Você está na página 1de 106

Ano 16, N.

2
Jul/Dez 2019
ISSN: 1808-169X
e-ISSN: 2525-4693

UFMG
Universidade Federal de Minas
Gerais

DOSSIÊ RETROCESSOS E
RESISTÊNCIAS

Adelmo dos Santos Filho


Amanda Jardim
Ana Carolina Kazue Inada
Caio Motta
Carlos Henrique Mesquita do
Prado
Caroline Domingues Silva da Costa
Eduardo Ramos Belanga
Gabriela dos Anjos Novaes
Homero Dantas Ragnane
Ilson Soares Costa Júnior
Michael Lázaro Pedrozo da Silva
Pedro Callari Triviño Moisés
Vivian Gabriele de Brito Carneiro
Wendel Lima da Silva Andrade
[ EDITORIAL ]
APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ “RETROCESSOS E RESISTÊNCIAS”
REFLETIR, REIVINDICAR, REAGIR, RESISTIR E RECONSTRUIR

A onda de conservadorismo e retrocessos pela qual passa o país exige a união de todos para a defesa de seus di-
reitos. Em tempo de retrocessos, a articulação é uma ferramenta poderosa de resistência e, na história do Brasil, grandes
conquistas ocorreram a partir da mobilização e organização popular. O novo cenário do país traz consigo desafios, mas
também oportunidades para reavivar o compromisso de todos na luta pela união e pela igualdade. Em contextos como
este, lutar pela defesa dos direitos humanos e da democracia é fundamental, e resistir passa a ser uma necessidade.

Vê-se, frente à um governo reacionário, inúmeros retrocessos a diversos direitos sociais e civis conquistados a
partir de reivindicação e luta popular. A educação sofre cortes devastadores e cada vez mais intensos, a previdência
social vai sendo, paulatinamente, sucateada, o genocídio à população preta, indígena e pobre só cresce. O país, aos pou-
cos, deteriora-se e ergue a face conservadora e tradicionalista. As universidades federais, que foram sempre defendidas
como “a representação do futuro do país” hoje caem aos pés, sem financiamento, com inúmeros fechamentos de campi
e, principalmente, com o estigma apresentado pelo próprio governo como “lugar de balbúrdia”.

Em meio à este cenário funesto, as resistências, em parte, se fortalecem. Os estudantes lideram inúmeras jornadas
de luta em defesa de uma educação gratuita e de qualidade. Os indígenas se organizam e exigem o direito às suas terras.
A juventude se articula para que suas vozes sejam ouvidas e para que a resistência se amplie. As vozes conservadoras
e “olavistas” vão sendo dissipadas pelas múltiplas vozes de resistência, que se articulam, fortalecem e, mesmo em meio
ao cansaço e a derrotas, não entregam sua força histórica.

Esta edição da revista foi pensada para a reverberação de diversas vozes de batalha, feita sob um cenário confli-
tuoso e abarcando mãos que permanecem tecendo a luta. Em parceria com a comissão da “VI Semana de Antropologia
e Arqueologia da UFMG”, o Dossiê Retrocessos e Resistências visa reafirmar o diálogo entre as demais disciplinas das
Ciências Sociais - que permanecem sob constante ataque - e refletir sobre a urgência dos temas aqui englobados.

A Revista Três [...] Pontos e sua Comissão Editorial fazem parte dessa luta e somam-se às demais vozes de resis-
tência - “sob muita balbúrdia”...

Camila A. Penaforte

Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.


E-mail: <camila.penaforte.penaforte@outlook.com>

Letícia S. e Pires

Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.


E-mail: <leticiasepires@gmail.com>
A REVISTA TRÊS [...] PONTOS, revista do Centro Acadêmico de Ciências Sociais (CACS) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) criada em
2004, é um periódico com publicação semestral nos formatos impresso e digital, destinada a estimular a produção e divulgação de conhecimentos
científicos de graduandos e recém-graduados e promover o debate teórico e empírico sobre os temas de interesse das Ciências Sociais. A revista é
uma iniciativa de estudantes da UFMG e tem abrangência ampla e plural no que diz respeito a posições científicas e político-ideológicas. Recebemos
trabalhos em fluxo contínuo e publicamos artigos, resenhas, relatos de experiência, ensaios e entrevistas em língua portuguesa, além de trabalhos
artísticos inéditos que tenham passado pelo crivo de pareceristas anônimos designados pela comissão editorial.

EXPEDIENTE REDAÇÃO EXPEDIENTE REDAÇÃO:


REVISTA TRÊS [...] PONTOS
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Universidade Federal de Minas Gerais
Avenida Presidente Antônio Carlos, 6627. FAFICH/UFMG - Sala 4214.
Pampulha - CEP 31270-000. Belo Horizonte- MG. Telefone/Fax 31-3441-4603.
<revistatrespontos@gmail.com>
<revistatrespontos@fafich.ufmg.br>
<https://www.facebook.com/RevistaTresPontos>

EDITORIA-EXECUTIVA Camila Aparecida Penaforte (Discente - UFMG)

EDITORIA-ADJUNTA Ana Elisa de Melo Pereira (Discente - UFMG)

CONSELHO EDITORIAL Aline Mendes Pereira (Discente – UFMG) Marcos Palmeira de Souza (Discente – UFMG)
Profa. Ana Lúcia Modesto (DSO-UFMG) Profa. Marlise Matos (DCP-UFMG)
Prof. Carlos Ranulfo Félix de Melo (DCP-UFMG) Rafaela Rodrigues de Paula (Discente – UFMG)
Prof. Eduardo Viana Vargas (DAA-UFMG) Prof. Renarde Freire Nobre (DSO-UFMG)
Profa. Érica Renata de Souza (DAA-UFMG) Steffane Pereira Santos (Discente – UFMG)
Letícia Silva e Pires (Discente – UFMG) Tulio Henrique Gomes da Silva (Discente – UFMG)

CONSELHO CONSULTIVO Prof. Carlos Pereira (University of Michigan/EUA)


Prof. Cícero Araújo (USP)
Prof. Fábio Wanderley Reis (UFMG)
Prof. Gustavo Lins Ribeiro (UnB)
Prof. Ivan Domingues (UFMG)
Prof. Leonardo Avritzer (UFMG)
Prof. Marcelo Medeiros (IPEA/PNUD)
Prof. Mareei de Lima Santos (UFRN)
Profa. Mariza Corrêa (Unicamp)
Profa. Neuma Aguiar (UFMG)
Prof. Pierre Sanchis (UFMG)
Profa. Solange Simões (University of Michigan/EUA)

COLABORADORES Aira Souza Almeida (Discente - UFMG)


Ana Sophia Barbosa Silveira (Discente - UFMG)
Brenda Santos de Miranda (Discente - UFMG)
Caio Morais Sena (Discente - UFMG)
Franciele Oliveira Marinho (Discente - UFMG)
Luis Henrique Teixeira da Silva (Discente - UFMG)
Marco Aurélio Dias Rezende (Discente - UFMG)
Marina Morena Santos Cruz (Discente - UFMG)
Renata Giovanna Pimentel Coluccini (Discente - UFMG)
Thamiris dos Santos (Discente - UFMG)

PROJETO GRÁFICO Arthur Serra

DIAGRAMAÇÃO Raíssa Mateus de Oliveira Silva

IMAGEM DA CAPA Dangelis Brito

REVISÃO Alessandra Emanuelle Macieira Silva

FICHA CATALOGRÁFICA Biblioteca Fafich-UFMG

CIRCULAÇÃO Dezembro de 2019

INDEXAÇÃO Portal de Periódicos da ANPOCS, Portal Periódicos de Minas, Biblioteca Digital do Tribunal Superior Eleitoral, Portal de Periódicos da CAPES, Sistema
de Bibliotecas UFMG, Portal de Periódicos da UFMG, Diadorim, Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal (RCAAP), Directory of Research
Journals Indexing (DRJI), Google Acadêmico e Latindex.

QUALIS/CAPES B4 para Antropologia/Arqueologia; B4 para Interdisciplinar; B5 para Ciência Política e Relações Internacionais; B5 para Sociologia; B5 para História
(Quadriênio 2013-2016).
Número publicado com recursos provenientes do Centro Acadêmico de Ciências Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais.

OS CONCEITOS EMITIDOS EM ARTIGOS ASSINADOS SÃO DE ABSOLUTA E EXCLUSIVA RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES, TODOS OS DI-
REITOS RESERVADOS. OS TRABALHOS PUBLICADOS NA REVISTA PODERÃO SER REPRODUZIDOS DESDE QUE CITADO O AUTOR E A FONTE.

Revista Três Pontos: Revista do Centro Acadêmico de Ciências Sociais.


Ano 16, n.2 (julho/dezembro de 2019) - Belo Horizonte 2019.

V. ; 30,5cm. Semestral.
Editor: Centro Acadêmico de Ciências Sociais/ UFMG
ISSN: 1808-169X | e-ISSN: 2525-4693

1 Teoria social – Periódicos 2. Ciência Política – Periódicos 3. Sociologia e Antropologia – Periódicos I. Universidade Federal de Minas Gerais. II. Centro
Acadêmico de Ciências Sociais. III. Título
SUMÁRIO
EDITORIAL

3 APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ “RETROCESSOS E RESISTÊNCIAS” - REFLETIR, REIVINDICAR, REAGIR, RESISTIR E


RECONSTRUIR

Camila Penaforte

Letícia Pires

6 PERSPECTIVAS FEMINISTAS: UMA ANÁLISE DOS ESPAÇOS PÚBLICO E PRIVADO POR HANNAH ARENDT

Caroline Domingues Silva da Costa

12 QUEM PODE USAR SAIA NESSA RODA? REFLEXÕES ETNOGRÁFICAS ACERCA DAS ELABORAÇÕES DE GÊNERO
NO CANDOMBLÉ PAULISTA

Homero Dantas Ragnane

23 O OUTRO SOU EU - O OLHAR DA JUVENTUDE TRABALHADORA SOB(RE) O OLHAR DOS POLICIAMENTOS


ARTIGOS

Ana Carolina Kazue Inada

35 A POLÍTICA DE COOPERAÇÃO CIENTÍFICA DOS BRICS EM CONSONÂNCIA COM OS INTERESSES DOS CIENTIS-
TAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA ZONA DA MATA MINEIRA

Michael Lázaro Pedrozo da Silva e Ilson Soares Costa Júnior

47 A BARRAGEM DE REJEITOS E OS DISCURSOS LEGITIMADOS: DESAFIOS À EFETIVAÇÃO DA DEMOCRACIA NOS


PROCESSOS DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL

Carlos Henrique Mesquita do Prado

57 TODAS AS CORES SÃO AS CORES DE DEUS? UMA ANÁLISE DAS IGREJAS INCLUSIVAS DO BRASIL

Gabriela dos Anjos Novaes


ENSAIO

66 FAMÍLIA, ESCOLA E REPRODUÇÃO SOCIAL: SOBRE A MANUTENÇÃO DA POSIÇÃO SOCIAL DAS ELITES

Pedro Callari Triviño Moisés e Wendel Lima da Silva Andrade


ENTREVISTA

80 “Nós temos urgência em recuperar nossos ‘re’ positivos, de REaver as nossas REtomadas, de
REpensar a sustentação da vida, de reconexão com as nossas identidades” - Entrevista com a liderança
Célia Xakriabá

Amanda Jardim
RELATO DE EXPERIÊNCIA

91 PRÁTICAS EDUCACIONAIS NA ZONA RURAL: DIFICULDADES DE ACESSO E PERMANÊNCIA ENTRE OS POVOS


DO CAMPO
Adelmo dos Santos Filho, Eduardo Ramos Belanga e Vivian Gabriele de Brito Carneiro
RESENHA

98 THE LEFT BEHIND – DECLINE AND RAGE IN RURAL AMERICA. WUTHNOW, Robert: Princeton University Press, 2018

Caio Motta
PERSPECTIVAS FEMINISTAS:
UMA ANÁLISE DOS ESPAÇOS PÚBLICO E PRIVADO POR HAN-
NAH ARENDT
Feminists perspectives: An analysis on the public and private apaces in Hannah Arendt

Resumo: O presente trabalho traz definições e reflexões de Hannah Arendt sobre o que ela de- Caroline Domin-
terminou de espaços público e privado em sua obra A condição humana (2013). Ao detalhar suas gues Silva da Costa
Graduanda em Fi-
definições, chamamos a atenção para o conceito de ação — uma das atividades essenciais para a
losofia pela Uni-
atividade humana na Terra. O objetivo desta pesquisa é aproximar algumas teorias feministas com versidade Federal
as definições de natalidade e pluralidade do trabalho de Arendt. Apresentamos uma luta do movi- de São João del-
mento feminista em relação ao direito pelo espaço público, explorando semelhanças e diferenças -Rei – UFSJ.
com o trabalho de Hannah Arendt.
Contato
Abstract: The present work brings definitions and reflections of Hannah Arendt about what she < carolsco s ta 2 1 @
determined of public and private spaces in her work The human condition (2013). By detailing her gmail.com>
definitions, we call attention to the concept of action — one of the essential activities for human
P alav r a s - ch ave :
activity on Earth. The aim of this research is to approximate some feminist theories with the de- Arendt; Espaço
finitions of birth and plurality of Arendt’s work. We present one cause of the feminist movement público; Feminismo;
regarding the right to the public space by exploring similarities and differences with Hannah Aren- Natalidade.
dt’s work.
Keywords: Arendt;
Public place; Femi-
nism; Birth.
INTRODUÇÃO político estavam ocorrendo, dentre elas, o su-
frágio feminino.
Em sua obra A condição humana (2013),
Hannah Arendt aborda sobre a condição huma- O sufrágio feminino é um movimento políti-
na do indivíduo na Terra, representando as prin- co e social que ocorreu no mundo todo, predo-
cipais características da existência do homem, minantemente nos séculos XIX e XX. O princi-
uma vez que sem elas a existência humana es- pal objetivo do movimento era garantir o direito
taria prejudicada. Arendt afirma que a condição ao voto às mulheres, com o intuito de promover
humana é caracterizada pelas três atividades uma inclusão das mulheres no espaço público.
trazidas por ela: trabalho, fabricação e ação. O O movimento feminista é marcado pelo acon-
seu conjunto traz a natalidade, mortalidade e tecimento do sufrágio feminino, definindo o
pluralidade como pertencentes à condição hu- feminismo pela construção de uma crítica que
mana. vincula a submissão das mulheres na esfera
privada à sua exclusão da esfera pública.
Além da definição de condição humana,
Arendt nos traz em sua obra o que ela deter- Assim, em um primeiro momento, a pes- 6
mina por espaços público e privado. Essa di- quisa apresentará os pensamentos de Hannah
cotomia, de acordo com a autora, irá nos guiar Arendt trazidos em sua obra A condição Hu-
para o nosso objetivo no trabalho, uma vez que mana (2013). Logo após, irá abordar a histó-
tentaremos relacionar perspectivas feministas ria do movimento sufragista e de como esse
com o pensamento de Arendt. Hannah Aren- movimento foi um marco inicial para a histó-
dt foi uma das maiores pensadoras do século ria do feminismo, como o início de uma his-
XX e marcou a história da humanidade com as tória de lutas para uma emancipação política.
suas contribuições para a sociedade. Por meio Por fim, explanará as definições trazidas por
de algumas de suas obras, é possível notar que, Arendt acerca de ação, natalidade e pluralidade
mesmo com Arendt declarando-se como uma humana correlacionando com algumas teorias
mulher não feminista, algumas de suas ideias do movimento feminista.
condizem com o feminismo, ressaltando aqui,
principalmente, a sua concepção acerca da ca-
A CONDIÇÃO HUMANA: IMPLICAÇÕES DA
tegoria da natalidade, junto ao momento his-
NATALIDADE SEGUNDO HANNAH ARENDT
tórico no qual ela viveu, várias lutas de cunho

6
Hannah Arendt em A Condição Humana Observando o pensamento de Arendt acer-
(2013) mostra a estrutura das esferas pública ca dos âmbitos público e privado, é possível
e privada com o intuito de elaborar uma crítica notar que no privado estabelecia-se o local no
no que ela identificou no mundo moderno como qual se desenvolvia a atividade do trabalho. Tal
a “ascensão do social”. Na Grécia Antiga, fica atividade faz parte do conjunto da expressão
perceptível a separação entre o espaço privado vita activa estabelecido por Arendt. Fabricação
e o espaço público, distinção essa que garan- e ação também são as outras duas atividades
tia a dignidade da política, que ficava limitada à que integram esse conjunto e estão em uma
esfera pública. Logo, Arendt traz em sua obra a relação com as condições mais gerais da vida
definição de domínio público. Em suas palavras humana: natalidade e mortalidade. Para Arendt
(2013, p. 61): (2013, p. 15) o trabalho está relacionado à sa-
tisfação das necessidades biológicas do corpo
“O termo ‘público’ denota dois fenô-
humano, o trabalho assegura a sobrevivência
menos intimamente correlatos, mas
do indivíduo.
não idênticos. Significa, em primeiro lu-
gar, que tudo o que aparece em públi- Já em relação à ação, Arendt (2013, p. 26)
co pode ser visto e ouvido por todos e afirma que “todas as atividades humanas são
tem a maior divulgação possível. Para condicionadas pelo fato de que os homens vi-
nós, a aparência – aquilo que é visto e vem juntos; mas a ação é a única que não pode
ouvido pelos outros e por nós mesmos sequer ser imaginada fora da sociedade dos
– constitui a realidade. Em comparação homens”. Para a autora, a ação que diz respei-
com a realidade que decorre do ser visto to à atividade que se exerce entre os homens,
e ouvido, mesmo as maiores forças da sem a mediação das coisas ou da matéria, “cor-
vida íntima – as paixões do coração, os responde à condição humana da pluralidade, ao
pensamentos do espírito, os deleites dos fato de que homens, e não o Homem, vivem
sentidos – levam uma espécie de exis- na Terra e habitam o mundo” (ARENDT, 2013,
tência incerta e obscura, a não ser que, e p. 8).
até que, sejam transformadas, despriva-
Das três atividades, a ação é a que tem uma
tizadas e desinsdividualizadas, por assim
maior relação com a condição humana da na-
dizer, de modo que assumam um aspec-
talidade. Ao falar de natalidade, Arendt está se
to adequado à aparição pública.”
referindo ao nascimento, ao momento em que
O espaço privado era caracterizado, de acor- um novo sujeito vem ao mundo e pode, a par-
do com Arendt, como o local de satisfação das tir de então, dar início a algo novo. Além disso,
necessidades básicas e fisiológicas, do homem. esse pensamento também está se referindo ao
A esfera privada era o local das necessidades novo começo inerente à ação, onde cada indiví-
da vida, e nela, as mulheres, escravos e crianças duo, por meio de sua ação, pode iniciar algo ino-
eram subjugados, garantindo as necessidades vador. Logo, ação pode ser interpretada como
básicas de sua família. Não havia qualquer tipo a capacidade do ser humano de optar por um
de igualdade ou liberdade. Igualdade e liberdade novo começo, contestando o que já está im-
eram conceitos que se faziam parte apenas no posto na sociedade e através dela começar algo
espaço público e não tinham nenhuma relação único. De acordo com Arendt (2013, p. 221):
com o espaço privado. Nas palavras de Arendt
“Por outro lado, uma vida sem discurso
(2013, p. 37):
e sem ação é literalmente morta para o
mundo; deixa de ser uma vida huma-
“O que todos os filósofos gregos tinham na, uma vez que já não é vivida entre
como certo, por mais que se opusessem os homens. É com palavras e atos que
à vida na polis, é que a liberdade situa- nos inserimos no mundo humano, e essa
-se exclusivamente na esfera política; inserção é como um segundo nascimen-
que a necessidade é primordialmente um to, no qual confirmamos e assumimos
fenômeno pré-político, característico da o fato simples do nosso aparecimento
organização do lar privado; e que a força físico original. Não nos é imposta pela
e a violência são justificadas nesta úl- necessidade, como o trabalho, nem de-
tima esfera por serem os únicos meios sencadeada pela utilidade, como a obra.
de vencer a necessidade – por exemplo, Ela pode ser estimulada pela presença
subjugando escravos – e torna-se livre.” de outros a cuja companhia possamos

7
desejar nos juntar, mas nunca é condi- ao mundo o próprio princípio do começar,
cionada por eles; seu impulso surge do e isso, naturalmente, é apenas outra ma-
começo que veio ao mundo quando nas- neira de dizer que o princípio da liberda-
cemos e ao qual respondemos quando de foi criado quando o homem foi criado,
começamos algo novo por nossa própria mas não antes.”
iniciativa.”
O nascimento, de acordo com Arendt, não
Um dos pontos fundamentais da teoria se encontra relacionado ao fator biológico, e
arendtiana é a ação, uma vez que ela caracte- sim ao político, pois para a pensadora a ação
riza a atividade política por excelência. A ação é é concebida como uma atividade política por
compreendida pela interação entre os homens excelência, e por essa razão, a natalidade, di-
que possibilita a exteriorização de suas identi- ferentemente da mortalidade, pode ser con-
dades a seus pares – daí a noção de pluralidade siderada a categoria central do pensamento
como condição de toda vida política: “pluralidade político. A partir da natalidade, do nascimento,
é a condição da ação humana porque somos o ser humano pode iniciar uma ação inovado-
todos iguais, isto é, humanos, de um modo tal ra, trazendo consigo o milagre do novo. Logo,
que ninguém jamais é igual a qualquer outro esse milagre, relacionado à esfera pública, traz
que viveu, vive ou viverá.” (ARENDT, 2013, p. a esperança de que há uma maneira de romper
9-10). A ação, portanto, é a única atividade hu- com aquilo que já se encontra estabelecido no
mana que não pode sequer ser imaginada fora seio da política. Assim, de acordo com Arendt, o
da sociedade. milagre da liberdade está nesse poder de iniciar
o novo, logo cada um de nós somos em si um
De acordo com Arendt, as três atividades
novo começo.
humanas da vita activa e suas respectivas con-
dições têm uma estreita ligação com os aspec- É através de palavras e atos que nós nos
tos mais gerais da existência humana: natali- inserimos no mundo, e essa tal inserção é como
dade/mortalidade. Porém, somente a ação é a um segundo nascimento. Mesmo que a única
mais intimamente relacionada com a natalidade. certeza da humanidade seja a morte, nós, hu-
Ao falar de natalidade, Arendt está se referin- manos, não nascemos para morrer, e sim para
do ao momento em que o indivíduo chega ao começar. Desde o nascimento nos é dada uma
mundo, ao nascimento, e então assim, ele pode oportunidade de começar algo novo, uma vez
dar início a algo novo. Contudo, a natalidade em que o novo sempre acontece em objeção a tudo
uma perspectiva arendtiana vai além. Ela se re- aquilo que nos é imposto, a tudo aquilo que já
fere ao novo começo inerente à ação, dando existe no mundo. Assim, então,o novo sempre
uma possibilidade de cada indivíduo por meio de será como um milagre.
seu agir a iniciar algo novo. A ação em Arendt
possibilita o ser humano a dar início a um novo
começo e de trazer ao mundo algo totalmente A INSERÇÃO DAS MULHERES NOS ESPA-
inovador. ÇOS DE DECISÃO
A capacidade de agir, de começar algo novo, No ocidente, o século vinte foi marcado pela
é fundamentada na condição humana da nata- integração das mulheres nos espaços da socie-
dade que até então eram apenas reservados 8
lidade. A partir do momento em que o indivíduo
chega ao mundo sendo totalmente diferente do para homens. As mulheres, em conjunto, se
outro, com um aspecto singular, diferente de engajaram a fim de reivindicar os seus lugares
todos que existem, já existiram ou irão existir, no espaço público e nos lugares de decisão. A
ele tem a capacidade de fazer uma contribuição política, desde antes do século XX e até os dias
ao mundo totalmente inovadora. Há uma es- atuais é composta majoritariamente por ho-
treita ligação na capacidade de agir, de começar mens, o que dificulta no processo de represen-
algo, com a definição de liberdade em Hannah tação das mulheres. Com isso, esse movimento
Arendt. Para a autora a natalidade é uma con- social de reivindicação de direitos políticos, civis
dição para a existência da liberdade. Nas pala- e trabalhistas feito por mulheres e para as mu-
vras de Arendt (2013, p. 222): lheres, foi denominado feminismo.
“Trata-se de um início que difere do início A introdução do voto em um governo de-
do mundo, pois não é o início de algo, mocrático tornou-se uma atividade de decisão
mas de alguém que é, ele próprio, um no espaço público. O voto é direito de todos os
iniciador. Com a criação do homem, veio cidadãos em um país democrático e é defini-

8
do como uma manifestação de seus interesses Houve uma necessidade de aplicar essas
perante aos seus interesses políticos. Apenas ações afirmativas. Em primeiro lugar podemos
os homens de classe alta tinham o direito ao dizer que seria uma questão de justiça intuitiva,
voto até o início do século XX. As mulheres, em uma vez que metade da população é composta
uma organização política, reivindicaram seus por mulheres. Em 2014 as mulheres ocupavam
direitos em meados do século XX, lutando em 10% da bancada no Congresso e em 2018 hou-
busca de direitos iguais, e dentre eles estava o ve um aumento, mas nada muito significativo,
direito ao voto feminino, movimento esse que pois a representação das mulheres no Con-
1 Fonte: Câmara
ficou conhecido como sufrágio feminino. gresso é apenas 15%.1 Por trás disso, existe a
dos Deputados/
ideia de uma representação descritiva, que na
Cedi. Disponí- O termo sufrágio refere-se ao direito de
vel em: <https:// qual o representante não atua por seus repre-
participação no espaço público, incluindo seu
www2.camara.leg. sentados, mas sim os substitui. Um dos prin-
direito ao voto. Assim, o movimento sufragis-
br/camaranoticias/ cipais argumentos a favor dessa noção seria a
noticias POLITI-
ta feminino remete às lutas realizadas com o
capacidade do representante de promover algo
CA/564231-A-RE- intuito de conquistar o direito de participar da
para alguém que não está presente. Porém, por
PRESENTACAO- esfera pública. A conquista do direito ao voto
mais que um representante se assemelhe aos
-FEMININA-E- foi o principal objetivo estabelecido pelo movi-
- O S - AVA N C O S - supostamente representados, ele não poderia
mento das mulheres durante a primeira onda
-NA-LEGISLACAO. ser considerado uma amostra do grupo. Segun-
do feminismo. Ter acesso ao direito eleitoral
html.>. do Anne Phillips (1993 apud MIGUEL, 2014, p.
era uma representação do reconhecimento pela
100):
sociedade de que as mulheres tinham condi-
ções iguais às dos homens para tomar decisões “O meu interesse é, em tese, represen-
públicas. Nas palavras do cientista político Luís tável por qualquer pessoa, que pode ver-
Felipe Miguel (2014, p. 93): balizá-lo em meu lugar e agir para pro-
movê-lo. Mas a minha identidade só se
“Além desse efeito simbólico, havia a
torna visível por meio de um igual. Eu
ideia de que o voto era a via de acesso
posso não estar presente no grupo de
aos espaços de tomada de decisão, que
governantes, mas a minha identidade
se tornariam mais permeáveis à pre-
estará lá não por meio de um represen-
sença das mulheres e mais sensíveis às
tante, e sim corporificada em alguém que
suas demandas. No entanto, as décadas
a possui em comum.”
seguintes à obtenção do sufrágio femi-
nino mostraram que era perfeitamente Em uma sociedade estruturada pela do-
possível a convivência entre o direito de minação masculina, a posição das mulheres é
voto das mulheres e uma elite política marcada pela subalternidade. Mulheres pos-
formada quase exclusivamente por ho- suem menos acesso às posições de poder e de
mens.” controle dos bens materiais. Elas estão mais
sujeitas à violência doméstica. Ainda que exis-
Depois da obtenção do direito do voto, as
tam muitos homens simpatizantes ao feminis-
mulheres ainda ocupavam uma parcela muito
mo, há um conflito entre a emancipação delas
reduzida nas posições de poder. A partir dos
e a manutenção do papel social privilegiado que
anos 1970, o movimento feminista apontou que
eles têm. O feminino na sociedade é visto como
tal ausência era um sinal de um problema, e que
inferior, frágil e irracional, o que torna a maioria
não se tratava de um desinteresse das mu-
da ação feminina desvalorizada, uma vez que é
lheres para participarem da vida pública e sim
visto dessa forma.
evidenciava uma exclusão com base estrutural
e que deveria ser combatida. O desejo por uma É perceptível que a baixa representação
maior presença feminina nos espaços de po- de mulheres nos poderes governamentais indica
der significativa lutar por uma democracia mais uma forma de desigualdade dentro do sistema
representativa. O grupo de governantes tende político. Mas, por mais que exista a longo prazo,
a ser predominantemente masculino, de clas- uma maior presença de mulheres nos grupos
se alta e majoritariamente branca. Defrontando de governantes, isso não eliminará e nem re-
com esse problema, vários Estados passaram a duzirá a desigualdade política: apenas fará com
adotar políticas que pretendiam ampliar a par- que o conjunto de tomadores de decisão se
ticipação dos grupos socialmente excluídos nas torne mais diversificado, tornando, assim, mais
esferas públicas, com um destaque maior para semelhante ao corpo social. O espaço público
as mulheres. constituído historicamente como um ambiente

9
masculino trabalha contra as mulheres e outros A capacidade da ação é fundamentada na
grupos minoritários, impondo a elas obstáculos condição humana da natalidade. A ideia de na-
maiores para chegar às posições de maior in- talidade nos assegura que um novo começo é
fluência, mesmo que já tenham alcançado car- possível. Que é possível dizer não a tudo aquilo
gos por meio de votos. que nos oprimem enquanto mulheres e todas
as tradições que nos são impostas. A natali-
Além de lutar por uma maior representa-
dade se insere nesse contexto como algo que
tividade feminina nos espaços públicos, é ne-
nos impulsiona a dar início a um novo tempo.
cessário também colocar em questão assuntos
De acordo com Arendt (2013, p. 15-16), a ideia
ligados ao feminismo dentro da esfera pública
de ação está relacionada à igualdade, e partindo
para debates e decisões visando um avanço de
desse ponto de vista, fica claro que nenhum ser
direitos e igualdade de gênero. Para que isso
humano pode ser excluído do espaço da políti-
ocorra, torna-se fundamental um maior núme-
ca, pois a ação é a ação política por excelência.
ro de mulheres na política, porém, não se deve
Assim, as mulheres também são capazes de
restringir somente a isso. O feminismo se defi-
ação política, em razão da condição humana da
niu pela construção de uma crítica que vincula
natalidade.
a submissão da mulher na esfera doméstica à
sua exclusão da esfera pública. Desde o século A concepção da questão da natalidade, a
XIX até os dias atuais, é perceptível notar que partir da teoria arendtiana, nos leva a acredi-
houve avanços em várias áreas para as mu- tar que pode ser um impulsionador para a luta
lheres, incluindo na política. Porém, seria pre- feminista. Levando em consideração que a per-
maturo dizer que todos os seus direitos são cepção de Arendt acerca do termo natalidade
representados dentro da esfera de poder, uma está relacionada a um novo começo inerente
vez que muitos assuntos ligados à mulher não à capacidade humana, sua definição pode fun-
são pautas de discussão nesse meio. cionar como um elemento propulsor da luta
feminista contra a subordinação e a opressão.
A partir dessa ideia, fica possível notar que
INTERPRETAÇÕES FEMINISTAS ACERCA DO todos podem dar início a algo novo, incluindo
PENSAMENTO DE ARENDT as mulheres como agentes políticos. Com isso,
Hannah Arendt nasceu e viveu sua vida du- acreditamos que os integrantes de um âmbito
rante o século XX. Em paralelo a sua existência, político podem dar início a algo novo, uma nova
ocorriam no mundo inteiro várias revoluções história, incluindo as mulheres como agentes
feministas nas quais as mulheres lutavam pe- e afastando-as de uma vida privada opressiva.
los seus direitos políticos, dentre essas revolu-
ções destaca-se o sufrágio feminino, movimen-
CONSIDERAÇÕES FINAIS
to marcado pela luta das mulheres pela busca
do direito ao voto. Mesmo com esses fatos, Pudemos perceber, durante o decorrer do
Arendt não se preocupou em escrever sobre artigo, as contribuições de Hannah Arendt
a condição das mulheres no século XX. Ela se acerca da condição humana, o seu entendimen-
preocupava muito mais com sua condição de to sobre espaço público e privado e de como
judia do que sua condição de mulher, afirma eles são caracterizados. Além disso, Arendt 10
Elisabeth Young Bruehl (1996, p. 317), uma das traz um conceito do conjunto vita activa, no
biógrafas principais de Arendt. qual ela determinava as atividades do trabalho,
fabricação e ação como atividades essas que
Por sua dedicação estar voltada principal-
pertencem ao conjunto. Porém, das três ativi-
mente ao fato de ser judia, Arendt durante sua
dades, a ação é a que tem uma maior relação
vida escreveu sobre o totalitarismo e antisse-
com a condição humana da natalidade.
mitismo, uma vez que ela vivenciou e sofreu
os efeitos dessa época por ter sido uma judia A natalidade, de acordo com Arendt, é o
que morava na Alemanha. Arendt é conhecida momento do nascimento do indivíduo, e a partir
por escrever também sobre pluralidade, na qual desse momento, ele já está apto para iniciar
consiste na ideia de que todo ser humano é algo novo. A natalidade, em uma perspectiva
único, mas sua singularidade só se estabele- arendtiana, se refere ao novo começo inerente
ce em relação aos outros seres humanos. Sua à ação, dando uma possibilidade de cada indi-
ideia de pluralidade é derivada de sua concep- víduo por meio de seu agir a iniciar algo novo,
ção de ação, como já foi explicitado acima. sendo a natalidade uma condição para a exis-

10
tência da liberdade. Logo, podemos concluir que a idéia arendtia-
na sobre natalidade pode ser um impulsionador
Junto ao momento histórico em que Hannah
para a luta feminista. Uma vez que a natalidade
Arendt viveu e trouxe as suas contribuições
é definida como um novo começo inerente à
para o mundo, estava ocorrendo o movimen-
ação e como uma condição para a existência
to sufragista. Esse movimento é considerado
da liberdade, acreditamos que através dela as
como um marco no movimento feminista, por-
mulheres podem ser incluídas na esfera pública
que além de proporcionar o direito ao voto para
como um movimento emancipatório e libertá-
as mulheres, possibilita uma visibilidade que
rio, lutando contra a subordinação e a opres-
antes elas não tinham. O direito de falar, de se
são. Incluindo então, as mulheres como agentes
expressar, e participar da vida pública, mesmo
políticos, capazes de adentrar nos espaços de
com dificuldades, uma vez que esse âmbito é
decisão, visando, assim, uma maior represen-
marcado por machismo, sexismo e misoginia; é
tatividade.
avançar em uma democracia mais justa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT, Hannah. (1992a), A vida do Espírito. Tradução Antônio Abranches e Helena Martins. Rio de Janeiro, Relume-Du-
mará.

______. (1992b), Entre o Passado e o Futuro. Tradução Mauro V. Barbosa. São Paulo: Perspectiva.

______. (2013), A Condição Humana. Tradução Roberto Raposo, revista e ampliada por Adriano Correia. 11. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária.

______. (1993), A Dignidade da Política. Tradução Helena Martins Frida Coelho, Antônio Abranches, César Almeida, Cláudia
Drucker e Fernando Rodrigues. Rio de Janeiro, Relume-Dumará.

______.(2006), O que é Política? Organização Ursula Ludz. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. A representação feminina
e os avanços na legislação. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/564231-A-
-REPRESENTACAO-FEMININA-E-OS-AVANCOS-NA-LEGISLACAO.html>; acesso em: 05/12/2018.

______. (2008), Compreender: formação, exílio e totalitarismo (ensaios). Tradução Denise Bottmann. Organização, intro-
dução e notas Jerome Kohn. São Paulo, Companhia das Letras; Belo Horizonte, Ed. da UFMG.

______. (1992b), Entre o Passado e o Futuro. Tradução Mauro V. Barbosa. São Paulo: Perspectiva.

______. (2008), Homens em tempos sombrios. Tradução Denise Bottmann. São Paulo, Companhia das Letras.

BRUEHL, Elisabeth Young. (1996), Hannah Arendt among Feminists. Hannah Arendt. Twenty Years Later, Cambridge,
Massachusetts, London, Massachusetts Institute of Technology.

DUARTE, André. (2011), “Hannah Arendt e o pensamento “da” comunidade: notas para o conceito de comunidades plurais.
O que nos faz pensar”. Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, Rio de Janeiro, Ed. F. Franco, p. 21-40.

0 DIETZ, Mary G. (1995), “Feminist receptions of Hannah Arendt”. In: HONIG, Bonnie (Ed.). Feminist interpretations of Han-
nah Arendt. Pennsylvania: Pennsylvania StateUniversity PresS.

MIGUEL, Luiz Felipe; BIROLI, Flávia. (2014), Feminismo e Política. ed São Paulo: Boitempo.

MATOS, Marlise. (2008), “Opinião pública e representação política das mulheres: novos horizontes para 2010?” Debate:
Opinião Pública e Conjuntura Política, 2: 31-37,

MIGUEL, Luiz Felipe; BIROLI, Flávia. (2014), Feminismo e Política. São Paulo, Boitempo.

PITKIN, Hanna. (1967), The concept of representation. Berkeley, University of California Press.

Recebido em 26 de março de 2019

Aprovado em 11 de julho de 2019

11
QUEM PODE USAR SAIA NESSA RODA?
REFLEXÕES ETNOGRÁFICAS ACERCA DAS ELABORAÇÕES DE
GÊNERO NO CANDOMBLÉ PAULISTA1
Homero Dantas
Ragnane
Resumo: Esse artigo busca compreender como se formam elaborações de gênero e o tratamento a Graduando em
Ciências Sociais
pessoas trans* em dois terreiros de candomblé paulistas, bem como a mobilização nativa das ca-
com ênfase em
tegorias tradição e modernidade. Durante as incursões pelo campo foram privilegiadas duas dimen- Antropologia pela
sões da vida nos terreiros: os xirês e as funções. Também foi central o acompanhamento de falas Universidade Esta-
de mulheres trans* e travestis colhidas durante conversas informais e falas durante o “Fórum de dual de Campinas –
População LGBT de Terreiros” foi possível articular as formas pelas quais o povo de santo concebe UNICAMP.
a presença de pessoas trans*.
Contato
Abstract: This paper intends to analyze the way that gender ellaborations are formed and the way <homeroragnane@
gmail.com>
that trans* people’s presence is conceived in two terreiros located in Campinas and São Paulo.
Initially, it’s going to be made a recapitulation of the academia contribution on the matter so it’s P a l av r a s - c h ave :
possible to analyze the ethnographic encounter. During the field incursions, two dimensions of Religiões de Matriz
everyday life on the terreiros were privileged: the xirês and the funções. Thus, through the words of Africana; Candom-
trans women and travestis heard during informal talks and public speaks it was possible to stablish blé; Relações de
na analysis on how the povo de santo conceives the presence of trans* people in the Candomblé. Gênero e Sexua-
lidade; População
LGBTQI.

