit., p. 450.
Sob tal orientação, o Suplemento exerceu não apenas o papel
45
Altamirano e Sarlo, op. cit., p. 95. de uma “revista literária”43, no sentido de exteriorizar a produção
É claro que esta última formulação
tem de ser relativizada no caso
de um grupo de intelectuais, de constituir uma linhagem crítica,
brasileiro, tendo em vista que, no mas também o de uma revista de base universitária, que procurou
Brasil, as universidades foram cumprir um papel pedagógico e “civilizador”. Tal função educativa
criadas muito tardiamente. também fazia parte da própria concepção do suplemento, como
46
relata Antonio Candido no mesmo depoimento a Marilene
É bem verdade que o triunfo do
positivismo enquanto valor Weinhardt:
ideológico não retirava o atraso e o
desprestígio da ciência que se fazia Outra idéia que eu lancei é que nós não deveríamos
no Brasil. Como relata Ana Luíza procurar fazer suplementos literários como havia alguns
Martins, no Brasil do início do no Rio de Janeiro, que eram muito combativos, muito
século XX, “as publicações brilhantes, muito movimentados, cheios de polêmicas,
científicas careciam de respaldo e os porque eu dizia: até o momento o que São Paulo
estudiosos da área preferiram inserir contribuiu realmente para a cultura brasileira foi a
seus trabalhos em publicações
Universidade. [...] esse suplemento, sendo embora
especializadas estrangeiras. Em
monografia de língua francesa Emílio literário, vai refletir um pouco o tom da intelligentsia
Ribas, Pereira Barreto, Silva paulista, que é um tom de estudo, de ensaio, de reflexão.44
Rodrigues e Adriano de Barros
publicaram em primeira mão as suas Estudo, ensaio, reflexão: produtos das lides universitárias nas
experiências sobre a transmissão da humanidades, isto é, da crítica institucionalizada como saber, ou
malária pelo mosquito.” (p. 327) Um paradigmas que articulam os saberes das várias áreas e disciplinas
século depois, podemos constatar dos campos afins, esses seriam os elementos necessários à constru-
que, se o centro do poder mundial
passou da França para os Estados ção de uma cultura que, tendo ainda o literário como eixo
Unidos e, conseqüentemente, a “civilizador”, ampliaria depois seu foco e seu campo para o que se
língua universal da ciência deixou chamamos hoje “crítica da cultura”. Por outro lado, a “oposição
de ser o francês para ser o inglês, o Rio / São Paulo” mencionada por Candido pode ser pensada, aqui,
reconhecimento interno na como a distinção entre as revistas literárias, mais experimentais, de
província, ou a falta dele, não
mudou muito. Cada vez mais, os vanguarda, e aquelas revistas culturais que podemos chamar “aca-
critérios de avaliação dentro do dêmicas”, ou seja, que veiculam o produto do estudo, da pesquisa,
campo científico dependem quase da reflexão, daquilo que caracteriza, de algum modo, a produção
que exclusivamente dos artigos universitária (independentemente de se fazer ela na universidade
publicados em revistas estrangeiras ou fora dela), e que publicam, predominantemente, ensaios. Ou,
e, claro, devidamente escritos em
inglês, ou, até, de revistas brasileiras na formulação de Sarlo e Altamirano, “revistas independientes de
publicadas em inglês e sempre las instancias académicas, pero en cuya producción y en cuyo con-
constando de determinados índex sumo el número de los que provienen de la universidad es
que lhes dêem as bênçãos sobresaliente.”45 Tais características podem ser encontradas tanto
canônicas. Também continuam em alguns suplementos dos grandes jornais quanto, especialmen-
vigentes para a área das humanida-
des os protocolos de legitimação das te, em revistas culturais, como, nos anos 60, a já citada Revista
ciências. Civilização Brasileira e a Tempo Brasileiro, ou, nos anos 70, Argu-
mento, Escrita-Ensaio, Almanaque, José, Ensaios de Opinião, ou ain-
da, nos anos 80, a Novos Estudos – CEBRAP .
Com o que constatamos até aqui e observando as publicações
periódicas brasileiras nas últimas décadas do século XX,
notadamente no campo da literatura e da cultura, vemos que o
quadro de periódicos é bastante mais complexo que aquele do
século XIX: não se limita a uma divisão dicotômica entre, de um
lado, magazines e jornais para públicos diversificados e os mais
amplos possíveis (atendendo à lógica de mercado), e, de outro, as
revistas científicas (que tratam das ciências) para um público restri-
to e especializado, e cujo prestígio era garantindo pelo positivismo
triunfante.46 É preciso, portanto, reformular algumas das distinções
e categorizações anteriormente feitas.

travessia 40 / outra travessia 1 32


47
Em primeiro lugar, registre-se que neste período assistimos a Restrinjo-me aqui não apenas aos
uma dupla consolidação: por um lado, a autonomia do literário e periódicos claramente literários e/ou
que incluam a literatura como uma
das artes propiciou o surgimento das pequenas e vanguardistas re- de suas áreas de atuação mas
vistas literárias na primeira metade do século XX; por outro, a con- também às formas tradicionais de
solidação das universidades no Brasil e, especialmente, da literatu- edição, isto é, às publicações em
ra e da crítica como saberes universitários propiciou tanto o papel; quanto às várias revistas
surgimento das revistas “acadêmicas” de literatura e cultura, de eletrônicas, suspeito que tendam a
repetir os tipos existentes em papel;
que foi bom exemplo a revista Clima, como a criação das revistas mas apenas um estudo mais acurado
“universitárias” institucionais. pode confirmar, ou não, esta
Talvez se possa dizer que o lugar da crítica não mudou de modo hipótese.
fundamental com o fim da “instituição do rodapé” e o advento da
especialização universitária – na verdade, ao contrário das reitera-
das afirmações nostálgicas que lamentam a perda deste “lugar da
literatura”, pode-se dizer que houve uma ampliação, com maior
grau de complexidade, da rede de publicações periódicas que, jun-
tamente com outras formas e gêneros (teses, dissertações,
monografias, etc.), sustentam e permitem o desenvolvimento da
área. Assim, resumindo, vemos que o lugar da crítica e da literatura
se espraia por vários tipos de periódicos, que procuro exemplificar
a partir daqueles atualmente em circulação47:
a) “magazines” literários e culturais frutos de empreendimentos
comerciais, dirigidos a um público mais amplo e não especializa-
do, porém “culto” (ou “chic”), como Cult, Bravo, Ventura ou a
pernambucana Continente; são ricamente ilustrados e, embora pu-
bliquem alguns ensaios críticos, dão espaços maiores às reporta-
gens culturais e às entrevistas; podem ser pensados como a versão
contemporânea e mais “especializada” das revistas ilustradas do
século XIX; podemos incluir também neste grupo algumas revistas
de divulgação publicadas por institutos culturais, como a Veredas;
b) revistas literárias e culturais independentes, de circulação
mais restrita e dirigida a um público mais específico, aos “pares”
que se interessam pela literatura; apresentam como ilustração tra-
balhos gráficos artísticos ou reproduções de obras de arte e veicu-
lam criação e crítica, freqüentemente com ênfase na primeira; dentre
estas, podemos lembrar das “independentes” (talvez as mais próxi-
mas daquelas “revistas literárias” que constituíram formações críti-
cas), como Inimigo Rumor, Sibila, Babel, Coyote, Sebastião, Iararana;
c) revistas literárias institucionais, dirigida a públicos “cultos”,
de circulação mais ampla que as “independentes”, finamente ilus-
tradas e impressas, como Poesia Sempre ou Cadernos de Literatura
Brasileira;
d) revistas culturais “acadêmicas”, dirigidas também a um pú-
blico mais específico, isto é, mais intelectualizado, “universitário”;
em geral não são ilustradas e veiculam predominantemente ensai-
os. Podem estar vinculadas a instituições de pesquisa e, mesmo, a
universidades, como é o caso da Novos Estudos-CEBRAP, ou da
Revista USP, ou a grupos e/ou editoras, como Tempo Brasileiro,
Revista de Cultura Vozes, Praga, Crítica Marxista, Rodapé, ou ainda
a instituições culturais, como algumas revistas dos Gabinetes Por-
tugueses de Leitura;
e) suplementos culturais da grande imprensa, que apresentam
características muito semelhantes às das revistas acadêmicas, sal-
vo por uma presença maior de ilustrações e de resenhas, como é o
caso do Mais! e do Jornal de Resenhas (ambos da Folha de S.Paulo),
ou do Idéias, do Jornal do Brasil. Neste grupo cabe ainda o longevo
Suplemento Literário do Minas Gerais;
f) revistas universitárias (“científicas”), que pouco diferem das
revistas acadêmicas, salvo pela vinculação: estão ligadas a distin-

33 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


48
Os exemplos são inúmeros: tas instâncias universitárias, especialmente programas de pós-gra-
Roberto Schwarz, Flora Süssekind, duação (Travessia, Teresa, Alea, Brasil/Brazil, Contexto, Cerrado,
Silviano Santiago, Walnice Nogueira
Gragoatá, Grifos, Literatura e Sociedade, PaLavra, Remate de Ma-
Galvão, João Alexandre Barbosa,
Davi Arrigucci Jr., Leyla Perrone- les, etc.etc.), bem como às associações científicas (Revista da
Moisés, Raul Antelo, Haroldo de ANPOLL, Revista Brasileira de Literatura Comparada).
Campos e muitos outros. Esta proposta de tipologia dos periódicos em que circulam a
49
Ana Luíza Martins nos lembra que literatura e a crítica, baseada em seus vínculos de sustentação e
“Rui Barbosa, em parecer sobre a que não pressupõe nenhuma hierarquia valorativa entre os diver-
classificação do gênero periódico, sos grupos, poderia sugerir, a princípio, grandes diferenças entre os
opôs-se à inclusão de revistas e tipos de textos neles publicados. Mas não é o que efetivamente
jornais na categoria de obras,
ocorre: quando olhamos os textos críticos, os ensaios, vemos que
propondo inseri-los em publicação”
(p. 43). as características são as mesmas em todos os tipos de publicação –
variam os suportes teóricos, variam os valores adotados, varia o
“gosto” estético e varia, certamente, o grupo de leitores. Mas não o
tipo de texto. E, muitas vezes, nem mesmo variam os autores.
Quantas vezes já não lemos um mesmo autor nas páginas de uma
revista acadêmica, de um suplemento, de uma revista universitá-
ria, de um magazine cultural e de uma revista literária, publicando
o mesmo tipo de ensaio, produto do mesmo estudo, das mesmas
pesquisas e reflexões? Quantas vezes reencontramos esta mesma
produção, supostamente esparsa, recolhida num livro de ensaios?
Quantas vezes já não lemos nas páginas do suplemento de um
grande jornal o mesmo paper “inédito” que o scholar de prestígio
apresentou num congresso científico? Certamente não poucas ve-
zes, podemos responder, e sem nenhum demérito a seus autores,
sejam eles escritores e jornalistas culturais especializados, sejam
eles conhecidos pesquisadores e professores universitários.48
Tais constatações evidenciam os equívocos cometidos quando
assumimos, para a avaliação qualitativa da produção discursiva
sobre a literatura, enquanto área de saber disciplinarmente consti-
tuída, critérios baseados em uma tipologia dos periódicos, uma
vez que não é exatamente o tipo de publicação que determina a
natureza mesma desta produção. E quando pensamos que um mes-
mo ensaio pode estar em publicações aparentemente muito distin-
tas, ficam evidentes as dificuldades de reduzirmos uma complexa
e diversificada gama de publicações periódicas a um modelo biná-
rio, dicotômico e hierarquizado como o encontrado no “currículo
Lattes”, de preenchimento obrigatório para qualquer pesquisador
brasileiro, seja ele um jovem bolsista de iniciação científica, ou um
renomado “pesquisador I-A do CNPq”.
Se a palavra “revista” é, como vimos, abrangente a ponto de
cobrir um amplo e diversificado elenco de publicações periódicas,
a escolha do termo “periódico”, utilizado no “Lattes” e adotado
também pela CAPES para designar um certo tipo “nobre” de revis-
ta, a “científica”, em oposição a um tipo “menor” denominado
“revistas (magazines) e jornais”, amplia as imprecisões e impropri-
edades, já que “periódico” é, por definição, muito mais abrangente
que “revista”.49 Afinal, esta palavra – periódico – é relativa a perío-
do, isto é, ao tempo que transcorre entre duas datas, e refere-se
àquilo que reaparece a intervalos regulares, àquilo que é cíclico.
Obviamente, ao ser aplicada a publicações, inclui todas aquelas
edições que tenham como característica o reaparecimento dentro
de uma regularidade no tempo, valendo tanto para um jornal quanto
para qualquer tipo de revista, das mais populares e comerciais às
mais restritivas, superespecializadas, científicas.
Talvez se possa pensar que este modelo adotado para o registro
geral da produção universitária, que também vem determinando
os procedimentos para sua avaliação, para a montagem do seu
qualis, faça jus ao nome: podemos ler no ato da denominação,

travessia 40 / outra travessia 1 34


50
além da homenagem a nosso grande físico César Lattes, e pour Vale a pena lembrar a relevância
cause, a vigência dos protocolos de comunicação e avaliação das (o alto “impacto”) de algumas
revistas na área das humanidades,
“ciências duras”, adotados mais uma vez como critério de valida- que mantinham seus próprios
ção das “humanidades” em geral e dos estudos literários em parti- critérios de “arbitragem”, veiculavam
cular. Curiosamente, em inícios do século XXI, voltamos às a produção do grupo que fazia a
dicotomias e preconceitos do século XIX. Curiosamente, nunca revista e seus afins, como foi o caso
fomos tão positivistas. das revistas estruturalistas francesas.
A despeito da importância que
Como sabemos, os critérios de validação das publicações peri- tiveram, talvez não pudessem ser,
ódicas vigentes nas áreas das ciências físicas e biológicas, assumi- hoje, classificadas como “periódi-
dos como modelo “universal”, baseiam-se em dois pontos mutua- cos”.
mente complementares: processo de seleção das matérias
publicáveis através de um corpo de avaliadores constituído por
“pares” detentores de notório saber na área, e o registro da publi-
cação em certos indexadores, especialmente aqueles que medem
as citações, isto é, o grau de impacto de artigos, autores, revistas.
Assim, os artigos a serem publicados são previamente submetidos
ao corpo de arbitragem, que, a seu arbítrio, arbitram. As revistas
funcionam, portanto, mais como instância de avaliação das maté-
rias do que como veículo da produção de um determinado grupo.
É preciso lembrar ainda que um “artigo científico” não vale em
si mesmo, em sua linguagem, mas pelo seu referente, por aquele
outro que lhe dá sentido – a função referencial que aí atua e lhe dá
credibilidade: deve relatar a descoberta, a experiência feita e os
resultados obtidos, de modo a permitir, inclusive, o teste de sua
reprodutibilidade. E por tudo isso um simples artigo de três páginas
pode ter vários autores, pois não é o trabalho da escritura que im-
porta, mas os resultados do outro trabalho que ali se relata. Nada
mais distante da tradição crítica e ensaística dos estudos literários
e seus periódicos, cujo prestígio decorre, primordialmente, do re-
conhecimento de seus colaboradores.50 Trata-se de uma especi-
ficidade do saber literário, que usa o ensaio enquanto forma, e que
não pode ser comparada com as especificidades de outras áreas de
conhecimento.
Parece claro que as dificuldades em classificarmos adequada-
mente nossos periódicos no qualis, ou até em preenchermos nos-
sos Lattes, decorre, de um lado, dessa verdadeira “cama de Procusto”
que precisa conter algo maior e mais complexo do que ela e, de
outro, da própria tradição dos periódicos no campo da literatura.
Neste modelo, as dificuldades de inserção de uma revista da área
de literatura como “revista” (magazine) ou como “periódico” (ci-
entífico) parecem ser da mesma ordem daquela oscilação de títu-
los que vimos em nossas Travessia / Teresa, isto é, da ordem da
historicidade do próprio periodismo, em que a divisão entre “ma-
gazines e jornais” de um lado e “revistas científicas” de outro, res-
quício do século XIX, já foi superada com folga na rede crítica dos
estudos literários. Será lastimável se não soubermos valorizar a ri-
queza de nossa diversidade, a despeito de nossas precariedades.
Para concluir, um último registro: a criação e a consolidação
de um sistema de pós-graduação no país, a partir dos anos 60, pôs
em cena um conjunto de novas revistas institucionais, vinculadas
aos programas de pós-graduação, com o objetivo claro de divul-
gar, na comunidade acadêmica, os trabalhos – a crítica, digamos –
desenvolvidos pelos integrantes desses cursos. Ou seja, revistas “ci-
entíficas”, sim, mais voltadas, no entanto, a constituir um canal
para, ao mesmo tempo, ampliar e para dar a conhecer a produção
de seus integrantes, do que para funcionar como instância de ava-
liação de toda a área. Servem de exemplo os lançamentos, apesar
do intervalo de 20 anos, de Travessia e de Teresa.

35 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


51
TRAVESSIA, n.1. Florianópolis, 2º 1980. No editorial do número de lançamento de Travessia, lemos:
semestre 1980, p. 3.
Partindo da necessidade de dinamizar o nosso curso e
52
TERESA, n. 1. São Paulo: Ed. 34, buscando alternativas paralelas ao sistema acadêmico,
2000, pp. 6-7.
lançamos TRAVESSIA. Essa revista, por ser nossa, estará
aberta especificamente à literatura brasileira, e todos
teremos a oportunidade de ter publicadas as produções
analíticas, críticas e teóricas feitas em função dos cursos
ou estudos individuais, de acordo com os interesses de
cada um. [...] Nosso primeiro número procurou atingir
esse objetivo. Contou para isso com a colaboração
espontânea de professores e alunos do curso de Pós-
graduação em Literatura Brasileira de nossa Universidade,
e esperamos que esse espírito continue sendo a constante
desta nossa TRAVESSIA.51

2000. No editorial de número de lançamento de Teresa, lemos:

Teresa não é um fato isolado. Este primeiro número da


revista do programa de pós-graduação da área de Literatura
Brasileira faz parte de um processo iniciado entre os
professores e que tem como objetivo incentivar a
participação de alunos e orientandos. [...] Um dos
principais objetivos da revista é constituir-se num espaço
de encontro, de debate, de exposição e de trocas
intelectuais.[...] Procurando refletir o conjunto dos
professores e alunos, com todas as suas diferenças, sem
escamotear a variedade de concepções, Theresa não é
uma voz unívoca. [...] está aberta à colaboração de
estudiosos e a vozes de fora, não só no terreno da crítica
[...] como no da criação. [...] Sujeita ainda a muitos
obstáculos, ela só ganhará efetiva existência quando for
assumida pelo conjunto dos professores e orientandos da
pós-graduação.52

Não deixa de ser saudável, por outro lado, que, hoje, muitas
revistas universitárias ligadas a programas de pós-graduação, em
face de suas necessidades como instância avaliada, estejam bus-
cando se adequar ao modelo de “periódico” como instância de
avaliação, buscando constituir grupos de consultores para efetiva-
mente analisar os artigos propostos para publicação, e abrir o espa-
ço para colaborações vindas de quaisquer lugares, em vez de man-
ter-se fechada no próprio grupo, com todas as escolhas determina-
das pelos editores da revista. Com certeza trará bons resultados,
desde que não desapareçam os outros tipos de publicação periódi-
ca, sob pena de empobrecimento cultural. De qualquer modo, co-
meça a mudar o perfil que animou o lançamento de Travessia e
ainda persiste em Teresa. Mudará também nossa Travessia. Oxalá
para melhor.

travessia 40 / outra travessia 1 36


NAS ASAS DO PAPEL, ENTRE DOBRAS:
LIVRO, LEQUE, REVISTA
(Depoimento sobre a Travessia em seu quadragésimo número)

Ana Luiza Andrade


Universidade Federal de Santa Catarina

1
1. Cigarro e revista Clarice Lispector, “Encarnação
Involuntária” in Felicidade Clandesti-
na, Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1971, p. 168.
Uma vez, (...), encontrei uma prostituta perfumadíssima
que fumava entrefechando os olhos e estes ao mesmo
tempo olhavam fixamente um homem que já estava
sendo hipnotizado. Passei, imediatamente, para melhor
compreender, a fumar de olhos entrefechados para o
único homem ao alcance de minha visão intencionada.
Mas o homem gordo que eu olhara estava mergulhado
no New York Times. E meu perfume era discreto demais.
Falhou tudo.1
Depoimento:
Cinco longos anos de lutas na direção da Travessia, os números
26-36, sua mudança e sua atualização periódica

Hoje, o tempo de duração de leitura dos periódicos é o tempo


de uma viagem de avião de meia hora a duas horas, ou até bem
mais que isso dependendo das circunstâncias, do tempo de via-
gem, e das exigências de atenção de uma revista. Quando fumar
era permitido no avião, a viagem podia durar um charuto, dois ou
até três cigarros, ou, em termos de periódicos, um New York Times,
uma Veja, uma Cult ou uma Casa e Jardim conforme a preferência.
Assim como há revistas que pedem um olhar distraído, há também
aquelas que exigem um olhar cúmplice. Os modos de ler resultam
de uma disponibilidade leitora que tem mudado bastante, confor-
me o lugar e o tempo. Pois o caráter utilitário do tempo faz com
que ou existam olhares para preencher o tempo, ou tempo para ser
preenchido por olhares. Mas é fato consumado que, hoje, as prefe-
rências de um mercado de consumo por uma leitura que seduz e
que distrai acabam ganhando longe da leitura que induz ao pensa-
mento.
No presente depoimento sobre o meu trabalho de cinco anos
na direção da revista de literatura da Pós-Graduação em Literatura
da Universidade de Santa Catarina, a Travessia, procuro
corresponder ao convite que me foi proposto pela sua presente
direção, dada a ocasião em que ela chega ao seu quadragésimo
número. Daí eu procurar fazer, em seguida, uma tentativa de ba-
lanço deste período de direção relativamente ao anterior, desen-
volvendo um ensaio a partir destas considerações.
Ter chegado ao quadragésimo número, para os que não acom-
panharam as agruras do percurso de Travessia, pode parecer um
milagre e uma ocasião de comemoração. Certamente o esforço (o
termo adequado seria “teimosia”?) dos que conseguiram chegar
até aqui merece ser congratulado, principalmente tendo em vista o
que discorrerei sobre as dificuldades próprias que enfrentei, e a

37 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


situação de abandono geral da revista por parte da instituição, que
continua a mesma: o atraso da periodização da Travessia fala bem
alto de suas dificuldades em atualizá-la, o que na ocasião em que
deixei a revista, consegui fazer, não sem muito esforço. Dez núme-
ros em cinco anos, dos quais os cinco últimos números foram, pa-
rodiando os feitos de Kubitchek em Brasília, cinco anos em cinco
semanas. Como a comemoração às avessas de nossos quinhentos
anos de colonização na América Latina, a primeira impressão que
gostaria de deixar bem registrada aqui é a de que nestes cinco lon-
gos anos de árdua travessia, apesar da indiscutível satisfação de
poder ver os números prontos com o melhor em revista literária
que naquela ocasião me era possível levar a cabo em termos de
conteúdo e de forma, é a de ter rumado sempre e demasiado dura-
mente contra a corrente: verba exígua do departamento por falta
de rubrica, falta de fundos do CNPq, falta de reconhecimento e
descrédito tanto de gente distante quanto de gente muito próxima.
A estas formas injustas de descrédito acrescenta-se outra, que
incide sobre a mudança de formato da revista, que de monográfica
e de assuntos esparsos freqüentemente denominados de modo ar-
bitrário como “miscelânea” (pois se agrupavam sem propósito de-
finido) passa à sua forma mais atual, publicando assuntos canden-
tes, da pauta do dia, procurando resgatar o debate de uma “tribuna
comum”, no dizer de Machado de Assis, enquanto contemporâ-
neo do início da indústria das folhas volantes culturalmente provo-
cadoras. Proponho me deter nesta questão, e mais precisamente
nos desdobramentos sobre livro, leque e revista que se seguem ao
presente fragmento. Ao retomar a questão que gira ao redor do que
hoje se pode resgatar em termos de revista (para depois se pensar
especificamente em revista ou forma em literatura), recolho maté-
ria para os pontos seguintes, partindo do que parece ter sido a ori-
gem de mal entendidos quanto à razão de mudança de enfoque da
Travessia em relação à direção anterior. Não se trata aqui de uma
justificativa tardia, porém se trata de uma constelação de questões
relacionadas que articulei em forma de ensaio, a partir desta “ori-
gem incompreendida”.
Houve muitos questionamentos quanto a esta mudança de
enfoque da Travessia que, de saída, foi entendida estritamente como
uma mudança do campo literário para o campo cultural, caso em
que não se adequaria ao título de revista de literatura. Evidente-
mente, esta impossibilidade de ler a mudança que de fato aconte-
cia, demonstrava, por um lado, uma recusa a entendê-la, e por
outro, denotava a falta de atualização de leituras não só sobre mas
de revistas literárias. Estas, precisamente nesta época, começavam
a reaparecer em maior número nas universidades e no mercado
mais amplo, concentrando-se em especializações que diziam res-
peito a segmentos sociais e profissionais em termos de recepção
(para negros, para lésbicas, para gays, assim como para adeptos do
rock’n’roll, para decoradores, para designers, etc.,), além das que
já existiam sobre literatura de maneira geral. As primeiras (que ti-
nham públicos específicos nos segmentos sociais e profissionais)
com formatos gráficos novos, com um visual colorido e muito so-
fisticado, na sua maior parte cediam a uma nova demanda de mer-
cado de consumo. Por outro lado ainda, a ignorância sobre a mu-
dança que ocorria no formato da Travessia (o que ocorreu com
óbvia resistência), não só seguia a ilusão promovida por esta lógica
capitalista do mercado de consumo de revistas, como significava,
de fato, a completa sujeição aos seus mecanismos, apagadores dos
cortes responsáveis pela alienação em séries. Esta ignorância tam-
bém dizia respeito às fases históricas politizadas e contestatórias

travessia 40 / outra travessia 1 38


das revistas que se registravam em relação às mudanças no campo
literário tanto no Brasil quanto no resto do mundo: entre suas fases
mais interessantes estariam as das revistas surrealistas, as anarquis-
tas, as revistas, enfim, imbuídas do espírito moderno debatedor de
que falavam Hugo e Machado de Assis em seu pioneirismo das
idéias democratizantes nos inícios da imprensa de distribuição em
larga escala.
As revistas do início do século XX, pertencentes a uma fase
modernista da literatura como as brasileiras Antropofagia, Pau Bra-
sil, Verde-Amarelo, para mencionar só três, e muitas outras, nas
décadas que se seguiriam, anteriores à da periodização mais pa-
dronizada e consumista que se implanta com a “globalização” das
editoras (iniciada, evidentemente, com mais afinco durante a dita-
dura militar), tinham posturas ideológicas precisas, linhas temáticas
ou questões a serem debatidas, ao contrário das que resultariam,
com as finalizações utilitárias do acirramento do mercado de con-
sumo editorial, nos números mencionados em segmentadas séries
(até mesmo acadêmicas) para exclusivo atendimento da demanda
consumidora dos correspondentes segmentos sociais, raciais, étni-
cos, sexuais, profissionais. Justamente ao segmentá-los, alienando-
os uns dos outros, diluem as questões críticas originárias responsá-
veis por tal fragmentação, e, como conseqüência disso, as revistas
literárias, sem conseguir encaixar-se nessas secções, pois avessas à
ação do mercado, versam evidentemente sobre as relações entre
elas e ao que dá origem à fragmentação. Mesmo assim, acabam
por sucumbir à sua armadilha consumista, ao publicar artigos-mer-
cadoria, fechados em si e sem ligações uns com os outros. Por isso,
as miscelâneas de artigos fragmentários da Travessia, característi-
cas do período anterior, se faziam em razão direta da falta de clare-
za da direção quanto ao potencial crítico de uma revista literária.
Evidentemente, este quadro adverso agravado, em sua
micropolítica universitária, refletia um quadro maior de políticas
econômicas adversas, por parte do governo, que diminuía as ver-
bas das universidades públicas para dá-las às privadas e com isso
pressionava para que gradualmente se privatizasse a universidade,
colocando a educação à venda, quadro que hoje tem piorado bas-
tante em intensidade. Esta que deveria ser a questão maior em pau-
ta, acaba perdendo sua pertinência, enquanto a ordem do governo
é seguida à risca como um incentivo aos professores dando eco às
suas vaidades autorais: em sua micropolítica, dirigem periódicos
universitários que se conformam às estratégias mercadológicas das
políticas econômicas governamentais em seu objetivo principal de
implantar formas de lucro mais eficientes através dos
desmembramentos, ou seja, da alienação política de seus mem-
bros. A recente aprovação oficial do atrelamento das pesquisas
universitárias às empresas foi um passo incontestável nesta dire-
ção, numa bem sucedida política do governo para obter lucros
através da educação. A pedagogia por trás de revistas que vendem
seus artigos como mercadorias isoladas umas das outras, causando
o efeito de colchas de retalhos em liquidação, vai, inclusive, de
encontro ao que se promove, hoje, nas agências institucionais aca-
dêmicas: se sua maior preocupação é gerar novas formas de lucro,
a sua menor preocupação seria precisamente a de gerar pensa-
mento crítico em relação a estas formas. A valorização à pesquisa
pelas disciplinas da área das humanidades, geradoras de um pen-
samento crítico cultural contrário à lógica capitalista às quais te-
mos nos submetido, não é prioridade no momento histórico que
vive o Brasil. Muitos percebem isto, mas ao invés de exercerem
pressão contrária, tentam driblar o sistema, e acabam caindo den-

39 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


2
Jacques Derrida, O Olho da tro dele, pois não é possível driblá-lo, seria necessário expor seus
Universidade, introd. de Michel equívocos. Vivemos em um tempo em que não existe mais censura
Peterson, trad. Ricardo Iuri Canko e por não haver mais necessidade dela: basta limitar os meios para
Ignacio Antonio Neis, São Paulo:
Estação Liberdade, 1999, p. 143.
conseguir os suportes da produção.2 Não há clareza política que se
Daí a necessidade, segundo Derrida, mostre nos discursos institucionais quanto aos resultados que se
de uma pesquisa sobre a não- possa esperar de uma educação que se vende, para um país como
aprovação dos estudos pelas o nosso, terceiro em desigualdade social no mundo, onde privatizar
agências legitimadoras de pesquisa. a educação seria fato ecológico de conseqüências catastróficas pois,
3
Jacques Derrida, O Olho da destituindo-nos de autonomia de pensamento, nos colocaria como
Universidade, p. 138. novos escravos da globalização: profissionais da indústria
4
Jacques Derrida, O Olho da globalizada, sem qualquer poder criativo ou decisório, sem falar
Universidade, p. 148. no memorativo (pois o apagamento da memória histórica já é tra-
balho anestésico eficiente iniciado há bastante tempo).
Quando Derrida coloca que a razão é a origem impensada da
universidade – “um fundamento cujo próprio fundamento perma-
nece invisível e impensado”3 – especialmente quando na França o
debate gira em torno de “finalização” de pesquisa (pesquisa orga-
nizada tendo em vista sua utilização) e pesquisa “fundamental”
(exercício desinteressado da razão), volta à dissociação, feita por
Heidegger, do princípio da razão, da própria idéia de técnica no
regime de sua modernidade. Lembra Derrida que Kant queria defi-
nir os fins essenciais e nobres da razão que ensejam uma filosofia
fundamental e os fins acidentais, ou empíricos, cujo sistema só se
pode organizar de acordo com esquemas e necessidades técnicas,
para concluir que “Hoje, na finalização da pesquisa, (...) já é im-
possível distinguir estas finalidades.” Isto para mostrar que as fina-
lidades são também militares, e inclusive utilizam-se da filosofia
para servir (mesmo em sua inutilidade) aos fins da guerra. O apelo
à responsabilidade, por parte deste discurso de Derrida, se faz no
sentido de chamar a ela aqueles que “jamais procuraram compre-
ender a história e a normatividade própria de sua instituição, a
deontologia de sua profissão”. Procura, assim, definir “a necessi-
dade de uma nova formação que preparará para novas análises a
fim de avaliar essas finalidades e escolher, quando possível, entre
todas elas.”4
É fácil ver hoje como os números imediatamente anteriores aos
que dirigi, da Travessia, acabavam conseqüentemente se pautando
por quantidade de artigos ou obras de autores divulgadas e criticadas
arbitrariamente, ou seja, sem uma pesquisa que questionasse a base
de sua razão para fundamentar tais ou quais escolhas, que se viam
inclusive (des)orientadas por cederem a um apagamento da me-
mória que minava por um lado, e por outro se voltavam às falsas
inovações do mercado. Daí também a insistência ultrapassada so-
bre os números monográficos, as capitalizações sobre o nome do
autor que era o caminho mais seguro e mais fácil. Isto desvaloriza-
va, por um lado, a leitura de inéditos que viessem a ser publica-
dos na revista, e por outro, as resenhas e os artigos críticos dos
colaboradores (alguns deles, por sinal, muito bons) que, uma vez
nela publicados, acabavam entrando na mesma mistura forjava uma
postura democrática ao igualar todos os artigos e todos os colabo-
radores na vala comum das mercadorias, os melhores sendo preju-
dicados por terem, obviamente, seus artigos padronizados pelo
modelo dos piores, ou seja, ao serem nivelados por baixo.
No primeiro número que dirigi, o 26, que por falta de experiên-
cia, não saiu graficamente satisfatório, havia uma intenção clara de
inserção literária no debate cultural: Litera(cultura). Nos números
seguintes, a partir dos 26 e 27 – este último, apesar de ainda
monográfico, pois centrava-se em Nelson Rodrigues, buscava a
multiplicidade na estética cultural do dramaturgo, enfocando o te-

travessia 40 / outra travessia 1 40


atro, as crônicas, o erotismo folhetinesco e as relações com a in-
dústria cultural em sua obra – procurava-se enfocar questões cultu-
rais mais atuais em debate, que poderiam, inclusive, durar vários
números da revista, caso esta se dispusesse a publicá-los (as provo-
cações dos números 27 ao 36 estavam em cada número para aque-
les que se decidissem a tomar a peito um debate) à moda mais
interessante das revistas cuja vida é, por excelência, o debate. No
entanto o fogo do debate não foi acendido, e não aconteceu, mais
por causa daqueles que teimavam em não querer ver o mérito
destes números, e que ao invés de admitir em toda a honestidade
intelectual, este simples fato, mantinham-se teimosamente fiéis à
sua “falta de entendimento” do significado desta mudança no for-
mato da revista, justamente para certificar-se de que o mesmo não
tivesse a possibilidade de acontecer, o que, evidentemente, impe-
dia a boa divulgação e tirava qualquer apoio possível ao seu de-
senvolvimento. Procurava-se, ao contrário, igualar a Travessia, re-
vista da pós-graduação, à revista da graduação, apagando-lhes a
diferença , tanto a de nível de qualidade, quanto a de aspiração ao
debate.
Considero o número 33 (A Estética do Fragmento) o 34/35
(Constelações)e os dois números sobre o canibalismo (36:
Gastronomia e Antropofagia, e 37: Canibalismo e Diferença)
ilustrativos bem sucedidos da revista, no período aqui enfocado. O
primeiro comenta justa e criticamente a estética fragmentária dos
periódicos, sendo muito apropriadamente encabeçada pela tradu-
ção do ensaio de Susan Buck-Morss “Estética e Anestética: o en-
saio sobre a arte de Walter Benjamin reconsiderado”, seguido por
uma série de fragmentos dobrados de escritores sobre escritores e
de leituras comemorativas de textos de Machado de Assis, Lucio
Cardoso e Osman Lins. O número 34/35 segue a orientação frag-
mentária do número 33. As Travessias sobre o canibalismo coinci-
diram com a XXIV Bienal de São Paulo, e aproveitaram excelentes
fragmentos publicados do catálogo organizado pelo seu curador,
Paulo Herkenhorf, Antropofagia e Histórias de Canibalismo (1998),
do qual o número 37 se nutre muito apropriadamente, além de
conter fragmentos teóricos importantes. O número 36, em home-
nagem a Câmara Cascudo, cujo material de pesquisa, guardado
por mais tempo, selecionava vários fragmentos preciosos dentro
de um tópico bem negligenciado, como tem sido a tradição estéti-
ca alimentar e o paladar, de modo geral, e a culinária brasileira em
especial, de um livro pouco consultado do mestre Cascudo, além
de trazer um inédito de Clarice Lispector em suas “políticas indiges-
tas”, e outros artigos críticos significantes para o assunto colocado.
A bem dizer, o formato exterior da revista continuava o mesmo,
pois, por falta de verba, não nos era permitido mudar mais literal-
mente a cara da revista, quanto ao tamanho, às cores impressas, à
grafia ou à qualidade do papel. Contra este outro tipo de possível
quebra de padronização, a editora da Universidade Federal de
Santa Catarina mantinha parâmetros rígidos, esforçando-se em equi-
pará-la às outras revistas da universidade. Só nos era permitido
mudar o conteúdo, e quanto a isto fizemos realmente o que pude-
mos, e coloco o pronome no plural pois na maior parte dos casos
pude contar com a interlocução de idéias e com apoio, em relação
à pesquisa, do Prof. Dr. Raul Antelo e com o trabalho de digitação
e de diagramação dos estudantes do Núcleo de Estudos Literários e
Culturais, que começava então a funcionar como núcleo, ligado à
catalogação de revistas literárias e culturais.
No entanto, quanto a tudo o mais, era o abandono completo.
Quanto a tudo o mais, no sentido de divulgação, de trocas com

41 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


5
Stephane Mallarmé, Poésies, Maxi bibliotecas, de correspondência, com leitores ou com conselhei-
Poche classiques français, Paris: ros, ou mesmo quanto à administração das assinaturas que ficava
Booking International, 1995.
sempre a cargo da Editora da UFSC (o que me alienava o controle
Consultar o artigo de Manuel
Bandeira sobre este poema, em “O da interlocução principal que seria saber sobre sua recepção, e do
centenário de Stéphane Mallarmé”, número real destas, tratando-se de recepção mais imediata da re-
in Poesia e Prosa, OC II, Introd. vista). Todas estas tarefas administrativas, evidentemente, deixaram
Geral de Sérgio Buarque de a desejar de minha parte, e eu admito isso, pois, além de tudo era-
Holanda, Rio de Janeiro: José
me impossível continuar a lecionar, preparar aulas, para a gradua-
Aguilar, 1958, p. 1216. Agradeço as
traduções de algumas de minhas ção e para a pós-graduação, e exercer todos estes encargos relaci-
citações em francês feitas por onados à revista ao mesmo tempo e praticamente só. E sem ganhar
Daniel Felix, ao longo deste texto. um centavo a mais por quaisquer pesquisa de revista, por quais-
6
Consultar sobre uma crítica das quer inéditos publicados, por qualquer mérito possível que fosse a
opiniões de Machado de Assis sobre ela relacionado. Talvez a palavra clandestinidade fosse adequada
o jornalismo, em seu ensaio “O para o que eu fazia, pois quando fui diretora da Travessia o tempo
jornal e o livro”, Ana Luiza Andrade, dedicado à revista não era sequer reconhecido como um tempo
Transportes pelo Olhar de Machado legítimo pela instituição. Para não falar em qualquer reconheci-
de Assis, passagens entre o livro e o
jornal, Grifos: Chapecó, SC, 1999.
mento dos colegas; abro uma enorme exceção para um conselhei-
Consultar, sobre a reprodutibilidade ro de muito longe, que sempre escrevia ao receber a Travessia, e a
técnica, o famoso ensaio de Walter quem aqui expresso publicamente minha gratidão por este apoio:
Benjamin in Walter Benjamin, o professor Pierre Rivas... Mas o isolamento ainda era pouco. Para
Magia e Técnica, Obras Escolhidas I, além de todos os impedimentos mencionados, a revista era cons-
trad. Sérgio Paulo Rouanet, pref.
tantemente ameaçada, de fato, de extermínio definitivo, da parte
Jeanne Marie Gagnebin, São Paulo:
Brasiliense, 1994. da editora, por falta de assinaturas...
Parece-me que ainda é.

2. A via dupla das asas: o manuscrito e a imprensa

O revêuse, pour que je plonge


Au pur délice sans chemin,
Sache, par un subtil mensonge,
Garder mon aile dans ta main.5

Para se entender melhor o periodismo em geral é necessário


voltar à sua origem: o livro. A significação do livro modifica-se
com a indústria cultural, principalmente com o aparecimento do
jornal e os avanços técnicos da imprensa de larga escala, rápida
divulgação e consumo. Desde Mallarmé, a preocupação em culti-
var o livro como arquitetura de expressão literária monumental cres-
ce, da parte de alguns escritores, precisamente diante dos progres-
sos técnicos que começam a se fazer sentir cada vez mais como
uma ameaça a seu desaparecimento. Pois os escritores sensibili-
zam-se aos modos conflitivos de produção entre o manuscrito e a
imprensa, o que os afeta diretamente. No entanto Machado de As-
sis, à feição de Victor Hugo, o grande entusiasta da imprensa, que
a via como distribuidora do “pão eucarístico” do povo, participa
também do entusiasmo que causa o aperfeiçoamento das técnicas
de reprodutibilidade.6 Em seu “O Jornal e o Livro” e em “A reforma
pelo jornal” o ensaísta Machado de Assis reconhece o monumen-
tal valor da tradição cultural do livro, como arquitetura – usando a
expressão “catedral do pensamento”, também de Hugo – porém
não se furta aos elogios ao jornal, que chega, como ele muito luci-
damente observa, com a industrialização do próprio dinheiro, como
um modo de trocar dentro de uma economia capitalista de crédi-
tos em relação à nova categoria empresária da imprensa. Machado
reconhece no jornal, inclusive, “a grande monetarização da idéia”.
Se a forma arbitrária deste novo tipo de negócio vai ser criticada

travessia 40 / outra travessia 1 42


em outros de seus escritos, o jornal tem a grande vantagem, para o 7
Machado de Assis, “O Jornal e o
escritor, de promover o fogo da discussão, ao debater pontos de Livro”, primeira publicação em O
Correio Mercantil (10 e 12 de janeiro
vista diferentes de uma “tribuna comum”, o que é “propriedade do
de 1859), em nota de Afrânio
espírito moderno”: Coutinho (org.), Obras Completas,
vol. III, São Paulo: Nova Aguilar,
Mas restabeleçamos a questão. A humanidade perdia 1992.
a arquitetura, mas ganhava a imprensa; perdia o 8
Também em Ana Luiza Andrade,
edifício, mas ganhava o livro. O livro era um progresso; Transportes pelo Olhar de Machado
preenchia as condições do pensamento humano? de Assis, consultar o fragmento
Decerto; mas faltava ainda alguma cousa; não era ainda intitulado “Idéia, Pai, Capital (do
a tribuna comum, aberta ‘a família universal, lucro ao logro)” na utilização da
aparecendo sempre com o sol e sendo como ele o leitura da ficção como falsa moeda,
do livro de Jacques Derrida Dar( el)
centro de um sistema planetário. A forma que
tiempo: La moneda Falsa. Trad.
correspondia a estas necessidades, a mesa popular para Cristina de Peretti, Barcelona,
a distribuição do pão eucarístico da publicidade, é Buenos Aires, México: Paidós
propriedade do espírito moderno: é o jornal.7 Ibérica, 1995.
9
Se, por um lado mais aparente, Machado adere ao progressismo Stephane Mallarmé, Poésies, Maxi
Poche classiques français, Paris:
da sua época, creditando ao jornal seu potencial transformador Booking International, 1995, p. 213:
das desigualdades sociais, mesmo como instrumento capitalista; “Pássaros até à silhueta: e em vão
por outro lado menos empolgado e mais denunciador, em várias conduz de modo extraordinário,
crônicas, contos e romances, ele se torna um crítico cultural ma- como um vôo retraído, entretanto
gistral dos falsos mecanismos capitalistas de progresso. Primeiro pronto para se alçar, intervenção ao
dobramento ou ritmo, causa inicial
escritor e cronista brasileiro a produzir na mão dupla da manufatu-
cuja folha fechada guarda um
ra (ao escrever o manuscrito) e da imprensa industrial, como jorna- segredo, nela o silêncio assiste,
lista, e portanto por modos conflitivos em relação a valor e a tem- signos preciosos e evocatórios
po de produção, para citar apenas duas diferenças importantes, sucedem ao espírito e a tudo
fica em Machado clara a discrepância entre a economia capitalista literalmente abolido.”
pautada pelo crédito de confiança mútua, e a paradoxal falta de 10
Expressão de Mallarmé, registrada
ética na prática de venda lucrativa. Ele representa ficcionalmente o por Derrida em La Dissémination, p.
logro do lucro, e registra, mais clara e definitivamente em suas 308, nota de rodapé (62) sobre a
crônicas, troco miúdo de seus escritos, o sistema falsificador da qual apresenta lista variada de “asas”
em suas diversas séries metafóricas
mais valia, o embuste por detrás do ato de consumo.8 Assim como como as “penas” ou as “plumas” ou
na Falsa Moeda de Baudelaire, ele subverte as trocas capitalistas ainda as “canetas de asa” , etc, na
pelas ficcionais. Ao vender a sua moeda falsa como ficção, a faz poesia de Mallarmé. Aí também se lê
passar por verdadeira. Em outras palavras, o valor da troca, por que no espelhamento do livro, da
arbitrário, torna-se mais falso do que a ficção, e esta, ao alertar asa de pássaro e da cama, o espaço
íntimo se anula à força da intimidade
sobre a falsidade daquele, mais verdadeira.
e não há mais distância entre o “eu”
Mallarmé refere-se a esta verdade mágica coincidente à ficção e sua imagem (p. 308).
referida por Baudelaire como moeda falsa, poeticamente, como
um vôo de pássaro que dá asas à imaginação, o que se configura
no papel desdobrado do livro como objeto alado, e daí a sua com-
paração:

Jusqu’au format oiseux: et vainement concourt cette


extraordinaire, comme un vol recueilli mais prêt a
s’élargir, intervention du pliage ou le rythme, initiale
cause qu’une feuille fermée, contienne un secret, le
silence y demeure, précieux et des signes évocatoires
succèdent, pour l’esprit, à tout littérairement aboli.9
Ora, é destas múltiplas voltas imaginativas por convolutas
espiraladas, e do silêncio literário que se amplia das folhas volan-
tes de suas páginas, qual o espírito que se solta e voa de uma ou
outra delas, que Mallarmé extrai a metonímia deslocada na meta-
fórica asa desgarrada de um pássaro. Estas asas passam a ser resí-
duos de um gesto sedutor cujo enlevo mimético evoca toda a arte
de sedução do próprio folhear do livro: o ato de leitura. Se por um
lado esta “escritura alada”10 do folhear contemplativo do livro se
interioriza ao culto ritualístico do ato de leitura enquanto gesto
habitual exterior, com a chegada da imprensa jornalística, por ou-

43 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


11
Consultar a respeito da frivolidade tro lado, existe a franca ameaça de sua queda em desuso. É por
na economia dos signos e do este lado do olhar superficial, atento ao lado de fora, ou ao lado
discurso: Jacques Derrida,
público de “tribuna comum” e coletiva, desencadeado pelas in-
L’Archéologie du Frivole, Paris:
Galilée, 1990. dústrias de comunicação tais como a imprensa, que erotismos an-
12
teriormente ligados a um limiar entre “dentro” e “fora”, como aquele
Vincent Kaufmann, Le livre et ses
que conserva um célebre “mistério não revelado de Conceição”
adresses (Mallarmé, Ponge, Valéry,
Blanchot) Paris: Méridiens em “Missa do Galo”, se revelam agora através de um ato aparente-
Klincksieck, 1986. mente sedutor, superficial e frívolo11 como o da arte de abanar-se
13
com o leque, este objeto que foi instrumento e linguagem erótica
Jacques Derrida, Dar (el) tiempo,
p. 35. representativa da passagem da privacidade doméstica à saída à corte,
e em seguida, às ruas, das mulheres.
Esta asa de papel cujo poder de interlocução excedia o de “me-
ras páginas literárias”, transforma o resíduo fragmentário de onde
se origina, na composição sintética de suas partes montadas, onde
a figura pintada de uma flor emudece, ao tocar os lábios, a sua
portadora. Vincent Kaufmann observa, sobre Mallarmé, que a opo-
sição entre uma obra circunstancial e o livro absoluto é trazida à
baila pelo escritor, mas ela pode até acabar por não se justificar, ao
reconhecer um estatuto irredutivelmente virtual para o livro que se
inclina a reabilitar o circunstancial. Kaufmann coloca o cartão de
visitas, para Mallarmé, como o corpo-condutor de uma circulação
simbólica dentro da qual ele se encontra, muito freqüentemente,
como intermediário, pois enquanto cartões de visita, vazios de outro
conteúdo além de significar uma lembrança, representam a varian-
te mais transparente de um dispositivo de endereçamento reen-
contrado sob as formas mais complexas, dentro das Poesias e tam-
bém dentro dos “Poemas Críticos”. Loisirs de la Poste constitui um
exemplo de uma equação irônica entre escrever e endereçar-se. A
circunstância é suprimento de reserva do livro que se deve publicar
mesmo fragmentariamente. Mallarmé não favorece um regime priva-
do de escritura. A circunstância será, em resumo, o gênero que se
subtrai a um livro impossível ou ausente, com respeito a uma lógica
paradoxal, ou seja, tanto da parte do autor como do leitor.12

3. Elo e dom: entre os poemas-que-se-endereçam e os poemas-


oferenda

La verdad del don equivale al no-don o a la no-verdad


del don. Esta proposición es un desafío evidente para
el sentido muy singular, el vínculo sin vínculo, sin
bind, sin bond, sin obligación o atadura, nos recuerda
Mauss; pero, por outra parte, no hay don que no deba
desvincularse de la obligación, de la deuda, del
contrato, del intercambio, por lo tanto, del bind.13
Outros aspectos da função simbólica dos “versos de circuns-
tância” de Mallarmé passam ao primeiro plano com os poemas
Eventails, os Dons de fruits glacés , as Offerendes, etc, não só por-
que cada objeto representa a “prova” do poema que o acolhe, mas
porque esta também, em cada caso representa um “dom”, o que
confere, como se sabe depois de Mauss, um valor eminentemente
simbólico. Os poemas explicitam as razões da oferta, dando-as
como regra e sentido, e se apropriam assim de certo modo da cha-
ve da ligação instituída pelo dom. O elo ou ligação será então o
assunto do poema e não o objeto que ele apóia. O poema se inte-
gra ao gesto simbólico do qual ele parecia antes não ser mais que o
comentário, como se ele se tornasse reflexivamente seu próprio
comentário:

travessia 40 / outra travessia 1 44


14
A Mlle. Geneviève Mallarmé Vincent Kaufmann, Le Livre et ses
Adresses, p. 34.
Là-bas de quelque vaste aurore 15
Vincent Kaufmann, Le livre et ses
Pour que son vol revienne vers adresses, p. 37.
Ta petite main qui s’ignore 16
Vincent Kaufmann, Le livre et ses
J’ai marqué cette aile d’un vers. adresses, p. 35.
17
Manuel Bandeira em Advertência
à sétima antologia de seus poemas,
acrescenta a eles a inclusão de
A une dame polonaise “poemas de circunstância, constan-
tes do livro Mafuá do Malungo , e
L’an nouveau qui vous caressa traduções [que fiz de poetas
Toujours la même dans rature estrangeiros,] tiradas do livro Poemas
Traduzidos”. In Manuel Bandeira,
Apporte aussi ce fruit et sa Antologia Poética, Rio de janeiro:
Monotone littérature.14 Editora do Autor, 1961, p. 6.

