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Letras

n 53
o

Estudos Narrativos:
Componentes Interdisciplinares
Letras / Universidade Federal de Santa Maria. Centro de Artes e
Letras. Programa de Pós-graduação em Letras. - Nº 1, jan./ jun.
(1991) - _____. Santa Maria, 1991 -_____.

Semestral
Vol. 26, nº 53 (jul./dez. 2016)
ISSN 1519-3985

1. Literatura. 2. Literatura – Periódicos. 3. Linguística.


I. Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. II. Centro de Artes
e Letras – CAL. III. Programa de Pós-graduação em Letras.

Ficha catalográfica elaborada por Fernando Leipnitz CRB-10/1958


Biblioteca Central/UFSM
Estudos Narrativos:
Componentes Interdisciplinares
Raquel Trentin Oliveira (UFSM)
Carlos Reis (Universidade de Coimbra)
organizadores

Nº 53, JULHO/DEZEMBRO DE 2016


Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal de Santa Maria
Santa Maria - Rio Grande do Sul

ISSN 1519-3985

Letras | Santa Maria | v. 26 | n. 53 | p. 1-308 | jul./dez. 2016


Reitor Editora
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Beatriz M. Eckert-Hoff (UNIVÁS) resultantes de pesquisa científica original de
Claudete Moreno Ghiraldelo (ITA) caráter significativo para as áreas dos Estudos
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Birmingham, England)
Esta publicação conta
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com o apoio institucional
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University, Hong Kong) Aperfeiçoamento de
Brian Street (King's College London, England) Pessoal de Nível Superior.

Preparação e Revisão de Texto


Enéias Farias Tavares Esta publicação conta com o apoio do Edital Pró-
Capa, Projeto Gráfico e Diagramação Revistas da PRPGP-UFSM.
Evandro Bertol e José Paulo R. dos Santos

Periodicidade
Semestral
Sumário
Apresentação........7
Raquel Trentin Oliveira • Carlos Reis

A Narrativa que vende:


a narrativa como mercadoria e como propaganda......13
Luís Fernando Prado Telles

Narrativa Transmídia: modos de narrar e tipos de histórias......45


Camila Augusta Pires de Figueiredo

O curioso caso do homem plano de Patrícia Portela:


uma leitura desestabilizadora......65
Paulo Ricardo Kralik Angelini

Unnatural Narratology, Unnatural Narrative: trasngressões e


desvios da verossimilhança realista na narrativa contemporânea......85
Raquel Trentin Oliveira

A Paródia e o Estatuto do leitor em


O Único Animal Que?, de Augusto Abelaira....107
Jose Luis Giovanoni Fornos

Contribuições literárias para os estudos narrativos a partir de um


Corpus português: a narrativa em António Lobo Antunes....127
Maristela Kirst de Lima Girola

Domingo no Neo-Realismo Português....153


Isadora Dutra

O herói e a máscara:
Flávio de Carvalho e Roger Caillois leem Macunaíma....167
Larissa Costa da Mata

Fraternidades romanescas:
o trágico em O Filho da Mãe, de Bernardo Carvalho....187
Anselmo Peres Alós • Renata Farias de Felippe
Cidade Livre: reflexão metaficcional....199
Juracy Assmann Saraiva • Ernani Mügge

Intertextuality, narrators and other voices


in Jean Rhys’ Wide Sargasso Sea....215
Rosalia Angelita Neumann Garcia • Mariana Lessa de Oliveira

Implicações narratológicas em La Ciociara,


de Alberto Moravia e Vittorio de Sica....237
Marinês Lima Cardoso

A personagem pós-moderna em lessing: uma análise do processo


de identificação em “To room nineteen”....257
Sebastião Alves Teixeira Lopes • Isabela Christina do Nascimento Sousa

A matéria do homem: a expansão dos limites do “ser”


na narrativa de Absalão, Absalão! de William Faulkner....273
Fábio Antônio Dias Leal

ENTREVISTA....293

“Un escritor es antes un lector


y siempre algo de la buena escritura queda”.
Entrevista con la escritora uruguaya Claudia Amengual....295
João Claudio Arendt • Paula Sperb

SOBRE OS AUTORES....303
Apresentação
A proposta de  Letras  53 supõe o aproveitamento da crescente revita-
lização interdisciplinar  dos  estudos narrativos. Referimo-nos a “estu-
dos narrativos” ou mesmo “narratologias”, pois tais expressões indicam
a pluralidade de abordagens de que se beneficia a narratologia desde os
anos 1990, cuja amostra pode ser conferida em duas importantes co-
leções de ensaios: Narratologies, editada por David Herman (Columbus:
Ohio  State University Press, 1999), e Narratologies Contemporaines, orga-
nizada por John Pier e Francis Berthelot (Paris: Éditions des Archives
Contemporaines, 2010). Os termos, assim, já não designam apenas um
subcampo da teoria literária estruturalista (ou da narratologia clássica), 7
mas a reemergência e transformação da análise narrativa por meio de
uma ampla variedade de áreas de pesquisa –  estudos  cognitivos, lin-
guísticos, culturais, fenomenológicos etc., que se alimentam daquela
teoria e ao mesmo tempo rompem com seus limites; e que se estendem,
também, ao estudo de relatos transliterários e transmediáticos, como os
produzidos nas mídias digitais, no cinema, na televisão, etc.  
Os autores que organizam e escrevem os títulos supracitados vêm
produzindo extensa e continuamente, ainda que poucos dos seus textos
circulem no Brasil. Um recorte dessas produções pode ser verificado na
publicação online The living handbook of the narratology (http://www.lhn.
uni-hamburg.de/). Tal publicação, fruto da colaboração dos principais
nomes dos estudos narrativos recentes, apresenta conceitos atualizados
que recuperam sumariamente noções narratológicas diversas, a partir
de uma consistente transformação teórica e de uma ampla produção
bibliográfica. Dedicada ao estudo da lógica, dos princípios e práticas
da representação narrativa (conforme verbete incluído no Handbook),
“narratologia não é a teoria da narrativa (Bal [1985] 1997), mas sim uma
teoria da narrativa (Prince, 1995: 110; Nünning 2003: 227-28)”. Isto é,
outras teorias da narrativa coexistem com as narratológicas e todas se
retroalimentam. Por isso, preferimos falar em “estudos narrativos”.
Nas últimas décadas, os estudos narrativos têm dado uma maior
atenção para a historicidade e a contextualidade dos modos de repre-
sentação narrativa, bem como para a sua função pragmática em vários
meios de comunicação. Assim também a investigação sobre os univer-
sais narrativos que caracterizava a narratologia clássica foi ampliada no