À GUISA DE UM MAPA DE LEITURA des de gênero legitimadas pela comunidade, ao Keywords: Afro-
passo que, o segundo, se afirmava “tradicional” -brazilian religions;
Primeiramente, será realizada uma reca- Candomblé; Gen-
e negava a possibilidade de inserção de pessoas
pitulação teórica cujo intuito é o de fornecer der Studies; LGB-
trans* nesse espaço. Além desses terreiros, foi TQI.
os contornos das contribuições de autoras/ possível acompanhar as discussões realizadas
es na discussão sobre gênero e sexualidade no “Fórum de Populações LGBT de Terreiros”
no Candomblé e que contribuíram para os fins que foi central na articulação do arcabouço teó-
dessa reflexão. Além disso, busca-se também rico com as experiências de pessoas trans* e 1 Este artigo é
argumentar como algumas noções trabalha- fruto de uma pes-
travestis no Candomblé.
das por antropólogos/as como “matriarcado” e quisa de Iniciação
Científica realizada
“tradição” extrapolam os limites da academia e
junto ao PAGU/
operam discursivamente nos terreiros, à medi- UNICAMP e o De-
da em que são mobilizados na construção de INTRODUÇÃO
partamento de An-
noções de feminilidade e (des)autorizam perfor- tropologia. Gostaria
I. GÊNERO E SEXUALIDADE NOS TERREI-
mances de gênero nas comunidades-terreiro. de agradecer imen-
ROS DE CANDOMBLÉ samente a Profa.
Após isso, se seguirá uma breve reflexão Dra. Isadora Lins
sobre os processos de transe e seu potencial
Observa-se que, nas discussões sobre as França, orientadora 12
relações de gênero nas religiões de matriz afri- da pesquisa, pela
generificador. Partindo do pressuposto de que
cana, a primeira coisa que se estabelece é a revisão sempre en-
no Candomblé é no corpo em que se assentam gajada e criteriosa
tendência em argumentar que, nesse contexto,
os marcadores sociais da diferença, pretende- das primeiras ver-
a reflexão sobre gênero é mais profícua quando
-se argumentar que o transe, ao se inscrever sões do presente
articulada com sexualidade (assim como outros
no corpo, se articula com outros marcadores e texto.
marcadores). A dimensão do erotismo também
adquire efeito generificador.
aparece enquanto articuladora de significado 2 Conjunto de re-
Por fim, serão delineadas as linhas do en- na produção de identidades no Candomblé. O gras que orienta a
trabalho de Laura Moutinho (2012) destaca a etiqueta a ser ado-
contro etnográfico com o campo. Foram pri-
importância de ressaltar a dimensão do erotis- tada entre o povo
vilegiados dois terreiros; um em São Paulo e de santo. Maneiras
outro em Campinas. Neles foi possível a ob- mo e do flerte na construção das identidades
de se portar, se
servação participante nas funções e nos xirês de gênero nos terreiros. A autora explora a ca- vestir, falar, ouvir,
além de conversar com os filhos/as de santo. tegoria nativa rumbê2 analiticamente nos ter- rezar, entrar em
O primeiro terreiro era tido como “marginal” e reiros como disseminadora de formas de per- transe etc.

a população trans* era aceita e suas identida- formance de gênero que operam no continuum

12
3 Literalmente “macho” e “bicha” tal qual conceituado por Peter mulheres para então transitar entre corpos ti-
“metade-metade”. Fry (1982). dos enquanto masculinos tornando-os, então,
ambíguos. Em relação direta com essas elabo-
4 Cabe aqui res- Nesse contexto, Luís Felipe Rios (1997) res-
saltar e sublinhar
rações de feminilidades se articulam discursos
salta nos mitos dos orixás a dimensão ambígua sobre tradição7 nos quais vige um modelo de
que, de maneira al-
guma, esses mitos
de gênero em alguns deles que seriam simul- culto em consonância ao matriarcado baiano
ocorrem de ma- taneamente homens e mulheres, tornando-se consagrado por autores(as) clássicos do debate
neira homogênea uma terceira elaboração que já se descola das antropológico sobre religiões de matriz africana.
e são consenso categorias “homem” e “mulher”. Logun-Edé era Com esse interesse em mente é que se bus-
entre os adeptos. filho de Oxum e Oxóssi e segundo o povo-de-
Existem diversas
ca retraçar a trajetória histórica acadêmica que
-santo vivia seis meses nas matas com seu construiu e associou uma noção de matriarca-
disputas em tor-
no dos sentidos e
pai e seis meses nos palácios com sua mãe. do aos terreiros de Candomblé e impactou nas
significados des- Nas cortes de Oxum, homem nenhum era acei- formas pelas quais as feminilidades são enca-
ses mitos. Um dos to devido ao ciúme de seu marido, Xangô; en- radas pelos grupos de adeptos.
interlocutores de tão Logun-Edé se vestia de mulher para estar
pesquisa de Milton junto de Oxum. Segundo o mito, Logun-Edé só
dos Santos (2001)
foi descoberto porque sua beleza despertou a SOBRE O MATRIARCADO DO CANDOMBLÉ
argumenta de ma-
neira contrária ao
paixão de um jovem caçador que levantou as
saias de Logun-Edé e o estuprou, constatando É corrente a ideia da existência de um ma-
uso feito por parte
de alguns adeptos: com asco que aquela linda iabá era, na verdade, triarcado no Candomblé até hoje. Seja por adep-
“Durante a década um homem. Além dele, Oxumarê também é um tos em conversas nos terreiros ou pelo trata-
de 60, 70 não tinha orixá metá-metá3 cujo gênero jamais era defi- mento analítico de pesquisadores, essa ideia
essa de Logun-Edé de organização da religião continua existindo.
nido, sendo a androginia sua marca registrada4.
e Oxumarê serem Lorand Matory (2008) problematiza a influência
bissexuais. Isso foi
O autor argumenta que todos esses as- dos argumentos defendidos por Ruth Landes
criação dos adés
que foram sendo
pectos da religião são mobilizados pelos seus em seu A Cidade das Mulheres (2002[1947])
incorporados à re- interlocutores a fim de justificar e legitimar a sobre a premência das mulheres nos terreiros
ligião” (SANTOS homossexualidade masculina e a feminilidade de candomblé da Bahia, bem como o lugar má-
2001, p. 46). no corpo de homens5. A metanidade conforme gico e político do feminino na gestão dos terrei-
conceito cunhado por Luís Felipe Rios oferece ros. Não se trata aqui de desmerecer as contri-
5 Entretanto, há
sustentação para experimentações e possibili- buições de Landes ou de estabelecer o papel da
de se considerar
que o interesse
dades de elaborações de gênero e sexualidade mulher enquanto secundário nos terreiros, mas
tanto do povo de que destoem daquelas estabelecidas como nor- trata-se de situar essas observações e contex-
santo quanto dos ma pela cisgeneridade heterossexual. tualizar suas contribuições.
pesquisadores
aqui citados era a Dessa maneira, levando em consideração as O autor estabelece a ideia de que a par-
homossexualidade contribuições quanto aos caminhos apontados tir da publicação de Ruth Landes instaurou-se
masculina. Pouco pelos(as) autores(as) que analisam os terreiros um processo de transnacionalização de uma
se escreve sobre
brasileiros, a questão que se apresenta é iden- identidade nacional tendo como principal ator o
a homossexuali-
dade feminina nos tificar as forças que convergem na constituição Candomblé. Segundo ele, Edison Carneiro teria
terreiros e menos dessas identidades de gênero e, em um mesmo tentado transformar essa religião em um sím-
2 ainda se discute movimento, inserem essas identidades nas li- bolo do Nordeste, Arthur Ramos o empregou
dentro dos terrei- nhas das dinâmicas de poder. Segundo elas(es), como símbolo do Brasil e Ruth Landes como
ros. Camila Medei- algumas pistas são oferecidas; seriam exem- um símbolo do feminismo internacional. O autor
ros (2006) aponta
plo as formas de flerte e desejo orientados por argumenta que para além das arenas acadê-
esse silêncio por
parte de adeptos ideais de masculinidade e virilidade entre ho- micas de debate, essa discussão produziu um
e pesquisadores. mens e adés6 e a lógica religiosa da metanidade novo modelo de liderança dos cultos que seria
A autora ainda que oferece substrato mítico para a legitimação operante nos terreiros do povo-de-santo.
ressalta a invisi- de orientações sexuais e identidades de gênero. É importante ressaltar que Ruth Landes
bilização também
de homens trans e Entretanto, algo que existe de comum entre pesquisou o Candomblé de forma a retratá-lo
mulheres lésbicas esses trabalhos é o aprofundamento analítico como evidência da riqueza cultural oriunda de
(monocós) nos ter-
acerca de diferentes facetas e performances um trânsito entre o Brasil e África.8 Para a au-
reiros de candom- tora, também serviam os terreiros como prova
blé de São Paulo, das feminilidades nos terreiros de candomblé.
É possível aferir, a partir desses trabalhos, que da possibilidade de igualdade de gênero para
evidenciando como,
também nos espa- existem diferentes elaborações de noções de as mulheres do mundo da época. Sendo o ma-
ços dos terreiros, feminilidades que se descolam de corpos de triarcado (um dos últimos a existir em tempos

13
modernos, segundo ela) reminiscência africana Através desse trânsito entre academia e povo mulheres possuem
em solo brasileiro. Apesar da longevidade da de santo se consolida simbolicamente um mo- suas sexualidades
tolhidas e cercea-
noção de matriarcado associada ao Candomblé, delo de culto aos orixás que é baiano e matriar-
das.
outros trabalhos problematizam essas afirma- cal. Esse trânsito de conhecimento fomenta
ções. Mariza Corrêa (2000) argumenta que à disputas internas nas grandes linhagens10 tidas 6 Categoria nativa
época da pesquisa de Landes havia mais pais como tradicionais, nas quais o critério de pres- usada para desig-
que mães de santo e justamente esse aumento tígio é quão mais capaz de evocar similaridades nar homens tidos
de lideranças femininas nas grandes casas era aos terreiros matrizes da Bahia se consegue. como “afeminados”
que se relacionam
a novidade. Questões que vão desde a organização e dispo-
com homens atri-
sição dos assentamentos11 nos quartos de san-
No bojo dessa discussão aparece um perso- buidamente más-
to a até mesmo os fundamentos12 são usadas culos e viris. A
nagem que viria a marcar a imagem do Can-
como operadores de distinção entre os terrei- categoria será dis-
domblé: o adé. Atualmente, segundo o povo-de-
ros e marcadores hierárquicos dessa disputa. cutida adiante com
-santo, esse fato se deve aos terreiros serem mais profundidade.
espaços nos quais o acolhimento é uma marca Fica claro que a questão aqui posta é sobre
registrada que, inclusive, constitui importante tradição e modernidade. Em outras palavras, de 7 Essa categoria,
dimensão da identidade desses espaços. En- que maneiras os adeptos do Candomblé lidam originalmente usa-
tretanto, a figura do adé foi o centro de uma com a mudança em um contexto no qual a ideia da pelos antropó-
logos nas primeiras
calorosa discussão que gerou controvérsia e de tradição é critério de prestígio e é ainda fo-
décadas do século
polêmica durante o período subsequente à pu- mentada por um modelo idealizado originado no XX foi apropriada
blicação de A Cidade das Mulheres. encontro transnacional de interesses que atri- pelo povo de santo
bui ao candomblé uma qualidade matriarcal, na e ressignificada em
A figura do adé adquire contornos de desvio
qual as feminilidades são buscadas e aceitas sentidos nativos
e poluição da alegada pureza de culto africano que operavam na
sejam nos corpos das mulheres ou dos homens
no Brasil, além de ser caracterizada como um disputa por pres-
(adés)? A partir desse contexto são mobilizadas
reflexo pálido e mirrado das grandes ialorixás tígio simbólico e
as feminilidades nos terreiros e uma das di-
da Bahia. Os sacerdotes adés apesar de tidos social entre os ter-
mensões de maior destaque nesse processo é reiros. Mais adian-
como desviantes não eram incomodados por
o transe. Através da possessão é que são ins- te, esse processo
conta de suas identidades sexuais, pelo con-
critos no corpo diversos marcadores que cons- ficará mais claro.
trário, eram “apoiados e mesmo adorados pe-
troem gênero e sexualidade e é essa dimensão
los homens normais” (LANDES 2002, p. 158). 8 Também é im-
do debate que será explorada a seguir.
Edison Carneiro em seu Candomblés da Bahia portante ressaltar
(1986[1948]) escreve sobre a derrocada do que essa discussão
Candomblé matriarcal e cristaliza a reputação se deve também
OS PROCESSOS DE TRANSE NO CANDOM- ao impacto e im-
da religião enquanto exclusivamente feminina
BLÉ E SUA RELAÇÃO COM AS NOÇÕES DE portância das con-
ao estabelecer que a importância demográfica
GÊNERO E SEXUALIDADE NOS TERREIROS tribuições teóricas
dos pais de santo é recente e que o candomblé de Ruth Landes
matriarcal seria a forma pura do culto. De certa As primeiras reflexões sobre o transe no ao debate sobre
maneira, o que parece ter se dado é a natura- Candomblé foram feitas nas primeiras décadas religiões de matriz
lização de uma dimensão feminina na ideia de do século XX. Naquele momento, o fenômeno africana, bem como
do transe era entendido enquanto singular às também à cons-
liderança religiosa no Candomblé. Entretanto, o
trução e formação
que se deve reter para os fins dessa discus- mulheres. Os orixás “cavalgavam” apenas os
da antropologia
14
são é a permanência e longevidade da noção de corpos das mulheres. Não só o transe era res- brasileira.
matriarcado e predominância feminina associa- trito às mulheres como ele mesmo era marca
da ao Candomblé. da feminilidade. Conforme expresso por Edison 9 A partir da lei-
Carneiro na seguinte passagem: tura do texto, fica
Vagner Gonçalves da Silva (1991) analisa o claro que essas
movimento feito pelo povo de santo de consu- “Às vezes diz-se que a sacerdotisa é a são categorias
mo do conhecimento produzido pelos intelec- esposa de um deus e às vezes que é o heurísticas mobi-
tuais e acadêmicos sobre o Candomblé e sua seu cavalo. O deus aconselha e faz exi- lizadas pelo autor.
gências, mas em geral, apenas cavalga e Entretanto, essas
consequente incorporação à dinâmica de cul-
mesmas catego-
to. O autor observa o consumo, por parte do se diverte. Assim, você pode compreen-
rias também são
povo de santo de etnografias que apresentam, der por que as sacerdotisas exercem articuladas a ou-
segundo ele, “modelos por demais idealizados” grande influência sobre o povo. São as tros marcadores
(GONÇALVES DA SILVA, 1991, p. 46) e que for- intermediárias dos deuses. Mas nenhum pelo povo de santo
mariam, então, uma espécie de régua usada homem direito deixaria que um deus o paulista.
para medir pureza e deturpação9 nos terreiros. cavalgasse, a menos que não se importe
10 São os terreiros

14
matriz da Bahia. de perder sua virilidade… Aqui é que está cia maior a homossexualidade propria-
Gantois, Axé Oxu- o busilis. Alguns homens se deixam ca- mente dita, então o homem transasse
marê, Casa Branca
valgar e tornam-se sacerdotes ao lado com a bicha certamente teria que ser
do Engenho Velho,
Axé Muritiba, Opô
das mulheres; mas sabe-seque são ho- chamado de homossexual ou algo pare-
Afonjá exemplos mossexuais. Nos templos vestem saias cido. Nem sempre isso acontece”. (FRY E
dessas linhagens. e copiam os modos das mulheres e dan- MACRAE, 1991, p. 50).
Nas relações entre çam como as mulheres. Às vezes, tem
terreiros no Esta-
Luís Felipe Rios (2011), em uma espécie de
melhor aparência que elas”. (CARNEIRO
do de São Paulo tradução ou adaptação desse esquema para
apud LANDES 1947, p. 44, grifos nos-
essas linhagens o Candomblé, aponta uma mudança. O bina-
sos).
são frequente- rismo que estrutura esse modelo, dá lugar a
mente citadas e Posteriormente, Peter Fry (1982) tratou um esquema que se estrutura em três partes:
mobilizadas como
mais detidamente desse movimento de femini- okós, adés e loces14. Os primeiros são aque-
forma de conceder
prestígio e legiti-
lização dos corpos por efeito do transe quando les que poderiam ser chamados de homens
midade ao modelo pesquisou a homossexualidade masculina em ativos e são caracterizados pela virilidade na
de culto. Sendo eu terreiros de candomblé do Recife. O autor afir- gestualidade, maneirismos, ocupações, atitudes,
mesmo iniciado no ma existir uma cultura sexual e de gênero nos adereços corporais etc. Cabem nessa categoria
Candomblé, minha terreiros que se estrutura em a) as performan- não só os homossexuais ativos (que penetram),
chegada ao campo
ces públicas dos adeptos em termos de gênero mas também os bissexuais e até mesmo os
foi marcada por
intensos questio- no cotidiano e durante os xirês e b) pólos de heterossexuais que ainda que mantenham re-
namentos acerca oposição (masculino/feminino; ativo/passivo, lações com outros homens teriam salvaguarda-
da minha raíz ou de penetrador/penetrado, etc) que serviriam de do seu estatuto de “homem mesmo”. Os adés
qual casa descendo linguagem para as performances de gênero. seriam os homens que apresentam os sinais
espiritualmente. diacríticos percebidos como femininos nos ges-
Também nesse modelo, existe uma gestão
tos, fala, assuntos durante as conversas, indu-
11 Representação dos prazeres corporais que se afilia a esses po-
mentária etc. São esses sinais que possibilitam
material do orixá. los de masculinidades e feminilidades e estabe-
que esses homens explicitem através do corpo
lece quais partes dos corpos são legítimas de
12 Os segredos seus desejos sexuais por homens e suas pre-
gerar prazer. Grosso modo, o pênis e o ânus. É
sagrados do can- ferências sexuais. Loces seriam aqueles que se
domblé. esperado que o primeiro indicador acene para
envolvem amorosa e sexualmente tanto com
o segundo, isto é, que um homem masculino
homens quanto com mulheres e cujas prefe-
13 Vale dizer que quando na cama sinta prazer na introdução do
rências sexuais são ambíguas, podendo tanto
os trabalhos de seu pênis em outro homem (que deve ser efe-
Peter Fry foram atuar passivamente quanto ativamente.
minado), por exemplo. A partir dessa cartografia
produzidos a par-
do que Luís Felipe Rios chama de “introduções O autor estabelece um paralelo com a mito-
tir de questões
originadas no seio e recepções” (RIOS 2011, p. 222) também são logia do Candomblé e três tipologias, digamos
de determinadas organizados os usos de outras partes do corpo assim, de orixás. A saber, aboró, metá-metá e
correntes teóricas, e suas interações (dedo/ânus; pênis/boca; lín- iabá. De maneira geral, a primeira diz respeito
bem como filiados gua/ânus). O que nos interessa é a importante à dimensão masculina dos orixás, a virilidade
a e inseridos em constatação de Peter Fry da existência de um e todos os atributos masculinos que orientam
um momento sin-
sistema dicotômico ativo[masculino]/passivo[- o comportamento dos okós. Iabás são as ori-
gular circunscrito
4 historicamente e feminino] que, diga-se de passagem, também xás mulheres; tidas como as donas da beleza e
devem ser lidos influenciaria na linguagem do transe. da vaidade, têm como características aqueles
tendo essa ressal- atributos tidos como tipicamente femininos: a
Isso significa dizer que, assim como nas
va em mente. Para maternidade, cuidado, zelo doméstico etc. Por
classes populares do Brasil à época13, as práti-
maior aprofunda- último, os metá-metá15 seriam aqueles orixás
mento nesse deba- cas sexuais sofrem um processo de generiza-
cuja ambiguidade é destacada, são marcados
te cf. CARRARA e ção. Nas palavras de Fry e MacRae (1991):
SIMÕES (2007). pelo encontro das dimensões masculina e femi-
“Podemos dizer que a concepção popu- nina. Diz-se entre o povo de santo que os filhos
14 Interessante lar brasileira da sexualidade fala mais de dos orixás metá-metá carregam dentro de si
observar que essa “masculinidade” “feminilidade”, de “ativi- essa ambiguidade, sendo famosa a associação
é também a sau- dade” e “passividade”, de “quem está por dos filhos de Logun-Edé a homens delicados e
dação ao orixá Lo- cima” e “quem está por baixo” do que so- sentimentais ou às mulheres de Oxumarê uma
gun-Edé.
bre heterossexualidade ou a homosse- faceta mais autoritária e enérgica. Esse esque-
15 Oxumarê, Lo- xualidade que são aspectos que entram ma conceitual montado pelos autores supraci-
gun-Edé e Oxalá. no esquema sorrateiramente, por assim tados ganha movimento e tem sua linguagem
dizer. Se este esquema desse importân- através do transe e da possessão. É na expe-
15
riência da alteridade do transe que os adeptos do não encontra em terras paulistas ecos tão 16 Entretanto, di-
se reelaboram a partir de sua filiação espiritual, fortes quanto se parece ter em outros contex- versas visitas fo-
ram feitas a outros
isto é, do/a orixá de qual é filho/a e dos signos, tos como aqueles encontrados nos Estados do
terreiros nos seus
mitos e símbolos que informam os arquétipos Nordeste. A maioria masculina era flagrante dias de festas nos
desses/as orixás. durante as festas públicas, sobretudo entre as quais foi possível
lideranças. Na Casa de Obaluaê havia um nú- realizar observação
mero aparentemente equilibrado entre homens participante.
ENCONTROS ETNOGRÁFICOS e mulheres de filhos e filhas de santo. Apesar
17 Por vontade dos
O trabalho de campo etnográfico ocorreu da exceção da Casa de Obaluaê, o curioso é que
entrevistados, seus
principalmente em dois terreiros16: A Casa de a dimensão matriarcal associada ao culto não nomes e os de suas
Obaluaê situada na cidade de São Paulo, chefia- opera mesmo no terreiro tradicionalista de Pai casas foram modi-
da por Mãe Cláudia17 e tida como beco18 devido Paulo ainda que opere discursivamente. ficados.
à presença de pessoas trans* como filhos/as Para responder às questões levantadas pelo 18 Denominação
da casa. Foram feitas visitas às festas públicas debate bibliográfico, privilegiou-se duas dimen- êmica que carac-
nas quais foi possível conversar informalmen- sões de observação nos terreiros. A primeira, teriza o modelo de
te com alguns dos adeptos. O segundo terreiro as funções, compreende a divisão da tarefa culto de determi-
é a Casa de Xangô que se localiza na cidade realizada durante os preparativos dos rituais. nado terreiro como
Campinas cujo babalorixá é Pai Paulo. Seu axé “deturpado”, “des-
A outra dimensão é a das festas propriamente
caracterizado” ou
é caracterizado pelos adeptos (filhos da casa e ditas ou os xirês, na linguagem do Candom- sem raíz.
de fora) como um terreiro tradicional que esta- blé. Pensamos essas duas dimensões enquanto
belece na Bahia a fonte da legitimidade ritual e dois momentos de um mesmo processo, que é 19 Homens e mu-
da tradição. atravessado e estruturado por uma rígida hie- lheres que não en-
rarquia e um estrito código de conduta. tram em transe e
Na Casa de Xangô foi possível visitar o ter- gozam de elevada
reiro toda semana às quartas-feiras quando posição na hierar-
acontecia um ritual no qual se oferece uma co- quia ritual dos ter-
TRABALHO E FESTA
mida votiva ao orixá Xangô a fim de homena- reiros. São chama-
geá-lo. Ao final dos rituais sempre ficavam os a) AS FUNÇÕES dos de pais e mães,
provas de deferên-
filhos da casa, clientes e Pai Paulo conversando,
São chamados de funções todo o período cia ao seu cargo.
esses momentos foram extremamente valiosos
de trabalho que antecede os xirês. Estão con-
para os propósitos dessa discussão pois, por 20 Disponível no
tidos nas funções tanto o trabalho que pode
muitas vezes, a minha presença não era inter- YouTube: <https://
ser descrito como secular (lavar, passar, limpar,
pretada como a de um pesquisador, mas como www.youtube.com/
cozinhar, carpir, podar, pintar) quanto aquelas watch?v=ZEDxFN-
a de um adepto; o que provavelmente desinibia
atividades que são sagradas (imolação, preparo vKL64> Acessado
determinadas posições a serem anunciadas.
das comidas dos orixás, assentamentos, rezas, em: 15/04/2019>.
Durante esses rituais foi possível acompa- preparo de banhos). A carga de trabalho du-
nhar uma outra faceta da religião: os trabalhos e rante as funções é intensa. Por vezes, as(os)
preparativos, isto é, as funções. Minha condição adeptas(os) ficam acordadas(os) até tarde da
de iniciado na religião facilitou o contato, mas madrugada fazendo as atividades necessárias
também modulou determinadas expectativas, para acontecerem as festas. Durante os perío-
tendo em vista a trajetória religiosa tanto de dos de função há um destaque para ogãs e 16
Pai Paulo quanto de Mãe Cláudia ser mais lon- ekedis19 que, de certa maneira, supervisionam
ga que a minha e, portanto, a partir do critério os trabalhos.
de senioridade que vige no Candomblé, eu de-
Ekedi Sinha, uma das mais importantes
veria me comportar de acordo. Diversas vezes
ekedis do prestigioso terreiro da Casa Branca
essa relação foi demarcada, seja uma indireta
em Salvador, comenta em entrevista ao canal
para eu me sentar no banquinho durante as
Nós TransAtlânticos20 quais são os encargos
conversas (assim eu não me sentaria na mes-
de uma ekedi, os classificando como a “super-
ma altura que um/a pai/mãe de santo), seja me
visão de tudo que tenha a ver com o cuidado
repreendendo abertamente por chamá-los pelo
do orixá, bem como sua representação em ter-
vocativo “você” em vez de “senhor(a)”.
ra”. Segundo ela, desde criança já foi preparada
De maneira geral, o esquema usado para lo- para cuidar do orixá “lavando uma roupa, aju-
calizar as noções de gênero e sexualidade no dando a lavar uma louça”. Conta que era ins-
Candomblé se encontra relativamente vigente truída pelas suas mais velhas a ficar na cozinha,
nos terreiros visitados. A noção de matriarca- pois “a cozinha era onde se aprendia Candom-

16
blé”. A Ekedi Sinha ainda relata que, em contra vam encostados nas paredes jogando conversa
partida, os meninos eram instruídos a aprender fora casualmente.
a buscar folhas no mato, conhecer as ervas na
b) OS XIRÊS
floresta e a toda atividade que envolvesse o
exterior ao terreiro. São chamadas de festas ou xirês os rituais
públicos feitos em louvor a determinados ori-
Grande parte das atividades realizadas du-
xás. Segundo o povo de santo, é durante os
rante as funções gravitava em torno da cozinha.
xirês que os orixás podem voltar para a Ter-
Assim, pode-se inferir, a partir da fala de Ekedi
ra (ayê) através dos corpos de seus filhos e
Sinha e observado em campo, que a cozinha
filhas para matar as saudades de suas vidas
é um espaço privilegiado para a aprendizagem
terrenas e contar suas histórias e memórias.
dos preceitos e conhecimentos sagrados do
Na cadência do toque dos atabaques, os orixás
Candomblé. É inegável aí a mobilização da ideia
vão contando histórias de guerra, vitórias, der-
da premência do feminino quanto aos trabalhos
rotas, amores, mortes e doenças através dos
que envolvam cuidado, ainda que em diversos
corpos dos adeptos. Eles caçam, lutam, correm
sentidos do termo.
o mundo, distribuem raios e feitiços. As festas
21 Iniciado que en-
Como na maioria dos terreiros, o trabalho são coloridas e ricas; permeadas por diversas
tra em transe.
na Casa de Xangô se concentrava na cozinha. camadas de significado e constituem um mo-
22 Aquele(a) que Na maior parte das quartas-feiras, a frequên- mento de ansiedade e satisfação para babás e
não é iniciado(a), cia de filhos e filhas de santo se restringia a, ialorixás.
mas frequenta o no máximo 6 ou 7 pessoas. Dentre elas, havia
terreiro de can- É também durante os xirês que acontecem
uma família que, durante o tempo que eu fre-
domblé nessa in- os famosos transes ou possessões dos filhos
quentei, não faltou a uma quarta-feira no Casa
tenção. e filhas de santo. A possessão aqui será tra-
de Xangô, muitas vezes apenas eles apareciam.
tada enquanto fato social. Não nos interessa
23 Comida ofereci- Ele era ogã, ela iaô21 e o filho deles era abiã22.
quaisquer discussões patologizantes ou então
da a Xangô. Houve um episódio que foi o gatilho para su-
psiquiatrizantes que se propõem a pensar o
blinhar o trabalho e as atividades nas funções
transe enquanto um fenômeno biomédico. O
como potência generificadora.
que se buscará destacar aqui são os códigos
Em um dia muito frio, eu estava conversan- a que se submetem o transe, assim como os
do com o ogã no grande pátio que fica de frente códigos que são compartilhados pelos adeptos.
para a apertada cozinha do terreiro, lá dentro as
O transe se mostra nos terreiros frequenta-
mulheres cozinhavam o amalá23, tarefa tediosa
dos enquanto uma parte da linguagem através
e minuciosa, e lá fora ele varria o chão. Conver-
da qual os adeptos são situados na intrincada
sávamos descontraidamente quando chegou
hierarquia presente nos terreiros. O palco cen-
Pai Paulo e dirigiu-se a ele: “ô meu filho, estou
tral dessa linguagem é o corpo. Outras partes
te estranhando! (risos) Tanta mulher aí e você
dessa linguagem são as roupas usadas pelos
varrendo o chão?”. A frase foi dita em tom de
adeptos virados de santo ou não. Um exemplo:
troça e ambos riram.
o uso de miçangas feitas de coral só é autori-
A partir da fala de Pai Paulo é possível no- zado àqueles que já tenham atingido sua maio-
6 tar a construção simbólica de gênero em torno ridade religiosa, isto é, que já tenham tomado
das atividades realizadas durante as funções. sua obrigação de sete anos; sendo assim aque-
Nesse sentido, foi candente observar que não le que for visto usando um fio com miçangas
só o trabalho generifica, mas o ócio também, de coral será tratado como um ebômi. Márcio
pois nas semanas seguintes o ogã se limita- Goldman (1987) estabelece o Candomblé en-
va a conversar com outros homens enquanto quanto uma religião cuja cosmologia é centrada
as mulheres e alguns homens (esses notada- no corpo. Ou seja, a hierarquia no Candomblé
mente adés) trabalhavam nos preparos rituais. incide diretamente em processos de fabricação
Portanto, o ócio operava como um símbolo da de pessoas e corpos, bem como nos usos que
masculinidade daqueles homens em oposição à se faz dos corpos
feminilidade que residia nas atividades desem-
Carmen Opipari pensa o transe a partir de
penhadas pelas mulheres e pelos adés. Foi pos-
uma analogia com o teatro. A autora busca
sível observar a mesma coisa em uma das fes-
mostrar as maneiras pelas quais os(as) adep-
tas na Casa de Obaluaê, enquanto as mulheres
tos(as) (atores) vão se trançando com seus
e alguns filhos de santo adés se desdobravam
orixás (personagens) numa espécie de peça na
entre o salão e a cozinha, alguns homens fica-

17
qual os atores envolvidos improvisam a peça a ticipante de duas discussões, uma no Casa de
partir de um roteiro fixo de comportamentos Xangô e outra na Câmara Municipal de São
esteriotipados (OPIPARI, 2010, p. 179). Entre- Paulo por ocasião de um Fórum de População
tanto, esse roteiro, ou texto, não se traduz en- LGBT de terreiros, bem como as festas públi-
quanto um “corpus finito e homogêneo” (idem), cas foi possível levantar algumas hipóteses, ex-
mas age enquanto um processo que também ploradas a seguir.
considera as controvérsias míticas e os con-
Primeiramente, é preciso que fique claro que
frontos entre diversas tradições. Em outras
a presença de pessoas trans* se insere em nar-
palavras, o transe é fragmentado, pleno de la-
rativas acerca de tradição e formas autorizadas
cunas e em perpétuo movimento. Dessa ma-
de culto e são usadas para tensionar os limi-
neira, a possessão também aparece marcada
tes entre a manutenção dos tradicionalismos e
pelos sinais diacríticos pessoais do adepto que
a adoção de mudanças. Também é necessário
a abriga.
que se estabeleça que há uma vigilância sobre
É importante notar que, ao tratar do tran- os corpos, performances e indumentária des-
se, Opipari intende, em sua análise se afastar ses(as) sujeitos(as). Observou-se, de manei-
de uma visão que estabelece no transe, ape- ra geral, que há entre a maioria dos adeptos
nas um modelo arquetípico de correspondência uma confusão entre gênero e orientação se-
mítica que, segundo ela, foi construído teorica- xual, existindo uma tendência em generificar a
mente pelos pesquisadores com base em teo- sexualidade em consonância ao modelo hierár-
rias da Psicologia ocidental, bem como na pró- quico descrito por Peter Fry e retomando an-
pria teologia cristã. Opipari, argumenta que a teriormente. Também se verificou o tratamento
adoção desse modelo, e uma consequente ideia dado à genitália como a concentração e a cris-
de homogeneidade, acaba por negar a mar- talização do gênero, operando em função disso,
gem de agência à qual recorrem os adeptos no as diferenças entre travestis e transexuais.
momento do transe que possibilita que sejam
Aqueles contrários à presença de pessoas
mobilizadas um multitude de personagens que
trans* defendem, grosso modo, que o fato de
configuram a identidade dos adeptos.
“homens se vestirem de mulher” (aludindo à
Dessa maneira, é incontornável pensar transexualidade) se deve à vontade que têm de 24 Penso a hete-
o transe enquanto uma das dimensões de chamarem atenção e darem close25. Já que as ronorma conforme
argumentado por
constituição identitária das(os) adeptas(os) do únicas que podem usar roupas femininas são as
Butler (1993), isto
Candomblé. É através do transe que se ma- mulheres a fim de protegerem o útero. Durante é, como uma sé-
terializam aspectos míticos que constituem a uma discussão no Casa de Xangô, uma jovem rie de demandas e
fabricação de pessoas nos terreiros. Miriam iaô logo replicou a essa ideia: “mas e aquelas pressupostos espe-
Rabelo (2014) explora o conceito de “construção mulheres que não tiverem útero?”. Prontamen- rados das pessoas
de pessoa em camadas” no Candomblé. Com te Pai Paulo treplicou que mesmo sem útero, com base na su-
posta naturalidade
isso, a autora busca ressaltar os processos de elas têm ovários e na ausência desses, têm a
da heterossexuali-
individualização dos orixás atribuídos aos ini- vagina “de nascença”. Um outro filho-de-santo dade.
ciados(as) que se dão em crescendo, de forma logo complementou “orixá não reconhece gê-
que aos sete anos de iniciação seja concluída nero, reconhece o sexo com que nascemos”. A 25 Categoria êmi-
essa trajetória com a culminância da maiori- jovem iaô não se deu por satisfeita e perguntou: ca que designa o 18
dade religiosa. Durante esse processo, se cria “as iabás não usam roupas femininas quando ato de concentrar
a atenção em si ou
um par: adepto(a)-orixá. O que liga esses dois no corpo de homens?”, por sua vez o babalorixá
até mesmo usado
elementos é precisamente o transe. Portanto, replicou que era necessário que se fizesse a para se referir a
é possível pensar o transe enquanto idioma de distinção entre o corpo em transe e o corpo “de uma pessoa metida.
constituição de pessoas no Candomblé em uma cara limpa” e, portanto, quem usava a roupa era
dinâmica dialética entre orixá e adepto na qual o orixá, não o homem.
ambos se constroem mutuamente.
O subtexto dessa fala é o fato de uma se-
Privilegiando essas duas dimensões das ex- mana antes dessa discussão, o babaloríxá ter
periências dos adeptos no Candomblé que fo- dado uma festa de Oxum, na qual incorporou
ram feitas as incursões etnográficas para os essa iabá que foi vestida como uma mulher,
propósitos dessa pesquisa. É nesse contexto isto é, à baiana. Para além de apontar as in-
que se inserem nos terreiros as pessoas trans*, congruências presentes naquele discurso, a iaô
adés, monocós e outros corpos que desafiam estava, implicitamente, também colocando em
a heteronorma24. A partir da observação par- questão a masculinidade de Pai Paulo ao que