Assim, Kaufmann nos explica sobre o endereçamento em


Mallarmé: no primeiro poema a preposição “vers” ou “em direção
a”, no lugar da rima, se entende como aposição a “vôo”, o que
pode sugerir a temática do vôo do leque pelo poema que acaba de
torná-lo parasita, ou ainda, a idéia de uma volta do leque sob a
forma de verso. Kaufmann define o dom como um “cavalo de Tróia
do verso ao qual serve de suporte”. Conforme às leis da troca, ele
supõe um outro dom em retorno, tratando-se aqui de um contrato
antes imposto ao donatário-destinatário colocado na obrigação de
restituir a um nível completamente outro. Seria preciso seguir to-
das as virtualidades de “s’ignore” que deixa entender toda a pro-
blemática da assinatura e do valor (“signe-or”), interventores, de
uma certa maneira, à questão do destinatário do dom. O dom apa-
rece assim quase anulado pelo poema, que literalmente o dobra e
o coloca em seu lugar, fazendo do objeto dado o espelho (e a
garantia) do gesto simbólico envolvido pelo escrito:15

A ce papier fol et sa
Morose littérature
Pardonne s’il caressa
Tont front vierge de rature.16

Os textos de circunstância permitem ao leitor fazer a economia


de sua própria implicação em um gesto endereçado dado. O obje-
to perdido que se transmite pelo poema que sempre se reconcilia
com o poema de amor, se materializa, caso de todos os poemas–
oferendas que consistem precisamente na desaparição do objeto
que lhes serve de apoio, para fazer lucrar uma relação pura. Todas
estas oferendas, é preciso lembrar, se dirigem a mulheres, colocan-
do em jogo os objetos íntimos ligados ao corpo (leques, lenços,
frutas carameladas, espelhos, etc) predestinados ao desaparecimento
pela matéria de que são feitos, elo atrás do qual estes objetos se
permitem significar. Os “Jogos Onomásticos” de Bandeira se apro-
ximam bastante destes versos (aos quais Bandeira chama de “poe-
mas de circunstância”17) endereçados a mulheres, de Mallarmé.
Neles, o poeta brinca com os nomes qual objetos a quem se ende-
reçam os seus versos. Por exemplo, no poema Teu Nome a
interlocução do poema-que-se-endereça propõe-se chamamento
mais forte que a poética voz das sereias, ou no poema dedicado a
Marisa, onde o próprio título, coincidente ao nome da endereçada,
é dom da brisa, do mar:

45 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


18
Stephane Mallarmé, “Quant au Teu Nome
livre”, Poésies, Maxi Poche
classiques français, Paris: Booking Teu nome, voz das sereias,
International, 1995, p. 206: “Para o Teu nome, o meu pensamento,
extremo-oriente, a Espanha e
deliciosos iletrados, o leque a
Escrevi-o nas areias,
diferença próxima que esta outra asa Na água, -escrevi-o no vento.
de papel mais viva: infinitamente e
breve em sua dobradura, esconde
parcialmente a face para trazer aos Marisa
lábios uma flor muda pintada como
a palavra próxima intacta e nula do Muitas vezes à beira-mar
devaneio pelos batimentos.” Sopra um fresco alento de brisa,
19
Stephane Mallarmé, “Quant au Que vem do largo a suspirar...
livre”, Poésies, Maxi Poche
Assim é o teu nome, Marisa –,
classiques français, Paris: Booking
International, 1995, p. 206 (dois Que principia igual ao mar
parágrafos depois da citação E acaba mais suave que brisa.
anterior): “O volume, refiro-me aos
contos ou ao gênero, procede ao
inverso: contraditoriamente ele evita Enquanto Bandeira faz soprar a brisa no registro de seus poe-
o tédio dado por um encontro
mas de circunstância, apagando-os ao seu sabor efêmero, Mallarmé
contínuo com o outro e multiplica o
cuidado que somente nós o destaca o leque em seu abano provocador, já que a relação
encontramos frente a frente ou interlocutória de seu gesto, intermediária entre a do objeto de arte
próximo a nós mesmos: atentos ao e o objeto de comunicação, o faz falar sedutoramente, ao apontar
perigo dobrado.” justamente para o circunstancial da antiga função do folhear o li-
vro. O leque, hoje objeto abandonado ou fora-de-uso, vem à lem-
brança como um pano de fundo de que se utiliza Mallarmé para
suas analogias com o livro, porém seu uso cultural, apesar de
descontextualizado de sua origem oriental, era freqüente nos tem-
pos de Mallarmé. Se o ato solitário de leitura do livro na virada de
suas páginas lembra os golpes rápidos e leves desta singular asa de
papel, já o ritmo de suas batidas corta os altos vôos literários pela
aproximação comunicativa de quem traz o leque em sua mão. Do
ato de fragmentação de leitura passa-se ao ato fragmentário do ges-
to: não há mais a atividade contemplativa e exclusiva do livro. O
leque aproxima a distância de sua, agora ilusória, origem oriental,
para se comunicar à moda ocidentalizada, com os seus próximos:

Ce que pour l’extrême-orient, L’Espagne et de délicieux


illetrés, l’éventail à la différence près que cette autre
aile de papier plus vive : infiniment et sommaire en
son déploiment, cache le site pour rapporter contre les
lèvres une muette fleur peinte comme le mot intact et
nul de la songerie par les battements approché.18

4. A obra, entre poesia e prosa, livro e leque

Le volume, je désigne celui de récits ou le genre,


procède à l’inverse: contradictoirement il évite la
lassitude donnée par une fréquentation directe d’autrui
et multiplie le soin qu’on ne se trouve vis-à-vis ou près
de soi-même: attentif a danger double.19
Blanchot resgata o Mallarmé das dobras entre o jornal e o livro
no seu anseio ao puro movimento das relações. A volta cultural às
exigências literárias das relações desenvolvidas no livro, ao qual se
incorpora o triunfo dos versos de circunstância, cujas asas expres-
sas na metáfora da multiplicidade de “pássaro numeroso” originá-
rio em Mallarmé, já parte da ameaça mais próxima de um possível
“desaparecimento da literatura” e se acirra com o que ainda se
escondia como pano de fundo histórico: a comunicação de massa,

travessia 40 / outra travessia 1 46


20
com o crescimento da indústria midiática, em específico o apare- Maurice Blanchot, Le Livre a Venir,
cimento da televisão. O livro se faz lugar de negação desta tela Paris: Gallimard, 1959, p. 307: “O
livro que é o Livro é um livro dentre
visual de um só plano, que tal como o leque corta a sua profundida-
outros. É um livro numeroso que se
de calculada no encolhimento superficial de suas dobras. Ao contrá- multiplica como nele-mesmo por um
rio: ao escapar do ato circunstancial e casuístico, o livro transforma movimento que lhe é próprio e onde
as coisas ao abri-las ao seu ritmo silencioso e à sua ausência: a diversidade segundo profundezas
diferentes do espaço onde ele se
Le livre qui est le Livre est un livre parmi d’autres. C’est desenvolve, se cumpre necessaria-
un livre nombreux qui se multiplie comme en lui-même mente. O livro necessário é
subtraído ao acaso. Escapando ao
par un mouvement qui lui est propre et où la diversité, acaso pela sua estrutura e sua
selon des profondeurs différents, de l’espace où il se limitação, ele cumpre a essência da
développe, s’accomplit nécessairement. Le livre linguagem que usa as coisas,
nécessaire est soustrait au hasard. Echappant au hasard transformando-as em sua ausência e
par sa structure et sa délimitation, il accomplit l’essence ao abrir esta ausência ao futuro
rítmico que é o puro movimento das
du langage qui use les choses en les transformant en
relações.”
leur absence et en ouvrant cette absence au devenir
21
rythmique qui est le mouvement pur des relations.20 Maurice Blanchot, Le Livre a Venir,
p. 310: “O livro é sem autor, porque
A dimensão de puro devir do livro se imagina ao se desdobra- ele se escreve a partir do desapareci-
rem as asas poéticas de Blanchot às próprias asas de papel de suas mento falante do autor. O livro
precisa do escritor enquanto ele é
folhas. Para Blanchot o livro se faz puro como um último desejo ausência e lugar de ausência. O livro
no pressentimento de sua morte próxima, o que se dá bem con- é livro, enquanto ele não remete a
cretamente com o advento da comunicação de massa. Por isso ninguém que o teria feito, tão puro
torna-se o livro mais livre, como se ele mesmo fosse presença em de seu nome e livre de sua existência
que ele é o sentido próprio daquele
ausência de objeto, liberando-se mais puro em seu desejo de vôo que o lê.”
como um irresistível canto de sereias. Este canto silencioso e sim-
22
bólico de um livro despojado, sem propriedades ou proprietários, Maurice Blanchot, Le Livre a Venir,
p. 311.
que já se desliga do autor e do leitor, para Blanchot, equivaleria, ao
23
que, no dizer de Clarice Lispector, teria o poder abstrato de um Maurice Blanchot citando
“verdadeiro pensamento” que não tem autor, nem leitor, e nem Mallarmé, Le Livre a venir, p. 311.
lugar por assim dizer “literário” que lhe restringisse os seus limites
específicos ao que então começa a se formar em torno da lingua-
gem como uma prisão: uma cadeia comunicativa que doravante se
cristaliza como a do autor – leitor – obra.

Le livre est sans auteur, parce qu’il s’écrit à partir de la


disparition parlante de l’auteur. Il a besoin de l’écrivain,
en tant que celui-ci est absence et lieu de l’absence.
Le livre est livre, lorsqu’il ne renvoie pas à quelqu’un
qui l’aurait fait, aussi pur de son nom et libre de son
existence qu’il est du sens propre de celui qui le lit.21
Parafraseando Blanchot em sua referência ao grau zero da es-
critura de Barthes, ainda sobre o livro de Mallarmé: a solidão do
livro, ao se cumprir como elo de si mesmo, torna-se dupla afirma-
ção sobre a obra em sua exigência essencial, que se justapõe, se-
parada por um hiato lógico e temporal, do que o fez e do ser a
quem pertence, indiferente ao “fazer” – a simultaneidade entre sua
presença instantânea e o devir de sua realização: uma vez cumpri-
da, cessa ela mesma sem dizer nada além disso: que é.22 O livro é
do leitor. Como obra de arte, para Mallarmé, se confundiria
mimeticamente ao leque como objeto simbólico que representa a
obra de arte, pois Blanchot observa como seu devir é passagem
histórica, é corte e ruptura, “tout s’interrompt, effectif, dans l’histoire,
peu de transfusion”. A obra literária moderna, como o leque, se
anima de uma descontinuidade extremada sujeita às mudanças
temporais, aos “arrêts fragmentaires” como signo de uma essência
nova de mobilidade e às acelerações, como o tempo que se anun-
cia: “ici devançant, là remémorant, au futur, au passé, sous une
apparence fausse de présent”.23

47 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


24
Stephane Mallarmé, “Quant au Mas é Jacques Derrida que vai finalmente aclarar esta relação
Livre”, in Poésies, Maxi Poche entre livro e leque que tem a ver com a passagem moderna de um
classiques français, Paris: Booking
olhar dialético entre o antigo e o moderno, fundo e superfície, inte-
International, 1995, p. 215: “A dobra
virgem do livro nesse instante, rior e exterior. Ele observa, com Blanchot, que a comparação entre
pronta para o sacrifício, revela o a alma e um livro (bibliô) é de tal sorte que o livro aparece como
sangramento vermelho de fatia dos uma instância do discurso (logos) silencioso, interior, palavra que
tomos antigos; a introdução de uma se volta para dentro. Mas desde o instante em que o diálogo se
arma, ou corta-papel, para estabele- torna possível com um interlocutor presente, ao contrário de
cer a tomada de posse, apesar desse
gesto bárbaro, como antes nos
Blanchot, Derrida mimetiza-o ao interiorizá-lo: “entretenho-me
damos conta do ato de posse: comigo mesmo em um comércio interior”. Ele deixa claro que des-
quando ela se fará na participação, de o momento em que a alma se assemelha a um livro, esta conver-
do livro tomado, levado daqui, de lá, sação reduzida ou murmurada como um falso diálogo, equivale a
aos ares de descoberto tal como um uma perda de voz. Ainda observa que o livro torna-se ícone ou
enigma – quase rarefeito por si. As
fantasma desde que a relação silenciosa entre a alma e ela mesma,
dobras perpetuarão uma mácula
intacta que convida pronta a abrir e ao imitá-lo, sendo uma a imagem semelhante do outro, se compa-
a fechar a folha, de acordo com o ra à do desenho, à da pintura, a arte do espaço, que, enfim, se
mestre.” inscreve, fora do livro: “as imagens que correspondem às palavras”,
25
“Virginité qui solitairement, para ilustrar no livro do discurso, o pensamento de dentro, saben-
devant une transparence du regard do o pintor restaurar a imagem nua da coisa tal qual ela se dá ao
adéquat, elle-même s’est comme olhar, como cópia de cópias. Assim, a articulação metafórica do
divisée em ses fragments de candeur, leque enquanto livro permanece nesta dobra analógica que fran-
l’un et l’autre, preuves nuptiales de queia o interior ao olhar de fora. O próprio olhar de fora, dentro de
l’Idée.” In Stephane Mallarmé,
Poésies, Maxi Poche classiques
um ritual de leitura antigo, se fazia violador desde o momento em
français, Paris: Booking International, que as folhas eram cortadas à medida em que eram lidas, e a ana-
1995, p. 225: “Virgindade que logia de Mallarmé é precisa quanto ao olhar de fora de um leitor
solitariamente, frente a uma penetrador, que desvirgina a página ao apropriar-se do que lê:
transparência do olhar adequado,
ela-mesma sendo como dividida em Le reploiement vierge du livre, encore, prête à un
seus fragmentos de candidez, um e sacrifice dont saigna la tranche rouge des aciens tomes;
outro provas nupciais da Idéia.”
l’introduction d’une arme, ou coupe-paier, pour établir
26
Jacques Derrida, “La Double la prise de possession. Combien personnelle plus avant,
Séance” in La Dissémination, Paris: la conscience, sans ce simulacre barbare: quand elle
Les Editions du Seuil, 1972, p. 239:
“portanto imagem sem modelo, nem
se fera participation, au livre pris d’ici, de là, varié em
imagem nem modelo, meio (ao airs, devinné comme une énigme – pesque refait par
meio: entre, nem/nem; e meio: soi. Les plis perpétueront une marque, intacte, conviant
elemento, éter, conjunto, mídia).” à ouvrir, fermer la feuille, selon le maître.24
27
Jacques Derrida, “La Double
Além disso, de acordo com Derrida, ainda quanto a analogia
Séance”, pp. 209-238.
entre livro e leque, este se apresentaria como tela protetora
indicadora da virgindade25 ou película entre o dentro e o fora do
corpo da mulher, assemelhando-se ainda à cartilagem de certos
peixes ou às asas de certos insetos ou bichos que, como aranhas,
urdem uma rede, uma obra, um texto. Derrida destaca o imenso
poder destas metáforas pois a urdidura de seus fios em todas as
suas gazes, véus, telas, asas, penas, cortinas e leques incorporados
às suas dobras, vão constituir tudo – ou quase – do corpus
mallarmeano. Aqui se entreabre, então, a potência artística e cultu-
ral do leque como obra ou objeto simbólico de Mallarmé, seja
livro ou leque, em seu entreabrir-se, seu entrefechar-se. Trata-se de
hímen ou intervalo do “entre” que confunde contrários e em cujas
dobras fica o espaçamento entre o desejo e sua realização. Seu
jogo de beirar o ser fica em suspensão viciosa e sacra, mediadora e
midiática “donc image sans modèle, ni image ni modèle, milieu (au
milieu: entre, ni/ni; et milieu: élément, éther, ensemble, medium)”26,
chegando a Sonho que é percepção, lembrança e antecipação
(desejo) e cada um dentro do outro, não sendo de fato, nem um e
nem outro, falsa aparência, ficção de penetrar o ventre conservan-
do-o virgem, ao mesmo tempo: tecido sobre o qual se escrevem
tantas metáforas do corpo.27 A analogia imita a diferença, segundo
Derrida, como o leque imita o hímen: simulacro que simula o de

travessia 40 / outra travessia 1 48


28
Platão assim como a cortina hegeliana cujo interior se abre ao in- Jacques Derrida, “La Double
terior puro anulando seus extremos e fazendo desaparecer o meio- Séance”, nota 24, p. 248, sobre a
comparação entre Mallarmé e Hegel
termo.28 Ao dobrar-se sobre si mesmo, o texto se desdobra enquan-
em Fenomenologia do Espírito,
to leque, jogando a partir de uma cena dupla que opera de lugares quanto ao hímen, que como uma
diferentes, sendo atravessado e não–atravessado. Sua entre–aber- cortina se abre ao interior em sua
tura é entre–ato cuja fachada misteriosa esconde o fundo. visão do Homônimo sem distinção,
em relação à consciência de si
mesmo. Atrás da cortina que deve
5. O romance, o volume recobrir o Interior, não há o que ver,
a menos que nós não nos penetrás-
Impersonnifié, le volume, autant qu’on s’en sépare semos atrás dele, tanto para que
comme auteur, ne réclame approche de lecteur. Tel, exista alguém para ver como para
que haja qualquer coisa a ser vista.
sache, entre les accessoires humains, il a lieu tout seul:
fait, étant.29 29
Mallarmé citado por Blanchot in
Maurice Blanchot, Le Livre a venir, p.
310: “Não personificado, o volume
Le livre fait “bloc”, mais c’est um bloc de feuillets. separa-se tanto quanto o autor, não
Une “perfection cubique” ouverte. Cette impossibilité reivindica a aproximação do leitor.
de se fermer sur soi, cette déhiscence du livre Sabe-se que entre os acessórios
mallarméen, comme théâtre “intérieur”, c’est la humanos há lugar inteiramente só:
pratique et non la réduction de l’espacement. Cette feito, sendo.”
pratique mise sur la structure du pli et de la 30
Jacques Derrida, “La Double
supplementarité, elle y joue.30 Séance” in La Dissémination, p. 264:
“O livro faz “bloco” todavia é um
Reconhecendo a liberdade das relações móveis do livro, po- bloco de folhas. Uma “perfeição
rém diferentemente de Blanchot ou Derrida, Michel Butor já parte cúbica” aberta. Essa impossibilidade
de se fechar sobre si, essa deiscência
do livro como resíduo, ou seja, o livro enquanto obra industrial,
do livro de Mallarmé como o “teatro
mercadoria decaída de um mundo cultural fragmentado pelo con- interior”, é a prática e não a redução
sumo, para, novamente, contrapô-lo aos meios técnicos mais mo- do espaçamento. Essa prática põe-se
dernos de catalogar ou arquivar tais como os da gravação eletrôni- sobre a estrutura da dobra e da
ca. No entanto, ainda a escrita é melhor captável pelo olho do que suplementação e a manifesta.”
pelo ouvido, em seus fios facilmente disponíveis “ao leitor [que 31
Michel Butor, “O livro como
tem] uma grande liberdade de movimento em relação ao “desen- objeto” in Repertório, trad. e org.
rolar” do texto, uma grande mobilidade, que é o que mais se apro- Leyla Perrone Moisés, São Paulo:
xima de uma apresentação simultânea de todas as partes de uma Perspectiva, 1974, p. 216.
obra.”31 Ao contrário da tela unidimensional que agora se visualiza 32
Osman Lins, Guerra Sem
na imagem superficial e frívola de um leque aberto à interlocução testemunhas (o escritor, sua
comunicativa, como na televisão, o livro como objeto, de acordo condição e a realidade social), São
Paulo, Ática, 1974.
com Michel Butor, viria de outra série na lógica moderna dos des-
dobramentos. O livro se relaciona ao discurso, para Butor, que aceita 33
Michel Butor, Repertório, p. 241.
suas dimensões tridimensionais de volume ou objeto, o que até se
entende melhor na imagem do cubo, que resplandece em suas
limitações, como Osman Lins destaca, retomando Mallarmé.32 Para
Butor, como Lins percebe mais tarde, o volume do livro, como o
do discurso, tem uma referencialidade simbólica, o que lhe em-
prestaria singularidade espacial em sua mobilidade temporal: “A
utilização feita pela geometria da palavra “volume”, bem afastada
de sua etimologia volumen, mostra bem com que clareza as três
dimensões aparecem no livro, no momento em que ele tomou a
sua forma atual.”
Além disso, Butor retoma a importância histórica dada à arqui-
tetura do livro por Hugo, com a vantagem, agora, de ter sido libe-
rada de seu lugar: “Hugo declarava que o livro era uma transforma-
ção moderna da arquitetura tornada plenamente móvel pelo fato
de ter sido liberada de seu lugar”.33 Compara, com Mallarmé, o
livro ao teatro, mas também à Ópera, “dito ou cantado no palco”
de acordo com “as inscrições da sala”, “os programas ou livretes”
e a sonoridade da partitura. Diz ele que, como as civilizações
“ressuscitáveis”, devemos acompanhar os movimentos, implica-
dos nas misturas que se acrescentam ao livro pois, como a literatu-
ra, ele “é uma transcrição suspensa entre um passado a conservar e
um futuro a preparar, mas [como] ela funciona também no espaço,

49 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


34
Michel Butor, A Modificação, trad. e portanto com relação ao presente.” Sua preocupação com o tem-
de Oscar Mendes, Belo Horizonte, po e o espaço do livro e da literatura se expressam de forma repre-
Itatiaia Limitada, 1958.
sentativa em relação ao romance e suas modificações quanto aos
35
Osman Lins, Guerra Sem pontos de inserção relacionados entre o leitor e as figuras roma-
testemunhas, 1974, p. 48. nescas, o que se ilustra em especial e magistralmente em seu ro-
36
Osman Lins, “O escritor e o livro” mance A Modificação.34 Tendo tido direto contacto com Butor,
in Guerra Sem testemunhas, 1974, p. Osman Lins expressa-se em consonância com suas idéias ao quali-
106 ficar as linhas que relacionam a obra e o escritor como as de um
37
Osman Lins, “O escritor e o livro” móbile.35
in Guerra Sem testemunhas, 1974, p.
135. Esse espaço simbólico [do livro], expressão enigmática
38
Osman Lins, “O escritor e o livro”
de um anseio, desaparece na imprensa periódica, não
in Guerra Sem testemunhas, pp. deixando de ser significativo que as revistas mundanas,
136-137. quando publicadas mensalmente, tragam uma capa
decorativa, em geral sobre motivo fútil mas sem relação
com os últimos acontecimentos do mundo, enquanto
que a tendência dos semanários ilustrados é para
estampar em cores, sob o título da publicação,
fotografias ligadas a algum fato recente. Tanto mais
estreita é a duração prevista para a vida de tais
publicações, quanto maior sua ligação com o
temporário, expressa através do próprio assunto da
capa. Assim é que o jornal, por sua natureza ligado ao
dia-a-dia, expressão do fato em andamento ou apenas
consumado e prestes a ser esquecido, substituído,
dispensa toda espécie de separação entre o texto
impresso e o mundo. Reflexo do transitório, ele mesmo
exemplo das coisas que não permanecem, não tem
integridade alguma a resguardar. Ligado estreitamente
ao tempo, sobrevém para fugir, passar, ser esquecido.36
É bom lembrar que Lins se refere aqui à ligação com o tempo
de trabalho assalariado, ou seja, o tempo que equivale ao dinheiro
e não ao tempo que dá, ou o do dom. Em Guerra Sem Testemunhas
ele dá o seu testemunho da luta solitária porém culturalmente soli-
dária à literatura, ao manifestar-se abertamente contra a indústria
cultural que ameaça invadir as relações entre o escritor e sua obra.
Acreditando ser possível a profissionalização do escritor sem que
este seja corrompido pelas relações com o mercado (“ainda que
nem os melhores pod[em] estar seguros de conservarem-se imunes
à sua pressão”37) Lins apela para os valores de integridade interior
transmitidos pelo livro (entendido enquanto obra de arte, como em
Blanchot e Butor) em oposição ao best-seller, com suas “intenções
ilegítimas, [que] deix[am] transparecer de modo claro um despre-
zo total pelo leitor e um alheamento indisfarçável com referência
aos problemas essenciais da nossa época” (...). Por outro lado, há o

público apressado, que [o escritor casual] não admite


em condições de elevar-se e de cujas insuficiências
constitui-se beneficitário. Esse gênero de escritor, para
os que condescendem em admitir, na civilização
industrial, a literatura, passa por ser o exigido pelos
tempos, nos quais só haveria lugar para aquelas obras
capazes de atender à capacidade das grandes
impressoras, e competir na preferência dos leitores,
com o cinema e a televisão, de modo que um autor
como Kafka seria um anacronismo. Erro ou artimanha?
A máquina surgiu como resposta ao velho clamor do
texto; veio para servi-lo e a inversão pretendida – que
passe o texto a servidor da máquina, de sua apetência
– afigura-se bem estranha.38

travessia 40 / outra travessia 1 50


Lins reserva às capas e às ilustrações das revistas a impressão 39
Maurice Blanchot, O Espaço
das cores, porém pensa que o conteúdo de um livro não deve ser Literário, trad. Álvaro Cabral, Rio de
Janeiro: Rocco, 1987.
contestado em sua forma (como algumas coleções de livros de bolso,
cujas editoras desmerecem, por suas capas, completamente os seus 40
Michel Butor, “O livro como
escritos). Desta maneira, Osman Lins parece antecipar as editoras objeto” in Repertório, trad. e org.
que só estão preocupadas com a sua embalagem ou aparência ex- Leyla Perrone Moisés, São Paulo:
Perspectiva, 1974.
terior, vendendo-os a alto preço, ou seja, nas belas edições, em
41
detrimento das palavras que contém, ou bem as que não respeitam Sandra Nitrini, “Da intermediação
estas últimas tendo por objetivo único a quantidade de vendas. cultural ao diálogo cifrado. (Osman
Lins e Michel Butor)”, texto
Reclamando ao escritor à sua obra e à literatura um espaço digno, apresentdo no Congresso da
a exemplo do “espaço literário” já reivindicado por Blanchot39 ao ABRALIC em Belo Horizonte, 26 de
comentar a obra de escritores, como também a exemplo de Butor, julho de 2002. O texto se refere
na dimensão do “livro como objeto”40, Osman Lins percebe a crise antes à busca comum pela cidade
cultural que adentra o campo da literatura ao desmembrá-lo, não ideal e ao tema das viagens que
existe em ambos os autores do que
só com o advento da indústria cultural, mas principalmente com
propriamente às suas preocupações
os problemas inculturais que levam a menosprezar o livro e a culturais referentes ao livro em
prestigiar o mercado de consumo. As várias partes de seu livro são específico.
testemunho claro dos cortes capitalistas em sua ação 42
Antonio Cândido, “A espiral e o
desmembradora. Semelhantemente a Butor41, Osman Lins afirma a quadrado”. Apresentação de
tridimensionalidade estrutural do livro em seu romance Avalovara Avalovara, de Osman Lins. São
enquanto se trata de romance que se representa através da forma Paulo: Melhoramentos, 1973.
do livro. Portanto Avalovara, livro que não tem medo de apresen- 43
Osman Lins, Guerra sem
tar-se como tal42, torna-se uma afirmação cultural do livro como testemunhas, p. 125.
forma, estrutura que se dobra sobre si mesma ou objeto simbólico
dentro de um mundo que o pensa .
Ainda em Guerra Sem testemunhas, quando acompanha passo
a passo os estágios técnicos pelos quais atravessa o livro em sua
passagem de um modo de produção manufaturado a um modo de
produção industrial, para a facilitação da leitura, destaca o códice,
pelo qual o livro se fez mais acessível permitindo ser folheado en-
quanto “a mudança verdadeira se realiza quando as folhas de per-
gaminho passam a ser, não mais enroladas, e sim sobrepostas, es-
critas nas duas faces, unidas mediante uma costura à esquerda e
mais tarde recobertas por uma capa, tomando portanto um aspec-
to bem semelhante ao que até hoje se conserva.”43 Lins chama a
atenção precisamente para a passagem da domesticidade à publi-
cidade que a ultrapassagem desta fronteira técnica representa:

Contemplem-se os degraus interpostos entre as


habitações humanas e o leito da rua; os muros e jardins
em torno dos palácios; as calçadas largas diante dos
templos e, no interior das igrejas, a extensão da nave
entre o pórtico e o altar-mor. Sempre um resguardo,
uma fronteira material busca isolar do século as coisas
permanentes ou aquelas para as quais desejaria o
homem uma vida que ultrapassasse a duração da sua.
Tais espaços, ungidos de perenidade, são postos de
algum modo fora do alcance do tempo, do fluir
devorador dos acontecimentos. O livro, com o rolo e
mais tarde, com suas folhas costuradas, reflete esta
obscura intenção.
Certamente, o que separa a defesa da maior duração do livro
por Lins, de sua abertura à comunicação levada ao “triunfo da cir-
cunstância” por Mallarmé, é a diferença do momento histórico,
quanto aos valores de culto e aos valores sociais afetados pelas
mudanças nas trocas econômicas, com uma indústria cultural que
afeta radicalmente a percepção estética dos antigos leitores/novos
consumidores. No desmembramento capitalista que corta as con-
tinuidades habituais antigas para produzir descontinuidades de um

51 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


44
Vincent Kaufmann, Le livre et ses modo de produção fragmentário, a folha acaba se soltando do li-
adresses, p. 42 vro para o jornal assim como os cadernos de um livro encadernado
45
Machado de Assis, “O caso do dariam lugar às séries de revistas.
Romualdo”, Obras Completas vol. II,
org. Afrânio Coutinho, RJ: Aguilar, p.
911. 6. A estética do efêmero e suas leitoras

Disfarçado em cronista da moda em La Dernière Mode,


Mallarmé lança oito publicações por subscrição desta revista, e,
no que Kaufmann considera um gesto contraditório de sua parte,
prescreve às suas leitoras, sob uma série de rubricas indicando a
sua função em relação ao modo e à sua ordem de leitura, o seu
lugar em relação ao que elas são convidadas a ler. Saltam à vista
tanto o fato de, em uma das rubricas, Mallarmé se referir ao fato de
que não existem mais leitores e sim leitoras, propondo-se à valori-
zação de suas identidades femininas, além de elogiar uma prática
distraída da leitura. Na revista, propõe, a despeito de que as apa-
rências lhe dêem um caráter frívolo, comentar o gosto da atualida-
de, além das obras do espírito, dando às mulheres o seu parecer
sobre os perfumes, as jóias ou os personagens de uma obra. Aque-
les ou aquelas que seguem a moda são “falados” por ela, o que a
reconcilia a um tipo de ritual onde o simulacro se casa à sua pró-
pria verificação. Quanto ao seu comentário, por exemplo, sobre
uma túnica-écharpe colante que se vê nas ruas todos os dias,
Kaufmann observa que já estando a moda na rua, não haveria mais
o que dizer pois amanhã ela não estaria em lugar nenhum, ao ser
apagada por uma outra. O crítico ainda observa quanto à estética
ligada ao efêmero do cronista Mallarmé, que ela permite materiali-
zar a “aparência falsa de presente” que o escritor explora como a
analogia entre a lógica temporal à que se submete a moda, e a que
se implica pela circulação da escritura mesma. De fato, os ganhos
principais desta obra dita circunstancial de Mallarmé representam
um ápice enquanto jogo do “simbólico”: colocar em seu lugar a
ficção como dado garantido, sublinhada em específico através do
humor e da ironia. O caráter efêmero da moda possibilitaria so-
nhar a intemporalidade do livro.44
Do lado da moda efêmera favorecida pela freqüência com que
a morte a visita, Walter Benjamin definiria esta túnica-écharpe de
Mallarmé, em sua “falsa aparência de presente” como uma
fantasmagoria mercadológica indicativa de suas perdidas origens
arcaicas, de culto, que, com o desuso, leva-a a ser exibida em seu
novo valor de troca, em sua forma residual, mercadoria para con-
sumo de moda efêmera, sujeita a ser substituída por outra.. Interes-
sante é a comparação do manuscrito, anterior à chegada da im-
prensa, por Machado de Assis, a uma “túnica flutuante” (como uma
referência arcaica, cujas origens remontam às túnicas gregas) que
só se fixaria (o que resulta em ilusória expectativa) com a impres-
são.45 Outra analogia de flutuação efêmera estaria precisamente
entre o manuscrito e o leque: se ambos têm o valor de uso em seu
manusear, o último passa ao valor de troca, já em suas séries (os
panfletários, os artísticos, os decorativos, etc) como fatias fragmen-
tárias que se abrem isoladas umas das outras, já como signo de
atração do sexo oposto, que toma a parte pelo todo. Quando isto
acontece, passa de seu feitiço antigo ao erotismo publicitário, e de
“terceira mão da mulher”, torna-se fetiche, voltando-se às trocas
lucrativas industriais, como indica um artigo sobre os leques cujo
autor se vê no afã do colecionador frustrado em recuperar as suas
origens perdidas:

travessia 40 / outra travessia 1 52


46
Aqui, confesso que tinha vontade de escrever uma A Estação, Jornal Illustrado para a
história de leque, em todas as suas formas, em todas Família. Editores Proprietários
Lombaerts & Comp., Agência Geral
as civilizações; mas confesso também que não sei nada
para Portugal, Livraria Chardon:
a este respeito. Conheço as ventarolas antigas, e assim Porto, 1884. “Os nossos leques”
as dos povos asiáticos; mas a bagagem é magra para (pseudônimo Nhonhô), in A Estação,
viagem tamanha; deixemos partir o trem, e fiquemos n. 29, 31 de outubro de 1884.
na estação, na Estação.46 47
Walter Benjamin, Rua de Mão
Única, Rubens Rodrigo Torres Filho,
Este periódico brasileiro – A Estação – poderia ser comparado Obras Escolhidas III, São Paulo, Ed.
ao La Dernière Mode de Mallarmé, não só por se dirigir a leitoras e Brasiliense, 1997, p. 41.
não a leitores e, daí, ter exclusiva recepção feminina, mas também 48
Gilles Deleuze, A dobra Leibnitz e
por que seu conteúdo era o gosto da atualidade, as modas, em sua o barroco, SP: Papirus, 1998
estética distraída, efêmera e frívola. Tinha, além disso, resenhas
sobre uma ou outra obra literária lançada, ou a publicação de fic-
ção curta, como contos. Talhadas pelo figurino moderno das refor-
mas industriais e do valor de troca capitalista, estas publicações
periódicas que tinham como objetivo a “monetarização da idéia”
não se dirigiam às mulheres por acaso. Indicavam, ao contrário,
que a saída das mulheres às ruas, tanto como prostitutas (Baudelaire
as considerava a quintessência da cidade moderna) objetificadas
nas mercadorias, como também enquanto trabalhadoras, ou peças
da máquina do capital industrial, ou ainda mesmo como artistas,
cantoras de ópera e donas de casa que abriam seus salões ao
mecenato das artes, demandavam, antes um olhar estético que se
orientasse pelo movimento do consumo de um progressismo téc-
nico nas reformas e modas, visando os mesmos fins do culto ao
consumo, do que pelos cultos de antigos símbolos patriarcais. Neste
caso, o olhar que conservava ainda os antigos cultos ficava relega-
do ao campo masculino.

7. A estética do fragmento: o leque, forma residual do livro,


ur-forma das revistas

Leque. Ter-se-á feito a seguinte experiência: quando


se ama alguém, ou mesmo quando se está apenas
intensamente ocupado com ele, encontra-se quase em
todo o livro seu retrato. E, aliás, ele aparece como
protagonista e como antagonista. Nas narrativas,
romances e novelas, ele comparece em metamorfoses
sempre novas. E disto se segue: a faculdade da fantasia
é o dom de interpolar no infinitamente pequeno,
descobrir para cada intensidade, como extensiva, sua
nova plenitude comprimida, em suma tocar cada
imagem como se fosse a do leque fechado, que só no
desdobramento toma fôlego e, com a nova amplitude,
apresenta os traços da pessoa amada em seu interior.47
O ato de abrir e fechar o leque, a partir da singularidade simbó-
lica de uma só dobra proliferadora de múltiplos sentidos, ilustra,
em seu modo de produção, a significação artística de unidade na
multiplicidade alegórica nas dobras48 entre arte erudita e artesania
popular, virtuosismo e utilitarismo, ornamento e funcionalismo, arte
orgânica e industrial. Teoricamente, o leque se faz visível e inteligí-
vel, legível e sensível, ostentando ele próprio, em sua reversibilidade
dentro/fora, uma dobra entre o objeto e o sujeito e a idéia ou espí-
rito que dele emana. Modo de ver e de ler, entre enunciado e
enunciacão, de uma só vez prática e teoria, objeto como extensão
do sujeito (objéctil) ele encarna barrocamente o conceito de dobra

53 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


49
Gilles Deleuze, A dobra Leibnitz e que desenha, remetendo à estrutura filosófica da mônada, segundo
o barroco, pp. 17-19. Leibniz.49 Como objeto oriental de uso feminino cujo valor simbó-
50
Jacques Derrida, “La frivolité lico se transforma no valor utilitário de troca durante a intensifica-
même” in L’Archéologie du frivole, ção da moda no século dezenove ocidental, ele é historicamente
Paris: Galilée, 1990, p. 122: “La contemporâneo da expansão capitalista com a revolução industri-
frivolité consiste à se payer des
al. Usado para alívio de calor durante o verão, analogamente ao
jetons. Elle naît avec le signe ou
plutôt avec le signifiant qui, de ne folhetim dos jornais, nos inícios da reprodutibilidade técnica, de-
plus rien signifier, n’est plus um sencadeia suas dobras episódicas e prolifera as suas séries enquan-
signifiant. Le signifiant vide, vacant, to panfleto revolucionário, enquanto propaganda industrial de con-
inutile.C’est Condillac qui le dit.” “A sumo, enquanto cartão postal ou mensageiro de recados. Maleável
frivolidade consiste em se pagar e rígido, move-se para frente e para trás no vaivém das mãos para
fichas. Ela nasce com o signo, ou
antes com o significante que, de não agitar o vento, e se distancia de seu propósito de uso (de abanar-se
significar mais nada, não é mais um por calor) ao se aproximar do gesto frívolo50 de coqueteria: distraí-
significante. O significante vazio, do de sua função significante de economia doméstica, junto com
vago, inútil. É Condillac que o diz.” as mantilhas que cobriam a cabeça, os biombos, os xales, as luvas
Logo após: “Une philosophie du e as capas que protegiam do exterior, o leque passa modernamente
besoin – celle de Condillac –
organise tout son discours em vue de
a assumir o gesto erótico sedutor que anuncia a sua saída para a
la décision: entre l’utile et le futile.” rua: ao abrir-se, assinala inibição, esconde o rosto ou a intimidade.
(p. 123): “Uma filosofia da necessi- Contrariamente, ao fechar-se, mostra o interior, o rosto nu que se
dade – esta de Condillac – organiza expõe.
todo o seu discurso em vista da
decisão: entre o útil e o fútil.”
As analogias entre livro, folhetim, revistas e leque falam elo-
qüentemente destas passagens de um erotismo doméstico a um
51
Jacques Derrida, Dar (el) tiempo erotismo de publicidade, a partir de suas economias simbólicas,
La Moneda Falsa . Trad. Cristina
Peretti, Barcelona, Buenos Aires,
no transitar dos modos de produção manufaturados e orgânicos,
México, Paidós Ibérica, 1995. de primeira natureza, aos modos de produção industrializados e
inorgânicos, ou de segunda natureza. Como as folhas que se sol-
tam dos galhos naturais de uma árvore genealógica, ou as fatias
dobradas no encadeamento do leque, as folhas do livro dantes en-
corpado e encadernado, se soltam para as das revistas. Enquanto
objeto, o livro, como o leque, se desfolha pelas mãos e se destaca
pela domesticidade pré-industrial de suas folhas costuradas. No
sentido de leitura, no entanto, o leque tem suas folhas encurtadas e
suas mensagens passam a ser codificadas nos gestos do sujeito que
o manipula, perdendo em profundidade interior e ganhando em
exterioridade superficial. Daí ser análogo ao fragmento, ao folhe-
tim episódico, às séries fragmentárias das revistas. Como o folhe-
tim, se faz mais desejado quanto mais enigmático em seus mistéri-
os e formas de suspense, prenunciando o episódio seguinte assim
como um rosto feminino que se esconde atrás de um leque, em seu
recato oriental, pode atrair o desejo do olhar por entre as brechas
vislumbradas ou adivinhadas através de suas dobras. O leque
trivializa a grande arte e inaugura a circunstância, como o folhe-
tim, a crônica, o cartão postal, as revistas ilustradas.
Na passagem de mãos das economias simbólicas às capitalis-
tas, o uso do leque enquanto um signo feminino de sedução equi-
vale ao uso da bengala ou do charuto, objetos de uso masculino
que também perderam o seu significado doméstico de cavalheiris-
mo originário. Segundo Jacques Derrida em “A poética do tabaco”,
o fumo do tabaco se diferencia por constituir-se em símbolo dos
símbolos masculinos, ou selar uma aliança masculina com a hu-
manidade, cuja troca se economiza no limite do espaço de exclu-
sividade dos homens de sexo masculino.51 Assim, se poderia dizer
que em seu poema Chama e Fumo Bandeira dedica a sua lealdade
masculina ao fumo, o que se contrasta à efemeridade feminina da
chama de amor ardente, nas três estrofes aqui transcritas:

travessia 40 / outra travessia 1 54


52
Chama e Fumo Linda Hutcheon, “Where there’s
smoke there’s...”, in Opera, Desire,
Amor-chama, e depois, fumaça... Desease, Death, Lincoln and
London: University of Nebraska
Medita no que vais fazer: Press, 1996, pp. 161 e 183.
O fumo vem, a chama passa...

Gôzo cruel, ventura escassa,


Dono do meu e do teu ser,
Amor-chama, e, depois, fumaça...

Tanto ele queima! E, por desgraça,


Queimado o que melhor houver,
O fumo vem, a chama passa...

O leque, em contrapartida ao fumo, é signo de atração do sexo


oposto, para além do objeto artístico original cujo valor de uso se
transforma, desde então, em valor de troca. O leque é chama, é
puro apelo, é entrega ou abandono completo ao sentimento de
prazer no sentido cuja raiz é livro ou livre, em francês: délivrer,
livrer. Como a auto-referencialidade do poema sugere, lê-lo é dei-
xar-se queimar pela ardência de seus versos, virar fumaça. Quanto
ao leque, a sua forma artística se prostitui ao entregar-se à
efemeridade da oferta à venda e o histórico das suas origens ou se
perde (vira fumaça), ou se transforma em item de colecionador. Por
isso também, as modas femininas nascem e morrem como um li-
vro que se abre e que se fecha, aproximando-se ao desfolhar supér-
fluo e efêmero de revistas. Entre o tempo patriarcal do ócio antigo,
cujos hábitos selavam laços masculinos com a humanidade nas
trocas do fumo de tabaco, e o tempo do negócio moderno, com o
desenvolvimento do hábito do cigarro industrial pelas mulheres,
os papéis se invertem, no sentido em que as mulheres, saindo de
seu âmbito doméstico, no período do auge da industrialização,
enquanto operárias e consumidoras, vítimas do choque e colabo-
radoras da máquina capitalista industrial que o produz, se viciam
primeiro na forma de contra-choque do tabaco mais apropriada
aos intervalos menores de entre-choques automatizados em que o
tempo de ócio diminui, descontínuo. Esta forma moderna, ao acom-
panhar a eficiência temporal da fábrica, se encurta no cigarro, ou
cigarette.
Este valor de uso viciado confunde-se ao signo de troca femini-
no ligando sexualmente o tabaco às mulheres fumantes, a partir da
ópera Carmen de Bizet. Produtoras e consumidoras, confundidas
aos objetos sexuais, sua saída de casa e sua entrada simultânea para
o tempo rápido da produção industrial na fabricação do tabaco re-
gistra-se assim: “Expressões coquettes! / Todas fumando, da ponta
dos dentes, / O cigarro.”52 Lê-se em João Cabral de Melo Neto:

55 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


53
João Cabral de Melo Neto, Sevilha A Fábrica de Tabacos
Andando, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1989, p. 49.
54
Para fábrica de tabacos,
Michelle Perrot, Mulheres Públicas,
trad. Roberto Leal Ferreira, São Fernando Sexto edificou
Paulo: Fundação Editora UNESP, o que mais parece um convento
1998, p. 44.
Que fosse sem Regras e Prior.