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sentido de abarcar funções cognitivas e epistemológicas da narrativa.
Com a atenção aos contextos de configuração e interpretação da nar-
rativa, categorias que tinham sido negligenciadas pelos estudos semió-
ticos, formalistas e estruturalistas – como o autor e o leitor – voltaram
com força à cena teórica. O mesmo acontece com a personagem, que,
por sua “densidade semântico-pragmática” e “virtualidade cognitiva”
(REIS, 2015) em muito contribui para que se entenda a capacidade de
empatia e de conformação ética da narrativa.
O conjunto de artigos que aqui se apresenta pode funcionar
como um esboço da variedade de teorias, conceitos e procedimentos
analíticos que abrangem os estudos narrativos hoje, na difícil tarefa de
dar conta da infinidade de formas, meios de comunicação, contextos e
8 práticas comunicativas em que a narrativa tem se revelado.
O artigo do professor Luís Fernando Prado Telles abre este nú-
mero da revista justamente por fazer uma retrospectiva da narratologia
clássica, aplicando alguns dos seus conceitos fundamentais – como as
funções de Vladimir Propp – para ler a estrutura profunda de best sellers,
na esteira do que faz Umberto Eco em seu texto James Bond: uma combi-
natória narrativa, presente no clássico Análise Estrutural da Narrativa. Es-
pecificamente, o professor Luís Fernando pergunta – e demonstra suas
conclusões a partir da análise de duas narrativas entre as mais vendidas
no Brasil – se “haveria algo de próprio nas estruturas das narrativas que
se transformam em produtos de sucesso, ou seja, que se convertem em
mercadorias bem vendidas?”. O artigo se torna ainda mais interessante
ao relacionar a análise de best sellers ao discurso publicitário, que acon-
selha formas narrativas com capacidade de venda.
O segundo artigo da revista incorpora alguma teoria narratológi-
ca recente para dar conta de refletir sobre a “narrativa transmidiática”.
O objetivo de Camila Augusta Pires de Figueiredo é explicar e compre-
ender os procedimentos da narração de uma história que “se desdobra
em múltiplas plataformas e em que várias mídias convergem e se entre-
laçam”. Essa abordagem emancipa a narrativa do texto literário verbal
e a reconhece como um “fenômeno semiótico que transcende discipli-
nas e mídias” (RYAN, 2005, p. 344) e que, por isso, apresenta um forma-
to narrativo original, multiforme e colaborativo, e implica uma nova
concepção de leitura. O intrigante é que, como os best sellers abordados
por Telles, apesar da amplitude de recursos tecnológicos, das coorde-
nadas transficcionais e da leitura interativa, as narrativas multimídias

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tendem a apresentar um esquema narrativo padrão.
É sobre um objeto-livro singular que se debruça Paulo Ricardo
Kralik Angelini. Para cima e não para norte (2012), da autora portuguesa
Patrícia Portela, incorpora inovações gráficas, ilustrações, fotografias,
brincadeiras de ilusão de ótica, contaminando-se por outras manifesta-
ções artísticas, como teatro, artes visuais e cinema. Kralik, com base em
autores como Wayne Booth, Umberto Eco, Paul Ricoeur, Paul Zumthor
e Brian Richardson, aborda tal romance como um “projeto performáti-
co”, atentando especialmente para suas estratégias narrativas inovado-
ras e sua peculiar concepção de leitura e leitor, após dedicar um olhar
especial à tradição do narrador dramatizado na literatura portuguesa.
Por sua vez, Raquel Trentin Oliveira parte do princípio de que
narrativas como a de Patrícia Portela poderiam ser pensadas sob o signo 9
da “unnatural narrative”, categoria criada recentemente por um grupo
de pesquisadores para dar conta de narrativas que violam a verossimi-
lhança realista, ou as convenções narrativas tradicionais, representan-
do narradores, personagens, temporalidades ou espaços francamente
ilógicos e impossíveis fora do mundo da ficção. Após retomar as prin-
cipais concepções e linhas investigativas da “unnatural narratology”,
o artigo exemplifica tal tendência em autores da literatura portuguesa
contemporânea, como Lídia Jorge, José Saramago, Augusto Abelaira e,
mais demoradamente, em António Lobo Antunes.
Esses dois últimos autores portugueses, respectivamente, tam-
bém são alvo de estudo nos artigos de José Luis Giovanoni Fornos e Ma-
ristela Kirst de Lima Girola, os quais confirmam, indiretamente, aquela
tendência estudada por Raquel Trentin, embora se debrucem sobre ou-
tros romances. O primeiro autor reflete sobre O unico animal que?, de Au-
gusto Abelaira, discutindo como, por meio da paródia, a narrativa pro-
blematiza a relação autor/ leitor e os estatutos a eles tradicionalmente
atribuídos. Da condição auto-reflexiva desse romance resultariam, por
exemplo, a anulação da “ilusão realista” e a ironia da ideia de que o
texto reserva segredos só passíveis de serem desvendados por leitores
sofisticados, “iniciados”.
O artigo de Maristela Girola explora o romance Não entres tão
depressa nessa noite escura (2000), de António Lobo Antunes, para de-
fender que o escritor, por meio de um texto “inovativo e pouco conven-
cional”, põe em discussão a própria configuração narrativa e, indireta-
mente, contribui “para uma nova teorização do fenômeno narrativo”.

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Outro artigo se interessa ainda pela literatura portuguesa, preocupado
então com as modificações internas do Neo-Realismo que vieram, de
certa forma, colaborar para os formatos narrativos posteriores. Para
demonstrar tais modificações, o artigo “Domingo no Neo-Realismo Por-
tuguês”, de Isadora Dutra, analisa o comportamento do narrador no ro-
mance Domingo à Tarde, de Fernando Namora.
A narrativa brasileira também é objeto de estudo em três arti-
gos. Larissa Costa da Mata ousa apresentar uma visão dissonante da
crítica mais difundida de Macunaíma, lendo “o herói sem nenhum ca-
ráter” como um “ideal esvaziado de sentido”, como a face negativa do
intelectual Mário de Andrade. Para tanto, recupera questões caras ao
modernismo brasileiro e aos seus fomentadores, assim como reflete
10 sobre a noção de herói, valendo-se das perspectivas desestabilizadoras
de Roger Caillois, em Os jogos e os homens (1958), e Flávio de Carvalho
(1899-1973) na série “Os gatos de Roma / Notas para a reconstrução de
um mundo perdido” (1957/1958).
Em “Fraternidades romanescas: o trágico em O filho da mãe, de
Bernardo Carvalho”, Renata de Felippe e Anselmo Peres Alós partem de
uma abordagem etnográfica que, sob a influência da antropologia pós-
-estruturalista, alia o interesse pelo literário ao interesse pelo cultural.
Após uma reflexão genérica sobre o romance brasileiro contemporâ-
neo, os autores tratam mais especificamente da representação de figu-
ras marginais, da dinâmica dos afetos e do trágico no romance O filho da
mãe (2009), de Bernardo Carvalho. Conforme demonstram, ainda que
resulte de uma encomenda editorial, o romance mantém a complexida-
de formal e temática das narrativas denominadas pós-modernas, ques-
tionando aspectos políticos e ideológicos do mundo contemporâneo.
O romance brasileiro Cidade Livre (2010), de João Almino, é lido de
uma perspectiva semelhante por Juracy Assmann Saraiva e Ernani Müg-
ge, que ressaltam o caráter metarreflexivo dessa narrativa. Por meio de
uma análise atenta às categorias da narrativa, os autores defendem que
Cidade Livre “institui-se não só como exercício ficcional, que reflete so-
bre sua própria realização e sobre o sistema da literatura, mas também
como reflexão sobre a história, cujo conhecimento é problematizado”.
Os demais artigos dedicam-se a narrativas escritas em línguas es-
trangeiras. O estudo de Rosalia Angelita Neumann Garcia e Mariana Les-
sa de Oliveira utiliza-se do paradigma comparativo para ler o romance
Wide Sargasso Sea (1966), de Jean Rhys, em diálogo com Jane Eyre (1847),