18
foi prontamente justificado pela distinção entre tos dos xirês tais quais: qualidade da comida
o seu corpo em transe e “de cara limpa”. A vi- servida, hospitalidade dos filhos de santo da
gilância acerca da indumentária usada foi uma casa, instalações físicas do terreiro, sinais de
característica marcante durante toda as dis- prosperidade dos adeptos e do pai ou mãe de
cussões acompanhadas sobre pessoas trans* santo, localização, roupas dos orixás, entre ou-
nos terreiros. tras. É necessário ressaltar que ao ser clas-
sificado enquanto beco, como o foi a Casa de
Durante os xirês que foram acompanhados
Obaluaê, acaba por restringir consideravelmen-
foi possível notar as diferentes formas de se
te esse circuito, quando não se é excluído dele.
lidar com a presença de pessoas trans* nesses
Mãe Cláudia atribui o fato de não ser visitada e,
espaços. Conforme já dito, o Axé Casa de Oba-
portanto, não poder visitar outros terreiros ao
luaê é um terreiro que reconhece a legitimidade
tratamento dado a mulheres trans e travestis
da identidade de mulheres trans e travestis.
na sua casa de santo.
Isso significa dizer, que nesse terreiro a elas era
permitido ocupar cargos hierárquicos, desem- Além dos terreiros, o Fórum de População
penhar atividades e se vestir de acordo com o LGBT de terreiros foi um importante momen-
gênero feminino. É interessante que também to etnográfico. O evento contou com a parti-
na casa de Mãe Cláudia apenas mulheres dan- cipação de quatro ialorixás que se identifica-
çam na roda à moda dos terreiros matriz da vam enquanto travestis, nas suas falas era
Bahia anteriormente citados. Esse fato talvez recorrente a citação da sensação de isolamen-
se deva a uma necessidade de se filiar e cons- to causada pela comunidade do candomblé e
tituir elementos para uma narrativa de tradição, a exclusão sistemática de pessoas trans* dos
porém as mulheres trans e travestis também terreiros. Unanimemente as mães de santo re-
são incluídas no xirê. lataram que durante o processo de transição
foram desligadas das casas que as receberam
Em contrapartida, na casa de Pai Paulo mu-
enquanto “homens gays”. Mãe Bianca relatou,
lheres trans* e travestis não poderiam dançar
inclusive, ter sido submetida pelo seu primeiro
na roda ou se vestirem à baiana tendo em vista
pai de santo a um ritual que chamou de “troca
que não seriam mulheres de verdade. Essa ex-
de folhas” que, segundo ela, tinham como in-
pressão “de verdade” equivale a dizer que elas
tenção “ajustar a sexualidade e transformar o
não nasceram mulheres e que não possuem
corpo de volta para o que era”. A partir disso,
útero, ovários e vagina de nascença. Dessa ma-
elas notam que, nas palavras de Mãe Bárbara:
neira, não haveria razão para usarem as indu-
“no Candomblé há um fato curioso. São os se-
mentárias femininas e dançarem na roda. Em
gregados que segregam”. Mãe Silvia concorda
uma das conversas após os atendimentos às
“os homossexuais são os primeiros a colocar
quartas-feiras, a esposa de Pai Paulo explicou
a faca na nossa garganta e falar ‘ou você é ou
que em uma ocasião, ele teve que pedir para
não é’”. Com essas falas, elas aludem ao fato
uma travesti se retirar de um dos xirês no Casa
de serem segregadas por homens gays que,
de Xangô. A justificativa foi “para não ficarmos
supostamente, deveriam se “solidarizar com os
mal-falados, você sabe como o povo de can-
preconceitos sofridos pelas travestis”, nas pa-
domblé é”.
8 lavras de Mãe Bárbara.
A partir dessa fala é possível observar como
Segundo Mãe Bianca, o Candomblé deveria
se articulam elementos constituintes de nar-
acomodar as mudanças geradas pelos proces-
rativas de tradição através de uma dimensão
sos sociais como as reivindicações e discussões
muito interessante do Candomblé: os circuitos
de pautas dos movimentos LGBT evidenciadas
de trânsito dos adeptos em visitas aos xirês
nos últimos tempos. “Nós não estamos aqui
de outros terreiros. Essa circulação de adep-
parados e paralisados, estamos em constante
tos atua de maneira a vigiar e regular o culto
mudança e transformação” disse Mãe Bianca.
que é praticado em outros terreiros, bem como
Com essa fala é possível notarmos uma frontal
estabelecer critérios de diferença e hierarquiza-
oposição às exclusões geradas pelas narrativas
ção entre terreiros com base em legitimidade
de tradição corroboradas pela produção acadê-
de culto e quão acurados são eles em seguir os
mica canônica – cujas contribuições buscamos
fundamentos de suas tradições.
reconstruir na primeira porção desse artigo
Assim, o prestígio é construído a partir da – que é consumida e reelaborada por grupos
opinião pública formada durante essas visitas; de adeptos das casas de maior prestígio. Para
são levados em consideração diversos aspec- Mãe Sílvia, outra ialorixá travesti, “tradição
19
é uma maneira dos velhos de santo falarem reformulação da feminilidade que busca englo-
‘fica no seu lugar, travesti nojenta’”. Com essa bar a ambiguidade que reside em seus corpos.
poderosa fala, ficam evidentes os sentidos de
“tradição” que são mobilizados para cercear a
participação de pessoas trans e travestis no CONCLUSÃO
Candomblé paulista. Stephen Selka (2007) analisa os discursos e
Outra dimensão tensionada por elas, tanto as linguagens da tradição no Candomblé tendo
no Fórum quanto nos terreiros pesquisados, é em vista o embate entre esses e as questões
a alcunha de “espaços de acolhimento” atribuída postas pela modernidade. Afastando-se de
aos candomblés. Somente durante o Fórum a uma noção de pureza africana, o autor recoloca
palavra acolhimento foi dita cinquenta e qua- a discussão em torno de narrativas que esta-
tro vezes, outras incontáveis foram registradas belecem o Candomblé enquanto uma religião
durante os xirês e as funções. Uma das iaôs brasileira antes de qualquer coisa. Apesar de
da Casa de Obaluaê disse “as nossas casas de sua análise estar mais concentrada na noção
candomblé não podem ser espaços de violência de prosperidade e seus sentidos, seu trabalho
porque o candomblé nasceu para acolher”. En- evidencia candentemente a tensão entre tradi-
tretanto, as falas e trajetórias das ialorixás cita- ção e mudança.
das até agora evidenciam que esse acolhimento É essa tensão que subjaz a discussão pre-
não compreende todos os corpos e identidades. tendida por esse artigo. Também foi possível ob-
Privilegia a expressão da sexualidade masculina servar como a noção de “tradição” foi formada
em suas múltiplas formas (adés, loces), mas to- por antropólogos/as em discussões acadêmi-
lhe a sexualidade feminina e não tolera ataque cas e posteriormente incorporada ao intrincado
algum à cisgeneridade. jogo de prestígio do candomblé e ressignifica-
Em suma, os contrários àqueles que desa- da pelos adeptos. As noções de “feminilidade”
fiam a heteronorma advogam a inescusabilidade e os processos de reelaboração das relações
do sexo designado ao nascimento que figuraria de gênero e sexualidade são tributários desse
como desígnio do orixá. Consequentemente de- diálogo. Para refletir sobre como era entendi-
safiar esse desígnio seria desafiar o próprio di- da a presença de pessoas trans* nos terreiros
vino. É impossível deixar de notar semelhanças tornou-se incontornável a compreensão acerca
entre esses discursos e aqueles presentes nos das formas de articulação entre o conjunto de
púlpitos de igrejas fundamentalistas ou então normas e formas a que o povo-de-santo cha-
aqueles influenciados por conservadorismos. O ma de tradição e as novas questões colocadas
Fórum, acima referido, contou com a presença pela modernidade.
de diversas ialorixás trans e travestis. A fala de Além disso, após ouvir as ialorixás du-
algumas delas ia frontalmente contra esse dis- rante o Fórum de População LGBT de terreiros
curso. As ialorixás buscavam ressaltar a con- e os adeptos nos axés visitados, é impossível
cepção de orixá enquanto amor e conhecedor não se dar conta de como, em nome da tra-
do destino dos seres humanos. Nas palavras de dição, são sistematicamente excluídas pessoas
Mãe Bárbara: “se um orixá escolhe uma traves- trans* e travestis dos terreiros. Sendo possí-
ti, saibam que ele escolheu com plena consciên- vel concluir, portanto, que os discursos acerca 20
cia que ela era travesti. Orixá não vê gênero, vê da noção de tradição podem, por vezes, tomar
apenas o coração de cada um”. contornos bastante heteronormativos à medida
Foi possível observar que as pessoas trans* em que se deslegitimam identidades, corpos e
adaptam suas filiações míticas a fim de explicar performances que desafiem os limites da cis-
sua feminilidade, mas não as transpõem indis- generidade heterossexual.
criminadamente. Nas palavras de Mãe Bárbara Também se tornou poderosamente evidente
“orixá está na cabeça, não na genitália. Pode no campo a maneira com que o povo-de-san-
sim dar trejeitos, mas não determina seus ca- to em geral consome os trabalhos acadêmicos
minhos”. Com essa fala é possível ver de que sobre o Candomblé. Trabalhos como A mito-
maneiras travestis e mulheres trans* reelabo- logia dos orixás do sociólogo Reginaldo Prandi
ram criativamente os mitos a fim de justificar ou então Os Nagô e a Morte da antropóloga
a feminilidade em um corpo masculino a um só Juana Elbein eram discutidos com muita pro-
tempo em que rejeita a essencialização da ge- priedade e citados amiúde por diversos adep-
nitália. Aqui fica evidente também que há uma tos durante as conversas nos terreiros. Dessa

20
maneira, é possível ver, como disse Mãe Bianca, de da questão. Ademais, é nesse contexto que
que o Candomblé não está parado nem para- existem e resistem pessoas trans*. É também
lisado, mas em total articulação com os mais nele que se provam a coragem e a criatividade
diversos fluxos de conhecimento e influências. desses(as) sujeitos(as) em desafiar as normas
O povo-de-santo ressignifica noções e catego- impostas e tensionar os limites que existem.
rias como tradição, matriarcado, feminilidades, Em seus discursos, elas e eles ressignificam as
masculinidades, homem, mulher e com isso narrativas e as desafiam a serem mais inclu-
constroi outros sentidos e direções de existên- sivas. Além disso, muito acuradamente ques-
cia e experiência. Em outras palavras, é possível tionam e problematizam a imagem consolidada
seguramente aferir que as comunidades-terrei- entre adeptos dos terreiros enquanto espaços
ro não são enclausuradas em si mesmo, mas de acolhimento irrestrito de sujeitos margina-
mantêm intenso diálogo com diversos estratos lizados. Pertinentemente, perguntam: a quem
da sociedade. Ora, isso se torna tanto mais ób- serve esse acolhimento? Quem pode ser aco-
vio quando se constata a identidade multiface- lhido? A presença de pessoas trans* no Can-
tada de seus adeptos e suas trajetórias tanto domblé testa os limites míticos, rituais e so-
religiosas quanto seculares. ciais da religião, sendo elas mesmas agentes
da adaptação e produzindo novos caminhos e
A presente discussão oferece mais questões
questionamentos para os terreiros de candom-
que resposta, aponta mais caminhos que os tri-
blé.
lha e isso é prova da dimensão da complexida-

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, Kallile Sacha da Silva. (2017), “Saia ou atabaque: uma análise da identidade de gênero de transexuais nos rituais
candomblecistas da cidade de Natal/RN”, in Enlaçando Sexualidades,1,1: 01-12.

BUTLER, Judith. (1993), Bodies that matter: on the discursive limits of sex. London, Routledge.

CARNEIRO, Edison. (1986), Candomblés da Bahia. Rio de Janeiro, Ediouro.

CARRARA, Sérgio & SIMÕES Júlio. (2007), “Sexualidade, cultura e política: a trajetória da identidade homossexual masculina
na antropologia brasileira.”, in Cadernos Pagu, 28, 1.

CORRÊA, Mariza. (2000), “O Mistérios dos Orixás e das bonecas: raça e gênero na antropologia brasileira”, i Etnográfica,
4: 245.

ELBEIN DOS SANTOS, Juana (1982). Os nagô e a morte. Petrópolis: Vozes.

FOUCAULT, Michel. (1980), História da sexualidade 1: A vontade de saber. 3. ed. Rio de Janeiro, Graal.

FRY, Peter. (1982), Para inglês ver. Rio de Janeiro, Zahar.

FRY, Peter & MACRAE, Edward. (1991), O que é homossexualidade. São Paulo, SP, Brasiliense.

0 FRY, Peter. (1986), “Male Homosexuality and Spirit Possession in Brazil”, in Journal of Homosexuality, 11, 3-4:137-153.

GOLDMAN, Márcio. (1987), “A Construção Ritual da Pessoa: a possessão no candomblé”. In: C.E.M. de Moura, C. E. Can-
domblé: desvendando identidades. São Paulo, EMW Editores, p. 23-45.

GOLDMAN, Márcio. (2002), “Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos”, Revista de Antropologia da USP, 46, 1:
423-444.

GONÇALVES DA SILVA, Vagner. (1991), “A crítica antropológica pós moderna e a construção textual da etnografia religiosa
afro-brasileira”, in: Cadernos de Campo, I, São Paulo, FFLCH-USP, p. 47-60.

GONÇALVES DA SILVA, Vagner. (1995), Orixás da Metrópole, Petrópolis, Vozes.

LANDES, Ruth. (2002), A cidade das mulheres. Rio de Janeiro, RJ, UFRJ.

LIMA, Thiffany. (2017), “Construindo identidades de gênero, raça e sexualidade no terreiro da Gomeia”,Enlaçando Sexua-
lidades, 1, .1.

MARANHÃO FILHO, Eduardo. (2017), “Convertendo” categorias: de identidades de gênero a identidades religiosas, de
transgeneridades a transreligiosidades”, Fronteiras & Debates, 2, 2: 62-78.

21
MATORY, J. Lorand. (2008), “Feminismo, nacionalismo e a luta pelo significado do adé ou como Edison Carneiro e Ruth
Landes inverteram o rumo da história”, Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 51: 107-121.

MOUTINHO, Laura. Erotismo, religiosidade e cor entro o povo de santo do subúrbio carioca. In: ENCONTRO DA ASSO-
CIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS, n. da edição, 2012, local. Anais... Local:
editora, 2012, p. 01-19.

MEDEIROS, Camila. (2006), Mulheres de Kêto: etnografia de uma sociedade léscbica na periferia de São Paulo. Dissertação
de Mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

OPIPARI, Carmen. (2010), O candomblé: imagens em movimento. São Paulo, EDUSP.

PERLONGHER, Néstor. (1987), O negócio do michê: a prostituição viril. São Paulo, SP, Brasiliense.

RIOS, Luís Felipe. (2004), O Feitiço de Exu: Um Estudo Comparativo sobre Parcerias e Práticas Homossexuais entre
Homens Jovens Candomblecistas e/ou Integrantes da Comunidade Entendida do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em
Saúde Coletiva, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.

RIOS, Luís Felipe. (2011), “Loce Loce Metá Rê-lê: posições de gênero e erotismo entre homens com práticas homossexuais
adeptos do candomblé do Recife”, Polis e Psique, 1: 212-228.

SCOTT, Joan. (1990), Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Traduzido pela SOS, Corpo e Cidadania, Recife.

SCOTT, Joan. (1994), “Preface a gender and politics of history”, Cadernos Pagu, 311-27.

SELKA, Stephen. (2007), “Tradition, Modernity and Postmodernity in Brazilian Candomblé”, Nova Religio: The Journal of
Alternativa and Emergent Religions, 11, 1: 06-30.

Recebido em 30 de abril de 2019

Aprovado em 02 de agosto de 2019

22

22
O OUTRO SOU EU – O OLHAR DA JUVENTUDE TRABALHADORA
SOB(RE) O OLHAR DOS POLICIAMENTOS

Ana Carolina Kazue Resumo: O seguinte trabalho pretende analisar as relações entre policiamentos (segurança pública
Inada e privada) e juventude trabalhadora. As reflexões partem da coleta de dados de entrevistas e rela-
Estudante de gra-
tos com jovens correspondentes às classes populares. Respaldando-se das considerações desses
duação em Ciências
Sociais com ênfase
jovens, o trabalho foi conduzido para explorar a questão da segurança na democracia brasileira. Os
em Antropologia e relatos ilustram como os jovens se situam para entender e interpretar os conflitos sociais frente
Licenciatura, pela ao cenário contemporâneo producente de discursos sobre criminalidade no cotidiano urbano. Os
Universidade Esta- discursos fabricam enquadramentos, para e sobre eles, que ajudam na efetivação do cerceamento
dual de Campinas. espacial desses jovens.
Contato Abstract: The following article aims to analyze the interactions between policing (both private and
<kazue.inada@
public) and the young workers. The discussion is based upon data from interviews with working
gmail.com>
class young men and women. Through the considerations of them, the paper explores the public
P a l av r a s - c h ave : security issue on the brazilian democracy. The narratives show how the young men and women
Juventude; Classes interpret the social conflicts on the contemporary political scenario which produces discourses on
Populares; Policia- criminality in the urban context. Those discourses fabricate framings about and by them that in-
mentos; Público; duces young men and women on a spacial retrenchment.
Privado; Shopping
Center.
INTRODUÇÃO foram se desenhando questões que em um pri-
Keywords: Youth;
Poor; Public Securi-
meiro momento podem ser lidas como contra-
“Há muros que separam nações, há mu- ditórias, mas, sob à luz das reflexões de Gilber-
ty; Private Securi-
ty; Public; Private;
ros que dividem pobres e ricos, mas não to Velho (2013), pode-se compreender, que as
Shopping Center. há hoje, no mundo um muro, que sepa- ditas contradições estão no campo das relações
re os que têm medo dos que não têm complexas que contemplam a forma como as
medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas sociedades modernas são ordenadas. Dessas
1 Texto: Murar
vivemos todos nós, do sul e do norte, do relações, as disputas de narrativas geradas por
o Medo, ver em: ocidente e do oriente1. (Mia Couto, Con- elas vão para além das dicotomias legal/ilegal,
< ht tp : // ht tp s : // ferências sobre Segurança em Estoril, trabalhador/bandido e público/privado. Nesse
w w w.youtube. 2011)”.
c o m /w a t c h? v = - sentido, a investigação se constrói ao tentar
jACccaTogxE.htm>. O presente trabalho se vale de entrevistas entender as relações entre juventude e policia-
e relatos, tendo em vista as dimensões das mentos, ao passo que os agentes sociais4 en-
2 O Cursinho Dan-
dara dos Palmares arbitrariedades policiais e outras formas de trevistados remetem a questões de hierarquia
foi criado por alu- segregação socioespaciais que compõem os que estão imageticamente compreendidas an-
nos do Diretório procedimentos dos policiamentos. A coleta de teriormente à pesquisa, devido ao fato do cam-
Central dos Estu- po se estabelecer sobre questões despertadas
dados foi composta por entrevistas realizadas
2 dantes da Unicamp
pelo cotidiano nas cidades.
em 2011, inicial- com alguns alunos de um cursinho popular de
mente nomeado Campinas2 e jovens que circulam no shopping Dentro dessa dimensão familiar, a pesqui-
como Cursinho do Dom Pedro e Parque das Bandeiras, em Cam-
DCE. Durante o sa encontrou grande apoio metodológico em
projeto, o cursinho pinas. As entrevistas3 giraram em torno vá- Gilberto Velho (2013). O autor aponta a com-
contou com diver- rios eixos, como idade e ocupação. O objetivo é preensão do social na urbanidade em uma
sas localizações, compreender como os policiamentos são per-
mas atualmente se
perspectiva que apreende o familiar como algo
cebidos e concebidos pelos os jovens, e como que não necessariamente é conhecido e, por
fixou em uma Es-
cola Estadual que eles consideram que são vistos por agentes de consequência, “percebe que estamos sempre
fica no Centro da segurança variando os ambientes e circunstân- pressupondo familiaridade e exotismos como
cidade de Campi- cias, sobretudo na maneira pela qual percebem
nas, mas que conta fontes de conhecimento” (VELHO, 2013, p. 72).
com alunos da re-
a ação dos agentes. Por meio de abordagens
violentas, física ou/e simbólicas. Optei por es- O imaginário consensual, pautado na con-
gião de Campinas e
cidade próximas. colher trechos de entrevistas que sintetizam figuração de hierarquias existentes na cidade,
questões recorrentes na coleta de dados. influencia no olhar de como os agentes sociais
3 As entrevistas operam e são inscritos na cidade de Campinas,
foram realizadas Ao longo do desenvolvimento do trabalho mais especificamente, a relação juventude/po-
23
liciamentos que busco retratar. Esse trabalho Polícia Militar por parte de diversos Estados7 em um Cursinho
se une à perspectiva de como esses jovens de brasileiros. Pinheiro-Machado e Scalco (2014) Popular Dandara
dos Palmares e
classes populares observam os policiamentos mostram que o tema rolezinho foi assunto en- Shopping, foram
e como eles se veem por meio desses policia- tre as redes sociais e imprensa nacional e in- aplicadas em jo-
mentos. Visto isso, a relação do “familiar” e do ternacional durante o final de 2013 e início de vens com idades
que variam entre
“exótico” também configura o imaginário de- 2014, e que a maioria da população brasileira,
13 a 21 anos e que
les e faz referência ao imaginário consensual. integrada sobre o assunto, se colocava contra se encaixavam nas
Tendo em vista essas reflexões, as questões os rolezinhos e a favor da repressão da Polí- classes populares.
levantadas se realizam na construção de um cia Militar. A ação tinha como objetivo barrar a Foram 17 entre-
vistados no total
conhecimento produzido pelos agentes sociais entrada dos jovens pobres ou expulsá-los dos e cada entrevista
entrevistados vinculado à interpretação que o shoppings. A repressão contava com agentes teve em média 30
trabalho faz dos dados. de segurança privada e pública que atuavam minutos.
dentro dos locais como também na entrada e
4 Por agente social
arredores. Tendo em vista as notícias que circu- o artigo mobiliza a
DISPUTAS DE UMA MESMA TRAJETÓRIA: lavam na época, perguntei se ele havia sofrido forma que o teóri-
CHAVOSO, FAVELADO, CARA DE BANDIDO ações que considerava arbitrárias da vigilância co Alberto Meluc-
E TRABALHADOR. TUDO É UMA QUESTÃO ci (1967) situa a
ou policiamento público quando frequentava o
ideia de atores
DE ESTILO? rolezinho. sociais para dis-
O período posterior à ditadura militar de correr sobre redes
“[Maycon] Ah! Eu já nas antiga, nóis vi- contemporâneas
1964 foi importante na construção de valores nha como, como os outros fala, Chave. da produção cul-
das periferias urbanas, pois, nesse momento se Então, ficava, tipo os cara: “ah... o mole- tural da juventude
constrói um movimento em busca de democra- em movimento. A
que, ó o jeito dele favelado”. Essas coisas.
juventude nesse
tização e de reivindicações que tentam trans- Mal sabia eles que nóis era trabalhador, sentido como ator
formar os sentidos historicamente construídos que tinha dinheiro pra gastar”. (Entrevis- social é crucial na
sobre as classes perigosas (FELTRAN, 2008, p. ta realizada em 27/05/2017). construção da so-
38). Foi por meio dos movimentos populares que ciedade por meio
Ser chave ou chavoso8 delimita um local no de investimentos
os novos sentidos sobre os sujeitos que vivem simbólicos e sociais
qual os jovens de classes populares consomem
na periferia foram produzidos, e estes puderam que produz a pró-
e constituem o seu estilo e jeito. Esse lugar que
reivindicar seus interesses e disputar poder pria identidade.
se configura pode ser compreendido pelo fenô-
pela construção democrática. Pode-se analisar
meno, que atrelado à internet, está em vários 5 Os nomes dos
nesse período, uma nova maneira pela qual a entrevistados não
lugares do mundo, segundo Pinheiro-Machado
categoria social “trabalhador” foi sendo incor- são fictícios, eles
e Scalco (2014). Esse local são as periferias do autorizaram o uso
porada. Mediante a essa categoria foi possível
globo, fenômeno que abarca tanto as periferias para o trabalho.
que os sujeitos das “periferias trabalhadoras”
de países desenvolvidos e os em desenvolvi-
pudessem se legitimar nos espaços públicos 6 O rolezinho é
mento. Na Inglaterra existe um termo muito
na busca por direitos sociais (FELTRAN, 2008). uma prática de cir-
semelhante ao chavoso que nomeia grupos das culação de jovens
Não obstante, essa categoria social também é
periferias de Londres, “chavs”. A maioria deles da periferia, eles
utilizada no presente como forma da juventude vão de bairro em
desempregados e usam a famosa marca de eli-
pobre se legitimar nos espaços urbanos. bairro à procura
te Burberry (LEMOS, 2009 apud PINHEIRO- de festas de bai-
O argumento “sou trabalhador” foi mobili- -MACHADO; SCALCO, 2014). Nos casos bra- les, sobretudo para 24
zado nas entrevistas como modo de legitimar sileiros o termo chavoso é posto em oposição circular e dar visi-
a circulação desses jovens nos shoppings ou bilidades às pro-
ao estilo playboyzinho, ou seja, ele se distingue
duções culturais
em outros espaços de lazer quando seus cor- da ideia do consumo de uma pessoa rica. Por feitas na periferia.
pos eram negligenciados pela vigilância ou por isso, o termo pode ser compreendido como
outrem. Dessa forma, a categoria “trabalhador” uma forma da juventude pobre promover sua 7 Visto em:
teria conferido a eles um instrumento de luta <ht tp : //g1 .globo .
distinção e de certa forma produzir uma identi- com /s ao - p aulo/
para usufruir do direito de ir e vir. Uma das en- dade própria. O jovem chave, apesar de ter um noticia/2014/01/
trevistas em que se pode compreender de ma- caráter positivo entre a juventude de classes pm-apura-pos-
neira mais enfática os contextos pelos quais a populares, é visto pelos policiais como suspeito. siveis-excessos-
categoria é mobilizada é a de Maycon5. Ele tem Segundo Dubet (1996, apud SETTON, 2005), a
- durante -rolezi-
nho-em-shopping.
21 anos, é negro e trabalha como vendedor no experiência social é uma forma de construção html>;
centro da cidade de Campinas. Ele contou que do mundo, ao transpor para os sentidos de dis- Visto em: <http://
frequentava rolezinhos6, que organizou alguns puta de uma mesma trajetória, como se deu n o t i c i a s . r7. co m /
minas-gerais/
eventos via Facebook em 2015. O rolezinho to- entre ser lido como chave e se entender como shopping-de-bh-
mou proporção nacional devido à utilização da trabalhador, expõe uma divergência de olhares. - e -processado -

24
- p or- proibir- en - Dubet (ibidem) revela que na contemporanei- “favelados” e “bandidos”. O estilo que não dá
tr ada - de - meno - dade existe em espectro opaco na experiência pra mudar, por esse sentido, é a própria traje-
re s - de s acomp a -
nhados-de-adul- social, e, desse modo, os indivíduos contempo- tória, a experiência social do agente. O estilo de
to-18102015>. râneos não possuem uma adequação total à vida é um marcador estruturado pela sociedade
socialização contemporânea, isso significa que brasileira.
8 “Chave = da hora,
não há uma adequação entre a subjetividade
legal. Pode ser vis- Os estereótipos descritos por Maycon são
to também como do ator e a objetividade do sistema, isto é, tais
simplistas e essencializadas, ao passo que são
o estilo oposto instâncias estão separadas, a subjetividade do
ao swag, o esti- organizadas de maneira dicotômica, assim eli-
indivíduo da objetividade do seu papel. Dessa
lo mais vida louca, minam as ambiguidades (CALDEIRA, 2000, p.
forma, o autor expõe que o indivíduo não esca-
bandidão, em vez 38). A produção de dicotomias é algo perma-
do playboyzinho pa do social, mas que o social é composto pelas
nente no campo dos estereótipos e precon-
swag. A sobrance- experiências que se expressam em registros
lha riscada, as co- ceitos, também é permanente nas disputas de
múltiplos e não congruentes.
res fortes, apare- narrativas que estão imbricadas nelas, isto é,
lhos coloridos, etc, O ser trabalhador pode denotar que o di- as fronteiras entre as dicotomias são desloca-
são características
nheiro para gastar provém de um trabalho lícito. das constantemente. A diferença entre o su-
do mlk [moleque]
chavoso”. Visto em: Dessa forma, reivindicar o estatuto de traba- jeito playboy e chavoso é elaborada por meio
<http://www.funk. lhador é legitimar um espaço dentro da estru- do tipo de consumo, a dicotomia se desenvolve
blog.br/ 2 0 1 3/1 1/ tura social (FELTRAN, 2008, p. 139) a mesma por meio da diferenciação das trajetórias, um
girias-de-funkei-
ros-e-seus-signifi-
estrutura que o coloca como um suspeito, um mais abastado e o outro de classes populares.
cados.html>. possível criminoso. O olhar do policiamento Outro ponto ilustrativo, encontra-se na dispu-
público sobre o Maycon ficou mais expressivo ta de uma mesma trajetória. O estilo chavoso
quando perguntei se ele já havia sofrido algu- positivado pelos jovens “chama atenção” dos
ma arbitrariedade policial em espaços que não policiais, características que, para os agentes
eram os dos shoppings, para além dos rolezi- de segurança, transcendem à trajetória pessoal
nhos. Ficou expressa no discurso a ideia de que de Maycon e reforçam categorias essencializa-
o olhar dos agentes de segurança pública (dos das que correspondem ao tipo ideal de suspeito
cara) sobre o Maycon, e sujeitos homólogos es- pelos policiamentos, público e privado. Nesse
truturalmente a ele, é caracterizado por uma sentido, as dicotomias operam, dentro do ima-
visão generalizada e preconceituosa de si e de ginário consensual e ideal, partindo de relações
sua trajetória, assim como os agentes privados e desdobramentos que anulam as polissemias
dos shoppings. semânticas que compõem a complexidade da
vida real. O uso das dicotomias norteia o pro-
“[Maycon] Ah! De boa os cara encana no
cedimento do policial e do vigilante privado, vai
jeito nosso, mas no nosso não vai arruma
ao encontro de composições conceituais que
nada, nóis não tem passagem, não deve.
produzem violência.
É que os caras só... É por causa do estilo
que chama atenção, essa é a verdade. É No Brasil, o surgimento oficial dos agentes
por... tipo assim, tem cara que anda cheio de segurança privada, os chamados “vigilantes”,
de tatuagem. “Ah.... tem jeito de margi- foi em 1969 e seu crescimento foi significativo
nal” mas não sabe, entendeu? [Eu] É um até os dias atuais, segundo Zanetic (2009). O
4 estilo que não dá pra mudar? [Maycon] autor também destaca que o contingente des-
É.... cada um tem um, tem o seu estilo”. ses agentes vem ultrapassando o número so-
(Entrevista realizada em 27/05/2017). mado de policiais estaduais e federais. No que
tange ao problema da Segurança Pública, junto
O início de sua resposta “Ah! De boa ...”, de-
dos números de escolas de formação de agen-
monstra um olhar que pode ser compreendido
tes privados vem crescendo também o número
pela ideia de “sujeição criminal” (MISSE, 2010),
de vigilantes que agem à margem da lei. Outro
não como um olhar naturalizado sobre a arbi-
aspecto que o autor salienta é que não existe
trariedade policial, mas para além de um tipo de
uma norma clara dentro do código de Seguran-
rótulo arbitrário, existe uma certa legitimidade
ça Pública que regula as trocas de informações,
na estruturação da produção social da sujeição
como o atendimento da polícia realizado através
criminal, pois tem que fazer sentido até mes-
de chamadas dos vigilantes ou outras formas de
mo para o acusado. Esse jeito destacado pelo
cooperação. A vigilância especializada, como em
entrevistado é um estilo que presente a uma
shopping, está centrada na proteção e controle
estrutura que está atribuído a tipos sociais que
de entradas e saídas dos estabelecimentos, de
configuram estereótipos, são eles “marginais”,
pessoas e materiais. Além disso, as escolas de
25
formação de vigilância ajudam os agentes nas maravilhosa!
formas de coletas de dados que são relevan-
[Eu] Então, você acha que o motivo das
tes às investigações policiais. Por esse sentido,
pessoas de não...
pode-se afirmar que o procedimento dos vigi-
lantes podem influenciar as estatísticas oficiais [Karina] Acho que são pessoas sem ma-
de modo a deixar ainda mais claro que atuação turidade mental, né?
da segurança privada, apesar de possuir suas [Eu] Porque tem parente acha...
especificidades, está alinhada aos procedimen-
tos padrões do policiamento público, que por [Karina] É, acha bonito isso. Pra mim, eu
vezes, paradoxalmente torna possível atuações prefiro ficar do lado do polícia”. (Entrevis-
à margem da lei, e a punição propriamente dita ta realizada em 27/05/2017).
por parte desses vigilantes. A compreensão de Karina ao olhar a pro-
fissão do policial é reconhecê-la como algo
admirável ao mesmo tempo indiferente por-
FAMÍLIA DE BANDIDO E AÇÃO POLICIAL que “não faz diferença” para ela, visto que não
“A polícia invade a casa [da família do faz “coisa errada”. Ela entende que as pessoas
“bandido”]. Eles teriam sido presos, se já que odeiam a profissão do policial “querem co-
não estivessem presos. A mãe tenta ar- brir essas coisas erradas”. Nesse sentido, não
gumentar, se irrita. O marido é agredido “odiar” o policial é assumir as “coisas erradas”
a ponto de perder dois dentes, e se os feitas pelo parente ou amigo que é o verdadeiro
vizinhos não vêm todos ao portão, gri- sujeito infrator, assim como é também assumir
tar que ele é “trabalhador”, talvez tivesse um “lado”, como foi a postura dela que prefere
sido pior. Abordagem policial em “casa de ficar “do lado do polícia”. Levando isso em con-
bandido” é assim. A família de histórico sideração, essa perspectiva coloca que a visão
tão “trabalhador”, no olhar das forças sobre o policial entre o “ódio” e o “maravilhoso”
da ordem já tinha mudado de estatuto”. está vinculada ao campo dos afetos, pois não
(FELTRAN, 2008, p. 139). tem “maturidade mental” quem “odeia” policial,
visto que odiar o policial é um ato movido pelo
A dicotomia trabalhador e bandido opera
afeto.
em uma lógica estereotipada que constitui o
imaginário da segurança, desse modo o corpo Assim, dentro das categorias essencializa-
que sofre com a ilegalidade é o corpo dos seus das (CALDEIRA, 2000) é possível perceber que
semelhantes também: “Irmãos, amigos, paren- Karina as utiliza para entender as relações so-
tes, aqueles que têm a mesma cor, vestem-se ciais que tramam os discursos da criminalida-
da mesma forma” (FELTRAN, 2008, p. 139). O de. De forma dicotômica ela expressa um lugar
olhar para essa relação entre familiares e “ban- para o infrator e outro para o policial, e nesses
didos” teve um novo destaque quando entre- lugares é possível ter uma posição, um “lado”,
vistei Karina. Ela é a namorada do Maycon, tem sendo que a posição correta é o lado do policial.
19 anos e trabalha em uma sorveteria dentro Feltran (2008) pode oferecer uma contribuição
do Shopping Dom Pedro em Campinas. Per- a essa discussão; é possível perceber que o
guntei a ela o que ela achava da profissão do corpo dos parentes e amigos será visto como 26
policial. extensão do “bandido”, portanto, o campo dos
afetos também sofrerá. Mesmo que a catego-
“[Karina] Eu, eu vejo maravilhosa! As-
ria “trabalhador” seja instrumento de direitos, a
sim, não faz diferença pra mim, porque
categoria “casa do bandido” eclipsará o histórico
eu não faço alguma coisa de errado. Daí
“tão trabalhador” da família. Ao perguntar tam-
é contra, igual que eu pensei esses dias
bém para Maycon sobre o que ele achava da
atrás. Eu tava conversando com a minha
profissão do policial, fica evidente a sua posição:
mãe, os povos odiarem tanto os policiais.
É porque sempre alguém, parentes, ami- “[Maycon] Eu sou contra, acho que eles
gos fazem algo de errado, e essas pes- abusam muita da... como se diz?
soas querem cobrir essas coisas de er- [Karina] Alguns...
rado, acusando esse policiais, sendo que
quem tá fazendo as coisas errado é a [Maycon] Ah! Abusa muito Karina, muito!
pessoa que tá presa, né. Então, eu acho Meu Deus! Eu já cansei de tomar enqua-
que pra mim o policial é uma profissão dro na rua, eles aproveitam. Eu não te-
nho passagem, eu não tenho nada, eles
26
chega: E essa sua cara aí? Daí eu falo, MEDO DO CRIME OU FÁBRICA DE MUROS:
não tenho passagem e eles falam: E a ENTRE PÚBLICO, MEIO PRIVADO E MAIS
sua cara de bandido? Só por causa do PRIVADO O QUE SE ESPERA É UM LUGAR
estilo, tatuagem, essas coisas. Aí se nóis SEGURO DEPOIS DO SERVIÇO
retruca, daí nóis escuta, se não apanha.
O consumo é um dos aspectos importan-
E aí?
tes da vida urbana, sobretudo na construção
[Karina] É igual eu falei, o estilo, as pes- identitária dos sujeitos, pois “regula relações
soas mancharam o estilo. sociais e define cartografias culturais pelos sig-
nificados simbólicos que carregam.” (DE BRA-
[Maycon] Ah! Mesmo assim, não sou a
GANÇA, 2015, p. 149). No entanto, essa visão
favor não.
sobre o consumo não é sempre a mesma. A
[Karina] Ah! Eles nunca sabe quem tá circulação midiática e as estratégias de marke-
atrás dá... ting configuram em tempos atuais o consumo
[Maycon] Ah! Eles tinham que saber che- como um fenômeno para experienciar social-
gar com educação, né? mente a modernidade na produção identitária
do sujeito. Dessa forma, o consumo tem um
[Karina] Ah! Eles nunca sabem quem tá potencial empoderador, sobretudo em relação
por trás [do estilo]”. (Entrevista realizada às classes populares que têm sido atingidas
em 27/05/2017). com mais visibilidade no mercado midiático e de
A dimensão do abuso policial para Maycon consumo (DE BRAGANÇA, 2015). Por sua vez,
está atrelada ao fato dos policiais agirem sem a ideia de cidadania para as classes populares
educação, mas Karina compreende que o esti- está atrelada ao sentido empoderador com que
lo marca um lugar possível de espreita. Desse elas podem experienciar a modernidade. Logo,
modo, os policiais nunca sabem quem tá por para esses jovens de classes populares, traba-
trás se é um marginal ou, no caso do Maycon, lhadores, a relação de estratégia de marketing
trabalhador. Mas Karina não leva em conside- vinculado ao consumo de massas e o aumento
ração o fato de nunca ter sofrido enquadro na de poder de compra, corroboram a construção
rua, ao contrário do seu namorado que é ne- de uma cidadania pautada pelo consumo. Em
gro e que sofre enquadro mesmo apresentando função disso, a reivindicação da categoria “tra-
um histórico tão trabalhador. O abuso está no balhador” descrita por Feltran (2008), aquele
procedimento de “não saber chegar com edu- que presente nos movimentos sociais lutava
cação”, determinar e interpretar Maycon com por serviços públicos na época da redemocrati-
cara de bandido. O entrevistado, no entanto, zação na década de 1980, sofre alterações. Sob
não coloca a sua negritude como uma questão novas circunstâncias, negligenciamento policial
relevante, mas sim o seu estilo. Disso, pode-se em shoppings, o “sou trabalhador” ganha novas
perceber que “A naturalização das desigualda- características e enfatiza questões contempo-
des entre branco e não-brancos no Brasil per- râneas, vincula a categoria ao poder econômico,
dura, na medida em que, ainda há dificuldade no ao consumo. O objetivo continua, de certa for-
nível de identidade e de mobilização racial, mes- ma o mesmo: legitimar a circulação e reivindi-
6 mo havendo um aumento na autodeclaração de car direitos, antes mais centrados em espaços
negros” (LONGO, 2012, p. 3). Disso, é possível públicos, como a criação de creches e hospitais
entender que o reconhecimento do pertenci- no bairro, hoje se mostra uma categoria reivin-
mento étnico-racial traz à juventude também dicando lugares e serviços mais privados, como
um reconhecimento das diferenças e subjeti- o shopping.
vidade própria e a valorização delas (idem). No Ao perguntar para Maycon o porquê de fre-
entanto, e por meio da fala de Maycon, é inte- quentar o shopping, a sua resposta evidencia
ressante perceber que mesmo não atribuindo que o intuito era a socialização. Para além do
diretamente sua negritude à arbitrariedade po- consumo, o shopping oferece uma alternativa
licial, ao defender e valorizar o seu estilo ele re- de lazer para a juventude, visto que não exis-
força também um tipo de reconhecimento das tem muitas alternativas oferecidas pelos apa-
diferentes subjetividades que estão imbricados relhos estatais:
na experiência social. Dessa forma, ele explicita
na prática que a subjetividade do indivíduo está “[Maycon] Faz tempo que eu vou em
separado da objetividade do sistema (DUBET, Shopping. Vou todo dia.
1996, apud SETTON, 2005). [Karina] Ele vem me buscar.