Lá trabalharam as cigarreiras,
quase nuas pelo calor,
discutindo, freiras despidas,
teologias de um certo amor.

Enquanto enrolavam cigarros,


se trocavam jaculatórias,
com palavras desse amor cru
omitidos pelas retóricas.

Lá um tempo trabalhou Carmen,


adensando mais a atmosfera
de sexo, de carne mulher,
que isso tudo emanava dela.

Sobre o portal um anjo de pedra:


pronta, na boca, uma trombeta.
faria soá-la, se dizia,
se um dia entrasse uma donzela.

Hoje, não há mais operárias.


hoje em dia, é a Universidade.
Tudo mudou, exceto o anjo
que mudo ameaça ainda, debalde.53

Na invasão da casa pela rua, o entrelugar dentro/fora transicional


entre um patriarcalismo antigo e um capitalismo moderno transfor-
ma o cavalheirismo antigo em truculência e a sedução feminina
troca o leque pelo cigarro, em seu gesto de conquista mais atual,
passando da mão à ponta dos dedos. Um quadro espanhol repre-
sentativo da passagem da mulher à rua, pintado por Francisco
Masriera y Manovens (1842-1902) Jeune Fille avec cigarrette ou
Jeune Fille Reposant (Cason del Buon Retiro, Madri, 1894) encena
uma moça repousando com as duas mãos ocupadas com gestos de
ócio contraditórios: com uma mão ela segura um leque e com a
outra, um cigarro.54 Esta imagem faz transitar a dobra dentro/fora
da mulher para a modernidade através de dois objetos incompatí-
veis, ou signos eróticos disjuntivos: o leque, proteção do fora, ante-
rior ao cigarro, vem de um tempo de elaboração de técnicas do-
mésticas de conquista erótica social, enquanto o cigarro, em sua
forma fálica, inorgânico, ao entrar no corpo orgânico, dobra-o ra-
pidamente ao seu paladar padronizado destituindo-o de sua
unicidade. Passa-se pois, de um hábito de linguagem gestual de
sedução ou “arma sutil e agilissima” da antiga “esgrima amorosa”
(Fernando Ortiz) ou de um cetro com que um sujeito soberano
atraía o seu objeto, a um moderno e fálico vício sedutor que apro-
xima a estética feminina da masculina.

travessia 40 / outra travessia 1 56


8. Conclusão: leitura cúmplice, leitura distraída 55
Jorge Luis Borges, “La Biblioteca
de Babel” in Ficciones, Buenos Aires:
Quizá me engañen la vejez y el temor, pero sospecho Emecé, 1956.
que la especie humana – la única – está por extinguirse 56
Ana Luiza Andrade, “Uma leitura
y que la Biblioteca perdurará: iluminada, solitaria, cúmplice: a função do duplo em
infinita, perfectamente inmóvil, armada de volúmenes ‘Meu Sósia’ de Gastão Cruls” in
preciosos, inútil, incorruptible, secreta.55 Kentucky Romance Quarterly 28,
1981, pp. 417-425.
A linguagem ao infinito que Blanchot observa em Borges proli- 57
Julio Cortázar, Rayuela, Buenos
fera-se a partir do espaço da biblioteca. O ato da leitura (o espaço da Aires: Sudamerica, 7a. edición, 1968,
biblioteca) busca a ficção como objeto de desejo. Em “Pierre Menard, pp. 453-454.
autor del Quijote” através do uso metafórico da “duplicidade” justa- 58
Aqui Derrida fala a respeito do
põe-se uma realidade de autor a uma de ficção, que passa a existir exercício do pensamento na
com direitos próprios (dupla) independentemente de que sua relação universidade, em período de “crise”,
com ele faça supor um processo de leitura de uma escritura: assim a decadência ou renovação da
leitura do protagonista do século XX (que supõe sua ficção de século instituição, justamente quando existe
a provocação para se pensar em sua
XX) supunha a leitura do original de D. Quixote de Cervantes. Também memória e seu futuro. In O Olho da
na ficção de Cortázar, por meio da busca de um “outro”, seu duplo, Universidade, p. 156.
expande-se o “eu” na contraposição de dois níveis de realidade, um 59
Derrida fala da disseminação de
deles irrompendo inesperadamente no outro, desarticulando a rotina,
brancos em Mallarmé, da série neve,
transformando-a em fantasia, aventura, ato de leitura. Este é o processo cisne, papel, virgindade, que produz
de leitura de uma escritura em que o autor se anula em seu ponto zero. uma estrutura tropológica circulando
Por isso, o enigma deste duplo, a ser decifrado pelo leitor, coincide ao infinitamente sobre ela mesma, com
ato de buscar na biblioteca, ambos escritores exigindo um leitor cúm- a própria dobra do branco enquanto
marca e vazio. In La Dissémination,
plice na tarefa criadora da escritura, onde leitor e escritor coincidiriam
p. 290.
na experiência de leitura ficcional como se um fosse o duplo do ou-
60
tro.56 Para Cortázar, enquanto o “lector-hembra” (leitor-fêmea) fica com Jacques Derrida, “Freud e a cena
a fachada e até com o trompe l’oeil, o “lector-cómplice” (leitor cúmpli- da escritura” in A Escritura e a
Diferença, SP: Perspectiva, Debates
ce) busca e engrandece o mistério que o autor de um romance monta 49, 1967, p. 179.
através do deciframento de suas pistas.57
61
Clarice Lispector , Água Viva, Rio
A escritura parece coincidir à dobra do ato de leitura “hembra- de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p.
cómplice” – termos residuais de estéticas de fim-de-século, remis- 18: “E doidamente me apodero dos
sivas à frivolidade feminina do leque e ao aprofundamento mascu- desvãos de mim, meus desvarios me
lino no livro, respectivamente ao que era considerado móvel, sufocam de tanta beleza.” Parece,
efêmero e fútil em relação ao imutável, ao permanente e ao útil –, como no livro inteiro, descrever
enquanto cria os movimentos da
cruzando modernamente necessidade e desejo em seus contínuos escritura dobrada sobre si mesma.
movimentos de separação e união com o significante. Pode-se, pois,
relacionar estes movimentos escriturais às entredobras de ficção e
teoria, fundo e forma, metáfora e metonímia, espírito e matéria, na
cadeia virtual livro, leque, folhetim e revistas. Como o movimento
antigo de abrir e fechar o leque, as pálpebras dos olhos ao se abri-
rem e se fecharem ou até ao se “entrefecharem” na descrição da
sedução em epígrafe de Clarice Lispector, como um ato de fumar
de olhos entrefechados pela prostituta imitada pela narradora, no
início deste ensaio, descrevem uma mudança de um tempo de re-
flexão para um outro tempo, “heterogêneo àquilo que reflete e tal-
vez dê tempo para aquilo que se chama o pensamento.” Este vem
substituindo a sedução do leque, com “a sorte de um instante, (...)
de um piscar de olhos ou de um bater de pálpebra”.58
E se dantes, como Mallarmé nos recorda, havia a desvirginação
das páginas do livro com o corta-papel, hoje a leitura necessita de
muita tesoura e cola virtuais para ligar citações, e citações de cita-
ções, tratando-se de uma escritura que perde os direitos de propri-
edade para o anonimato, fragmentando-se cada vez mais, numa
disseminação de brancos.59 Ler e escrever, como recortar e colar,
também se tornam, enfim, partes de uma mesma dobra que vai do
inconsciente ao consciente60 cuja memória se junta e se recompõe
no papel, esta dobra ou jogo de escritura que ao desejar, endereça
o corpo ao objeto ausente assim como, com o espírito, abraça o
objeto presente, e se desdobra em desvãos61, nas asas do papel.

57 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


travessia 40 / outra travessia 1 58
MEDIAÇÕES E MEDIDAS:
O ENTRE-LUGAR DA INTERPRETAÇÃO
Ettore Finazzi-Agrò
Universidade de Roma “La Sapienza”

Estou dirigindo, há anos, duas revistas italianas sobre as cultu-


ras de língua portuguesa. Os nomes indicam, por si mesmos, os
objetos investigados por elas: a primeira – e a mais antiga, visto
que já vai no vigésimo primeiro ano de idade – intitula-se Letterature
d’America e trata das culturas hispano-americana, anglo-america-
na e brasileira, com números monográficos saindo com cadência
trimestral e com um quarto número, chamado Tuttamerica, em que
um tema único, escolhido pelos redatores (o próximo, por exem-
plo, vai estudar a importância da Bíblia nos diferentes âmbitos cul-
turais americanos), é tratado a partir das várias perspectivas nacio-
nais; a segunda revista, por contra, tem por título Studi Portoghesi e
Brasiliani, é anual (acaba de sair o terceiro número) e analisa todas
as culturas de língua portuguesa. Este imenso trabalho editorial tem,
obviamente, o seu lado, por assim dizer, “manual” e obscuro (como
a leitura e a correção das provas), mas obriga-me também a refletir
e a redefinir continuamente o meu estatuto de estudioso italiano
das literaturas lusófonas e, mais em geral, me impõe um trabalho
constante de revisão da minha função e do meu lugar de interme-
diário cultural.
O meu intuito é o de expor aqui, embora de modo ainda precá-
rio e incompleto, as minhas (escassas) opiniões e as minhas (nume-
rosas) dúvidas sobre a questão da mediação e sobre a prática de
estudo e divulgação de textos e autores estrangeiros num contexto
cultural que os desconhece ou que os conhece de modo superfici-
al e confuso – porque, afinal de contas, é este o meu trabalho diá-
rio na sala de aula. É fatal, aliás, que eu me refira sobretudo ao
ensino e à difusão da cultura brasileira na Itália, visto que é neste
âmbito que eu devo enfrentar as dificuldades maiores (o exotismo
europeu em relação ao Brasil, com efeito, mudou talvez na sua
forma exterior, mas não, com certeza, no seu caráter “pré-
conceituoso”).
Nesta perspectiva, é bom precisar de modo prévio que eu con-
tinuo analisando a cultura brasileira do meu ponto de vista de ita-
liano e, ao mesmo tempo, tento explicar a realidade brasileira, para
os meus alunos e para os leitores das revistas, me colocando do
ponto de vista de um brasileiro. Acho, com efeito, que o meu “lu-
gar” é justamente esta margem ambígua, esta passagem na qual
estou obrigado a me deter, sem ir além – órfão de história (da
minha história) e, por isso, sem passaporte –, mas também sem me
fechar no aquém, sem me enclausurar numa hipotética centralidade
da cultura européia, o que me levaria a interpretar e divulgar o
discurso cultural brasileiro numa perspectiva simplificadora e
esquemática, marcada, mais uma vez, pelo preconceito.
O espaço cultural em que eu vivo e opero pode, de fato, ser
encarado como uma dimensão não medível, ou melhor, pode ser
definido só pela ausência de definições, se determinando apenas
nos limites, se materializando nas bordas entre espaços diferentes.
E aquilo que eu quero é, justamente, continuar suspenso entre o

59 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


aqui e o ali, baloiçando entre os lugares, na liberdade infinita e na
infinita limitação desse entremeio que se localiza – sem se situar,
isto é, sem nunca se constituir em “sítio” – entre duas geografias
intelectuais e artísticas, entre duas cronologias histórico-culturais,
apresentando-se, às vezes, como amplamente heterogêneas e sen-
do, ao mesmo tempo, profundamente interligadas.

***
Quando me ocorre de pensar no meu ofício, isto é, na questão
da mediação cultural e nas minhas experiências neste âmbito, me
acode às vezes o título de um filme inglês já velho (saiu em 71), de
Joseph Losey, tirado de um romance de Leslie Poles Hartley e adap-
tado para o cinema (mediado, então, por sua vez) por Harold Pinter.
O título original dessa belíssima obra, que o distribuidor italiano
traduziu, ou melhor, substituiu com Mensageiro de amor, era na
verdade The Go-between, termo que poderíamos traduzir com o
português “intermediário”, perdendo todavia algo desse movimen-
to, desse “ir-entre” que a palavra inglesa encerra e indica.
O tema tratado no filme de Losey parece, aliás, bastante lon-
gínquo daquele que se poderia supor ser o assunto da minha refle-
xão – visto que, afinal de contas, eu deveria sobretudo estar pen-
sando na minha prática de divulgação de literatura brasileira num
país europeu como a Itália. Mas achei sempre que fosse importan-
te não deixar cair logo a sugestão escondida nessa associação sú-
bita entre uma imagem (“o ir-entre”) e uma função (a mediação
cultural), sem pelo menos verificar se existe um modo de tornar
produtiva esta conexão. De fato, The Go-between conta a história
de um adolescente que vai passar o verão do ano de 1900 na man-
são de um seu amigo do college. Ali, sem ter plena consciência
disso, ele se torna aos poucos o mensageiro dos recados amorosos
trocados entre uma jovem aristocrática e um feitor da fazenda.
Quando o namoro é descoberto, o camponês é mandado embora
com desdouro e também o jovem é afastado da vila. Claro que o
filme denuncia, sobretudo, as rígidas convenções éticas e sociais
da época vitoriana e a hipocrisia das suas regras formais, mas atrás
desse retrato negativo é possível descobrir, a meu ver, alguma coi-
sa a mais.
Aquilo que eu acho sensível no filme, é de fato a atmosfera de
“trânsito”, de “passagem” que nele respiramos: em primeiro lugar,
a história é suspensa entre dois planos temporais, entre o passado
e o presente (os protagonistas, já velhos, relembram e contam para
o público aquele verão dramático); em segundo lugar, é significati-
vo o ano em que tudo acontece – ano suspenso entre dois séculos,
ano marcando uma transição entre duas épocas; em terceiro lugar,
o jovem protagonista se encontra numa idade intermédia (o ro-
mance de Hartley, intitulado, também ele, The Go-between foi tra-
duzido, com efeito, para o italiano com o título A idade incerta –
confirmando, entre outras coisas, uma certa dificuldade em en-
contrar uma tradução fiel do substantivo inglês); ele se situa, então,
entre a infância e a adolescência. Se tudo isso tem um sentido, o
filme carrega, a meu ver, significados mais amplos, não ligados
simplesmente a uma crítica dos costumes vitorianos, mas à repre-
sentação de uma situação liminar, ondeante entre dois tempos e
dois espaços. E assim a imagem apontada pelo título se identifica e
se confunde com a função: The Go-between seria o sinal concreto,
o índice lingüístico de uma situação liminar que une e separa cul-
turas diferentes, entre as quais se coloca ou “vai” um personagem
“incerto”, que vive até o fim esta condição mediana e de media-
ção.

travessia 40 / outra travessia 1 60


Nesta perspectiva, acho bastante evidente a razão pela qual,
refletindo sobre o meu papel de divulgador da cultura brasileira na
Itália, me lembro às vezes do filme de Losey e do seu título: porque
também eu (mesmo não sendo com certeza um adolescente) sou
levado a me identificar inconsciamente com aquele que, de modo
hesitante, incerto, “vai-entre”. Mediar entre culturas, com efeito,
me parece uma atividade errática que, colocando-se num centro
hipotético, na verdade, não tem centro ou descobre a vacuidade
de qualquer noção de “centro”; uma função, aliás, que, se identifi-
cando num limite, numa fronteira, desconhece todavia as frontei-
ras – uma prática sem garantias, então, impedindo a equidistância;
um trabalho, afinal, perenemente suspenso entre a proximidade e
o afastamento, entre o rigor e a liberdade.
Escrevendo isso, obviamente, me dou conta de que esta incer-
teza poderia ser a mesma que afeta o trabalho do tradutor, mas eu
acho justamente que mediar entre culturas e traduzir um texto po-
dem ser encaradas como experiências afins. Elas exigem de fato,
por parte de quem as pratica, por um lado, uma fidelidade absolu-
ta ao objeto, pelo outro, uma capacidade subjetiva de colocar,
reinventando-o, esse mesmo objeto num contexto (lingüístico ou
cultural) que é fatalmente “outro”. Em ambos os casos, na tradução
e na mediação, a gente tem a ver com atividades altamente arrisca-
das, obrigando aquele que “vai-entre” os textos (e entre os discur-
sos, e entre as instâncias…) a ficar numa condição suspeita e
suspensa, numa espécie de vazio que nada pode preeencher.
Esta situação duvidosa depende, evidentemente, de uma ambi-
güidade fundamental e de fundo que é própria da mediação/tradu-
ção, visto que se existem normas a serem respeitadas, existe tam-
bém uma inevitável latência do sentido, uma margem de indecisão
que nenhuma norma pode ajudar a apagar por completo. No caso
da tradução, tudo isso é bastante claro: as palavras são, obviamen-
te, refratárias a uma transcodificação completa, a um espelhamento
sem restos – e não só no caso da linguagem literária, mas também
naquele de outras linguagens especializadas (razão pela qual, diga-
se de passagem, todas as tentativas de uma tradução automática
são destinadas a naufragar, freqüentemente, no grotesco). Também
no caso da divulgação de uma cultura num contexto outro existe,
todavia, o mesmo perigo que se liga, mais uma vez, a uma impos-
sibilidade de fazer passar para uma situação cultural diferente ele-
mentos próprios de um espaço, de um tempo, de uma sociedade
peculiares. Posso dar um exemplo banal, que ocupa os dois cam-
pos (o lingüístico e o cultural), me referindo a uma palavra como
sertão: palavra de fato intraduzível (pelo menos nas línguas que eu
conheço) e que define também uma dimensão sócio-cultural, his-
tórico-geográfica, além de literária, peculiar, dificilmente compre-
ensível para um europeu. Claro que a gente pode chegar a dar uma
idéia bastante completa daquilo que sertão realmente significa, mas
tudo aquilo que nessa idéia é implicado ou implícito, fica inevita-
velmente mergulhado numa latência de sentido que nenhuma nor-
ma ou código podem reduzir a um grau zero da diferença, a uma
completa indiferença ou identidade de significado. E isso sem falar
em palavras que estão incluídas naquela palavra-guardachuva ou
nas imagens que a figura do “sertão”, por assim dizer, constela, tais
como seca, vereda, jagunço, retirante, etc, cada uma das quais
expõe ao mesmo perigo de inconcludência ou de incompreensão.
Transvasar um elemento tão importante, na sua latência (que é
própria, aliás, também da cultura brasileira), para um significado
pontual numa outra língua se apresenta, por isso, como uma tare-
fa, não apenas difícil e arriscada, mas impossível. Tanto assim que,

61 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


1
João Guimarães Rosa, Correspon- se for preciso instituir uma analogia “científica” para o trabalho de
dência com o tradutor italiano, São mediação, eu diria que esse ir-entre culturas diferentes, mais que a
Paulo: Instituto Cultural Italo-
uma operação química, remeteria para uma espécie de opus
Brasileiro, 1972.
alchemycum, isto é, para uma tentativa de transmutação mágica
2
Como todos sabem, a tradução da essência originária para uma essência diferente. E a nossa pro-
inglesa saiu com o título: The Devil
cura, a procura de uma tradução absoluta e/ou de uma mediação
to Pay in the Blacklands [New York:
Knopf, 1963]. A tradução francesa completa, se assemelharia, nesse sentido, à busca da pedra filosofal:
foi publicada sob o título: Diadorim daquela Rebis, afinal, que sendo uma “coisa dupla”, permitiria
(“Le diable dans la rue, au milieu du habitar em duas dimensões (em duas línguas, em duas culturas) ao
tourbillon”) [Paris: Albin Michel, mesmo tempo, indo ou circulando entre elas sem se aperceber de
1965]. nenhuma diferença. Busca absurda, obviamente, para o pesquisa-
dor moderno, mas busca que nos confirma, porém, como a medi-
ação pura ou absoluta, metaforizada na res bis, seja uma quête
impossível, excluindo desde o início o conseguimento do seu ob-
jeto.
A conclusão prévia e incontornável, de fato, é que entre dois
contextos tão diversos (como, no meu caso, o italiano e o brasilei-
ro) permanece sempre uma margem de diferença que pode ser
reduzida mas nunca apagada, que os discursos/percursos históri-
co-culturais podem ser, com certeza, confrontados, registrando os
possíveis lugares de encontro, as encruzilhadas eventuais entre sen-
tidos diferentes, mas sem que isso permita chegar a uma anulação
das (respectivas) peculiaridades. Aquilo que eu quero dizer é que,
se podemos talvez medir a distância que se abre e se oculta na
mediação, isto é, se podemos recusar, na prática, uma interpreta-
ção que seja infiel e arbitrária; se, mais em particular, podemos (e
é este, com efeito, um dos trabalhos mais difíceis que eu tenho que
enfrentar diariamente no contexto italiano) se podemos e devemos
censurar todo recurso ao lugar comum, a um exotismo enraizado e
teimoso tentando simplificar a complexidade brasileira, nunca po-
deremos, porém, fazer com que o hiato existente entre as duas
culturas (e as duas histórias, as duas geografias, as duas realidades
sociais…) chegue a desaparecer por completo. A diferença, afinal,
pode ser reduzida a uma pequena fresta – e seria esse o alvo duma
boa mediação cultural – mas sem poder fechar totalmente a porta
da (recíproca) incompreensão, sem poder suturar por completo a
pequena racha separando textos e contextos fatalmente diferentes.
Voltando à tradução para dar um exemplo desta “impossibili-
dade”, eu poderia citar o caso de uma grande tradutor que foi,
aliás, um importante mediador entre a cultura brasileira e a italia-
na. Refiro-me, evidentemente a Edoardo Bizzarri e às suas tradu-
ções das obras de Guimarães Rosa: sabemos que o seu foi um tra-
balho paciente e erudito de transcodificação do texto rosiano e
sabemos, também, da cooperação que ele aviou, por correspon-
dência, com o próprio autor para uma melhor compreensão e tra-
dução da escrita de Rosa. No livro reunindo as cartas trocadas
entre os dois1, temos um testemunho concreto das dificuldades
enfrentadas na prática da tradução e da mediação cultural (em que
entra também uma figura freqüentemente ignorada como o editor
ou o seu representante, tentando – e conseguindo, às vezes – im-
por o seu ponto de vista). O escritor mineiro, como se sabe, ficou
encantado com a tradução de Bizzarri e eu não posso não concor-
dar com ele sobre o valor e a importância da empreitada. Aquilo
que eu devo, apesar de tudo, anotar é que também esse trabalho
“dificultoso”, “difícil: como burro no arenoso”, não conseguiu to-
davia apagar as marcas da diferença. E isso, a partir do título que
aparece mutilado de um dos seus elementos fundamentais: isto é,
se Bizzarri fez questão de manter Grande Sertão (é isso já é alguma
coisa, se pensarmos nas traduções inglesa e francesa da obra2),

travessia 40 / outra travessia 1 62


3
nada pôde fazer para guardar os dois pontos e uma palavra ainda Ettore Finazzi-Agrò, Um lugar do
mais inexplicável para o público italiano como Veredas (o título tamanho do mundo (Tempos e
espaços da ficção em João Guima-
completo foi, de fato, arriscado, que eu saiba, só na tradução espa-
rães Rosa), Belo Horizonte: Ed. da
nhola de Angel Crespo: Grande Sertón: Veredas). Mas, para além UFMG, 2001.
disso, no corpo da tradução aparecem com freqüência interpreta- 4
João Guimarães Rosa, Grande
ções arbitrárias do texto originário: uma das últimas em que topei
Sertão, 3ª ed. Milano: Feltrinelli,
me deu um verdadeiro susto, visto que é um dos elementos sobre 1986, p. 11. Antes da tradução do
os quais apoiei a minha interpretação do romance rosiano.3 De romance (cuja primeira edição saiu
fato, a pergunta inicial e decisiva em volta da qual se enrosca e em 1970), Bizzarri já tinha publicado
cresce a escrita romanesca, ou seja, “O diabo existe e não existe?”, a sua versão de Corpo de Baile
aparece, na tradução italiana, na forma disjuntiva mais tradicional (Corpo di ballo, Milano: Feltrinelli,
1965).
e banalizante: “Il diavolo esiste o non esiste?”4, – escolha que, seja
dito de passagem, confirmou a minha idéia sobre os perigos implí-
citos no papel do Go-between e me obrigou a dar uma aula sobre
“as belas infiéis”, explicando aos meus alunos o caráter fatalmente
traiçoeiro de qualquer tradução.
O caso de Bizzarri, de fato, poderia nos levar a algumas consi-
derações sobre o “lugar impossível” do intermediário, daquele,
enfim, que se colocando num limite é, todavia, obrigado a desco-
nhecer os limites ou, pelo menos, a aboli-los no mesmo ato com
que os reafirma. Acho, nesse sentido, que a imagem mais apropri-
ada da impossibilidade duma tradução/mediação perfeita e sem
resíduos esteja dobrada exatamente nas edições bilíngües, isto é,
no uso do texto bifronte: pôr lado a lado o texto original e a sua
tradução significa, de fato, evidenciar necessariamente aquele bran-
co, aquele vazio que une e separa as duas versões (e os dois tem-
pos, e os dois espaços ocupados por elas) – abismo que não pode
ser colmatado mas que o sentido, porém, deve atravessar para se
reencontrar fatalmente outro, renovado, re-escrito na página su-
cessiva. O agente desta passagem através, desta travessia dos sig-
nos se identifica só nesse trabalho que é ao mesmo tempo “hermé-
tico” e “hermenêutico”, ou seja, etimologicamente, nessa prática
patrocinada pela figura de Hermes/Mercúrio: o deus das passagens,
aquele que guia e desvia, o protetor das estradas cultuado, justa-
mente, na herma, na estátua bifronte colocada nas encruzilhadas.
Figura, enfim, ilocável, ambígua, que faz as ligações entre duas
dimensões sem se situar em lugar nenhum, consistindo apenas na
inconsistência do seu teimoso “ir-entre”.
Hermes, então, como presença numinosa à qual podemos fi-
nalmente ancorar o sentido implícito na ação do intermediário, do
Go-between, sabendo, porém, de antemão que esse deus não tem
propriamente lugar mas se localiza apenas num entremeio, no es-
paço mediano que se abre no confronto/relação entre forrmas cul-
turais heterogenêneas, entre dimensões aparentemente incompa-
ráveis. Como esse deus, de fato, também o mediador é destinado a
não ter nunca um lugar próprio ou fixo, a não ter nunca uma pátria
mas a se colocar, isso sim, entre as pátrias, na fronteira onde senti-
dos diferentes se enfrentam e/ou se misturam. Espaço-tempo incer-
to e inconcludente em que a verdade, porém, às vezes se manifesta
na sua precária evidência, na sua opaca luminosidade, na sua plu-
ral coerência, levando a nos interrogar sobre um aspecto que eu
acho fundamental no papel do intermediário e que eu não saberia
definir senão como o seu lado “ético”.
De fato, são dois os atributos que eu conferiria com certeza ao
“bom intermediário”, ambos encerrando uma conotação de ordem
moral: o respeito e o pudor. Quanto ao primeiro, acho evidente
que qualquer mediador deve ter essa capacidade de olhar atrás e,
ao mesmo tempo, de re-ver (é este, como se sabe, o significado do
verbo latino respiciere) as culturas que ele põe em contato ou em

63 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


5
Sobre esses dois termos, cf. Jean diálogo. O respeito é, nesse sentido, aquilo que se poderia ainda
Starobinski, L’Œil vivant. Paris: definir com o termo resguardo5, isto é, um vigiar obstinado, um
Gallimard, 1961.
tomar continuamente “sob guarda” elementos que o uso incessan-
6
Roland Barthes, Leçon, Paris: Seuil, te, o hábito de olhar em superfície ou do interior da sua própria
1978, p. 26. cultura (da sua própria pátria) deixaria fatalmente escapar, sem in-
terrogar o seu significado mais profundo que se esconde justamen-
te no seu aspeto “trivial”. Um trabalho, então, que poderia ser assi-
milado ao do guetteur barthesiano, ou seja, de quem – ainda como
Hermes –, se coloca na encruzilhada entre os discursos, “en position
triviale par rapport à la pureté des doctrines (trivialis, c’est l’attribut
étymologique de la prostituée qui attend à l’intersection de trois
vois)”.6 A “ética”, como se vê, não deve ter necessariamente um
conteúdo aceite pela moral dominante, pela norma vigente, mas
se referir, por contra, a um ethos, a uma tarefa a ser cumprida com
amor e teimosia, mesmo fora das regras, numa corajosa anomia,
numa arriscada atopia. Só assim, de fato, poderemos entender como
o resguardo, o respeito que devemos aos discursos ou aos textos
seja contrabalançado pelo olhar, pela atenção, pela espera obsti-
nada que eles, os discursos e os textos, reservam aos seus
hermeneutas: respeitar a cultura outra que a gente deve interpretar
e divulgar, significa não apenas ver ou olhar mas ser também vistos
e pré-vistos por ela, já que cada discurso tem respeito para quem o
respeita, é “trivial” com quem sabe “trivializar” os seus elementos
formais ou de conteúdo, ocultados debaixo da superfície ou torna-
dos insignificantes pela inércia do olhar.
Quanto ao pudor, enfim, creio que o objetivo de um paciente
trabalho de mediação é também o de saber medir as distâncias e,
sobretudo, o de manter, de saber guardar a mesura, no sentido que
os antigos trovadores atribuíam a esta palavra, isto é, o conheci-
mento e o respeito daquilo que pode ser dito ou feito em certas
circunstâncias, sem exceder as fronteiras, móveis porém sagradas,
correndo entre instâncias heterogêneas. O mediador, então, não é
apenas aquele que medeia mas é também aquele que mede as
diferenças, ficando na sombra do seu ambíguo “dever-ser” – devo-
tando-se, por um lado, a uma perigosa anomia, mas resguardando,
pelo outro, o seu penoso, quanto necessário, anonimato.
Só assim, a meu ver, só repensando sem fim o seu estatuto “im-
possível” que baloiça entre a fidelidade e a traição, só praticando o
não-lugar que se abre entre lugares diversos, só habitando com
pudor amoral a distância, só ficando suspenso perto do “limite”
entre as culturas (o pudor, de fato, é sobretudo uma epokhé, uma
suspensão do juízo) é que o Go-between vai conseguir talvez des-
cobrir a proximidade entre elas, a sua escondida capacidade de
falar – de falar-entre, obviamente; de nos dizer o segredo que está
inter-dito em qualquer mediação e que apenas o nosso incansável
“ir-entre” pode, eventualmente, nos permitir de enxergar e de tor-
nar escandalosamente evidente.

Roma, julho de 2002.

travessia 40 / outra travessia 1 64


65 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003
travessia 40 / outra travessia 1 66
REVISTAS CULTURALES Y MEDIACIÓN
LETRADA EN AMÉRICA LATINA
Mabel Moraña
University of Pittsburgh;
Directora de Publicaciones, Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana

Desde el contexto actual, sería imposible emprender una 1 Un buen ejemplo de la trayectoria
reflexión productiva sobre la función de la cultura y particularmen- y función de las revistas en América
Latina puede verse en el libro
te sobre el papel mediador de las revistas literarias y culturales de
editado por Saúl Sosnowski, La
América Latina sin atender a dos ejes principales: el primero, tiene cultura de un siglo: América Latina
que ver con la larga tradición continental, que reserva a la prensa en sus revistas, Madrid, Buenos
periódica y luego a las revistas, tanto académicas como Aires: Alianza Editorial S.A., 1999.
independientes, una función principal en el diseño de las culturas
nacionales y transnacionales, y en el asentamiento de las bases
ideológicas y culturales que conforman la noción de ciudadanía y,
más ampliamente, regulan el funcionamiento de la sociedad civil.1
En segundo lugar, sería imposible no reconocer los múltiples y
complejos procesos de resignificación cultural que están teniendo
lugar ante nuestros ojos en el contexto de la globalización, y que
desde hace décadas están modificando sustancialmente el campo
cultural.
Respecto al primer punto, ya ha sido exhaustivamente analizado
el papel que jugaron, en las distintas épocas, revistas que impulsaron
no solamente la cristalización de nuevas formas de subjetividad
colectiva sino la representación de nuevos actores sociales que
surgían a la escena social tratando de definir no sólo una voz a
través de la cual expresar sus perspectivas y demandas, sino inten-
tando al mismo tiempo crear un público que funcionara como sis-
tema de control y caja de resonancia de las nuevas agendas. Para
citar sólo algunos ejemplos, en el siglo XIX, O Jornal das Senhoras,
creado por la argentina Juana Manso en Rio de Janeiro, es una
empresa transnacionalizada de temprano feminismo americano que
nuclea, como alternativa a los proyectos estatales de homo-
geneización ciudadana y patriarcalismo socio-cultural, a un sector
que reclamaba nuevas formas de representatividad política y
representación simbólica. En el siglo XX, la cubana revista de avance
(1927-1930) o Amauta, (publicada “en tres actos” entre 1926 y
1930) en el Perú, son órganos fundamentales en la diseminación y
fertilización del pensamiento marxista en América Latina y en la
redefinición de la relación entre identidades colectivas y gestión
estatal. La famosa Revista de Antropofagia (cuyos 26 números se
publican en dos “denticiones”, entre mayo de 1928 y agosto del
siguiente año) marca a su vez, en el Brasil, un momento fundamen-
tal en la búsqueda de una comprensión productiva de las culturas
nacionales en América Latina y su relación con los proyectos
modernizadores y occidentalistas a nivel continental. Finalmente,
para el análisis de la cultura actual, situada en la encrucijada creada
por el deterioro de la cultura letrada, la globalización y las políti-
cas culturales del neoliberalismo, son imprescindibles los aportes
de revistas como Punto de Vista y Revista de Crítica Cultural (surgidas
en 1978 y 1990, respectivamente), que ofrecen lecturas dispares
pero convergentes de las problemáticas regionales y de su diálogo
con vertientes diversas del pensamiento crítico-cultural a nivel in-
ternacional.

67 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


Como instrumento de mediación cultural (que actúa en la zona
de contacto entre políticas culturales hegemónicas y proyectos al-
ternativos, entre creación artística y grupos receptores, entre el sector
intelectual o académico y el lector que es introducido al producto
cultural a través de la interpretación o la selección que la
publicación le presenta), la revista es casi siempre una empresa
educativa – política y pedagógica – aunque más no sea por las
maneras en que organiza y filtra los relatos de identidad y traza los
vínculos ente el campo cultural y sus afueras (regionales, nacionales,
internacionales). Es, asimismo, un vehículo del gusto de determi-
nados sectores sociales o intelectuales, que buscan proponerlo,
difundirlo, legitimarlo, a través de diversas operaciones
conceptuales, y de diferentes apuestas estético-ideológicas. Y
cuando me refiero al gusto quiero abarcar a todas las selecciones,
elecciones y preferencias – así como a las exclusiones de ciertas
formas de producción cultural – que marcan una determinada
adscripción a la dinámica cultural en su totalidad, es decir, al siste-
ma dominante de valores, ordenamiento social y proyectos políti-
cos que forman el entorno al que la práctica cultural inevitablemente
se refiere. Las polarizaciones entre “alta” cultura y cultura popular
no son ajenas, por ejemplo, a ese establecimiento del gusto, que
depende de la compleja red de producción, reproducción y con-
sumo de mercancías culturales, en las distintas épocas y lugares, y
de los valores que esos productos descalifican o consagran. Al
mismo tiempo, la mediación letrada que la revista asume está
directamente inmersa en la totalidad de la institucionalidad social,
o sea interactúa y depende, en distintos grados y formas, de las
políticas culturales dominantes, ya sea para confirmarlas y ayudar
a su implementación, ya sea para contrarrestarlas con una nueva
visión de los términos en que se define el protagonismo cultural, y
del reconocimiento que merecen sus reclamos de legitimidad polí-
tica y social.
Encabalgada así entre la institucionalidad cultural, las
imposiciones y lógicas internas del mercado cultural, y la definición
de sus propias agendas referidas a la representación y administración
de bienes simbólicos, la revista es una pieza fundamental en el
procesamiento y divulgación de mensajes, la interconexión de
sectores sociales y la canalización de nuevos proyectos que se ven
obligados a negociar constantemente su lugar en la esfera pública.
Por la revista circula y se recicla la tradición, al pasar por la
prueba de nuevos públicos, nuevas lecturas, nuevas demandas. A
través de la revista se producen rearticulaciones del archivo de la
cultura burguesa, y se construyen experiencias de recepción que
exploran las audiencias y tratan de capitalizar o dirigir sus intereses.
También a través de la revista se desafían procesos y políticas,
interpretaciones y programas, proyectos y dinámicas. Se inventan
o se ignoran fenómenos sociales, políticos o culturales, o se
invisibilizan las vinculaciones siempre complejas pero no siempre
evidentes entre esos niveles. O sea, la revista es una pieza central
tanto en la reproductibilidad técnica de relatos, programas y dis-
cursos, como en el fortalecimiento o debilitamiento de su
auratización. A través de esta forma particular de mediación, en
que el crítico es la pieza intermedia entre el producto de arte y su
recepción, y el que trata de gestionar los impactos de la mercancía
simbólica y regular su inserción en el imaginario colectivo, las zo-
nas resistentes a la letra (la oralidad, las formas vastas y variadas de
la cultura popular, los nuevos productos culturales para los que no
existe aún una retórica interpretativa formalizada) enfrentan con la
institucionalidad letrada sus más diversos estatutos, apoyos y re-

travessia 40 / outra travessia 1 68


2
clamos, disputando zonas aunque sea marginales – con frecuencia Gerardo Mosquera indica que “la
de fuerte potencialidad cuestionadora y contracultural – del espacio globalización necesita lenguages,
instituciones, yusos internacionales
público.
que hagan posible la comunicación
Si la representación, tanto simbólica como política, es ya un a escala planetaria”; citado por
campo de batalla por la hegemonía de los discursos, el mercado George Yúdice, “La reconfiguración
traduce esas tensiones a niveles materiales que decretan la de políticas culturales y mercados
culturales en los noventa y siglo XXI
continuidad o desaparición de las publicaciones que compiten en América Latina”, Revista
por el consumidor cultural. Es indudable que los procesos de Iberoamericana, número especial:
globalización han acentuado notoriamente estos fenómenos, Mercado, editoriales y difusión de
complicándolos en la medida en que agudizan desafíos que la discursos culturales en América
modernidad sólo insinuara en la primera mitad del siglo XX, en Latina, Maria Julia Daroqui y
Eleonora Cróquer, eds., LXVII, 197
distintos grados, en las diversas partes del continente. Para empezar,
(Octubre-Diciembre 2001), p. 640.
la globalización necesita lenguages capaces de crear puentes
3
culturales y facilitar la traductibilidad de códigos y parámetros Sobre las modificaciones de la
cultura del libro y los nuevos
valorativos.2 Junto a la variada gama de lenguages y soportes
problemas de la representación
visuales, electrónicos, y sígnicos, las lenguas se sitúan en una literaria, ver Giselle Beigelman, O
competencia no sólo enfrentada a las interacciones multimediáticas, livro depois do livro, 1999 (http://
sino también colocadas ante nuevos conflictos y luchas de poder.3 desvirtual.com/giselle/).
Sería ingenuo pensar que la simultaneidad de tiempos y de espacios 4
Sobre algunos de los desafíos que
que la revolución electrónica ha creado a nivel planetario crea enfrentan las revistas
solamente flujos de integración y de intercambio que democratizan, latinoamericanas o sobre América
sin otras consecuencias, el espacio cultural transnacionalizado. Más Latina en Estados Unidos, ver Andrés
bien, resulta imprescindible enfocar la realidad de nuevas o Avellaneda, “Desde las entrañas:
Revistas de y sobre Latinoamérica en
reforzadas hegemonías que atraviesan el campo cultural globalizado los Estados Unidos”, en Saúl
en un impulso por capitalizar los procesos de resignificación Sosnowski, ed., La cultura de un
discursiva y gestionar las dinámicas de hibridación que se siglo: América Latina en sus revistas,
desarrollan en distintos contextos.4 op. cit, pp. 549-566.
En este sentido, quiero destacar solamente la refuncionalización 5
Yúdice ha hablado de la relación
que se registra en la relación centro y periferia, que en algunos local/global respecto a estos
aspectos podemos hacer equivaler al dualismo ‘moderno’ Norte/ problemas, y de la necesidad de
“una nueva división internacional
Sur, pero que se duplica también dentro de las regiones, a nivel del trabajo cultural”. Ver “La
nacional, entre áreas urbanas y rurales, entre grupos étnicos, reconfiguración de políticas
géneros, sectores políticos, etc. Me refiero a la presión que ejercen culturales y mercados culturales en
en cualquiera de esos terrenos fuerzas hegemónicas en el afán por los noventa y siglo XXI”, p. 640.
monopolizar la representación apelando a la existencia o a la
formación de un público universal, capaz de recibir y aceptar
mensajes o mediaciones manufacturados desde posiciones de po-
der a partir de las cuales los discursos monopólicos intentan reducir,
negar o cooptar la diferencia, que es esencial a la comunicación
cultural.5
En el caso particular de las revistas literarias o culturales que se
producen en Estados Unidos, por ejemplo, las luchas por el
predominio linguístico se conectan directamente no sólo con el
estado actual de lo que tradicionalmente se conociera como “el
hispanismo” o los estudios luso-brasileños en relación al amplio
espacio del latinaomericanismo (entendido éste como la arena en
la que se dirimen las luchas representacionales e interpretativas
que tienen como objeto a la totalidad de América Latina). La batalla
por el predominio lingüístico se vincula también a la competencia
por el mercado de las lenguas dentro de la estructura socio-cultural
y particularmente académica, a distintos niveles. Del complejo pro-
blema que esta competencia apareja, que se relaciona a temas como
los de la traductibilidad cultural, la apropiación de la otredad y el
estatuto epistemológico desde el cual aprehender y “administrar”
la diferencia cultural, quiero rescatar solamente la problemática de
lo local, no sólo en términos geoculturales, sino también en térmi-
nos simbólicos. Me refiero, entonces, a las localidades o formas de
localización (o de co-locación) de los discursos y de las mediaciones
a través de las cuales estos discursos se diseminan socialmente,
institucionalmente, comercialmente, en distintos contextos.