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de Charlotte Brontë. Após introduzir a história do conceito de inter-
textualidade, privilegiando a teorização de Gérard Genette, as autoras
indicam conexões intertextuais, metatextuais e hipertextuais entre as
narrativas. Mas é a análise minuciosa da estrutura narrativa de Wide
Sargasso Sea, especialmente do narrador e da focalização, com base em
autores da narratologia pós-clássica, que demonstra o distanciamento
complementar entre as obras e o saldo semântico resultante desse di-
álogo.
Também é um viés narratológico que predomina na comparação
entre o romance La Ciociara (1957), de Alberto Moravia, e sua adaptação
cinematográfica, Duas mulheres (1960), de Vittorio De Sica. Precisamen-
te, Marinês Lima Cardoso analisa a configuração do narrador, do espa-
ço e do tempo nas duas produções, tecendo reflexões gerais sobre as 11
especificidades de cada arte e caracterizando singularidades formais e
temáticas de cada narrativa, as quais, em diálogo, adensam a reflexão
sobre o caráter desumano e o efeito traumático da vivência da guerra.
Sebastião Alves Teixeira Lopes e Isabela Christina do Nascimento
Sousa dedicam-se ao estudo da personagem, mais precisamente à for-
ma de representação identitária da protagonista do conto “To room ni-
neteen”, escrito por Doris Lessing. Os estudos culturais, especialmente
a contribuição de Stuart Hall e alguma teoria de gênero, embasam a
reflexão sobre a identidade problemática da personagem que permite
entendê-la como um sujeito pós-moderno.
Por fim, o artigo de Fábio Antônio Dias Leal lê e interpreta o ro-
mance Absalão, Absalão!, de Willian Faulkner. Com apoio no pensamento
de Henri Bergson, o trabalho reflete “sobre o texto como marca humana
e extensão do ser”, assim explora a noção de autoria e usa “a ideia do
autor morto associada à escrita tumular, recorrente na obra, para exem-
plificar a tentativa do homem de sobreviver ao tempo”.
A narrativa hispano-americana ganha espaço na entrevista
com que concluímos esta edição. A escritora uruguaia Claudia Amen-
gual, integrante do grupo Bogotá39, formado por 39 escritores de 17
nacionalidades latinas, é entrevistada por João Claudio Arendt e Paula
Sperb. Além de refletir sobre a situação da literatura latino-americana,
a autora discute estratégias narrativas do seu mais recente romance,
Cartagena (2015), um dos dez finalistas, entre 1462 inscritos, do Prêmio
Herralde.
Ainda que tematicamente variados, sem pretensões de enqua-

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dramentos teóricos rígidos e leituras definitivas, a maioria dos artigos
incluídos neste número de Letras lança mão do vocabulário analítico
narratológico – assim como legado pela narratología clássica ou esten-
dido e transformado nos estudos recentes – para melhor descrever e
interpretar narrativas particulares, sugerindo a vitalidade e a impor-
tância dessa área de pesquisa. Para além do estudo da configuração nar-
rativa nos seus elementos básicos, nota-se uma ênfase na negociação
dialógica da significação, na relação entre texto e contexto, nas varia-
ções culturais que envolvem cada produção. Percebemos, também, uma
atenção maior a narrativas contemporâneas que, por suas inovações
discursivas e diversidade de meios de expressão e circulação, estimulam
uma ampliação teórica e metodológica. Agradecemos as colaborações
12 de professores e pesquisadores de diversas universidades brasileiras e
esperamos que este número do periódico Letras contribua para novas
percepções e interesses no campo dos estudos narrativos.

Raquel Trentin Oliveira (UFSM)


Carlos Reis (Universidade de Coimbra)

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O herói e a máscara:
Flávio de Carvalho e Roger Caillois leem Macunaíma
The hero and the mask:
Flávio de Carvalho and Roger Caillois read Macunaíma

Larissa Costa da Mata


Doutorado pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil

Resumo: Este texto sugere uma leitura de Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, por
meio das considerações sobre o culto do herói por Flávio de Carvalho (1899-1973) na
série “Os gatos de Roma / Notas para a reconstrução de um mundo perdido” (1957/1958).
Para Carvalho, o herói não consistiria em um ideal, mas em um duplo, oposto ao modelo
de intelectual para Andrade. Assim como o Roger Caillois de Os jogos e os homens (1958),
Carvalho refuta a identificação entre o herói e o “ideal do Eu” freudiano, transformando-
no em uma máscara que desloca a simetria do ser.
Palavras-chave: Macunaíma. Culto do herói. Máscara. Flávio de Carvalho. Roger Caillois.

Abstract: This essay produces an interpretation of Macunaíma (1928), by Mário de


Andrade, by means of Flávio de Carvalho’s theory on the cult of hero presented on the
series “The Cats from Rome / Notes for the Reconstruction of a Lost World” (1957/1958).
Carvalho suggests that, rather than an ideal, the hero is a double, which contrasts with
the model of intellectual for Andrade. Following a similar line as Roger Caillois (Man, Play,
Games,1958), Carvalho denies the identification of the hero with the ‘ego ideal’ by Sigmund
Freud, by transforming such figure into a mask which shifts the being’s symmetry.
Keywords: Macunaíma. Cult of the hero. Mask. Flávio de Carvalho. Roger Caillois.

1. Introdução
O herói, como se sabe, aproximou-se no romantismo de Thomas Carlyle
da figura do gênio do autor, além de ter se constituído como o foco da
crítica literária de Erich Auerbach, quem se valia em Mimesis: a represen-
tação da realidade na literatura ocidental (1946), da forma como critério
preponderante para se analisar o romance, inserindo-se, desse modo,
em uma concepção autônoma da literatura característica da moderni-
dade1. Por sua vez, a psicanálise e a antropologia nos permitiram ver,
em seus princípios, a figura do herói como a de um pai fundador res-
ponsável pela união da comunidade, ou mesmo como o princípio de
constituição de uma literatura denominada de nacional. Procurando
refutar tanto a lógica da Mimesis quanto a da origem unitária, Flávio de
Carvalho e Roger Caillois conceberam o herói como uma máscara que
permitiria o esvaziamento da face ou do semblante e a intercambialida-
de de perspectivas de análise.
A partir da década de 1930, em textos como “A escultura culi-
Larissa Costa nária” (1935), o artista brasileiro Flávio de Carvalho debruça-se sobre
da Mata o que designa como o “culto do herói”, a adoração a essa imagem que
serviria como um espelho com o qual as massas poderiam se identificar,
168 funcionando do mesmo modo que um “ideal do Eu” freudiano. Por ou-
tro lado, quando compreendemos o herói como atuação, de acordo com
a teoria da imitação fornecida por Carvalho na série de ficção-teórica
“Os gatos de Roma / Notas para a reconstrução de um mundo perdido”
(publicada no Diário de S. Paulo entre 1957 e 1958) e a da mímica (mimi-
cry), desenvolvida por Roger Caillois em Os jogos e os homens. A máscara
e a vertigem (1958), ele se torna também o outro que nos contempla de
nosso próprio interior, perfazendo o vazio inevitável do sujeito. A pri-
meira leitura do herói – a que privilegia o seu vínculo com uma origem
vertical – é desconstruída por Carvalho quando ele o concebe como um
mímico que opera a identificação entre o sujeito e o outro, o puro e o
impuro.
Nesse sentido, as considerações de Flávio de Carvalho, como
aquelas lançadas por Caillois em Os jogos e os homens, poderiam servir
de alternativa à alegorização nacional do herói Macunaíma, da rapsódia
de Mário de Andrade, presente na lógica comunitária predominante no
movimento modernista, a qual buscaria delimitar um território como o
nacional, bem como uma linguagem que conservasse a multiplicidade
englobada por esses limites. Propõe-se, em contrapartida, um procedi-

1 Por essa razão, em ensaios como “A cicatriz de Ulisses”, que compõe Mimesis, Auerbach parte de um
detalhe aparente – a cicatriz na coxa de Ulisses, da Odisseia de Homero – que serve para o reconheci-
mento dessa personagem por sua antiga ama, Euricleia. O autor percebe esse detalhe como um fenômeno
de origem, reconstituindo as digressões de Homero e a recordação de Ulisses, unindo esse passado à
falsa sensação de que o relato se constitui somente por meio do presente, de modo que a cicatriz saia à
luz, à aparência, como a juventude do herói, apesar da “concepção iluminada” do presente que atribui
a Homero. Esse procedimento restabelece a forma por meio dos resultados produzidos e, ao adotá-lo, o
autor de Mimesis busca apreender e explorar em sua totalidade o poema épico grego (AUERBACH, 2009).