27
[Maycon] Mas antes disso eu era... em o benefício da proteção dos seus semelhantes,
todo final de semana, não tinha nada pois, “se não é possível o mesmo grau de exclu-
pra fazer depois do serviço. Você quer são que existia antes, que pelo menos se criem
distrair a mente. Eu vim pra conversar, espaços protegidos de exclusão, onde os iguais
conhecer pessoa, entendeu? É isso. se sintam seguros” (CALDEIRA, 1991, p.173).
Os espaços privados da urbanidade não são
[Eu] Você nunca pensou em outros lu-
somente uma expressão de insegurança, mas
gares?
uma forma física de impor uma distância social,
[Maycon] Ah! Porque não tinha opção, e por meio dela assegurar os privilégios. Por
tipo assim, eu até fazia em outros luga- esse ângulo, ao perguntar para Karina e May-
res, mas tipo assim, mas não tinha se- con sobre que tipo de espaço é o shopping, se
gurança. Tendeu? é público ou privado, eles responderam.
[Eu] Como assim segurança? “[Maycon] É público, pra mim é público.
[Maycon] Nóis fazia em outro local [o [Karina] Eu acho que é meio privado.
rolezinho], não tinha segurança. Tendeu? Acho que vem muita família, né?
Às vezes você vai fazer um evento e não
[Eu] É privado porque vem muita família?
tem segurança. Nego quer fazer o que
quer, usar droga, aqui não. O negócio era [Karina] É..Acho que deveria ser mais
só vim aqui conhecer as pessoas”. (En- privado.
trevista realizada em 27/05/2017).
[Eu] Você acha que os espaços privados
Verifica-se que um dos motivos pelos quais são feitos para a família?
o shopping se torna um bom lugar para a socia-
[Karina] Sim.
lização é a segurança que ele oferece. Esse fato
está atrelado à insegurança que outros lugares [Eu] E você, Maycon?
podem oferecer, pelo fato de alguém “querer [Maycon] Ah! É aqui ó! O povo vem a
fazer o que quer”. A segurança nesse caso pode hora que quiser, eu acho”. (Entrevista
estar fundamentada como um dos direitos a realizada em 27/05/2017).
ser usufruído e, mais do que isso, essa ideia
presta reverência à construção de um espaço As respostas apontam para dimensões que,
protegido dentro de uma lógica privada. À luz num primeiro momento, podem ser entendidas
de Caldeira (1991, p, 172), compreende-se que a como opostas e, nesse aspecto, pode-se com-
lógica privada foi uma resposta da elite à “inva- preender que o shopping possui características
são indevida da cidade e do espaço da cidada- de um espaço público e privado. Nesse senti-
nia pelas camadas populares e pelas minorias”. do, é possível interpretar o shopping não mais
Visto isso, a construção de ambientes privados como um espaço dentro da distinção público-
é um processo que também tem um caráter de -privado (CANEVACCI, 2009, p. 13), de modo
manutenção dos privilégios de classe. Foi por que as questões que se manifestarem nele es-
meio do discurso da criminalidade e da falta de tarão atreladas ao duplo pertencimento, ao pú-
segurança que a lógica privada consolidou, de blico e ao privado. A resposta da Karina coloca
forma produtiva, o discurso típico de proteção uma perspectiva que enfatiza um tipo de públi- 28
e manutenção dos privilégios da burguesia. A co que frequenta o shopping, a família, diante
lógica privada desenvolveu e influenciou novas disso, ela entende que o lugar “deveria ser mais
ordenações nos espaços urbanos. privado”. Os aspectos que Karina ressalta ao
fazer essa reflexão podem ser compreendidos
À despeito do discurso do aumento da cri- no campo da segurança. Observa-se, a partir
minalidade e, por conseguinte, a sensação de dessa perspectiva, que o discurso da crimina-
insegurança, resultou no abandono dos espaços lidade opera na ordenação dos espaços urba-
públicos da cidade, não apenas pelas classes nos, isto é, como a narrativa do crime ajuda a
mais altas, mas também pelas classes popu- proliferar os ambientes privados ou ambientes
lares. Nesse sentido, a dimensão do privado destinados a determinados sujeitos com o ob-
(condomínios e shoppings) tem se configurado jetivo de produzir segurança. Esse movimento é
no imaginário da população no geral como am- expresso pela fala de Karina, o seu argumento
bientes seguros, mesmo que isso implique na orienta-se em busca por reorganização dos es-
vigilância e que sejam excluídos determinados paços dos espaços, pois a narrativa da violência
tipos de pessoas para que seja salvaguardado proporciona a modificação do mundo geografi-
28
camente e simbolicamente para se combater o [Letícia] Que... ela falou as nossas carac-
crime e assegurar a segurança, principalmen- terísticas e... enquadrou a gente
te quando o enfoque é a família (CALDEIRA,
[Lohana] Que batia com a gente.
2000). Sobretudo, mesmo com a busca pelas
reorganizações do mundo, as dicotomias ainda [Lara] É as características da gente [des-
permeiam o imaginário como ferramenta dessa critas pela moça] batia com a nossa.
reorganização, de maneira que a ideia de família [Eu] Quais as características?
no âmbito dos significados está vinculado ao
privado, que por sua vez configura a ideia de [Lohana] A gente tava de calça Legging
segurança. Embora a fala de Karina não tenha preta e blusa normal de malha, e falou:
sido incisiva, pois coloca que “acha ser meio três moças são assim e assado.
privado” o shopping, isso reflete que a relação [Eu] É bem genérico essa descrição. Por
dicotômica público-privado não abarca precisa- qual motivo vocês acham que vocês fo-
mente como os espaços estão desenhados no ram paradas pelo policial?
meio urbano, ao passo que as reflexões dicotô-
[Letícia] Acho que foi por causa das ca-
micas ainda são acionadas como instrumento
racterísticas que batia muito com a gen-
de reorganização do mundo.
te, a gente tava igualzinha. Ele até falou,
se a gente tivesse com essas roupas e
A TUTELA SOBRE AS “CARACTERÍSTICAS” ela tivesse falado outras características,
ele não ia parar a gente. Porque a gente
A narrativa sobre o crime e as dimensões só perguntou a hora.
que ela suscita pode ser evidenciada pelo re-
lato de Lara, Lohana e Letícia. As entrevistas [Eu] Sim, mas porque você acha que ela
com as três jovens estudantes foram coletadas se sentiu...
no shopping Dom Pedro e ajudam a entender [Lara] Ela se sentiu com o preconceito
como a narrativa da criminalidade produz tipos dela.
de comportamento que não necessariamente
[Lohana] Por ser jovem, pro preconceito
tenham o envolvimento de um ato infracional.
dela.
“[Lara] A gente tava fazendo caminhada
[Letícia] É porque ela [aponta para a
[em uma praça pública], a gente pergun-
Lara] perguntou a hora, e como a gen-
tou horas pra moça, ela ficou tipo assus-
te tava correndo ela chegou muito perto
tada com a gente, ela tipo, ficou olhando
da mulher. Tipo “moça que horas são?””
até feio e... ela disse que a gente assaltou
Quase em cima dela. (Entrevista realiza-
ela pra alguns policiais na rua.
da em: 03/06/2017).
[Eu] Como assim, ela mentiu?
O relato das jovens, por não ter um ato infra-
[Lara] É.... cional, evidencia que o discurso da criminalidade
[Letícia] Daí [os policiais] perguntaram produz uma compreensão da cidade urbana que
pra gente se a gente tinha assaltado ela. opera em comportamentos correspondentes à
8 criminalidade. Pode-se entender que a “moça”,
[Lara] Um Cara perguntou 10 vezes se a diante das jovens, se sentiu insegura a ponto
gente tinha assaltado ela, e a gente disse de mentir para polícia. A insegurança da moça
que não. Se a gente realmente [tivesse] reflete, segundo Lohana e Lara, o “preconceito”
assaltado ela e a gente tipo “não, mano”. dela, e, por sua vez, a mentira da “moça” ex-
Aí eles foram, chamaram outro carro, e pressa uma concretude do como ela interpreta
perguntou novamente, o outro cara [ou- as jovens nos espaços urbanos. Essa situação
tro policial], e ele veio seguindo a gente permite pensar as fronteiras entre o “suspeito”
até a metade do caminho da nossa casa. e o “infrator”, isto é, como esses dois estigmas
[Lohana] Pra vê se a gente ia fazer algu- pertencem ao mesmo campo de maneira tão
ma coisa. Eu- o policial tinha falado pra íntima no discurso da criminalidade que ope-
vocês que ela tinha dito isso? ram de forma quase idêntica. As jovens foram
inicialmente vistas como infratoras, visto que
[Lara] Foi. Aí ele disse que uma moça ti-
teriam roubado o celular da “moça”, em seguida,
nha falado que vocês [a gente] acabaram
verificado que o roubo não era verdade, os poli-
de roubar o celular dela.
ciais consideraram elas como “suspeitas”. O que

29
se pode interpretar, a grosso modo, da situação, les que vivem na pobreza é criminalizado - e
é que a fala mentirosa da “moça” se sobrepôs à os negros, são, demograficamente, mais nume-
fala das jovens. Isso devido, segundo as jovens, rosos entre os pobres - eles acabam por ser
à descrição que “batia muito”, isto é, as carac- duplamente discriminados” (LIMA, 2004, p. 61).
terísticas das três jovens foram essencializadas
Desenvolveu-se no imaginário de seguran-
para um perfil suspeito. Desse modo, ao que
ça um construto “envolvido-com” (CECHETTO;
parece a principal causa do enquadro foram as
MUNIZ; MONTEIRO, 2018) que circunscreve a
“características”, segundo a fala do policial. Isso
juventude das classes pobres. Infelizmente, não
reflete uma postura dos aparelhos do Estado,
há novidade na literatura entre a associação do
que se configuram em um procedimento que é
crime com a juventude pobre, mas por um lado
possível por meio dos dispositivos de exceção
o que se tem ocorrido é a essencialização da
(TELLES, 2010), isto é, ao assegurar os direitos
origem do crime e da juventude pobre, ambos
de alguns, da “moça”, se põem sobre o direito
vêm do mesmo lugar, da favela. Dessa forma,
de outros, das jovens, que pode ser exercido
para assegurar que o jovem morador de favela
através da tutela.
não tenha envolvimento com o crime, ele anda
A construção da burocracia do Sistema de por suas ruas com “carteira de trabalho e de
Justiça Brasileiro se vale de um modelo que no estudante, bíblia e camiseta de projeto” (CE-
passado foi pautado na “tutela”. Ela foi vigente CHETTO; MUNIZ; MONTEIRO, 2018, p. 109).
no Código Civil Brasileiro até o início de 2003, A tutela é constante sobre os jovens que, por
acreditando-se que determinados grupos so- pertencerem ao mesmo lugar que se origina o
ciais deveriam sofrer “tutela” pelo Estado ou crime organizado, são compreendidos pelo Es-
pelo chefe de família. “Assim, mulheres, crianças tado como vulneráveis. Nesse sentido, qualquer
e adolescente, indivíduos com problemas físicos tipo de exacerbação juvenil é entendido como
e/ou mentais, bem como toda sorte de indiví- uma ameaça ao projeto civilizatório nas comu-
duos que poderiam merecer a atenção especial nidades carentes.
do Estado, seriam alvo das agências de controle
social” (LIMA, 2004, p. 64). Porém, a superação
dela não incrementou novas formas de postura HUMANIZAR PARA TRABALHAR – DEVER
da sociedade, contudo, a compreensão dessa DO POLICIAL, NÃO O DEIXAM TRABALHAR
forma que foi pautada na justiça brasileira traz A entrevista com o Rogério, de 20 anos, alu-
reflexões que vão ao encontro da situação vi- no do Cursinho Popular Dandara dos Palmares
venciada pelas jovens. Isso é ilustrado por Lara, em Campinas, vai ao encontro de tentar escla-
ela percebe que a “moça” tinha “preconceito” e recer o preconceito dos jovens com os policiais.
que isso estava vinculado, segundo Lohana, por Ele está no segundo ano na Escola de Cade-
ser “jovem”, fez com que a “moça” acionasse a tes em Campinas, e, mesmo com pouco tempo
polícia, e isso resultou no enquadro e o policial e em processo de aprendizagem, já consegue
“veio seguindo [elas] até a metade do caminho” perceber a maneira que parcela da população
da casa. Essa postura retrata como ainda está olha para a polícia.
disseminada nos métodos dos agentes de se-
gurança pública a “tutela”. Não ocorreu o roubo, “[Rogério] [risos] Éééé pelo que eu, pelo
que me falam, e gente de qualquer.... 30
mas o comportamento dos agentes envolvidos,
da suposta pessoa roubada e dos policiais ca- Muito jovem, que que não gosta, né. Mui-
racteriza um “controle social” ainda vigente. ta gente é contra a polícia militar, jovem!
Que muito jovem é contra a polícia mi-
O policiamento (público e privado) está pre- litar, muito jovem que é contra o exér-
sente dentro de uma infinidade de formas em cito, né. Eeee não confia, né. Assim, de
que o “controle social” opera. Por esse ângulo, o fato o pessoal não gosta, né. Fala aaaa...
policiamento é uma força de segurança que ofe- me chama de fascista, xinga, ééé agem
rece sustentação ao “controle social” (ZANETIC, como se nós nós nós fossemos opresso-
2010, p. 45). O exercício do controle policial pode res mesmo. Tem gente que não respeita
ter se expressado sob alguns pressupostos não e tem gente que respeita não é?
manifestados pela fala das jovens e nem pela
fala dos policiais, o fato de que as jovens eram [Eu] Você fala que parece que a juventu-
negras. Esse marcador social é muito caro para de é maior...
a história brasileira, sobretudo na construção [Rogério] Tem muita gente que olha feio.
democrática do país. “O comportamento daque- Principalmente quando se anda fardado
30
assim na rua, éé tem muita gente que [Eu] Peraí, desculpa, é que você falou que
olha feio, principalmente jovem. tem que fazer valer a lei do outro, né...
[Rogério] Não, não do outro, ele [policial]
[Eu] Sim, e os mais velhos?
tem que valer a lei de todo mundo, ele
[Rogério] Os mais velhos admiram, tem não quis tirar o pessoal do protesto, ele...
gente que até perguntam, vários, vem o policial... ele... eu vi os policiais, indo e
falar comigo na rua quando tô farda- pedindo por educação que o pessoal re-
do. “O exército bom” eee parabenizam tirar, tirar... pelo menos pra deixar uma
por ser militar... gente mais de idade, né. parte da via, pediram que pediram que
Agora de gente mais jovem, já é ao con- pediram, não se retiraram. O que que
trário [risos]”. ele vai fazer? Ele tem que valer o direito
Uma análise feita por Rogério sobre um ato tanto de um quanto de outro. Tá ele vai
que ocorreu em Belo Horizonte, do movimento (..) Então, o policial infelizmente tem que
Passe Livre em 2013, suscita reflexões perti- usar força...”
nentes para se entender a atuação policial em Pode-se observar que o “dever do policial”,
tempos democráticos. a partir da análise de Rogério, está ligado inti-
“[Rogério] Aí a polícia tava pedindo pra mamente à manutenção dos direitos de todos
que dos ocupantes da via do protesto os cidadãos e que, um dos instrumentos para
fosse liberada uma via, uma faixa da via a realização da manutenção, é a força. O que
pra que possa circular os carros, né. E tange o imaginário sobre a segurança, sobre-
eles foram pedir pro pessoal da mani- tudo na figura do policial, é que a polícia deve
festação, se retirar de uma faixa da via, ser “dura”, isto é, o uso da violência é legitima-
sendo que a via tinha 4 faixas. E eles pe- do por meio desse discurso pautado nos di-
diram pra tirar uma (...) deixar uma para reitos salvaguardados. Assim, “Paradoxalmente,
via pra circular o movimento, porque a mesmo as camadas trabalhadoras, que são as
cidade parou. (...) a cidade ficou um trân- principais vítimas dessa violência, apoiam al-
sito do caramba. O dever do policial é fa- gumas de suas formas” (CALDEIRA, 2000, p.
zer valer as leis, os direitos dos cidadãos. 136). Dessa forma, o apoio que se tem da po-
Tá ele deixou o policial manter a mani- pulação legitima os abusos policiais configuram
festação que é direito deles só que.... E o um padrão cultural (CALDEIRA, 2000, p. 136).
outro pessoal também não vai fazer va- A fala de Rogério permite analisar que, quan-
ler os direitos dele?, eles também [têm] do não se respeita o direito do “outro” não se
esse direito, o direito de ir e vir. Eles têm pode “valer” o próprio direito. Nesse sentido, o
que pelo menos liberar uma faixa, para policial tem que “fazer valer as leis, os direitos
que valha, que compense os direitos de- dos cidadãos”, mesmo que pela força. A ação
les também, dos outros. Só que o pes- policial, nessa perspectiva, seria para evitar a
soal do protesto, eles eles não liberaram. “Anarquia”, isto é, evitar que as leis e direitos
Então o policial ele tem que valer da lei sejam suspensos. Dessa forma, a instituição da
e dos direitos. Então se o pessoal não ordem se desenha, pautada pelo discurso de
0 quis sair, infelizmente, o policial tem que “fazer valer” os direitos que são institucionali-
usar a força. Porque se não isso vira uma zados nas leis.
anarquia, a é, eles chegaram e pediram, Há um outro ponto sobre a organização
por favor retire, deixe uma parte da via policial que se pode salientar. No período de
para que o movimento possa circular, ah democratização pós-ditadura militar houve a
não vão sair, não vão sair, não vão sair. implementação de mulheres nas corporações.
(...) [anarquia] É ... se a polícia não usa Essa medida foi incorporada com o intuído de
a força, se o pessoal continuar.. pá... vai tornar a polícia mais “humanizada” e construir
continuar quebrando, vai continuar ba- uma nova ideia sobre os policiais na tentativa
dernando, não vai fazer valer o direito do de desvinculá-los ao período ditatorial (SOA-
outro, isso é uma anarquia. Porque porra, RES; MUSUMECI, 2005). Essa ideia pode ser
não vai valer os direitos e nem as leis.... reinterpretada com um relato de uma aluna,
Nem a lei... porque porra tem que seguir... Taís, 21 anos, do Cursinho Popular de Campi-
éééé... Que nem, o policial tem que se- nas. O relato da aluna contribui com a imagem
guir... tem que seguir... conforme as leis. “dura” da polícia e, assim, permite refletir como
Então.. se organizam com duas dimensões, o processo
31
da “humanização” e da “violência” policial. outro no outro lado, daí eu virei de novo.
Ela pegou no meu rosto, porque eu tava
“[Taís] (...) eu já apanhei da polícia. (...) É
assim [olhando pra baixo], aí ela pegou
que assim, eu tava no CC [centro de
no meu rosto e virou assim, daí ela ficou
convivência cultural de Campinas] Aí a
zombando do tipo “ah.... você vai melho-
gente tava em umas 10 pessoas, sabe?
rar (...)” (...) “Vai melhorar, vai melhorar...vai
E a polícia foi lá enquadrar a gente, e fa-
lá no fim da fila agora” Daí tipo, depois
lou que alguém tava com droga lá eeee
que ela terminou de revistar todas as
eles queriam descobrir de quem era. Aí
meninas, o meu olho estava escorrendo
tinha tinha um policial homem e uma
horrores, assim,. Aí ela foi lá, tipo, na mi-
policial mulher. Daí, eles falaram assim,
nha frente, pegava no meu rosto, e tipo,
as meninas pra lá e os meninos pra cá
dava uns tapinhas e dizia “vai melhorar,
e a gente vai revistar vocês. E eles fala-
bebê” e não sei o que, sabe? Isso só pela
ram assim se vocês tiverem com alguma
minha aparência, porque tipo, tava livre,
coisa a gente leva vocês. Aí na hora que
tipo, o bonde todo, porque ninguém tinha
falaram meninos de um lado e meninas
nada. O cara lá revistou todos os mole-
do outro eu fui do lado das meninas, né?
ques, ela revistou todas as garotas e de
Só que tipo, todas eram bem garotinhas.
boa, e tipo, comigo ela ficou zombando.
Né? A minha aparência é bem diferente.
Tipo, por motivo nenhum. (...) Cheguei em
A mulher falou assim, eu era a última da
casa ainda, tive que falar pra minha mãe
fila. Meio que formou uma fila, ela fa-
que eu tava com conjuntivite, porque se
lou assim, “Você é mulher?” Olhando pra
não eu ainda apanhava dela também”.
mim, eu falei “sou”. “Ah, então vem aqui
na frente que você vai ser a primeira” A noção de “humanizar” a polícia pode ser
Aí eu fui, aí ela falou assim “como você entendida como uma medida para aproximar a
se chama?” Daí eu falei “Eu me chamo população do corpo policial. A figura da mulher
Taís”, daí ela falou não sei o que “Você policial seria, dessa forma, uma tentativa de
não parece uma mulher” (...) Daí eu falei construir uma imagem “humanizada” ao público
“sou eu” ... ela ficou, tipo, zombando, me (SOARES; MUSUMECI, 2005, p. 116), porém, o
humilhando, sabe? Aí ela falou assim “ uso da violência é algo imprescindível como mé-
Cê tá ligada que isso é errado, né?. Você todo policial, visto a fala de Rogério. Posto isso,
não pode ser assim” Daí eu perguntei o relato de Taís contesta a ideia essencializan-
“como?”. Aí ela me disse “Você está me te de que a mulher possui a imagem da “doce
desafiando? Tô falando que você não mãezinha”. Ao contrário, as mulheres policiais
pode agir igual homem “(...) Só fui, tipo, são “duras, severas e inflexíveis aplicadoras da
concordando, né? Daí ela pegou e falou lei” (SOARES; MUSUMECI, 2005, p. 122). A ideia
tipo a “põe a mão na cabeça que eu vou da mulher essencialmente ligada à figura ma-
te revistar” Só que tipo, na hora que eu terna, ou seja, de amabilidade, foi questionada
ia abrir a perna eu pisei tipo num buraco pelo receio de Taís de “apanhar em casa”.
que tinha no chão, sabe? Aí eu meio que
A aplicação da lei se estende para outras
tombei, ela achou que eu ia dar, sei lá, 32
instâncias institucionalizadas na sociedade
algum golpe nela, algum tapa nela [risa-
como, por exemplo, a situação vivida por Taís.
das] (...), ela falou assim “Fica direito”. Aí
Inicialmente, o “bonde” sofreu enquadro devido
eu levantei e ela me deu um maior tapão,
à afirmação dos policiais que “falou que alguém
bem aqui em cima [ela apontou para o
tava com droga”, por esse ângulo, entende-se
rosto] Ela me deu um maior tapão, daí eu
que a suspeita estava formulada. No caso es-
virei com tudo. E ela falou assim “Isso é
pecífico de Taís, ela se destacou do “bonde” por
pra você aprender, é pra você virar mu-
não ser tão “garotinha”. A arbitrariedade policial
lher”. Só que, tipo, pegou bem em cheio
se deu sob um marcador de gênero, não devido
no meu olho, daí eu fiquei olhando tipo
ao porte de droga, mas por não ser feminina.
pro lado, daí ela disse “levanta a cabeça”,
Isso evidencia uma clivagem da atuação policial,
na hora que eu levantei, como pegou no
que também tem como objetivo a manutenção
meu olho eu comecei a lacrimejar, daí eu
do normativo, algo institucionalizado na socie-
olhei pra ela e começou a escorrer uma
dade.
lágrima, assim. Aí ela disse “você tá cho-
rando? Ah... coitada” Daí ela pegou e deu

32
CONSIDERAÇÕES FINAIS atuação policial no Brasil opera por lógicas con-
flituosas: uma oficial, que diz respeito às leis; e a
A coleta de dados e as reflexões foram de-
outra informal ou até mesmo ilegal, que consi-
senvolvidas por tornar evidente que a constru-
dera as hierarquias sociais. Portanto, é conside-
ção do policiamento público da democracia bra-
rável pensar que a atuação policial que leva em
sileira está pautada por um padrão de abusos
conta as hierarquias sociais para a resolução de
histórico, no qual constituem-se as instituições
conflitos é algo apoiado por parte da sociedade
intimamente ligadas à dominação de classe,
e pelos próprios jovens subjugados. Dessa for-
em que se constroem o padrão dos direitos da
ma, pode-se defender privilégios e interesses,
cidadania (CALDEIRA, 2000, p. 137), de modo
sob o enclave de se proteger os direitos civis
que o policiamento privado também se vale da
(LIMA; BUENO; MINGARDI, 2016). O discurso
construção cultural. A polícia pública, de acordo
da criminalidade torna-se uma ferramenta le-
com as entrevistas, devem “satisfação à so-
gitimadora para que ocorram esses abusos ou
ciedade”, ao passo que, quando a atuação po-
defesa dos direitos civis, ao passo que a própria
licial era contestada pelos jovens, a polícia não
população, incluindo as classes populares que
apresentava a “satisfação”, isto é, não falava
mais sofrem com os abusos, reproduz o discur-
sobre os motivos que conduziram à atuação.
so. Visto isso, nenhum dos entrevistados deseja
Pode-se pensar que esses jovens não são li-
o fim do policiamento, eles reconhecem que os
dos como componentes da “sociedade” a que
policiais são necessários, entretanto, reconhe-
se deve “satisfação”, pois, são percebidos como
cem os abusos, ao passo que percebem que o
sujeitos suspeitos que não usufruem dos di-
poder do policial se vale da força que ele exerce,
reitos de cidadão e que por vezes podem ser
portanto, a violência também pode ser lida pela
tutelados, por isso, segundo Cecchetto, Muniz e
população como o exercício do poder policial. A
Monteiro (2018) o que resta à juventude pobre
polícia, nesse sentido, exerce um “poder discri-
é ser trabalhadora e esforçada.
minatório” (LIMA; BUENO; MINGARDI, 2016, p.
O conflito de como os jovens são vistos pela 60) que se vale de categorias essencializadas
polícia é expressão correspondente de como a para o estabelecimento dos suspeitos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. (1991), “Direitos humanos ou privilégios de bandidos’?”. Novos Estudos Cebrap, 3: páginas.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. (2000), Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Editora
34.

CANEVACCI, Massimo. (2009), “Comunicação entre corpos e metrópoles”. Signos do Consumo, 1,1: 8-20.

CECCHETTO, Fátima Regina; MUNIZ, Jacqueline de Oliveira; MONTEIRO, Rodrigo de Araujo. (2018), “Basta Tá Do Lado.
The Social Construction Of Those Involved In Crime”. Caderno CRH, 31, 82: 99-116.

TELLES, Vera da Silva. (2010), A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte, Argumentum.
2
DE BRAGANÇA, Mauricio. (2015), “Imagens de ostentação nas narconarrativas: consumo e cultura popular”. Rumores 9,
17: 147-163.

DE LIMA, Renato Sérgio; BUENO, Samira; MINGARDI, Guaracy. (2016),“Estado, polícias e segurança pública no Brasil”.
Revista Direito GV, 12,1: 49.

FELTRAN, Gabriel de Santis. (2008), Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo.
Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

LIMA, Renato Sérgio de. (2004), “Atributos raciais no funcionamento do Sistema de Justiça Criminal Paulista”. São Paulo
em Perspectiva, 18,1: 60-65.

LONGO, Isis S. O estigma dos três ps: pobre, preto, da periferia. A visão de adolescentes da Comunidade Heliópolis. In:
COLÓQUIO INTERNACIONAL CULTURAS JOVENS AFRO-BRASIL AMÉRICA: Encontros e Desencontros, 1., 2012, São
Paulo. Anais... São Paulo, 2012.

MISSE, Michel. “Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria” bandido””. Lua

33
Nova, 79, 2010.

PINHEIRO-MACHADO, Rosana; SCALCO, Lucia Mury. (2014), Rolezinhos: marcas, consumo e segregação no Brasil. Re-
vista Estudos Culturais, 1, 1.

SETTON, Maria da Graça Jacintho. (2005), “A particularidade do processo de socialização contemporâneo”. Tempo social,
17, 2: 335-350.

SOARES, Barbara Musumeci, and Leonarda Musumeci. (2005), Mulheres policiais: presença feminina na Polícia Militar do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

VELHO, Gilberto. (2013), Um antropólogo na cidade: ensaios de antropologia urbana. Rio de Janeiro, Zahar..

ZANETIC, André. (2009), “Segurança privada: características do setor e impacto sobre o policiamento”. Revista Brasileira
de Segurança Pública, 3, 1: 134-151.

Recebido em 30 de abril de 2019

Aprovado em 20 de agosto de 2019

34

34
Michael Lázaro Pe-
drozo da Silva
Graduando em Ci- A POLÍTICA DE COOPERAÇÃO CIENTÍFICA DOS BRICS EM CON-
ências Sociais pela SONÂNCIA COM OS INTERESSES DOS CIENTISTAS DA UNIVER-
Universidade Fe- SIDADE FEDERAL DA ZONA DA MATA MINEIRA
deral de Viçosa –
UFV.

Contato Resumo: A pesquisa teve como objetivo inicial compreender a formação de redes internacionais
<mailto:michael.pe- de pesquisa no âmbito do programa internacional de pós-graduação “​Universidade em Rede” dos
drozo@ufv.br> BRICS, através do acompanhamento dos pesquisadores de uma Universidade da Zona da Mata
que participavam do programa. Buscou-se entender as hierarquias entres laboratórios, os tipos de
Ilson Soares Costa dificuldades e as disparidades culturais que poderiam ocasionar os desafios dos pesquisadores em
Junior
internacionalizar o seu conhecimento. No entanto, a mudança no governo executivo federal levou o
Graduando em Ci-
ências Sociais pela Brasil a se desligar do programa da “Universidade em Rede”. A pesquisa passou, assim, a analisar
Universidade Fe- os motivos e os efeitos do término do programa.
deral de Viçosa -
UFV. Abstract: This research had an initial aim to understand the formation of international research
networks at the international postgraduate level of the University of BRICS, through the follow-up
Contato of the researchers at a university located in the Zona da Mata that participated in the program. It
<mailto :jrilson7 @ was sought to understand hierarchies in laboratories, the types of difficulties and the differences
gmail.com>
in relation to the role of researchers in internationalizing their knowledge. However, the change in
Orientadora: Danie- the federal executive government led Brazil to withdraw from the “Network University” program.
la Alves de Alves. The research then, began to analyze the reasons and effects of the program termination.
Doutora em Socio-
logia pela Univer-
sidade Federal do
INTRODUÇÃO mento neste programa? O objetivo principal foi
Rio Grande do Sul
- UFRS.
compreender as dificuldades dos pesquisadores
Universidade em Rede (NU) é um programa em internacionalizar seus conhecimentos, bem
Contato
internacional de cooperação educacional entre como verificar a formação de hierarquias entres
<alvesautomatic@ os países, Brasil, Rússia, Índia, China e África do laboratórios.
gmail.com> Sul (BRICS)1. Com a ascensão deste bloco eco-
nômico começaram as discussões sobre troca No entanto, em 2016 a crise política que
P a l av r a s - c h ave : de tecnologia e produção de conhecimento con- acarretou impedimento do governo da então
Cooperação Nor-
junto entre estes países. Os diálogos iniciados presidente Dilma Rousseff, teve como uma de
te-Sul; Cooperação suas consequências a descontinuidade do pro-
Sul-Sul; Governo;
em 2013 culminaram no edital do programa NU
pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pes- grama universidade em rede do BRICS, com
Internacionalização
do conhecimento; soal de Nível Superior (CAPES) em 2015 pro- a mudança no governo executivo federal ve-
Universidade em posto pelo então Ministro da Educação Aloizio rificou-se a retirada da participação brasileira
Rede. Mercadante. do NU. Com este acontecimento, passamos a
investigar os motivos da descontinuidade do
Keywords: Gover- A Universidade da Zona da Mata mineira programa em âmbito local2 e nacional3.
4 nment, Internatio- (doravante, universidade Y) reuniu três pro-
nalization of Know- gramas de pós-graduação com a classificação Como este programa possui uma dimensão
ledge; Network
7 pela CAPES, das seguintes áreas, engenha- internacional e foi um projeto inserido na agen-
University; North- da internacional em busca do desenvolvimento
-South Coopera-
ria florestal, engenharia agrária e fitotecnia,
e, abarcando essas três áreas, criou um novo científico, inclusive com importante apoio da​
tion; South-South
Cooperation. projeto de pós-graduação com viés em energia, Organização das Nações Unidas para Educação,
foi aprovada pelo edital do CAPES para partici- Ciência e Cultura (​UNESCO), a pesquisa procu-
par do programa da Universidade em Rede do rou indagar as formas de cooperação educacio-
BRICS. nal e os imbricamentos com os interesses dos
1 Agrupamento de
pesquisadores brasileiros em internacionalizar
países de mercado Desse modo, o objetivo da pesquisa era
emergente. seus conhecimentos.
acompanhar esse programa através do acom-
panhamento da atividade dos pesquisadores da No decorrer da pesquisa deparamos com a
2 Equipe do pro-
universidade Y, a fim de responder a seguinte política de Cooperação Internacional do Desen-
grama de bioener-
gia da universidade pergunta: através da cooperação científica es- volvimento (CID). Desse modo, fizemos uma
da zona da mata tabelecida pelos países membros dos BRICS, análise bibliográfica de autores que tratam
mineira. como se dava a internacionalização do conheci- dessa temática, isto nos levou a conhecer dois

35
conceitos importantes que se relacionam com cional de cooperação para o desenvolvimento
essa política. (CID) promovida pelos EUA, através do plano 3 Programa da
Universidade em
Marshall, que acabou por fazer deste uma lide-
O primeiro é a Cooperação Norte-Sul Rede promovido
rança do grupo capitalista.
(CNS), onde os países desenvolvidos, em teoria, pelo governo Fe-
levam o desenvolvimento econômico e tecno- De acordo Kleming (2014, p. 19) no contex- deral.
lógico para os países em desenvolvimento; e to do pós-guerra houve o apogeu da influên-
o segundo é a Cooperação Sul-Sul (CSS), que cia econômica norte americana sobre os países
consiste em uma cooperação entre os países europeus, tendo como principais preocupações
em desenvolvimento, em busca de autonomia a “reconstrução da Europa, a manutenção da
e independência dos países desenvolvidos. No paz e da segurança mundial”. Essas preocupa-
segundo tipo de cooperação compreende-se as ções levaram à criação do Plano Marshall e de
relações de pesquisa observadas neste artigo. uma instituição de auxílio para a recuperação
econômica da Europa, conhecida como Organi-
Para entender os interesses dos pesqui-
zação Europeia para a Cooperação Econômica
sadores da universidade Y, foram realizadas
(OECE).
(em 2016) entrevistas semiestruturadas com o
coordenador do programa e com o represen- A função da OECE, que surgiu em 1948,
tante dos assuntos de relações internacionais era gerir os recursos do Plano Marshall para
da universidade Y (nomes dos entrevistados a recuperação da economia dos países euro-
serão fictícios). Com o desligamento do Brasil peus que sofriam as consequências da guerra.
do programa entrevistamos em 2018, nova- Os 13 bilhões de dólares que foram disponibili-
mente, o representante de relações internacio- zados possibilitaram a capacitação de pessoas
nais. Tentamos o contato com o coordenador do na área científica e de tecnologia, e também na
programa, mas não tivemos o retorno. Também criação de sistema para retomada do comér-
fizemos uma análise documental da agenda do cio, possibilitando a estabilidade desses países
ex-ministro da Educação Aloísio Mercadante (KLEMING, 2014).
(do governo Dilma Rousseff) com o ex-ministro
Segundo Denis Pinto (2000), a OECE serviu
Mendonça Filho (do governo Michel Temer) no
bem ao seu propósito, já que as 18 potências
período de 2013 a 2018, a fim de compreen-
europeias foram reconstruídas. Então, em 1961,
der o desligamento. Outra fonte de dados foi a
a OECE torna-se ​Comitê de Ajuda ao Desen-
revisão dos relatórios de prestação de contas
volvimento da Organização para a Cooperação
de ações internacionais da universidade Y dos
e Desenvolvimento Econômico​CAD/OCDE,
anos 2010-2016.
possuindo “vocação” para ser “internacional”,
A primeira parte do artigo consiste em uma sendo um foro de “consulta e coordenação en-
análise histórica do surgimento dos conceitos tre países membros”, dedicando-se a solidificar
CNS e CSS pontuando os objetivos da políti- o modelo econômico liberal, “em​complemen-
ca da CID. Já na segunda parte, trataremos do tação ao instrumental de outras organizações
surgimento do grupo BRICS e a identificação e econômicas criadas em Bretton Woods – Fundo
de suas ambições no aumento de participação Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial
em fóruns internacionais e seu desdobramento eoG ​ eneral Agreement on Tariffs and Trade (​
36
gerando a criação programa do NU. Logo em GATT)” (PINTO, 2000, p. 18). Esse conjunto são
seguida, pontuamos as dificuldades da forma- de agências internacionais multilaterais.
lização do programa entre os pesquisadores
As potências europeias notaram que as
brasileiros com os pesquisadores estrangeiros
conquistas de reconstrução do plano Marshall
e, por fim, teceremos possibilidades sobre o
no pós-guerra estavam dependentes de um
desligamento brasileiro a partir dos dados ana-
processo de desenvolvimento no âmbito global.
lisados.
Este processo poderia assegurar estabilidade
crescente das suas economias e consolidar o
modelo econômico liberal de mercado (PINTO,
BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DAS COO-
2000). Os países membros da CAD/OCDE
PERAÇÕES NORTE-SUL (CNS) E SUL-SUL
“passaram a ser conhecidos como doadores
(CSS)
tradicionais, enquanto os países do chamado
A cooperação Norte-Sul (CNS) surge do terceiro mundo – mesmo sendo um grupamen-
contexto de polarização ideológica do pós-guer- to altamente heterogêneo – eram identificados
ra (Segunda Guerra Mundial), a política interna- como recipiendários” (SOUZA, 2014, p. 11). Nes-