69 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


6
Yúdice es uno de los investigadores Evidentemente, la globalización crea la necesidad de una
que más ha trabajado la cuestión de reinserción de lo local en el nivel de lo transnacional, obligando al
mercados culturales,
mismo tiempo a la redefinción de agendas locales, regionales,
institucionalidad y difusión de
discursos. Para ver las dimensiones sectoriales, etc, capaces de empujar productivamente los flujos ace-
sociales de los estudios culturales en lerados y homogeneizantes de la superintegración planetaria. Pero
América Latina ver su artículo por otro lado, la reivindicación de lo local, que a muchos niveles,
“Estudios culturales y sociedad como George Yúdice ha analizado, asegura rentabilidad a los dis-
civil”, Revista de Crítica Literaria 8
cursos porque introduce la diferencia como una variante (como
(Mayo 1994), pp. 43-53. Para lo que
tiene que ver con industrias una mercancía) que estimula el consumo de bienes simbólicos,
culturales, diferencia cultural y esa misma reivindicación corre el peligro de ser absorbida dentro
globalización ver “La de los modelos de exotización que administra la lógica del merca-
reconfiguración de políticas do cultural, perdiendo entonces fuerza, autenticidad, capacidad
culturales y mercados culturales en contracultural, es decir, potencialidad para desafiar proyectos o
los noventa y siglo XXI en América
Latina”.
modelos hegemónicos.6 En este sentido, el dilema planteado por
Nelly Richard, “Cómo intersectar Latinoamérica con el
7
Nelly Richard, “Intersectando latinoamericanismo?” sigue teniendo la mayor vigencia, porque
Latinoamérica con el
latinoamericanismo”, en Teorías sin
nos enfrenta con los compromisos político-ideológicos que tenemos
disciplina. Latinoamericanismo, que asumir como mediadores de la cultura latinaomericana y de
poscolonialidad y globalización en los conflictos sociales que ella re-presenta simbólicamente.7 Qué
debate, Santiago Castro-Gómez y co-locación adquieren entonces los discursos culturales que las
Eduardo Mandieta, coordinadores. revistas diseminan, proponen, implementan? Y al mismo tiempo,
México: Ed. Porrúa, Colección
cómo regular la función que el locus de enunciación está llamado
Filosofía de nuestra América, 1998;
pp. 245-270. a tener en los intercambios ideológico-culturales en el contexto de
la globalidad? Cómo construir una territorialidad cultural para Amé-
rica Latina que sea específica sin ser cerrada y autoreferida, que
admita flujos culturales y migraciones discursivas sin convertirse
en una tierra de nadie, que sea nuevamente política sin ser sectaria,
ni conservadora, ni fundamentalista? Que sea dialógica y hasta
polifónica sin convertirse en un campo babélico donde Calibán
sólo puede seguir balbuceando en la lengua del amo? Que
reconozca y sea capaz de integrar los flujos de lo latinoamericano
hacia otras inserciones geoculturales y la incorporación de otras
culturas en la propia sin que ésta se sienta necesariamente degluti-
da, desnaturalizada, recolonizada?
Creo que las revistas, tanto por su alcance y características de
objetos culturales, como por los protocolos de lectura que proponen
y el público que son capaces de convocar, tienen un papel funda-
mental que jugar en el proceso de definir, delimitar y defender esa
territorialidad. Para mencionar sólo algunos de los desafíos a que
debe responder la revista cultural en la actualidad, podemos
referirnos a los siguientes:
a) demandas del multiculturalismo, no ya en el carácter de
“anodina noción liberal” que Homi Bahbha reconociera en él,
sino en tanto realidad directamente derivada de los fenómenos de
migración de sujetos e ideas, implementación de estrategias
culturales regionalizadas (tipo Mercosur, NAFTA, Pacto Andino, etc)
e hibridación étnica, linguística y cultural a todo nivel.
b) multilinguismo, entendido no sólo como un espacio de
intercambio y comunicación abierta –tampoco como el lugar
babélico donde los mensajes no llegan en realidad a conectar –
sino como una arena de lucha y conflicto por la hegemonía y a
veces por el monopolio de los discursos y los saberes. Creo que
ahora que las lenguas compiten no sólo entre sí sino con lenguages
virtuales y sígnicos de distinta naturaleza, es importante reconocer
que las áreas de competencia y actuación de las distintas lenguas
están directamente relacionadas con formas de poder y de
dominación cultural, de penetración y re-colonización de territorios
geoculturales y simbólicos, que luchan por el predominio – a veces

travessia 40 / outra travessia 1 70


sólo por la presencia – en el contexto de las dinámicas globales.
Mientras que algunos esfuerzos en la actualidad están encaminados
a impulsar el reconocimiento de la estética del bilinguismo o del
multilinguismo – tratando de administrar así, productivamente, la
diferencia cultural – creo que debe seguirse insistiendo en las polí-
ticas culturales que están detrás de los conflictos linguisticos, y en
el caracter político de estas luchas. Reconocer, entonces, que se
trata de luchas representacionales, tanto en el sentido de la
representación simbólica, como de la representatividad política de
determinados sectores sociales y culturales que se expresan en có-
digos diversos.
c) transdisciplinariedad o incluso, según algunos, post-
disciplinariedad, que nos enfrenta a interrogantes, cuestionamientos
y búsqueda de respuestas innovadoras a problemas que atraviesan
los campos del saber, limitando al mínimo la posibilidad de una
superespecialización sobre todo en el área del conocimiento cul-
tural no-científico. En este mismo sentido, el cuestionamiento y
debilitamiento del lugar de las humanidades como forma de
conocimiento abarcador y totalizante, obliga a nuevas formas de
legitimación del papel de la cultura y las “ciencias humanas” den-
tro de los procesos actuales dominados por la comunicación de
masas, los mensajes visuales y electrónicos, y los trasiegos de
información a nivel planetario.
d) modificación del campo cultural y de la función intelectual.
Ante la pérdida de vigencia de la función mesiánica heredada en
tiempos de secularización cultural de las antiguas alianzas entre
Iglesia y Estado, la función pedagógica, “heroica” e iluminada del
intelectual de los siglos XIX y buena parte del XX va dejando lugar
a formas de tecnificación que rearticulan la relación entre cultura,
instituciones y sociedad civil. Mientras que en muchos contextos
el intelectual se recicla como advisor gubernamental en temas re-
lacionados con el análisis de mercados y la definición de políticas
culturales (educativas, de financiamiento o subvención de las ar-
tes, de institucionalización o regulación del acervo histórico, an-
tropológico, etc.) en otros casos el intelectual lucha por retener
espacios de relativa y cada vez menor autonomía con el propósito
de ejercer una labor “independiente” en organismos de acción
social (ONGs) o en proyectos culturales acotados a problemáticas
locales, sectoriales, etc, que pueden alcanzar grados diversos de
incidencia y proyección social. Las revistas son fundamentales como
plataformas de debate y transformación de estas funciones, y como
termómetros que miden la temperatura social en el campo especí-
fico de la acción cultural.
e) surgimiento de nuevas zonas de análisis aparecidas a
consecuencia de los cambios sociales, económicos y culturales que
acompañan a la globalización. Así tenemos por ejemplo la
intersección fuerte y productiva de estudios de cine, feminismo,
Latino Studies, estudios gay, estudios étnicos, etc, que convergen,
por ejemplo con el análisis literario, cultural e ideológico,
proponiendo nuevas formas de integrar el conocimiento de las
ciencias sociales (historia, antropología, sociología, ciencias polí-
ticas) que antes mantenían un dominio independiente, en el estudio
de productos y políticas culturales. Muchas de estas nuevas zonas
de estudio cultural mantienen obvias correspondencias con el
surgimiento de movimientos sociales (movimiento de los sem ter-
ra, Madres de la Plaza de Mayo, zapatistas, movimiento homosexual,
feminismo, ecologistas, etc.) que constituyen nuevas formas de
resistencia y acción social en el contexto marcado por el modelo
neoliberal. Se vinculan también con el recrudecimiento y cambio

71 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


8
Ver, al respecto, para un recorrido de signo de fenómenos como la violencia urbana, la intensificación
sobre estos aspectos del hispanismo, de las comunicaciones, la emergencia de nuevas formas de
el ensayo de Sebastiaan Faber, “‘La
subjetividad colectiva, que obviamente empujan a la escena políti-
hora ha llegado’. Hispanism, Pan-
Americanism, and the Hope of ca, social y cultural nuevos actores, sujetos, agendas, que requieren
SpanishAmerican Glory (1938- representación. Finalmente, los impulsos aportados por el
1948)”, Ideologies of Hispanism, pensamiento poscolonial, la teorización sobre la “condición
Mabel Moraña, ed. (en prensa). posmoderna” y la correlativa crítica de la “modernidad periférica”
en América Latina, la fuerza de los Cultural Studies, etc, diversifica
notoriamente, quizá con una intensidad antes desconocida en
nuestro campo de trabajo, las ofertas y las demandas del trabajo
intelectual. Este, que ya no se puede limitar al espacio antes preser-
vado de la función letrada, académica y pedagógica, ni se identifi-
ca necesariamente con el “compromiso” político, ni goza de los
privilegios del mesianismo ni del reconocimiento que el “productor
cultural” tuvo en los años de la Guerra Fría, se enfrenta ahora al
descentramiento y a la desauratización de la cultura letrada y al
predominio de la razón instrumental que busca transformar la
función intelectual y los mensajes y códigos en que ésta se apoya
en dispositivos que transmiten un saber especializado (expertise) y
al mismo tiempo negociable en el mercado vasto de los bienes
simbólicos.
f) reacomodos políticos en el interior de los campos culturales.
Sería largo pero imprescindible analizar los cambios que ha sufrido
las nociones de “hispanismo” y de luso-brasileñismo, por ejemplo,
desde su orígenes (que pueden rastrearse a la época colonial) hasta
nuestros días. De estas reconfiguraciones depende la relación “de
lengua” entre las “madres patrias” europeas y las culturas nacionales
latinoamericanas, y el modo en que se ha concebido a través de
las épocas esa vinculación. En el caso de Hispanoamérica, las
instancias de la colonia, la independencia, la Guerra
hispanoamericana de 1898, la Guerra Civil española, la Revolución
Cubana, las celebraciones del Quinto Centenario, por ejemplo,
son sólo algunos de los momentos que pautan el largo camino
iniciado por el colonialismo y sostenido por más disimuladas for-
mas de reanexión cultural, reapropiaciones ideológicas, etc, que
mantienen algunas revistas simbólica o estratégicamente asociadas
con contextos culturales y políticos anteriores, propiciando o
impidiendo otras asociaciones. Ejemplo: Revista Iberoamericana
sigue asociada por su nombre al componente “ibérico”, desde su
fundación en 1938, lo cual es uno de los factores que la mantiene
ajena a la cultura latino/chicano/riqueña que se desarrolla en Esta-
dos Unidos, entre otras cosas en atención a la tradición de las
lenguas ibéricas como marcas de diferenciación y, a su vez, de
nexos culturales.8
g) vaciamiento ideológico que se registra a nivel social, en ge-
neral, en América Latina. Este fenómeno se hace evidente en par-
ticular en la constitución del campo cultural, que acusa el impacto
del debilitamiento del estado y las instituciones mediadoras – polí-
ticas y culturales – , los efectos de la privatización neoliberal, la
pérdida de plataformas políticas a nivel nacional e internacional,
la proliferación y diversificación de agendas sectoriales, el
descaecimiento de lenguages y estrategias de convocatoria popu-
lar, la descreencia en discursos totalizadores, y el fraccionamiento
de la trama social a diversos niveles. Todo lo anterior indica que
nos encontramos no solamente ante una crisis de representación a
nivel simbólico sino ante una más profunda aún crisis de
representatividad social (política), donde amplísimos sectores
sociales han perdido la voz, que es cooptada por el oportunismo
ideológico que trata de capitalizar el vaciamiento de la izquierda

travessia 40 / outra travessia 1 72


9
viendo los estudios latinoamericanos como una tierra de nadie que Avellaneda se refiere a este punto
puede ser recolonizada por las teorías centrales. De aquí que la al tratar la relación entre estudios
literarios y culturales. El tema ha
pregunta por la legitimidad de los discursos salvíficos desde/sobre
sido, sin embargo, ampliamente
América Latina, y la redefinición de las dinámicas Norte/Sur debatido por Román de la Campa y
adquieran una nueva vigencia para el análisis cultural en el con- Walter Mignolo, entre otros.
texto de la globalidad post-Guerra Fría. Esto, y la urgencia de un
reagrupamiento aunque sea estratégico del pensamiento de
izquierda que permita efectuar una crítica productiva de las políti-
cas culturales del neoliberalismo. La cuestión principal no es,
entonces, a mi criterio, desde qué lugar geopolítico se produce la
crítica o la teoría cultural, sino desde qué lugar – desde que co-
locación – ideológica se efectúa el cuestionamiento de los impac-
tos que el neoliberalismo está teniendo en la producción y en el
análisis de la cultura latinoamericana.9
Para terminar, pienso que es imprescindible, en el contexto
actual, una atención cuidadosa a los desafíos antes anotados, y
una implementación sagaz de nuevas estategias tanto profesionales
como político- ideológicas, en el campo de la producción y la crí-
tica de la cultura. La inserción de los aportes y las agendas
latinoamericanas en el espacio cultural globalizado exige una
comprensión amplia y abierta del espectáculo de la cultura a nivel
planetario: del modo en que funcionan sus avenidas virtuales y
económicas, sus mensajes sígnicos y simbólicos, y sobre todo, sus
actores, en la lucha por insertar las agendas locales dentro de los
conflictos, intereses y fuerzas que actúan a nivel transnacional pero
que repercuten directamente en nuestras comunidades culturales.
Las revistas constituyen, a mi juicio, no sólo bases para proyectos
críticos sino también plataformas desde las cuales se discute o
aprueban, se revelan o invisibilizan aspectos de la conflictividad
social y de sus representaciones simbólicas. Los lenguages que en
ellas se manejan, las mediaciones que a través de ellas se efectúan,
los espacios que se abren en sus páginas reales o virtuales remiten
siempre, con mayor o menor inmediatez, a dinámicas mayores. La
proliferación de centros en las periferias tanto como los inmensos
y múltiples suburbios que existen en el interior de los grandes nú-
cleos de la globalidad exigen nuevos tránsitos, nuevos vehículos, y
energías renovadas en actores culturales que tienen a su favor, en
el caso de América Latina, una larga tradición de resistencia y
creatividad liberadora. Desde esas bases es que debe emprenderse,
a mi juicio, el reagrupamiento de los intelectuales para rehacer las
agendas de acuerdo con los desafíos que nos imponen los tiempos
simultáneos de la globalidad, recordando que por más
superestructurada que pueda parecer, toda política termina siendo
siempre local, individual y cotidiana.

73 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


travessia 40 / outra travessia 1 74
A CIRCULAÇÃO DAS IDÉIAS
LITERÁRIAS NO FOLHETIM
Marco Antonio Maschio C. Chaga
Universidade Federal do Paraná– RD-CNPq

E seja como for, para nós, homens de um século que se


reconhece no estilhaçamento de Joyce e Picasso, no absurdo de
Kafka, no contrapelo da música serial, — para nós a sua força não
vem desta concepção unitária.
Antonio Candido

E os artistas, os escritores principalmente, que imaginam estar


fazendo arte pro povo não passam duns teóricos curtos, incapazes
de ultrapassar a própria teoria.
Mário de Andrade

I – O itinerário
1
Entre os anos de 1977 e 1982 o Folhetim1 ofereceu um conjun- Folhetim foi um suplemento
cultural/literário publicado pelo
to de textos que expunham os principais assuntos e polêmicas do
jornal paulista Folha de São Paulo
país (formando uma certa unidade de interesses), entretanto, a par- entre 1977 e 1989. A coleção
tir de 1983 este conjunto de textos passou a ser apresentado de completa do Folhetim se encontra
forma segmentada e desorganizada. Neste último período, os cole- depositada na biblioteca do NELIC
cionadores do Folhetim foram obrigados a agir de forma tópica. (Núcleo de Estudos Literários e
Alguns temas estavam tão distantes das preocupações dos especia- Culturais), Centro de Comunicação e
Expressão da Universidade Federal
listas que as coleções particulares começaram a ser orientadas pe- de Santa Catarina.
los interesses particulares, e não mais pela lógica de se colecionar
todos os números. Dependendo do tema veiculado, o suplemento
pode ter destinos bem distintos: ora ele é protegido como uma
preciosidade, ora ele é condenado à reciclagem. Neste ponto, nota-
se um novo direcionamento da coleção. Os especialistas (o econo-
mista, o historiador, o sociólogo, o professor de literatura) passa-
ram a organizar suas coleções com os fascículos que falavam de
perto sobre seus interesses mais imediatos. Assim, a dinâmica da
coleção, que havia norteado as duas primeiras fases (entre 1977-
1979 e 1979-1982) do suplemento (quando tudo era “interessan-
te” e a coleção tinha valor por ter um ritmo de continuidade), vai
sendo substituída pela necessidade do especialista, que imprime
um novo perfil à coleção: a parcialidade, o recorte. A lógica do
colecionador benjaminiano, embora anacrônica, serve para nossa
compreensão do que acontecia. Entre 1977 e 1982, tem-se a figura
do colecionador “clássico”, aquele que recolhe “tudo”, que reco-
lhe uma totalidade, aquele que pretende dar forma ao caos univer-
sal. Angariando amostras de tudo, pode-se pensar no colecionador
clássico como um enciclopedista, que está preocupado em com-
preender a totalidade do universal. A partir de 1983, o leitor do

75 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


Folhetim passa a se adequar mais à figura do colecionador moder-
no, ou seja, este indivíduo passa a recolher os cacos que mais lhe
interessam, ou que estão disponíveis, para edificar o seu mosaico
particular, obedecendo à “lógica” mais conveniente, talvez a única
a seu alcance. Neste caso, o colecionador contemporâneo admite
a sua condição parcial; admite, mesmo sem querer, que o paradigma
da exclusão está batendo a sua porta. Sendo assim, a coleção “com-
pleta” do Folhetim começa a ceder espaço a outro regime de prio-
ridades: a urgência dos fragmentos específicos, cujo interesse se
direciona a áreas profissionais exclusivas. O interesse declina de
forma proporcional ao abandono da idéia da formação
enciclopedista. Deixando de lado o caráter “total” da coleção, o
Folhetim assume o ônus de não mais contemplar às exigências do
leitor médio, passando a buscar um filão específico e, em última
instância, o suplemento se elitiza.
A existência de um suplemento cultural que atravessou mais de
uma década em um país marcado pela perenidade deste tipo de
iniciativa é por si um elemento que chama a nossa atenção. Evi-
dentemente, em doze anos de publicação era de se esperar guina-
das importantes que nos servissem para esclarecer a atuação em
diversos ramos da cultura. É patente, por exemplo, na trajetória do
suplemento, o abandono de práticas de consagração e a retomada
de atitudes mais críticas em relação aos fenômenos da cultura. Mas
meu interesse, neste momento, é refletir sobre os mecanismos que
serviram de orientação para que o Folhetim se destacasse também
como um veículo de discussão sobre os fenômenos literários do
final do século XX.
Como pretendo demonstrar, a primeira e a segunda fases do
suplemento serviram como uma abertura para se questionar o lu-
gar da produção da literatura. Carregados pelas crônicas politizadas
e pela ampliação do conceito de reportagem, os “jornalistas cultu-
rais” começaram a requisitar o termo literatura para suas produ-
ções, trazendo, para o campo da teoria da literatura, um problema
que se tornaria cada vez mais freqüente entre nós. Paralelamente a
esta relativização da produção literária (difundida pelos jornalis-
tas-cronistas), e enquanto nas universidades o currículo oficial da
disciplina “literatura brasileira contemporânea” parava em Clarice
Lispector, o “jornalismo cultural” construía, à revelia dos cânones
acadêmicos, um quadro de referências que pretendia reviver, em
alguns anos, décadas da história literária do século XX. Esta seria a
tônica dos temas literários que circularam no Folhetim até o início
de 1982.
A partir de meados de 1982, durante a terceira fase, o suple-
mento passou a exigir um grau de especialização e de formação
dos colaboradores, sendo que os jornalistas não mais puderam re-
sistir às pressões de um mercado que exigia um suplemento desti-
nado aos especialistas. Assim, os jornalistas cedem espaço para o
surgimento de um suplemento que passaria a vender a imagem de
especificidade, voltando-se, exclusivamente, aos leitores iniciados
em literatura, psicanálise, filosofia, história, economia. Talvez a idéia
editorial fosse a marcação clara da distância e da diferença entre o
antigo e o novo. Neste caso, o antigo seria representado por atitu-
des literárias engajadas, em sintonia com o desejo de abertura de-
mocrática e política. O novo, por sua vez, representava a reconci-
liação com os bancos universitários e com escritores e poetas de
reconhecimento nacional, comprometidos, sobretudo, com a qua-
lidade de suas produções. Quando me refiro à criação de um su-
plemento voltado à literatura, não penso necessariamente na pu-
blicação de escritores, contistas e poetas. Penso, exclusivamente,

travessia 40 / outra travessia 1 76


2
nas publicações de textos que discutem as diversas maneiras de se Silviano Santiago, “Uma década de
lidar com os artefatos literários: ou seja, escrevo a respeito da pro- onze anos”, Folhetim, 13 de janeiro
de 1980, n. 156, p. 2.
fusão de teorias da literatura. Sem dúvida, a trajetória do Folhetim
comprova isso: há uma disputa sendo travada entre os defensores da
crítica apadrinhada (somente como mecanismo de consagração) e,
por outro lado, os colaboradores, pós 1982, dotados de um arsenal
crítico que tornaria a literatura um exercício de difícil e restrita aces-
sibilidade. As teorias literárias vão re-posicionar questões como o
valor literário, a autoria e a história literária, por exemplo.
Portanto, ao longo da década de oitenta, o Folhetim corrobo-
rou a ascensão da idéia de que o ato de leitura do texto literário
pode estar cravado por uma pluralidade de acepções e orientações
teóricas, ao contrário das abordagens em defesa do “senso comum”
que, naquela altura, se encontravam em franco declínio. De um
modo geral, esta seria a dinâmica das publicações que povoaram
as páginas do suplemento da Folha de S.Paulo ao longo dos anos
oitenta. Ao mesmo tempo, este será o movimento que pretendo
percorrer quando me proponho a discutir as diversas orientações
teóricas que foram assegurando espaço à discussão do literário no
Folhetim.

II - Primeira fase (1977-1979): A crítica apadrinhada

A primeira fase do Folhetim pode ser facilmente reconhecida


como um período preocupado em divertir informando o leitor. Este
período pode ser considerado “literário” não por apresentar textos
voltados aos conceitos e à discussão das diversas possibilidades da
crítica literária em lidar com os artefatos literários da época, mas
sim por preencher um grande percentual de suas páginas com crô-
nicas e “experimentos literários” de seus colaboradores mais pró-
ximos. Derivada em larga medida da situação política do país, a
crônica política, determinada pela atuação do cronista engajado,
teve em Josué Guimarães, João Ubaldo e em Plínio Marcos os prin-
cipais articuladores da cena literária do período. Percebe-se que a
literatura foi um instrumento político para se atingir as finalidades
atreladas aos ideais de liberdade e, em última instância, o fato de
ser “ficção” funcionava como um trunfo final e um drible adicional
nos mecanismos da repressão e da censura do Estado. Assim, po-
dia-se tratar da situação miserável de uma grande parcela da popu-
lação, da falta de segurança pública, da situação de descaso na
qual se encontrava o “balaio” das questões da cidadania, da
corrupção reinante nos meios governamentais, entre outras denún-
cias. Porém, o problema do valor literário destes textos persiste.
Silviano Santiago2 se refere à produção de dois grupos de textos
durante os anos setenta: as ficções de sobrevivência, entre 69 e 74;
e as de resistência, de 75 a 79. A primeira fase do Folhetim se
ajusta não apenas em relação ao segundo período histórico citado,
mas sobretudo ao tipo de “resistência” que é propagada pelas crô-
nicas. Vejamos como, em linhas gerais, se definiria a atividade da
crônica neste caso:

O texto de resistência é antes de mais nada uma réplica


aos meios de comunicação que foram selecionados
pela censura ou pelos zelosos ‘copy-desks’ da imprensa
objetiva. E como réplica que é, usa a mesma forma
retórica (o discurso jornalístico) (...). Narra o fato ou a
notícia de maneira apaixonada; narra subjetivamente

77 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


3
Idem. Ibidem, p.2. Em virtude dos o mesmo fato que a imprensa não narrou, ou narrou
referidos textos aparecerem, objetivamente. Sendo jornalístico, trabalhou com o
principalmente, em jornais, talvez
repertório (tanto estético quanto temático) de qualquer
fosse mais preciso se referir a eles
como crônicas. Antonio Candido leitor brasileiro. Daí o sucesso. Não causou a
enfatiza que o gênero se proliferou estranheza como o texto do barato e da metáfora. O
por causa de sua extrema dependên- texto da resistência, por ser jornalístico, parece negar
cia ao jornal. O autor resume sua a literatura ao constituir-se em livro, pois se constrói
história: “No Brasil ela tem uma boa
na descrença de que existam processos propriamente
história, e até se poderia dizer que
sob vários aspectos é um gênero literários. Qualquer forma de desmistificação da
brasileiro, pela naturalidade com que retórica literária é sempre bem vinda.3
se aclimatou aqui e a originalidade
com que aqui se desenvolveu. Antes Nestas crônicas, o literário se encontrava esvaziado porque não
de ser crônica propriamente dita foi produzia estranhamento? Não o produz porque não consegue ou
‘folhetim’, ou seja, um artigo de porque não quer ver seu público reduzido? À beira do populismo,
rodapé sobre as questões do dia – o regime das crônicas não pretende se distanciar do leitor. A justi-
políticas, sociais, artísticas, literárias.
ficativa para este tipo de atuação encontrava respaldo da crítica
Assim eram os da seção ‘Ao correr da
pena’, título significativo a cuja veiculada pelo suplemento. O interesse inicial do Folhetim esteve
sombra José de Alencar escrevia voltado e de certa forma seduzido pelos “brilhos” da televisão, com
semanalmente para o Correio seus shows de variedades; entretanto, houve um espaço mínimo
Mercantil, de 1854 a 1855. Aos pelo qual puderam se manifestar os porta-vozes da “crítica” literá-
poucos o ‘folhetim’ foi encurtando e
ria. Utilizo a palavra crítica entre aspas porque será possível verifi-
ganhando certa gratuidade, certo ar
de quem está escrevendo à toa, sem car que os jornalistas-cronistas e os romancistas envolvidos neste
dar muita importância. Depois, período dispensavam um tratamento nada respeitável à crítica: a
entrou francamente pelo tom ligeiro crítica é aqui entendida como julgamento, como um juízo pessoal.
e encolheu de tamanho, até chegar
Contudo, a crítica não seria apenas um procedimento que pre-
ao que é hoje”. CANDIDO, Antonio
et al. “A vida ao rés-do-chão”, in: A tende homenagear a verdade do passado, ou a verdade do outro, a
crônica, A crônica: o gênero, sua crítica deve ser compreendida como uma construção do inteligível
fixação e suas transformações no de nosso tempo. Como veremos adiante, a acepção da palavra “crí-
Brasil. Campinas/ Rio de Janeiro: Ed. tica” nos primeiros Folhetins esteve muito próxima das homena-
da UNICAMP/ Fundação Casa de Rui gens e da verdade do “outro”. Para esclarecer a atividade crítica do
Barbosa, 1992, p. 15.
suplemento durante esta primeira fase, apresento a seguir um tre-
4
Não devo esquecer de mencionar a cho de uma entrevista concedida por Jorge Amado a Josué Guima-
importância de Érico Veríssimo neste rães. Além de revelar a postura teórica do Folhetim (resumindo as
contexto. Seu nome foi sempre
lembrado pela equipe de editores e
principais metas a serem perseguidas), o entrevistado demarca o
pelo próprio escritor baiano. A dupla território a ser protegido, enfatizando quais seriam os alvos de ata-
formada por Érico Veríssimo e Jorge que, ao mesmo tempo em que revela o que deveria ser preservado.
Amado desempenhou um papel mais O principal articulador dessas idéias era o escritor Jorge Amado.4
amplo dentro do cenário político da Na opinião do escritor,
repressão. Silviano Santiago lembra
(em “O teorema de Walnice e sua A crítica se coloca sempre contra. (…) E eu me honro
recíproca”, Folhetim, n. 275, 25 de
abril de 1982) que os exemplos de
muito da estima que tem por minha obra certos leitores
Érico Veríssimo e de Jorge Amado da mais alta qualidade intelectual – não vou citar nomes
tinham sido utilizados por Walnice – mas até que poderia falar num Alceu, por exemplo,
N. Galvão por conta de dois fatos: num Antonio Houaiss ou num Antonio Candido, por
primeiro, porque eles podiam e exemplo. E de ser, além disso, um escritor que qualquer
falaram contra a repressão militar e,
em segundo lugar, eles eram os
homem do povo pode ler e entender. (…) É um
grandes exemplos de escritores que privilégio que hoje estamos pagando caro, nós os
não dependiam do Estado. homens que estamos criando no Brasil literatura e arte.
5 (…) Uma coisa é você fazer literatura assim e outra é
Jorge Amado; Josué Guimarães,
“Meu encontro com Jorge Amado”, você se trancar no gabinete, ler livros e querer criar
Folhetim, n. 43, 13 de novembro de personagens, falar da angústia do povo e da coisa que
1977, pp. 2-6. No final da entrevista, você nem conhece.5
Josué Guimarães intervém: “Eu
também sou da mesma opinião, Percebe-se que há uma clara distinção entre “a literatura” (e a
estou inteiramente contigo, penso arte) e “a crítica”. Há, portanto, uma clara separação: a literatura
assim”. Embora publicada no não deve ser crítica e a crítica não deve ser confundida com a
número 43 (o primeiro sob a direção
de Nelson Merlin), a entrevista
literatura. Crítica, neste caso, se traduz por um juízo de valor posi-
reforça o perfil antiacadêmico do tivo ou negativo sobre determinado texto. Não está em jogo ape-
suplemento, enfatizando o regime de nas a avaliação sobre a presença ou não da literariedade (que, nes-
concessões do Folhetim. (continua) te caso, pode ser entendida como estranhamento) nestes textos, aí

travessia 40 / outra travessia 1 78


também se inclui o aval da crítica sobre o que deve ou não ser Desta forma, também fica evidente
vendido. O que se exige do crítico é a corroboração e a tácita que a saída de Tarso de Castro da
editoria não significaria nenhuma
afirmação a respeito do valor positivo do texto. Quando, por qual-
mudança no perfil da publicação,
quer motivo, se aponta para falhas, repetições ou esgotamentos, a continuando a prevalecer a linha
política da crítica se torna pessoal e o ciclo do contra (a crítica do editorial anterior e a manutenção de
contra) é iniciado novamente. Também se quer atingir o excesso de seus colaboradores.
teorização no qual está imerso o mundo acadêmico, fechado so- 6
Antoine Compagnon, O demônio
bre os grandes nomes que fortalecem os cânones ocidentais e na- da teoria. Literatura e senso comum,
cionais e que, por muitas vezes, se nega a discutir o papel dos Trad. Cleonice Paes Barreto Mourão.
novos escritores. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999; p.
257.
Quando se diz que estas crônicas espelhavam algum ideal de
7
resistência política, contrária ao regime autoritário em voga na- Silviano Santiago, Vale quanto
pesa, Rio de Janeiro: Paz e Terra,
quele momento, deve-se acrescentar um outro tipo de resistência,
1982; p. 198.
a ser mais bem explicitado. Trata-se da resistência à teoria. Procu-
8
rou-se jogar com “valores literários” que distanciavam cada vez “As incertezas do sim”, “Arrumar a
casa, arrumar o país”, “O teorema de
mais o senso comum das formulações teóricas fundadas em
Walnice e a sua recíproca”, “A cor
especificidades sobre os juízos de valor construídos a partir das da pele” e “As ondas do cotidiano”
teorias literárias. Em O demônio da teoria, Antoine Compagnon foram os textos de Silviano Santiago
analisa a história dos enfrentamentos entre o senso comum e a publicados entre 1979 e 1982,
teoria. O maior problema para os defensores de uma teoria a-teóri- portanto, durante a segunda fase do
ca reside nas sucessivas derrotas que o senso comum vem acumu- Folhetim.
lando ao longo do século XX, principalmente depois dos anos ses- 9
Silviano Santiago, Vale quanto
senta. A teoria questionou as crenças (ou as ilusões, como pesa, p. 198.
Compagnon prefere chamar) mais caras dos defensores do senso 10
Silviano Santiago, “Democratiza-
comum. ção no Brasil – 1979-1981 (cultura
versus arte)”, in: Declínio da arte
O objetivo da teoria é, na verdade, desconsertar o senso Ascensão da cultura. Florianópolis:
comum. Ela o contesta, o critica, o denuncia como Edição da Abralic, 1998, p. 11.
uma série de ilusões — o autor, o mundo, o leitor, o 11
Silviano Santiago, “Uma década
estilo, a história, o valor — das quais lhe parece de onze anos”, Folhetim, n. 156, 13
indispensável se libertar para poder falar de literatura. de janeiro de 1980, p. 2; “A
Mas a resistência do senso comum à teoria é incerteza do sim”, Folhetim, n. 226,
17 de maio de 1981, p. 3; “Entre
inimaginável. Teoria e resistência são impensáveis
separadamente, como observava Paul de Man; sem a
resistência à teoria, a teoria não valeria mais a pena,
como não valeria a pena a poesia, para Mallarmé, se
o Livro fosse possível. Mas o senso comum não
renuncia nunca, e os teóricos se obstinam. Na falta de
um acerto de contas final, com suas ovelhas negras,
eles se atrapalham.6
Sendo assim, era preciso sustentar a produção e a circulação
da ficção justificando a sua funcionalidade. A consolidação das
universidades acelerou a substituição do crítico não especialista
pelo crítico scholar. O contorno acadêmico e especializado, que a
partir da década de cinqüenta suplantava a crítica de rodapé na
imprensa brasileira, foi questionado por esta fase do suplemento,
que preferiu “reinventar” a figura do jornalista crítico semi-especi-
alista. Todavia, deve-se ressaltar que esta semi-especialização do
crítico não foi suficiente para aproximá-lo do crítico de rodapé,
com aquela prática impressionista e hierarquizante dos anos qua-
renta. “Assim sendo, [complementa Silviano Santiago] aquele co-
nhecimento não especializado tem também o seu lugar, lugar de
divulgação, que não é a sala de aula ou o seminário, mas a im-
prensa semi-especializada, ou não, grande ou nanica”.7 Silviano
Santiago8 defendia, em 1979, uma posição mais conciliatória en-
tre professores e jornalistas.

Vemos então que, para que a discussão entre o nível


do ‘especializado’ e do ‘geral’ se possa dar com

79 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


Marx e Proust”, Folhetim, n. 231, 21 rendimento para ambas as partes, é preciso que se
de junho de 1981, pp. 3-5; “As acertem antes os relógios. Ou então temos o que vemos
de maneira geral hoje: certos jornais metendo o pau
na crítica universitária por considerá-la ‘estrangeirada’
ou elitista, de difícil acesso ao grande público, ou então
certos professores universitários (de reconhecido valor
intelectual) usando o espaço-jornal com artigos
dificílimos que obviamente lá não deviam estar, pois
não levam em consideração a competência de quem,
em princípio, os deve ler naquele lugar.9
Mesmo que reconheçamos como justa a reivindicação de
Silviano Santiago, a atitude dos editores do suplemento não cami-
nhava a favor do consenso entre acadêmicos e jornalistas. Por ou-
tro lado, os argumentos do crítico se ajustam ao perfil do suple-
mento, pois desconfio que, nesta época, o Folhetim não dividia seu
espaço com a crítica universitária por considerá-la elitista e obses-
sivamente estrangeira. Aliás, esta confluência de elementos revela,
mais uma vez, que a orientação teórica partilhada por sua equipe
de editores, sobre a função da literatura, era em larga medida de
origem gramsciana. Camaleônico, o jornalista escrevia crônica,
entrevistava “astros” e “estrelas” da televisão, políticos em evidên-
cia e outras personalidades, ao mesmo tempo em que escrevia crô-
nicas, poemas e manifestos. No campo literário, gostaria de desta-
car duas características do período. Em primeiro lugar, observa-se
um deslocamento geográfico das atenções: enquanto a crítica aca-
dêmica estética ou sociológica ocupava o horizonte do eixo Rio-
São Paulo, o Folhetim restringia seu espaço a Jorge Amado e Érico
Veríssimo como pontos de referências. A segunda característica,
derivada da anterior, é que os autores referências do período forne-
ciam o prestígio necessário para assegurar legitimidade aos jorna-
listas cronistas, reforçando a noção do nacional-popular de suas
publicações. Deve-se notar também que não há nenhuma referên-
cia direta a Gramsci nestas páginas do Folhetim, ausência esta que
revela uma sintomática necessidade de se ocultar (ao mesmo tem-
po em que se enfatizavam os autores nacionais) a herança estran-
geira desta teoria, que, em última instância, se recusava a ser teóri-
ca. Mas o que mais interessa, neste momento, é que este ativista
engajado também se fazia de crítico literário, promovendo a litera-
tura nacional-popular. Ressalte-se que esta formação genérica do
jornalista corresponde ao perfil traçado por Gramsci, que também
observava, como seu principal defeito, a superficialidade que a
postura genérica poderia gerar.

III – A segunda fase (1979-1982): os primeiros sinto-


mas do culturalismo brasileiro

Para melhor avaliar os efeitos do debate entre a perspectiva cul-


tural da crítica e a crítica literária (cultura versus arte), Silviano
Santiago acentua a necessidade de ressaltar uma série de aconteci-
mentos que podem servir como marcos de algumas importantes
passagens do final do século XX.

Quando é que a cultura brasileira despe as roupas


negras e sombrias da resistência à ditadura militar e se
veste com as roupas transparentes e festivas da
democratização? Quando é que a coesão das

travessia 40 / outra travessia 1 80


esquerdas, alcançada na resistência à repressão e à ondas do cotidiano”, Folhetim, n.
tortura, cede lugar a diferenças internas significativas? 237, 2 de agosto de 1981, pp. 5-6;
“A cor da pele”, Folhetim, n. 240, 23
Quando é que a arte brasileira deixa de ser literária e
de agosto de 1981, p. 12; “O
sociológica para ter uma dominante cultural e teorema de Walnice e sua recíproca
antropológica? Quando é que se rompem as muralhas (I parte)”, Folhetim, n. 275, 25 de
da reflexão crítica que separavam, na modernidade, o abril de 1982, pp. 6-7; II parte,
erudito do popular e do pop? Quando é que a Folhetim, n. 276, 2 de maio de 1982,
pp .8-9; III parte, Folhetim, n. 277, 9
linguagem espontânea e precária da entrevista
de maio de 1982, p.9.
(jornalística, televisiva, etc.) com artistas e intelectuais
12
substitui as afirmações coletivas e dogmáticas dos Walnice Nogueira Galvão, in:
políticos profissionais, para se tornar a forma de Saco de gatos. São Paulo: Ed.
Perspectiva, 1984.
comunicação com o novo público? A resposta às
13
perguntas feitas acima levam a circunscrever o Silviano Santiago, “O teorema de
momento histórico da transição do século XX para o Walnice e sua recíproca”, Folhetim,
n. 275, 25 de abril de 1982, p. 8.
seu ‘fim’ pelos anos de 1979 a 1981”.10
14
Idem. “A crítica literária no
A segunda fase do Folhetim funciona como uma resposta para jornal”, in: Nuevo texto crítico, n.15/
várias das questões acima. Esta fase do suplemento responde de 16, jul.94-jun.95, p. 64.
duas formas aos questionamentos enunciados. Em primeiro lugar, 15
José Paulo Paes não travou
corrobora-se a pertinência de se pensar uma certa implosão das nenhuma polêmica direta com os
esquerdas; ocorrem diversas tentativas de se cogitar uma aproxi-
mação entre o erudito e o popular (os textos que debatem a respei-
to desta questão são os do próprio autor); “a linguagem espontâ-
nea e precária” das entrevistas e dos acalorados debates inundam
de esperança o horizonte da década de oitenta, embora as “afirma-
ções coletivas e dogmáticas dos políticos” ainda tivessem muito
espaço no suplemento. Sendo assim, a segunda fase do suplemen-
to abrange um período de mudanças significativas da vida nacio-
nal: a educação, a política, a economia e, sobretudo, a democrati-
zação irreversível da cultura. O processo de democratização da
cultura servia como a porta dos fundos pela qual entravam alguns
pertinentes questionamentos sobre o panorama da crítica literária.
Também foram irreversíveis os desdobramentos teóricos do pós-
estruturalismo que se assentava, naquele momento, sobre a defesa
e a inclusão das minorias culturais como fontes alternativas às abor-
dagens estritamente literárias. Por outro lado, assegurava-se o es-
paço da crítica literária voltada à grande literatura.
Por exemplo, entre novembro de 1981 e maio de 1982, a pro-
fessora Bella Jozef publicou quatro textos. Neles, Stefan Zweig,
James Joyce, Jorge Luis Borges e Ernesto Sábato foram analisados,
tendo-se o formalismo russo e o estruturalismo como principais
pontos de referências teóricas. Estes ensaios procuravam se centra-
lizar sobre o problema da leitura e da linguagem empregada por
estes consagrados escritores. Enquanto Fábio Lucas escrevia sobre
a história do modernismo e Hernani Bruno a respeito da suprema-
cia de Joaquim Manuel de Macedo como romancista, Silviano San-
tiago aparecia com um incômodo ensaio sobre a poesia de um
certo Adão Ventura.
Vale comentar a trajetória dos seis textos11 de Santiago nesta
fase do Folhetim. Em “Uma década de onze anos”, o autor realiza
um balanço da produção literária de seus contemporâneos. No
que pese a destreza para não citar nomes nem arranhar o verniz de
autores consagrados, o texto é ímpar em um contexto de polêmi-
cas acirradas sobre a adesão política dos escritores. Trata-se de um
texto que opta por classificar a perspectiva dos autores sem, no
entanto, excluí-las. Sendo assim, percebe-se uma certa tendência
aos processos de inclusão, que deixa de lado a avaliação sobre o
valor literário, ressaltando-se outros aspectos das obras, tais como
a inclusão de autores que souberam resistir à repressão e de outros

81 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


representantes do Concretismo. O que engendram a perspectiva antropológica em seus textos. Em “A
autor apenas publica “A tradução no incerteza do sim”, abre-se um outro flanco para se pensar o com-
Brasil” (Folhetim, n. 348, 18 de
prometimento subjetivo que a linguagem opera, da qual sempre se
setembro de 1983), procurando
mostrar que a tradução tinha, antes escapa uma parcela da biografia daquele que escreve. Esta ausên-
mesmo de o Concretismo surgir, uma cia de controle das margens da linguagem serve para se analisar a
história no Brasil e, além disso, a poesia de João Cabral de Melo Neto. Apostando em outro grande
nome da literatura brasileira, o ensaio “Entre Marx e Proust” refor-
ça a noção de que a postura política, histórica e literária de Carlos
Drummond de Andrade lhe renderam uma posição de destaque
dentro do modernismo brasileiro. Este texto fecha um ciclo. A se-
guir, em “As ondas do cotidiano”, o autor defende, em um ensaio
mais teórico, que seria necessário ampliar as margens do fenôme-
no literário, caso se quisesse entender a situação dos estudos literá-
rios à época. Assim, o autor questiona a idéia de se apreender o
cotidiano como se houvesse algum princípio de racionalidade ge-
ral, que fosse capaz de organizá-lo. Ao contrário, afirma o autor,
seria necessário se pensar em um conjunto de medidas para se
conceber o cotidiano como processo caótico, pois, somente as-
sim, seria possível pensar em mecanismos de inclusão como, por
exemplo, o das minorias sociais. Em “A cor da pele”, o autor exer-
ce um rompimento com a tradição de somente comentar autores
consagrados. A perspectiva “culturalista” marca seu primeiro ten-
to. Aquilo que havia ficado indicado indiretamente nos ensaios
anteriores se manifesta de forma clara. Neste ensaio, a poesia de
Adão Ventura serve como modelo para se pensar não apenas nos
modelos excludentes da sociedade, mas reforça a noção de que o
modelo literário precisava ser ampliado para incluir outras preocu-
pações. Então, o valor literário deixava de ser a única moeda de
troca e a condição social passava a ter valor semelhante nesta ou-
tra forma de hierarquizar a produção contemporânea. Como con-
seqüência, era de se esperar o início de uma polêmica, mas como
a polêmica não se concretizou, o próprio autor tratou de expor
melhor as linhas gerais de atuação do escritor. O sexto ensaio (pu-
blicado em três partes nos números 275, 276 e 277) analisa o texto
“Teresa Batista cansada de guerra,”12 de Walnice Nogueira Galvão,
no qual se procura rastrear, ao longo da história brasileira, os dife-
rentes posicionamentos dos escritores diante do mercado, do Esta-
do e do público. A tônica do texto gira em torno da posição con-
temporânea do escritor, que deveria negociar melhor a ampliação
dos temas e andar no fio da navalha entre o mercado e o público,
não tendo o Estado como único ponto de apoio financeiro. A auto-
ra apontaria para o paradoxo que distancia o escritor das garras do
Estado, mas joga-o de encontro às velhas fórmulas de sucesso bem
ao gosto do grande público. Silviano Santiago problematiza e
relativiza o peso da indústria cultural e ressalta que o elitismo artís-
tico começa a ser nefasto quando deixa de lado a sua principal
função: a formação do público. Sobretudo, o autor questiona a
função da crítica contemporânea de “indicar” o caminho do bom
gosto a seus leitores.

A necessidade que vimos surgir na década de oitenta


é a de desvincular a visão de público da concepção
que se encontra na tradição clássica ocidental, sem
que, por um lado, o intelectual abdique da sua
condição de formador do novo público, e, por outro
lado, sem que caia na relação imobilista do sucesso
pelo Ibope e pelo metal, pregada pelos veículos de
comunicação de massa.13

travessia 40 / outra travessia 1 82


Formar um público tendo-se em vista o metal nos leva a uma tradução possuía uma tradição com
dúvida sobre os caminhos pelos quais passam esta “função” de diversos representantes contemporâ-
neos que não estariam preocupados
legislar em causa própria. Lembremos que, durante a primeira fase
do Folhetim, era precisamente esta situação que se desenrolava,
quando um grupo de jornalistas havia marcado um encontro com
seus leitores, em um futuro próximo, em livros e adaptações
televisivas.

Até há pouco tempo [escreve Silviano Santiago] era


impensável que um grupo de intelectuais não
encontrasse numa redação de jornal o período inicial
da sua metamorfose em geração literária. Como
resquício desse estado de coisas, sobrevive hoje a
crônica literária. Textos curtos e de fácil leitura,
comprometidos em geral com os acontecimentos
familiares e do cotidiano que, enfeixados em livros,
viram sempre um produto descartável. Mas mesmo
assim a crônica jornalística não pode ser facilmente
desprezada, pois serve para tornar popular o nome do
autor, podendo por isso ajudá-lo a vender seus livros
mais ‘sérios’.14
Até aqui, por volta de 1981, o Folhetim havia percorrido uma
trajetória inversa ao que se poderia esperar de um suplemento nas-
cido no final da década de setenta e que perduraria até o limiar dos
anos noventa. O Folhetim passa de uma perspectiva “cultural” (de
um suplemento cultural) para um viés especificamente “literário”
(definindo-se, a partir de 1982, como um suplemento literário). A
primeira fase (1977-79) tenta desfrutar de um certo desbunde (en-
tretenimento e diversão) que ainda tinha espaço em fins da década
de setenta, para, a seguir, comemorando a abertura democrática,
voltar-se ao debate social, cuja amplitude pôde abarcar o surgimento
de uma nova concepção da cultura entre nós.
Neste caso, devo enfatizar que o espaço destinado à discussão
das idéias de Silviano Santiago neste texto não ocorre por acaso,
pois o escritor e crítico se inclinou em direção às mesclas em vári-
os sentidos. Esta inclinação possibilitou-lhe fazer parte e, em larga
escala, fomentar o crescente debate sobre a inclusão de outras pers-
pectivas sobre o fenômeno literário e cultural do período. Percebe-
se, igualmente, que são os críticos fluminenses que dominam a
cena desta segunda fase do suplemento. A ausência da maioria dos
críticos e dos professores das universidades paulistas até este mo-
mento no Folhetim talvez seja decorrente da colaboração recente
destes profissionais com o suplemento literário do jornal concor-
rente, O Estado de São Paulo. Contudo, com a entrada de Caio
Túlio Costa na editoria do Folhetim, esta situação sofreria uma drás-
tica inversão nos meses subseqüentes.

IV – A terceira fase (1982-1989): contra o tédio — dos


estudos literários à formação cultural

Não se pode dizer que a primeira fase do Folhetim tenha sido


uma época destinada ao debate literário, do mesmo modo, o má-
ximo que se pode dizer em relação à segunda fase é que havia
uma preocupação paralela sobre a discussão literária, com desta-
que, principalmente, para uma certa tendência ao culturalismo.
Ao contrário destas linhas tangenciais, a terceira fase é um período
marcado, majoritariamente, pela publicação de ensaios teóricos
sobre a literatura e também de ficção.