Letras, Santa Maria, v. 26, n. 53, p. 167-186, jul./dez. 2016


mento diverso de leitura, em que Andrade é “observado” pelo seu pró-
prio objeto. Como veremos, Macunaíma consiste em um ideal esvaziado
de sentido e deformado pela paródia, tornando-se a negatividade do
papel do intelectual defendido pelo cânone dessa vanguarda no Brasil.
Mário de Andrade mostrara-se afeito a um modelo de intelectual O herói e a
que estabelece uma relação de interioridade com o Estado como grande máscara:
parte dos modernistas, dentre os quais Carlos Drummond de Andrade, Flávio de
Cecília Meireles e muitos outros. Para ele, a institucionalização do co- Carvalho
nhecimento deveria ser assegurada pelo Estado e acompanha a criação e Roger
de diversos órgãos durante a década de 1930 como o Departamento de Caillois leem
Cultura da Municipalidade de São Paulo, em 1935, no qual atuara como Macunaíma
diretor-fundador. Como se sabe, é então que Andrade procura consoli-
dar o seu objetivo de aliar o projeto estético do movimento ao engaja- 169
mento político com a sociedade (DUARTE, 1977).
Em 1937, quando sai a segunda edição de Macunaíma, é instaurado
o Estado Novo e o escritor paulista abandona compulsoriamente o car-
go no Departamento de Cultura de São Paulo. No entanto, não assume
uma postura diletante com relação às instituições vinculadas ao gover-
no, pois funda, com Rodrigo de Mello Franco, o Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e organiza o Congresso Nacional
da Língua Cantada (DUARTE, 1977). Poderíamos afirmar, inclusive, que
a segunda edição da rapsódia marca um período de transição no per-
curso intelectual de Mário de Andrade. Dessa trajetória, destacam-se
duas etapas fundamentais: na primeira delas, de maior afinidade com
o ideal antropofágico, o autor se vale, na ficção, do chiste e da paródia,
ou seja, da semelhança como visão deformadora e da afirmação de va-
lores estéticos universais. Na segunda, cuja conferência em que realiza
o balanço do modernismo representaria o ápice, reafirma a necessidade
de independência, quando a nacionalidade e a valorização da literatura
popular se tornarão preponderantes para a transformação da realidade
(ANTELO, 1986; LOPEZ, 1972). Pertencem ao segundo estágio, ainda, os
ensaios sobre arte publicados em O baile das quatro artes (1943), como “O
artista e o artesão”, além das considerações mais maduras de Andrade
sobre o folclore popular nas Danças dramáticas do Brasil (1959).
A conferência “O movimento modernista” (1942) delineia o papel
desempenhado pelo intelectual, que encontra as condições para a atu-
alização da arte no contexto vivido pelo país, o qual progride na edu-
cação e se moderniza. Naquele momento, surge o Partido Democrático,

Letras, Santa Maria, v. 26, n. 53, p. 167-186, jul./dez. 2016


que apoiou órgãos da imprensa como o Diário de S. Paulo, periódico em
que vimos estarem estampadas as séries de ficção-teórica de Flávio de
Carvalho, e o Diário Nacional, em que Mário de Andrade publicara a sua
coluna “Táxi” entre os anos de 1927 e 1932 (SODRÉ, 2011). Para Andra-
de, se os modernistas da década de 1920 abriram as sendas mais tarde
percorridas por artistas como Carvalho, os propósitos defendidos no
início do movimento mostraram-se falhos, no que consiste “o amilho-
ramento político-social do homem” (ANDRADE, 1972, p. 255). Ele assim
assume, naquele momento, mea culpa pelos desacertos do projeto que
Larissa Costa pretendia consolidar.
da Mata Em certo sentido, mesmo Mário de Andrade poderia ser visto
como uma “imagem” ou como um “modelo”. Segundo Michel Foucault
170 em “O ‘não’ do pai”, predominara durante o romantismo a noção de
“artista-herói” ou de “intelectual-herói”, o grande homem pertencente
à categoria de gênio responsável por romper “o tempo para reatá-lo
com as mãos” (FOUCAULT, 1999, p. 189) e por produzir, por conseguin-
te, marcos fundadores na história. Essa é a perspectiva que permeia as
considerações do autor de O baile das quatro artes sobre Candido Portina-
ri e sobre Lasar Segall, vistos, respectivamente, como “artista integral”
e como “grande artista” / “grande homem”, bem como a sua definição
de artesanato como parte do desejo do artista de inserir-se em um pro-
tótipo de beleza e de coletividade (ANDRADE, 1963; ANDRADE, 1984).
Foucault (1999) nos permite igualmente perceber que a obsti-
nação pelo herói corresponderia ao pai no discurso psicanalítico e ao
apego pelo idêntico, que deveria assegurar a passagem pela obra e por
aquilo que ela não é. Desse modo, o heroico transmuta-se naquele que
o representa, ao passo que a obra deixa de ser monumento e se torna
um gesto de nascimento do artista. Se, todavia, investigarmos uma ins-
tância comum entre o pathos e a literatura (ou a arte), será possível nos
desvencilharmos dos jogos de espelhos e das armadilhas de identifica-
ção com a figura paterna. Desse modo, no lugar desse plano luminoso,
a única imagem que resta é a do desdobramento do nome próprio e do
lugar do pai.

2. O herói e o crime
O culto do herói se origina, de acordo com Sigmund Freud, de um dos
sentimentos que podem resultar da entrega inevitável aos instintos e da
violação consciente da lei: a culpa. Em Totem e tabu, o psicanalista vie-

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nense percebe uma afinidade entre o assassinato do pai da horda “pri-
mitiva” no sistema totêmico e o herói da tragédia antiga. Em seu prin-
cípio, a tragédia representava o padecimento do herói por suas faltas,
substituído pelo primeiro ator, o deus Dioniso, que sofria em decorrên-
cia da sua insurgência contra a divindade suprema e das falhas come- O herói e a
tidas pelo coro (FREUD, 1996). Como um ideal do Eu, o herói esconderá máscara:
uma identificação mais antiga, ou seja, aquela que se estabelece com o Flávio de
pai da história pessoal, funcionando como uma sorte de herança arcaica Carvalho
que carregamos (FREUD, 2011). Essa relação havia permitido que, den- e Roger
tre alguns povos “primitivos” estudados em O ramo de ouro (1890) por Caillois leem
Sir James Frazer, antropólogo a partir de quem Freud formulara a sua Macunaíma
teoria do totemismo, os reis mágicos fossem considerados um invólucro
perfeito e um espelho, e por isso fossem punidos e sacrificados quando o 171
seus corpos envelhecessem ou quando falhassem no propósito de asse-
gurar a abundância da colheita (FRAZER, 1945). Por outro lado, Flávio de
Carvalho, quem no princípio de suas reflexões sobre o culto do herói, ou
seja, em “A escultura culinária”, retomara os dois autores, sugere que
os laços se estabeleçam com a própria animalidade e que, ao invés de o
adorarmos, deveríamos romper a sua imagem e devorá-lo aos pedaços
(CARVALHO, 1935).
Esse texto foi escrito após a passagem de Carvalho pela Europa
em 1934, quando foi ao Congresso de Psicotécnica em Praga e encon-
trou pela primeira vez Roger Caillois, passando a manter com ele uma
relação de trocas intelectuais, visível na discussão que desenvolverá nos
textos de 1957 e 19582. Nele, o autor reconhece no ato da devoração do
herói a inevitabilidade de seu declínio e esquecimento, pois, segundo
a sua hipótese, o que é comestível apresenta uma semelhança com os
animais e vegetais, e o ato de comer estaria, inevitavelmente, ligado
ao processo de rememorar o totem ou o ancestral vegetal do homem.
Como Georges Bataille (1929) também frisara em sua teoria da “gulo-
seima canibal”, haveria um parentesco entre o impulso de devorar e o
desejo de cometer uma infração, de transgredir as normas da moral e
da cultura:

2 Na biblioteca de Flávio de Carvalho, que se localiza no Centro de Documentação Cultural Alexandre


Eulálio, na Universidade de Campinas, há volumes do escritor francês com dedicatórias, fartamente
anotados pelo leitor (entre eles, O mito e o homem, em edição original – Le Mythe et l’Homme. 2. ed. Paris:
Gallimard, s.d. – e O homem e o sagrado, em tradução para o espanhol – El Hombre y lo Sagrado. Traducción
de Juan José Domenchina. México: Fondo de Cultura Económica, 1942).

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O período de adoração da imagem se prende ao culto do herói
(o patriarca, o revolucionário ou o homem-deus) ou ao culto da
heroína. Adorar a imagem é uma atitude essencialmente maso-
quista. [...] Só a imagem é a suprema compreendedora, e isso até
o momento em que o silêncio e a imobilidade da imagem, a sua
“incapacidade”, enfim, irritará o adorador, trazendo à tona sen-
timentos iconoclastas. A imagem falhou e precisa ser partida,
mortificada e castigada... e a imagem poderosa é castigada mes-
mo como ainda hoje são flagelados até a morte certos reis afri-
canos que falharam em seu governo (CARVALHO, 1935, p. 81).
Larissa Costa
da Mata
Contrariando o ideal do artista, que para Mário de Andrade de-
172 veria constituir-se por uma sorte de “moralidade” e pela reunião entre
o indivíduo e o gênio, e opondo-se igualmente à separação entre o herói
e o criminoso, Macunaíma é lascivo e se vale da “ausência de caráter”
como um esvaziamento da possibilidade de que represente um tipo ou
um modelo. A rapsódia é dedicada a Paulo Prado e toma como mote
o retrato sociológico da nação feito por esse intelectual em Retrato do
Brasil, publicado também em 1928. No entanto, como Andrade esclarece
com o subtítulo do livro, “o herói sem nenhum caráter”, o seu impulso
é o de utilizar uma máscara linguística representando a nação somente
naquilo que ela possui de contingente (os territórios fluidos, as tradi-
ções populares, retomadas como recortes cuja origem encontra-se per-
dida), de comum com a América Latina e de sintomático.
O autor redigira para o seu livro dois prefácios, um para a pri-
meira edição e outro para a segunda, os quais permaneceram inéditos
até serem compilados por Telê Porto Ancona Lopez na edição crítica.
Nesses textos, esclarece que a “falta” de caráter consistiria em uma in-
definição da personalidade, do posicionamento ético (“entidade psíqui-
ca permanente, se manifestando por tudo […] tanto no bem como no
mal”, ANDRADE, 1988, p. 352), e na instabilidade cultural:

O brasileiro não tem caráter porque não possui uma civilização


própria nem consciência tradicional. Os franceses têm caráter
e os jarubas e os mexicanos. Seja porque [possuem] civilização
própria, seja porque o perigo iminente ou a consciência de sécu-
los tenha auxiliado, o certo é que esses sim têm caráter. Brasi-
leiro não. […] Dessa falta de caráter psicológico […] deriva nossa

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falta de caráter moral. Daí a nossa gatunagem sem esperteza (a
elasticidade da nossa honradez/ a honradez elástica), o desa-
preço à cultura verdadeira, o improviso, a falta […] (ANDRADE,
1988, p. 353-353).

O herói e a
Essa ausência de tradição apontada por Andrade nos recorda que máscara:
Carvalho distinguira, em “As feridas abertas da arqueologia. O europeu Flávio de
quer a guerra”, a ética europeia da sul-americana, afirmando que o eu- Carvalho
ropeu regula as suas atitudes por meio do desejo masoquista, espelhan- e Roger
do-se nas chagas do Cristo crucificado, ao passo que os sul-americanos Caillois leem
buscariam compensar, por meio do artesanato, o tempo histórico que Macunaíma
faltaria atrás de si (CARVALHO, 1957 a). Por outro lado, ela confere ao
livro o sentido de dispersão e a falta de caráter pode ser vista como uma 173
ausência referencial e um “não simbolismo”.
Poderíamos, portanto, analisar Macunaíma a partir de seu senti-
do de lacuna, para além da representatividade da nação como diversos
críticos sugeriram acerca do livro, dentre eles Haroldo de Campos em
Morfologia do Macunaíma (1973). E isso porque a rapsódia potencializa a
paródia satírica realizando uma cópia da cópia, ao criar uma linguagem
que reproduz artificialmente a linguagem popular e uma narrativa que
se constitui a partir de um narrador indireto, o papagaio, que reporta o
discurso do herói e de seu povo após o completo desaparecimento deles.
Nesse sentido, como afirma o moçambicano Luís Madureira em Cannibal
Modernities, a ausência de caráter denotaria o tom da descontinuidade
predominante na rapsódia, tanto de características étnicas explícitas
quanto de valores éticos (MADUREIRA, 2005). Além disso, como um sig-
nificante zero, a imagem oca do herói se torna uma sorte de máscara,
cujo referente ausente pode ser ressignificado por meio da interpreta-
ção a posteriori.
Como sabemos, o herói de Mário de Andrade é, ele mesmo, um
simulacro do mito de “Makunaíma”, dos povos Taulipangue e Arekuná
(do Brasil, das Guianas e da Venezuela), presente no relato do etnógrafo
alemão Theodor Koch-Grünberg, Do Roraima ao Orinoco. Como observara
Cavalcanti Proença em Roteiro de Macunaíma, a personagem de Mário de
Andrade marca-se por sua multiplicidade e pela versatilidade de assu-
mir diversos papéis (PROENÇA, 1969). O seu corpo se compõe de frag-
mentos heterogêneos que remontam a tempos diversos, o do infante e
o do homem adulto (o “rosto enjoado de piá”, o corpo de homem), so-