36
se sentido, a política de cooperação internacio- somente semânticas, pois elas alteraram
nal para o desenvolvimento promovida por es- o modo como o mundo era visto. Até en-
ses países funcionava hierarquicamente já que tão, as relações Norte-Sul tinham sido
as posições de poder e os fluxos financeiros organizadas largamente de acordo com a
estavam desigualmente estabelecidos. oposição entre colonizador e colonizado.
A nova dicotomia entre desenvolvidos
Entretanto, a CAD/OCDE não foi a única
e subdesenvolvidos foi apresentada de
instituição a promover o desenvolvimento em
forma distinta. No lugar da subordinação
países considerados de terceiro mundo. No fim
da colônia à metrópole, cada Estado era
da Segunda Guerra Mundial, o mundo estava
agora igual em direitos, mesmo que não
em um momento crítico e necessitava resolver
fosse ainda de fato”
suas fragilidades, “estabelecer normas, discur-
sos, práticas, agendas e comportamentos de Neste contexto, o subdesenvolvimento se
atores definidos de maneira mais organizada, trata de um estágio incompleto, como se fosse
regular e previsível” (MILANI, 2014, p. 33). A uma fase embrionária, o qual não possui uma
institucionalização da Cooperação Internacional característica de oposição ao desenvolvimento.
do Desenvolvimento (CID) poderia solucionar “Uma aceleração do crescimento era tida como
essas emergências. o único caminho lógico para superar o subde-
senvolvimento” (KLEMING, 2014, p. 23). A pa-
Assim, em 1945, foi criada a primeira insti-
lavra desenvolvimento ganhou força, propondo
tuição intergovernamental, a Organização das
que os avanços científicos e os progressos in-
Nações Unidas (ONU), com o objetivo de pro-
dustriais deveriam fazer parte das áreas sub-
mover a cooperação internacional. Depois, fo-
desenvolvidas do mundo (ULLRICH; CARRION,
ram criados os órgãos que a compõem. Coube
2012).
ao presidente dos EUA, Harry Truman, forma-
lizar a política de cooperação internacional para O mundo sempre foi dividido por pares di-
o desenvolvimento. Em seu discurso de posse cotômicos para uma construção de contexto,
em 1946, o presidente utiliza os termos “subde- gerando representações que eram conceitua-
senvolvidos” para identificar os países ausentes das pelos seguintes termos: nações civilizadas
de tecnologia e de industrialização, e “desenvol- e selvagens, países modernos e atrasados,
vidos” para diferenciar os EUA e as potências países de primeiro e de terceiro mundo, países
econômicas europeias. Kleming (2014, p. 22) re- desenvolvidos e subdesenvolvidos, criando a
corre aos estudos de Gilbert Rist (2008), que “semântica da diferença” (PINHEIRO, 2014). Os
explica os termos usados por Truman. pares dicotômicos fazem distinção dos países
ricos e países pobres, isto é, são capazes de
“Rist explica que esta foi a primeira vez
fazer representações geográficas que sinalizam
que o adjetivo “subdesenvolvidas”, que
a presença e “ausência de prosperidade” (PI-
aparece no início do texto, foi usado em
NHEIRO, 2014).
um texto de grande circulação como
sinônimo de regiões economicamente A lógica da “semântica da diferença”, utili-
atrasadas. Essa “inovação terminológica” zada pelo presidente Truman, causou o efeito
alterou o sentido do desenvolvimento ao desejado, de definir quais são os países que
6
relacioná-lo de um novo modo ao subde- precisam da cooperação internacional. Conse-
senvolvimento. O aparecimento do termo quentemente, demonstrando o poder de uma
subdesenvolvimento no texto evocou a nova força econômica hegemônica que acaba
ideia de mudança em direção a um es- por imprimir seus termos econômicos e ideo-
tágio final e a possibilidade de promover lógicos.
tal mudança.
Milani (2014) aponta que além das agências
A ideia de desenvolvimento passou a internacionais multilaterais, os países doadores
ter um significado transitivo (uma ação criavam suas próprias agências bilaterais. Estas
executada por um agente em relação a organizações bilaterais e multilaterais acabaram
outro), o que correspondeu a um prin- por gerar um novo tipo de divisão de trabalho
cípio de organização social, enquanto o onde as primeiras teriam as funções de ofere-
subdesenvolvimento passou a ser uma cer assistência técnica e ajudas orçamentárias,
ocorrência natural (aparentemente sem enquanto as agências multilaterais teriam a ta-
causa) do estado das coisas. Rist acres- refa de apoiar e gerir a implantação de projetos.
centa que essas mudanças não foram Desse​modo, consolidou-se a Cooperação Nor-

37
te-Sul, pautada em uma relação verticalizada: xaram os países subdesenvolvidos à margem
“exógena”, que é imposta de fora; “unilateral”, de suas ações, sendo possível pensar que:
em que somente uma parte decide; e “parcial”,
“Como reação a esta exclusão, estes paí-
“o problema a ser resolvido decorre de fato-
ses – numericamente superiores no seio
res inerentes e intrínsecos ao país que recebe a
da Assembleia Geral da ONU – conse-
ajuda” (ULLRICH; CARRION, 2012, p. 8).
guiram introduzir o tema do desenvol-
A Cooperação Norte-Sul possui conceitos vimento na agenda internacional e, nos
e a diretrizes definidos pela Assistência Ofi- anos 1950, arrancaram a concessão das
cial ao Desenvolvimento (ODA), por exemplo a potências ocidentais para criar o Fundo
imposição de condicionalidades, tais como boa Especial das Nações Unidas para o De-
governança, apreço pela democracia, aplicação senvolvimento (UNFED). O fundo desti-
dos direitos humanos, preservação dos direitos naria recursos dos países ricos a diferen-
ambientais (este foi incorporado depois), dentre tes projetos de infraestrutura em países
outros (PINO, 2014). A função da CID seria a de pobres” (PINO, 2014, p. 59)
proporcionar meios para reduzir as diferenças
Segundo Pino (2014), os países recipien-
entre os países desenvolvidos e subdesenvol-
dários fomentaram críticas à ajuda ao desen-
vidos, estipulando uma expectativa de cres-
volvimento, considerando um disfarce para os
cimento de 5% para os países recipiendários.
problemas estruturais. Coube a estes países
Alguns países em desenvolvimento alcançaram
aumentarem seu poder de articulação, assim,
essa meta, porém, não significou uma melhora
obtendo alguns resultados relevantes. Exemplo
na qualidade de vida das pessoas destes países
disto foi a revisão do conceito de “assistência
(KLEMING, 2014). Na prática, a política antico-
técnica”, em 1950, substituído para o de “coope-
munista foi prioritária:
ração técnica”. Dessa maneira, “retomou o ideal
“A legitimação da CID se sustentou em de uma relação em bases mais equitativas, ao
uma política anticomunista orquestrada dotar o termo de significado que pressupunha
nos meios de comunicação e nos seto- a existência de países mais e menos desenvol-
res governamentais, junto aos segmen- vidos que interatuavam em uma relação de in-
tos empresariais, às forças armadas e às tercâmbios e interesses mútuos” (PINO, 2014,
classes médias” (MILANI, 2014, p. 35). p. 59).
Segundo Ullrich e Carrion (2012)​, os mode- O marco importante para consolidar a Coo-
los de desenvolvimento dos países doadores peração Sul-Sul foi a conferência de Bandung
não foram eficientes para resolver os proble- em 1955, promovida pelos países Indonésia,​
mas estruturais dos países subdesenvolvidos. Birmânia, Ceilão, Índia e Paquistão, em que es-
Os países recipiendários passaram a ter cons- tiveram presentes 29 países que representa-
ciência disto. Ora, o desenvolvimento proposto vam a metade da população mundial.
tem laços estreitos com a democracia liberal e
“A dinâmica de aproximação entre Índia
o livre mercado. Logo, é o mercado que regu-
e China e o bom clima político entre paí-
la as relações sociais e econômicas, forman-
ses em desenvolvimento estenderam-se
do assim, um mecanismo estrutural de poder
a outras nações asiáticas, nas margens 38
que privilegiava os países doadores no poder
que a Guerra Fria oferecia. Este processo
de decisão na ordem econômica internacional.
culminou na primeira fase, na Conferên-
Consequentemente, os países recipiendários,
cia de Bandung, momento fundacional da
descontentes com essa realidade, buscaram
solidariedade entre os países em desen-
mecanismos para promover a cooperação in-
volvimento. As relações Sul-Sul foram
ternacional entre si, conceitualizado pelo termo
consideradas, ao mesmo tempo, como 4 A conferência
Cooperação Sul-Sul (CSS).
instrumento e objetivo compartilhado Bretton Woods
Para Pino (2014) o descontentamento dos que devia propiciar o diálogo político e a discutiu as estra-
tégias para recons-
países recipendários com o modelo de Coope- articulação entre países em desenvolvi-
trução do sistema
ração Norte-Sul, propulsionou um novo mo- mento, com a finalidade de ganhar peso monetário inter-
delo de desenvolvimento, mais autônomo e nas organizações internacionais e redu- nacional no perí-
independente através da Cooperação Sul-Sul. zir as assimetrias do sistema econômico odo pós Segunda
Houve também questões como a conferência mundial” (PINO, 2014, p. 60). Guerra Mundial.
de Bretton Woods4 em 1954, em que a ordem
econômica internacional ao ganhar forma, dei-

38
5 Disponível em: 1. Bandung buscava criar uma agenda inde- capacitação poderiam ser bons instru-
< h t t p : // w w w . pendente da Cooperação Norte-Sul. No intuito mentos (...).
diario - uni ver s al .
de promover o desenvolvimento e o progres-
c o m / 2 0 0 7/ 0 4 / Influenciou as mentalidades das elites
so de forma independente, coube aos países
a c o n t e c e u /c o n - dos países em desenvolvimento, no sen-
ferencia-de-ban- subdesenvolvidos identificar suas demandas
tido de superar suas diferenças e avan-
dung/>.Acesso em e assim direcionar a cooperação para atender
çar na cooperação política entre socieda-
12 jul. de 2018. as demandas reconhecidas. Desse modo, pos-
des com características similares que se
sibilitando uma nova estrutura internacional
localizavam na periferia do sistema in-
de poder que se opõe à arquitetura de poder
ternacional. Sua importância política pode
hegemônico vigente, deslocando-se para uma
resumir-se à associação de um grupo de
realidade autônoma. (PINHEIRO, 2014). Na
países jovens que buscavam caminhos
conferência em Bandung, foram acordados dez
alternativos para sua inserção indepen-
princípios5 para guiar a Cooperação Sul-Sul.
dente e autônoma no mundo da Guerra
Estes são: R​ espeito aos direitos fundamentais;
Fria, a partir da identificação de interes-
2. Respeito à soberania e integridade territorial ses mútuos e do rechaço ao colonialismo
de todas as nações; e a suas manifestações econômicas, po-
líticas e intelectuais” (PINO, 2014, p. 61).
3. Reconhecimento da igualdade de todas as
raças e nações, grandes e pequenas; A conferência de Bandung despertou o de-
sejo de independência nos países subdesenvol-
4. Não intervenção e não ingerência nos assun-
vidos, promovendo mais encontros e acordos
tos internos de outro país (autodeterminação
multilaterais e bilaterais. Exemplo disso é o que
dos povos);
ocorreu em 1961: a formação do Movimento dos
5. Respeito pelo direito de cada nação defen- países Não Alinhados (MNA), que decidiram se
der-se, individual e coletivamente; manter neutros diante do mundo bipolar.
6. Recusa na participação dos preparativos da Segundo Pinheiro (2014), a Cooperação Sul-
defesa coletiva destinada para servir aos inte- -Sul não é somente um grupo de países com
resses particulares das superpotências; problemas similares que procuram o desen-
7. Abstenção de todo ato ou ameaça de agres- volvimento, independente dos países do Norte,
são, ou do emprego da força, contra a integri- mas um grupo que se articula politicamente
dade territorial ou a independência política de sendo protagonistas para alterar a ordem eco-
outro país; nômica mundial.

8. Solução de todos os conflitos internacionais Um bom exemplo foram as iniciativas da


por meios pacíficos (negociações e conciliações, OPEP na década de 70 para aumentar os
arbitradas por tribunais internacionais); preços do petróleo e o êxito obtido nisto. Cir-
cunstancialmente, provocou uma alternância
9. Estímulo aos interesses mútuos de coope- significativa na balança do poder global. Esse
ração; movimento possuía característica política, pois
10. Respeito pela justiça e obrigações interna- buscava inspirar a valorização dos preços das
8 cionais. commodities, possibilitando, assim, mais pro-
tagonismo político das periferias econômicas
(PINHEIRO, 2014). O cenário provocado pela
Além disso, de acordo com Pino (2014), fo- Cooperação Sul-Sul estava “distanciando-se de
ram apresentadas algumas medidas para dar uma forma eufemizada da pobreza para uma
mais peso e influência​política, ocasionando a gramática das estruturas de poder, configuran-
criação do “Fundo Especial de Desenvolvimento do um mundo multipolar” (PINHEIRO, 2014, p.
Econômico ou da Corporação Internacional de 187).
Finanças”, formalizando uma cooperação soli-
Pino (2014) aponta que a cooperação para​o
dária com o objetivo de atingir uma ascensão
desenvolvimento iniciou na década 1950, inten-
“econômico-social independente”.
sificou na década seguinte e chegou no seu ápi-
“Para isto, o intercâmbio horizontal de ce nos anos 70. No entanto, nos anos 80 e 90,
especialistas, a assistência técnica, a houve uma grande crise na economia dos paí-
perícia tecnológica e o estabelecimento ses periféricos, ou países em desenvolvimento,
de instituições regionais de pesquisa e como é denominado pelo autor, fazendo com

39
que as cooperações decaíssem. Entretanto, as micos, nas taxas do crescimento do PIB, no ta-
economias desses países ascenderam a partir manho populacional e no PIB per capita, porém,
do segundo milênio, ocasionando o um retorno sem considerar os aspectos políticos. O´Neill
à cooperação Sul-Sul. previu que nos últimos dez anos haveria um
crescimento considerável nos países que com-
Souza (2014) acrescenta que nas últimas
põem o grupo dos BRICs no PIB mundial. As-
décadas os países em desenvolvimento são
sim, levantaria questões sobre o impacto eco-
recipiendários e doadores, ou doadores emer-
nômico global das políticas fiscais e monetárias
gentes (como são reconhecidos pelos doadores
dos BRICs. Entretanto, o economista não ima-
tradicionais). Dessa maneira buscam mais es-
ginou o desdobramento político entre o grupo.
paço de influência na política internacional com
novas formações de cooperações bilaterais e De acordo Stuenkel (2017), os países alinha-
multilaterais. Exemplo é a cooperação multila- dos com o bloco convergiam no mesmo des-
teral formada por Brasil, Rússia, Índia, China e contentamento em relação à distribuição de
África do Sul (BRICS). poder no FMI e no Banco Mundial. Devido à or-
dem mundial cada vez mais multipolar, os BRI-
Cs podiam fazer maior pressão para reformar
BRICS: ALÉM DE UMA PROFECIA DE AS- as estruturas financeiras globais. Desse modo,
CENSÃO ECONÔMICA o grupo avançava no sentido de definirem-se
Em 2001, foi publicado por Jim O’neill, pes- enquanto uma entidade política em assuntos
quisador de economia global do grupo financeiro globais.
Goldman Sachs, o paper nº66, intitulado “Buil- A crise mundial de 2008 deu visibilidade
ding​better global economic BRICs”. Neste pa- aos países pertencentes ao bloco, pois foram
per, o economista introduziu o termo BRICs no mais capazes de superar a crise em compara-
mundo e “procurou criar uma categoria na qual ção com as potências econômicas: “Um centro
pudesse inserir os países de grande território e enfraquecido e as periferias prósperas, permitiu
em rápido desenvolvimento que ele considerou que os países dos BRICs se posicionasse com
que seriam instrumentais para a atual trans- os novos pilares de estabilidade econômica in-
formação econômica global” (STUENKEL,2017, ternacional” (STUENKEL, 2017, p. 51).
p. 15). Os países que se enquadram nessa ca-
Os BRICs se tornaram um grupo de força
tegoria são: Brasil, Rússia, Índia e China. Sobre
econômica em crescimento, que ao reunirem-se
esta questão é também colocado que:
desenvolveram uma resistência contra o poder
“O território extenso e passível de ex- hegemônico dos grandes centros econômicos. 6 Exerceu o cargo
ploração econômica implica a possibili- Segundo Stuenkel (2017), os países emergentes de presidente do
dade de ocorrência de maior variedade eram convidados de forma simbólica para os Brasil no período
de recursos minerais, de maior biodiver- de 2002 a 2010.
eventos internacionais, organizados pelos paí-
sidade, de produção agrícola diversifica- ses de centro, mas não participavam das deci-
da, de maior necessidade de pesquisa e sões. O autor destaca a fala do ex-presidente
atividade espacial, de telecomunicações Lula6 referindo-se à participação de poder po-
e aeronáutica, áreas de ponta do de- lítico, que disse: “Não queremos ser convidados
senvolvimento tecnológico e econômico. 40
para comer somente a sobremesa, mas para
Estas potencialidades, caso exploradas, participar do almoço e do café da manhã”.
acarretam menor dependência (da socie-
O bloco dos BRICs comprovou seu caráter
dade em território extenso) em relação​
político quando recebeu a África do Sul como
ao abastecimento externo de energia, de
outra integrante do bloco. Consequentemente,
alimentos e de insumos industriais. Uma
houve uma transformação do acrônimo BRI-
menor dependência, agregada à maior
Cs para o BRICS. Jim O´neill criticou a inser-
importância relativa do mercado inter-
ção da África do Sul no bloco, pois esperava
no, pode reduzir não só a vulnerabilidade
outras potências econômicas emergentes para
do sistema econômico a choques exter-
se integrar ao grupo, como México e Indonésia.
nos mas também sua vulnerabilidade a
No entanto, a entrada da África do Sul sinali-
pressões políticas e militares exógenas”
za o aspecto político do grupo, destoando de
(GUIMARÃES, 1998, p. 111).
um viés somente econômico, uma vez que o
Segundo Stuenkel (2017), O´Neill arquitetou país é um líder continental, a sua inserção no
um grupo se baseando nos indicadores econô- bloco significa que outros países do continente

40
7 Disponível em: africano abriram as portas para cooperações temas: a inclusão e o desenvolvimento sus-
<http://en.kremlin. bilaterais com países pertencentes ao BRICS tentável. Nesta conferência os presidentes dos
ru /supple -
(STUENKEL, 2017). países que compõem o BRICS assinaram nove
ment/209>.
atos de cooperação, entre acordos comerciais
Segundo Stuenkel (2017), a criação dos BRI-
8 Traduzido de: We​ e intercâmbio de informações e integração nas
CS, “simbolizou a disposição cada vez maior
support internatio- áreas de tecnologia, defesa e energia.
das potências emergentes em explorar o que
nal cooperation in
the field of ener-
tinham em comum entre si, bem como sua área No dia 2 de março de 2015, houve um en-
gy efficiency. We de cooperação” (STUENKEL, 2017, p. 23). Nas contro no Brasil entre o ex-ministro da educa-
stand ready for a diretrizes da cooperação dos BRICS destaca- ção Cid Gomes com os vice-ministros da África
constructive dialo- -se o desenvolvimento humanitário, energético, do Sul, Mduduzi Manana; da China, Yubo Du; da
gue on how to deal científico e tecnológico (​Joint​Statement of the Índia, Satyanarayan Mohanty, e da Rússia, Ale-
with climate chan-
BRIC Countries’ Leaders​2009)7: xander Klimov. Segundo portal do MEC (2015).
ge based on the
Neste dia, foram discutidos a criação do pro-
principle of com- Apoiamos a cooperação internacional no
mon but differen- grama Universidade em Rede (NU), a formação
campo da eficiência energética. Estamos
tiated responsibili- de liga universitária para promoção de projetos
prontos para um diálogo construtivo so-
ty, given the need de pesquisa em conjuntos e a intensificação da
to combine measu-
bre como lidar com as mudanças climá-
mobilidade acadêmica de alunos, professores e
res to protect the ticas com base no princípio da responsa-
pesquisadores do bloco. Também foi proposto
climate with steps bilidade comum, mas diferenciada, dada
uma agenda para detalhar os termos da coo-
to fulfill our socio- a necessidade de combinar medidas para
-economic develo- peração multilateral, identificando as áreas de
proteger o clima com medidas para cum-
pment tasks. interesses comuns e as universidades com
prir nossas tarefas de desenvolvimento
trabalho relevante na área de qualidade edu-
9 Traduzido de: We
socioeconômico8.
cacional, mudanças climáticas, desenvolvimento
reaffirm to enhance Reafirmamos o fortalecimento da coo- sustentável e segurança nutricional, entre ou-
cooperation among
peração entre nossos países em áreas tras. Desse modo, foram previstos mais três
our countries in
socially vital areas
socialmente vitais e o fortalecimento dos encontros em abril na cidade de Cuiabá, no
and to strengthen esforços para o fornecimento de assis- Brasil; em maio na cidade de São Petersburgo,
the efforts for the tência humanitária internacional e para na Rússia; e em outubro na cidade de Pequim,
provision of inter- a redução dos riscos de desastres na- na China. Nesse último encontro estava pre-
national humanita- turais. Tomamos nota da declaração so- visto o lançamento da liga de universidades dos
rian assistance and
bre segurança alimentar global publicada BRICS.
for the reduction
of natural disaster hoje como uma importante contribuição
No dia seguinte, 3 março, as autoridades da
risks. We take note dos países do BRIC aos esforços mul-
educação dos BRICS voltaram a se reunir com
of the statement tilaterais para estabelecer as condições
Qian Tang, subdiretor geral da educação da Or-
on global food se- sustentáveis para esse objetivo9.
curity issued today ganização das Nações Unidas para a Educação,
as a major contri- Reafirmamos o avanço da cooperação Ciência e Cultura (UNESCO), que trouxe um
bution of the BRIC entre nossos países em ciência e educa- relatório11 produzido pela UNESCO, denomina-
countries to the ção com o objetivo, inter alia, de nos en- do: “BRICS - construir a educação para futuro”,
multilateral efforts gajar em pesquisa fundamental e desen- publicado em 2014.
to set up the sus-
0 volvimento de tecnologias avançadas10.
tainable conditions Esse relatório propõe ações para melhorias
for this goal. A primeira reunião do bloco BRICS, para para educação dos países membros dos BRI-
tratar de uma cooperação multilateral para o CS. Dessa maneira, no encontro foi debatido o
10 Traduzido de:
desenvolvimento da educação, foi em Paris na conteúdo do documento que a UNESCO reco-
We reaffirm to ad-
vance cooperation sede da UNESCO, em novembro de 2013. Ali mendava doze áreas de cooperação para esses
among our coun- os ministros da Educação dos BRICS discuti- cinco países, visando a melhoria dos sistemas
tries in science and ram, pela primeira vez, oportunidades para a educacionais e aperfeiçoamento das habilidades
education with the cooperação para o desenvolvimento da educa- dos estudantes no ensino superior, pensando
aim, i​nter alia, to ção. Nesse encontro, o ex-ministro brasileiro em um trabalho conjunto que atendesse a es-
engage in funda-
Aloizio Mercadante, em sua primeira passagem sas expectativas. O documento coloca em re-
mental research
and development pelo MEC, propôs a criação da Universidade em levo que a educação profissional adotada pelos
of advanced tech- Rede. cinco países pode acarretar um desenvolvimen-
nologies.
Em julho de 2014, houve a VI Conferência to sustentável, um crescimento econômico e
de Cúpula dos BRICS na cidade de Fortaleza, social mais abrangente e inclusivo.
11 BRICS: construir
a educação para o Ceará. Nesse encontro, foram discutidos dois Uma das preocupações do programa Uni-

41
versidade em Rede tem a ver com as mudan- -Sul, que busca maior participação nas decisões futuro; prioridades
ças climáticas (causadas pela emissão de gás da ordem econômica mundial. Um dos meios para o desenvolvi-
mento nacional e a
carbônico lançado em grande quantidade na at- para alcançar essa meta é buscar desenvolvi-
cooperação inter-
mosfera sem completar seu ciclo), e com cres- mento de forma sustentável. Os pesquisadores nacional. Disponí-
cimento sustentável (que faz parte da agenda da universidade Y aproveitaram essa oportuni- vel em: <https://
internacional para o desenvolvimento desde dade para internacionalizar a produção dos seus une s do c . une s co .
a década de 90). A formalização do programa conhecimentos e também aumentar a sua rede org/ark:/4 82 2 3/
Universidade em Rede ocorreu em Moscou, na de parcerias. Os interesses entre pesquisadores pf0000229602>.
Rússia, em outubro de 2015, onde foi assinado e governo são distintos, porém complementa-
12 Disponível em:
documento de entendimento para iniciar o pro- res. Os pesquisadores, para terem seu projeto <https://www.ca-
grama, pelos Ministros da Educação dos países aprovado e se inserir no programa dos BRICS, pes.gov.br/coope-
que compõem os BRICS. passaram por uma série de desafios, devido à racao-internacio-
burocratização das agências que regulamentam nal/multinacional/
Depois desse entendimento, no dia 9 de- brics. Acesso em:
e aprovam as pesquisas no Brasil.
zembro de 2015, o ex-ministro Aloizio Merca- 13-10-2016>.
dante faz lançamento, na Capes, do edital do
programa Universidade em Rede, projeto edu- 13 Nome fictício,
AS DIFICULDADES DE FORMALIZAR UMA diretor de relações
cacional que visa desenvolver programas de
COOPERAÇÃO ENTRE AS UNIVERSIDADES internacionais.
mestrado e doutorado bilaterais/multilaterais,
em diversos campos de conhecimento, dentro Após a aceitação do programa nos BRICS,
14 Nome fictí-
das áreas de energia, ciência da computação e o governo brasileiro tomou as devidas medidas cio, coordenador
segurança da informação; estudos do BRICS, para implementação da Universidade em Rede e pesquisador do
ecologia e mudanças climáticas, recursos hídri- no Brasil. Isto foi levado para instituições fede- projeto de bioener-
cos e tratamento da poluição e economia. As rais que possuíam programa de pós-graduação gia da Universida-
de excelência, com nota igual ou superior a 6 de em Rede.
atividades do programa são orientadas para a
formação de profissionais que possuem habili- na classificação da Capes (este era critério para
dades para interações em um ambiente multi- participar do Edital) nas áreas que foram suge-
cultural, capazes de combinar o conhecimento ridas pelo programa da Universidade em Rede.
tradicional com a ciência e as tecnologias con- Isto sinalizava que o programa era uma ini-
temporâneas. Nesse sentido, as universidades ciativa do governo, a internacionalização partia
criam um projeto12 de pós-graduação que abar- de uma demanda governamental e não de uma
ca essas modalidades para fazer parte do pro- iniciativa do pesquisador. O diretor das rela-
grama dos BRICS. ções internacionais do projeto da universidade
O programa da “Universidade em Rede”, Y entrevistado, confirmou isso: “É uma coisa
com a participação de cinco países, construiu que vem de cima para baixo. O governo que
uma rede de interesses mútuos entre os pes- quis, o governo que injetou dinheiro. Ele quer
quisadores. Mantendo as conexões através que tenha relação e assim por diante” (Jânio)13.
das especialistas em construção, promovendo, É importante ressaltar que no edital da Capes
assim, o que Sousa Santos (2008) denomina destacava que as universidades deveriam de-
como “ecologia dos saberes” por meio de inter- monstrar interesse para participar do progra-
câmbio acadêmico. Em uma realidade acadêmi- ma. No caso da universidade Y, os interesses 42
ca, como outras realidades da vida social, “as dos grupos de pesquisa já consolidados na área
interações” e as trocas de saberes são concen- de energia, se articularam com os interesses da
tradas e consolidadas “quando se incrementa a direção da instituição em projetar a universida-
comunicação” (RIBEIRO, 2014, p. 9). Em março de internacionalmente. Segundo o pesquisador
de 2016, saiu o resultado dos projetos apro- Aníbal14:
vados pela Capes, para participar do programa “A​reitora e o diretor de centro, falaram
Universidade em Rede, onde a universidade Y assim: O edital fecha na data “x”. A uni-
foi contemplada. versidade queria fazer uma coisa que
O principal interesse do governo brasileiro e representasse o maior número possível
também dos BRICS com o programa “Univer- de pesquisadores da área e que tivesse
sidade em Rede” é ter maior participação nos curso 6 notas de avaliação da Capes, em
fóruns internacionais, e assim aumentar sua escala de 3 a 7. Então, surgiu a área de
influência política nas relações internacionais. energia como possibilidade que tem pes-
Esta é uma característica da Cooperação Sul- quisadores da fitotecnia e da floresta e

42
15 Nome fictício. aqui na área de energia”. falam que vão ser amigos. É quando dois
Pesquisador inter- Laboratórios trocam figurinhas, trocam
grante do projeto No entanto, essa prática não era comum na
estudantes, compartilham pesquisas.
de Bioenergia da universidade Y, visto que as cooperações entre
O orçamento brasileiro você vê que é
Universidade em os pesquisadores com os pesquisadores es-
Rede​. só passagem, passagem, diária, seguro
trangeiros têm sido baseadas em relações pré-
e este terceiro pessoa jurídica que é o
-estabelecidas entre os pesquisadores e toda
seguro internacional. Só passagem, só
negociação era feita pelo grupo de pesquisa.
viagem. E aí eu vou te dar o orçamento
Isto é bem explicitado por Assis15:
dos países e quantas viagens nós vamos
“Por que na maioria das vezes não é fazer para cada um dos países. Duas
constituída uma relação institucional for- para a Rússia com duas pessoas, uma
te. Das Instituições se enxergarem par- pra Índia, uma pra China e uma para a
ceiras potenciais e trabalharem juntas. África do Sul. Se você pensar é até pou-
Não são as instituições, são as pessoas, co, porque eu vou lá só uma vez. Só na
as pessoas. Então o convite é pessoal Rússia que eu vou duas. Então eu ter
para o pesquisador em função do conhe- um encontro de dois dias para namoro,
cimento entre pesquisadores, não é uma noivado e casamento. E o resto vai ser
ação de parceria institucional apesar de internet”(Aníbal).
todo mundo falar que é convênio insti-
Uma das peculiaridades do projeto na Uni-
tucional”.
versidade Y é que os pesquisadores promove-
Isto foi comprovado quando foi analisado os ram novo arranjo de programas, formando um
relatórios do órgão de relações internacionais novo programa de pós-graduação a ser apro-
da universidade Y. Esses documentos apre- vado pela CAPES. Essa peculiaridade do projeto
sentam indícios de que os convênios e ações na Universidade Y foi um dos obstáculos ao
científicas em conjunto com as universidades sucesso do investimento.
estrangeiras, não garantem uma ação científica
Apesar dessa série de dificuldades, o pro-
em conjunto de cooperação simétrica. A univer-
grama era visto como uma ótima oportunidade
sidade Y tem um convênio com a universidade
para internacionalizar o conhecimento cientí-
russa, Moscow​Machine Institute desde 1993, e
ficos dos pesquisadores brasileiros. “Se esse
também foi estabelecido em 2010 com a Chi-
APCN der certo com os BRICS, ótimo, mas
na​ Agricultural​ University​, mas no relatório não
se aparecer outros países nós iremos aceitar
consta nenhuma ação científica conjunta. Isto
também. O importante é ter um programa in-
mostra que não havia uma cultura prévia de
ternacional” (J NIO). Ou seja, a instituição e os
estabelecimento de redes entres os pesquisa-
pesquisadores estavam aproveitando desse
dores pertencentes a esse bloco com a Univer-
programa para construir e conquistar novas
sidade Y.
parcerias, buscando assim, que seus estudos
Também neste programa apareceu um obs- sejam lidos e creditados pelos pesquisadores
táculo que costuma ser recorrente na atividade estrangeiros que compõem o BRICS. Segundo
científica brasileira, a fragmentação das origens Latour (1987), quando um cientista produz um
2 de financiamento: artigo científico que não é lido, o conhecimento
“Então é um casamento arranjado e para produzido cai no esquecimento, deixando de ter
você ter direito ao enxoval você tem que legitimidade no discurso da ciência e na forma
fazer uma concorrência fora do Arraial da com que as categorias científicas se estabele-
Capes que é no CNPQ. O descompasso cem.
gera uma exigência de articulação muito A aproximação do programa selecionado da
maior de nossa parte. Porque eu preciso universidade Y para integrar ao BRICS se dava
do recurso para viagem do Coordenador. de forma lenta e a manutenção era extrema-
Porque como é que eu vou fazer um ca- mente difícil, ocasionado pela falta de recurso,
samento com uma instituição se eu não como foi descrito acima na fala do Aníbal, e
vou lá? Porque o casamento não ocorre fragmentação burocrática era um dos grandes
entre reitores. O casamento ocorre entre problemas enfrentado, pois tratava de recur-
pesquisadores, entre laboratórios. Então sos e proposta para internacionalização. Isto dá
os convênios positivos e produtivos que índicos de que promover a cooperação interna-
a gente tem não é quando dois reitores cional é um trabalho penoso, mas pode trazer

43
resultados satisfatórios tanto para o governo teve a sua primeira aprovação em março de
quanto para cientistas. 2016, necessitava da segunda aprovação do
seu APCN na plataforma Sucupira da Capes
No decorrer do andamento do projeto o go-
e como o financiamento foi cortado, o coorde-
verno enfrentava uma crise política, onde a sua
nador desistiu de o enviar. Assim encerrando a
coalizão estava deixando o governo e entrando
participação da universidade Y no programa da
com um processo impeachment contra a presi-
Universidade em Rede. Segundo Jânio:
denta eleita, Dilma Rousseff. Com a deposição
da presidenta, foi deposto o ministro Aloizio “Foi gasto um tempo horrível, imenso,
Mercadante, dando início a uma nova fase de para fazer aquilo tudo e nem foi enviado,
investimentos em ciência e tecnologia. nem sequer foi enviado o APCN, desis-
tiu, não vai ter financiamento mais, eles
simplesmente, desistiu então”.
O FIM DO PROGRAMA DA UNIVERSIDADE
Registraram-se, durante o período do go-
EM REDE
verno Dilma Rousseff, vários encontros com as 16 Ministério​ das
Em outubro de 2016, o então presidente autoridades dos BRICS (ministros da educação), relações Exterio-
do Brasil, Michel Temer, se pronunciou sobre o res. (16 de outubro
se articulando para tornar o programa possível,
de 2016). Palavras
programa da Universidade em Rede, na Sessão​ conseguindo assim o apoio da Unesco. No en- do senhor presi-
Plenária da VIII Cúpula do BRICS – Goa.​O pre- tanto, quando o governo mudou, o então mi- dente da República,
sidente reiterou a manutenção das negociações nistro da educação Mendonça Filho, do governo Michel Temer, em
com o programa, mas as responsabilidades fi- Temer não registrou nenhum encontro com o Sessão Plenária
cariam com as universidades selecionadas: BRICS para tratar do programa. Acrescenta-se da VIII Cúpula do
BRICS - Goa, 16 de
“Somos países de grande capacidade o fato de que o cancelamento do financiamento
outubro de 2016.
científica e tecnológica. Temos institui- não foi comunicado ou justificado em nenhuma Fonte: Ministério
ções de ensino reconhecidas e pesqui- nota no portal de notícia do MEC. Na esteira das relações Exte-
sadores destacados. A ‘universidade em da Emenda Constitucional 95, de cortes de or- riores.

rede’ dos BRICS abre novas oportunida- çamento para os investimentos primários, do
des de cooperação educacional. A criação enxugamento do orçamento destinado à ciência
de programas conjuntos de pós-gradua- e tecnologia e da prioridade dos intercâmbios
ção estreitará os vínculos entre nossas norte-norte, percebe-se que o fim do programa
comunidades acadêmicas. Importantes foi uma decisão política. De acordo com Guima-
universidades brasileiras estão empe- rães (1998, p. 112):
nhadas nessa iniciativa” 16. “O cenário internacional, com que se de-
O novo governo não teve a mesma postu- frontam qualquer sociedade, Estado e
ra que o governo anterior, pois este se imune governo, organiza-se em torno de estru-
de quaisquer responsabilidades relacionadas turas hegemônicas de Poder, político e
ao programa deixando-as para as instituições econômico. Essas estruturas, resultado
de ensino. Neste período o novo dirigente da de um processo histórico, beneficiam os
Capes decidiu não financiar mais os projetos países que as integram e têm como prin-
cipal objetivo sua própria perpetuação”.
que participam do programa da Universidade 44
em Rede: Os investimentos em internacionalização da
“As razões de não ter dado certo foi a C&T neste governo então passaram a ser fei-
retirada completa do apoio que tinha de tos através do edital do programa print,​ que
nós, houve apoio financeiro até com o tem como um dos objetivos financiar projeto de
edital e tudo. E quando mudou o governo pós-graduação internacional. A internacionali-
eles falaram que não sabiam o que fazer zação com os BRICs deixa de ser fomentada
com aquilo, que aquilo não era mais prio- diretamente. Na visão de Assis, com as eleições
ridade do governo. Até ouvi duas vezes de 2018, o print​ ​pode ser cancelado por causa
uma apresentação de um diretor presi- de eminente mudança de governo.
dente da CAPES, falando que ele estava “Eu acho que é uma estratégia, não sei
sem saber como proceder com aquilo lá, se pode dar em burros n’água. Você viu
porque aquilo não fazia parte da estraté- que as coisas aqui, às vezes, igual BRI-
gia deles mais (Jânio)”. CS estava um negócio, depois muda
No caso da universidade Y, o projeto que de governo muda tudo de novo, pode

44
acontecer isso, só que a gente, como a Em segundo lugar, há evidências suficientes
gente estar no barco aqui, a gente tem de que houve no governo do presidente Temer
que fazer. Se a gente pega, a gente não uma diferença de rumo significativa em relação
leva nada. É caso do BRICS, é caso de ao governo Dilma, no que se refere à coope-
ciências sem fronteiras, fica sendo nesse ração internacional em ciência e tecnologia. A
caso também. Pode ser que chegou um Universidade em Rede dos BRICS que tinha o
dinheiro e já no próximo governo lá, será objetivo de atender uma agenda internacional
em março, como atual governo e cancele de desenvolvimento, poderia levar os países do
tudo, pode acontecer isso, mas a gente bloco a ter uma maior participação nos fóruns
não pode de deixar de entrar, se não a internacionais e incrementar as relações sul-sul.
gente fica para trás e perde tudo” (Jânio). Particularmente, na Universidade Y o programa
poderia atender os objetivos dos pesquisadores
da universidade da zona de mata em ampliar as
CONSIDERAÇÕES FINAIS suas redes internacionais.
A partir desta investigação identificamos Outro elemento importante a se pensar foi
indícios que corroboram as seguintes hipóte- a dissonância no processo burocrático de ad-
ses: na realidade brasileira, em que o governo ministração de recursos, com financiamentos
brasileiro é principal apoiador de financiamen- em diversas fontes para que se fizesse uma
to da pesquisa e do ensino, a decisão política ação somente, como a divisão CNPQ e CAPES,
e mudança de governo afetam não apenas o acabando por subutilizar os recursos investidos.
orçamento das agências de pesquisa, mas a Percebe-se que o Brasil dos governos Luiz Iná-
continuidade de programas nos quais já se fez cio Lula Da Silva e Dilma Rousseff do Partido
significativo investimento, como foi o caso do dos Trabalhadores (PT) fomentaram uma certa
programa da Universidade em Rede. As mu- autonomia e independência tecnológica através
danças de governo trazem uma preocupação de uma relação mais estreita com os países
para pesquisadores, pois isso os colocam numa pertencentes ao bloco dos BRICS. Porém, o
situação de desconfiança, visto que eles não Brasil do governo peemedebista Michel Temer
sabem se governo continuará mandando recur- acabou por distanciar-se desse horizonte ao
sos para manutenção dos projetos. retomar as relações de cooperação norte-sul.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARRION, Rosinha da Silva Machado; ULLRICH, Danielle Regina. (2012), “A​Atuação do Brasil na Cooperação Internacional
para o Desenvolvimento: o desafio do compartilhamento de saberes”. Desenvolvimento em Questão, 10, 20: 4-27.

GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. (​1998), “Desafios e dilemas dos grandes países periféricos: Brasil e Índia​”. Rev. bras. polít.
Int, 41, 1. KLEMING, Mariana Costa Guimarães. (2014), Ausência​de Condicionalidades e outros Princípios em Cooperação
Sul-Sul Brasileira para o Desenvolvimento Econômico: Motivações, Interesses e Perspectivas​. Dissertação de [colocar se é
mestrado ou doutorado] em relações internacionais – Programa de Pós-graduação no Instituto de relações internacionais,
4 Universidade de Brasília (UnB).

LATOUR, Bruno.​(1987), Science in Action​. Cambridge: Harvard University Press.

MILANI, Carlos R.S. (2014),​“Evolução Histórica da Cooperação Norte-Sul”, in A. M. Souza (org). Repensando a cooperação
internacional para o desenvolvimento. IPEA, Brasília.

PINHEIRO, Cláudio Costa. (2014), “​BRICS nas Ciências Sociais: Para que que serve? Modernidade, desenvolvimento e
suas geografias imaginária​s”. in L. R. Ribeiro; T. Dwyer; A. Borges; E. Viola (orgs.). Desafios sociais, políticos e culturais dos
BRICS, São Paulo, ANPOCS.

PINO, Bruno Ayllón. “​Evolução Histórica da Cooperação Sul-Sul (​CSS)”, in: A. de M. Souza (org), Repensando a cooperação
internacional para o desenvolvimento, IPEA, Brasília.

PINTO, Denis Fontes de Souza. (2000), ​OCDE: uma visão brasileira​. Editora, Instituto Rio Branco, Brasília.

SOUZA, André de Mello. (2014), “​Repensando a cooperação internacional para o desenvolvimento”,​in A. S. Mello (org),
Repensando a cooperação internacional para o desenvolvimento, IPEA, Brasília.

45
SANTOS, Boaventura de Sousa​. (2008), ​A gramática do tempo: por uma nova cultura política​. São Paulo, Cortez.

STUENKEL, Oliver. (2017), BRICS e o futuro da ordem global​. 1ª edição, Rio de Janeiro/ São Paulo, Paz & Terra.

Recebido em 28 de março de 2019

Aprovado em 08 de outubro de 2019

46

46
A BARRAGEM DE REJEITOS E OS DISCURSOS LEGITIMADOS:
DESAFIOS À EFETIVAÇÃO DA DEMOCRACIA NOS PROCESSOS
DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL

Carlos Henrique
Resumo: O presente artigo visa abordar as relações, intrinsecamente desiguais e frequentemente
Mesquita do Prado
Graduando em Ci- violentas entre Estado, empreendedor e população atingida nos processos de licenciamento ambien-
ências Sociais pela tal da mineração, evidenciando a invisibilização constante da produção local da categoria de risco.
Universidade Fede- Os dados levantados apontam para uma legitimação do discurso perito em detrimento das outras
ral de Minas Gerais vozes envolvidas no caso, bem como o recrudescimento de processos de vulnerabilização históricos
- UFMG. em prol de um discurso desenvolvimentista. Conclui-se a partir disso a existência de importantes
obstáculos para a efetividade democrática do licenciamento ambiental dentro de um paradigma de
Contato
<caiquemesquita- desigualdade de discursos.
prado@gmail.com>
Abstract: The aim of this article is to deal with intrinsically unequal and frequently violent rela-
P a l av r a s - c h ave : tionships between State, entrepreneur and population on mining environmental licensing processes,
Mineração; Mi- showing a constant invisibility of the local production of the category of risk. The data collected
nas-Rio; Licencia- point to a legitimation of the expert discourse to the detriment of the other voices involved in the
mento Ambiental; case, as well as the intensification of processes of vulnerability in favor of a developmental discou-
Vulnerabilização;
rse. It concludes from that the existence of important obstacles for the democratic effectiveness
Democracia.
of environmental licensing within a paradigm of discourse inequality.
Keywords: Mining;
Minas-Rio; Envi-
ronmental License; INTRODUÇÃO vozes socialmente marginalizadas, em um es-
Vulnerability;De- paço marcado pela legitimação de um discurso
mocracy. O processo de licenciamento ambiental no hegemônico. Nessa perspectiva, mobilizando
Brasil, originalmente arquitetado de forma a autores da sociologia dos riscos e dos desas-
garantir múltiplos níveis de atuação e partici- tres, que trazem importantes contribuições para
pação popular; deliberação pública a partir de a caracterização da modernidade como Ulrick
construção informada de posicionamentos, Beck, Anthony Giddens e Mary Douglas, bem
segundo pesquisas recentes na área tem se como trabalhos empíricos em casos de grandes
mostrado como um espaço de reprodução das desastres como Renata Motta, Norma Valen-
diferenças sociais e de legitimação de grandes cio e Mariana Siena; busco demonstrar como,
empreendimentos e do paradigma desenvolvi- dentre a infinidade de discursos produzidos
mentista. socialmente sobre a categorização de riscos e
Podendo ser analisado sob diferentes pers- distribuição de afetações, somente uma peque-
pectivas, tais como política pública, ritual buro- na parte deles é ouvida no campo institucional.
crático ou como procedimento de decisão dentro Tais discursos, imbuídos de legitimidade cientí-
do sistema ambiental brasileiro, o licenciamento fica atribuída, tendem a padronizar e quantificar
6 os riscos, ignorando relações, sofrimento social
ambiental, e, em especial, a audiência pública,
pensados como formas participativas e demo- e a construção endógena da categoria de risco
cráticas de apresentação de possíveis interven- pelos próprios atingidos.
ções ambientais, encontra, segundo a literatura Neste artigo, procuro abordar estas e ou-
antropológica sobre conflitos, importantes bar- tras questões a partir da análise do empreen-
reiras sociais que impedem que vozes subal- dimento Minas-Rio em Conceição do Mato
ternas se apresentem nos espaços decisórios Dentro, buscando, em especial, analisar o papel
com representantes da administração pública, de órgãos estatais e empresas na invisibilização
equipe de especialistas, e empreendedores de das populações atingidas pelo empreendimen-
modo a apresentar seu posicionamento em si- to. Apesar de não possuir nenhuma pretensão
tuação ideal de fala (BENHABIB, 1996, p. 70). comparativa, em especial se tratando de dois
Busco aqui, tomando como ponto de partida a casos de tamanha complexidade, busco tecer
problematização da construção social moderna breves considerações a respeito dos proces-
da categoria de “risco”, compreender parte dos sos desencadeados pelo desastre consumado
desafios trazidos pela tentativa de inserção de do rompimento da barragem de rejeitos da

47
Samarco no ano de 2015 nos municípios atin- preensão leiga é capaz de perceber e definir os
gidos próximos a Mariana. Além disso, discuto riscos, tal percepção é constantemente contes-
a repercussão do caso entre as comunidades tada no âmbito do paradigma técnico-científico
atingidas de Conceição do Mato Dentro e a que também caracteriza a modernidade e difi-
relação do desastre com a maneira como es- cilmente é considerada em termos de igualdade
sas comunidades elaboram o medo do risco do nas esferas institucionais. Em um mundo onde
rompimento. as ameaças são, em sua maioria, cientificamen-
te produzidas, a capacidade de identificá-las e
A minha inserção no caso se deu como bol-
administrá-las é, assim, socialmente imputada
sista de extensão do Grupo de Estudos em
aos sistemas peritos. A falta de materialidade
Temáticas Ambientais (GESTA-UFMG) a partir
aparente dos riscos contemporâneos (BECK,
de janeiro de 2017. Com o grupo acompanhei
1986), cada vez mais evidente com o aperfei-
o licenciamento ambiental da Etapa de Expan-
çoamento de tecnologias genéticas e nucleares,
são do empreendimento Minas-Rio. Os dados
atribui a técnicos, respaldados por um conheci-
de campo com os atingidos foram colhidos por
mento supostamente neutro e objetivo, o poder
outras pesquisadoras do grupo em oficina reali-
de definição dos riscos no campo institucional.
zada ao final de 2016, enquanto os documentos
citados do processo podem ser encontrados Dessa maneira, a percepção institucional
em páginas oficiais ou foram disponibilizados do risco na modernidade subverte a compreen-
pela própria empresa, no decorrer do licencia- são eminentemente social do tema e se pauta
mento do projeto. por uma lógica tecnicista, que silencia atores,
histórica e socialmente marginalizados. Ado-
A metodologia utilizada para a produção
tando uma abordagem comparativa de custos
desse artigo foi a análise qualitativa de relatos
e benefícios, os sistemas peritos buscam ava-
de campo etnográficos, colhidos em atividades
liar os benefícios (sejam eles estratégicos, eco-
realizadas entre os anos de 2016 e 2017, em
nômicos ou sociais) trazidos pela instalação e
especial os relatos coletados no ano de 2016
operação de determinada estrutura, em contra-
com o objetivo de compor o boletim “Atingidos
posição aos possíveis riscos, quantitativamente
pelo projeto Minas-Rio: comunidades à jusante
analisados em matrizes e níveis de tolerância,
da barragem de rejeitos”. Os dados foram ana-
que esta estrutura pode trazer a população
lisados a partir da revisão teórica de autores
afetada. Como nos apontam Mary Douglas e
da sociologia e antropologia dos riscos e dos
Aaron Wildavsky:
desastres, bem como à luz de experiências et-
nográficas de outros autores em contextos de “O problema começa quando tentamos
crise. fazer cálculos por motivos que não são
estritamente técnicos. Separando cus-
tos de benefícios e calculando cada um
1 . OS RISCOS COMO PRODUTO DA MODER- enquanto passam de consequências pri-
NIDADE márias para secundárias é confuso. As
Se a característica típica da modernidade técnicas inevitavelmente tendem a dar
tardia é produção social de riscos (BECK, 1986), proeminência indevida a valores que po-
talvez um de seus principais desdobramentos dem ser calculados, não necessariamen- 48
seja a maneira pela qual a sociedade moderna te os mais significativos” (DOUGLAS e
lida com eles e os classifica. Como bem aponta WILDAVSKY, 2012, p. 70, tradução nos-
Giddens (1991, p. 115), os riscos na modernidade sa).
são institucionalizados, criados por formas nor- A quantificação extrema do risco e a busca
mativamente sancionadas de atividades. Dessa por encaixá-lo enquanto entidade probabilística
maneira, os riscos não são produto ou mera (CASTIEL, 1999) leva a diferentes abordagens
consequência das práticas sociais contempo- da questão no campo institucional.
râneas, mas partes intrínsecas, necessárias ao
Por um lado, assume-se o risco como um
seu funcionamento.Segundo o autor, ao contrá-
fato inevitável e a sua possível consumação em
rio das sociedades tradicionais, em que a forma
um desastre é caracterizada como evento in-
de definição dos risco era tipicamente religiosa,
controlável e de ordem natural: como acidente.
há nos dias de hoje uma compreensão secular
Nessa perspectiva, o risco é algo da ordem do
dos riscos, não mais pautada em explicações
destino e cabe ao ser humano aprimorar suas
de ordem metafísica. Entretanto, se a com-
tecnologias de previsão e contenção de danos

48
de modo a amenizar da melhor maneira possí- questionamentos dos indivíduos atingidos não
vel os impactos gerados por possíveis eventos passam de confusão, motivada pela ausência
catastróficos.Tal abordagem gera três impor- de capacidade técnica para compreender o pro-
tantes consequências para a gestão pública de blema.Tendo estipulado matematicamente as
riscos: causas de um desastre ou calculado as matri-
zes de risco, qualquer possível discussão a res-
peito dos perigos derivados de qualquer tipo de
1- Ao categorizar os riscos como naturais, tal empreendimento é silenciada pela interpretação
abordagem não os evidencia como produto da hegemônica, que tem como referência índices
modernidade (BECK, 1986) e não pensa o ho- supostamente objetivos de periculosidade. Indi-
mem como agente fundamental em sua pro- cadores estes determinados historicamente por
dução. atores socialmente situados em posição domi-
2- Exime o Estado do papel de agente na pro- nante com legitimidade de fala, acreditados
dução e legitimação das ameaças. Se os riscos pelos órgãos institucionais, que compartilham
são inevitáveis, a responsabilidade do Estado é conceitos sobre a melhor forma de classificação
apenas de se preparar da melhor maneira pos- dos riscos. Desse modo, tem-se a nova invisibi-
sível para eles, minimizando, quando possível,- lização de sujeitos já estruturalmente margina-
seus efeitos. lizados por formas de dominação, distribuição
espacial e de segregação social. Segundo Siena
3- À medida que, como aponta Castiel (1999), (2012, p. 46) “o Estado não só estigmatiza e
a divulgação das ameaças também é parte da, despolitiza, mas também desumaniza tais gru-
assim chamada “modernidade de risco”, com a pos sociais, já que os trata como “ignorantes”
lógica da inevitabilidade surge uma ferramenta do que decorre não tornar prioritária a proteção
de culpabilização de indivíduos, que insistem em da cidadania desses.”
adotar comportamentos classificados como de
alta periculosidade pelos sistemas peritos. Po-
demos observar tal comportamento, por exem- 2. APRESENTAÇÃO DO CASO: O EMPREEN-
plo, nos discursos mobilizados pela Defesa Civil DIMENTO MINAS-RIO
a respeito das enchentes de 2008 em Blume-
O projeto Minas-Rio da empresa Anglo
nau - Santa Catarina:
American, é um empreendimento minerário de
“Nós fizemos reuniões nas associa- grandes proporções que visa a retirada de mi-
ções de moradores, postos de saúde, e nério “pobre” dos entornos da cidade de Con-
as pessoas se omitiram, a maioria nem ceição do Mato Dentro, com vistas a sua ex-
comparecia nas reuniões. Então Assim, portação no Porto de Açu no Rio de Janeiro.
eu acho que 50 por cento do que acon- O empreendimento conta com, além da mina,
teceu em 2008 foi culpa da população uma unidade de beneficiamento entre os muni-
e os outros 50 por cento foi culpa da cípios de Conceição do Mato Dentro e Alvorada
prefeitura.” (Entrevista com profissional de Minas, um mineroduto de 525 km de exten-
da Defesa Civil in DA SILVA, 2013, p. 239) são, passando por 33 municípios, e um porto
construído em São João da Barra, no norte do
8 Dessa maneira, ao atribuir à população o
ônus e responsabilidade pela informação e se- estado do Rio de Janeiro (OBSERVATÓRIO DOS
gurança individual, como aponta Mariana Siena CONFLITOS AMBIENTAIS, 2016). Segundo da-
(2012); para o ente público, os grupos atingidos dos disponíveis online a empresa produziu du-
são vistos como culpados pela realidade social rante o primeiro ano de operações 9,2 milhões
em que se encontram, dependendo de seu en- de toneladas de minério de ferro, exportando
gajamento pessoal à superação do problema. 8,8 milhões de toneladas desse total (DE FATO
ONLINE, 2016). No primeiro trimestre de 2017,
Por outro lado, tal abordagem deslegitima essa produção alcançou o total de 4,3 milhões
constantemente as reivindicações produzidas de toneladas (DE FATO ONLINE, 2017). A Bar-
pelos atores afetados, mobilizando discursos de ragem de rejeitos do empreendimento, foco
ordem técnica para fazer prevalecer a aborda- principal deste artigo, possui capacidade de ar-
gem institucional. Se a ciência apresenta mé- mazenamento de rejeitos 7,4 vezes maior do
tricas objetivas, concretas e eficientes de ava- que a barragem de rejeitos de Fundão e área
liação de risco, qualquer forma alternativa de equivalente 1060 campos de futebol (ANTO-
enquadramento se faz não apenas desneces- NIETTI, 2017). O próprio Estudo de Impactos
sária, como também errônea e as angústias e
49
Ambientais do projeto de expansão possui in- ção de sedimentos e construção de novas es- 1 O desmembra-
formações conflitantes em relação às garantias truturas de apoio (EIA, 2016). Tal processo vem mento do processo,
apesar da inter-
de segurança da estrutura, afirmando na pági- trazendo novos casos de violação da legislação
dependência clara
na 17 que tal barragem possui vida útil satisfa- ambiental e de direitos humanos, intensifican- entre as estruturas
tória de 18 anos, enquanto em outro momento do processos de desterritorialização e conflitos licenciadas, permi-
atesta a duração do empreendimento por 28 entre moradores e empresa, moradores e poder tiu a aceleração do
anos (EIA, 2016). público e entre os próprios moradores3. licenciamento, bem
como a transferên-
O Complexo Minas-Rio se configura assim cia de responsabili-
como um mega empreendimento minerário (re- dade das condicio-
3. O EMPREENDIMENTO, A PERCEPÇÃO DO
movendo mais de um milhão de toneladas de nantes, dificultando
RISCO E A MARGINALIZAÇÃO a atuação dos ór-
minério por ano e afetando mais de 1000 ha
O caso do empreendimento Minas-Rio na gãos responsáveis
de superfície) característico do neoextrativismo
pela fiscalização e o
sulamericano, definido por Eduardo Gudynas região de Conceição do Mato Dentro - MG nos
controle e cobran-
(2015) como um tipo de extração de recursos permite reflexões interessantes a respeito da ça das populações
naturais, de grande volume ou alta intensidade, característica eminentemente social da per- atingidas.
orientados para exportação em estado bruto ou cepção do risco e de sua relação íntima com
de baixo processamento. o contexto em que é produzida. No livro Ris- 2 COPAM: Con-
co e Cultura, Mary Douglas e Aaron Wildavsky selho Estadual de
O caso Minas-Rio é ainda um exemplo do Política Ambiental.
demonstram a relatividade do risco. Dentre os
processo de flexibilização da legislação ambien- O órgão, reconheci-
inúmeros possíveis perigos a serem tratados do por alguns como
tal em prol de um pretenso desenvolvimento
com atenção pelos indivíduos de determinado fórum de diálogo
econômico. O processo de licenciamento des-
grupo, apenas alguns destes serão classificados democrático dado
membrado entre vários órgãos estatais com a
como riscos, sendo, portanto, motivos de atitu- sua representação
mina licenciada pela SUPRAM (Superintendên- paritária de mem-
des e atenção específicas. As várias maneiras
cia Regional de Meio Ambiente), o mineroduto bros do Estado,
de classificação são, assim, intimamente de-
pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e empresas e socie-
pendentes do modo com que cada grupo politi- dade civil, tem se
dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e
za e atribui significados à natureza. (DOUGLAS; mostrado segundo
o porto pelo órgão ambiental do Rio de Janei-
WILDAVSKY, 2012). Zhouri (Op. Cit.),
ro1, bem como o surgimento de figuras jurídi- dado sua organi-
cas inéditas no licenciamento ambiental como O desastre da Samarco, o maior desastre zação hierárquica e
a divisão das condicionantes entre as diversas sociotécnico da história do país, em novembro lógica de operação,
fases do processo (ANTONIETTI, 2017) de- de 2015, trouxe à tona o tema da segurança um mecanismo de
monstra a necessidade de uma lógica de fun- dos empreendimentos minerários. As propor- legitimação dos
ções nunca antes vistas da tragédia, fortemen- grandes empreen-
cionamento estatal e legitimação institucional
dimentos.
de certas práticas legais ou não, necessárias te marcada nos veículos de comunicação pelas
à viabilização deste tipo de empreendimento. dimensões do rastro da lama, as irregularidades 3 Em dezembro de
Desse modo, segundo Andréa Zhouri: claras na fiscalização das normas de segurança 2019 foi concedida
da barragem de rejeitos e a ineficiência dos ór- a licença de opera-
“O jogo político de interesses [no CO-
gãos públicos para lidarem com as populações ção da etapa 3 do
PAM]2 ocorre no âmbito de um para- empreendimento,
atingidas, levou a diversas formas de organiza-
digma de adequação destinado a viabi- nesse processo,
ção e atuação por parte de organizações civis. 50
lizar o projeto técnico, incorporando-lhe por meio de de-
algumas “externalidades” ambientais e A repercussão da tragédia em Conceição do cisão dos órgãos
Mato Dentro levantou para os atingidos pelo licenciadores, duas
sociais na forma de medidas mitigado-
das três comuni-
ras e compensatórias, desde que essas, empreendimento Minas-Rio uma série de no-
dades a jusante
obviamente, não inviabilizem o projeto do vas inquietações. Se o tema do risco de rom- da barragem de
ponto de vista econômico-orçamentário.” pimento da barragem de rejeitos já era tratado rejeitos foram con-
(ZHOURI, LASCHEFSKI;PAIVA, 2012, p. por aqueles atores como uma das preocupa- sideradas atingi-
13). ções em relação ao empreendimento, a partir das e deverão ser
de novembro de 2015, este se tornou um dos reassentadas pela
Ainda no ano de 2016 a empresa responsá- Anglo American.O
principais questionamentos das comunidades
vel, Anglo American, iniciou o processo de licen- motivo pelo qual
à jusante da barragem de rejeitos. De fato, a tais comunidades
ciamento da terceira fase do empreendimen-
partir do ocorrido, novos grupos começaram foram considera-
to (STEP 3) que conta com o alteamento da
a se organizar em torno dos questionamen- das atingidas não
barragem de rejeitos, abertura de duas novas
tos ao empreendimento Minas-Rio e a partir está relacionado ao
frentes de lavra, expansão da pilha de material risco de rompimen-
para a contestação aberta de suas operações.
estéril, construção de novos diques de deposi- to da barragem de

50
rejeitos. É o caso da comunidade de Jassém, uma das poeira e supressão de nascentes, a partir de
mais próximas da barragem, que iniciou a sua 2015 o risco do desastre adquiriu um caráter
4 A concepção de
mobilização organizada a partir da tragédia de muito mais iminente. O desastre de Fundão
público, aqui em-
pregada, tem suas
Mariana. trouxe a “presentificação dos riscos”(MOTTA,
origens em John 2009) trazendo o rompimento da barragem de
Assim,expõe a situação uma das moradoras
Dewey, qual seja:“O rejeitos como um tema relevante e obrigando
da Comunidade do Passa Sete, também locali-
público consiste em os atores a agirem de acordo. De fato, segundo
todos aqueles que
zada à jusante da barragem de rejeitos.
Antonietti (2017), o rompimento da barragem
são afetados pe- “É, a gente reclama da água. Mas tem de rejeitos em Fundão representou um turning
las conseqüências
que reclamar também da barragem… point decisivo na maneira pelo qual os morado-
indiretas das tran-
sações a tal ponto
Essa água vai levar mais gente embora. res da comunidade do Jassém organizavam sua
que se considera Vai levar o pessoal do Passa Sete, Água resistência ao empreendimento.
necessário ter es- Quente… Levar todo mundo embora. A
Como já pontuado neste trabalho, a nega-
sas conseqüências gente tem que reclamar sobre a falta
tratadas sistemati- ção da legitimidade dos atingidos na definição
de água e o perigo da barragem, por-
camente.” (DEWEY, dos riscos e impactos de grandes obras é prá-
que pode acontecer igual aconteceu em
1927). Assim, o tica comum entre os outros atores envolvidos
Debate Público
Mariana” (Moradora da Comunidade do
no processo. De fato, o Estudo de Impacto Am-
não deve ser com- Passa Sete, 2016).
biental do empreendimento Minas-Rio, catego-
preendido como
Os riscos nunca são dados a priori, eles de- riza as demandas levantadas da comunidade
um debate em ins-
tâncias públicas,
pendem sempre da reflexividade dos agentes como “impactos supostos” (FERREIRA ROCHA
ou um debate com e do debate público4 em torno do tema. São apud GESTA, 2014) negligenciando, portanto, a
ampla divulgação e antecipações da realidade, existindo sempre realidade relacional dos impactos e sua ligação
formas de acesso, no campo da virtualidade (BECK, 2006). Dessa com as práticas e vivências daqueles sujeitos
mas sim um debate maneira, a partir da perspectiva de Beck, é so- (GESTA, 2014). Tal atitude invisibilizadora fica
realizado em ter-
mente através da exposição e da visualização, evidente no relatório da empresa de consultoria
mos de igualdade
por todas as partes
passando por processos de seleção social, que Diversus produzido em 2014:
atingidas pelo em- determinado fenômeno será classificado como
“Devido à particularidade deste impacto
preendimento. risco, passando a partir daí a ser alvo de uma
e por se tratar de sentimentos da po-
série de novas preocupações pela população
pulação sem fundamento técnico não é
envolvida. A barragem de rejeitos assume, as-
possível avaliar a significância deste. Po-
sim, novos significados a partir do rompimento
rém ressalta-se que as recorrentes re-
da barragem de Fundão para os moradores das
clamações das comunidades evidenciam
comunidades do entorno do empreendimento
que provavelmente os programas de co-
Minas-Rio. É o que pode ser observado nos
municação da empresa sobre a estabili-
relatos dos atingidos de Conceição do Mato
dade da barragem não estão sendo su-
Dentro e região. Assim relata uma moradora
ficientes ou efetivos. (...). Além disso, vale
do Jassém ao descrever o mapa da comunidade
ressaltar que este impacto não ocorre
construído coletivamente:
isoladamente e torna-se mais intenso
“Como tem essa barragem de rejeito lá quando somado aos outros impactos
0 agora a gente resolveu colocar essas supracitados. Porém o impacto é rever-
cruz aqui e como a gente tem medo do sível, uma vez que, depende somente da
rompimento da barragem essas cruzes implantação de medidas por parte do
representam o medo, a morte. Logo empreendedor que demonstrem a se-
abaixo a gente colocou umas casinhas gurança e estabilidade da barragem de
na Água Quente [comunidade à jusante rejeitos.” (DIVERSUS, 2014 apud ANTO-
da barragem de rejeitos].” (Moradora da NIETTI, 2017).
Comunidade do Jassém, 2016).
Todavia, a grande repercussão midiática do
Observa-se nos atingidos pelo empreendi- rompimento da Barragem de Fundão, exigiu
mento uma importante mudança nas principais das empresas a adoção de determinadas medi-
queixas levantadas contra a barragem de rejei- das de prevenção desse tipo de desastres. Tais
tos. Se anteriormente a grande estrutura, ainda medidas, na maioria das vezes, demonstram
que trouxesse a preocupação do rompimento, não uma postura proativa do poder público vi-
era abordada em seus discursos principalmente sando a prevenção de novos desastres, mas
em relação ao aumento dos níveis de ruído e sim reforçam novamente práticas prudencialis-

51
tas, recorrentes na estruturação desse tipo de No desastre da Samarco, as mesmas for-
política pública. mas de gestão de riscos podem ser percebi-
das. Naquele contexto, a instalação de placas
Segundo Mónica Carvalho (2012, p. 7):
de alerta e delimitação de pontos de encontro
“o conceito de novo-prudencialismo está em caso de rompimentos dentre outras medi-
relacionado com uma ideia de governo das, além de novamente transferir ao atingido
onde a regulação dos indivíduos através a responsabilidade por todo o processo emer-
da gestão dos riscos colectivos é subs- gencial de evacuação, adquire um caráter ainda
tituída pela atribuição ao indivíduo da mais perverso ao criar esses novos elementos
responsabilidade pela gestão dos seus físicos (placas) que revivem na memória dos
próprios riscos. [...] Trata-se, portanto, atingidos pelo desastre o dia do rompimento da
da privatização do cuidado que passa a barragem. As placas, assim, instaladas somente
ocorrer numa ampla gama de cenários e após o ocorrido, se tornam para os moradores
situações onde o indivíduo deve conduzir de Bento Rodrigues e Paracatú um constante
a própria vida de modo a evitar os peri- lembrete de todo o processo institucional pelo
gos e gerir a incerteza, a pluralidade e a qual passaram a partir do rompimento, bem
própria ansiedade.” como uma declaração de emancipação do po-
Esse tipo de prática pode ser observado nas der público e da empresa, que declara com essa
mais variadas ocorrências de desastres e de- medida a responsabilidade dos moradores pela
limitação de riscos. Robert Bullard (2006), em própria segurança.
sua análise sobre a resposta institucional ao Também podemos observar a abordagem
furacão Katrina, constatou, através dos planos prudencialista na maneira com a qual a Anglo
de emergência, da organização das rotas de American lida com os riscos e questionamen-
evacuação e da infraestrutura de transportes tos apresentados pelas populações atingidas. O
a ser mobilizadas que; de fato, é da mobiliza- medo dos moradores das comunidades de Jas-
ção dos cidadãos que dependia o processo de sém, Passa Sete e Água Quente de rompimen-
evacuação da cidade. De maneira similar, em to da barragem de rejeitos da Anglo American
Blumenau, quando confrontados a respeito da foi respondido pela empresa com a instalação
tragédia das chuvas de 2008, Manfred (2010 de sirenes de alerta, fortemente contestada
apud SILVA, 2013), técnico da Defesa Civil, as- pelos moradores. Tal medida representa uma
sim afirmou em relação ao desastre: síntese da abordagem do risco característica da
“60 por cento da população de Blume- modernidade. Ao mesmo tempo em que refuta
nau vive em áreas de risco, sejam elas o risco de rompimento da barragem a partir de
irregulares ou regulares. Então elas não uma abordagem tecnicista, ignorando a auto-
podem se livrar da responsabilidade que nomia dos atingidos na escolha das ameaças a
cabe a elas. [...] Era muito interessante que estão sujeitos, transferem a esses indiví-
que após o desastre todo mundo dizia duos a responsabilidade pela própria seguran-
que isso não ia acontecer se o vizinho ça. Se o licenciamento ambiental e a existência
não tivesse desmatado, mas onde eles da barragem de rejeitos não são minimamente
estavam quando o vizinho desmatou.” questionados após a “constatação” do risco a 52
partir do desastre de Mariana, nem a própria
Da mesma forma, Márcio Lacerda, o então demanda dos atingidos organizados de não se-
prefeito de Belo Horizonte, quando interpelado rem expostos ao risco, exigindo seu reassenta-
por jornalistas a respeito das enchentes do Rio mento, é ouvida pela empresa.
Arrudas no ano de 2012 declarou; “Nós devía-
mos ter sido um pouco mais ‘babás’ do cidadão Pode-se observar, ainda, a atuação seletiva
para que eles não corressem riscos” (R7, 2012). deste sistema tecnicista. Quando questionados
pelos atingidos a respeito das técnicas utiliza-
Pode-se observar em ambas as citações al- das para fazer seus estudos de segurança, se-
gumas das principais consequências da aborda- gundo nota assinada pela REAJA - Rede de Ar-
gem prudencialista de riscos: os indivíduos são ticulação e Justiça Ambiental dos atingidos pelo
responsáveis pelos riscos que correm e devem Projeto Minas-Rio, a empresa se negou a apre-
arcar com suas consequências, o poder público sentar os laudos técnicos que comprovariam a
assume uma função assistencialista, auxiliando distância segura em que se encontrariam as
as vítimas, que não souberam respeitar as ins- comunidades do Jassém, Água Quente e Passa
truções de segurança. Sete. Assim, ao mesmo tempo que deslegitima
52
a análise social do risco, a abordagem hege- que uma particularidade do caso de Conceição
mônica do risco se isenta da responsabilidade do Mato Dentro, pode ser compreendido no-
de compartilhar com os atingidos os próprios vamente como o modus operandi das relações
mecanismos pelos quais fundamentaria suas entre populações atingidas e sistemas peritos.
conclusões. A gestão contemporânea de riscos Gláucia Silva (1999, p. 187-188), em sua pes-
despolitiza a discussão ao ignorar as práticas e quisa etnográfica da usina nuclear de Angra I
vivências dos sujeitos específicos, criando as- identificou no segredo, em relação a operação e
sim um novo distanciamento em relação aos aos procedimentos de segurança da usina, uma
atores não técnicos e reforçando sistemas de forma de construção e manutenção de distin-
exclusão que, no limite, impedem o princípio da ções entre funcionários e moradores da região.
democracia participativa que embasa o meca-
“Ela [a hierarquia] legitima a manutenção
nismo da audiência pública.
de informações por parte de alguns em
Como nos aponta Castel (1991, p. 281), a detrimento da maioria, principalmente
gestão contemporânea de riscos elimina a no- quando o que está em jogo é um conhe-
ção de indivíduo concreto, sujeito a experiências cimento especializado, e que, ao mesmo
e vivências específicas com condições históri- tempo em que gera perigo, se apresenta
5 “As novas estra-
tégias dissolvem a cas de vulnerabilização: como fonte de segurança.”
noção de sujeito ou “The new strategies dissolve the notion O discurso do desconhecimento é mobiliza-
indivíduo concreto
of a subject or a concrete individual, and do, assim, como forma de segregação de outros
e colocam em seu
lugar uma combi- put in its place a combinatory of factors, agentes, reforçando os sistemas peritos como
nação de fatores, the factors of risk. Such a transforma- únicos definidores legítimos das categorias de
os fatores de risco. tion, if this is indeed what is taking place, risco e perigo na contemporaneidade.
Tal transformação, carries important practical implications.
se é de fato o que O que a gestão institucional de riscos e de-
The essential component of intervention
está ocorrendo, sastres é incapaz de perceber é que a própria
no longer takes the form of the direct
traz importantes exposição constante a riscos, ainda que de di-
implicações práti- face-to-face relationship between the
fícil percepção pelos sistemas peritos, consti-
cas. O componente carer and the cared, the helper and the
tui por si só um efeito negativo concreto do
essencial da inter- helped, the professional and the client.
empreendimento na vida dos indivíduos, com
venção não mais It comes instead to reside in the es-
assume a forma da implicações tanto em suas relações sociais
tablishing of flows of population based
relação direta face- quanto em sua saúde. Telma Camargo registra
on the collation of a range of abstract
-a-face entre o cui- esse fenômeno no caso dos atingidos pelo de-
dador e o cuidado, o factors deemed liable to produce risk in
sastre radioativo de Goiânia. Segundo a autora,
ajudante e o ajuda- general.5
constam nos registros oficiais 249 vítimas do
do, o profissional e
Assim, a visão institucional dos riscos, ao desastre, classificados segundo índices dosimé-
o cliente. Vem, em
vez disso, residir desconsiderar completamente a vivência e tricos estipulados na época. A autora constata
no estabelecimento realidade dos indivíduos, negando a própria que a classificação adotada para o atendimento
de fluxos de popu- existência cultural do risco, acaba por repro- das vítimas resume-se ao “sofrimento mate-
lação com base no duzir novamente o sofrimento social daqueles mático” definido pelos agentes públicos mobili-
agrupamento de sujeitos já atingidos das mais diversas manei- zados para lidar com o ocorrido. (SILVA, 2005,
2 uma série de fato-
ras. Tais processos, que excluem os agentes do p.210) Como exemplo de tal situação, a autora
res abstratos con-
siderados passíveis debate a partir de uma pretensa diferenciação traz o seguinte depoimento de um dos médicos
de produzir riscos de capacidades de entendimento (os técnicos responsáveis por tratar as crianças vítimas do
em geral (tradução seriam, a partir dessa chave de compreensão, desastre radioativo:
nossa). os intérpretes de verdades ocultas aos olhos
“Atualmente eu tenho quarenta crianças
do cidadão comum) tende a minar a existên-
sob o meu cuidado. As minhas crianças
cia de um público. Dessa maneira, invisibiliza
têm o mesmo tipo de patologia da po-
o próprio processo de licenciamento ambiental
pulação geral, entendeu? [...] Muitas de-
como foi idealizado e esvazia de sentido a figu-
las, se você for olhar no prontuário, têm
ra institucional da Audiência Pública, visto que,
um número exagerado de consultas. Isso
minando a possibilidade de surgimento de um
é simplesmente pela facilidade. [...] isso
público organizado, impede a possível atuação
pode parecer aos desavisados, como os
de um Estado na organização e defesa desses
próprios pais acham que essas crianças
interesses.
têm pouca resistência. Porque eles es-
Esse processo de segredo e silêncio, mais do tão direto no médico.” (Dr. Benedito, 1996

53
apud SILVA, 2005). to e da Audiência Pública, em particular, reves- 6 A versão inicial
tida de instituições teoricamente democráticas deste artigo foi
Assim, o discurso institucional ao mesmo escrita no ano de
e inovadoras não cumpre sua função social de
tempo em que silencia a voz do atingido, in- 2017, no contexto
ampliar os canais de participação e decisão de-
tensifica o sofrimento pelo qual passa ao não do licenciamento
mocrática. Ao buscar a qualquer custo a efeti- da etapa de expan-
considerá-lo como sujeito de direitos e voz
vação do licenciamento, as empresas, governos, são do empreendi-
importante no processo de definição de amea-
órgãos de fiscalização e técnicos ignoram re- mento Minas-Rio.
ças. Os atingidos pelo desastre do Césio, as- Hoje, em março de
correntemente a individualidade dos indivíduos
sim como os consumidores dos peixes e das 2019, no momen-
e seus modos de vida, intensificando processos
águas do Rio Doce, ou os moradores das co- to da revisão para
de desterritorialização, violando direitos huma-
munidades à jusante da barragem de rejeitos publicação, a licen-
nos e criando conflitos anteriormente inexis- ça de operação da
do empreendimento Minas-Rio, tendo em vista
tentes nas comunidades, muitas vezes impe- etapa de expansão
os processos de vulnerabilização aos quais his-
didas, pelas circunstâncias, de reproduzir seu do empreendimen-
toricamente estão sujeitos enquanto membros to foi conseguida,
modo de vida tradicional.
de determinadas classes sociais, raças e etnias passando por cima
historicamente marginalizada estão vulneráveis Urge, a partir das constatações levantadas de denúncias gra-
a um sofrimento social capaz de desestruturar neste artigo, repensar os processos democráti- ves de irregulari-
relações, criar formas de segregação e impactar cos para além dos órgãos institucionais de de- dades no processo
e violação à direi-
física e psicologicamente em sua saúde. cisão. De fato, a ampliação da democracia passa
tos fundamentais.
por um processo de ampliação não apenas dos Após anos de luta
canais de diálogo, mas sim das vozes legítimas por reconhecimen-
CONCLUSÃO de serem ouvidas. to, duas das três
comunidades à ju-
As semelhanças e recorrências nos casos Como afirma Bourdieu (1996, p. 5-6): sante da barragem
de desastres sociotécnicos nos permitem per- de rejeitos, Água
“A língua não é somente um instrumento
ceber que a sistemática exclusão de parte dos Quente e Passa
de comunicação ou mesmo de conheci-
atores envolvidos nos processos não se deve Sete, conseguiram
mento, mas um instrumento de poder.
simplesmente a problemas de organização lo- o direito ao reas-
Não procuramos somente ser com- sentamento como
cal, ou mesmo a formas de operação do campo
preendidos, mas também obedecidos, condicionante para
ambiental a nível nacional, mas sim a toda uma
acreditados, respeitados, reconhecidos.” a concessão da
lógica, característica da modernidade, que traz licença de opera-
os sistemas peritos como juízes finais na es- Assim, é somente a partir da premissa da ção. No dia 25 de
colha das ameaças. Dessa maneira, percebe-se igualdade de inteligências (RANCIÈRE, 1996), janeiro de 2019,
a forma estrutural como se opera a tomada da busca pela ampliação das vozes ouvidas, que mais um caso de
de decisões e resposta a riscos e desastres no nós poderemos pensar em uma democratiza- desastre de gran-
des proporções
âmbito institucional. ção de fato de nossas instituições.
assombrou o país,
É possível observar claramente tais ele- Em suma, de forma a concluir este artigo o rompimento da
mentos na luta dos atingidos pelo atingido em- e evitar os problemas aqui abordados, concluo Barragem do Fei-
jão no município de
preendimento Minas-Rio pelo reconhecimento esse texto com a voz dos atingidos, que, melhor
Brumadinho deixou
de sua legitimidade para falar sobre os riscos a do que ninguém, descrevem a própria realidade: centenas de mor-
que estão expostos. O que se percebe é que a tos e desapareci-
invisibilização desses indivíduos tem como con-
“Imagina a gente, abaixo do empreen-
dos, comprovando
54
dimento!!! E eles não conta, não conta
sequência a reprodução sistemática de múlti- novamente a falibi-
que existe morador abaixo do empreen- lidade dos sistemas
plas formas de exclusão que impedem que eles
dimento! Pra eles, fora daqui não existe peritos. A reper-
exerçam plenamente sua cidadania e possam
ninguém não, existe mata virgem que cussão do desastre
definir os rumos de sua vida, opinando sobre os
cria bicho! Igual a gente faz reunião, quer em Conceição do
riscos que estão dispostos a correr e podendo Mato Dentro e a
dizer que a gente que é morador em-
falar em posição de igualdade com os outros luta insistente dos
baixo do empreendimento, não somos
atores nos órgãos responsáveis pelo licencia- moradores de São
pessoas humanas, nós somos bicho do José do Jassém, le-
mento. Dessa maneira, a lógica do licenciamen-
mato.” (Moradora do Passa Sete, 2016)6. varam ao compro-
misso, no mês de
fevereiro, de reas-
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS sentamento dessa
comunidade. Ape-
ANTONIETTI, Yasmin. (2017), Da Resistência Cotidiana à mobilização: uma análise da trajetória de São José do Jassém sar disso, nenhuma
frente à mineração. Monografia, UFMG,datilo. das três nunca foi
reconhecida oficial-

54
mente no processo BECK, Ulrich. (2006), “Living in the world risk society”. Economy and society, 35, 3: 329-345.
como atingida pelo
risco de rompimen- BENHABIB, S. (1996), “Toward a Deliberative Model of Democratic Legitimacy”. In: S. Benhabib. Democracy and Difference.
to da barragem de Princeton, Princeton University
rejeitos.
BORDIEU, Pierre. (1996), A economia das trocas linguísticas. São Paulo, Edusp.