83 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


A terceira fase do Folhetim é o período mais complexo para se
perceber a circulação dos diferentes tipos de orientações teóricas
que estavam em jogo. Esta movimentação ocorre em parte porque
foi a fase de maior afluxo de textos relacionados aos processos de
re-posicionamento da discussão em torno do fenômeno literário.
Enquanto a rotina de publicação dos ensaios sobre as mais diver-
sas teorias literárias experimentava uma curva quantitativa ascen-
dente, a publicação de contos, de fragmentos de romances e de
poemas, decrescia em ritmo acelerado ao longo do período. O
declínio do espaço destinado à ficção não deve ser visto de forma
isolada. Reside neste ponto uma crise que começa a se manifestar
de maneira mais clara à medida que avançam os anos subseqüen-
tes.
Paralelamente ao decréscimo da ficção, observa-se o aumento
rápido dos ensaios literários; contudo, seria apressado dizer que o
suplemento tenha servido a esta ou àquela vertente teórica, pois
há, sem dúvida, um certo equilíbrio entre as principais teorias so-
bre a interpretação das teias literárias, embora, pontualmente, ocor-
ram períodos de desequilíbrio da balança. Antes de observar mais
de perto o movimento interno desenhado pela alternância de op-
ções teóricas dos ensaístas do período, gostaria de lembrar que a
principal característica subjacente à segunda fase, quando o
culturalismo esteve em voga, será silenciada na medida em que se
resgatam as “altas literaturas” e, simultaneamente, um novo nível
de compreensão é exigido do leitor. Sendo assim, o clima quente
do debate cultural cede lugar a polêmicas tópicas e específicas,
destinadas a um público especializado. No mesmo sentido, perce-
be-se um recrudescimento de teses consagradas pela tradição aca-
dêmica dos estudos literários.
Além do aumento do grau de especificidade das discussões li-
terárias, outros aspectos estavam sendo beneficiados com as mu-
danças. Talvez a saturação dos veios literários nacionais e a surpre-
sa das gavetas vazias do início da década de oitenta tenham sido o
principal combustível das traduções; assim, elas ganham força im-
pulsionando a circulação de literaturas de outras línguas. Esta es-
tratégia reforçava a idéia de uma literatura cosmopolita, cuja estra-
tégia central parece ser a de vender sofisticação e refinamento.
Vale lembrar que o retorno gradativo das garantias individuais as-
segurava espaço para que os colaboradores do suplemento não
necessitassem mais marcar, a todo custo, uma postura de
engajamento político, mas sim um compromisso com o bom gos-
to. Além disso, a consolidação da união com os professores paulistas
garantia a publicação do que havia de mais “recente” nas pesqui-
sas acadêmicas de uma das principais referências universitárias do
país. O Folhetim assumia, aos poucos, a tarefa de porta-voz da
comunidade acadêmica do país e, concomitantemente, o espaço
também se abria para alguns poetas que se destacavam no cenário
nacional exercitarem seus domínios críticos e criativos, publican-
do ensaios e poemas, respectivamente.
A partir de 1982, começam a proliferar as teorias literárias que
dariam forma ao regime de vinculações do suplemento. Ao lado de
“antigos colaboradores”, como Silviano Santiago e Wilson Martins
(que já havia colaborado em fases anteriores), detectam-se as pri-
meiras publicações de Haroldo de Campos, Décio Pignatari e José
Paulo Paes no Folhetim, indicando uma certa tendência às discus-
sões sobre teorias da tradução, e que colocam o Concretismo na
berlinda. As publicações de Haroldo de Campos e de Décio Pignatari
selam, definitivamente, a aproximação do jornal com os professo-
res das universidades paulistanas. Primeiro, publicam os professo-

travessia 40 / outra travessia 1 84


res da PUC, posteriormente o leque se abre até a chegada dos pro- com os rumos requisitados pelo
fessores da USP. Procurando se afastar de qualquer conotação movimento paulista.
regionalista, percebe-se ao mesmo tempo a estratégia do suple- 16
Wilson Martins, por sua vez,
mento de dar espaço a colaboradores radicados fora do eixo Rio- publica “25 séculos de concretismo”
São Paulo, visto que, desta forma, a amplitude e o tom nacional do (Folhetim, n. 305, 21 de novembro
Folhetim não poderiam ser questionados. de 1982), texto que defende a idéia
de que o concretismo, ao contrário
Em 1982, surgem os primeiros sinais de uma longa série de do que propagava, representava um
ensaios que tinham como meta principal a consolidação da tradu- retrocesso, já que o seu processo
ção como uma das principais bases de uma teoria da literatura criativo se apoiaria em uma
ontologia linear. Sendo assim, no
fundada em Pound e Benjamin. Inicialmente, a Teoria Concreta
que se refere a suas origens, o
encontra resistência em nomes díspares como, por exemplo, José concretismo seria, no mínimo, uma
Paulo Paes15 e Wilson Martins16. Mais tarde, em 85, seria a vez de representação do anacronismo
Roberto Schwarz travar uma polêmica, talvez a mais conhecida, histórico. O texto não teve resposta
com Augusto de Campos. Contudo, nos anos subseqüentes a 82, de nenhum representante do
percebe-se o fortalecimento de nomes ligados ao Concretismo, seja movimento e, sintomaticamente, a
colaboração de Wilson Martins no
através da publicação de ensaios, seja por meio da publicação de Folhetim se encerra em 1982.
poetas-tradutores originários ou simpáticos ao movimento. Nelson
17
Ascher, João Moura Júnior, Régis Bonvicino e Paulo Leminski for- Sobre as categorias de séries
dominante, emergente e residual, ver
mavam o segundo esquadrão, que tinha nos Irmãos Campos os Raymond Williams, Marxismo e
principais protagonistas e difusores das idéias vinculadas ao movi- literatura, Rio de Janeiro, Zahar
mento. Não por acaso, Nelson Ascher, João Moura Júnior e Régis Editores, 1979; pp. 124-129.
Bonvicino, ao lado de Augusto de Campos, destacam-se como os 18
Silviano Santiago se apóia em
principais tradutores do período. Ajustados ao “Plano piloto da Antonio Candido para concluir que
poesia concreta”, o regime das publicações oriundas e associadas a crítica havia perdido toda a sua
ao Concretismo asseguraram, nas páginas do suplemento, um pre- força. “Antonio Candido, em
cioso espaço de divulgação e ganharam, a partir de então, um amplo entrevista concedida à revista Veja
em outubro de 1975, comentava a
reconhecimento nacional, tornando-se uma passagem “obrigató-
vida e morte dessa produção: ‘No
ria”, para muitos jovens poetas, escritores e candidatos às fileiras Brasil, até trinta anos atrás, a crítica
universitárias. se fazia em artigos de cinco a dez
Enquanto a proliferação concreta ganhava defensores apaixo- páginas nos rodapés dos jornais,
semanalmente. Escritos por pessoas
nados, não se pode perder de vista que o suplemento também fa-
intelectualmente sérias, produziam
zia circular outras formas de se lidar com as tramas literárias. A
diferença, neste caso, se encontra no caráter individual das outras
propostas. Enquanto o Concretismo agia como uma vanguarda,
possuindo “esquadrões” que cumpriam tarefas específicas e tendo
um núcleo dirigente, como, aliás, tinha sido apontado por Roberto
Schwarz, as outras alternativas de análise quase sempre pareciam
desarticuladas diante de um emaranhado de textos. Conseqüente-
mente, não se pode dizer que havia um outro grupo fazendo frente
ao Concretismo. Convivia-se com a situação. Contudo, as alterna-
tivas teóricas desenham, retrospectivamente, outras séries que pas-
sam a coexistir, adquirindo importância fundamental para se com-
preender que o perspectivismo começava a fazer parte da rotina
teórica da década de oitenta. Ao se observar a circulação dos tex-
tos entre 1982 e 1989, tem-se a exata noção do jogo que era colo-
cado em prática pelo Folhetim. A partir de 1982, para usar as cate-
gorias de Raymond Williams17, o Concretismo já surge como uma
série dominante. O Concretismo adquire o status de uma série
dominante porque, além da presença constante entre os ensaios-
literatura mais publicados (criando impacto em outras séries), pas-
sa a atuar com amplo domínio na seleção do que era traduzido,
emplacando também tradutores afinados com o movimento.
Nesta perspectiva, Wilson Martins faria parte de uma série resi-
dual, já que havia colaborado com o suplemento desde sua cria-
ção, mas desapareceria após 1982. Este conjunto de textos se pre-
ocupava com um estilo de crítica literária baseada no julgamento
de valor e na difusão de obras e autores bem próxima do rodapé
literário, que vinha sendo abolida de um cenário extremamente
marcado pelo surgimento de diversas teorias literárias.

85 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


A série mais complicada para ser nomeada é a emergente. Esta
série, no Folhetim, é representada por um grupo de jovens profes-
sores, que tinham obtido titulações nos fins dos setenta ou estavam
finalizando seus trabalhos acadêmicos à época, e começam a
emplacar seus nomes, ao lado de seus consagrados “orientadores”,
nas páginas do suplemento. Esses nomes, por terem formações di-
ferenciadas, muitas vezes fora do núcleo das preocupações especí-
ficas do Concretismo, ofereciam alternativas de leitura do fenôme-
no literário, ao mesmo tempo em que se afastavam das polêmicas
associadas à “ordem do dia”. Esses autores passam a ter destaque e
se consolidam depois de 1984. Para ficar em apenas dois exem-
plos, já que eles figuram entre os mais publicados de alguns anos
e, ao mesmo tempo, tiveram suas formações em universidade loca-
lizadas nos dois extremos do eixo Rio-São Paulo (embora não se
possa esquecer de vários outros nomes que não aparecem por te-
rem, ou publicado menos ou de forma mais esporádica), Flora
Süssekind e Raul Antelo constituiriam duas referências da série
emergente, que venho tentando nomear. Porém, ao contrário do
Concretismo (que pode e quer ser localizado como um grupo com
ramificações diversificadas sobre os ramos da cultura), a série emer-
gente poderia ser mais bem explicitada se a tomássemos como uma
formação, já que seria impossível pensar em eixo capaz de ofere-
cer continuidade, ou que fosse adequado para definir um núcleo
central. Em outras palavras, esta série pode ser mais bem compre-
endida se a aceitarmos como uma formação que não possui, ne-
cessariamente, objetivos comuns, mas expressam individualida-
des e trajetórias distintas.
Resta, e, neste caso, a categoria residual de Raymond Williams
pode oscilar, a presença de Silviano Santiago, que foi o único cola-
borador a ser mantido em todas as fases do suplemento. Esta
performance ou é, às avessas, residual (e desta forma teríamos duas
formas de resíduos: uma que permanece e outra que desaparece),
ou esta presença pode ser lida como uma categoria à parte, cuja
principal característica é a regularidade. Neste caso, prefiro pensar
na série “Silviano Santiago” como um residual regular. Porque ela
seria regular parece-me claro. Mas, por que ela seria também resi-
dual? Esta série procurou ser tolerante e camaleônica para se man-
ter dentro dos limites do jornal. Para obter resultados, seus textos
tiveram que, muitas vezes, fazer concessões e, em muitos casos,
abraçar o relativismo para se fazer entendido. A série “Silviano San-
tiago” também procurou denunciar os excessos teóricos dos pro-
fessores no campo jornalístico, buscando um consenso que unisse
a grande imprensa e a divulgação acadêmica sem os excessos e
pedantismos comuns ao meio universitário. Todo este enorme es-
forço para se manter entre a ficção, a reportagem, o ensaio e o
relato biográfico não serviram, contudo, para tornar esta prática
dominante entre os meios acadêmicos. Esta série andou no fio da
navalha: bom gosto demais para ser dominante entre os jornalistas
engajados; tolerante e de mau gosto para se tornar parâmetro entre
o meio universitário da década de oitenta. O bom gosto esperado e
a sedução desejada viriam, mais tarde, com o adensamento de
nomes ligados ao Concretismo.
Todavia, para aqueles que apostavam em um regime de textos
mais flexíveis e menos teóricos, este movimento representou um
aumento significativo do abismo entre o suplemento e o leitor. Por
outro lado, não se deve perder de vista que o micro-arquivo “Silviano
Santiago” afeta direta e indiretamente a série emergente, influenci-
ando-a a promover vários deslocamentos que marcarão os rumos
dos estudos literários, transformando-os e ampliando seus limites

travessia 40 / outra travessia 1 86


até a abertura de seus canais para a discussão sobre o fenômeno da
cultura.
Desse modo, gostaria de insistir em um ponto, um ponto que
une e para o qual convergem dois diferentes modos de se estimu-
lar, na série emergente, a ascensão da preocupação com os fenô-
menos da cultura, relativizando-os às questões de domínio restrito
dos estudos literários. Se a série concretista permitia alguns aban-
donos relacionados ao cânone dos estudos literários (mesmo que
isso significasse a instauração de um outro cânone), questionando
as formas diacrônicas de se interpretar as questões literárias; se a
série “Silviano Santiago” apontava, talvez de forma mais clara, que
seriam necessárias mudanças de perspectiva para se ampliar os
limiares da compreensão dos traços culturais de nossa literatura;
existe neste momento um apelo sintomático que modificaria a nossa
compreensão das tramas literárias do final do século XX.
A partir de 1982, a influência do paideuma poundiano e da
teoria da tradução de Walter Benjamin passam a servir, cada vez
mais, de norte para se implementar e disseminar os ideais
concretistas entre nós. Neste contexto, o debate entre Augusto de
Campos e Roberto Schwarz, apenas indicado anteriormente, pre-
cisa ser retomado agora para esclarecer algumas passagens deste
itinerário, que, sem dúvida, auxiliou na ampliação da liberdade do
trabalho teórico da série emergente.
Como resposta à publicação do polêmico poema “Póstudo”
(Folhetim, nº 419, 1985), de Augusto de Campos, Roberto Schwarz
escreve “Marco histórico” (Folhetim, nº 428, 1985), um ensaio no
qual atacava o Concretismo por seu excesso de centralização do
poder. De acordo com o autor, “o poema ‘Póstudo’ é um exemplo
do procedimento chave dos concretistas, sempre empenhados em
armar a história da literatura brasileira e ocidental de modo a cul-
minar na obra deles mesmos, o que instala a confusão entre teoria
e a auto-propaganda”. O número seguinte do Folhetim (nº 429,
1985) trazia a resposta de Augusto de Campos ao ataque “socioló-
gico e reducionista” de Schwarz. O texto procurava enfatizar o
caráter vanguardista e visionário do Concretismo e a sintonia do
movimento ao que havia de mais sofisticado e atual em matéria de
teorias contemporâneas. Ao contrário de Schwarz, que representa-
ria o passado das análises literárias brasileiras, os concretistas esta-
vam revestidos pela representação do futuro. Em dezembro de 1985,
Schwarz publica “Mão no pau”, um poema “dedicado” aos
concretistas; o recado, segundo o poema indica, apontava para o
onanismo teórico e ao egocentrismo das iniciativas concretistas no
campo da teoria literária.
Deixando os ataques pessoais de lado, deve-se reter que o de-
bate trouxe à tona um problema de interpretação histórica, que
subjaz à discussão. Quando Augusto de Campos acusa Roberto
Schwarz de ser um guardião da tradição, portanto, incapaz de re-
conhecer o valor e a importância da vanguarda que o Concretismo
significava, parece-me, exageros à parte, que Augusto de Campos
está insinuando, apoiado em Haroldo de Campos, que a noção
diacrônica da história literária havia sido, de uma vez por todas,
derrocada com o advento do Concretismo. Sendo assim, a pers-
pectiva diacrônica da história, impregnada pela noção de progres-
so, não seria mais suficiente como metodologia capaz de explicar
o fenômeno literário contemporâneo. Distendendo-se um pouco
mais, urgia-se por entender com maior amplitude a proposta de se
efetivar análises sincrônicas do fenômeno literário. Neste contex-
to, Roman Jakobson e Walter Benjamin foram instalados como es-
tandartes “vanguardistas”, que respondiam, respectivamente, pe-

87 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


uma visão empenhada, que ao los princípios gerais dos eixos interpretativos (sincrônicos e
mesmo tempo informava e formava o diacrônicos) e pela crítica da noção de progresso oriunda da tradi-
leitor. Isso acabou’”. Silviano
ção linear da história.
Santiago, “A crítica literária no
jornal”, in: Nuevo texto crítico, p. Baseado nesta exposição de motivos, entendo que o Folhetim
65. — e o espírito da época exigia a mudança — estimulava a consoli-
19
“Desde 1948, com a sua coluna dação de análises e interpretações centradas na literatura, mas que
dominical ‘Correntes cruzadas’, já ultrapassavam alguns limites dos estudos literários “puros”, que
Afrânio Coutinho defendia a tese de não admitiam a excessiva aproximação com outros campos
ser impossível ‘tratar o fenômeno associativos. Sendo assim, tanto a série residual regular quanto a
literário em termos puramente
jornalísticos, como fazia a crítica
série dominante serviam de estímulo, mesmo que os pontos de
tradicional’, já que o ‘estudo da contato fossem, muitas vezes, apenas tangenciais, para que a série
literatura em bases rigorosas, emergente se desvencilhasse da praxis mais tradicional. Este seria
inclusive científicas’ superava ‘o um dos possíveis cenários criados a partir do suplemento, embora,
velho impressionismo diletante e fugindo de meu alcance, não se possa perder de vista que outros
vazio, baseado no gosto e na
re-arranjos estavam sendo processados do ponto de vista externo à
opinião’”. Silviano Santiago. Ibidem,
circulação de idéias no Folhetim.
Ao se optar pela colaboração em um suplemento com as carac-
terísticas do Folhetim, tinha-se em mente as restrições de espaço
inerentes às regras nada ortodoxas do ensaio. O ensaio advoga vá-
rias renúncias por parte daquele que o escreve: o trabalho das cita-
ções, bem como a extensão delas devem ser repensados, já que o
espaço destinado ao texto tem limites precisos. A exposição das
idéias, a argumentação, não poderia obedecer à mesma metodologia
de trabalhos acadêmicos, devido à redução do espaço. O uso de
dados, estatísticas, depoimentos, gráficos, fotografias, úteis para se
comprovar uma ou outra afirmação ficam prejudicados, compro-
metendo, muitas vezes, a compreensão do texto. Para além das
restrições espaciais, e já que a defesa de teses está comprometida,
o ensaio se limita a uma urdidura mais leve e possibilita o lança-
mento de alguma hipótese parcial de análise, sob medida para o
escasso tempo do leitor e o espaço, não menos limitado, da grande
imprensa.
Neste contexto, o ensaísmo tinha a função de explicitar boa
parte das mudanças que foram engendradas no interior das redes
teóricas significando alterações importantes entre a “literatura” e a
“teoria”. Portanto, o início do movimento de substituição da litera-
tura pela “ficção teórica” seria reforçado, embora, naquela altura,
não se reconhecesse boa parte da dinâmica do processo. Aliás,
pode-se tomar a expressão “ficção teórica” como um dos possíveis
sinônimos para o termo ensaio, já que os rigores do cientificismo
não se satisfazem com sua diversidade de incoerências.
Em “A crítica literária no jornal”, de 1995, Silviano Santiago
procurava recolocar o problema do declínio e morte da crítica lite-
rária nos jornais, enfatizando a necessidade de se pensar em alter-
nativas que unissem a atividade da imprensa, da universidade e da
literatura.18 Neste texto, o autor aponta para o beco-sem-saída no
qual haviam aportado o gênero ensaio, que pecava pelo “excesso
de pedantismo e de notas de pé-de-página”; e a crítica literária,
por perder de vista a preocupação com o “exercício criterioso da
razão”. De acordo com Silviano, foi durante a segunda metade do
século XX que começaram a surgir os suplementos literários (liga-
dos à grande imprensa) com a preocupação de minimizar o estado
litigioso no qual se encontravam os críticos impressionistas e os
professores universitários. Este litígio, conseqüentemente, exigia,
dos críticos impressionistas, uma especialização fundamentada em
princípios mais rígidos de análise do texto literário. Contudo, a
formação ensaística derivada do Folhetim nesta terceira fase reor-
ganiza o cenário desta disputa. Este conjunto de textos reorganiza-
rá o campo para uma batalha que ainda estaria por vir.

travessia 40 / outra travessia 1 88


Quando o Folhetim é ocupado por consagrados professores p. 67.
universitários ao lado dos estreantes, o resultado não traz de volta 20
A série dedicada à América Latina
a retomada do “exercício criterioso da razão”, revigorando, por não apresenta um grande número de
outro lado, o adensamento do “pedantismo” presente no ensaio. O textos. A média passa um pouco de
abismo entre a crítica literária e os professores universitários alar- um por ano, entretanto são as
formulações sobre o tema que
ga-se quando se percebe, durante os anos oitenta, a importância
despertam a atenção. Quando se
crescente das teorias que mesclam e ampliam sua circulação por pensa a literatura latino-americana
áreas até então pouco conhecidas da maioria dos especialistas. Se se radicaliza o viés político e se
os críticos impressionistas foram criticados no passado pela falta ressalta a necessidade de se pensar o
de rigor científico19, os sucedâneos da crítica científica encontra- literário como cultural.
vam mesclas junto ao formalismo, ao estruturalismo, à semiótica, 21
São estes os ensaios publicados
ao marxismo, à psicanálise; ou encontravam respaldo em outras pela autora: “Promessas, encantos e
áreas do conhecimento como a história, a sociologia, a antropolo- amavios”, Folhetim, n. 341, 31, jul.
gia, a filosofia; ou se abrigavam em abordagens culturais que in- 1983, pp. 6-7. “A querela de
Fassbinder x Genet”, Folhetim,n.
cluíam o cinema, a música, o teatro. Nestes textos provenientes do 361, 18 dez. 1983, pp. 10-11. “O
ensaísmo do suplemento, ao contrário de estamparem novos escri- inventário de Danilo Kis”, Folhetim,
tores, como se esperava do rodapé literário, ensaiavam-se análises n. 512, 28 nov. 1986, pp. .9-10.
e interpretações sobre especificidades relacionadas, por exemplo, “Uma leitura plástica de Pessoa”,
ao ato de traduzir; do mesmo modo, eram propostos estudos sobre Folhetim,n. 595, 10 jun. 1988, pp.
11-12.
a linguagem, e seus usos, em romances consagrados, principal-
mente da primeira metade do século XX; proliferavam as análises 22
Fredric Jameson, “Sobre los
de poemas, algumas de tanto impacto que se tornavam “parte” do ‘Estudios Culturales’”, in: Estudios
Culturales. Reflexiones sobre el
poema; alguns temas se tornam recorrentes: literatura e história,
multiculturalismo, Trad. Moira
literatura e psicanálise, literatura e filosofia. Estas aproximações se Irigoyen. Buenos Aires, Barcelona e
tornam uma rotina nos anos oitenta, transformando a México: Ed. Paidós, 1998, pp. 71-72.
interdisciplinariedade em uma conseqüência “natural”. 23
Otavio Frias, “Terceira dentição”
É neste contexto, de abordagens literárias interdisciplinares so- Editorial, Folhetim, n.221, 12 de
madas ao suporte ensaístico e à atmosfera volátil e provisória do abril de 1981, p. 2.
jornal, que se percebem as transmutações e os usos meta-teóricos
que esta formação passa a desencadear. Neste caso, haveria pelo
menos duas importantes formas para se enfrentar a formação
ensaística proveniente da terceira fase do Folhetim. A primeira for-
ma é individual e a outra, coletiva. Caso fôssemos examinar, texto
a texto, a dinâmica das abordagens literárias publicadas neste perí-
odo, poderíamos averiguar a regularidade persistente dos estudos
literários. Entretanto, quando pensamos neste conjunto de textos
como uma formação, o foco de interesse se desloca para interpre-
tações de outra natureza. Por exemplo, se pensarmos no ensaio
como suporte destas análises literárias, este gênero, assistemático
por natureza, enfraquece o método que ele carrega. Sendo assim,
ao se interpretar o fenômeno ensaístico como um sintoma da as-
cendência dos estudos literários, estaríamos, paradoxalmente, en-
fraquecendo este enfoque. Este enfraquecimento da vertente dos
estudos literários oferece uma brecha pela qual começam a brotar
outras séries que minam a preponderância dos estudos literários.
Não se discute que a maioria dos textos publicados seja orientada
pela perspectiva dos estudos literários (cujas principais caracterís-
ticas podem ser facilmente reconhecidas pela manutenção de uma
ordenação canônica e um rígido sistema de valores de reconheci-
mento universal).
Assim, pode-se pensar nas exceções. A série de ensaios que
politizam a literatura latino-americana vem reforçar a perspectiva
cultural da teoria literária que, neste caso, precisa demonstrar as
implicações políticas de suas escolhas.20 Portanto, esta série aban-
dona, gradativamente, os métodos puros da crítica literária. Em
outro sentido, devo citar um exemplo que utiliza a
interdisciplinariedade para reforçar o apelo literário. Dos quatro
ensaios publicados pela professora Leyla Perrone-Moisés21 no su-
plemento, dois deles ampliam os limites da literatura, pois depen-

89 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


dem diretamente de outras áreas de conhecimento para dar conta
das implicações interpretativas. Em “A querela de Fassbinder x
Genet”, a autora analisa a transposição de Querelle de Jean Genet
em filme homônimo, dirigido pelo diretor alemão Fassbinder. O
texto ressalta o reconhecido talento do diretor, que consegue, atra-
vés da utilização de numerosos recursos cinematográficos, recom-
por as perdas que a linguagem do cinema impõe às adaptações de
romances. Segundo o texto, “Fassbinder, optando pelo mundo dos
machos, resgata o feminino, não como poder que vence, mas como
a soberania do amor, desejado e impossível”. Em “Uma leitura plás-
tica de Pessoa”, a autora, interpretando alguns efeitos plásticos dos
quadros do pintor português Costa Pinheiro, ressalta os principais
aspectos gerados pela influência do universo literário de Fernando
Pessoa. Neste caso, o texto indica, mais uma vez, a supremacia do
campo literário sobre o universo das artes plásticas.
Nestes exemplos, percebem-se os usos políticos que o termo
interdisciplinaridade suporta. Se a série “latino-americana” apon-
tava um sentido que, muitas vezes, já indicava que o literário preci-
sava equacionar melhor a divisão de seu espaço com outras áreas
do conhecimento, o segundo exemplo, mesmo que lançasse mão
de um expediente parecido, deixava claro que o reconhecimento
da supremacia do literário sobre áreas tão próximas e, às vezes
dependentes, determinavam um uso do interdisciplinar como re-
sistência.
Atravessando os exemplos anteriores, gostaria de intercalar um
terceiro caso que mostra uma outra faceta da crise na qual se en-
contravam os estudos literários nos anos oitenta e, ao mesmo tem-
po, pode auxiliar na compreensão das complicações adicionais
que a formação Folhetim carrega. Em “Anch’io sono scritore! (Eu
também sou escritor!)” (Folhetim, n. 495, 3 de agosto de 1986, pp.
2-3), a professora Leda Tenório da Motta mostrava seu desespero e
indignação diante da configuração de um cenário pouco profícuo
ao desenvolvimento da literatura e, conseqüentemente, isto pode-
ria indicar um declínio de seus estudos. De acordo com o texto -
que analisava uma enquête, realizada pelo jornal francês
Libération,com vários escritores que respondiam a pergunta: por
que eles escreviam? –, os depoimentos dos escritores europeus ser-
viam apenas para enfatizar a imensa falta de espírito e a completa
perda de sentido da literatura, demonstrando a excessiva pobreza
de idéias e de ações associadas ao campo literário. O texto nos
interessa, especialmente, porque dialoga com a série “América La-
tina”, comprovando, de certa forma, a necessidade de se apoiar
em outras disciplinas para continuar “a fornecer sentido” à matéria
literária, mesmo que isso significasse uma guinada cultural. Por
outro lado, o texto instala um grande problema para os defensores
da supremacia literária, pois ele advoga a ineficiência da literatura
de toda uma época, empurrando, inexoravelmente, esta justifica-
ção do literário aos limites de uma defesa do passado, na medida
em que questiona a falta de sentido do fenômeno literário contem-
porâneo.
Durante a década de oitenta a teoria passa a suplantar a produ-
ção ficcional para poder, de algum modo, retomar o papel anterior
da literatura, que havia sido o de delinear os principais traços de
nossa identidade, oferecendo os contornos de uma unidade racial,
nacional, política e, sobretudo, cultural. Portanto, a retomada cul-
tural da literatura, mesmo que esta retomada seja apoiada muito
mais no ensaio do que na ficção (ou, de outro modo, o ensaio
como ficção teórica), substitui e questiona várias tentativas de se
solucionar a crise estética dos anos oitenta: neste caso, o ensaísmo

travessia 40 / outra travessia 1 90


se apresenta como uma resposta estética da época. Sendo assim, a
terceira fase do suplemento reforça o argumento da derrocada do
senso comum como crítica e, ao mesmo tempo, potencializa a
idéia de que a crítica da década de oitenta não se encontraria mais
localizada na literatura (de resistência ou não), mas, longe dali, o
poder da crítica estava sendo recuperado pelas diversas versões do
ensaísmo teórico.
Ao que parece, é a perspectiva cultural que sai revigorada, di-
ante de tantas diferentes tentativas de mesclas metodológicas mais
ou menos felizes. Uma época que necessita do “antiparadigma”
da ficção teórica e que não objetiva encontrar o cientificismo a
todo custo parece ser um período ideal para a proliferação de li-
nhas de fuga e desvios, onde o imperativo “cortar caminhos!” ser-
ve como linha geral de uma arquitetura rica em crises (econômi-
cas, políticas, sociais) que, invariavelmente, afetavam os domínios
literários.
O redemoinho dos textos que circularam durante a terceira fase
do Folhetim parece estar respondendo de forma geral à queda dos
grandes modelos interpretativos que, formando modulações par-
ciais dotadas de potenciais mesclas, iniciam um processo de pas-
sagem do modelo exclusivamente literário para o perspectivismo
cultural. O cultural parece iniciar um movimento emergente que
traz consigo uma nova categoria crítica. Refletindo sobre a ques-
tão, Fredric Jameson define a ascensão dos estudos culturais nos
seguintes termos:

Na realidade, eu deveria pôr as cartas sobre a mesa e


dizer que assim como acredito que é importante agora
(e interessante desde o ponto de vista teórico) discutir
e debater sobre os Estudos Culturais, não me preocupa
particularmente que tipo de programa finalmente se
levará adiante ou se, em primeira instância, surgirá
uma disciplina acadêmica oficial deste tipo.
Provavelmente isto se deve a que, para começar, não
creio muito nas reformas dos programas acadêmicos,
mas sobretudo porque suspeito que uma vez que se
tenha levado a cabo publicamente o tipo de discussão
apropriada, se terá cumprido o propósito dos Estudos
Culturais, para além do marco departamental em que
tenha lugar dita discussão. (E este comentário se
relaciona especificamente com o que considero a
questão prática mais importante que está em jogo aqui,
a saber, a proteção dos jovens que estão escrevendo
artigos nesta nova ‘área’, e a possibilidade de que essas
pessoas conquistem postos de trabalho.)
Também deveria dizer, contra as definições (Adorno gostava de
recordar-nos do rechaço de Nietzsche frente a tentativa de definir
os fenômenos históricos como tais), que acredito que, de alguma
forma, já sabemos o que são os Estudos Culturais; e que ‘defini-los’
implica descartar o que não é, extraindo a argila supérflua da está-
tua que emerge, traçando um limite a partir de uma percepção
instintiva e visceral, tentando identificar o porquê de ele não ser
tão abrangente. Finalmente, se chega ao objetivo, embora em al-
gum momento deva surgir uma ‘definição’ positiva do termo.
Seja o que for, os Estudos Culturais sugiram como resultado da
insatisfação a respeito de outras disciplinas, não só por seus con-
teúdos, como também por suas muitas limitações. Neste sentido,
os Estudos Culturais são pós-disciplinares; porém, apesar disso, ou

91 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


talvez precisamente por esta razão, uma das idéias fundamentais
que o define é a sua relação com as disciplinas estabelecidas. Pare-
ceria apropriado, então, começar pelos protestos que fazem os ‘ali-
ados’ dessas disciplinas com relação ao abandono, por parte dos
Estudos Culturais, de objetivos que consideram fundamentais.22
Esta alternativa crítica, que vinha se incorporando e dava seus
primeiros passos nos anos oitenta, se nutria de algumas desconfi-
anças em relação aos becos-sem-saída que os caminhos tradicio-
nais da crítica haviam criado, impedindo os movimentos de ampli-
ação de seus limites. Pretendeu-se, inicialmente, denunciar o
conservadorismo e a resistência do meio universitário em dialogar
e dividir espaço com os jornalistas; depois, fechou-se o foco das
preocupações (quase as esgotando) em torno de nomes consagra-
dos; a seguir, foram as tentativas de interdisciplinaridade que fo-
ram, a todo custo, subvertidas para funcionarem como resistência;
finalmente, os processos de exclusões literárias passam a conviver
com os regimes de cotas sociais. Os estudos culturais não são a
única resposta para as prementes questões finisseculares, mas fun-
cionam como a principal oposição, capaz de “atravessar” os dis-
cursos constituídos.
Ao gosto dos modernistas brasileiros, Otávio Frias23 se referia
às fases do Folhetim utilizando a metáfora biológica das “denti-
ções”. Ao longo de minha exposição, preferi não utilizá-la porque
as dentições humanas sugerem uma interpretação que pode ser
excessivamente mecânica, embora, neste momento, valha a pena
lembrá-la. A primeira dentição é a mais breve e é aquela adequada
à digestão dos alimentos mais tenros e, ao mesmo tempo, ela nos
prepara, moldando-se ao espaço interno da boca, a um período de
tempo maior. A segunda dentição deveria ser aquela que nos acom-
panharia pelo resto de nossas vidas; embora isso raramente acon-
teça, esta segunda dentição é, como a primeira, natural. A terceira
dentição não é natural e inaugura, às vezes de forma prematura,
uma época de implantes, o que transforma a nossa boca em um
espaço destinado às mesclas e ao hibridismo, onde se pode encon-
trar o natural ao lado do artificial em perfeita harmonia. Contudo,
à primeira vista ou ao primeiro sorriso, é muito difícil aos olhos dos
leigos detectar a existência ou não de implantes artificiais. Nesta
chave, o ensaio poderia ser entendido como uma série de textos
“artificiais” dotados de mesclas e hibridizações.
É neste cenário que o ensaísmo poderia ser compreendido como
uma decorrência da síndrome moderna do fragmento, que, trans-
formando o instantâneo em estética, assume o ônus de inaugurar
uma dialética sem síntese, ou, para além da dialética, os sofismas
inspiram uma jornada estéril, cuja hibridez não permite, pelo me-
nos nas formas tradicionais, a geração de herdeiros. Iniciei este
texto depositando muitas expectativas em relação ao poder reativo
do ensaio frente aos dilemas dos anos oitenta. Apostei na idéia de
que o ensaio pudesse arcar com o peso e a responsabilidade de
mover estruturas culturais já consolidadas. Porém, creio ter perce-
bido que, de alguma forma, o teor “revolucionário” do ensaio fora
sendo subvertido, transformando-o em um “gênero conservador”
e, embora jovem, quase caduco.

travessia 40 / outra travessia 1 92


FRAGMENTOS DE UMA POÉTICA
VERBIVOCOVISUAL NÃO NACIONAL*
Jorge Wolff
UNISUL

*
Pierre Menard resulta de um ser híbrido, mistura de Stéphane O ensaio aborda as idéias e os
Mallarmé e de Jorge Luis Borges, segundo Silviano Santiago em posicionamentos de grupos e
periódicos culturais franceses,
torno de 1970:
argentinos, brasileiros e norte-
Pierre Menard, romancista e poeta simbolista, mas americanos dos anos 60 e 70, e faz
também leitor infatigável, devorador de livros, será a parte do primeiro capítulo da tese
Telquelismos latino-americanos. A
metáfora ideal para bem precisar a situação e o papel
teoria crítica francesa no entrelugar
do escritor latino-americano, vivendo entre a dos trópicos. Pós- Graduação em
assimilação do modelo original, isto é, entre o amor e Literatura, UFSC, 2002.
o respeito pelo já-escrito, e a necessidade de produzir 1
Santiago, S., “O entrelugar do
um novo texto que afronte o primeiro e muitas vezes o discurso latino-americano”, Uma
negue.1 literatura nos trópicos, 2ª ed. Rio de
Janeiro: Rocco, 2000, p. 23 (1ª ed.
* 1978).
2
V. Kristeva, J., “Un nouveau type
Diante dessa espécie rara de canibal, deve-se perguntar, já que d’intellectuel: le dissident”, Tel Quel
se trata do ponto de partida (e de chegada): que espécie de antro- nº 74, Paris, hiver 1977, pp. 3-8.
pófagos devoravam-se na Argentina, naquele momento, senão seus 3
Compagnon, A., Le démon de la
novos críticos, como aqueles reunidos em torno do projeto, dos théorie. Littérature et sens commun,
projetos da revista Los Libros? Sua intersecção fundamental, assim Paris: Seuil, 1998, p. 114.
como aquela de Santiago – ou Leyla Perrone-Moisés, ou Haroldo 4
V., p. ex., Culler, J., As idéias de
de Campos – no Brasil, se dá no período com os militantes da
Barthes, São Paulo: Cultrix/Edusp,
chamada teoria crítica francesa, denominados, problematicamen- 1988.
te, telquelianos – voluntariosos manifestantes da diferença no ter-
reno da cultura e da política, isto é, do pensamento 68 em uma de
suas vertentes mais polêmicas e atuantes, aquela do terror teórico
e da dissidência, seja do surrealismo, seja do Partido Comunista
Francês, ou conforme os termos de um tardio libelo de Julia Kristeva
nas páginas da revista.2
De modo que é preciso perguntar: qual o mito ou quais os
mitos do telquelismo em sua constituição – através das mais diver-
sas apropriações teóricas –, em sua expansão e também em seu
declínio?

*
Era preciso buscar as ruínas da destruição de um conceito “ide-
alista” e de transparência ambígua, segundo a última vanguarda
francesa: o mito da linguagem vista enquanto presença. Visão que,
mais tarde, será considerada convencionalista ao extremo – “au
sens où elle s’est opposée à toute conception référentielle de la
fiction littéraire”3 –, ao que não se deveria esquecer de retrucar que
se tinha consciência disso, como no caso de Roland Barthes.4
É preciso criticar as ambições de ruptura e os limites da prática
de um intelectual dissidente, que perpassam o ideário telqueliano
– posto que havia chegado a hora – e analisar de que forma essas
pedras-de-toque se manifestam em certas figuras, cujo nome são
muitos nomes, com base em uma determinada noção de sujeito,
vale dizer, à la Menard.

93 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


5
O que define um “grupo”? Piglia, *
après coup, oferece uma idéia
irônica do que, para ele, não o seria: Existem infinitas leituras da problemática proposta pelo grupo
“O último grupo literário de que fiz Tel Quel (futuramente L’Infini), que entendia elaborar sistematica-
parte foi o da revista El traje del mente uma teoria e uma prática revolucionárias da escritura mas
fantasma, que editamos (1985-1988)
que, para os adversários, não poderia sequer se caracterizar como
com Juan José Saer e Juan Carlos
Martini. Não sei se uma revista que um grupo.5 Com a abordagem de algumas delas, remeto às figuras
só publicava necrológios e panfletos e problemas em foco e, ao mesmo tempo, delineio e informo mi-
é suficiente para formar um grupo”. nha própria leitura, assim como o fazem os conceitos de texto e
Cf. “Retrato pessoal”, O laboratório teoria, sujeito e dissidência, que tangenciam esta mescla de relatos
do escritor, São Paulo: Iluminuras, desencadeada por dois deles em particular, eleitos em função de
1994, p. 47 (originalmente em
Babel, Buenos Aires, dez. 1990). uma certa cartografia contemporânea – a América do Norte em
Antecipo aqui (mais) um paradoxo: 1973, a América do Sul em 1998, digamos.
quando Los Libros se torna um grupo Parto, portanto, de uma versão argentina do “fenômeno”, uma
fechado, a partir de 73, pouco
vez que se trata de um ataque frontal, de uma interpretação
publica além de panfletos e
necrológios. hipercrítica, próxima no tempo e no espaço, além de bastante su-
gestiva ao refletir sobre o tema pelo viés dos câmbios provocados
6
Conferência “La literatura en la pela explosão da cultura e dos meios de massa precisamente em
esfera pública”. Colóquio da Abralic,
UFMG, Belo Horizonte, 3 ago. torno de 1970. Com isso, entre o conceitual e o anedótico, trato de
2001. introduzir a série de problemas recorrentes no decurso de sua grande
7
guerra discursiva. Problemas estes incitados sobretudo pelas fre-
Cf. Gilman, C., Cap. II: “El
protagonismo de los intelectuales y
qüentes mutações político-ideológicas, características da longa tra-
la agenda cultural”, Entre el fusil y la jetória de sua “refinadísima revista” (no dizer de Beatriz Sarlo),6
palabra: dilemas de la literatura sobre um certo e permanente substrato de literatura.
revolucionaria, Buenos Aires:
Sudamericana, 2003. *
8
Greco y Bario, A., “La operación “En un movimiento progresivo, que alcanzó entonces
Tel Quel y la alucinación según la
Escuela de Frankfurt”. Radar/Página
su culminación cuantitativa en los años sesenta, artistas
12, Buenos Aires, 3 mayo 1998, p. 7. y letrados se apropiaron del espacio público como
tribuna desde la cual dirigirse a la sociedad, es decir,
se convirtieron en intelectuales”. Claudia Gilman7

*
Em um artigo publicado por um jornal de Buenos Aires aos
trinta anos de Maio de 68, Alfredo Grieco y Bario vê o que chama
de “operación Tel Quel” enquanto uma capitalização desabusada
e oportunista da insurreição parisiense por parte de intelectuais
“desbordados”, cujas teorias “monumentais” se viram surpreendi-
das pelos acontecimentos, que não teriam conseguido antever e
que tratariam de reverter a partir de então em proveito próprio.8
Note-se que o texto é disparado com uma referência tão solta quanto
objetiva à metodologia do sociólogo Pierre Bourdieu, ilustre e fe-
roz inimigo da “operação” (a quem remeto adiante), o que permite
situar desde já alguns dos principais contendores desta intriga de
partis pris e de idéias-força.
A operação teria sido desencadeada, segundo o articulis-
ta, com a publicação, em fins de 68, da Théorie d’ensemble, a
antologia manifestária que melhor define o chamado telquelismo
no período em que exerce grande influência intelectual, até diga-
mos o declínio de uma certa imagem do império maoísta, construída
em torno de uma determinada teoria e de uma suposta prática de
revolução cultural. “El de Tel Quel es tal vez el mejor ejemplo de
un grupo que fue catapultado a la fama, por los acontecimientos
de mayo”, acusa Grieco y Bario, com evidente vontade de
polemizar, à maneira do líder do grupo visado:
Apropiarse del Mayo Francés permitía a Tel Quel
aprovechar mejor que ningún otro grupo de izquierda
una situación de tránsito que ha caracterizado a la

travessia 40 / outra travessia 1 94


9
cultura gala: el pasaje de la imprenta a la televisión, Na Histoire de Tel Quel devida a
de escritores a celebridades; la transformación de Philippe Forest (Paris: Seuil, 1995),
talvez o principal membro da
volúmenes filosóficos y novelas en talk-shows (o en
sempre ativa claque de Philippe
pretextos para talk-shows), de los movimientos literarios Sollers, a versão naturalmente é
en modas culturales, de las obras maestras outra. Forest pretende fazer ali uma
desconocidas en nombres famosos. revelação: os telquelianos, apesar de
ainda ligados ao PCF em 68, desde
Duas observações pontuais: primeiro, o sociólogo argentino muito antes e em segredo, já teriam
apresenta a transição vivida à época como se fosse exclusividade se definido como pró-chineses...
da “cultura gala”; e, segundo, todo polemista é ele mesmo um tipo 10
“Os intelectuais e a revolução
de oportunista, ao desejar antes de mais nada esquentar o que enun- cultural”. Suplemento Literário/O
cia, como se pretendesse publicar antes de escrever, conforme o Estado de S. Paulo, 10 ago. 1968,
aforismo de Osvaldo Lamborghini. Para este fim, o autor argumen- p. 1.
ta que a operação consistiu em relacionar ou confundir, em seus
termos, o pensamento então dominante – o estruturalismo – com a
insurreição, transformando-os assim na própria definição de “Pen-
samento 68”, em detrimento da “filosofia da consciência” e em
contradição com um movimento que, como diz de modo revelador
(já que representa um lugar comum), privilegia “las estructuras so-
bre la historia, lo frío sobre lo caliente”. Apesar do caráter
determinista da argumentação, a crítica ganha alguma pertinência
ao atacar a junção de materialismo histórico com “un ahora
sospechoso materialismo semántico”, proposta pela vanguarda
telqueliana, que em torno de 69 se volta de modo religioso à figura
de Mao Tse-tung e seu credo particular, em nome de uma retórica
da revolução não apenas cultural mas também permanente ou in-
finita.9

*
“Não que os estudantes tenham provocado as posições
revolucionárias dos intelectuais, mas estas se
incendiaram com o estopim universitário”. Leyla Perrone-
Moisés10

*
Conforme implica ou impõe (mais que propõe) o seu sugestivo
título – “La operación Tel Quel y la alucinación segundo la Escuela
de Frankfurt” –, a segunda parte do artigo de Grieco y Bario analisa
a relação não menos complexa dos frankfurtianos com o movi-
mento desatado pelos estudantes franceses. Enquanto Herbert
Marcuse, um best-seller entre os revoltosos, não deixaria de apoiá-
los nos Estados Unidos de forma incondicional, são por outro lado
bem conhecidas as posições categoricamente negativas adotadas à
época por Adorno e Habermas. Amparado na racionalidade libe-
ral, Habermas referiu-se à “confusión ininteligible” (no castelhano
de nosso redundante crítico) entre tomada de poder de fato e inva-
são de universidades, confusão que do ponto de vista clínico
corresponderia a “estados alucinatórios” – expressão que remete
ao estado “absolutamente psicótico” apontado por Beatriz Sarlo,
ao tentar definir o comportamento do grupo maoísta que monopo-
liza despoticamente a revista Los Libros – ao qual estava ela mesma
ligada – a partir do nº 29, durante o seu terceiro ano de existência,
até o fim, com a ditadura militar implantada em 76.
Já o infinito aclimatado começaria, de certo modo, em 1978
com Punto de Vista – embora o infinito aclimatado não seja obvia-
mente L’Infini.

95 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


11
Segundo texto de Contrafogos. Em 1983, Tel Quel vira em definitivo à direita com L’Infini.
Táticas para enfrentar a invasão
neoliberal (Rio de Janeiro: Jorge *
Zahar, 1998, p. 21-23), o artigo data
de janeiro de 1995. Com o auxílio do crítico e da crítica argentina, todos caminhos
12
Dosse, F., História do estruturalis-
levam a Pierre Bourdieu, autor de, entre muitos outros, Contrafogos,
mo, vol. 2, São Paulo/Campinas: polemista ele próprio, tanto quanto Sollers, conforme bem o de-
Ensaio/Ed. da Unicamp, 1994, p. monstra, por exemplo, em “Sollers tel quel”, um pequeno panfleto
192. aparecido no Libération em 1995 (ano de resgate acadêmico e edi-
13
Conforme observa Forest, a torial do telquelismo), em resposta a um artigo no L’Express em que
americana não só esteve presente Sollers reafirmava seu apoio a um político conservador.11
entre o público, mas fez interven- Para um irado e ao mesmo tempo satisfeito Bourdieu, “na con-
ções nos debates (Histoire de Tel
Quel, op. cit., p. 438). fissão de um título, ‘Balladur tel quel’, condensado em alta densi-
dade simbólica, quase bom demais para ser verdade”, se revelaria
“toda uma trajetória: da revista Tel Quel a Balladur, da vanguarda
literária (e política) fajuta até a retaguarda política autêntica”. Pros-
seguindo até o fim com esse gênero de vocabulário peso-pesado, o
eminente sociólogo acusa o líder do suposto movimento de saber
apenas “macaquear gestos do grande escritor, e até fazer imperar,
durante um momento, o terror nas letras”.

*
Registre-se a oportunidade de enfatizar esse momento, propor-
cionada pelo sociólogo francês em seu ataque, uma vez que apon-
ta com precisão para a execução e a voga da “operação telqueliana”,
nos termos de um discípulo sul-americano, a quem em nada soaria
insólita a associação proposta por Bourdieu entre o diretor de Tel
Quel – e hoje L’Infini – e o finado François Mitterrand – “o equiva-
lente em política, e ainda mais em matéria de socialismo, do que
Sollers foi para a literatura, e ainda mais para a vanguarda”.
A noção de momento no sentido de paradigma permite reme-
ter ao estruturalismo e ao telquelismo, tomados como os dois la-
dos de uma só moeda – falsa, diriam seus mais polidos detratores.
Considerados justamente os poderes do falso, além da dinamização
do banquete estrutural a partir dos idos de 67, importa distinguir o
momento estruturalista – conforme o vê, por exemplo, o historia-
dor François Dosse12 – e o momento telqueliano que o enxertaria
(não se tratando de sucessão ou evolução), levando-se portanto em
conta que este inclui e exclui simultaneamente aquele, e vice-versa.