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frendo metamorfoses ao longo do percurso, pondo em jogo os limites da
identidade, da nação. Quando os irmãos Macunaíma, Jiguê e Maanape
partem da floresta para a cidade de São Paulo, em um movimento que
perfaz as duas recorrentes cenas de fundação da literatura modernista,
banham-se na pegada de Sumé e Macunaíma torna-se branco e loiro,
pois “a água lavara o pretume dele”, o que se segue por uma série de
transformações sofrida por ele, que atingira a maioridade instantane-
amente, e pelas outras personagens, que ora convertem-se em outros
animais, ora em máquinas modernas3.
Larissa Costa Macunaíma atua de acordo com o princípio da mimicry ou da
da Mata simulação que, segundo a categoria dos jogos estabelecida por Roger
Caillois no livro de 1958, não se submete a regras contínuas e precisas,
174 posto constituir-se em uma invenção incessante. Sabe-se que o inte-
lectual francês dará início à sua sociologia dos jogos em dois ensaios
publicados na revista Anhembi, periódico brasileiro dirigido e fundado
por Paulo Duarte, “A guerra cortês” (1953) e “Estrutura e classificação
dos jogos” (1956), em que aparecem uma antecipação das teses do livro
posterior. Além disso, é igualmente na Anhembi que Caillois publicaria
“O complexo de Medusa” (1960), cujas hipóteses serão retomadas por
Jacques Lacan na refutação da fenomenologia de Merleau-Ponty em Os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Vale lembrar que, em-
bora Roger Caillois tenha escrito textos que se aproximariam mais pro-
priamente do que podemos designar como crítica literária, assim como
os surrealistas etnográficos reunidos em torno do Collège de Sociologie
(Michel Leiris e Georges Bataille), via a preponderância da literatura
sobre as outras disciplinas como um sintoma da autonomia da moder-
nidade, uma negligência da sociologia como campo capaz de reunir uma
comunidade de pensadores heterogêneos. Por outro lado, propunha es-
tratégias para se pensar o saber por meio de seus mecanismos de fun-
cionamento, ao invés das diferenças constitutivas.
Segundo Caillois, o jogo exige habilidades particulares e define-se
por meio do trânsito entre dois polos, o dos limites impostos por suas re-
gras, pela predisposição ou não para desempenhar as competências exi-
gidas, e o da liberdade. A mimicry, por sua vez, produz uma realidade mais

3 Macunaíma assume a aparência de um “príncipe lindo” para namorar Sofará, companheira de


Jiguê (no capítulo “Macunaíma”); a matriarca dos Tapanhumas é assassinada acidentalmente pelo
protagonista quando está convertida em uma “viada parida” (em “Maioridade”); já na cidade, ele dá a
Jiguê a aparência de telefone, que pretendia utilizar para insultar o gigante Piaimã, (em “Piaimã”).

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vasta do que aquela que conhecemos, utilizando-se de artifícios como a
máscara, que oculta a personalidade social dando vazão à verdadeira, ou
ao instinto (CAILLOIS, 1967). Ora, para Roger Caillois e para Flávio de Car-
valho, não haveria uma separação clara entre crime, herói e Estado, na
medida em que o instinto, o mito e o sagrado encontram-se submersos na O herói e a
sociedade moderna. Desse modo, a soberania do criminoso e do feiticeiro máscara:
permaneceria na civilização, no poder das instituições legislativas e dos Flávio de
dispositivos de penalidade, oculta sob os rostos do rei e do chefe. Carvalho
De acordo com Marc Augé (1994), o herói mítico, em especial, e Roger
representa ambos um fundador revolucionário do estado social e a an- Caillois leem
terioridade a esse momento, ao passo que o herói trágico, que também Macunaíma
institui a ordem gregária, refere-se à passagem à autonomização da
esfera legislativa. Nesses termos, o Prometeu acorrentado, tragédia 175
de Ésquilo, torna-se uma instância reveladora, encenando aparições
diversas do fenômeno da origem da cultura. Essa se apresenta ora
como a instauração do progresso pelo roubo do fogo, ora como a apro-
ximação entre o titã e os homens graças ao ato de violação e à punição
tirânica de Zeus. No entanto, por ser a suprema detentora do poder e
a criadora da lei, essa divindade soberana é a única que pode também
suspendê-la; desse modo, Prometeu se constitui como a exceção do
sistema que instaura (ÉSQUILO, 2009).
O caráter “funesto” do herói marioandradiano remete intensa-
mente a uma ordem não-hierárquica e ao fato de aparentemente estar
licenciado para a infração. A personagem de Mário de Andrade entre-
ga-se sem medidas às suas vontades: mantém relações sexuais com as
companheiras do irmão Jiguê (Sofará, Iriqui e Suzi); manipula as Ica-
miabas para obter apoio financeiro, por meio de uma linguagem rebus-
cada, incompreensível para elas4 e procura lograr mesmo o governo,
vestindo-se de pintor com o intuito de conseguir uma bolsa de estudos
para viajar para a Europa, onde encontraria Venceslau Pietro Pietra e

4 Em “A carta pras Icamiabas”, Maria Augusta Fonseca trata do capítulo que leva esse título e serviria
de intermezzo na narrativa de Mário de Andrade interrompendo, com a linguagem formal da escrita, a
oralidade predominante no texto. É dessa autora que emprestamos a sugestão de que a carta funciona
como um discurso do poder, um instrumento de controle. Macunaíma, um indígena praticamente
não alfabetizado, um inculto, procura, na missiva direcionada às amazonas, igualar-se aos cânones da
língua portuguesa por meio de uma linguagem aparentemente erudita, mimetizando a norma culta:
“Pedante, pretensioso, citando os clássicos, Macunaíma dá vazão à sua cultura semi-letrada, e acoberta
com a linguagem livresca e as alusões eróticas o principal objetivo da carta (conseguir dinheiro) criv-
ando de subentendidos todo o discurso” (FONSECA, 1988, p. 279).

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resgataria o amuleto muiraquitã. Macunaíma aparece como a ascensão
do elemento negativo da genealogia nietzschiana — a potência do fraco,
do povo, do indígena: o pária social e o homo sacer — perfazendo uma
relação de exterioridade com as instituições da São Paulo civilizada.
Ele põe em xeque os elementos celebrados pelos feriados nacionais (em
“Pauí Pódole”), o sistema de saúde nos versos de Gregório de Mattos pa-
rodiados por ele (“Muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são”),
bem como as instituições financeiras, por meio do uso de uma moeda
paralela, o cacau, tornando-se um insurgente tanto nas entidades que
Larissa Costa derivam da civilização como nas que passam a ser classificadas com o
da Mata advento da cultura (o totemismo, a exogamia).
A série de Carvalho nos permite restituir o vínculo entre esses
176 dois heróis diletantes — Prometeu e Macunaíma — ao traçar a aproxi-
mação entre o antigo (a Europa civilizada) e o “primitivo” (as Américas,
a África, a Ásia e a Oceania). “Os gatos de Roma / Notas para a recons-
trução de um mundo perdido” realiza uma sorte de genealogia do nas-
cimento da arte e do desenvolvimento psíquico e social do homem, de
seu deslocamento nômade da cidade para a floresta a partir do presente
do artista, em que contempla a cidade de Roma (um misto entre a anti-
guidade e o contemporâneo). Nesses textos, o autor percebe a existência
de um limiar entre Prometeu e Macunaíma quando afirma que a condi-
ção necessária para a disposição da comunidade não seria meramente
a da expiação da culpa como sugerira Freud, mas o medo imposto pelo
surgimento e pelo progresso do Estado: a violência da guerra, a fome, a
punição do delito. Por essa razão, Flávio de Carvalho afirma que o culto
do herói antecede a civilização, pertencendo às aspirações de um “pri-
mitivo” solitário, ainda por construir a convivência em sociedade e o re-
conhecimento dos semelhantes. Nesse momento, não haveria uma opo-
sição clara entre o bem e o mal, pois esses valores constituiriam as duas
facetas de um mesmo sujeito que imitava a si mesmo, por ainda não ser
capaz de reconhecer nem os limites e nem a aparência do próprio corpo:

O bem e o mal seriam representados pelo homem e o seu ad-


versário, e seu semelhante que é o seu imitador: duas imagens
iguais que se destroem uma à outra, defensivamente se imitan-
do em espelho. Esse espetáculo de luta do homem consigo mes-
mo satisfaz plenamente a dualidade de personagens encontra-
das no homem. Esta dualidade de personagens é uma formação

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da ideia de alma que seria uma imagem do passado, uma ima-
gem reproduzindo o homem da Idade do Sonho, ou, colocando
de outra maneira; o mal é um estado e evolução do homem que
ao alcançar a idade do sexo se transforma na ideia concreta de
alma ou Dupla Personalidade (CARVALHO, 1958).
O herói e a
máscara:
Flávio de
Carvalho
e Roger
Caillois leem
Macunaíma

177

Figura 1 - Fotografia de Mário de Andrade (1927). Na legenda, lê-se: “Eu tomado de acesso
de heroísmo... peruano”. Fonte: ANDRADE, 1988.