BULLARD, Robert. (2006), “Varridos pelo Furacão Katrina: reconstruindo uma ‘nova’ Nova Orleans usando o quadro teórico
da justiça ambiental”, in T. Pacheco & S. Herculano, Racismo Ambiental. Projeto Brasil Democrático e Sustentável, Rio de
Janeiro, FASE.

CARTOGRAFIA DA CARTOGRAFIA SOCIAL. (2018), dezembro. Boletim Informativo Atingidos pelo Projeto Minas-Rio:
Comunidades à jusante da barragem de rejeitos. 10.

CARVALHO, Mônica. Aspectos éticos em torno da questão do risco, in VII CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA,
n. da edição, 2012, local. Anais... local: editora, 2012. Disponível em:<http://historico.aps.pt/vii_congress o/papers/finais/
PAP0261_ed.pdf.>.

CASTEL, Robert. (1987), A Gestão dos Riscos: da antipsiquiatria à pós-psicanálise. Rio de Janeiro, Francisco Alves.

CASTEL, Robert. (1991), “From Dangerouness to Risk”. In G. Burchell; C. Gordon; P. Miller. The Foucault Effect: studies in
governmentality. Chicago, University of Chicago Press.

CASTIEL, Luis David. (1999), “Vivendo entre Exposições e Agravos: a teoria da relatividade do risco”, in L. D. Castiel. A
Medida do Possível: saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz.

DASILVA, Roberto. (2013),Águas de Novembro: estudo antropológico sobre memória e vitimização de grupos sociais ci-
tadinos e ação da Defesa Civil na experiência de calamidade pública por desastre ambiental (Blumenau, Brasil). Tese de
Doutorado. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, UFRGS, datilo.

DE FATO ONLINE. <http://www.defatoonline.com.br/noticias/ultimas/02-05-2016/anglo-american-realiza-o-100-em-


barque-de-minerio-de-ferro-do-minas-rio. 29/05/2017>.

DE FATO ONLINE. <http://www.defatoonline.com.br/noticias/ultimas/24-04-2017/anglo-american-produz-4-3-mi-


lhoes-de-toneladas-de-minerio-de-ferro-no-primeiro-trimestre/busca/Anglo%20American. 21/04/2017>.

DEWEY, John. (2008), Em busca do público. A. Franco; T. Pogrebinschi.

DOUGLAS, Mary, WILDAVSKY, Aaron. (1983), Risk and culture: An essay on the selection of technological and environ-
mental dangers. California, Univ of California Press.

ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL (2015). Ferreira Rocha: Gestão de Projetos Sustentáveis.

FOUCAULT, Michel. (2008), Segurança, Território, População. Eduardo Brandão, São Paulo, Martins Fontes.

GIDDENS, Anthony. (1991), As Consequências da Modernidade. Raul Fiker, São Paulo, Editora UNESP.

GUDYNAS, Eduardo. (2015), Extractivismos: Ecología, Economía y política de un modo de entender eldesarollo y la natu-
4 raleza. CEDIB.

PORTAL R7. <https://noticias.r7.com/minas-gerais/mg-record/videos/marcio-lacerda-ironiza-e-diz-que-prefeitura-de-


veria-ter-sido-mais-baba-de-cidadaos-21022018. 13/03/2019>.

RANCIÈRE, Jacques. (1996), O desentendimento: política e filosofia. ngela Leite Lopes. São Paulo, Editora 34.

SIENA, Mariana. (2012), A atenção social nos desastres: uma análise sociológica das diversas concepções de atendimento
aos grupos sociais afetados. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, UFSCAR.

SILVA, Telma.(2005), “As Fronteiras da Lembrança: memória corporificada, construção de identidades e purificação simbó-
lica no caso de desastre radioativo”. Vivência, 28:57-73.

VALENCIO, Norma. (2009), “Vivência de um Desastre: uma análise sociológica das dimensões políticas e psicossociais
envolvidas no colapso de barragens”, in N. Valencio; M. Siena; V. Marchezini; J. Costa Gonçalves. Sociologia dos Desastres:
construção, interfaces e perspectivas no Brasil, São Carlos, RiMA Editora.

OBSERVATÓRIO DOS CONFLITOS AMBIENTAIS DE MINAS GERAIS. <http://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/confli-


to/?id=582. 13/07/2016>.

55
ZHOURI, Andrea; LASCHEFSKI, Klemens; PAIVA, Angela. (2005), “Uma Sociologia do Licenciamento Ambiental: O caso
das hidrelétricas em Minas Gerais”. inA. Zhouri; K. Laschefsky; D. Pereira. A insustentável Leveza da Política Ambiental:
desenvolvimento e conflitos socioambientais, Belo Horizonte, Autêntica.

Recebido em 14 de março de 2019

Aprovado em 07 de agosto de 2019

56

56
TODAS AS CORES SÃO AS CORES DE DEUS?
UMA ANÁLISE DAS IGREJAS INCLUSIVAS DO BRASIL

Gabriela dos Anjos Resumo: O presente artigo buscou construir argumentos para os questionamentos levantados em
Novaes torno da ciência, religião e orientação sexual. O estudo partiu de uma revisão de literatura cujo
Bacharelada e
objetivo principal foi relacionar as Igrejas Inclusivas como parte constituinte de representatividade
Licencianda em
Psicologia; Pós-
para a comunidade LGBT+. Para isso, foi preciso definir os conceitos referentes a essa temática,
-Graduanda em tais como: representação social, processos identitários e Igrejas Inclusivas. Além disso, foi feita uma
Psicoterapia Infan- análise de outras duas religiões, o Catolicismo Romano e o Espiritismo Kardecista, a fim de trazer
til e Práticas Clí- para a discussão a reflexão da necessidade de se criar outras denominações religiosas, apesar das
nicas pelo Centro muitas existentes na sociedade. Conclui-se, portanto, que a formação de Igrejas Inclusivas surge
Universitário FG -
da necessidade da representação religiosa em concomitância com a orientação sexual distinta do
UniFG, Mestranda
em Educação pela
padrão heteronormativo, sem que exista repreensão, discriminação ou exclusão. Para isso foi levado
Universidade Es- em conta a formação dos processos identitários desses sujeitos, constituído por meio da identifica-
tadual de Montes ção e da diferenciação dos grupos sociais.
Claros - UNIMON-
TES. Abstract: The present article sought to construct arguments for the questions raised about scien-
ce, religion and sexual orientation. The study started from a literature review whose main objective
Contato was to relate the Inclusive Churches as a constituent part of representativeness for the LGBT +
<psigabrielanova-
community. For this, it was necessary to define the concepts related to this theme, such as: social
es@hotmail.com>
representation, identity processes and Inclusive Churches. In addition, an analysis was made of
two other religions, Roman Catholicism and Kardecist Spiritism, in order to bring to the discussion
Palavras-cha- the reflection of the need to create other religious denominations, despite the many existing in
ve: Comunidade society. It was concluded that the formation of Inclusive Churches arises from the need of religious
LGBT+; Igrejas In- representation in concomitance with sexual orientation distinct from the heteronormative pattern,
clusivas; Processos
without reprimand, discrimination or exclusion. For this, the formation of the identity processes of
Identitários; Re-
presentação Social. these subjects, constituted through identification and differentiation of social groups, was taken
into account.
Keywords: LGBT+
community; Chris-
tian Churches;
Identity processes;
INTRODUÇÃO uma forma específica para entrar em uma ca-
Social Representa- tegoria ou uma realidade, tornando-se seme-
tion.
O debate sobre religião no âmbito cientí- lhante a todos para ser, por fim, compreendido.
fico é incomum de acontecer, principalmente
em ciências consideradas relativamente novas, Com isso, é possível compreender, sob o
tais como a Psicologia (ANGERAMI, 2008). As ponto de vista do processo identitário abordado
1 Durante o levan- por Deschamps e Moliner (2009), que os indi-
tamento de dados discussões trazidas neste artigo se referem à
6 foram encontradas busca de bases teóricas que implicam em uma víduos irão se agrupar de acordo com as dife-
diferentes siglas significação para a sociedade contemporânea, renças compartilhadas entre eles, uma vez que
que representam
uma vez que a busca pela religiosidade faz par- faz com que se distancie da maioria. A partir do
a diversidade das momento em que suas identidades pessoais se
identidades sexu- te da condição humana, podendo ser conside-
ais. A mais recen- rada como uma forma de representação social. unem, novas formas de identidades sociais são
te e completa foi constituídas.
postada pelo site Na visão de Moscovici (2010), as represen-
inglês The Gay UK tações sociais surgem a partir da interação Portanto, pensando nas religiões como uma
Magazine em janei- humana, seja entre duas pessoas ou de forma forma de representação social, é possível per-
ro de 2018, o qual ceber que nem todas vão estar abertas para
utiliza a sigla LGB- coletiva, nunca podendo serem criadas de for-
T Q Q I C A P F 2 K+ , ma individual. Uma vez instalada, elas circulam todas as pessoas que as buscam, precisando
em que L (lésbica); e dão forma a outras representações sociais, que sejam criadas novas possibilidades de re-
G (gay); B (bisse-
controlando a realidade social. Dessa forma, presentações sociais para que esses indivíduos,
xuais); T (transe- os quais não são aceitos, se enquadrem em um
xuais); Q (queer); as representações sociais fazem com que os
Q (questionador); indivíduos se adequem a um modelo comum modelo comum. Dentre esses pode-se exem-
I (intersexuais); C à maioria da sociedade, forçando-os a assumir plificar a comunidade LGBT+1 (Lésbicas, Gays,
(curiosos); A (as- Bissexuais, Transexuais e outras identidades e
57
orientações), que buscam uma representati- sobre a temática da sexualidade, e pelo fato da sexuais); P (pan-
vidade para poder apoiar sua fé em espaços sua doutrina pregar apenas os relacionamentos sexuais/ polisse-
xuais); F (familiares
que favoreçam a sua participação, sociabilida- heterossexuais como aceitáveis. e amigos); 2 (dois
de, afirmação de suas identidades e construção espíritos, para de-
Em contrapartida, o Espiritismo Kardecista
saudável de suas subjetividades em concomi- signar gêneros não
foi escolhido por ser uma religião que não faz acidentais); K (fe-
tância com a sua orientação sexual, uma vez
distinção dos diferentes tipos de orientação de tiche). Entretanto,
que não encontram isso em algumas religiões. para facilitar a lei-
desejo. Com isso, é possível questionar-se so-
tura, será utilizada
A orientação sexual, Segundo Cardoso bre qual a necessidade de se criar novas de- ao longo do traba-
(2008), é caracterizada por ser qual ou quais nominações religiosas para poder apoiar a fé lho apenas LGBT+,
gêneros o indivíduo se sente atraído. Dessa for- em concomitância com os diferentes tipos de uma vez que essa
ma, existe a possibilidade assexual, quando a sigla foi a mais vis-
orientações sexuais, sendo que existe religiões
ta nas publicações
pessoa não sente atração sexual por ninguém; que já pregam isso. e por ser a sigla
bissexual, quando o desejo é direcionado aos adotada no Brasil
dois sexos; heterossexual, onde o desejo é pelo de acordo com a
MATERIAL E MÉTODOS Associação Brasi-
sexo oposto; homossexual, em que o desejo
leira de Lésbicas,
é pelo mesmo sexo, e pansexual, definido por O presente artigo trata de uma revisão de Gays Bissexuais,
Niehues (2017), como sendo atração sexual, ro- literatura sobre as representações sociais, com Travestis, Transe-
mântica e/ou emocional por quaisquer gêneros xuais e Intersexo
ênfase nas representações religiosas, buscando (ABGLT).
que não se encaixa apenas no espectro binário2. entender, por meio dos referenciais bibliográfi-
Tendo isso em vista, torna-se necessário cos, como elas podem estar relacionadas com 2 Para Reis e Pi-
fazer uma distinção do que se define como a necessidade de criação de Igrejas Inclusivas nho (2016, p. 14),
o espectro biná-
sexo e gênero. Segundo Jesus (2012), o sexo pela comunidade LGBT+.
rio é considerado
é definido pela biologia, ou seja, macho e fê- Para isso, o trabalho passou por três eta- uma construção
mea, já o gênero é algo se constrói socialmente, pas. Na primeira etapa, foram consultadas uma do gênero homem
não sendo definido pelos cromossomos, níveis gama de literaturas relativas ao assunto em e mulher, sen-
hormonais, órgão reprodutivos e genitais, e sim do representado
livros, monografias, teses, dissertações e arti- anatomicamente.
pela percepção individual; gos, para que esse trabalho fosse devidamente Já o espectro não
Algumas igrejas, como por exemplo a Cató- fundamentado. Para o levantamento de dados, binário é carac-
lica Apostólica Romana, baseadas na interpre- foram usados 4 livros disponíveis na biblioteca terizado quando
tação que têm da Bíblia Sagrada3 (2008), com do Centro Universitário FG- UniFG, 7 livros do uma pessoa não se
sente pertencente
ênfase no trecho de Gênesis 2. 4-25, repudiam acervo pessoal da pesquisadora e 27 artigos
ao seu gênero, ‘‘ou
as condutas que sejam diferentes da prática disponíveis nas plataformas virtuais do Scien- seja, indivíduos que
heterossexual, considerando não apropriada e tific Electronic Library Online (SciELO), Perió- não serão exclu-
altamente reprovável que, vai contra os ensina- dicos Eletrônicos em Psicologia (PePSIC) e do siva e totalmente
mentos descritos nas escrituras de que Deus Portal de Periódicos CAPES/MEC. mulher ou exclu-
sivo e totalmente
criou um homem e uma mulher para crescer Na segunda fase, foram organizados os homem, mas que
e multiplicar. Já o Espiritismo Kardecista, não materiais disponíveis. Por meio da leitura mi- irão permear em
condena as condutas sobre as orientações de nuciosa, foram excluídos os textos que não diferentes formas
desejo, pois o que importa para a evolução es- apresentavam a temática proposta do trabalho, de neutralidade,
58
piritual são as ações que as pessoas praticam assim como as referências duplicadas. Os arti- ambiguidade, mul-
durante a vida, e essas experiências encarnató- tiplicidade, parciali-
gos selecionados através dos meios eletrônicos dade, ageneridade,
rias são necessárias para reparar os erros co- supracitados foram disponibilizados na íntegra, outrogeneridade,
metidos em vidas anteriores (TEIXEIRA, 1997). em língua portuguesa, publicados no período de fluidez em suas
Apesar de as Igrejas Inclusivas terem um 2000 a 2018, uma vez que o período condiz identificações’’.
cunho evangélico, não foram achados materiais com o surgimento das Igreja Inclusivas no Bra-
bibliográficos para compará-las com religiões sil. Utilizou-se como descritores Comunidade
3 O termo ‘Bíblia
desse mesmo seguimento. Outro ponto a ser LGBT, Igreja Inclusiva, Representação Social, Sagrada’ será usa-
colocado é sobre o crescente número de Igre- Religiosidades e Teologia Inclusiva. do em todo o tra-
jas Evangélicas no Brasil, sendo difícil delimitar A terceira etapa consistiu na análise crítica balho para denomi-
os critérios de inclusão e exclusão delas. Dessa nar A Bíblia.
e descritiva de todo o material, buscando esta-
forma, a Igreja Católica Apostólica Romana foi belecer uma compreensão e ampliar o conhe-
escolhida por ser uma religião com maior nú- cimento sobre o tema pesquisado. Com isso,
mero de fiéis espalhados pelo mundo, com uma foi elaborada toda a estrutura do artigo apre-
gama de referências bibliográficas disponível sentado.
58
RESULTADOS E DISCUSSÃO fase é caracterizada como formação de um nú-
cleo figurativo, que se dá através dos dados e
A partir do levantamento de dados encon-
informações, os quais o indivíduo utiliza para
trados na literatura, foi realizada uma análise do
compreender o novo objeto. E a terceira fase
conceito de representação social religiosa e da
ocorre através da naturalização dos elementos
religião enquanto formador identitário, e como
do núcleo figurativo, onde o abstrato se torna
isso entra em conflito com o elemento identitá-
concreto.
rio da comunidade LGBT+: a sexualidade.
No que se refere ao processo de anco-
Com esses conceitos estabelecidos, o artigo
ragem, Deschamps e Moliner (2009) vão ca-
teve como objetivo analisar a conjuntura social
racterizar como uma forma de trazer o objeto
bem como o contexto em que tais Igrejas In-
para seu domínio familiar. Isso permite orientar
clusivas vêm sendo criadas no Brasil para aco-
a utilidade da representação, além de conseguir
lher a comunidade LGBT+ e sua fé. Entretanto,
controlá-la através disso.
para isso é preciso compreender também como
essas pessoas são vistas sob a perspectiva de Portanto, pode se compreender que as
outras doutrinas religiosas, tais como a da Igre- representações sociais têm como finalidade
ja Católica Apostólica Romana e do Espiritismo unir os indivíduos a um grupo comum, fazendo
Kardecista, a fim de trazer para a discussão a com que eles controlem a realidade, podendo
reflexão da necessidade de se criar outras de- ocorrer por meio de fenômenos como a religião,
nominações religiosas, apesar das muitas exis- os mitos e a ciência. Dessa forma, entendendo
tentes na sociedade. a religião como uma forma de representação
de uma ordem social, isto é, de um sistema
de valores, Durkheim (1968) ao caracterizá-la
AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS como uma força de coesão social que permite
A teoria das representações sociais tem que os indivíduos se unam a partir de valores
como principal autor Serge Moscovici, que a comuns que são compartilhados por meio de
define como sendo um conjunto de crenças e uma moral.
ideias cuja finalidade é promover a interação Além das representações sociais, as iden-
social de um grupo que compartilha de indivi- tidades desses sujeitos também entram com
dualidades parecidas, a fim de torná-la comum conflito com o que é tido pela maioria. Com
(MORAES, SOUZA, PINTO et. al. 2014). Elas isso, os processos identitários também vão
irão surgir a partir de uma construção social, entrar em reformulação nessa nova forma de
fazendo com que sejam criadas formas para se adequação social.
controlar a realidade por meio de trocas sim-
bólicas, cujo principal objetivo é tornar familiar
o que é desconhecido. A partir disso, possibilita RELIGIÃO E OS PROCESSOS IDENTITÁRIOS
classificar, categorizar e nomear essas novas
Os processos identitários dos sujeitos são
formas (MOSCOVICI, 2010).
construídos social e historicamente, a partir das
As representações sociais irão se de- vivências e experiências. Dessa forma, pode-se
8 senvolver através dos processos de objetivação compreender que eles estão sempre em cons-
e de ancoragem, que ocorrem de forma inter- tante construção e desconstrução, por meio
-relacionada. Segundo Deschamps e Moliner das escolhas que são feitas ao longo da vida
(2009, p. 127), o processo de objetivação acon- (GELINSKI; ORNAT, 2015). A religião é vista por
tece quando os indivíduos “tentam reduzir a Torres (2008) como um guia dessas escolhas, o
distância entre o conhecimento do objeto social qual vai direcionar o sujeito a optar pelas boas
que eles constroem e a percepção que eles têm ou ruins, de acordo com a crença que se tem.
desse objeto”. Ou seja, tentam tornar concreto Considerando-se, entretanto, que a religião é
4 A heteronorma- o conhecimento abstrato que tem do objeto. vista como algo que não deve ser contestado
tividade refere- se ou questionado, apenas obedecido.
Moraes, Souza, Pinto et. al. (2014) e Jo-
que apenas os re-
lacionamentos he-
delet (2005) expõem que o processo de obje- Dessa forma, as identidades que não con-
terossexuais são tivação ocorre em três fases. A primeira refe- dizem com a heteronormatividade4 acabam
considerados nor- re-se à seleção e contextualização, quando o sendo, no âmbito das religiões judaico-cristã,
mais na sociedade. conhecimento do indivíduo vai se desenvolver consideradas como estereotipadas e estigma-
por meio da cultura, das experiências e dos co- tizadas (GELINSKI; ORNAT, 2015). Com isso, o
nhecimentos prévios com o objeto. A segunda
59
indivíduo não vai ter uma aceitação social plena, também o trabalho, a escola e a família. Essa
tendo em vista que a sociedade divide as pes- socialização, segundo Barreto e Filho (2012),
soas de acordo com as características comuns permite que o indivíduo entenda sobre o seu
à maioria, fazendo julgamento sobre o que é papel na sociedade, fazendo com que ele aja
diferente (GOFFMAN, 1988). conforme o que é imposto.

A identidade social vai ser formada a partir Entretanto, pode- se perceber que as igre-
dos processos de diferenciação e identificação jas cristãs majoritárias condenam a orientação
dessas características. Por meios dos atributos sexual que seja diferente da heterossexualida-
específicos de cada sujeito, ou seja, da identi- de. Tendo em vista isso, Aguiar e Oliveira (2017),
dade pessoal, os semelhantes irão se juntar argumentam que a vivência religiosa da comu-
aos que possuem posições em comum, e se nidade LGBT+ pode se dar de três formas: a
distanciar daqueles que pregam algo que não primeira seria se abster da prática sexual pela
condiz com a sua identidade. Dessa forma, é sua realização religiosa, ou então, abster-se da
justamente devido ao fato de serem diferentes prática religiosa para a realização da prática
que o processo de identificação social será pos- sexual, e a terceira opção seria conciliar essas
sível (DESCHAMPS; MOLINER, 2009). duas instâncias.

A igreja tradicional cristã cria uma identida- Todavia, o pensamento construído pelo sen-
de aos seus fiéis, pregam uma doutrina e con- so comum é de que a comunidade LGBT+ não
sideram o que está fora dela como sendo um precisa de uma representação religiosa, uma
pecado ou uma abominação (JESUS, 2014). A vez que não seguem os dogmas das religiões
partir do momento que esse sujeito consegue cristãs tradicionais. Em complementariedade a
fazer o processo de diferenciação entre a sua isso, Barreto e Filho (2012), argumentam que as
identidade pessoal e a identidade do outro, ele orientações sexuais e identidade de gênero que
começa a criar novas possibilidades de inserir não seguem a heteronormatividade são consi-
de propagar a sua fé com os que compartilham deradas pecado, doenças e até mesmo posses-
as mesmas ideias. são demoníaca pela sociedade heteronormativa.
Dessa forma, essa conduta antinatural precisa
Isso pode ser exemplificado por meio dos ser recriminada (FURTADO; CALDERIA, 2010).
relatos da entrevista de doutorado da autora
supracitada, onde Danny, uma travesti, expõe Busca-se neste trabalho, desconstruir os
que a Igreja Inclusiva foi uma forma de desin- estigmas (GOFFMAN,1988) que permeiam a
toxicação das ideias pregadas anteriormente discussão sobre comunidade LGBT+ e repre-
em outra doutrinação, sendo este um meio que sentação de fé. Segundo Silva (2015), os dife-
encontrou para poder chegar mais próxima de rentes tipos de orientações sexuais não podem
Deus. Apesar de ter sido batizada ao nascer, e ser considerados uma repulsa do campo sagra-
ter a confirmação do mesmo quando adoles- do, uma vez que esse é estimado como uma
cente, sentiu a necessidade de se batizar nes- alternativa para se encontrar respostas menos
ta doutrina, pois ali foi possível vivenciar a sua conflitantes e mais seguras sobre as existên-
identidade real. cias.
60
Dessa forma, as Igrejas Inclusivas tornam- Tendo isso em vista, Torres (2008) expõe
-se uma alternativa para construir uma iden- que a religião surge a partir de uma necessida-
tidade coletiva para a comunidade LGBT+ em de pessoal de ter algo para se apoiar e suprir o
oposição ao discurso bíblico pregado pelas igre- vazio existencial, além de diminuir o sofrimento,
jas tradicionais cristãs, que condenam as se- a angústia do mundo e evitar os perigos. Es-
xualidades e identidades de gênero que sejam ses perigos podem ser reais, como por exem-
diferentes da heteronormatividade (OLIVEIRA, plo, a violência, vícios e catástrofes pessoais,
2017). ou podem ser imaginários, os quais geram um
desconforto pessoal ou social. Nos confortos
sociais estão os comportamentos que contra-
riam a moral tradicional, como, por exemplo, as
A RELIGIÃO PARA A COMUNIDADE LGBT+
diferentes práticas sexuais.
A religião tem sido, ao longo da história, uns
Ao levar em consideração que a comunidade
dos principais meios de socialização e cons-
LGBT+, muitas vezes, não tem o apoio familiar
trução de vínculos (SILVA, 2017), podendo citar
60
ao afirmar a sua orientação sexual e identidade soas que vivenciam o sofrimento por ter uma
de gênero, as Igrejas Inclusivas acabam se tor- orientação sexual diferente da heterossexua-
nando uma forma de preencher essa falta, uma lidade. Independentemente de qualquer coisa,
vez que é oferecido um espaço que possibilita a todas as pessoas são acolhidas na igreja. En-
construção de vínculos, de expressão da sua fé, tretanto, é feita uma distinção entre tendências
além de suporte emocional (SILVA, 2017). Dessa e atos. No primeiro caso, as pessoas são apoia-
forma, é oferecido à comunidade LGBT+ o que das a superarem essas dificuldades de adequa-
foi negado pela sociedade e pela família (RATTS; ção social, mas, no segundo caso, nada pode
LACERDA, 2018). ser feito por elas, já que as mesmas pecaram
contra os ensinamentos duas vezes e contra
A partir disso, se fez necessário, portanto, o Espírito Santo (TRASFERETTI; ZACHARIAS,
analisar os diferentes posicionamentos de duas
2010).
religiões, a Igreja Católica Apostólica Romana
e o Espiritismo Kardecista, sobre a comunida-
de LGBT+, a fim de entender como ela é vis-
ta dentro das suas doutrinas. Por fim, foi feita O ESPIRITISMO E A COMUNIDADE LGBT+
uma análise das Igrejas Inclusivas do Brasil, a
fim de compreender como elas se constituem. Hippolyte Léon Denizard Rivanil, conhecido
como Allan Kardec, é considerado o codificador
do espiritismo, que surgiu em 1857 na Fran-
ça após seus estudos e investigações sobre
A IGREJA CATÓLICA APOSTÓLICA ROMANA os fenômenos chamados paranormais ou pa-
E A COMUNIDADE LGBT+ rapsíquicos (CAVALCANTE, 2011). Entretan-
to, as manifestações dos espíritos através da
A Igreja Católica é uma das mais conhecidas
movimentação de objetos, ruídos, pancadas e
e importantes instituições sociais do mundo
mesas girantes, é conhecida por toda a história
(ÁVILA; ALBURQUEQUE, 2009), considerada
da humanidade desde a antiguidade (MENDES,
como um sistema religioso demograficamen-
2005).
te majoritário e culturalmente hegemônico de
grande peso na vida social, política e cultural O espiritismo se fundamenta no Novo Tes-
(BRANDÃO, 2004). Segundo dados do último tamento do Evangelho de Cristo (2008), do
censo, o catolicismo romano lidera com 65% a qual Allan Kardec fez interpretação dos evan-
distribuição percentual da população por grupos gelhos com ajuda de espíritos superiores, des-
religiosos no Brasil (IBGE, 2010). crito em um dos seus principais livros, O Livro
dos Espíritos (1864).
Falar sobre as orientações sexuais, diferen-
tes da heterossexualidade, na Igreja Católica é No que se diz respeito à sexualidade, Allan
um tema considerado complexo, pois tem que Kardec (1857) traz em seu livro a questão de
relacionar os documentos oficiais doutrinais da número 200 “Têm sexo os espíritos?”. Como
igreja com a teologia moral a ser praticada den- resposta, ele argumenta que o sexo não depen-
tro dela, entretanto, a doutrina é predominante. de de uma organização, ele depende da concor-
0 dância dos sentimentos, do amor e da simpatia.
Essas condutas são condenadas pela Bíblia
Entretanto, não se descarta nem o sexo, nem a
Sagrada (2008), sendo considerados atos não
sexualidade humana.
apropriados e altamente reprovável, que vão
contra os ensinamentos descritos nas escritu- Teixeira (1997) argumenta que o sexo tem
ras. A Igreja Católica Apostólica Romana prega a função de manutenção do equilíbrio psicos-
que somente pode haver o ato sexual após o somático, onde os órgãos genitais aparecem
casamento, argumentado em I Coríntios 7, 8-9. como expressões anatômico-fisiológicas psico-
Entretanto, é citado em Gênesis 2, 4-25 a cria- biofísicas. Desse modo, percebe-se que o sexo
ção do paraíso, onde Deus criou um homem e é tido como um instrumento de perpetuação
uma mulher para crescer e multiplicar, sendo da espécie, e, de acordo com o grau de evolu-
que a partir deles, foi constituído o casamento ção espiritual do indivíduo, ele vai ter maior ou
que visa a procriação. menor autonomia do seu livre arbítrio para es-
colher o seu sexo de acordo com suas necessi-
Porém, cabe aos representantes religiosos
dades de auto realização. Entretanto, qualquer
terem uma postura mais flexível com as pes-
que seja a sua escolha, o sexo vai proporcionar

61
ao indivíduo experiências e aprendizagens que Mas, somente a partir da década de 1990,
são necessárias à sua evolução espiritual. que começaram surgir as primeiras organiza-
ções de grupos no Brasil para se discutir re-
Tendo isso em vista, a homossexualidade e ligião e homossexualidade (OLIVEIRA, 2017;
a transexualidade são explicadas pelo espiritis- JESUS, 2013; JESUS, 2010). Dentre elas pode
mo como justificativa das inúmeras reencar- se citar a Igreja da Comunidade Metropolitana
nações, ora feminina, ora masculina, surgindo (ICM) que surgiu no Rio de Janeiro, sendo con-
assim também neste meio a bissexualidade. siderada a denominação que tem mais sedes
Mesmo depois de desencarnado, o espirito ain- espalhadas, com o maior número de fiéis e mais
da leva traços da vida anterior, principalmente institucionalizada (JESUS, 2010).
se ele tiver abusado do sexo, podendo renascer
em um corpo diferente para poder valorizar e Freire (2016) argumenta que existam 7 (sete)
respeitá-lo (EMMANUEL, 1970). denominações dessa igreja espalhadas pelo
Brasil, a ICM Fortaleza, ICM Vitória, ICM Belo
O preconceito que essas pessoas sofrem, Horizonte, ICM Rio de Janeiro, ICM São Paulo,
em sua maioria por heterossexuais, é tido como ICM Maringá, ICM Teresina. A sua fundamen-
um estágio de evolução primária que estas se tação está na Bíblia Sagrada (2008), na Teologia
encontram (TEIXEIRA, 1997). É notável, portan- da Libertação, na Teologia Feminista, na Teo-
to, que os indivíduos que tem a orientação se- logia Cristrans, onde ninguém se enquadra no
xual diferente da heterossexualidade, se unam binarismo de gênero, nem Cristo (MARANHÃO,
em todo o mundo, formando comunidades para 2016) e na Teologia Queer (FREIRE, 2016; OLI-
pedir respeito, atenção e igualdade (EMMA- VEIRA, 2017; MARANHÃO, 2016). Esta última
NUEL, 1970). chegou até o Brasil por meio dos estudos da
filósofa Judith Butler, em que a doutrina ex-
posta vai se opor a norma de homogeneização
AS IGREJAS INCLUSIVAS NO BRASIL cultural, apresentando novas possibilidades do
campo do saber e resgatando o que é excluído
As Igrejas Inclusivas, conhecidas popular- (FREIRE, 2016).
mente por ‘igrejas gays’, são espaços onde a
comunidade LGBT+ tem um campo religioso O que se compartilha em comum nestas
para propagarem sua fé em concomitância com igrejas, de acordo com Jesus (2010), é o fato
a sua orientação sexual, o qual além de fiéis, de a maioria dos fundadores das Igrejas Inclu-
eles detêm também de cargos eclesiásticos sivas terem sido excluídos das suas igrejas de
(NATIVIDADE, 2010). Entretanto, há contro- origem, o que torna evidente certa semelhança
vérsias sobre essa nomenclatura popular, uma na organização da igreja que foi deixada. Evi-
vez que a homossexualidade não é o centro da dências etnográficas mostram que a comuni-
teologia inclusiva, o objetivo principal da igreja dade LGBT+ é aceita nos cultos de matrizes
é mostrar que Deus não faz acepções entre as africanas e que a maioria foi afastada das igre-
pessoas (SILVA, 2017). jas evangélicas e católicas (NATIVIDADE, 2010).
Desse modo, a criação das Igrejas Inclusivas
Dessa forma, apesar de o surgimento des- pode ser considerada como uma forma de con- 62
sas igrejas ter partido da necessidade de se ciliação do cristianismo com suas opções se-
acolher a comunidade LGBT+ nos ritos religio- xuais (RATTS; LARCEDA, 2018; NATIVIDADE,
sos, elas não excluem os fiéis que correspon- 2010).
dem ao padrão heteronormativo.
Para isso, são feitas interpretações con-
Dados da literatura mostram que a primei- textuais e não sexistas da Bíblia, construindo
ra Igreja Inclusiva foi fundada em Los Angeles, novas acepções do masculino e do feminino, o
nos Estados Unidos, pelo Reverendo Troy Perry que inclui travestis, transexuais e drag queens
no ano de 1968, estando presente atualmente (JESUS, 2010). Isso faz com que as Igrejas In-
em mais de 56 países em todo o mundo (RA- clusivas sejam mal vistas pelas igrejas majori-
TTS; LACERDA, 2018; OLIVEIRA, 2017; FREI- tárias (SILVA, 2017), uma vez que as religiões
RE, 2016; PEREIRA, 2014; JESUS, 2013; JESUS, monoteístas são patriarcais, nas quais Deus
2010), com a finalidade de facilitar o acesso das é representado por uma figura masculina, os
pessoas que almejam ter um local saudável e cargos eclesiásticos são representados por ho-
seguro para adorar a Deus (FREIRE, 2016). mens e a mulher é vista como fonte de pecado

62
e tentação (FILHO, 2014). nidade LGBT+ pode se sentir livre para partici-
par ativamente dos cultos, das atividades pas-
A doutrina empregada nas Igrejas Inclusi- torais juntos com seus parceiros ou parceiras.
vas vai depender de cada denominação. Ratts
e Lacerda (2018) fazem um paralelo entre e a
Igreja Missionária Inclusiva (IMI) e a Comuni-
dade Cristã Nova Esperança (CCNE) da cidade CONCLUSÃO
de Fortaleza e de Maceió. A primeira igreja é
Diante do que foi exposto, pode-se com-
considerada como sendo mais liberal, onde cabe
preender que as religiões são um tipo de repre-
aos fiéis discernir entre o que é certo ou errado
sentação social, o qual parte-se dos processos
nos seus atos. Dessa forma, essa igreja não
identitários sociais. Entretanto, a comunidade
tem um código moral de condutas. Entretanto,
LGBT+ não se enquadra na maioria delas, pre-
é pregada a monogamia como modelo sagrado
cisando, portanto, criar uma igreja que tenha
e como forma de garantir a saúde do povo. A
o mesmo fundamento, mas com interpretação
CCNE, assim como a Cidade de Refúgio, são
diferente, que vai de acordo com sua formação
igrejas consideradas mais rígidas, uma vez que
identitária.
consideram a sexualidade como um caminho de
vida e morte. Nessas igrejas o sexo só é aceito Essa interpretação parte de uma releitura
após o casamento, que deve ser realizado em contextualizada, imparcial e livre de ideologias
cartório. da Bíblia Sagrada (2008), com um olhar mais
crítico, analisando a origem da palavra, o seu
Nessa mesma perspectiva, Oliveira (2017)
contexto histórico, de onde e quando ela surgiu,
em sua dissertação, faz um levantamento de
e quais eram as tradições da época.
dados entre a Cidade de Refúgio e a Igreja da
Comunidade Metropolitana (ICM) da cidade de As pesquisas nessa área ainda são muito
São Paulo. A primeira é considerada mais rígida escassas, o que pode ser justificada pela forma
no que se refere a castidade, uso de bebidas e como a sociedade constrói as representações
promiscuidade sexual, uma vez que essas são sociais acerca das diferentes religiões e da se-
consideradas regras da Bíblia. xualidade, além do tabu que se tem em mistu-
rar religião com ciência. Porém, pode-se per-
Porém, a ICM não declara interferência na
ceber que elas vêm aumentando desde 2010,
vida particular dos seus membros. Seus rituais
sendo mais presentes na área da sociologia e
eucarísticos se rompem com ideia tradicional,
antropologia.
uma vez que seus cultos contam com a pre-
sença de drag queens, flores espalhadas pela Por fim, a presente pesquisa não buscou
igreja e tecidos coloridos no altar e nas túni- fazer nenhum tipo de apologia a nenhuma re-
cas (OLIVEIRA, 2017). Essa questão também ligião, mas buscar compreender a necessidade
foi abordada na pesquisa de Jesus (2010), onde de se criar formas de representação sociais re-
declara que as drag queens desempenham uma ligiosa, uma vez que já existem tantas igrejas
importante função nas igrejas, no que se refere espalhadas pelo Brasil.
à festividade dos cultos, das celebrações e dos
2 casamentos. Os cultos das Igrejas Inclusivas, Com isso, pode ser observado que algumas
segundo Ferreira e Silva (2015) são cheios de Igrejas Inclusivas foram criadas a partir da ex-
louvores, danças, orações, pregações e celebra- clusão dos seus membros das suas igrejas de
ções, que inclui batismo, santa ceia e casamen- origem, o qual toda a sua organização interna
tos. vai se desenvolver partir delas. Isso, portanto,
justifica o fato da não adesão desses fiéis ao
As Igrejas Inclusivas, são vistas por Furtado Espiritismo Kardecista, uma vez que nesses
e Caldeira (2010) como uma possibilidade de locais a comunidade LGBT+ é aceita, mas a
conciliar a vida religiosa com suas preferências organização da igreja é diferente da que eles
sexuais, uma vez que nesses espaços a comu- vieram.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A BÍBLIA. Tradução de João Ferreira Almeida. Rio de Janeiro: King Cross Publicações, 2008. 1632 p. Novo Testamento.