*
O telquelismo, ainda que sem tal denominação, também passa
a circular, e a peso de ouro, nas universidades norte-americanas a
partir de 1966, sobretudo após o célebre colóquio de Baltimore,
na Universidade Johns Hopkins, reunindo Jacques Lacan, Roland
Barthes e Jacques Derrida, entre muitos outros. A escala de seu
consumo é, portanto, intensa desde os primeiros anos, e o ensaio
“Tel Quel. Text & Revolution” (1973) de Mary Ann Caws é uma
diminuta mas sintomática amostra de sua recepção – com os deta-
lhes (díspares mas significativos) de que (i) a autora foi testemunha
ocular13 do Colóquio de Cerisy-la-Salle dedicado a Artaud e Bataille,
em julho de 72; (ii) a noção de telquelismo, talvez antes mesmo de
existir, seria logo sobrepujada por uma atualização da idéia de
desconstrução sob a responsabilidade de Derrida, a partir da filo-
sofia heideggeriana; e (iii) o mesmo Derrida passa a ministrar um
seminário anual disputadíssimo na Universidade de Yale a partir
desse mesmo ano de 73.
De modo que, para uma abordagem mais “gramatológica” do
momento telqueliano, sucedendo àquela dogmática, funcionalista

travessia 40 / outra travessia 1 96


14
mas não menos sugestiva de Grieco y Bario, lanço mão desta pre- Derrida diz preferir, hoje, a
coce leitura norte-americana do grupo ou da “operação” homôni- desconstrução no plural. Cf.
Nascimento, Evando, “A máquina de
ma – em um país em que tais apropriações abundariam das formas
guerra discursiva”. Mais!/Folha de S.
mais banais às mais sofisticadas, revelando-se, no entanto, umas e Paulo, 3 set. 2000. p. 30-31. Note-se
outras, como prática teórica ou meramente mercadológica, invari- a propósito da desconstrução no
avelmente lucrativas. Finalmente, remeto à própria Teoria de con- plural que, do mesmo modo, já no
junto, especialmente ao que ela deve a Derrida ou, em outras pala- início de 69, Perrone-Moisés, bem
instruída, alertava para a existência
vras, de acordo com a sua apropriação peculiar da filosofia “das
de não um mas “vários estruturalis-
desconstruções”.14 mos”. Cf. “Por uma poética
estrutural”, Suplemento Literário/O
* Estado de S. Paulo, 25 jan. 1969, p.
1. O mesmo ocorre em certa revista
“Para nós não é nova a idéia da ‘desconstrução’ do argentina, pouco depois: cf. Sázbon,
orgulhoso logocentrismo ocidental, europeu, à maneira J., “Qué es el estructuralismo”. Los
preconizada por Derrida, uma vez que já tínhamos a Libros nº 6, dez. 1969, p. 20.
antropofagia oswaldiana, que é, por si mesma, uma 15
“Minha relação com a tradição é
forma ‘brutalista’ de ‘desconstrução’, sob a espécie da musical” (entrevista de 1983
devoração, da deglutição crítica do legado cultural concedida a Rodrigo Naves).
universal”. Haroldo de Campos15 Metalinguagem e outras metas, São
Paulo: Perspectiva, 1992, p. 261.
* 16
Caws, M. A., op. cit., p. 3 (ambas
as citações).
O texto introdutório da operação telqueliana nos Estados Uni- 17
The time of theory. A History of Tel
dos é antes um testemunho sobre o debate pós-estruturalista fran-
Quel (1960-1983). Oxford:
cês in loco, embora se apresente sob a forma de uma resenha de Clarendon Press, 1995, p. 10.
três livros ensaísticos – Semiotiké (1969) de Julia Kristeva,
L’Enseignement de la peinture de Marcelin Pleynet (1971) e Logiques
(1968) de Philippe Sollers. A autora reporta, por exemplo, nada
menos que uma representação pretensamente orgíaca da comédia
textual, em performance do romancista Pierre Guyotat (censurado
em seu país), realizada durante o mesmo Colóquio de Cerisy de
72, cujo lema – chinês – era “Por uma Revolução Cultural”:
It may not be irrelevant to note here that Guyotat’s talk
at the colloquium held at Cerisy, June 29-July 9, 1972,
on Artaud and Bataille – a talk meant to be
“insupportable,” dealing as it did with masturbation
and the rather specialized problems attendant
thereupon, particularly when the other hand is
occupied with the writing of an “orgiacal text” (“L’Autre
Main branle”) – was remarkable mainly for its style.

Insistindo sobre o caráter de encenação do colóquio, acrescenta:


However, the risks and the nervousness were less
apparent, at least to some of those present, than was a
certain elegance of presentation. Perhaps the effect Tel
Quel has had in persuading us of the importance of
the text and the collective endeavor finally goes beyond
any individual courage and any particular content, even
when the group might wish it otherwise.16

*
“A noção de revolução cultural é, obviamente, muito
sedutora para movimentos culturais e grupos que
procuram articular arte com uma política
revolucionária. Ela também explica, em parte, a
explosão do maoísmo na França depois de 1966”.
Patrick ffrench17

97 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


18
Barthes, R. “Texte (théorie du)”. *
Encyclopœdia Universalis, tome XV,
1973, p. 997. Em Oeuvres Ao abrir a edição da primavera de 1973 da revista Diacritics –
complètes: vol. II. Paris: Seuil, 1994, seguida por, entre outros jovens escritores, Geoffrey Hartman,
p. 1679-80. Edward Said e o próprio Jacques Derrida –, Caws aponta para o
19
“A floração das revistas” (seção conceito em moda entre os intelectuais naquele momento de voga
Letras Francesas). Suplemento telqueliana: o conceito de texto, visto como revolucionário, mas
Literário/O Estado de S. Paulo, 23 de em pouco tempo vitimado pela própria inflação. Questão de cren-
maio de 1970, p. 1. Barthes
ça: desde o início o trabalho da revista Tel Quel se debruça sobre
reaparece em abismo em Poétique
nº 47, uma década depois, quando uma prática do texto – e a autora procura explicar no artigo, com a
morre, através de Derrida, em “Les ajuda de Pleynet, por que o termo supostamente neutro de “texto”,
morts de Roland Barthes” (conferên- em detrimento de obra, por exemplo. O que equivale a dizer que
cia de 1980, publicada em 81), que se detém sobre uma virtual infinidade de possibilidades de signifi-
cito na versão espanhola: “(...) en cação, tendo a revista, no entanto, levado seus preceitos a princí-
Poétique, sería preciso subrayar
ahora el inmenso papel que jugó y
pio antirreligiosos a um fanatismo digno dos mais cegos fiéis, adep-
que continuará jugando la obra de tos da seita dos “textualistas”, que conheceu fama e sucesso
Barthes en el campo abierto de la efêmeros, cooptou, agitou, deixou discípulos em novos periódicos
literatura y la teoría literaria (es e logo desapareceu por completo (arrisco dizer) vitimada por suas
legítimo, es preciso hacerlo y lo próprias e indisfarçáveis tendências teleológicas.
hago)”. Las muertes de Roland
Barthes, México: Taurus, 1998, p. *
72.
Postula-se, com o problema do texto, o fim das fronteiras entre
crítica e ficção: teoria e escritura são completamente identificadas,
em função da dimensão teórica da escritura (segundo sua nova
acepção), por um lado, e da recusa de uma abordagem puramente
instrumental de sua linguagem, por outro. Como é sabido, a noção
de texto é capital tanto quanto “anticapitalista” para o seu pro-
grama, ao incluir em si não somente o ensaio e a crítica, mas “tudo
o que até hoje era o discurso intelectual e inclusive científico”.18
Em “Texte (théorie du)”, Roland Barthes demonstra em pri-
meiro lugar o que não é um texto para a “nova crítica”: “C’est la
surface phénoménale de l’œuvre littéraire; c’est le tissu des mots
engagés dans l’œuvre et agencés de façon à imposer un sens stable
et autant que possible unique”. O texto possui importância funda-
mental para o Ocidente – “la civilization du signe” – por significar
estabilidade e permanência, e também a “legalidade da letra”, que
forneceria ao autor o completo domínio sobre a unidade cerrada e
definitiva da obra:
La notion de texte est donc liée historiquement à tout
un monde d’institutions: droit, Église, littérature,
enseignement; le texte est un objet moral: c’est l’écrit
en tant qu’il participe au contrat social; il assujettit,
exige qu’on l’observe et le respecte, mais en échange
il marque le langage d’un attribut inestimable (qu’il ne
possède pas par essence): la sécurité.

*
“O primeiro número de Poétique começa com um
artigo de título sugestivo e oportuno: ‘Par où
commencer?’ e seu autor tem aí uma presença
carregada de conotações. Roland Barthes, o grande
inspirador das teorias de Tel Quel, presente em Change
com seu texto sobre a moda, batiza agora a recém-
nascida Poétique. O número também termina com
Barthes, pois sua última página é uma publicidade de
S/Z. O nome de Barthes parece ser um traço de união,
um terreno de entendimento onde todos se encontram
e se reconhecem”. Leyla Perrone-Moisés19

travessia 40 / outra travessia 1 98


20
* Também Haroldo de Campos, que
foi um precoce globe-trotter
Em algumas linhas de um trabalho anti-enciclopédico des- concreto.
tinado a uma enciclopédia, Barthes resume o ideário de uma épo- 21
Barthes, R.“Texte (théorie du)”,
ca, com duas referências teórico-filosóficas maiores, o materialis- Oeuvres complètes, t. II, p. 1679.
mo dialético e a psicanálise. Este ideário tem uma particular
receptividade na América Latina, através de alguns personagens de
culturas em trânsito, aqui implicados: Héctor Schmucler estuda na
França com Barthes, retorna em 69, e funda Los Libros, onde ao
menos em parte se formam Beatriz Sarlo e Ricardo Piglia, os quais
assumem depois a direção da revista. Perrone-Moisés e Santiago,
nesse período, estão indo e/ou voltando das universidades france-
sas – com o detalhe importante de que o segundo passa a década
de 60 entre a França e os Estados Unidos.20 Todos vivem e contri-
buem com intensidade para o que se chamou de uma “mutação
epistemológica” concreta, na busca utópica deste objeto novo, o
texto, que se caracterizava por colocar em questão a sua própria
enunciação:
Celle-ci [la mutation épistémologique] commence
lorsque les acquêts de la linguistique et de la sémiologie
sont délibérement placés (relativisés: détruits-
reconstruits) dans un nouveau champ de référence,
essentiellement défini par l’intercommunication de
deux épistémes différentes: le matérialisme dialectique
et la psychanalyse. La référence matérialiste-dialectique
(Marx, Engels, Lénine, Mao) et la référence freudienne
(Freud, Lacan), voilà ce qui permet, à coup sûr, de
repérer les tenants de la nouvelle théorie du texte. Pour
qu’il y ait science nouvelle, il ne suffit pas en effet que
la science ancienne s’approfondisse ou s’étende (ce
qui se produit lorsqu’on passe de la linguistique de la
phrase à la sémiotique de l’œuvre); il faut qu’il y ait
rencontre d’épistémés différentes, voire ordinairement
ignorantes les unes des autres (c’est le cas du marxisme,
du freudisme et du structuralisme), et que cette
rencontre produise un objet nouveau (il ne s’agit plus
de l’approche nouvelle d’un objet ancien); c’est en
l’occurrence cet objet nouveau que l’on appelle texte.21
É importante lembrar que, neste texto dedicado a uma pedago-
gia do texto (e nele também apareceria o nome de Mao), Barthes
destaca amplamente o trabalho de Julia Kristeva – uma das “ante-
nas” de Tel Quel –, que definiria os seus seis conceitos teóricos
fundamentais:
pratiques signifiantes (“la notion de pratique signifiante
restitue au langage son énergie active”), productivité
(“une production où se rejoignent le producteur du
texte et son lecteur: le texte “travaille”, à chaque
moment et de quelque côté qu’on le prenne; même
écrit (fixé), il n’arrête pas de travailler, d’entretenir un
processus de production”), signifiance (“la signifiance
est un procès, au cours duquel le ‘sujet’ du texte,
échappant à la logique de l’ego-cogito et s’engageant
dans d’autres logiques (celle du signifiant et celle de la
contradiction), se débat avec le sens et se déconstruit
(‘se perd’))”; phéno-texte (“le phéno-texte peut [...], sans
qu’il y ait incohérence, relever d’une théorie du signe
et de la communication: il est en somme l’objet
privilégié de la sémiologie”) e géno-texte (“c’est un
domaine hétérogène: à la fois verbal et pulsionnnel

99 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


22
Idem, ib., p. 1680. (c’est le domaine ‘où les signes sont investis par les
23
Kristeva, Julia, “La productivité pulsions’))”; intertextualité (“épistémologiquement, le
dite texte”, Sémiotiké. Recherches concept d’intertexte est ce qui apporte à la théorie du
pour une sémanalyse, Paris: Seuil, texte le volume de la socialité: c’est tout le langage,
1969, p. 183. antérieur et contemporain, qui vient au texte, non selon
24
Para Schmucler, em entrevista ao la voie d’une filiation repérable, d’une imitation
autor, o que tinham era “una volontaire, mais selon celle d’une dissémination –
soberbia infinita”. image qui assure au texte le statut, non d’une
25
A tradução da Editora Seix Barral, reproduction, mais d’une productivité”).22
de Barcelona, feita por Salvador
Oliva, Narcís Comadira e Dolors Para Kristeva, a exilada búlgara, e para o grupo Tel Quel, trata-
Oller, aparece já em 1971. se de um momento de transição da dualidade (do signo) à produti-
26
ffrench, P. e Lack, R.-F., The Tel
vidade (trans-signo), anunciada a partir do final do século XIX, com
Quel Reader, London/New York: Mallarmé, Lautréamont, Nietzsche e Marx (o último em um nível
Routledge, 1998. Apesar dos nomes particularmente determinante, a seu ver). 23 No comentário
“suspeitos”, trata-se de dois barthesiano ao “geno-texto” em Texte (théorie du), ressurge a idéia
dedicados pesquisadores, em grande de transição: a passagem da estrutura à “estruturação”, à
parte responsáveis pela sobrevivên-
“estruturalidade da estrutura” (nos termos de Derrida), vai reapare-
cia do telquelismo em língua inglesa
hoje. Patrick ffrench é autor de The cer com ênfase, já que o grupo se situava na vanguarda, ou melhor,
time of theory, uma variante inglesa disputava de maneira voluntariosa o espaço à frente do cenário
e menos laudatória da mesma intelectual, de maneira deliberadamente violenta e estridente, so-
história contada por Forest em bretudo na voz de seu editor-fundador – por sinal, a figura mais
Histoire de Tel Quel. Ambas foram
visível e menos importante do grupo, considerando a opinião de
publicadas em 95, ano da realização
dos “Colloques de Londres et de alguns de seus principais leitores latino-americanos.24
Paris” sobre o tema “De Tel Quel à Não era essa, então, a aposta de Roland Barthes, na Universalis
L’Infini. L’avant-garde et après”, cuja em 1973, ao fazer referência à melhor linhagem de escritores mo-
antologia foi coordenada precisa-
dernos: “de Lautréamont à Philippe Sollers”; ou em Sollers écrivain,
mente por Forest, na parte francesa,
e ffrench, na inglesa (Nantes: Pleins de 79. Nem de Foucault – ao menos em “Distance, aspect, origi-
Feux, 1999). ne”, abrindo a Théorie d’ensemble – nem de Derrida – em La
Dissémination, de 72.

*
Os debates da hora indicam, ao menos aparentemente, uma
guinada de um marxismo-leninismo “ortodoxo”, apesar da mixagem
com o freudismo, a um presente (isto é, “em torno de 70”)
engajamento acrítico à maolatria, segundo diziam os franceses,
plenamente assumida a partir das “Posições do Movimento de Ju-
nho de 1971”, que deixou mortos e feridos: em meio a uma grande
discussão via revistas e jornais, do Le Monde a La Nouvelle Criti-
que (do Partido Comunista Francês) a Promesse, Jean Ricardou e
Jean Thibeaudeau deixam o grupo e, principalmente, dá-se o rom-
pimento político de Tel Quel com Derrida, tido como mais um
“dogmático-revisionista” ao apoiar a união da esquerda francesa
contra não apenas o centro e a direita mas também contra o “peri-
go amarelo”. Desse modo o grupo da revista retorna ao que havia
criticado, e na verdade se encontrava apenas reprimido, no movi-
mento surrealista dos anos 30: um certo excesso de crédito em um
regime totalitário com atrativos estéticos e propagandísticos
irresistíveis durante certo espaço-tempo.

*
Ao contrário de hispano-falantes, que são leitores extremamen-
te precoces da Teoría de conjunto,25 a “massa” de leitores de lín-
gua inglesa teria de esperar até o final da década de 90, quando se
faz publicar The Tel Quel Reader, incluindo textos teóricos (a gran-
de maioria) que permaneciam espantosamente inéditos na língua
hoje hegemônica, segundo os organizadores, ffrench e Lack.26 In-
dicadores como estes são insuficientes para medir o seu verdadei-
ro impacto em um ou outro lugar e, no entanto, servem para mani-

travessia 40 / outra travessia 1 100


27
festar tempo e intensidade de interesse em um ou outro mercado Idem, ib., p. 4.
editorial. Mas, enquanto a psicanálise lacaniana, por exemplo, vai 28
“Tel Quel’s formation had an
surgir na Espanha por intermédio de psicanalistas argentinos no economic motive. The promise of
exílio durante a última ditadura militar – cumprindo um esquisito Sollers’s Une curieuse solitude was
itinerário –, o telquelismo rapidamente esteve à disposição de ostensibly the reason why Seuil
agreed to the formation of a literary
hispanos desde a Catalunha.
review around Sollers, as a good
investment. Seuil sought to establish
* a literary review of the same form
Ao mesmo tempo dedicada e desconfiada em relação àqueles and status as the NRF, from its own
stable of writers. (...) the formation of
que se apresentam como “à la fois un groupe, une revue, une
the review is not initially determined
collection”, Mary Ann Caws descobre com a ajuda de Henri by any kind of will to innovate or to
Meschonnic (nos Cahiers du Chemin, em abril de 72) que a create a new literary movement. In
epistemologia deste “materialismo semântico-semiótico” é falha e terms of the review’s orientation and
que o recentemente assumido engajamento da revista resulta no the history of ideas, it is an
accident”. Cf. ffrench, P., The time of
que chama de “repetitive sloganism”, cujo vocabulário expressa
theory, p. 46-7.
um “emotional manicheanism”: quem não for maoísta, será
revisionista dogmático, conforme se pode ler entre um e outro pa-
rêntese de Caws, momento em que toca nas grandes feridas
telquelianas, da sua “mistificação tautológica” – “satirized as a
‘metalinguistic process linked to the emission of a neo-pseudo-intra-
linguistic-referent”– à megalômana homologia “texte/Sollers”,
pretextada a partir da construção de uma sua China.

*
Tel Quel, pressupondo-se sempre pós-estruturalista, condena o
movimento estruturalista enquanto a-histórico, embora faça da
China “a dream of exotic science, a mistaken and idealized
interpretation of a distant phenomenon”, conforme Meschonic re-
portado por Caws, a qual, conforme se disse, responde de maneira
crítica e por outro lado se confessa aderente ao jogo de auto-exa-
me que impregna o colóquio de que participou, assim como o
próprio ar do tempo (“The present essay concerns itself with Tel
Quel at the moment of this writing”; “This objection [on an idealized
China] seems far less answerable to me, but that no doubt betrays
my aesthetico/liberal/capitalist viewpoint”).27

*
Versão esquerda da operação (defendida, aliás, por seu próprio
timoneiro): a revista Tel Quel responde desde sua fundação a uma
demanda da indústria cultural francesa no pós-guerra. É fruto de
uma aposta de uma editora, du Seuil, que vê perspectiva clara de
lucro em um certo nome e em um certo grupo de escritores emer-
gentes, a fim de disputar novos nichos de mercado com as vizinhas
e concorrentes parisienses Minuit e Gallimard.28 Trocando em miú-
dos: a editora é a “burguesia” e a nova revista recebe a procuração
para se trajar com rigor vanguardeiro.

*
Nova intervenção crítica reportada por Caws provém da revista
de Maurice Nadeau, La Quinzaine Littéraire de julho de 72, em
artigo de Jean Chesneaux, “De Mao aux Maos”, no qual a palavra
“movimento”, a exemplo do Movimento de Junho de 1971, é refe-
rida em chinês a um movimento (“yundong”) de massas do qual os
intelectuais recebem seu impulso inicial.
A pergunta é: pode esta direção ser invertida?

That particular question with the implied and obsessive sub-


questions about the actual relationship between textual work and

101 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


29
Caws, M. A., op. cit., p. 4. revolution of classes was the persistent undercurrent for much of
30
No calor da hora, o editor de La the Cerisy meeting in both its formal manifestation, that is the
Quinzaine faz sua leitura ponderada transcribed papers and debates, and its informal and unrecorded
do telquelismo em expansão. Cf. “Tel political discussions, where a certain heat was generated along with
Quel”. Le roman français depuis la certain ill-feelings, acknowledged and then recanted in standard
guerre, Nantes: LePasseur, 1992 (1ª
auto-critical fashion.29
ed. Gallimard, 1970), pp. 170 e 174
(grifos meus).
*
“Sollers est moins ‘révolutionnaire’ qu’il ne le paraît
et, là encore, il ne fait qu’aménager des positions depuis
longtemps conquises. Son effort de synthèse n’en est
pas moins brillant, d’autant qu’il a tiré profit, chemin
faisant, du travail des linguistes, des sémiologistes, des
structuralistes et qu’exploitant inteligemment ses
sources, il y trouve les arguments décisifs à l’appui de
sa thèse: peu importe qu’on appelle roman, poème ou
essai l’ensemble de signes que trace un écrivain, peu
importe même l’homme qui les produit et peu importe
son ‘oeuvre’; ce qui compte c’est le texte.

“Il faut attendre qu’ils [les écrivains de Tel Quel] soient


admis par des cercles plus larges de critiques et de
lecteurs, avant de s’aventurer à porter quelque
appréciation que ce soit sur des productions dont le
sens et le but n’apparaissent point à la lecture des textes
eux-mêmes. Peut-être s’apercevra-t-on alors que les
limites du roman – oeuvre de fiction, en prose, qui
possède en elle-même sa propre signification – sont
en effet largement transgressées, au profit d’un genre –
ou d’un non-genre – qu’actuellement on ne peut
désigner que par le terme vague et labile de ‘texte’. À
quelles lois de production obéiront ces textes? Quelles
fonctions seront-ils appelés à remplir? Toute réponse à
ces questions ne peut s’appuyer aujourd’hui que sur
des théories, c’est-à-dire des déclarations d’intentions”.
Maurice Nadeau30

*
Versão direita da operação: o telquelismo é uma chaga crítico-
teórica disseminada a partir dos anos 60 que atinge seu êxtase e
seu paroxismo no início dos 70.

*
E, no entanto, um trabalho cooperativo, como pretende ser o
telqueliano, deveria estar situado no outro lado das relações de
propriedade definidas, tradicionalmente, pelas idéias de autoria e
de indivíduo, entendidas como o foram no calor do texto e da trans
ou intertextualidade, através de uma crença ingênua em seu jogo
surrealista de “engendramento e destruição mútuos”. A escritura
plural do scriptor devida a Roland Barthes, assim como a Isidore
Ducasse ou a Julia Kristeva, em suas traduções chinesas, em nome
de um pensamento coletivo, conforme blefa o indivíduo, o autor
por trás da Théorie d’ensemble, ao deixar-se entrevistar por Jacques
Henric, nos termos de Caws:
Any staking of personal claims, any delimiting of the
origin of ideas is held to be a concession to market
value. Within the continuing dialectical process, the
text always open and unfinished is the property of all

travessia 40 / outra travessia 1 102


31
and the result of a productivity including in itself its Caws, M. A., op. cit., p. 4-5 (as
annihilation. At the other pole from the tendency to duas últimas citações).
linearity and unequivocal speech characteristic of 32
Théorie d’ensemble, op. cit., p. 72.
bourgeois ideologies stands the plurivocality of this
constantly renewed Théorie d’ensemble, literally a
theory developed together, in which the group or the
set provides a body of texts, each acting on the others,
and in which all are directed toward a transformative
end: “a text has the exact value of its action in
integrating and destroying other texts” (Théorie, p. 75).

*
Tel Quel acredita que a necessária interreferencialidade não pode
ser uma representação de uma autoridade mas o sinal de uma situ-
ação anônima de protesto coletivo, de vontade de revolução e pro-
duto de um claro posicionamento político com finalidade aberta-
mente transgressiva contra os pesados códigos de propriedade so-
cial ou lingüística. A fórmula básica é transgressão com autocrítica
permanentes, conforme este relato americano de viagem à França,
em seu último e agônico reduto vanguardista: “Corresponding to
the desired intertextuality (...), the following discussion is intended
as the ‘intersection of several codes’ (Semiotiké) rather than the
explicitation at length of any one of them”.31

*
“Théorie doit être pris ici, dans le sens que lui donne, de façon
décisive, Althusser: c’est ‘une forme spécifique de la pratique’”.
Philippe Sollers32

*
De qualquer modo, coexistiriam em todo coquetel telqueliano
ao menos os seguintes elementos, conforme levantados por Caws:
o formalismo e o futurismo russos, uma fundamental filosofia das
desconstruções – em especial as noções de trace, espacement e
différance –, a homologia escritura/revolução. Mais do que os en-
saios inaugurais da Théorie d’ensemble, de Foucault e de Barthes,
“La différance” e Derrida, que os sucedem no volume, marcam o
foco do desejo de transgressão manifestado por Tel Quel. É um
pensamento que pretende se superpor e, simultaneamente, se opor
às estruturas sincrônicas, estáticas e a-históricas da maioria dos
pensadores cientificistas rotulados de estruturalistas. O passo além
vai consistir na fusão, entre outras coisas, do conceito de texto com
o de transformação (de outros textos), que também significaria pro-
cesso, produtividade, diferença.

*
Glossário:
“A interpretação, para Derrida, consiste em ‘tecer um tecido
com os fios extraídos de outros tecidos-textos’. É assim que em ‘La
Pharmacie de Platon’, Derrida trabalha o texto platônico. A inter-
pretação é um tipo de leitura que supletiva um texto, no momento
em que, penetrando no seu corpo, desconstrói-o e revela aquilo
que estava recalcado.
“A filosofia da presença é posta em questão na crítica
nietzschiana da metafísica. O conceito de jogo propõe o aleatório,
abalando o centro (origem e fim). Sem centro, o texto é uma estru-
tura que deve ser pensada na sua estruturalidade, e essa natureza
dinâmica é que possibilitará a polissemia.

103 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


33
Glossário de Derrida. Rio de “Se o texto se apresenta como enigma, o desfazer da sua trama,
Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 51. isto é, a interpretação, se constituirá de movimentos de leitura su-
“Trabalho realizado [em 1974] pelo
cessivos, e o deciframento do texto se efetivará por um sistema
Departamento de Letras da PUC/RJ.
Supervisão geral de Silviano interpretativo próprio”.33
Santiago”.
*
34
Cf. Dosse, F. História do Estrutura-
lismo, vol. II, op. cit., p. 187. Quintuplicando a média de comercialização de Tel Quel, a
edição dedicada à China (nº 59, outono de 1974) vendeu vinte e
cinco mil exemplares.34

*
Uma teoria para uma nova história e um novo homem significa
a criação de códigos próprios: – Se existe intenção da consumação
do ato produtor de uma escrita que é uma arquiescritura, escreve-
se a partir de um discurso material porque ele é, ou existe... – A
cópia desta teoria desconstrutiva da escritura poderia ser levada ao
infinito a partir de suas próprias idéias-força – a começar pela idéia
de revolução permanente –, uma vez que se trata de combater
diferentes tipos de “pares imperiais”, quer no campo da cultura,
quer no da política, no da ciência ou no da filosofia, sob diferentes
formas de “imperialismos”: o império da fala sobre a escrita, de
deus sobre o diabo, da idéia sobre a matéria, da alma sobre o cor-
po, da forma sobre o informe, do sujeito sobre o objeto, e assim
por diante. É, portanto, necessário ajudar a combater o humanismo,
a dissolver o logocentrismo, apagar todas as suas luzes. Como se
sabe, as armas – pesadas – da teoria que tomam por base partem
do pensamento de Marx e de Freud e promovem um encontro en-
tre Dante, Nietzsche, Sade, Lautréamont, Mallarmé. Armas pesa-
das para lidar com uma equívoca produtividade sem dono. Sua
teoria do texto define-se por esta fórmula. Mais precisamente, para
o grupo Tel Quel, o texto não representa um significado que o ex-
cede, assim como não existe um sujeito transcendente que o im-
ponha ou um autor que o traduza. Na base de seu pensamento
“monumental” – englobando, conforme o subtítulo de sua revista,
primeiro apenas “literatura” e “ciência”, depois, “literatura”, “filo-
sofia”, “ciência”, “política” – aparece, é claro, o pensamento
marxiano e o que se imaginava ser o espaço de liberação represen-
tado pela luta de classes, e o pensamento freudiano, a linguagem
do inconsciente em novo ataque à razão ocidental.
Urge promover um descentramento radical da linearidade,
subverter os protocolos de circulação cultural do sistema, segundo
o vocabulário da época, em nome de uma textualidade que se
situaria antes da oposição animal/homem, natureza/cultura, e se-
ria encarada como o golpe de morte do etnocentrismo – uma vez
que está em seu ponto zero, em um espaço material que é comum
a todas escrituras em sua infinita diferença, ou seja, em um campo
que anuncia a própria noção de entrelugar: a exemplo de Oswald
de Andrade, Silviano Santiago também vai descobrir a América em
Paris – com a diferença de que a França já se mudara para a Amé-
rica do Norte.
Fosse onde fosse, a meta final era nada menos que uma
nova história, um novo homem, cujo valor não se mediria por seu
capital significativo, ao contrário: a contra-utopia deste discurso
político de vanguarda, “monumental” e múltiplo, se encontra em
uma tríplice revolução, econômica, social e simbólica, na tentati-
va de resolver a dicotomia literatura/revolução, quando ainda eram
levadas em conta estas miúdas e binárias verdades. Mas, para in-
vestigar as obsessões teóricas telquelianas – e de seus avatares na

travessia 40 / outra travessia 1 104


35
América do Sul – é necessário esboçar (transcrever? reescrever? Barthes, R., op. cit., p. 13-14.
plagiar?) a teoria de uma teoria que chegará a ser identificada com 36
Introdução a Théorie des
o demônio, quando ela pretendia ser simplesmente demoníaca, exceptions. Paris: Gallimard, 1986.
além de excessiva. O comando da teoria, em expressão do estudo 37
Trata-se de um pequeno e singular
de Marx-Scouras (título de um de seus capítulos), começa por não volume intitulado Literatura, política
se confundir com a abstração, nem se opor ao concreto, conforme y cambio, publicado na Argentina
se lê em entrevista de um teórico conhecido pelo refinamento e o por Ediciones Caldén (1976), na
caráter camaleônico, sempre parasítico de si mesmo – conforme, coleção “El hombre y su mundo”
dirigida por um colaborador dos
também, os seus pares paulistas, cariocas ou portenhos. Entre o
primeiros anos de Los Libros, Oscar
legível e o ilegível, entre a vanguarda e a instituição, Roland Barthes del Barco, e inteiramente devotado
afirma que o comentário de Sarrasine de Balzac “foi tanto a análise ao telquelismo. Alguns detalhes
de um texto como, segundo meu entender, uma teoria do texto, do fazem desta edição uma estranha
texto clássico, do texto legível”. Ficam aí desde logo bem explíci- colcha de retalhos, de qualquer
tas as distâncias a se tomar, e a direção das convulsões ideológicas forma reveladora do modo (provavel-
mente) mais caótico de recepção de
imaginadas: Tel Quel na América do Sul. Na capa
Contre cela, j’imaginerais très bien, et même je lêem-se quatro sobrenomes: Barthes,
souhaiterais que des discours, évidemment nouveaux, Sollers, Henric, Guyotat; na página
de rosto desaparece o nome de
assument un certain discontinu, une certaine nature Barthes. A tradução está assinada por
fragmentaire de l’exposition, analogues presque à des Alberto Drazul, e o prólogo por J. M.
énonciations de type aphoristique ou poétique et que L. Em seguida, há uma entrevista
ces discours puissent constituer un discours com Barthes, outra com Sollers, um
fondamentalement théorique. Je pense d’ailleurs que artigo conhecido deste, “Le reflèxe
de réduction”, uma entrevista do
ce discours théorique, qui romprait avec les habitudes comunista telqueliano Henric, outra
rhétoriques du savoir, est en train de se chercher ici et do escritor telqueliano Pierre
là; par exemple dans certains livres de Lévi-Strauss, Guyotat, e a partir da página 80 uma
dans les Mythologiques; je pense aussi que série de apêndices: o “Programa” de
l’énonciation de Jacques Lacan doit être comprise Sollers; algumas páginas de “Tesis
generales” anônimas; outra entrevista
comme un effort de rupture par rapport au continu et
de Sollers; as respostas de Tel Quel à
au filé, au suivi de l’écriture théorique en général. (...) Nouvelle Critique; e, finalmente,
Maintenant, quant à definir ce qu’est la théorie, très outro ensaio de Sollers, “La escritura,
près de moi, ou moi étant très près d’elle, Julia Kristeva función de transformación social”.
l’a fait avec beaucoup d’insistance dans sons livre Nas duas páginas finais aparecem as
Sèméiotikè, qui est précisément un livre de théorie.35 “Notas bibliográficas”, as quais
denunciam que “o volume foi
Sabemos que esta teoria tem um caráter paradoxal, que preparado cinco anos antes de sua
publicação”. A primeira nota diz que
trabalha freqüentemente contra si própria, no que segue a prática
Tel Quel “fue fundada en 1960 y
psicanalítica e escritural de Jacques Lacan. Um infinitamente cam- [grifo meu] hasta la fecha han
biante Sollers, já na década de 80, diria em novo tom: “Quant à la aparecido 46 números” – sendo que
signification du mot théorie, on sait qu’il s’agit aussi d’une o nº 46 data de 1971. As demais três
ambassade, d’une procession, d’une fête”.36 notas apenas biografam Guyotat,
Henric e Sollers, com o detalhe de
* que Barthes só aparece nelas
enquanto comentarista destes.
Deve-se procurar saber, por outro lado – se é questão de
estar entre e em clima de revolução permanente –, por que Bertolt
Brecht aparece na capa de um obscuro livro argentino dos anos 70
sobre a revista Tel Quel, sendo mencionado apenas uma vez e en
passant em um de seus textos.37 Parece se tratar de um daqueles
verdadeiros enigmas bibliográficos: há poucas coisas demonstráveis
aí, e justamente por isso talvez possam resultar elucidativas. Uma
solução óbvia poderia utilizar o motivo da guerrilha travada duran-
te toda a década. Uma solução, uma resposta oblíqua – uma entre
tantas – poderia estar no mesmo Barthes, que abre a coletânea
precisamente com “Sur la théorie” (apesar da omissão do título),
entrevista concedida em 1970:
La teoría es aquí un discurso esencialmente científico.
No es sólo un discurso abstracto, generalizado o
fundador, sino – y ésta es su marca distintiva – un
discurso que se vuelve sobre sí, un lenguaje que se
vuelve sobre sí. (...) En efecto, es un discurso que se

105 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


38
Literatura, política, cambio, op. observa a sí mismo en una suerte de autocrítica
cit., p. 15. Nas Oeuvres complètes, permanente. Por otra parte, es probable que se busque
tomo II, p. 1032.
para destruirse. Pero no se destruye de inmediato y
39
Cf. Caws, M. A., op. cit., pp. 5-6. esta especie de prórroga produce la teoría.38
40
Caws, M. A., op. cit., p. 8 (todas
citações do fragmento). *
O jogo telqueliano consiste em trabalhar na linguagem e com a
linguagem, já que, conforme o provérbio maoísta, “desde que você
se dirige a alguém, está fazendo propaganda” (e este é, no fundo,
um enunciado revelador de resíduos fascistas, sobretudo pensan-
do na geléia estético-política que tal jogo vai gerar). Sendo menos
maoístas do que pensam, e muito freudianos, na realidade traba-
lhariam com o texto enquanto instância inseparável do próprio
corpo, das funções corporais, da masturbação e a excreção ao amor
e à morte. Um resultado do coquetel proposto pelos teóricos da
conjunção é, por exemplo, a idéia de mécriture, devida a Denis
Roche (Tel Quel nº 46, 1971), em nome de uma ruptura geral, tex-
tual e política, decididamente contrária ao dogma de uma estrutu-
ra central, ruptura que promoveria ao lado de Sollers ou Pleynet
em ficções que se querem descontínuas, dispersas, deslizantes,
quando não díspares e mesmo ilegíveis.39

*
Não satisfeitos em ser três, grupo/revista/coleção, almejarão ser
“convulsão” – quando, textualistas, nada mais foram que lugar en-
tão comum. “The textual revolution disrupts individual choice and
tasteful limits, prevents artistic closure, and breaks through the
ordered system of language by the disarticulation and infraction of
civil and linguistic codes”, segundo Caws lendo um texto de
Logiques. Sua conclusão é a um tempo iluminadora e abrumadora,
por trazer de volta a Gramatologia, “un texte qui [selon Sollers
dans “Le reflèxe de reduction”] éclaire ces dernières années et les
modifie radicalement”; Gramatologia cuja lógica paradoxal a ope-
ração telqueliana reclama ao romper e rompe ao reclamar, diante
– hélas! – de um agora “idealista” Derrida. Conclusão ainda mais
iluminadora e abrumadora por finalmente invocar a noção de
brisure, “a discourse made articulate in its constant discontinuity”
e por concluir de modo fielmente autocrítico:
Yet it is clear that meta-commentary such as this about
such texts cannot be either revolutionary or non-
revolutionary, cannot actually embody rupture in spite
of its obviously fragmented vision, nor articulation, in
spite of its attempt at the relation of opposed texts. It
turns, like Tel Quel itself, only about its own image,
remaining its own fiction.40

*
O voluntarismo costuma ser venenoso e não seria diferente com
os devotados telquelianos ao idealizarem, acima de tudo, o con-
ceito de escritura – que pretendiam desconstruir – enquanto ferra-
menta simultaneamente política e estética. A escritura enquanto
função da transformação social, conforme texto homônimo do editor
da Teoria de conjunto; a escritura enquanto sinônimo de revolução
– dogma e antidogma; a escritura enquanto arma na tarefa urgente,
premente de revolucionarização, entendendo a expressão não como
aquilo a que não se chega, mas como aquilo que não se chega a
entender: o efêmero que se crê eterno.

travessia 40 / outra travessia 1 106


41
* Santiago, S., Viagem ao México,
Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p. 65-6.
“Como lutar por mudanças revolucionárias numa 42
Forest, P., op. cit., p. 299.
sociedade tão convencional e tão covarde quanto a
43
francesa? Não será certamente através de um modo de Idem, p. 299 (grifo meu). Trata-se
de citação do prefácio de Sollers à
pensar, também convencional e covarde, cuja tônica
edição de 1980 de Théorie
é o medo de incorrer em pecado público passível de d’ensemble.
não ser perdoado pelos novos papas da política. Não
ponham os pés na Exposição Colonial. Não se muda a
opinião de um indivíduo, de uma pessoa dentro de
um grupo, não se muda o modo de pensar e agir de
um grupo, só porque alguém, por mais inteligente que
seja, tenha resolvido cair fora do grupo por motivações
nem sempre muito claras, e lá de fora, pela força da
sua vontade e não a do seu desejo, queira convencer
os antigos companheiros a acompanhá-lo pelo novo
caminho da salvação”. Antonin Artaud41

*
Contrariamente ao que pensa o crítico argentino de Tel Quel
pós-Tel Quel, a ideologia da revista francesa vende o desejo de
responder com rigor retórico e teórico a Maio de 68 através de sua
Teoria de conjunto, que, lembrando Lenin – “não há movimento
revolucionário sem teoria revolucionária” –, surge ao lado de um
Groupement d’études théoriques (GET). Por quê? A resposta é de
seu porta-voz:
Pour ne pas sombrer dans l’impuissance du
spontanéisme, pour ne pas s’enliser dans les
revendications médiocres du réformisme, il convient
de se donner à soi-même les armes intellectuelles
nécessaires au combat. Dans le champ propre où elle
agit, chaque avant-garde doit remplir cette mission.42
Eis o telquelismo oficial pela voz de seu historiador oficial em
sua história – Histoire de Tel Quel – oficial. A ênfase na militância
teórica suscitou ataques de todos os lados, de cientificistas a
anticientificistas: o meio literário reclamaria mais poesia e menos
ciência em Tel Quel; o meio científico, da lingüística à matemática
(caso se desse ao trabalho de pedir algo) lhe pediria menos ciência
e mais poesia. Não obstante, Sollers sonha com a “subversão gene-
ralizada”, sendo alguém que, segundo a versão obediente de Forest,
não passaria de um incompreendido:

Non pas: la littérature au service de la théorie (comme presque


tout le monde semble l’avoir cru de Tel Quel) mais très exactement
le contraire. Les sciences du langage, la philosophie, la psychanalyse
aidant à dégager un tissu de fiction à proprement parler infini.43

Enunciá-lo a posteriori (no prefácio de 80), porém, é o que se


poderia chamar de conversa fiada: vivem-se a esta altura os estertores
da revista, já que o telquelismo triunfante como que evaporou. O
negócio da hora é partir rumo ao infinito recôndito (e confortável)
da literatura que já deixara de se pretender escritura. Mas naquele
momento essa escritura – mitificada – é o lugar da transgressão à
filosofia e às ciências humanas. – Não somos cientificistas ou
teoricistas porque jogamos com a teoria em nome da literatura,
com nossa habitual virulência retórica, em nome de um terrorismo
característico de uma pós-vanguarda, uma vanguarda pós-moder-
na.

107 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


44
Idem, p. 301 (grifo meu). A fim de servir ao seu modelo, Forest trata de jogar o grupo
45
“Division de l’ensemble”, Théorie para as margens, recusa-lhe a posição hegemônica, pretendendo
d’ensemble, op. cit., p. 12. Não há minimizar-lhe a influência, ao mesmo tempo que reconhece seu
assinatura, apenas a data. período áureo e seu declínio:
46
Forest, P., op. cit., p. 302. Aucun document ne m’a permis d’établir qu’au temps
du telquelisme triomphant les éditeurs aient cessé
d’éditer ou les facultés d’enseigner: malgré Barthes ou
Derrida, on continua d’étudier Racine et Rousseau à
la Sorbonne; malgré Sollers, on ne renonça pas à
attribuer les prix Goncourt ou Femina; malgré Pleynet
ou Roche, l’émouvant chant des poètes ne cessa pas;
étrangement, les travaux de Kristeva n’incitèrent pas
Gallimard ou Grasset à refuser la littérature naturaliste
dont l’édition fait ses choux gras.44
Duas observações: Barthes e Derrida nunca deixaram de difun-
dir o prazer dos textos ditos clássicos; com o fim da revista em
1982-3 – há muito encerrado o sonho de vanguarda telqueliano –
, Sollers muda-se para a editora Gallimard onde, de um posto pri-
vilegiado, lança O Infinito – este velho conhecido.

*
Il faut ajouter qu’un travail aussi marginal et aussi risqué
– dont le Groupe d’études théoriques formé par Tel
Quel est la matérialisation sociale – n’aurait pas été
pensable sans une réalité anonyme à l’oeuvre entre
quelques individus dont toute l’ambition est de
disparaître le plus possible dans les transferts d’énergie
provoqués par la poursuite d’une pratique sans repos
et sans garanties. Pour l’instant, voici où en est
l’expérience: nous la laissons se formuler seule, d’un
plan à un autre, d’un fond à un autre fond, avec la
nécessité mais aussi la chance toujours suspendue d’un
jeu. Octobre 1968.45
Assim termina a divisão do conjunto, feita por Sollers, de quem
Forest é devoto: marginalidade e anonimato, mitos rapidamente
destruídos.
Como de hábito, o biógrafo oficial do grupo se deslumbra com
a “extraordinária” defasagem entre meios mobilizados e o “fantás-
tico” barulho provocado pela empresa telqueliana. Ora, de carona
no pensamento inovador (para o bem ou o mal) de ninguém mais
ou menos que Derrida (que, por sua vez, parasita os textos de Sollers
em proveito próprio) e Barthes, além de Foucault, Lacan e Althusser,
ao abrigo de uma sólida instituição do vasto mercado persa dos
livros franceses, a entelqueléquia só poderia atrair e prosperar: vi-
rou moda e saco de pancadas, sucesso mundano e “problématique
littéraire centrale”. Ser ou não ser hegemônico, o biógrafo do gru-
po ainda teria a coragem de perguntar. Logo ele, Forest, o homem
que leva a “operação” ao salão de beleza, com um romantismo
que deveria soar estranho, mas acaba calhando no conjunto:
La beauté de l’opération se situe bien là: ne disposant
que d’un soutien logistique limité, ne s’autorisant que
d’elle-même, une parole s’impose qui, par sa seule
force, apparaît à chacun comme une intolérable
agression, une imminente menace. “Terrorisme”
paradoxal qui ne connaît d’autre arme que les mots.46

travessia 40 / outra travessia 1 108


47
Que a Teoria de conjunto seja um manifesto coletivo não há Idem, p. 304. Embora tanto Lacan
que negar: duas dúzias de ensaios esparsos, publicados nas revis- quanto Althusser jamais tenham
publicado na revista de Sollers.
tas Critique ou La Nouvelle Critique ou nas atas do colóquio de
Cluny. Com ênfase às intervenções de Sollers, Kristeva, Baudry e 48
Théorie d’ensemble, op. cit., p. 68.
Pleynet, à parte a santíssima trindade. O estruturalismo já cumpriu
seu dever. A nova ruptura está por vir, através de uma nova visão do
mundo feita de uma mescla de artes e discursos a qual se chamaria
“telquelisme”, segundo os círculos intelectuais franceses progres-
sistas de Paris, cuja visão pedagógica e pós-romântica do poder da
literatura informa como mirar a sua própria (teoria) crítica da litera-
tura.
Seria o caso de dizer que Forest me confirma delatando-se, ao
empregar o verbo convocar: “A cette fin, un certain nombre de
références immédiatement contemporaines sont également
convoquées: Foucault, Barthes et Derrida; mais également, de
manière plus discrète, Althusser et Lacan”.47 A ambiciosa aposta do
momento, repita-se, é: como unir o marxismo, a psicanálise, a lin-
güística, a literatura e o maoísmo (ainda reprimido) contra a vasta
burguesia – “táticas para enfrentar a invasão neoliberal”, diriam,
como diria mais tarde Pierre Bourdieu.

*
Célebres pelos modos afetadamente irados, os telquelianos são
em seu momento – quer dizer, antes de sua paradigmática
desaparição – tão provocadores quanto alvo de violentos ataques,
em que seu vanguardismo cientificista é sempre posto em questão.
Entretanto, repita-se, estão ou estiveram a seu lado os pensadores
mais inovadores da filosofia e da literatura dos anos 60. O que não
os exime de nenhum crime, ao contrário. É justamente ancorados
em pressupostos teóricos ricos ao extremo e sempre desafiadores,
permanecendo ao mesmo tempo afirmativos e negativos, que os
telquelianos vão estabelecer sua reputação através de um
voluntarismo capaz de tudo, oscilando entre a biblioteca e a rua
de maneira ambígua, indecidindo-se sobre seu próprio lugar de
enunciação, cujo desfecho sob a forma do “infinito” em revista
não se cumpre como se cumpria sob outra denominação.
Afinal, não é verdade que Tel Quel não era tal qual, e que L’Infini
não é o infinito?