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3. O herói, o duplo, o transe
De fato, a mimicry poderá adquirir uma condição sintomática, degene-
rando o que consistia em mera atuação no fenômeno da dupla persona-
lidade, a partir do momento que o sujeito se convence de que é o outro,
quem deveria somente interpretar (CAILLOIS, 1967). Em suas reflexões
acerca do culto do herói, nas “Notas para a reconstrução do mundo per-
dido”, como nas séries anteriores, o artista Flávio de Carvalho procura
desestabilizar a associação entre essa imagem e o ideal, produzindo jo-
gos que deslocam a simetria no processo de identificação com a figura
Larissa Costa heroica. Desse modo, converge para o pensamento do intelectual fran-
da Mata cês Roger Caillois, para quem a máscara poderia produzir um jogo de
duplicidade entre o sujeito e o herói.
178 Macunaíma por si só consistiria em uma unidade de um duplo
que se perdeu, restando como uma presença inquietante que peram-
bula entre o estranhamento e a familiaridade, sem conservar mais
os traços daquele que lhe era idêntico nem os limites entre a perso-
nalidade e o ego. Após os estágios primários do desenvolvimento do
ego, segundo Freud, o fenômeno do duplo pode ainda persistir como
uma ilusão patológica de estar sendo observado, uma regressão a um
momento antigo em que o ego ainda não havia marcado propriamen-
te os seus limites com relação às outras pessoas e ao mundo exterior
(FREUD, 1984), do qual Carvalho trata nas “Notas”. Como o deus Dio-
niso que fora separado de Zagreus, o Macunaíma latino-americano
possuía um duplo, o irmão gêmeo Piá, ambos concebidos pelo Sol em
uma mulher comum, de modo que se encontra desprovido da metade
de sua unidade originária5.
Nas “Notas para a reconstrução de um mundo perdido”, o culto
do herói pertence a uma esfera em que o homem se identificava com
os seus semelhantes, por meio de rituais envoltos no delírio provoca-
do pela proximidade com a morte, e de espetáculos caracterizados pelo
excesso de “sangue, lubricidade e violência” (CARVALHO, 1957 b). An-
terior ao cristianismo, o heroísmo, segundo esse autor, opera a ligação
entre o herói e o sujeito comum: “O homem comum estava mais ligado
ao delírio do herói, cuja ação dramática o fazia vibrar, do que ao Reino

5 Ora, além de Do Roraima ao Orinoco, Mário de Andrade possivelmente teria consultado, antes da
redação do texto, o volume Indianern arehen aus Südamerika (Índios arehen da América do Sul, 1927), de
Theodor Koch-Grünberg, relato sobre dois deuses gêmeos “Makunaíma und Piá” (“Macunaíma e Piá”)
(LOPEZ, in: ANDRADE, 1988).

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do Céu onde ele penetraria com o título de Santo já adquirido em vida”
(CARVALHO, 1957 b). Situado entre o sonho e a vigília, o culto produz
uma instância onde o sujeito pode atuar de acordo com regras próprias
e até mesmo entregue ao inconsciente e à vertigem.
Ora, a combinação entre a mimicry (pantomima) e a ilinx (verti- O herói e a
gem) pertence ao domínio do sagrado assim como a possessão, instante máscara:
em que o sujeito está prestes a perder a consciência do simulacro em Flávio de
que atua. Nesse processo, que pode se operar por meio do transe, o uso Carvalho
da máscara multiplica a persona do ator e o papel que ele represen- e Roger
ta, aderindo ao corpo e fazendo com que o sujeito passe a formar um Caillois leem
composto heterogêneo com a divindade. O fenômeno somente é permi- Macunaíma
tido às comunidades que Caillois designa como as “sociedades da con-
fusão”, aquelas em que sobrevivem a máscara, a possessão, a vertigem 179
e o êxtase, ou seja, as ameríndias, africanas e oceânicas. Por outro lado,
essas contrapõem-se às “sociedades do progresso”, as quais adotam a
contabilidade como disciplina e se organizam em escritórios, carreiras,
códigos e escolas (CAILLOIS, 1967), ou seja, aquelas que perpetuam o po-
der do aparelho de Estado e que sobrepõem o nomos desterritorializado
da mata virgem à polis civilizada.
Em “Macumba”, capítulo cujo título se refere ao ritual de pos-
sessão mediado por danças e tambores das religiões de origem africana,
como o candomblé e a umbanda, o herói implora ao espírito do orixá
Exu para que se vingue do antagonista (Venceslau Pietro Pietra). No
mangue da tia Ciata, no Rio de Janeiro, as rezas eram feitas no terreiro
em torno da feiticeira, e todos aguardavam a chegada de Exu “porque
Exu era o diabo-coxo, um capiroto malévolo, mas bom porém para fazer
malvadezas, era um tormento na sala uivando” (ANDRADE, 2008, p. 77),
dançando e embriagando-se à beira do desvario.
Sabe-se que, não por ventura, os intelectuais do Collège de Socio-
logie teriam se interessado pelo voduísmo primeiramente por meio do
contato com o romance The Magic Island (1929), de William Seabrook e
da obra de Alfred Métraux. Michel Leiris, em “O ‘caput mortuum’ ou a
fêmea e o alquimista”, publicado da revista Documents, conclui a partir
de Seabrook que a máscara sugere que portar a face de outro ser, de
uma divindade ou de um animal, como fariam os “primitivos”, causaria
a mesma inquietação que a maquiagem e a tatuagem, posto que esses
elementos levariam o homem a ultrapassar os limites corpóreos e psí-
quicos, revelando-se a si mesmo na pele alheia (LEIRIS, 1930).

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Como observa Alfred Métraux em “Elementos dramáticos na pos-
sessão ritual” (1955), a possessão se situa em uma zona marginal entre
o rito e o fenômeno psicológico. Nas práticas de voduísmo do Haiti, nos
rituais xamânicos e no candomblé, a abertura ao mundo das divindades
e dos espíritos despertaria memórias antigas e anomalias como a dupla
personalidade e a histeria. Quando o homem se torna o receptáculo divino,
o tom da voz e os gestos passam a refletir o caráter da divindade descida à
esfera terrena e o corpo do possuído se contorce e se chacoalha ao som dos
tambores (MÉTRAUX, 1955). No episódio da macumba, a matrona branca e
Larissa Costa de origem polonesa se comporta como se estivesse à beira de um ataque de
da Mata nervos: “Afinal uma espuminha rolou dos beiços desmanchados, ela deu
um grito que diminui o tamanho da noite mais, caiu no santo e ficou dura”
180 (ANDRADE, 2008, p. 79). A divindade assume, por fim, o corpo da “polaca”,
que no centro do salão recebe os pedidos da assistência.
Macunaíma ocupa um lugar central entre o público, tendo o seu
desejo de vingança satisfeito, graças ao seu nome que se torna uma es-
pécie de mau agouro, revelando um ponto cego ou uma analogia instável
entre personagem e autor, pois, nas palavras de Exu, o “nome principiado
por Ma tem má-sina” (ANDRADE, 2008, p. 81). Etimologicamente, com-
põe-se de Maku (que significa ‘mau’) e de Ima (equivalente a ‘grande’),
revertendo-se em “o grande mau”. Os missionários ingleses empregaram
uma versão semelhante desse nome (Makonaíma) para designar o deus
cristão na tradução da Bíblia para a língua dos Aroiwo, etnia próxima dos
Taulipangue e Arekuná (KOCH-GRÜNBERG, in: MEDEIROS, 2002).
Funcionando entre os “primitivos” investigados por Frazer como
um atributo vital do sujeito, o nome aqui também se porta como uma
máscara ou um vestígio da união entre a assinatura do autor e a do nosso
herói, circulando entre outros nomes próprios de participantes do mo-
vimento modernista brasileiro, que deixam o ritual da macumba ao final
do capítulo: “[…] Então tudo se acabou fazendo a vida real. E os macum-
beiros, Macunaíma, Jaime Ovalle, Dodô, Manu Bandeira, Blaise Cendrars,
Ascenso Ferreira, Raul Bopp, Antônio Bento, todos esses macumbeiros
saíram na madrugada” (ANDRADE, 2008, p. 83). Ora, em certo sentido
o nome próprio serviria igualmente como uma máscara ou como uma
imagem, pois permite-nos pensarmos a linguagem como meio, segundo
o processo de conhecimento (pois nomear é também compreender) e de
transformação, sobrepondo a essência espiritual da língua à linguística
na tarefa humana da sobrenomeação (BENJAMIN, 2011).

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Como vemos na série “Os gatos de Roma / Notas para a reconstru-
ção de um mundo perdido”, a máscara pode servir de proteção ao homem
dos primórdios, ocultando uma neurose que encontra na “simulação tea-
tral” um dos seus sintomas, a histeria, além de adquirir uma vida autônoma
por meio da dupla personalidade, a qual resulta da indistinção entre o ser, O herói e a
a alma e a imagem. A linguagem se torna um indício desse período antigo, máscara:
nos recorda Carvalho, por meio do termo Loakal, retirado do vocabulário Flávio de
dos Abipones paraguaios. Esses indígenas se utilizam da mesma expressão Carvalho
para a sombra, o eco e a imagem, que podem ser denominados de loákal e Roger
ou de ilkhì (DOBRIZHOFFER, 1822, p. 193). A etimologia dessa palavra nos Caillois leem
faria perceber, de acordo com o missionário alemão Martin Dobrizhoffer, Macunaíma
uma afinidade com o termo imago do latim. Imago, que significa “máscara
mortuária”, remete-se à semelhança com a face de um morto que, no en- 181
tanto, guardaria os olhos esvaziados de sua função, de modo que o olhar
permaneceria na impossibilidade mesma de ver. Como se sabe, esse termo
tornou-se caro à psicanálise lacaniana, à filosofia e à estética, disciplinas
que já não contemplam o sujeito como o porta-voz do cogito cartesiano, e
sim como uma construção simbólica e instável pela via da linguagem que
depende, como essa, de uma decisão para se tornar aparente6.
De acordo com a postura defendida por Flávio de Carvalho, no en-
tanto, a imagem já se encontra rompida, na medida em que ela própria
reporta à separação entre o espírito e a matéria, entre o corpo e os seus
hiatos – os sintomas arqueológicos que permitem que o sujeito traga em
si um passado imemorial, uma ferida mais antiga do que a própria perso-
nalidade. Carvalho é, como sabemos, autor do Retrato do poeta Mário de
Andrade (1939), que compõe o acervo da Pinacoteca Municipal do Centro
Cultural São Paulo. Nele, vê-se um homem calvo de meia-idade vestido
com um terno azul claro, sentado sobre uma poltrona de encosto amarelo
e de braços avermelhados. O pescoço está muito discretamente inclinado
para a esquerda e o lado da face aparece aí um pouco obscurecido pelas
sombras. Do lado direito da imagem, por sua vez, eleva-se uma coluna
acinzentada em direção ao teto; o olho está mais visível que o outro, mas
também envolto em uma fina sombra avermelhada, e mira um ponto dis-
tante e abaixo do nível da cabeça, dando um aspecto entristecido e can-

6 Não podemos nos esquecer, ainda, de que esse era o nome do periódico fundado por Sigmund
Freud, Otto Rank e Hans Sachs em 1912, que se inspiraram no romance de Carl Spitteler (Imago, de
1906) e que, também em 1912, Ernst Jung introduziu a sua interpretação do termo imago ao conceito de
arquétipo (DIDI-HUBERMAN, 2007).

Letras, Santa Maria, v. 26, n. 53, p. 167-186, jul./dez. 2016


sado a esse rosto. Esse retrato melancólico, uma homenagem do artista
ao cânone do modernismo, talvez tenha desempenhado para Andrade o
mesmo papel que o retrato de Dorian Gray representara para a persona-
gem do romance homônimo de Oscar Wilde (1890): a fulguração de um
lado oculto do sujeito, um “mal” ou uma impureza, o vazio que somente
pode ser captado pelo retorno do olhar do outro7.

Larissa Costa
da Mata

182

Figura 2 - Retrato do poeta Mário de Andrade (1939), por Flávio de Carvalho. Fonte: Adap-
tado de: FLÁVIO de Carvalho, 2010, p. 175.

7 Em um depoimento sobre Mário de Andrade, publicado no número 4 da revista Artes plásticas,


de 1948, Flávio de Carvalho relata o comentário do cânone sobre o retrato que pintara, revelador de
um lado oculto e sombrio do modelo: “Com relação à minha pintura, certa vez Mário de Andrade se
exprimiu: ‘Quando olho para o meu retrato pintado por Segall, me sinto bem. É o Eu convencional, o
decente, o que se apresenta em público. Quando defronto o retrato feito pelo Flávio, sinto-me assus-
tado, pois nele vejo o lado tenebroso da minha pessoa, o lado que eu escondo dos outros’” (CARVALHO,
1948, p. 103).

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Ao compreender o culto do herói como uma máscara, a mímica
de uma face que a nada equivale e que, por isso, pode ser substituída e
ressignificada, Flávio de Carvalho perpassa a constatação de que o pró-
prio sujeito se constitui e se transforma por meio da representação e do
olhar do outro. Macunaíma, mediante o seu anti-heroísmo e o realismo O herói e a
deformador, poderia ser considerado o reverso do intelectual para Má- máscara:
rio de Andrade. Esse herói critica as instituições a partir do exterior e Flávio de
aponta os sintomas da cultura e da civilização, ultrapassando os limites Carvalho
da nacionalidade. Quando concebemos o herói, assim como a imagem, e Roger
também a partir da negatividade, dos vestígios que são anteriores ao Caillois leem
sujeito, devolvemos a Macunaíma a sua potência trágica e metamórfica. Macunaíma
Por sua vez, oferecendo a Mário de Andrade a própria máscara — a do
(anti)herói —, deslocamos a simetria da imagem desse escritor para dele 183
fazermos uma leitura mais livre e menos regrada.

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Recebido em 05 de março de 2016


Aceito em 02 de junho de 2016

Letras, Santa Maria, v. 26, n. 53, p. 167-186, jul./dez. 2016

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