*
O que é, o que há em um nome? “Mettre en question le nom de
nom”, lê-se ao fim de “La différance”.48 O nome é o nome do pai e
sua disseminação tem o vezo de um parricídio afirmativo. Mas o
que fazer com um ismo? Um ismo é um nome elevado à enésima
potência, um nome dilacerado portanto, um nome que pretende
estar em todo lugar e pode simplesmente não ter pertencimento.
Tal qual a vertente em vista: no início do “momento” do periódico
francês – o decênio cujo exato intervalo corresponde a 1970, quan-
do a história parece fazer um looping –, seu corpo mutante aban-
dona em definitivo a fidelidade a Valéry e à Literatura Francesa. Tel
Quel segue sendo Tel Quel mas já poderia levar outro nome, por
não ser mais tal qual 1960 no plano dos valores culturais e políti-
co-ideológicos. Great divide, a mutação fica carimbada de fato nas
sucessivas mudanças de razão intelectual da sólida empresa “du
Seuil”: a partir de 67, em que reivindica, isto é, aparenta uma iden-
tidade fortemente demarcada, “Science/Littérature”; a partir de 70,
com a grande explosão: “Littérature/Philosophie/Science/Politique”;
sendo que apenas nos estertores, 1978-9, surgem as três letras de
Art (sempre com maiúscula), que no fundo e na superfície estive-

109 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


49
A poética verbivocovisual não ram desde o início (em 60) apensas a Tel Quel, vale dizer, a Felipe
nacional diante do espelho: “There Sóarte, seu todo-poderoso eterno-infinito diretor – em tradução bem
are various interpretations of the
literal ao bom português do pseudônimo que se auto-outorgara,
name ‘Sollers’ given by the writer
himself: ‘tout entier intact’ (from H gloriosa e estudadamente, Philippe Joyaux (Bordeaux, 1936): Sollers,
(Paris, 1973, II) is the Latin definition, de sollus, com dois ‘l’, e ars, e era só, segundo só uma das várias
‘possessed entirely of an art, hence, versões.49
skilful, clever, adroit’ (Cassell’s Latin
Dictionary). It is also ‘le surnom *
d’Ulysse’ (also H, II). It is linked to
the Greek ‘holos’, thus to Na visão dos talvez últimos promotores do telquelismo no uni-
‘holocauste’, ‘sacrifice sans reste’ verso – os responsáveis por The Tel Quel Reader, se houve um
(interview with Sollers by author) grupo com esse nome, ele deve necessariamente incluir os nomes
and to ‘hologramme’, suggesting a
de Barthes, em primeiríssimo lugar, bem como os de Guy Scarpetta,
writing ‘en trois dimensions’ (voice-
image-text)”. Cf. ffrench, P. The time Jean-Joseph Goux, Pierre Guyotat, Maurice Roche e Severo Sarduy
of theory, op. cit., p. 45 (nota 1). – o escritor cubano anticastrista que se exilou em Paris e seria apa-
drinhado por ninguém senão Barthes (as descrições do período,
quase sem exceção, começam e terminam neste nome).
O grande golpe publicitário do mercado das letras novas, com
um slogan que poderia ter sido “por uma crítica teórica da prática
do texto”, consistiu em reunir, já em 1968, uma constelação de
star-names (a expressão é de inteira responsabilidade dos autores
do Reader) como Foucault e Derrida, em apropriações um tanto
indébitas. Tel Quel deu lugar a uma estratégia política, teórica e
literária, cuja retórica oscilaria entre a transgressão e a
transcendência, conforme concluiriam mais recentemente ffrench
e Lack, e conforme anteviam, mais próximos no tempo, seus leito-
res latino-americanos.

*
Philippe Sollers justifica-se, naturalmente que em provei-
to próprio, a propósito do “gigantesco erro” do maoísmo. Decla-
rou a Bernard Henry-Lévy, em “As aventuras da liberdade” (o
documentário de 1990 sobre os intelectuais franceses), que a Chi-
na terrorista, “por mais chocante que pareça, liquidará nossas últi-
mas ligações stalinistas”. Ele vai mais longe, como é de seu feitio:
os ex-maoístas, em sua opinião, deveriam receber homenagens “por
tentar reinventar a democracia na França”, ou seja, por liquidar
com a lei do silêncio imposta pelos Partidos Comunistas oficiais,
abrindo uma “fissura no ponto mais sensível desse fenômeno”, vis-
to e vivido enquanto uma enorme e terrível sombra.
A esta altura, o entrevistador é levado a reconhecer que surge,
em torno de Tel Quel, uma “nova maneira de pensar”.

*
Sabe-se, porém, que o telquelismo não franqueia certas frontei-
ras – a não ser a posteriori, com suas figuras já classificadas, quer
dizer, desclassificadas, caso dos Estados Unidos. Kristeva é a exce-
ção, informam ffrench & Lack, mas seu trabalho se separa de Tel
Quel ao ser vertido ao inglês; exemplo disso é a exclusão de seu
importante ensaio sobre Sollers, “L’engendrement de la formule”,
de qualquer compilação kristeviana existente na língua do Tel Quel
Reader, do mesmo modo que a produção literária dos membros do
comitê de redação da revista, ao contrário de outros satélites
telquelianos:
This situation is more markedly the case when it comes
to the fiction and poetry produced by the group. While
there is a singular lack of translated fiction or poetry
by, say, Pleynet, Roche, Sollers and Baudry, the English-
speaking reader can access translations of Maurice

travessia 40 / outra travessia 1 110


50
Roche, Pierre Guyotat and Severo Sarduy, all writers ffrench, P. e Lack, R. F. The Tel
for whom Tel Quel was a decisive influence, who Quel Reader, op. cit., p. 243-44.
published in the review and were at various times 51
Quanto ao “autor” Borges, trata-se
grouped with Tel Quel at conferences, but who were de um dos dois únicos argentinos a
not part of the committee itself. Tel Quel’s influence is publicar na revista. O outro é o
poeta Roberto Juarroz.
relayed via its periphery.50
52
Barthes, R., “Texte (théorie du)”,
* op. cit., p. 1000.
53
V. Marx-Scouras, D., op. cit., p.
A última nota do prólogo de J. M. L. (?) relativa a Literatu- 180.
ra, política y cambio – texto este que é um decalque caricato dos
mandamentos do telquelismo – propõe mais uma lista de figuras-
chave às outras tantas lidas nestes fragmentos. De modo especial-
mente interessado, diria-se que não é uma relação qualquer:
“Dijimos Marx, Freud, Nietzsche, Sade, Mallarmé, Lautréamont,
Derrida, Tel Quel; podemos decir Lenin, Mariátegui, Borges”.

*
Seria preciso perguntar, por conseqüência, de que modo os
telquelianos lêem o “texto” Jorge Luis Borges, e não apenas como
os latino-americanos o fazem.51 A utopia cultural e política, que
torna o contradiscurso referido muito datado, define suas propos-
tas de abolição de qualquer limite – propostas revistas depois, ao
mesmo tempo que os vanguardistas encontram, de um modo ou de
outro, seu lugar nas diferentes instituições – do meio acadêmico ao
meio editorial. – Não há mais críticos, anunciaram, apenas escrito-
res – uma vez que “la seule pratique que fonde la théorie du texte
est le texte lui-même” (com grifo, no original). A conseqüência é
evidente, segundo Barthes: “si un auteur est amené à parler d’un
texte passé, ce ne peut être alors qu’en produisant lui-même un
nouveau texte (en entrant dans la prolifération indifférenciée de
l’intertexte)”. E não só: “de par ses principes mêmes, la théorie du
texte ne peut produire que des théoriciens ou des praticiens (des
écrivains), mais nullement des “spécialistes” (critiques ou
professeurs); comme pratique, elle participe donc elle-même à la
subversion des genres qu’elle étudie comme théorie”.52
Mas qual seria o novo lugar – de que mapa se estaria fa-
lando – já que os câmbios de posição no período são quase frené-
ticos: o apoio à revolução, mais exatamente à revolução cultural
da chamada “nova China”, cessa em 1975-6.53 É o lugar utópico,
“paradisíaco”, em que haveria apenas textos. No entanto, tamanha
utopia não é vista enquanto tal, quer dizer, enquanto algo inatingí-
vel. Pelo contrário, a exigência teórica ligada a uma situação histó-
rica e política bem definida levava então o nome de Mao Tsé-tung
– aquela enorme tartaruga mole, na descrição televisiva feita, mais
tarde e confortavelmente, por Sollers.
Nesse sentido, Borges seria outro monstro, outro “Mao”.

*
Nunca indiferentes às metáforas de tipo zoológico da
fisionomia, Jorge Luis Borges e Stéphane Mallarmé são escritores
atingidos na retina pela página de um livro que é também a página
em branco. Borges possui a condição peculiar de ser o cego que
melhor lê e de ser o cego que, além disso, apregoa a superioridade
da leitura. O maior clichê mallarmaico repete e volta a repetir que o
mundo acaba na página de um livro, o que não torna a sua figura
menos ambígua no interior da célula político-cultural francesa que –
autodenominada vanguarda revolucionária – dizia como as coisas
devem ou têm de ser, o que supõe, se sabe, subjetividades fortes.

111 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


54
Agamben, G., Homo sacer. El A relação entre estes dois nomes tem a ver com o status
potere sovrano e la nuda vita, Torino: que a revista Tel Quel conferia a Mallarmé, e tem a ver com o
Einaudi, 1995.
status que a revista Los Libros conferia a Jorge Luis Borges – ambas
55
Irwin, J., “Lacan con Borges”, figuras incluídas exclusivamente, homo sacer que são (conforme o
Descartes nº 15-16. Buenos Aires, ensaio homônimo de Agamben)54 nos respectivos grupos, ambos
jul. 1997. O texto é parte do livro
escritores mais ou menos reprimidos em seu interior. O escritor de
Mistery to a solution. Baltimore,
Hopkins University Press, s. d. Ficciones enquanto sombra esquiva e onipresente sobre a cidadela
56
cada vez mais profundamente ideologizada de Los Libros, em sua
Barthes, R., “Texte (théorie du)”,
busca de produção textual aliada à confrontação ideológica, à moda
op. cit., p. 1000.
(e à diferença) da teoria crítica telqueliana. O poeta de Un coup de
dés enquanto problemático e cauteloso duplo do scriptor nos ter-
mos de Tel Quel, cujos colóquios se deram em nome do Marquês
de Sade ou do Conde de Lautréamont (o que tem a ver certamente
com sua dívida, e sua dissidência, com o surrealismo) mas não de
Stéphane Mallarmé.

*
Esta digressão deflagra e exige uma nova digressão, na
direção de uma teoria do sujeito telqueliano, que antes de mais
nada é um sujeito lacaniano, que com “Função e campo da fala e
da linguagem” (1958), provoca efeitos sabidamente avassaladores,
da psicanálise à lingüística, à crítica e à literatura.
A teoria do sujeito segundo Tel Quel postula o seu oposto, quer
dizer, coloca-se em confronto com a noção de sujeito nos moldes
do pensamento ocidental: o sujeito enquanto vazio, enquanto va-
riável, conforme as bases lançadas por Lacan, que, segundo John
Irwin, leu de modo especial (isto é, via Edgar Allan Poe) a ficção de
Jorge Luis Borges,55 que, por sua vez – e talvez malgré lui –, se
encontra na base de toda a filosofia desconstrutiva. Como afirmara
de modo didático Barthes, era imperioso subverter e mesmo abolir
a separação dos gêneros literários e dar ao leitor o seu lugar de
destaque: o sujeito está cindido na teoria do texto barthesiana, tan-
to quanto na escritura e na leitura borgianas:
Si la théorie du texte tend à abolir la séparation des
genres et des arts, c’est parce qu’elle ne considère plus
les œuvres comme de simples “messages”, ou même
des “énoncés” (c’est-à-dire des produits finis, dont le
destin serait clos une fois qu’ils auraient été émis), mais
comme des productions perpétuelles, des énonciations,
à travers lesquelles le sujet continue à se débattre; ce
sujet est celui de l’auteur sans doute, mais aussi celui
du lecteur. La théorie du texte amène donc la promotion
d’un nouvel objet épistémologique: la lecture (objet à
peu près dédaigné par toute la critique classique, qui
s’est intéressée essentiellement soit à la personne de
l’auteur, soit aux règles de fabrication de l’ouvrage et
qui n’a jamais conçu que très médiocrement le lecteur,
dont le lien à l’œuvre, pensait-on, était de simple
projection). Non seulement la théorie du texte élargit
à l’infini les libertés de la lecture (autorisant à lire
l’œuvre passée avec un regard entièrement moderne,
en sorte qu’il est licite de lire, par exemple, l’Oedipe
de Sophocle en y reversant l’Oedipe de Freud, ou
Flaubert à partir de Proust), mais encore elle insiste
beaucoup sur l’équivalence (productive) de l’écriture
et de la lecture.56
Este sujeito que desaparece sob o significante – à maneira
do autor “mortificado” segundo Foucault ou o próprio Barthes –

travessia 40 / outra travessia 1 112


57
ocupa, por isso, um entrelugar nos significantes do Outro. Lacan, Cf. Nahas Riaviz, Vanessa,
comentando a Carta 52 de Freud no Seminário 11, vai situar o Alienação e separação: a dupla
causação do sujeito. Dissertação de
lugar do Outro “no intervalo entre percepção e consciência”.57 A
Mestrado em Psicologia.
radical ex-centricidade do sujeito para ele mesmo, no dizer de Florianópolis, UFSC, 1998, p. 150; e
Lacan, implica no fato de que a relação do sujeito com o Outro, no Lacan, J., Seminário 11. Os quatro
que diz respeito ao significante, “dá-se sob a forma da alienação, conceitos fundamentais da
da subordinação do sujeito ao campo do Outro. Mas se o estatuto psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 1988, p. 48.
do sujeito é o da falta em ser, ele derivará na cadeia significante
segundo o vetor do desejo, e nenhum significante poderá esgotá- 58
Nahas Riaviz, V., op. cit., p. 154.
lo, dizer o que ele é”.58 Convém observar, no entanto, que este é o 59
Aira, C., Alejandra Pizarnik,
pensamento de Lacan nos anos 60, extremamente influente, o qual Rosario: Beatriz Viterbo, 1998, p. 60.
– uma vez que trabalha sempre contra si mesmo – vai se modificar 60
Lacan, J., “L’éclat d’Antigone”
em seu último período, durante os anos 70, deixando de dar pri- (1960), Le Séminaire. Livre VII, Paris:
mazia ao grande Outro, falando de sua inexistência e insistindo Seuil, 1986, p. 317.
que o que há, na verdade, é “um”.
Porém, o sujeito que é falta, o sujeito que treme – no dizer
de César Aira em seu ensaio sobre Alejandra Pizarnik59 – é aquele
do chamado Lacan “clássico”, sofregamente consumido por Tel
Quel, em que o “eu” se constitui na linguagem. Como trata de
entender Aira (e, sobretudo, este seu leitor):
En realidad toda su teoría se basa, si es que he
entendido bien, en que la constitución del Sujeto se
hace en la lengua, y no hay un sujeto “verdadero”
anterior a lo simbólico, como no sea en el campo del
mito. Luego, Lacan habla de la “coincidencia
imposible” del Yo con la palabra “yo”. El sujeto del
enunciado es una máscara, infinitamente variada, del
sujeto de la enunciación. Ese infinito tiende de modo
asintótico a la coincidencia de Yo y “yo”, sin llegar
nunca a ella. Todo esto lo ejemplifica con un sueño de
Freud, o mejor dicho con la frase con que Freud
comenta la aparición en un sueño de su padre, muerto
años atrás: “Él no sabía que estaba muerto”. El que lo
sabía era el soñador, el hijo, que aparece como sujeto
de la frase en lo absurdo de ésta. Según Lacan, aquí el
sujeto “tiembla”. Creo que esta pequeña parábola
demuestra que la salida del sujeto simbólico o
lingüístico no está atrás, en un supuesto sujeto “real”
refugiado en la Vida o la Naturaleza, sino adelante, en
los cul de sac poéticos de la lengua.
Pode-se afirmar, portanto, que os cul de sac poéticos da língua
chamam-se, em última instância, Borges, Mallarmé, isto é, os es-
critores segundo os preceitos fundamentais do grupo Tel Quel, em
seu determinante mas indeterminável entrelugar.

*
Pode-se, não obstante, insistir com Lacan e sua leitura da tragé-
dia de Antígona. Pode-se então perguntar pela situação dos sujei-
tos implicados no entrelugar do discurso latino-americano – e a
partir daí pensar nas protohistórias de Silviano Santiago ou de
Ricardo Piglia (que chegam, digamos, a 1980): até que ponto con-
seguem franquear um limite – limite, por sinal, autoproclamado –
como o faz Antígona na zona fronteiriça do “entre-deux-morts”?60
Sua imagem seria a da paixão, que na América Latina, em torno de
1970, se transforma em paixão revolucionária e, particularmente
em Los Libros, em uma sensação reprimida do abandono do Pai,
seja ele Borges ou Perón: eis sua tragédia.

113 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


61
Entrevista ao autor. *
62
Hora, R. e Trimboli, J. (org.),
“¡Tel Quel! Nosotros estábamos muy atentos a las
Pensar la Argentina – Los historiado-
res hablan de historia y política, posiciones de Tel quel porque en Tel Quel había una
Buenos Aires: Ediciones El Cielo Por combinación de estructuralismo, maoísmo, crítica
Asalto, 1994, pp. 162-196 (citação literaria, psicoanálisis, que era un poco el clima
pp. 168-9). intelectual común que en Buenos Aires tenía una fuerza
muy grande. Incluso yo estuve en un proyecto para
traducir Tel Quel en Buenos Aires, con Jorge Álvarez,
que era el director con quien yo publiqué mi primer
libro [La invasión, 1967]. Conseguimos los derechos
para traducir Tel Quel en Buenos Aires, cosa que ya se
estaba haciendo con Communications, la revista de
Communications que se publicaba en Buenos Aires.
Entonces estávamos en el proceso, yo incluso preparé
algunos números y después cesó, creo que vino el
golpe militar, no sé qué pasó y no se hizo. O sea, que
la relación con Tel Quel no era una relación personal
pero una relación con una vanguardia que nos
interesaba, ¿no?” Ricardo Piglia61

*
O telquelismo latino-americano constitui, sem dúvida, uma
vertente absolutamente difusa. Sua face mais óbvia seria cubana e
dissidente em Paris, através da figura do escritor Severo Sarduy,
cuja relação com Barthes e o universo intelectual francês é bem
conhecida. Investigá-la onde ela aparentemente não se situa, con-
tudo, parece ser tão produtivo e desafiador quanto uma análise da
escritura crítico-ficcional barroca de Sarduy. A revista argentina
Los Libros (1969-76), de Beatriz Sarlo e Ricardo Piglia, deve ser
abordada em perspectiva similar, buscando ler tanto a primeira eta-
pa, em que a presença francesa se faz avassaladora (o que não é
bom nem ruim em si), quanto a segunda – que reage raivosamente
ao estruturalismo, mas não consegue se desfazer totalmente dele,
e foi menos enfocada pela crítica.

*
Telquelismo latino-americano significa e não significa
Loslibrismo. A propósito, Los Libros não estaria mais próxima de
Change, a principal dissidência de Tel Quel? Seu contato tupiniquim
imediato era ninguém senão o poeta Haroldo de Campos. Na Ar-
gentina poderia estar um tradutor (abortado) de Tel Quel, Ricardo
Piglia, inclusive por seu rechaço de Derrida.

*
“El día que llega la revista Tel Quel a Buenos Aires
con los poemas de Mao escritos en chino y la foto de
Kristeva, Roland Barthes y Phillipe Sollers en la Plaza
Roja de Pekín, me dije: bueno, efectivamente, esto es
así, la revolución cultural china y las vanguardias
francesas pueden coincidir en la página de un libro. Y
como ya se sabe que el mundo existe para coincidir
en la página de un libro, el teorema quedaba
demostrado. Cosas así hoy parecen casi extravagantes,
pero entonces eran casi un lugar común”. Beatriz Sarlo62

travessia 40 / outra travessia 1 114


63
* Gilman, C., Entre el fusil y la
palabra, op. cit.
Diante de um ismo, tudo apenas parece mais simples: a expres- 64
Cf. Panesi, J., “La crítica argentina
são telquelismo latino-americano chega a ser uma contradição em
y el discurso de la dependencia”,
termos (em termos), ao menos do lado europeu. Examinando a Críticas, Buenos Aires: Norma, 2000,
coleção da revista em sua longa trajetória (1960-83), encontram-se p. 41.
ene alusões à China e quase zero, por exemplo, ao Chile; há Borges,
Sarduy, um poema, vertical e isolado, de Juarroz, e um único en-
saio brasileiro (na verdade franco-lusitano-brasileiro) de Perrone-
Moisés, intitulado “Pessoa personne?” (Tel Quel nº 60, hiver 1974).
O que leva a pensar, de acordo com Gilman, que os fenômenos do
latino-americanismo e do boom significaram séria ameaça para
nouveaux romanciers, critiques et philosophes telqueliens.63
Do lado de cá, a incidência é assaz evidente. Não, claro, a
revista francesa no seu primeiro momento, estreitamente ligada ao
nouveau roman e declaradamente apolítica – o que queria dizer,
engajada até o último fio de cabelo contra o engajamento sartriano.
Nem aquela da queda para o alto, quando o grupo de maoístas
frustrados se americaniza de forma espe(ta)cular.

*
Mas, o que foi feito do telquelismo meia-oito? E da Teoria de
Conjunto do mesmo ano, vale dizer, de Drame, H, Nombres e
Logiques? E da vanguarda “textual” do encontro de Kristeva, autora
de Sémiotiké, com um onipresente Barthes? E o que dizer do seu
momento de maior influência, o momento do “terrorismo teórico”,
altamente eficiente aliás? Como referido antes, saem edições em
italiano da revista, e ninguém menos que o contista de La invasión
esboça seu projeto de tradução na Argentina, que nunca se con-
cretizou, mas chegou a ser iniciado, e até anunciado nas páginas
de Los Libros em 1969.
No entanto, e apesar desse fato, assim como “distância” é o
primeiro termo do primeiro ensaio – ensaio de Foucault – da anto-
logia de Sollers, parece mais correto falar de distância no sentido
lato de tomada de distância, a fim de verificar como se distanciam,
tanto quanto se aproximam, os “bárbaros” da “civilização”, no
marco ambivalente de um certo entrelugar.

*
As chamadas patrulhas ideológicas andavam à solta também
na Argentina dos anos 70, conforme é fácil verificar nas páginas de
Los Libros: o diretor da revista gasta boa parte de seus editoriais
para se justificar e explicitar seu modo de adesão a determinadas
tendências intelectuais européias, sua compreensão dos “mode-
los” importados, em outra variante da velha tensão entre bárbaros
e franceses, civilização e barbárie, que na segunda metade do sé-
culo XX passa a confrontar “populistas” (identificados com o
peronismo) e “cientificistas”, em um espaço político de um
esquerdismo generalizado e diluído, indo do liberalismo de Bioy
Casares ao comunismo oligárquico de Maria Rosa Oliver, segundo
Jorge Panesi, que sublinha o caráter de “inquisidores” dos críticos
de Los Libros, bem à maneira de Tel Quel.64 Vale notar ainda que
José Sázbon aborda a “moda estruturalista” de forma bastante críti-
ca nas edições de nº 2 e nº 6 da revista argentina, e Eliseo Verón
discute o mesmo problema no nº 9, todos de um modo ou de outro
em busca de saídas à institucionalização do estruturalismo. A
Théorie d’ensemble, por exemplo, quer se colocar mais além não
só de “estruturas” quanto de “formas”, vale dizer, do “formalismo”,
em uma crítica do sistema burguês baseada simultaneamente em

115 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


65
Lopes, D., Nós os mortos. Freud, Marx, Derrida, Lautréamont e Mallarmé (segundo a lista de
Melancolia e Neo-Barroco, Rio de Forest), girando em torno de três eixos, propulsores da revolução: a
Janeiro: Sette Letras, 1999, p. 7 (3º
escritura textual, a gramatologia e o materialismo.
fragmento).
66
Sollers, P., L’écriture et l’expérience *
des limites, Paris: Seuil, 1967.
Observe-se que um artigo derridiano aparece em Los Libros –
“Gramatología: ciencia de la escritura”, de Ricardo Pochtar (jan.
1972) – no momento de transição em que se estabelecem com
maior clareza as dissidências no interior do grupo, estimulado pelo
clima de guerrilha generalizada.

*
Afinal, foi Derrida um telqueliano? Antes parece que o filósofo
se utilizou (como sugerido antes) da refinadíssima frente popular
textual, autodenominada revolucionária, a fim de inocular vene-
no, de parasitar seus trabalhos-objeto, para deles tomar distância
em seguida.

*
“Em cada fragmento, o que interessa são as fricções,
as intersecções, os encontros, os trânsitos entre espaços
diferentes, entre linguagens distintas. Fico em trânsito,
no entre, na passagem, entre mídias e saberes, entre
lugares e poderes. É possível nunca estar em lugar
algum, num não-lugar? Eterno adolescente? Apenas um
testemunho sobre o estado das coisas. Uma voz. Não-
artista. Não-cientista. Transesteta. Cronista de cultura
contemporânea. Crítico escritor. Colecionador de
fragmentos, citações”.Denilson Lopes65

*
De tal modo que esta leitura da teoria crítica made in France,
conforme o caráter fragmentário de seu discurso, passa pelas revis-
tas ou periódicos literário-culturais, para fazer uma espécie de vol-
ta ao mundo, com uma longa escala na China da revolução cultu-
ral, à base de dazibaos e palavras de ordem disfarçadas de
ideogramas: a China como “poema dialético”, conforme a mitolo-
gia construída por nossos bons franceses.

*
As práticas desta vanguarda “revolucionária” redundariam em
necessária institucionalização, ao transitarem com rapidez da
radicalização e da estridência em direção a algum tipo mais silen-
cioso quanto inexorável de integração. Vale perguntar: como essa
vanguarda abandona a idéia de unir a si – o artista, o scriptor, o
poeta, aquele que não é – aquele que não tem, o proletário, para
lembrar os termos com que Sollers conclui “Littérature et totalité”
(1966), sobre Mallarmé.66

travessia 40 / outra travessia 1 116


117 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003
travessia 40 / outra travessia 1 118
NO TEMPO DA GAZETINHA E DEPOIS

Antonio Carlos Santos


UNISUL

“Une ivresse belle m’engage”


Mallarmé

“(...) de ces poètes que se rencontrèrent parfois pour dire ‘zut’ à la vie
(...)”
Henri Peyre

“... aprender a viver com os fantasmas, no encontro, na companhia ou no


corporativismo, no comércio sem comércio dos fantasmas. A viver de outro
modo, e melhor. Não melhor, mais justamente. Mas com eles. Não há estar-
com o outro, não há socius sem este com que, para nós, torna o estar-com
em geral mais enigmático do que nunca. E este estar-com os espectros seria
também, não somente, mas também, uma política da memória, da herança e
das gerações... Furtivo e intempestivo, o aparecimento do espectro não
pertence a este tempo, ele não dá tempo, não este: ‘Enter the Ghost, exit the
Ghost, re-enter the Ghost (Hamlet)’.”
Jacques Derrida

1
Em um texto apresentado no colóquio Declínio da Arte/Ascen- Trata-se de Democratização no
são da Cultura, em 19971, Silviano Santiago volta ao final dos anos Brasil: Cultura versus Arte/ Uma
investigação arqueológica (1979-
70, início dos 80, para localizar aí a emergência de uma “nova
1981), lido na abertura do colóquio,
geração de pesquisadores acadêmicos” que rebatem as interpreta- realizado em Florianópolis, a 5 de
ções canônicas das artes e da cultura, inaugurando no país um março de 1997.
debate que viria a esquentar ao longo dos anos 80 com a questão 2
Cf. “Entre os spots e as academias”,
da pós-modernidade. A prática de críticos como José Miguel Wisnik in Opinião, 14 de janeiro de 1977.
e de produtores como Caetano Veloso começa então a romper as
amarras do paradigma marxista, hegemônico entre a esquerda, e
apontar para novos caminhos que viriam a desembocar na discus-
são sobre o cânone, nas relações entre indústria cultural e alta cul-
tura e na posição do crítico e do produtor de cultura em uma soci-
edade massificada e massmediatizada.
Alguns anos antes (1972-1977), o crítico cultural Ronaldo Brito,
que escrevia na seção Tendências e Cultura do jornal Opinião, ar-
ticulava sua reflexão na relação que poderiam ter os produtores e
críticos culturais com o mercado, colocando o dilema que vinha
acompanhando os intelectuais desde o final dos anos 40: estar tran-
cado nos muros da universidade produzindo para poucos ou atuar
no mercado limitado pelo modelo Variedades da indústria cultu-
ral, ou, nas palavras do próprio Brito, estar entre os spots e as aca-
demias2. Interessado primordialmente nas artes plásticas, Ronaldo

119 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


3
Refiro-me a “Kafka y sus precurso- Brito acompanha de perto a produção dos artistas conceituais e
res”, in Obras completas (1952- suas relações escorregadias com o mercado no Brasil e reclama da
1972), Barcelona: Emecê Editores,
falta de uma história da arte brasileira. Segundo ele, as idiossincrasias
1989.
do mercado local impossibilitavam a construção desta história.
4
Fundada por Arthur Azevedo em Numa época em que o comum era torcer o nariz para o mercado,
1880, a Gazetinha era um a alma do capitalismo, Brito reivindicava uma relação tensa com
jornalzinho, de quatro colunas
apenas em cada página, que custava
ele, aceitando sua hegemonia como um dado do mundo moderno,
um vintém e publicava fofocas de e fazia isso desde as páginas de um veículo da indústria cultural,
teatro, notícias da vida mundana, da ou seja, nas páginas de cultura de um jornal alternativo que busca-
cidade, folhetins, etc; cf. Magalhães va exatamente o espaço para a produção de um debate em um,
Jr, Raimundo, Arthur Azevedo e sua para lembrar Silviano Santiago, entre-lugar.
época. São Paulo, Livraria Martins
Editora, 1955, 2a edição, páginas 65 Tanto Silviano quanto Brito estão preocupados com a posição
a 78, e Gonzaga Duque, Luiz, “Nos do crítico cultural como aquele que, de certa forma, constrói com
tempos da Gazetinha”, in Dimas, sua prática uma história, a história de seu próprio lugar e a de seus
Antonio, Tempos Eufóricos, São leitores. A reflexão de ambos busca caminhos que esclareçam as
Paulo, Editora Ática, 1983, pg 291.
novas relações entre produtores de cultura e uma sociedade
5
Gonzaga Duque, Luiz, Mocidade massmediatizada no âmbito do esgotamento da modernidade, do
Morta, Rio de Janeiro, Fundação fim das utopias e dos grandes relatos. Com Borges, poderíamos
Casa de Rui Barbosa, 1995.
traçar uma linhagem destes intelectuais não-hegemônicos, os pre-
6
Gonzaga Duque chama Veríssimo cursores de Brito3, criando uma série com escritores que, ao mes-
de Barbicas: “fauno senil e cor de mo tempo, fossem críticos de arte, ou críticos culturais, que não
banana, gafento e empapuçado, de
ocupassem o centro do debate, mas que com sua prática apontas-
beque aquilino e barbicas ao
queixo”; cf. a várias referências a sem novos caminhos à interpretação do país, como quer Silviano
José Veríssimo no diário de Gonzaga Santiago. Assim, por exemplo, ligaríamos Ronaldo Brito a Luiz
Duque, Meu Jornal, que está Gonzaga Duque Estrada (1863-1911), uma primeira linha da série
publicado como anexo in Lins, Vera, — que cobre, exatamente, “o tempo da Gazetinha” e depois —,
Gonzaga Duque/ a estratégia do
para ver como este representa o crítico de artes e o pintor no ro-
franco atirador, Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 1991. Parte do mance Mocidade Morta (1899) e como atua no incipiente campo
diário havia sido publicada antes, das artes de um país novo, que havia proclamado a República em
em 15/11/1942, no Suplemento 1889, e que, portanto, dava seus primeiros passos como estado-
Literário de A Manhã, por Múcio nação moderno.
Leão.
Gonzaga Duque é um moderno avant la lettre, leitor de
7
Cf. Eulálio, Alexandre. “Sobre Baudelaire, Huysmans, Zola, dos irmãos Goncourt, de Eça, Ramalho
Mocidade Morta”, in Sobre o pré-
Ortigão e Antero de Quental, cronista da cidade, crítico de arte,
modernismo, Rio de Janeiro,
Fundação Casa de Rui Barbosa, historiador, ficcionista, militante das revistas da época. Nascido no
1988. Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1863, na Rua do Sabão, Cidade
8
Nova (hoje incorporada à Avenida Presidente Vargas), foi adotado
Luiz Edmundo lembra do crítico e
seus amigos em seu livro: “Gonzaga por José Joaquim da Rosa, ganhando o sobrenome da mãe, Luiza
Duque, que escreve, então, a Duque Estrada, depois de ter sido abandonado pelo pai de nacio-
Mocidade Morta, é a figura central nalidade sueca. Sua prática de crítico cultural começa nos anos 80
dessa trempe simpática que só a com a revista Guanabara; em pouco tempo, 1882,1883, está na
morte pode um dia desfazer. Uma Gazetinha4 com Arthur Azevedo e o grupo de novos talentos (Lopes
figura heráldica. É alto, fino,
elegante, usa uma barba à Cristo,
Trovão, José do Patrocínio, Dermeval da Fonseca, Carvalho Júnior,
negra e bem tratada, emoldurando o Arthur de Oliveira, Lucio de Mendonça, etc). De janeiro de 1904 a
rosto pálido, onde dois olhos meigos abril de 1909, colaborou com a revista Kosmos, publicando aí contos
e profundos brilham através de duas e críticas de arte. Antes, porém, no último mês do século XIX, pu-
lentes de cristal”. Cf. Luiz Edmundo, blicou um romance: Mocidade Morta.5 Mal recebido pela crítica
O Rio de Janeiro do meu tempo, Rio
da época – José Veríssimo dizia não ter passado das primeiras pági-
de Janeiro, Conquista, 1957, 3o vol.,
p. 551. É interessante contrastar essa nas6 –, o romance era a versão sombria de A Conquista, de Coelho
impressão com a do próprio Neto, dialogando ainda com L’Oeuvre, de Zola, todas narrativas
Gonzaga Duque, em seu diário, que encenam a vida de artista no final do século.7 Gonzaga Duque
sobre Luiz Edmundo: “Figueiredo vivia na roda dos simbolistas, preferindo, entre tantos, a compa-
Pimentel faz-me conhecer Luiz nhia de Mário Pederneiras e Lima Campos, com quem se encontra-
Edmundo, uma criança de vinte e
um anos, pálido como uma moça va freqüentemente no Café Papagaio8, e dos poucos amigos mais
romântica, alto como um fidalgo e íntimos, como Luiz Murat e Roberto Mendes. Vale a penas nos
de um nobre perfil de príncipe, a determos na análise do romance porque, a partir dela, podemos
que os negros cabelos compridos, detectar como Gonzaga concebe a posição do crítico cultural nes-
rebeldes no penteado, dão, apesar te momento.
do pince-nez, o quer que seja dum
Hamlet adolescente. (segue)

travessia 40 / outra travessia 1 120


Vida de artista Não tem barba, apenas um buço
muito leve sombrea-lhe a boca
sensual, bem adornada de lindos
Crítico do progresso que então entusiasmava o Rio e que nos dentes. (...) Sinto por este belo rapaz
uma simpatia irresistível, há nele não
primeiros anos do novo século promoveria um bota-abaixo para
sei o quê da minha mocidade, uma
transformar a tímida cidade portuguesa numa Paris da Belle Époque9, vaga pretensão de experiência e
Gonzaga Duque traça em 20 capítulos duas trajetórias de vida num ostentação de vida sobre uma
breve espaço de tempo: Camilo Prado, crítico de artes nos jornais timidez dolorosa e absorvente. Assim
cariocas, e Agrário de Miranda, um pintor, dois personagens cujas me parece.” Cf. Meu Jornal, op. cit.
trajetórias são opostas, a do primeiro descendente e a do segundo 9
“É necessário atenuar os violentos
ascendente. Figuras especulares típicas da modernidade, o crítico efeitos de nossa civilização,
e o pintor envolvem-se na criação de um grupo antiacadêmico, os adelgaçar a rudeza do utilitarismo
Insubmissos, conhecidos também pelo nome misterioso de Zut, com a mão macia e branda da graça.
É necessário trazer ao delírio
interjeição francesa onomatopáica que expressa desagrado, raiva, industrial d’estes tempos, que foi o
um eufemismo para merda, usada pelos grupos decadentistas fran- espectro de Ruskin, as miragens do
ceses no final do século.10 engano e da compensação,
Espécie híbrida e ímpar, Mocidade Morta mistura elementos domando a ferocidade humana com
o deslumbramento da forma e da
díspares, naturalismo com simbolismo, um romance com princí- Cor, para que não se perca de todo o
pio, meio e fim, mas também fragmentos de prosa poética aparen- resto de generosos sentimentos ainda
temente independentes (como a cena da morte de Alves Pena, no existentes na espécie soberana sobre
capítulo 15) que parecem sempre ser um excesso em relação à a Terra...”. Cf. Gonzaga Duque, Luiz.
ação romanesca. O cenário é realista, o Rio de Janeiro dos anos de Os contemporâneos. Rio de Janeiro,
Typ Benedicto de Souza, 1929, p.
1886 a 1888, portanto em plena época da campanha abolicionista, 26. Este livro reúne os estudos
e nele deslocam-se Agrário de Miranda, Camilo Prado e seus com- publicados em Kosmos, Renascença,
panheiros boêmios, tomando a cerveja que começa então a ga- Diário de Notícias e O Paiz, estudos
nhar a preferência dos cariocas11, fazendo ponto na rua do Ouvidor, que fariam parte de duas obras: Os
discutindo os impressionistas, Huysmans, Wagner, etc. de Hoje e A Caricatura no Brasil.
10
Mas como são apresentados os dois personagens no romance? Sobre a formação de grupos nos
meios simbolistas-decadistas, cf.
Ambos vêm descritos logo no início do capítulo 2, quando o Moretto, Fulvia M.L. (organização,
narrador recua no tempo após a cena de abertura que enfoca a tradução e notas), Caminhos do
exposição de Telésforo de Andrade. O pintor aparece em um mo- Decadentismo Francês, São Paulo,
mento de crise, em aporia, quando perde o protetor e é preterido Edusp e Perspectiva, 1989, pp. 24,
no prêmio da academia de viagem a Paris. Boêmio e vaidoso, jun- 25, 26.
ta-se ao crítico – alguém que “distendia ócios nauseantes de repul- 11
Luiz Edmundo conta em seu livro
sivo à freqüência dos primeiros cursos médicos” – cujo objetivo a história da cerveja no Rio e a
era uma boa posição nos jornais, ou seja, um lugar na esfera públi- disputa com os comerciantes
portugueses de vinho que tudo
ca que então se formava. Gonzaga Duque constrói seus dois per- faziam para impedir o sucesso da
sonagens como um dramaturgo trágico grego: ambos aparecem in nova bebida. Cf. Luiz Edmundo, O
media res, atravessados por seus desejos e ambições, no momento Rio de Janeiro do meu tempo, Rio,
do ataque, da pulsação, da transgressão que levará um a Paris e o Conquista, 1957, 2o vol., pp. 408 e
outro à queda (dissolução do grupo, perda de Henriette, solidão e 409; e 5o vol., pp. 978 e 979.
a doença que o matará). E como um trágico grego, leva Camilo até 12
Cf. a história de Furius Camillus
seu momento de verdade, no último capítulo, quando, sozinho, na em Plutarco, Vidas Paralelas, São
rua, sob o luar, resolve reagir e descobre que é tarde. Paulo, Paumapé, 1991, vol. 1; p.
268.
Se nos detemos um pouco nos nomes dos personagens, desco-
13
brimos, desde logo, alguns traços fundamentais em suas composi- No segundo capítulo, p. 37, o
narrador cita a frase de Pierre
ções e destinos. Primeiro, o crítico: Camilo lembra o seis vezes Sandoz, personagem de L’Oeuvre, de
ditador romano Marcus Furius Camillus (século IV a.C.) que expul- Zola: “Allons nous en travailler!”.
sou da capital do império os bárbaros gauleses.12 A força do gene- Zola é citado ainda no mesmo
ral romano aparece no ímpeto, na fúria de ideólogo de Camilo capítulo, p. 33, durante as discussões
Prado, líder dos Insubmissos e instigador do ataque aos acadêmi- de Camilo e seus amigos, juntamen-
te com Huysmans e os pintores
cos. Um estrategista ousado, e mesmo abusado, que dirige a orga-
impressionistas: “... apoiando-se no
nização do grupo, articulando um inimigo, simbolizado na figura apostolado reformador de Zola, na
de Telésforo, uma mistura de Pedro Américo e Vitor Meirelles, e um análise vesicante de Huysmans...”.
trabalho a fazer.13 O nome Prado suaviza a impulsão de Camilo,
colocando-os sob o signo do locus amoenus, um não-lugar de uma
natureza ideal, fora da corrente devastadora do tempo, onde pode
dar vazão a seus líricos delírios greco-romanos.

121 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


14
Para uma noção da popularidade Camilo Prado, aquele que decai, tem como contraface Agrário
da ópera na virada do século cf de Miranda. Do grego agrioV, aquele que vive nos campos, rústico,
Meyer, Marlise, “Vicente Celestino
selvagem (do verbo agrew, tomar, apoderar-se), assim como agreuV,
ou a Força do Destino”, in Caminhos
do imaginário no Brasil, São Paulo, caçador, pescador, Agrário traz no nome a força que parece lhe
Edusp, 1993, p. 139, e também texto faltar nos primeiros capítulos quando, em estado de aporia, não
de Lima Barreto agregado à edição consegue se decidir entre liderar o Zut e roubar Henriette para si,
de seu diário: “... a ópera lírica é a satisfazendo o desejo intenso de possuir a francesinha (metáfora da
mais alta expressão da estesia dos
viagem a Paris). Se é rústico, selvagem, o que se depreende do
nossos estudantes...”; cf. Lima
Barreto, Um longo sonho do futuro ímpeto que o leva, bêbado, ao apartamento de Henriette, é tam-
(Diários, cartas, entrevistas e bém de Miranda, ou seja, mirandus, a, um (miror), admirável, ma-
confissões dispersas), Rio de Janeiro, ravilhoso, prodigioso. Enquanto o nome de Camilo parece escon-
Graphia, 1993, p. 8. der timidamente a alma do crítico de artes da Folha, o de Agrário
repete o acorde de sucesso que ressoa desde o primeiro capítulo
no vencedor Telésforo de Andrade (teloV + jerw = aquele que leva
algo a um fim, que realiza algo).
Este último é o espectro que ronda o romance desde a magistral
abertura com a exposição do vasto painel histórico de 14m por
12m; é o pintor acadêmico vencedor que recebe a visita da prince-
sa, a admiração da imprensa e do público, e, por isso mesmo, o
alvo dos Insubmissos. A força criativa de Gonzaga Duque com a
língua aparece ainda em Telesforomidal, espécie de coquetel
Molotov jogado pelos Insubmissos no salão de exposições onde o
pintor oficial colhe o elogio público. O petardo que desmoraliza
Telésforo e lhe estraga a festa de glória é uma jóia de ironia que
mescla o nome do pintor a formidável (medonhamente grande,
descomunal, colossal, segundo o Aurélio) com o resultado de pôr
em ridículo a megalomania e o servilismo do tipo de arte oficialista
que ali se apresentava. Telesforomidal: aquilo que leva tudo a um
fim medonhamente grande, ou seja, fora de proporções, grotesco,
ridículo como o painel de 14m por 12m representando uma cena
de batalha, ou seja, o heroísmo fundador da nacionalidade.
Heráclito das Neves, apresentado pelo narrador como
“pardavasco espadaúdo e gigantesco”, também traz no nome suas
qualidades: a frieza no cálculo da sedução e do melhor momento
para arrebatar a presa e o nome de filósofo grego, em geral prece-
dido por senhor doutor, o que lhe reveste da tradicional dignidade
dos burgueses bem-educados.
A energia que falta a Camilo e a força momentaneamente para-
lisada de Agrário ressoam na ária Sento una forza indomita, do
primeiro ato do Guarani, de Carlos Gomes, que um dos boêmios,
Samuel Braga, o Braguinha, “laureado do concurso de piano do
Conservatório de Música”, usa como espécie de adágio. A força
indomável que invade o corpo de Peri é a mesma que leva Agrário
aos braços de Henriette, a mesma que empurra Camilo e que este
contém a todo custo, a mesma, enfim, que o doutor Heráclito ma-
neja com destreza de artesão profissional. Aliás, Mocidade Morta
lembra às vezes um libreto de ópera; não é difícil visualizar no
palco a última cena do livro com Camilo Prado sozinho na rua, de
madrugada sob o luar, cantando a ária da vida atravessada por
estranhos acordes dissonantes que anunciam a morte; ou mesmo o
dueto agonístico de Camilo e Heráclito, ao qual se junta a voz
fonte do Zut, num trio.14
A impotência sexual de Camilo fica patente desde o segundo
capítulo quando é exposta a teoria da cama: “Era o traste mais
traste que o comodismo humano inventara: possuía todos os defei-
tos – como móvel não passava de uma pretensão aparatosa de bur-
guês, acarretando gastos supérfluos em linhos, painas e sedas...Para
que? Para tornar-se um imóvel! Como utensílio, não se podia negar,
eram prejudicialíssimas – relaxavam os músculos, prostituíam as

travessia 40 / outra travessia 1 122


energias”.15 Uma entre as várias teorias que o crítico tece durante 15
Gonzaga Duque, op cit, pp. 35 e
a história, a teoria da cama aponta desde logo para este drama que 36. A partir daqui, as páginas
referentes à Mocidade Morta virão
o próprio Camilo define mais à frente (capítulo 10) como um
entre parênteses, no próprio corpo
“insucesso para o reqüestro”, uma “falta de masculinidade para o do texto.
gozo comum da mulher” (p. 130).
16
Gonzaga Duque, Luís. A Arte
Enquanto Agrário, depois de alimentar-se da energia de Brasileira, Campinas, Mercado de
Henriette, dá o tão sonhado salto para Paris, Camilo ronda obceca- Letras, 1995, p. 68.
do a francesinha que lhe fica como herança, como resto, sobra,
sem conseguir consumar a paixão, alimentando-se da doença da
amiga durante o inverno. O momento do choque acontece quan-
do ele enfrenta Heráclito, no capítulo 17. Amargurado por sentir
que o doutor cerca a francesinha que ele cuidava com tanto esme-
ro desde a viagem de Agrário, Camilo tenta de todas as formas
evitar o confronto. Este só vai acontecer quando o doutor força
uma visita à já quase restabelecida doente e os dois travam um
diálogo-duelo, cujo veredito será dado por uma risada de Henriette.
Durante o diálogo, vão ficando claras as diferenças entre os dois
homens: Heráclito gosta de Alencar, Francisco Lisboa, Gonçalves
Dias, Castro Alves; Camilo é fiel a Eça de Queiroz e Baudelaire; o
doutor bebe vinho, Camilo prefere a cerveja. Mas é na deixa de
Heráclito – a preferência pela Mulher – que Camilo vai construir
mais uma teoria, a da onosarquia, assumindo a iniciativa no diálo-
go agônico depois de alguns momentos de defensiva indecisão. É a
onosarquia, o poder dos burros, que garante o cimento da socieda-
de; é ela a “força equilibradora”, o “elemento de prosperidade”, “o
princípio inestimável de ordem social” que “representa o respeito
às fórmulas herdadas”, o bom-senso literário que resiste às inova-
ções. O entusiasmo irônico de Camilo, no entanto, é quebrado
quando Heráclito responde à exposição – “E ninguém salva-se da
influência desta força niveladora... senão o meu jovem e distinto
amigo” – e Henriette explode numa risada atroz. Camilo desaba,
sabe que perdeu.
Esta impotência sexual esconde um segredo, uma marca no
passado. E o segredo se revela exatamente no meio da narrativa,
quando Camilo volta para casa de bonde, uma casa simples de
subúrbio que guarda uma história de exclusão, resultado do amor
proibido de sua mãe, do suicídio do pai, enredo típico da mitolo-
gia grega. É aí que o narrador coloca o drama de Camilo: espécie
de gauche da vida, um homem marcado, que recua horrorizado
vendo seu próprio destino na loucura de Sebastião Pita e na morte
solitária e degenerada de Alves Pena. Camilo é um homem que
decai, que não encontra espaço em um mundo que se moderniza
a toque de caixa, um mundo que só oferece a seus nacionais duas
profissões: “...a lavoura e o bacharelado. Ou manda e açoita escra-
vos, ou conquista pergaminho para entrar na política”.16 A falta de
um lugar para o artista que busca novos horizontes é a sinuca de
bico do próprio Gonzaga Duque que se desdobra entre a família
(mulher e quatro filhos, sendo que dois morreram cedo), o empre-
go público e as inúmeras revistas e jornais em que colaborou. Tudo
isto, agravado pela saúde precária, pelo problema nos olhos17 e
pelo pouco caso com que a crítica recebeu Mocidade Morta e seus
outros livros. Em uma carta de 15 de novembro de 1902 ao poeta
Emiliano Perneta, Gonzaga desabafa, conta suas dificuldades e a
dor da perda do filho Haroldo, 11 anos. Havia ainda a neurastenia,
o esquecimento a que estava relegado, e um ceticismo que o im-
pedia de ter consolo “na doutrina dos Espíritos”.
O personagem que decai é um tema recorrente em Gonzaga
Duque e reaparece, pelo menos, em dois textos curtos publicados
na revista Kosmos: Benditos Olhos (2/12/1905) e Morte do Palhaço

123 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


17
Gonzaga Duque refere-se, no (1/01/1907).18 Nos três textos, temos a representação da arte se-
diário, a uma operação no olho gundo diferentes perspectivas: em Mocidade Morta, trata-se de ins-
esquerdo, ao avanço da catarata no
taurar uma alternativa às artes acadêmicas através de um grito sui-
direito e às dificuldades que tinha
para ler e enxergar à noite. Cf. op. cida, Zut!, uma ação rápida, fulminante, um ato de transgressão;
cit., p. 136. A metáfora da visão é em Benditos Olhos, a representação do irrepresentável, em Morte
explorada em Benditos Olhos. do Palhaço, o êxtase artístico e a morte, ou seja, a arte como um
18
Cf. Dimas, Antonio, op. cit., pp.
momento mágico que rompe o contínuo da história.
243 e 246, respectivamente. O crítico de artes Camilo Prado, que decai após o golpe ousado
19
Op. cit., p. 27. e suicida, coloca-se contra o status quo e, portanto, neste momen-
20
to de hegemonia do parnasianismo e do naturalismo no Brasil, não
Tadeu Chiarelli fala em uma “cisão
tem espaço, vive correndo pelas margens. Certamente, há o peso
estrutural” ao referir-se a este
aspecto dúplice. Cf. a introdução de do determinismo como paradigma científico e suas explicações
Chiarelli a A Arte Brasileira. racistas para o progresso e para a decadência, mas esta mania da
21
época não esgota as múltiplas possibilidades abertas pelo texto de
“Ambos constituem elementos
representativos de uma longa série, a Gonzaga Duque. Em Uma palheta que vive (Baptista da Costa),
dos autores que introduziram a que aparece em Os contemporâneos, Gonzaga registra dúvida quan-
fissura mais profunda e irremediável to à determinação dos artistas por seus caracteres físicos, mas não
dentre o grupo intelectual. Com eles deixa de ceder à tentação de estabelecer uma ponte entre os paisa-
surge a camada dos “vencedores”, o gistas e seus “traços exteriores” ou “feições particulares”. A argu-
filão letrado que se solda aos grupos
arrivistas da sociedade e da política,
mentação que se segue, no entanto, guarda as devidas distâncias
desfrutando a partir de então de com o discurso científico dos deterministas positivistas e
enorme sucesso e prestígio pessoal. evolucionistas, e se embala no prazer da escritura: “Tomemo-lo
(...) Essa nova camada seria à dos nesse mesmo Baptista da Costa. Ele tem o queixo anguloso dos
plenamente assimilados à nova obstinados. No seu tipo há alguma cousa de rústico, de não
sociedade (...) O segundo grupo, o
artificializado. A indicativa de sua corporatura é a de um campô-
dos “derrotados” ou ratés, por
oposição aos primeiros... Marginali- nio que estudou latim no Seminário e a sua dextra, que lhe é mão
zados, esses escritores optariam por dos pincéis, possui a dureza óssea das mãos ativas e as nodosidades
duas formas incompatíveis de assinaladoras do pensamento”.19 Mesmo em Arte Brasileira, a fúria
reação. De um lado se postaram os determinista-evolucionista da abertura e do último capítulo, que
que acatavam o seu opróbrio com condenaria de saída a cultura brasileira, acaba vencida pelas pági-
resignação... De outro, estavam os
inconformados... O primeiro desses nas que analisam as produções dos artistas.20
subgrupos era genericamente Camilo sabe que no mundo há vencedores e perdedores e, se
referido como meio dos “boêmios... lembrarmos a classificação de Nicolau Sevcenko21, ele ficaria en-
Envolvia principalmente os
tre o grupo 1 dos derrotados, os simbolistas e decadentes, “boêmi-
simbolistas, nefelibatas,
decadentistas e remanescentes do os e passivos”, sendo Euclides da Cunha e Lima Barreto do grupo
último romantismo.” Cf. Sevcenko, 2, dos reformistas inconformados. Mas o crítico de artes, que é
Nicolau, Literatura como missão, também escritor inédito, distingue o sucesso na vida, do sucesso
São Paulo, Brasiliense, 1995, 4a ed., na arte. Telésforo pode ser vencedor na vida, mas nunca um artista
pp. 103 e 104. vitorioso. A condição de artista é alguma coisa que não cabe no
22
Cf. Dimas, Antonio, op. cit., p. mundo comportado da onosarquia, na poética bem comportada e
317. patriótica dos acadêmicos; ela está simbolizada na ascese do clown,
de Morte do Palhaço, que se transforma num pária para atingir o
momento mágico do êxtase artístico; no brilho dos olhos da moça
tísica por quem se apaixona o narrador de Benditos Olhos; no tem-
po que desaparece durante a leitura de Eça em O Primo Basílio.22

O campo das artes

Tanto Gonzaga Duque na virada do século quanto Ronaldo Brito


nos anos 70 consideram precárias as condições de mercado de
suas épocas, o que dificulta ainda mais o trabalho do artista. Em se
tratando do final do século XIX e início do XX, quando o Rio de
Janeiro tinha apenas 500 mil habitantes e a crise do Segundo Impé-
rio desembocava na República, provocando um rearranjo no cam-
po da arte, a posição do produtor cultural não era certamente das
mais fáceis, principalmente se não se aliava aos hegemônicos. Pois
havia um campo da arte constituído, com seus grupos hegemônicos,

travessia 40 / outra travessia 1 124


os “vencedores” (parnasianos e naturalistas e, nas artes plásticas, 23
As faculdades de Direito de Recife
professores e alunos da Academia) e periféricos, os ratés (simbolis- e São Paulo, fundadas por decreto
em 1827, agrupavam já determina-
tas, decadistas e reformadores); havia ainda os jornais e revistas
dos setores da intelectualidade,
que começam a se reproduzir rapidamente, mas é forçoso lembrar produzindo conhecimento nos
que o número de leitores é muito baixo, as edições de pequena moldes do determinismo então em
tiragem e vida curta, que a universidade apenas começa a dar seus voga. Cf. Schwarcz, Lilia Moritz. O
primeiros passos23, e que o público de artes é ínfimo. Camilo Prado espetáculo das raças, São Paulo,
explica assim, em Mocidade Morta, as condições do mercado de Companhia das Letras, 1995. O
grande impulso na universidade viria
artes brasileiro para justificar o sucesso de um artista como Telésforo: nos anos 30, com a missão francesa
na USP.
Há certas épocas que produzem caricaturas de gênios;
24
então na história das artes os casos não são raros. Eis o Para conhecer melhor o modelo
seu mérito. Por si, o esforço foi pequeno, tudo mais de formação acadêmico de artes
plásticas, cf. Bourdieu, Pierre, “A
resultou de circunstâncias favoráveis – a falta de institucionalização da anomia”, in O
concorrência séria, a apatia do meio... até a necessidade Poder Simbólico, Lisboa/Rio, Difel/
de vibrar na esmorecida fibra patriótica, concorrendo Bertrand Brasil, 1989.
para o prestígio da monarquia, quando as aspirações
republicanas entram no domínio das realidades... (p. 92)
Desta forma, o sucesso de Telésforo explica-se pelas peculiari-
dades, fragilidades, do campo das artes local, pelas relações cordi-
ais com o poder, e não pelo valor de sua produção. O que conta
aqui é o curso na Academia, a carreira de funcionário público, a
disputa por cargos, os interesses dos poderosos, sejam eles a mo-
narquia ou a república. É uma arte de “circunstâncias favoráveis”.24
Neste contexto, destaca-se a discussão sobre o nacional, leva-
da a cabo tanto por Camilo Prado em Mocidade Morta, quanto por
Gonzaga Duque em A Arte Brasileira. Camilo expõe assim seu ponto
de vista sobre a identidade e arte nacional. O fato de constituirmos
um país independente não pressupõe a existência de um naciona-
lismo; somos “a fusão dos mais dessemelhantes elementos” com
“predominância latina” e nossa “preceptora espiritual” é a Europa:

(...) a Arte, para todas as nações que nasceram da


civilização d’Ocidente, é uma e a mesma, e apenas
variando em particularidades d’expressão que vêm do
acordo com o traço psíquico da raça dominante em
cada meio de produção. Daí concluiremos que, n’
América de hoje, talvez de amanhã, sobretudo na sua
parte meridional, não existe essa característica que
acentua... a origem nacional da obra artística. (p. 39)
Comparemos este trecho com o de A Arte Brasileira que escla-
rece bem o ponto de vista de Gonzaga Duque. Ali, seu alvo é a
Academia Imperial de Belas Artes que tinha resolvido catalogar
um grupo de obras de seus professores e alunos como Escola Bra-
sileira. Analisando as exposições de 1871, 1879, 1882 e 1884,
realizadas na Academia e no Liceu de Artes e Ofícios, Gonzaga
Duque mostra a predominância de temas bíblicos e clássicos para
provar que o romance, a poesia e mesmo a história do país ne-
nhum papel desempenha nesta produção. Haveria, portanto, um
descompasso entre as artes brasileiras, daí: “(...) a feição que ca-
racteriza nossa arte é o cosmopolitismo, e um país para ter uma
escola precisa, antes de tudo, de uma arte nacional” (p. 259).
Se o alvo de Gonzaga Duque é a Academia, não podemos es-
quecer que o debate sobre a identidade nacional mobiliza todos
os intelectuais brasileiros na metade final do século XIX. Basta lem-
brar Machado de Assis e seu Instinto de Nacionalidade (1873). Nas
artes plásticas, esse debate foi colocado primeiro por Manuel Ara-
újo Porto Alegre durante sua gestão como diretor da Academia, de

125 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


25
Escreveu Revoluções Brasileiras, 1854 a 1857: que princípios deve adotar a Academia para ter o
1898, e Marechal Conrado nome de escola? E, mais, a feição das escolas deve-se mais à natu-
Niemeyer, apontamentos biográficos,
reza do país onde estão estabelecidas ou às doutrinas de seus mes-
1900.
tres? Em 1885, Felix Ferreira oferece, em seu Belas Artes: Estudos e
26
Op. cit., pp. 56 e 57. Apreciações, a pintura da paisagem como opção à arte idealizada
27
Em seu Diário íntimo, Lima Barreto acadêmica. Gonzaga, o próximo a se somar ao debate, nega às
cita Gonzaga Duque: “Os negros, artes do país características nacionais que as pudessem marcar e
quando ninguém se preocupava em reconstrói a história das artes plásticas hierarquizando as produ-
arte no Brasil, eram os únicos (G. ções com o filtro de sua parcialidade moderna. Assim como a pro-
Duque, Arte Brasileira).” Cf. Lima
Barreto, op. cit., p. 34.
dução de seus companheiros escritores (Mário Pederneiras, Cruz e
Souza, Lima Campos, Rocha Pombo, Nestor Vitor, et alli) desmente
28
Manuel Bandeira também conta a o vazio literário opondo-se à corrente naturalista e parnasiana, tam-
história da missão francesa que
fundou a Academia de Belas Artes.
bém as obras de Belmiro de Almeida, Roberto Mendes, Eliseu
Cf. “A missão francesa”, in Poesia Visconti refazem a história das artes plásticas deixando na sombra
completa e prosa, Rio de Janeiro, da vitória circunstancial os grandes painéis nacionalistas de Pedro
Nova Aguilar, 1977, p. 652. Américo e Victor Meirelles.
29
Cf. Ferrez, Gilberto, O Rio Antigo Há de se ressaltar um ingrediente básico nesta interpretação do
do fotógrafo Marc Ferrez/ Paisagens Brasil. Gonzaga Duque, que era também historiador25, não pinta
e tipos humanos do Rio de Janeiro, com tintas ufanistas a história do país, muito pelo contrário. Da
1865-1918, São Paulo, João Fortes
Engenharia e Editora Ex Libris, 1984.
leitura dos primeiros capítulos de A Arte Brasileira surgem não ape-
nas os contornos da prisão metodológica do determinismo que
30
Cf . Os contemporâneos, op. cit. muitas vezes lhe fundamenta o discurso, mas, sobretudo, a visão
de um país construído pela violência: os índios foram dizimados –
“O extermínio teve princípio em 1531...” – a economia era basea-
da na escravidão – “A sede de cobiça produziu a necessidade do
escravo negro...”; “Os próprios jesuítas, missionários na África, tor-
naram-se mercadores de carne humana”.26 Violência e falta de
coesão social compõem o caos que impera no país, situação, aliás,
conforme ao pessimismo determinista de então e à formação de
um país que apenas começava a dar seus primeiros passos como
estado-nação moderno.
Desta forma, a vinda da missão francesa é vista por Gonzaga
Duque como um obstáculo à formação de uma arte autóctone,
como a imposição do modelo neoclássico francês em detrimento
de uma experiência construída aqui. No discurso pronunciado na
Exposição Nacional de 1908, Gonzaga Duque lembra que, na ori-
gem, as artes plásticas no Brasil eram um ofício de escravos e liber-
tos.27 Foram eles que encheram as igrejas com sua arte na Bahia,
em Minas Gerais, no Rio, pois não havia outro lugar em que ela
pudesse residir num país que era apenas lugar de passagem. A che-
gada de Dom João VI, no entanto, iria mudar o rumo das artes
plásticas na colônia. De uma atividade de escravos e libertos pas-
saria ao domínio da colônia Le Breton28, um grupo de artistas fran-
ceses reunidos em Paris pelo marquês de Marialva, que chegou ao
Rio em 1816 e era composto por Auguste Henri Victor Grandjean
de Montigny (1776-1850), Joachim Le Breton (1760-1819), Jean
Baptiste Debret (1768-1848), Nicolas Antoine Taunay (1755-1830)
– avô do escritor de A retirada de Laguna e Inocência, Alfredo
d’Escragnolle Taunay –, Marc Ferrez (1788-1850) e Zepherin Ferrez
(1797-1851) – que chegaram depois e logo se juntaram ao grupo e
são tio e pai, respectivamente, do também Marc Ferrez que, nasci-
do no Rio em dezembro de 1843, seria um dos primeiros fotógra-
fos da cidade.29
Se a vinda dos franceses deu um novo status à profissão de
artista plástico, trouxe também o vício do oficialismo e do funcio-
nalismo público que levaria Gonzaga Duque e um grupo de jovens
a tentar criar o ensino livre de artes no Rio. Essa história é contada
em O aranheiro da Escola.30 Com a proclamação da República e a
crise pronunciada na Academia Imperial de Belas Artes, o campo

travessia 40 / outra travessia 1 126


31
das artes divide-se em dois grupos, um pedindo a extinção da aca- Cf. Lins, Vera, Gonzaga Duque,
demia e a introdução do ensino de artes nas escolas públicas – crítica e utopia na virada do século,
Rio, Fundação Casa de Rui Barbosa,
projeto de Montenegro Cordeiro, Décio Villares e Aurelio de
1996, p. 26.
Figueiredo, apoiado pelos jovens artistas –, e outro – Rodolfo Amo-
32
edo (1857-1941) e Rodolfo Bernardelli (1852-1931), este padrinho Cf. Nestor Vitor, “A crítica de arte
na obra de Gonzaga Duque”, in
do filho de Arthur Azevedo – reivindicando apenas a reforma da
Obra Crítica de Nestor Vítor, Rio de
instituição. Para tristeza de Gonzaga Duque, o Governo optou pelo Janeiro, MEC, Fundação Casa de Rui
projeto de reforma; como se não bastasse, a tentativa de organizar Barbosa e Secretaria Estadual de
o ensino livre esbarrou nas diferenças com o positivista Décio Cultura do Paraná, 1979, Vol. III, p.
Villares que, no final das contas, acabou juntando-se ao grupo ven- 240.
cedor. O imbroglio serve não apenas para costurar a postura 33
Cf. Zola, Emile, “Edmond e Jules
antiacadêmica de Gonzaga Duque com a de Camilo Prado, mas, de Goncourt”, in Do Romance, São
principalmente, para apontar a posição do crítico no campo das Paulo, Edusp/ Imaginário, 1995.
artes de seu tempo. 34
Valéry, em seu interessante texto
Gonzaga Duque refere-se assim ao ensino da academia: “Era de 1938, fala assim dos simbolistas:
“D’autres, critiques d’art subtils,
um meio oficial, com cargos decorativos e sedutores contatos com
veulent introduire dans leur style,
a alta administração nacional. E, sejamos francos, não há natureza quelques imitations de contrastes et
mais feminilmente sensível à exibição que a dos artistas... se até os de correspondance du système des
homens de ciência têm a sua queda pela joalheria das comendas.” couleurs. D’autres ne craignent pas
Contrário ao oficialismo e ao jogo de favores, para ele o artista se de créer de mots, de pervertir un
faz na contramão, pois “aquele que entra na sociedade e ouve a peu la syntaxe...”. O poeta diz ainda
que não há uma estética simbolista,
boca de uma mulher bonita elogiá-lo e recebe o aperto de mão mas que esses artistas, unidos
afável de um alto personagem, está perdido”. Daí, a necessidade apenas pela negação, traziam um
de ir a contrapelo e reescrever a história do país, sob a ótica das estado de espírito novo e singular.
revoluções (Revoluções Brasileiras), e a das artes plásticas (A Arte Cf. Valéry, Paul, “Existence du
Brasileira) por alguém engajado no meio. Seu olhar de crítico cul- symbolisme”, in Oeuvres, Paris,
Bibliothèque de La Pléiade, 1957,
tural é excêntrico, como observa Vera Lins.31 Assim como Camilo, Vol. I, p. 686.
discrimina o vencer na vida do vencer nas artes e amarra sua práti-
35
ca na lição de Baudelaire: “(...) la critique doit être partiale, Cf. Guimarães, Julio Castañon,
“Gonzaga Duque: Ficção e crítica
passionnée, politique, c’est-à-dire faite à un point de vue exclusif,
de artes plásticas”, in Sobre o pré-
mais au point de vue qui ouvre le plus d’horizons.” A posição do modernismo, Rio de Janeiro,
crítico e do produtor de arte está marcada pela paixão, pela parci- Fundação Casa de Rui Barbosa,
alidade, pela obra que abre horizontes e se ilumina enquanto enig- 1988.
ma, o enigma da modernidade.

Uma arte do excesso

O que chama logo a atenção do leitor em Gonzaga Duque é


um certo excesso. Nestor Vitor fala em “excessivo prurido por sin-
gularidade estilística”32, e o leitor sente o cerco da proliferação.
Zola refere-se aos Goncourt como artistas que “possuem nervos de
uma delicadeza excessiva, que decuplam as mínimas impressões”.33
Poderíamos dizer o mesmo de Gonzaga Duque. Em suas mãos, a
língua dilata-se, deforma-se, chega aos limites da sintaxe34 e da
semântica, esgarçada por uma prosa selvagem que, em Mocidade
Morta, invade intempestivamente a narrativa realista da vida artís-
tica nos anos 1880. Como o Wagner de Tristão e Isolda, Gonzaga
Duque leva seus temas à beira do abismo, infestando o relato de
cromatismos e ameaçando a regularidade do sistema que o man-
tém vivo. Para Julio Castañon Guimarães, o texto de Gonzaga
Duque não apenas adere ao simbolismo decadista finissecular, mas
também reflete sobre ele.35 É o que se pode perceber, em Mocida-
de Morta, durante o relato eufórico de Camilo a Agrário e Henriette,
interrompido em momento de grande êxtase porque o narrador
não encontra a página certa, a ironia explodindo no
Verfremdungseffekt que talha, corta, o contínuo do texto. A mesma
ironia que explode na exposição de Telésforo – “Sublime! Único!

127 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


36
Gonzaga Duque, Luiz, “No tempo Telesforomidal!” – e na risada atroz de Henriette, estratégia que,
da Gazetinha”, in Dimas, Antonio, nas palavras do próprio Gonzaga Duque, vinha do sangue quente
op. cit., p. 291.
daqueles jovens de Sebastianópolis:
37
Bataille, George, A noção de
despesa/ A parte maldita, Rio de Até então as gerações tinham-se sucedido sem lutas,
Janeiro, Imago, 1975. fazia-se um passo de quadrilha e os que vinham atrás
davam braço aos que iam adiante... Tínhamos o sangue
quente, amávamos a ginástica e os exercícios da força;
os sports começavam a completar a educação dos
rapazes e, lidos nas bazófias físicas do sr. Ramalho
Ortigão, parecia-nos imprescindível ao triunfo das
idéias o murro esborcinante do rixento.36
Mocidade Morta compõe-se assim de partes que apresentam
uma certa autonomia devido ao excesso, às sobras de uma lingua-
gem que se debate entre Zola e Huysmans, eclética, mestiça, mes-
clada como a roupa do Arlequim, uma linguagem que ri de si mes-
ma. E é exatamente o palhaço que resume, de maneira muito feliz,
a visão de arte de Gonzaga Duque. A ascese que culmina na mor-
te, mas antes se ilumina em um momento mágico, simboliza o
esforço criativo do artista, a produção da obra que explode o coti-
diano, que transforma a estranha e decadente figura em um fulgor.
Talvez pudéssemos pensar a questão do excesso com Bataille e
a noção de despesa.37 Segundo o pensador francês, a atividade
humana é regida por uma despesa produtiva, cujo sentido é a con-
servação da vida e sua reprodução, e outra improdutiva. Entre este
“gasto” social, este excesso, Bataille enumera o luxo, os enterros,
as guerras, os sacrifícios, os jogos, os espetáculos, as artes, a ativi-
dade sexual desviada de fins reprodutivos. O princípio da perda,
que rege a economia social, pode ser percebido no exemplo do
sacrifício que os antigos faziam aos deuses, cujas descrições em
Homero impressionam tanto os leitores. O que era este ritual se-
não um enorme desperdício sanguinolento, um dispêndio de ener-
gia, de vidas, para a produção de coisas sagradas? Assim as artes,
outro excesso, que Bataille divide em dois grupos: 1) arquitetura e
dança, atividades que comportam despesas reais; 2) música, pintu-
ra, literatura, teatro, poesia, que se realizam pelo princípio da des-
pesa simbólica, sendo a poesia, para Bataille, sinônimo de perda,
com sentido próximo ao de sacrifício.
Com esta noção em mente, não seria difícil ler com outros olhos
não só a alegoria do desperdício no livro de Camilo (histórias de
sacrifício carregadas de sensualidade), mas o próprio excesso como
produção de uma escritura poética que vaza para o exterior de si
mesma, rompendo os limites do romance naturalista. O jogo da
transgressão, praticado de maneira suicida por Camilo, é
mimetizado na própria escritura que empurra para fora as frontei-
ras do romance, esvaindo-o em prosa poética, excessiva,
proliferante, enlouquecida, irônica, compondo, assim, a face
dúplice do centauro, face imobilizada no próprio título do roman-
ce, pois, à mocidade, símbolo da vida num momento em que as
forças se encaminham para a plenitude, Gonzaga Duque associa o
adjetivo morta, resultando numa expressão explosiva, um oxímoro,
a própria modernidade.
Desta forma, creio poder discordar de Julio Castañon Gui-
marães e de Massaud Moisés que apontam uma queda de rendi-
mento em Mocidade Morta. O “descaminho” do romance estaria
no enfraquecimento de seu aspecto de maior valor, a ação roma-
nesca, colocada em segundo plano na metade final do livro. Ele é
o foco que se fecha em Camilo e sua queda, parte que para Massaud

travessia 40 / outra travessia 1 128


38
Moisés, citado por Castañon, não passa de um dramalhão, um Como nos quadros de Gustave
melodrama piegas e inverossímil. No entanto, concentrar a aten- Moreau ou no mundo de Des
Esseintes, personagem de Às avessas.
ção na ação romanesca em um texto como Mocidade Morta pare-
Cf. Huysmans, J.-K., Às avessas,
ce uma atitude equivocada, tanto quanto ficar preso apenas aos tradução de José Paulo Paes, São
fragmentos de prosa poética. Mais interessante é acompanhar o Paulo, Companhia das Letras, 1987.
embate dos dois, o jogo da transgressão que se realiza na escritura
da mesma forma que na ação romanesca e pensar o excesso como
constituinte da literatura e da própria linguagem. Desta forma, po-
deríamos compreender em sua radicalidade a afirmação do pró-
prio Castañon Guimarães de que o texto de Gonzaga não apenas
adere ao simbolismo decadista, mas reflete sobre ele.
A tensão que perpassa o texto aparece também no contraste
dos cenários. O mundo cotidiano do Rio finissecular opõe-se aos
cenários greco-romanos pintados nos trechos da obra in progress
que Camilo lê para o grupo de boêmios no bar e para Agrário e
Henriette na pensão da rua do Livramento, um eco dos cenários
bizantinos dos decadentes, grandes planos vazados de detalhes
pormenorizadamente descritos.38 É nessas oportunidades, no livro
dentro do livro, que a escrita de Gonzaga Duque entusiasma-se,
acompanhando o êxtase do narrador-Camilo, multiplicando-se em
preciosidades, adjetivos raros, ressonâncias, expondo uma contra-
escritura, alguma coisa que parece querer minar o relato, zombar
dele.
Esta tensão se estabelece logo na primeira frase do romance:

Por este sábado de oitubro, flava manhã de sol e alta


alegria azul de céu aberto, Telésforo de Andrade,
dignitário da Rosa, palma d’Academia de França,
resplandecente de várias nobilitações estrangeiras,
expunha à admiração patrícia o seu novo quadro, um
vasto painel estendido por quatorze metros, contando
doze de altura, ‘pincelado a gênio, com maravilhosas
nuanças de tons e admirável composição de linhas, à
clássica’.
A longa frase que se espalha por todo o parágrafo é seguida de
outra tão longa e intrincada quanto a primeira, numa ameaça cons-
tante à estabilidade da sintaxe:

Esta rara obra, estardalhaçante de reclamos, tantaneada


no jornalismo indígena, anunciada por epígrafes a gordo
normando em louvores escorrendo, colunas abaixo, com
trestalos regozijantes d’adjetivação pirotécnica, a
primeira da decantada série que o seu famoso talento
educado na Europa se propunha a produzir para o
glorioso renome das armas imperiais nas façanhas bélicas
de 1865 a 70, teve a consagração de um pantheon de
pinho, ao molde do agripino, enorme como uma rotunda
e vistoso de frescas brochadas de gesso e oca.
São períodos longos como as frases de Mahler, de tirar a respi-
ração do leitor-ouvinte, jogá-lo no abismo, fazer cessar o tempo
dos relógios. Mas são intrincados e ornamentados como as peças
para teclado de Bach ou a Recherche de Proust, que também na-
moram o abismo. Ainda para frisar os contrastes e as tensões que
formam e conformam o romance, vale ressaltar a abertura marcada
pelo Sol (“Por este sábado de oitubro, flava manhã de sol e alta
alegria azul de céu aberto...”) e o final pela Lua (“O plenilúnio... os
que a seguem, pela Terra, fascinados... Para onde?”), o sol dos ven-
cedores como Telésforo e Agrário, e a lua dos lobos solitários como
Camilo.

129 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


39
“A remodelação do mobiliário”, Incidit in Scylam cupiens vitare Charybdim
Kosmos, 2/02/1907; “Três imagens
de Wagne”, Kosmos 8/07/1905; e “A
estética das praias”, in Graves e Se em Mocidade Morta temos um crítico às turras com seu tem-
Frívolos. po, um gauche da vida, a prática de Gonzaga Duque não nos reve-
40
Sobre o tema da mulher fatal e da la, por seu lado, uma posição menos cheia de arestas. Baudelairiano,
beleza meduséia, cf. Praz, Mario, A não suporta os quadros históricos, das grandes batalhas, preferindo
carne, a morte e o diabo no as cenas roubadas do dia-a-dia, como a que Belmiro de Almeida
literatura romântica, Campinas,
(1858-1935) pintou em Arrufos, tendo Gonzaga pousado de mo-
Editora da Unicamp, 1996.
delo. O crítico vê nesta tela de 1887 uma “verdadeira transforma-
ção estética”. E é nesta transformação que investe sua literatura
percorrendo não apenas os salões e exposições de arte, mas tam-
bém o mobiliário, a música de Wagner, as praias cariocas39, ainda
distantes e não aproveitadas, os pequenos assuntos urbanos que
contrastam com os grandes acontecimentos históricos exigidos por
uma elite que então buscava inventar o país em modo sério, sole-
ne. Foge, ainda com Baudelaire, desse solene oficialismo cedendo
de boa vontade à sedução da beleza satânica, meduséia que mes-
cla prazer e dor, um tema caro ao século XIX.
Destacamos aqui duas críticas a pintores ligados ao decadismo,
ambas reunidas em Graves e Frívolos, de 1910, e que representam
duas facetas da modernidade baudelairiana de Gonzaga Duque.
Na primeira, intitulada Rops e publicada originalmente em agosto
de 1906 na revista Kosmos, Gonzaga ressalta a criação pelo artista
belga “desse tipo da mulher impassível e livre, da modernidade – a
carne venenosa de ‘la demone’...”, mulher que povoa suas própri-
as criações, basta lembrar de Henriette, de Mocidade Morta, ou da
protagonista de Aquela Mulher. Gonzaga cita ainda a crítica de
Huysmans a Rops, na qual o criador de A Rebours fala de um “real
desperdício de fósforo” no cérebro dos artistas que tratam “violen-
tamente os assuntos carnais”. O acúmulo de tensão, via cenas car-
regadas de sensualidade, é um dos expedientes utilizados por
Camilo em sua obra in progress e, claro, pelo próprio Gonzaga
Duque. Voltamos à idéia de despesa, de excesso, já tratada acima.
Vale, no entanto, chamar a atenção para este jogo entre o de-
moníaco sexual, representado pela mulher, e o espiritual, o jogo
de Camilo e da arte de Rops que “morde como uma ‘tarântula’,
injeta a peçonha num trincar doloroso e inflama todo o organismo
num desespero de ‘incuba’ epileptizado”. Gonzaga atribui à mu-
lher prostituída a encarnação do Mal e, na herança de todo o sécu-
lo XIX, tem sua escritura obcecada pela mulher fatal, loba, vampira,
aranha.40
Vejamos, por exemplo, no ensaio sobre Rops, como o crítico
descreve o trabalho do nu feminino do artista belga e como trata a
super bestiam femina. Ela é a “mulher desviada da seriedade da
sua missão e transformada em coisa”, “o gênio do Mal”, “uma loba
do amor dinheiro”, mas, assim como Rops e muitos artistas do sé-
culo XIX, basta citar Henrique Alvim Correa (1876-1910), Gonzaga
Duque volta insistentemente a ela. A beleza meduséia, aquela que
une prazer e dor, beleza e abjeção, a mulher e o monstro, não está
presente em Aquela Mulher, quando recitando versos de Wilde,
Mallarmé, a personagem arde “como uma criação infernal, nervo-
sa Vênus dos histerismos”? Essa criatura, cujas pupilas são um “misto
de ematites e pó de ouro, densos de noite descida nos desertos e
areia faiscante de plagas sonhadas, palhetas de esmeraldas e
topázios laminados por clarões fugitivos ao esfuziar da calmaria
equatorial”, parece sair de um quadro de Gustave Moreau ou da
imaginação de Huysmans. Não está presente também a mulher-
monstro em Henriette, que seduz Agrário com sua voz “que trinava,
pizzicateava num doudejamento de regozijos” qual uma sereia e,

travessia 40 / outra travessia 1 130


por vezes, qual autômato da sinistra história de Hoffmann? Vista da 41
Em Der Sandmann, Nathanael
janela, como no conto de Hoffmann41, por Agrário, a criatura tem apaixona-se por uma mulher que vê
sentada na janela cujos olhos têm
“a cabeça loira de uma rapariga, traços delgados de adolescência
algo de fixo (“...und überhaupt
num rosto fresco e sadio de brejeiro, rosiclareado da graça petu- hatten ihre Augen etwas Starres...”,
lantemente moderna das galantes decorações de boudoir, onde cf. Hoffmann, E.T.A, Erzälungen/
luziam célicas lentilhas de olhos tentadores”. Mas deste rosto “sa- Contes. Paris, Aubier Flammarion,
dio e brejeiro” saiu a gargalhada sarcástica que acabou de derrotar 1968.
Camilo e que se anunciava desde o início nas “lentilhas celestes”, 42
“O poulpe, au regard de soie! toi,
um quitute dos deuses, alimento sagrado e perigoso como o regard dont l’âme est inséparable de la
de soie no polvo de Lautréamont42, a arma paralisante da medusa, mienne”, in Lautréamont, Les chants
o olhar fixo do autômato de Hoffmann, e, mesmo, os olhos que de Maldoror. Paris, Classiques
Français, 1995, p. 23. Mais polvo, da
mudam a vida do “escrevente desprezível” de Benditos Olhos, trans- p. 109 à 115.
formando-o em mendigo cego.
43
Cf. Caillois, Roger, La mitologia del
Prazer e dor. Por isso a nudez das mulheres de Rops deveria pulpo, Caracas, Monte Avila
“desprender uma perturbação estranha”. A justificativa de Gonzaga Editores, s/d.
Duque, de que “há uma revolta contra a luxúria, a estupidez e o 44
Antelo, Raúl, “Elementos de una
ouro” na obra de Félicien Rops, não impede o crítico de se alongar ficción pós-significante: tiempo
sensualmente na descrição dos detalhes do vestuário interno das vacío y violencia pulsional”, texto
mulheres e partes do corpo feminino, num longo parágrafo, para não publicado.
concluir que as figuras de Rops são “diabólicas tentações que se
agarram à vitalidade como o sinistro polvo, em que os japoneses
simbolizam a Luxúria”. O mesmo polvo que Roger Caillois perse-
guiu no imaginário do Ocidente, dos árabes e japoneses em sua
metamorfose de animal comestível a monstro.43 Polvo que, como
mostra Raúl Antelo44, é também Carmen, Lulu e Salomé, todas
mulheres-monstros, seres centáuricos, tentaculares, meduseus,
porque representavam uma ameaça, um desafio e um enigma ao
poder masculino.
O apego a estas estranhas criaturas “da fantasia mórbida
de homens ‘do seu tempo’” cintila ainda em Helios Seelinger, de
fevereiro de 1908, posteriormente reunida em Os Contemporâne-
os. Aqui, Gonzaga Duque fala expressamente em beleza moderna
para classificar dois quadros do discípulo de Franz Stuck: Salambô
e a lua e Salambô e a cobra. A mulher de Helios não é a procriadora,
a mãe moderna que divide com o marido o lar urbano do mundo
burguês, mas “a terrível loupeuse, envenenada pelo satanismo da
luxúria, que arrancou ao lápis de Félicien Rops a série magistral de
sua obra erótica”. Temos nos dois quadros símbolos caros a nosso
autor: a mulher fatal, representada pela personagem de Flaubert, a
lua e a cobra. Mas não é exatamente a mesma figura de Flaubert.
“É uma Salambô que criamos por associações anacrônicas”, afir-
ma, para ressaltar a beleza moderna: “...este tipo se confunde en-
tre uma vaga imagem lendária de um perdido passado e a figura
inquietante, sinistramente suspeita, observada dia a dia no cenário
costumeiro da irrequieta, aguda, absorvente e destruidora existên-
cia contemporânea”.
Em As mulheres de Puvis, vemos a outra ponta da moderni-
dade baudelairiana, se entendemos a anterior enquanto a eterna, a
mitológica. O ensaio sobre Pierre Puvis de Chavanne enaltece a
mulher urbana, do cotidiano, vigorosa, que trocou a condição de
“coisa” pela “posição de igualdade à do seu semelhante”, que não
tem nenhum caráter alegórico por ser avessa ao convencional, ao
solene. Aqui não há espaço para o “tipo deliqüescente” tão caro
aos decadentes finisseculares, mas reina “a mulher bela do seu
tempo” pintada “na sua sanidade de corpo, desde o estado púbere
até à suprema idade”. O clima é o mesmo de Arrufos, de Belmiro
de Almeida, tela que provoca, em A Arte Brasileira, a descrição
deliciosa da cena entre marido e mulher:

131 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


45
Op. cit., p. 211. É um episódio doméstico, uma rusga entre cônjuges.
O marido, um rapaz de fortuna, chega em companhia
da esposa à bonita habitação em que viviam até aqueles
dias como dois anjos. Tudo em redor demonstra que
aquele interior é presidido por um fino espírito
feminino, educado e honesto. Ela, o encanto desse
interior à bric-à-brac, depõe o toucado de palha sobre
um mocho coberto por um belo pano de seda e entra
em explicações com o esposo. E ele, muito a seu
cômodo em um fauteuil de estofo sulferino, soprando
o fumo do seu colorado havana, responde-lhe palavra
por palavra às explicações pedidas. Há um momento
em que ela excede-se, diz uma frase leviana; ele
reprova, ela retruca, ele repele; então ela não se pode
conter, é subjugada por um acesso de ira, atira-se ao
chão, debruça-se ao divã para abafar entre os braços o
ímpeto do soluço. É este o momento que o artista
escolheu.45
A cena urbana e doméstica, um instantâneo da vida de um ca-
sal, tem todos os ingredientes da face circunstancial do belo
baudelairiano e, por isso mesmo, a ameaça sombria do monstro,
como o polvo escondido na caverna. Gonzaga Duque leitor de
Baudelaire sabe mesclar os dois lados do belo moderno, fazer o
elogio da toilette de Belmiro de Almeida e buscar o eterno na ascese
do clown ou no irrepresentável de Benditos Olhos. O cronista, o
ficcionista, o historiador, o crítico, assim como a mulher moderna
e a mitológica, convivem na subjetividade cindida do escritor, uma
sempre na iminência de sair da outra, como a cobra e o polvo que
renovam a pele.
Na intimidade de seu diário feito à moda dos Goncourt, o autor
de Mocidade Morta nos revela, em página proustiana, uma cena
íntima cujo tom é, mais uma vez, dado pelo desejo que justapõe as
duas faces da modernidade, fazendo uma sair da outra como a
pele da cobra.
O crítico reclama que há muito não tem uma idéia sentida des-
te “amor que se tem ao despertar da mocidade” todo movido pelo
calor da paixão:

Ontem, à noite, tive-o. Estava em casa de meu amigo


xxx, numa intimidade que só as longas, velhas
amizades consentem. Sua filha X, de 16 anos,
desnastrou a abundante cabeleira negra, que possui e
pôs-se a penteá-la para desemaranhar os fios. O rosto
dela, muito branco, seus olhos verdes cismadores, a
sua boca muito rubra, tinham sob essa cabeleira
distendida e à luz viva do gás, um quê misterioso de
noiva...
E, apesar dos meus quarenta anos, apesar do respeito filial que
essa criança me tem, senti, num minuto, toda a castidade dos amo-
res despertos nas almas virgens: amei-a no deflagrar de um instan-
te, com a mesma emoção virginal da primeira vez que amei em
minha vida.
A imagem da menina-mulher penteando-se produz no escritor
um instantâneo daquele desejo adolescente iluminado por sua
memória involuntária. Nem toda a força do ambiente familiar bur-
guês que ronda a cena e lhe dá uma dignidade controlada e con-
fortável, nem todos os apesares que o autor utiliza conseguem re-

travessia 40 / outra travessia 1 132


46
ter o fluxo de desejo que se impõe com violência. Querendo evitar Em 1893, é nomeado 2o oficial da
Caríbdis, Gonzaga Duque cai em Cila. Diretoria do Patrimônio Municipal e,
em 1910, diretor da Biblioteca
Municipal.
O journal de um insubmisso 47
Cf. Araripe Jr, “O movimento
literário de 1893”, in Obra Crítica de
Araripe Jr (1895-1900), Rio de
Esta cena é a que fecha Meu Jornal 1900-1904, uma das Janeiro, MEC e Fundação Casa de
peças fundamentais para se compreender o quebra-cabeça que Rui Barbosa, 1963, vol. III, p. 135;
conforma a personalidade complexa e rica de Gonzaga Duque e Andrade Muricy, Panorama do
sua posição no campo das artes dos anos 1880, quando começa Movimento Simbolista Brasileiro, Rio
sua vida profissional, a 1911, quando morre. Ele abre seu diário, de Janeiro, Departamento de
Imprensa Nacional, 1952, Vol. I, pp.
em 1900, narrando os problemas que enfrentou para editar Moci- 56, 57, 58. Sobre os primórdios do
dade Morta e conta os insucessos do livro com a crítica hegemônica simbolismo no Brasil cf. também
(José Veríssimo) e o elogio dos amigos (Mário Pederneiras, Lima Nestor Vitor, “Como nasceu o
Campos, Nestor Victor, Luiz Murat, Roberto Mendes). Em suas pá- simbolismo no Brasil”, in op. cit.,
ginas, movimenta-se um homem de extrema sensibilidade, saúde Vol. III, p. 76.
precária, vida intelectual restrita, que trabalha para diversos perió- 48
É sua a Proclamação Decadente
dicos e ainda bate ponto na repartição pública.46 Nelas aparecem (1889): “Poetas,/ são tempos
as histórias tristes de intelectuais “perdedores”, como a de B. Lopes malditos/ os tempos em que
vivemos.../ Em vez de estrofes, há
e a de Inácio Porto Alegre, e surgem, nomeados, os autores estima-
gritos/ de desalentos supremos.” E o
dos – os Goncourt, Flaubert, Huysmans, Mallarmé, Albert Samain, Soneto Decadente (1889): “Morria
Moréas, Gautier, Zola, Eça, Fialho d’Almeida, Camilo Castelo Bran- rubro o sol e mansa mansamente...”.
co, Antonio Nobre, Eugenio de Castro e Antero de Quental, que Cf. in Carollo, Cassiana Lacerda
ganha uma especial declaração de amor. (Seleção e apresentação). Decadismo
e Simbolismo no Brasil/ crítica e
O diário revela ainda os dramas pessoais do escritor, a poética. Brasília, Livros Técnicos e
dolorosa perda do filho Haroldo, o problema nos olhos, a correria Científicos/ INL/MEC, 1981. Vol. II,
para cumprir os prazos dos artigos encomendados e a vida artística pp. 103 e 104. Para Nestor Vitor,
do início do século, aquele ambiente que Brito Broca pinta de ma- eram apenas “as malsinadas
Canções da Decadência, completa-
neira magistral em seu A vida literária no Brasil-1900. Gonzaga
mente alheias ao verdadeiro espírito
Duque acompanha o trabalho dos amigos pintores, lê versos de daquele grupo francês”.
Mário Pederneiras, de braço dado com a mulher Júlia cruza a cida-
de, de Botafogo a Glória, para assistir a inauguração do monumen-
to a Pedro Álvares Cabral e, com Lima Campos em O Paiz, divide
uma coluna de combate assinada Máscara Negra. É aí que espinafra
José Veríssimo, o Barbicas, como conta no diário: “Resolvi dizer
meia dúzia de verdades, que equivalem a desaforos, aos nossos
críticos oficiais, verdadeiras toupeiras literárias”. É interessante notar
que o crítico literário Gonzaga Duque não faz nenhuma referência
a Machado de Assis que desde a década de 80 desfruta de grande
popularidade e escreve para os principais jornais. Em A Arte Brasi-
leira, cita Sílvio Romero para dizer que a literatura brasileira não
existe e aponta Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar como
os dois maiores romancistas brasileiros para logo criticá-los; ao
primeiro pela “falta de sentimento estético da forma” e, ao segun-
do, por um “excesso de imaginação decaindo para a puerilidade”.
Além de José Veríssimo, o crítico ironiza também Olavo
Bilac e Medeiros e Albuquerque, este último o introdutor dos livros
“decadentes” franceses no Brasil, como contam Araripe Júnior e
Andrade Muricy. 47 Medeiros e Albuquerque havia tratado o tema
da decadência logo nos primeiros momentos48, mas depois passa-
ria a criticar ferozmente o grupo simbolista. Em Meu Jornal, Gonzaga
Duque não economiza adjetivos para pintar o poeta: “É um
declamador pantafaçudo. (...) um palavroso maníaco, tipo físico
acentuado, alto, esquálido, enorme nariz curto e grosso, míope,
esquisitão no trajo e cheio de cacoetes”.
Sempre em oposição aos intelectuais “vencedores”, se-
jam escritores ou artistas plásticos, Gonzaga Duque constrói sua
prática como a de um crítico da razão instrumental moderna, zom-
bando das certezas científicas dos positivistas e dos evolucionistas

133 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003


49
Cf. Sussekind, Flora, “O figurino e deterministas que se formavam na Escola do Recife, embora o
a forja”, in Sobre o pré-modernismo, determinismo representasse um papel em sua personalidade múlti-
op. cit., pp. 41 e
pla. É um intelectual excêntrico que trabalha para a grande im-
prensa, mas também funda suas próprias revistas, abrindo espaço
para vozes dissonantes no campo da arte de seu tempo.
Sua estréia na esfera pública dá-se com a revista Guanabara,
fundada por ele e Olympio Niemeyer em 1880. Daí em diante,
aparecem Rio Revista (1895), Galáxia (1897), Kosmos (1904), Fon-
Fon (1908), para citar apenas algumas das que contavam com a
colaboração de pintores, caricaturistas, poetas e cronistas. O críti-
co, portanto, não fica encastelado escrevendo para o futuro e la-
mentando-se da sorte presente. Incide sobre o campo da arte, mar-
cando-o com sua leitura original, relacionando-se com a indústria
cultural que então começa a deslanchar. Se seu texto acentua a
subjetividade deixando em segundo plano as fotografias (a técni-
ca), como no caso de Agonia por semelhança, publicado em Horto
das Mágoas e analisado por Flora Sussekind49, não se pode esque-
cer sua intervenção na imprensa, nem o fato de ele mesmo ser
cronista da vida mundana do Rio de Janeiro da virada do século.
Como Ronaldo Brito nos anos 1970, Gonzaga Duque relaciona-se
de maneira tensa com o mercado: nem fica ofuscado pela técnica
e pela idéia de progresso, muito menos abandona a esfera pública
para construir uma arte supostamente pura, até porque isto iria
contra sua noção de modernidade baudelairiana. Não compõe com
a situação (José Veríssimo, Olavo Bilac, Coelho Neto, et alli), nem
se fecha no simbolismo-decadista finissecular. Transita com ele-
gância tensa entre Zola e Huysmans, como um híbrido e eclético
dandy da periferia, obnubilado apenas pela idéia equivocada de
pré-modernismo.

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