A BÍBLIA. O paraíso. Tradução de João Ferreira Almeida. Rio de Janeiro: King Cross Publicações, 2008. 1632 p. Velho Tes-

63
tamento e Novo Testamento.

A BÍBLIA. Grande mandamento. Tradução de João Ferreira Almeida. Rio de Janeiro: King Cross Publicações, 2008. 1632 p.
Velho Testamento e Novo Testamento.

A BÍBLIA. Debates sobre o matrimônio. Tradução de João Ferreira Almeida. Rio de Janeiro: King Cross Publicações, 2008.
1632 p. Velho Testamento e Novo Testamento.

ABGLT. <https://www.abglt.org/>. Acesso em 01 jun. 2019.

AGUIAR, Leonardo Estrada; OLIVEIRA, Henrique. Investigação sobre processos de subjetivação e dos discursos da se-
xualidade e religião em jovens homossexuais. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES, 5., 2017,
Salvador. Anais... Salvador: 2017.

ANGERAMI, Valdemar Augusto. (2008), “Religiosidades e psicologia: a contemporaneidade da fé religiosa nas lides acadê-
micas”, in Valdemar Augusto Angerami (org.)(org.). Psicologia e religião, São Paulo, Cengage Learning.

ÁVILA, Lara Késia Martins; ALBUQUERQUE, Rosiane Alves. (2009), “Igreja católica: santa e pecadora”. Análise institucio-
nal,1,01:111-222.

BARRETO, Maria Cristina. Rocha; FILHO, José Evaristo Oliveira. (2012), “A inclusão de homossexuais no protestantismo”.
Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, 4, 8: 117-135.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. (2004), “Fronteira da fé –alguns sistemas de sentido, crenças e religiões no brasil de
hoje”. Estudos avançados, 18,52:261-288.

CARDOSO, Fernando Luiz. (2008), “Etiologia da orientação sexual e suas implicações para a ciência do movimento huma-
no/ etiologia da orientação sexual.” Motrivivência, 30:197-216.

CAVALCANTE, José Benevides. (2011), Fundamentos da doutrina espírita. Capivari- SP, EME.

DESCHAMPS, Jean- Claude; MOLINER, Pascal. (2009), A identidade em psicologia social: dos processos identitários às
representações sociais. Tradução de Lúcia Endlich Orth . Florianópolis, RJ: Vozes, 2009.

DURKHEIM, Èmile. (1968), Las formas elementares de la vida religiosa. Buenos Aires, Editorial Shapire.

EMMANUEL (espírito). Vida e Sexo [Psicografado por] Francisco Cândido Xavier. Rio de Janeiro, Federação Espírita Bra-
sileira, 1970

FERREIRA, Rúbio José; SILVA, Moizes Generino. (2015), “A organização eclesiástica da Comunidade Cristã Nova Esperan-
ça: entre acolhimentos e o desacolhimentos”. Horizonte,13,40: 2292-2307.

FILHO, Vicente Gregório Sousa. (2014), “Religião, gênero e dignidade humana”. Protestantismo em Revista, 35: 116-126.

FREIRE, Ana Ester Pádua. Igreja da Comunidade Metropolitana de Belo Horizonte: aproximações de uma experiência
queer. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DA ABHR E IV SIMPÓSIO NACIONAL DA ABHR, 2., 2016. Anais... 2016. p. 1-10.

FURTADO, Maria Cristina; CALDEIRA, Angela Cristina Germine Pinto. , Cristianismo e diversidade sexual: conflitos e
mudanças. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO, 9., 2010. Anais... 2010. p. 1-10.

GELINSKI, Adriana; ORNAT, Márcio José. “Locais de opressão e de alívio segundo as experiências cotidianas de pessoas
64
frequentadoras da Igreja da Comunidade Metropolitana, em Maringá, Paraná”. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE EDU-
CAÇÃO SEXUAL: FEMINISMO, IDENTIDADE DE GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS, 2015. Anais... 2015. p. 1-12.

GOFFMAN, Erving. (1988), Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução de Márcia Bandeira
de Mello Leite Nunes. 4ª edição, Rio de Janeiro, LCT.

IBGE. <https://www.ibge.gov.br/censo_demográfico2010/caracteristicas_gerais_religião.pdf>. Acesso em 30 maio 2019.

JESUS, Jaqueline Gomes. (2012), Orientações sobre identidade de gênero: Conceitos e termos. 2ª edição, Brasília, Publicação
online sem triagem impressa.

JESUS, Fátima Weiss. (2010), “A cruz e o arco-íris: refletindo Sobre gênero e sexualidade a partir de uma ‘igreja inclusiva’
no Brasil”. Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião,12,12:131-146.

JESUS, Fátima Weiss. Igrejas Inclusivas em perspectiva comparada: Da “inclusão radical” ao “mover apostólico. In: SEMI-
NÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO O GÊNERO, 10., 2013, Anais... 2013. p. 1-9.

JESUS, Fátima Weiss. (2014), ‘Religião, Corpo e Identidade Travesti numa Igreja Inclusiva’. Núcleo de Identidades de Gênero

64
e Subjetividades:1-15.

JODELET, Denise. (2005), Loucuras e representações sociais. Petrópolis, Editora Vozes.

KARDEC, Allan. (1857), O livro dos espíritos. Tradução de Guillion Ribeiro. Rio de Janeiro, Federação Espírita do Brasil.

KARDEC, Allan. (1864), Evangelho segundo o espiritismo. Tradução de Guillion Ribeiro. Rio de Janeiro: Federação Espírita
do Brasil.

MARANHÃO, Eduardo Meinberg de Albuquerque. (2016), “Teologia queer e cristrans: transições teológicas na Igreja da
Comunidade Metropolitana (ICM)”. Mandrágora, 2, 22: 149-193.

MENDES, Reynaldo. (2005), 7 boas razões para você conhecer o espiritismo. São Paulo, PETIT.

MOSCOVICI, Serge. (2010), Representações Sociais: Investigações em Psicologia Social. Tradução de Pedrinho A. Guareschi.
7ª edição, Petrópolis, Vozes.

MORAES, Patrícia Regina; SOUZA, Indira Coelho; PINTO, Denise Almada Oliveira. et. al. (2014), “A teoria das representa-
ções sociais”.Aprender, 2, 0: 105-114.

NATIVIDADE, Marcelo. (2010), “Uma homossexualidade santificada? Etnografia de uma comunidade inclusiva pentecos-
tal”. Religião e sociedade, 3, 2:90-121.

NIEHUES, Aléxia Flach. (2017), Estudo sobre o impacto das decisões da comissão Interamericana de direitos humanos na
defesa dos direitos LGBTI na luta contra a violência do estado. Dissertação (Monografia como Trabalho de Conclusão do
Curso de Relações Internacionais), Universidade Federal de Santa Catarina, datilo.

OLIVEIRA, Luiz Gustavo Silva. (2017), “O Senhor é meu pastor e ele sabe que eu sou gay”: etnografando duas igrejas
inclusivas na cidade de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, datilo.

PEREIRA, Fabiano. (2014), “Religião e homossexualidade: o desafio da bênção religiosa sobre a união homoafetiva entre
casais homossexuais que se declaram evangélicos.” Discernindo, 2, 2:127-145.

RATTS, Júnior. LACERDA, Carlos. “Administrando o ‘corpo arco íris’: etnografia sobre a pastoral do sexo em igrejas inclu-
sivas da cidade de Fortaleza e Maceió.” In: CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE ESTUDOS QUEER, 1. 2018, Anais...,
2018. p-18.

REIS, Neilton; PINHO, Raquel. (2016), “Gêneros não-binários: identidades, expressões e educação.” Revista reflexão e
ação, 24,1:7-25.

SILVA, Cássio Raniere Ribeiro. Movimento religioso inclusivo: processos de santificação e conversão. In: SIMPÓSIO NOR-
DESTE DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE HISTÓRIA DAS RELIGIÕES, 2., 2015, Anais..., 2015. p. 1-16.

SILVA, Natanael Fritas. (2017), “Entre o céu e o inferno: a teologia inclusiva e o gay cristão.” Revista de estudos indiscipli-
nares em gêneros e sexualidades, 6,1:276-281.

SILVA, Cássio Raniere Ribeiro. Movimento religioso inclusivo: processos de santificação e conversão. In: SIMPÓSIO NOR-
DESTE DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE HISTÓRIA DAS RELIGIÕES, 2., 2015, Anais..., 2015. p. 1-16.
4
TEIXEIRA, Cícero Marcos. (1997), Os espíritos têm sexo?. Porto Alegre, KUARUP.

THE GAY UK MAGAZINE. <https://www.thegayuk.com/there-is-now-a-k-in-lgbtqqicapf2k/>. Acesso em 10 set. 2018

TORRES, André Roberto Ribeiro. (2008), “Religião: a ontologia pessoal”, in Valdemar Augusto Angerami ANGERAMI, Valde-
mar Augusto (orgs.). Psicologia e religião, São Paulo, Cengage Learning.TRASFERETTI, Pe. José; ZACHARIAS, Pe. Ronaldo.
(2010), “Homossexualidade e ética cristã.” Vida pastoral, 275, 51:19-24,

Recebido em 06 de fevereiro de 2019

Aprovado em 22 de agosto de 2019

65
FAMÍLIA, ESCOLA E REPRODUÇÃO SOCIAL:
SOBRE A MANUTENÇÃO DA POSIÇÃO SOCIAL DAS ELITES

Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar os mecanismos que permitem às elites sociais Pedro Callari Tri-
reproduzirem-se enquanto grupos dominantes mesmo após mudanças na estrutura social. Na ver- viño Moisés
Graduando em Ci-
dade, devido à lógica do sistema de reprodução, estas mudanças são, em geral, manejadas pelos
ências Sociais pela
grupos dominantes e, acabam resultando na manutenção da posição social destes. Para comprovar Universidade de
tais afirmações, utilizamos a argumentação do sociólogo Pierre Bourdieu e sua conceitualização da São Paulo – USP.
incorporação do habitus familiar, que é reforçado pelas escolas no caso das elites. Em seguida, o
arcabouço teórico será relacionado com um conjunto de casos empíricos de pesquisadoras e pes- Contato
quisadores do Brasil, França, Inglaterra, Estados Unidos e Rússia. Sem ignorar as diferenças entre <pedro.moises@
usp.br>
estes países, a conclusão aponta para o papel indissociável da família e da escola na reprodução
da posição social das elites. O mecanismo desta “aliança” acaba por manter a posição dos grupos Wendel Lima da
dominantes mesmo em momentos de mudança na estrutura social. Silva Andrade
Graduando em Ci-
Abstract: This article aims to demonstrate the mechanisms of social reproduction of dominant class, ências Sociais pela
even after changes in social structure. In fact, due to the logic of the reproduction, these changes Universidade de
are generally managed by the dominant groups and result in the maintenance of their social posi- São Paulo – USP.
tion. In order to prove our proposition, we employ the argument of the sociologist Pierre Bourdieu
Contato
along his conceptualization of the incorporation of the family habitus, which is reinforced by the
<wendel.lima.silva@
school system in the elite’s case. Then, the theory will be connected to empirical researches from usp.br>
Brazil, France, England, the United States and Russia. Considering the differences between these
two countries, the conclusion points out to the inseparable role of the family and school in reprodu- P alav r a s - ch ave :
cing the social position of the elites. The mechanism of this “aliance” maintains the social position Escola; Família;
of the classes even in moments of apparent change in the social structure. Reprodução Social;
Classes dominan-
tes.

INTRODUÇÃO ma comparativa; mas sim como grupos domi- Keywords: School;


nantes em seus respectivos tempos e espaços Family; Social Re-
O presente artigo visa compreender sociolo- que, por mais que possuam distinções internas, production; Domi-
gicamente as formas de reprodução social das exemplificam o papel das famílias e da escola nant Class.
elites segundo o modelo teórico de Bourdieu. no processo de manutenção da ordem social. A
Isto ocorre não apenas devido à transmissão tentativa é mostrar como o sistema de acumu-
de capital econômico entre as gerações, mas lação e transformação incessante dos diversos
também devido à transmissão de diversos ti- tipos de capitais pelas elites opera na lógica
pos de capitais como cultural, social e simbólico. da manutenção de sua posição social; ou seja,
Neste processo, as vantagens e desvantagens transformar para manter.
são cumulativas, concorrendo para a produção 66
e reprodução de indivíduos ajustados (ou não) Não é por acaso que encerramos o parágra-
às posições sociais de prestígio e destaque. Ca- fo acima com o seguinte enunciado: “transfor-
racterístico de diversas frações de classe das mar para manter”. Sobretudo para as frações
elites, a acumulação incessante dos capitais se de classe ricas em capital econômico, foi ne-
torna fundamental para a lógica de manuten- cessário um elaborado processo de adaptação
ção da sua posição social. e ocultação das relações de força, nos quais se
envolve uma complexa aliança entre família e
Em nossa exposição iremos, inicialmen- escola, para que sua posição de elite se manti-
te, elaborar o arcabouço teórico do autor. Em vesse mesmo num cenário que excluía a impo-
seguida, enunciaremos, a partir de pesquisas sição da hierarquia baseada na força. Realizando
empíricas, os mecanismos de reprodução social uma rápida digressão: nos estudos de Marshall
das classes e frações de classes dominantes, Sahlins sobre a chegada do capitão Cook nas
tanto as predominantemente ricas em capital sociedades havaianas, o antropólogo-historia-
cultural quanto as ricas em capital econômico. dor se indaga se “é legítimo perguntar se existe
Trabalharemos com essas frações não de for- a possibilidade de um sistema continuar sem se

66
alterar, ou o contrário: se é possível se alterar tempo, um avanço sobre o objetivismo, o autor
sem continuar” (SAHLINS, 2008, p. 126). Nesse se detém sobre esta corrente para, em seguida,
sentido, a mudança da estrutura no interior de construir aquilo que ele inicialmente denomina
um sistema cultural estabelecido se torna uma de conhecimento praxiológico do mundo social.
forma de reprodução (SAHLINS, 2008). Ao deter-se a ela, o autor realiza uma crítica da
concepção da língua, como objeto autônomo e
I irredutível, e da economia, como construtor de
um sujeito, ou seja, “assujeitado” pela economia,
Em esboço de uma teoria da prática Bour-
que executa ações segundo papéis pré-deter-
dieu (1983[1972]) sugere a existência de três
minados exteriormente. Para se contrapor a
modos teóricos de conhecimento do mundo so-
essas abordagens nas quais o sentido da ação
cial. Em primeiro lugar, as correntes fenomeno-
se dá a partir da exterioridade (enquanto mo-
lógicas que colocam a ênfase na experiência pri-
delo geral que se limita a sua simples execução)
meira com o mundo. Estas correntes possuem
Pierre Bourdieu (1983[1972]) retoma e reela-
uma premissa subjetivista, compreendendo
bora a noção de habitus como conceito chave
a realidade como nada mais que um conjun-
para essa virada teórica. Com este conceito, ele
to de atores, ou seja, indivíduos que atuam no
torna possível a compreensão do mundo social
mundo sem maiores coerções estruturais. Para
superando as falsas antinomias que as duas
esta corrente a “apreensão do mundo social
correntes anteriores colocaram. As oposições
[se dá] como natural e evidente” (BOURDIEU,
agência/estrutura, indivíduo/sociedade, perdem
1983 [1972], p. 46). Aqui estão as escolas inte-
a sua lógica intrínseca e a questão central a
racionistas e etnometodológicas. Contraposta
partir daí é revelar “a dialética da interioridade e
a esta visão, uma segunda corrente coloca o
da exterioridade, isto é, da interiorização da ex-
acento nas estruturas. Bourdieu nomeia de ob-
terioridade e da exteriorização da interioridade”
jetivista esta escola que “constrói relações ob-
(BOURDIEU, 1983[1972], p. 60). Nas palavras
jetivas (isto é, econômicas ou linguísticas), que
do autor, o habitus é o
estruturam as práticas e a representação da
prática” (BOURDIEU, 1983[1972], p. 46). “[...] sistema de disposições duráveis,
estruturas estruturadas predispostas a
Se, de modo sintético, a fenomenologia
funcionar como estrutura estruturantes,
pressupõe a existência de atores que agem
isto é como princípio gerador e estru-
com uma considerável margem de liberdade, a
turador das práticas e das representa-
corrente objetivista rompe com esta visão, en-
ções que podem ser objetivamente “re-
fatizando o peso das estruturas sobre as prá-
guladas” e “regulares” sem ser produto
ticas dos agentes, seja esta coerção estrutural
de obediência de regras, objetivamente
de ordem econômica (tradição marxista) seja de
adaptadas a seu fim sem supor a inten-
ordem linguística (tradição saussuriana). Para
ção consciente dos fins e o domínio ex-
Bourdieu, essa ruptura é um momento neces-
presso das operações necessárias para
sário da reflexão acerca do mundo social, entre-
atingi-los e coletivamente orquestradas,
tanto, as correntes objetivistas terminam por
sem ser o produto da ação organizada de
hipostasiar as relações estruturais construídas
6 um regente”.
como relações externas aos sujeitos, tornan-
do-os meros executantes. Tendo isto em vista, Ele, o habitus, é produzido a partir da in-
a abordagem proposta por Bourdieu necessita corporação contínua das regularidades do es-
tanto romper com a fenomenologia, conser- paço social, enquanto espaço estruturado. Em
vando as aquisições das correntes objetivistas, outras palavras, as condições materiais incul-
mas, ao mesmo tempo, superar o objetivismo cam determinadas disposições que engendram
recolocando em questão o que esta corrente práticas alinhadas às condições objetivas das
“esquece”, a saber, “as relações dialéticas entre quais são o produto (BOURDIEU, 1983 [1972]).
essas estruturas e as disposições estruturadas O habitus é, portanto, uma “matriz de percep-
nas quais elas se atualizam e que tendem a ções, apreciações e ações” (BOURDIEU, 1983
reproduzi-las” (BOURDIEU, 1983[1972], p. 47). [1972], p. 65) geradora de infindáveis práticas
que, por sua vez, são relativamente autônomas
A crítica ao objetivismo não pressupõe, de
às situações tomadas em sua imediaticidade,
modo algum, um retorno às correntes fenome-
uma vez que esta matriz é sempre transferível
nológicas. Entretanto, como a abordagem de
a vários domínios; esta matriz é durável sem
Bourdieu propõe uma conservação e, ao mesmo
67
ser estática ou eterna; possui uma espécie de tal para o entendimento do conceito de classe
inércia incorporada, pois continua a atuar mes- social do autor; as marcas de posição social no
mo depois das estruturas que a geraram; e por espaço estruturado se articulam para ao mes-
tudo isto, cria várias vezes uma defasagem en- mo tempo juntar e separar agentes em grupos.
tre as estruturas objetivas que produziram o Juntar aqueles de posições semelhantes e, ao
habitus e as estruturas que geram as deman- mesmo tempo, separá-los dos demais. Essa
das de ação no presente (WACQUANT, 2007). distância social é a todo momento reafirmada
tanto a partir da realidade objetiva (quantida-
Se as condições objetivas as quais os agen- de e qualidade dos diversos tipos de capitais)
tes estão submetidos produzem um conjunto quanto na percepção simbólica do mundo (gos-
de disposições, um habitus, que funciona como tos tipicamente de classe e estilos de vida). “Às
uma matriz para as práticas, pode-se argu- diferentes posições no espaço social corres-
mentar que práticas concertadas entre si são pondem estilos de vida, sistemas de desvios
o produto da interiorização de semelhantes diferenciais que são a retradução simbólica de
estruturas objetivas (BOURDIEU, 1983 [1972]). diferenças objetivamente inscritas nas condi-
Indivíduos localizados numa mesma posição ções de existência” (BOURDIEU, 1983[1976],
no espaço social tendem a estar submetidos p. 82). Como já argumentado, as condições
a condições materiais semelhantes e, portanto, de existência não são exclusivas de um único
incorporam um conjunto igualmente semelhan- indivíduo. O compartilhamento de semelhante
te de disposições. Ocorre a harmonia do ha- condição material inculca conjuntos semelhan-
bitus de vários agentes, e aqui está o funda- tes de disposições. Neste sentido, o habitus,
mento da noção de classe social em Bourdieu sendo o operador prático dos estilos de vida
(BOURDIEU, 1983 [1972]). (BOURDIEU, 1983[1976]), gera um conjunto de
preferências éticas, estéticas e políticas que,
Ao mencionarmos o espaço social, nos re-
mesmo estando ligados às condições materiais
ferimos, portanto, à posição do agente na es-
de existência, aparecem como distinções sim-
trutura, posição esta que varia segundo os
bólicas. Por esta razão, as marcas de posição
diferentes volumes e composições de capital.
juntam e separam ao mesmo tempo. Juntam
Trata-se de uma noção que permite “escapar
todos aqueles que submetidos às mesmas
à alternativa do nominalismo e do realismo
condições objetivas desenvolveram habitus
em matéria de classes sociais” (BOURDIEU,
semelhantes, e separam dos demais que sub-
1990[1986], p. 156), uma vez que a “realidade”
metidos a diferentes condições de existência
está na exterioridade mútua dos elementos.
desenvolveram outras “fórmulas generativas”
Como a realidade social afirmada pelos estru-
e, por consequência, um diferente estilo de vida
turalistas (ou objetivistas) também é um objeto
(BOURDIEU, 1983[1976], p. 83). Nesta dialéti-
de percepção, necessita-se de um aparato re-
ca de aproximação/distinção, o modelo teórico
lacional para entender como os agentes pre-
do autor enfatiza o agrupamento em classes e
tendem reunir, unificar e construir algo como
frações de classes sociais através da posição
grupo. Esse agente unificador é o habitus, que
no espaço social, engendrando práticas éticas,
se manifesta na própria exteriorização da in-
estéticas e políticas (estilo de vida) mediadas
terioridade. Essa interioridade foi incorporada 68
pelo habitus.
ao longo do processo de socialização e, por ser
dinâmica, continua a se desenvolver. Ao mesmo O ponto central quanto aos estilos de vida é
tempo, a percepção da fenomenologia (substan- a distância com relação ao mundo. Ou seja, a
cialista ou “sociologia espontânea” (BOURDIEU, pressão (ou não) das necessidades e do imedia-
1990[1986])) também é um objeto da realidade to material. Trata-se, portanto, da objetividade
objetiva, devido à posição no espaço enquanto que, como Bourdieu sugere, é incorporada pelos
mundo social. Assim, o espaço social ocorre a agentes e constitui-se como elemento funda-
partir da relação das exterioridades enquanto mental para a construção das preferências. Daí
objetivas, mas também como objeto da percep- “as classes populares reduzidas aos bens e às
ção, isto é, “uma sociologia da construção das virtudes de ‘primeira necessidade’, reivindicam
visões de mundo, que também contribuem para a limpeza e a comodidade; as classes médias,
a construção desse mundo” (BOURDIEU, 2004 já mais liberadas da urgência, desejam um in-
[1986], p. 157). terior quente, íntimo, confortável ou cuidado, ou
um vestuário na moda e original” (BOURDIEU,
Essa noção de espaço social é fundamen-
1983 [1976]).

68
Claro está que os estilos de vida, sempre mantêm tanto nos tipos de programas assisti-
ajustados a uma condição de classe, a uma dos e ouvidos, quanto na atenção que se dedica
determinada distância em relação ao mun- a eles (BOURDIEU, 2016[1966]). Além disso,
do material, não podem ser entendidos como uma mesma mensagem transmitida não é, de
uma substância. Com esta afirmação queremos modo algum, captada da mesma forma por in-
apontar seu caráter sempre relacional. Nada é divíduos com disposições tão disparatadas. A
em si. Não é que, por exemplo, as classes popu- recepção é sempre diferencial. Ora, devido às
lares sejam naturalmente dispostas à valoriza- “características sociais e culturais do receptor,
ção da função em detrimento da forma. Estes não se pode afirmar que a homogeneização das
gostos são valorizados, a saber, pela aquisi- mensagens emitidas leve a uma homogeneiza-
ção insensível desse estilo de vida que acaba ção das mensagens recebidas, e menos ainda, a
por consagrar os agentes como pertencentes uma homogeneização dos receptores” (BOUR-
a uma determinada classe. Os estilos de vida DIEU, 2016[1966], p. 68).
são, portanto, uma forma de identificação, mas
ao mesmo tempo, diferenciação do grupo com “As diferentes classes sociais se distinguem
relação aos demais. A reivindicação à limpeza menos pelo grau de reconhecimento a cultura
e austeridade por um grupo é o contrapor-se legítima do que pelo grau em que elas a co-
à suposta sujeira e falta de comedimento de nhecem” (BOURDIEU, 1983[1976], p. 94). As
outro (BOURDIEU, 1983[1976]). classes desapropriadas da cultura erudita re-
conhecem-na como tal. Mas mesmo com esse
E, com tudo que foi exposto até aqui, po- reconhecimento é inegável o sentimento de
demos entrar numa questão fundamental para exclusão daqueles que não a possuem. Ela se
alcançarmos os objetivos a que nos propomos: apresenta como um universo estranho e ina-
as condições de apropriação legítima da alta cessível. Porém, para aqueles com maiores ní-
cultura. Com base na exposição precedente, a veis de escolarização, o sentimento é oposto:
disposição estética, ou seja, o olhar puro – o a compreensão das obras como um “atributo
gosto da liberdade, da reflexão, do prazer puro estatutário”. A distância em relação às obras
que enfatiza a forma e não o conteúdo (BOUR- da cultura legítima, nesse sentido, é mediada
DIEU, 1983[1976]) – não pode ser outra coi- pela relação tanto ao sistema escolar quanto
sa que “uma dimensão de um estilo de vida à educação familiar. Essas mediações operam
no qual se exprimem, sob uma forma irreco- na lógica da socialização e do desenvolvimento
nhecível, as características específicas de uma de uma matriz de percepções e disposições, ou
condição” (BOURDIEU, 1983 [1976], p. 87). A seja, um habitus que domine “naturalmente” os
disposição estética, portanto, se constituirá se códigos de decifração da cultura legítima.
as urgências materiais e imediatas da vida pu-
derem ser bloqueadas. É com o recalque das Todo o esquema de construção da matriz
funções práticas, com a possibilidade de pensar de percepções – hábitus – que apresentamos
os elementos do mundo para além do “pra que acima e que terminam por agrupar e diferenciar
serve?”, que o desprendimento, característico os agentes, constituindo as classes e frações
do olhar puro, se tornará possível. E, portanto, de classe às quais correspondem um estilo de
8 nada vai distinguir “mais rigorosamente as dife- vida; se dá, em um primeiro momento, no grupo
rentes classes do que as disposições e as com- familiar. Inicialmente pelo domínio e transmis-
petências objetivamente exigidas pelo consu- são do padrão culto da língua, a família, para
mo legítimo das obras legítimas” (BOURDIEU, além da herança material dos bens, faz pesar
1983[1976], p. 89). sobre o herdeiro uma herança cultural. Esta
assume papel chave no desenvolvimento tanto
Podemos apontar então, junto com Bour- no êxito escolar quanto no percurso profissional
dieu, que “toda tentativa de produzir um orga- que será seguido. A criança incorpora uma série
non estético comum a todas as classes, está de expectativas e formas objetivas de lidar com
condenada de antemão” (BOURDIEU, 1983 o mundo devido à acumulação anterior de seus
[1976], p. 86). Soluções que, por exemplo, apon- parentes dos mais diversos tipos de capital: es-
tem para além da cultura erudita e enxerguem tético, cultural, social, de informação e simbóli-
na cultura de massas uma oportunidade de co. Todas essas informações do mundo e sobre
redução das desigualdades culturais são, ne- o mundo ao serem incorporadas por um agente
cessariamente, insuficientes. Em primeiro lugar, possibilitam uma visão sobre o que ver e o que
Bourdieu demonstra como as desigualdades se não ver; o que sentir e o que não sentir; onde ir

69
e onde não ir: o seu local na sociedade junto com apenas no acesso ao ensino superior em geral,
as possibilidades objetivas e subjetivas para al- mas também nos diferentes percursos em seu
cançá-las são desenvolvidos nesse processo de interior, seja no curso escolhido, seja na insti-
socialização primária (BOURDIEU, 2016[1966]). tuição de destino, ou seja, em como o aluno irá
Resumindo, “cada família transmite a seus fi- se relacionar com o conteúdo ensinado. Mais do
lhos, mais por vias indiretas do que diretas, um que dificuldades econômicas, a explicação para
certo capital cultural e um certo ethos, sistema a manifestação destas desigualdades no ensino
de valores implícitos e profundamente interio- superior está atrelada à afinidade com a cultura
rizados, que contribui para definir as atitudes legítima herdada na socialização com a família.
faces ao capital cultural e à instituição escolar”
(BOURDIEU, 2016[1966], p. 46). Desta forma, a A noção de capital cultural é o critério fun-
família contribui para a reprodução das relações damental para a investigação das desigualdades
sociais em dois aspectos: “não somente pela no desempenho escolar. Trata-se de um recur-
transmissão de uma herança cultural, mais ou so de viés não predominantemente econômico,
menos próxima da cultura escolar legítima, mas mas que opera sistematicamente na diferencia-
também pela naturalização que ela opera sob ção de classes sociais, como pode ser visto na
o disfarce dos dons que dissimula o trabalho sua interlocução com a escola. O nome “capital”
social da herança” (SINGLY, 2017, p. 196). é dado, uma vez que “implica igualmente [em
relação ao capital econômico] na produção, dis-
Cada criança chega à instituição escolar com tribuição e consumo de bens capazes de render
os capitais herdados do seio familiar. Sabendo dividendos, ou seja, proporcionar lucros simbó-
que “a ação do meio familiar sobre o êxito es- licos a seus detentores”. Ao mesmo tempo, o
colar é quase exclusivamente cultural” (BOUR- qualitativo “cultural” refere-se a este capital ser
DIEU, 2016[1966], p. 46), a instituição escolar “uma outra dimensão da realidade social”, para
ao assumir uma postura de mera neutralidade além da esfera econômica (NOGUEIRA, 2017, p.
diante dos alunos, acaba por realizar a tarefa 104). Sobre o conceito de capital cultural, Bour-
de reprodução e legitimação das desigualda- dieu (2016[1976]) afirma que é possível encon-
des socialmente condicionadas. Nesse sentido, trá-lo em três estados: 1) no estado incorpo-
a escola atua: 1) como um processo de legiti- rado, na forma de disposições duráveis que se
mação das desigualdades sociais, afirmando-as encontrem no corpo de uma pessoa – trata-se
como desigualdades de mérito e, dessa forma, da configuração fundamental do capital cultural
favorecendo os mais favorecidos e excluindo os –; 2) no estado objetivado, por meio de livros,
desfavorecidos; 2) legitimando o dom cultural quadros, instrumentos e outros bens culturais;
tratando-o como dom natural; 3) escondendo a 3) no estado institucionalizado, presente em
relação entre exclusão e reprodução do sistema certificados escolares que conferem, suposta-
social e da estrutura de classes e frações de mente, a garantia do capital cultural.
classes das sociedades altamente diferencia-
das. A escola acaba por legitimar o capital cul-
tural incorporado, adquirido no seio da família,
Esta lógica da reprodução não existe ape- ao não transmitir metodicamente os códigos de
nas no início da escolarização. Ela continua a apreensão da cultura legítima, mas, ao mesmo 70
se manifestar ao longo do percurso estudan- tempo, requisitá-los insensivelmente de cada
til. A análise de Bourdieu e Passeron (2014 um. Neste processo, a trajetória social e a so-
[1964]), presente no livro Os herdeiros, apon- cialização primária são obscurecidas e, no mes-
ta para uma vasta influência da origem social, mo movimento, reconhece-se a cultura “autên-
seja a partir de efeitos diretos ou indiretos, no tica” (penetrada pela ambição da originalidade
acesso ao nível superior. A bagagem cultural do indivíduo, pela noção de um espírito “culto”,
é indicada como um peso mais que relevante pela familiaridade com a alta cultura) e desle-
para a definição dos destinos escolares, mar- gitima-se o saber “escolar” (BOURDIEU, 1983
cando se o aluno, ao concluir o ensino obriga- [1976]). Eis a ideologia do dom.
tório, prosseguirá nos estudos direcionando-se
ao âmbito universitário – atividade comparada A ideologia do dom sugere um duplo aspecto.
pelos autores a práticas aristocráticas devido Primeiro, o obscurecimento do processo de so-
ao distanciamento das necessidades práticas – cialização primária, acaba por “atribuir aos dons
ou se irá se direcionar ao mercado de trabalho. pessoais a responsabilidade pelas diferenças de
As desigualdades, porém, não se manifestam êxito verificada entre alunos” (BUENO, 2017, p.

70
151). O aspecto que sucede esse momento é a marcas que atestam como é “necessário” que
diferenciação dos êxitos escolares, ao separar o eles estejam onde, de fato, estão. Estas mes-
saber pelo saber (puro) do saber pelo conceito mas marcas os mantêm no mesmo lugar e, por
(escolar e pedagógico). Nesse sentido, o apren- fim, cada um tem aquilo que sempre mereceu e
dizado espontâneo da cultura que “confere a desejou. Mas, como astutamente sugere Bour-
certeza de si, correlativa à certeza de deter a dieu, nada além do que desejou.
legitimidade cultural, princípio do desembaraço
ao qual identificamos a excelência” (BOUR- Com base nas estatísticas de frequência
DIEU, 1983[1976] p. 97), é o processo reverso a teatros, museus e demais espaços culturais
da exclusão e depreciação dos alunos menos que Bourdieu (2015[1970]) mobiliza é possível
favorecidos culturalmente por sua aparente in- concluir que os bens culturais pertencem, de
capacidade natural. O cerne deste processo é fato, àqueles dotados dos códigos de interpre-
sua face mistificadora das reais desigualdades tação, ou seja, aqueles que tiveram o privilégio
socioculturais dos alunos. de, por uma dada socialização, incorporá-los.
Há claramente uma forte relação entre eleva-
Todo esforço realizado até aqui aponta para do consumo cultural dos bens legítimos e as
o caráter essencial da análise sociológica da classes e frações de classes que poderíamos
educação proposta por Bourdieu. A sociologia chamar de classes dominantes, isto é, aqueles
da educação se constitui como “ciência das re- grupos detentores de grande volume global de
lações entre a reprodução cultural e reprodução capital econômico, cultural e social.
social” (BOURDIEU, 2015[1970], p. 295). Não há,
portanto, uma cultura homogênea transmitida Contudo, em uma análise mais aprofundada
harmoniosamente pelos agentes pedagógicos, da estrutura de classes e frações de classe, não
ou seja, pela família e pela escola (BOURDIEU, podemos nos contentar com a utilização ge-
2015[1970]). Por esta razão, uma sociologia da nérica do termo classes dominantes. Acompa-
educação se torna, necessariamente, uma so- nhando ainda as análises que Bourdieu realiza
ciologia do poder. E, mais do que isto, se as na França da segunda metade do século XX é
relações de força, a partir da estrutura social, possível dizer que dentro do grupo dominan-
torna-se-iam relações de sentido (como propõe te não existe uma progressão entre aqueles
a teoria de Bourdieu), logo, uma sociologia da que menos acumularam os diversos tipos de
educação também é uma sociologia do conhe- capitais e aqueles que mais acumularam. An-
cimento. O conhecimento não existe como tal, tes, existe uma oposição entre as frações de
mas é imerso nas relações de poder se articu- classe com mais capital econômico e menos
lando com a legitimação (ou não) de determina- cultural (grandes comerciantes e empresários
dos saberes e costumes. industriais) e as frações de classe com mais
capital cultural e menos econômico (profes-
Na interpretação de Bourdieu, a cultura só sores e técnicos e dirigentes do setor público)
existe na forma de símbolos; símbolos estes que (BOURDIEU, 2015 [1970]). Em ambos os casos,
provém das condições materiais de existência e, as escolas são fundamentais na lógica das san-
nesse sentido, das relações de classe. A produ- ções para a reprodução da ordem social vigente.
0 ção da realidade, já que não existe em sui ge- Com suas escolhas de destinos prévios, ma-
neris, deriva da própria percepção do simbólico, nejados na socialização pela família, cada gru-
inculcada no processo de socialização próprio po desse polo opera na sua própria lógica para
de cada segmento social. Assim, a realidade que a distinção tanto para sua reprodução quanto
cada agente observa é indissociável das rela- para a sua afirmação no campo das classes do-
ções de força entre as classes. Isto é nomeado minantes (BOURDIEU, 2016[1966]).
por Bourdieu de poder simbólico, ou seja, repre-
sentações incorporadas pelos agentes sociais Cada fração de classe do grupo dominante
que justificam simbolicamente a posição que luta pela valorização daquilo que lhe é próprio.
ocupam, transmutando diferenças objetivas em Daí, as frações mais ricas em capital econô-
diferenças subjetivas (MICELI, 2015). E estas mico, apesar de, igualmente possuírem relati-
diferenças subjetivas, incorporadas simbolica- vo capital cultural se comparados às demais
mente, são aquelas que estão na superfície e, classes, priorizam os “investimentos econô-
portanto, legitimam as desigualdades. Os agen- micos em lugar de investimentos culturais e
tes que emergem de um determinado proces- educativos” (BOURDIEU, 2015[1970], p. 324).
so de socialização possuem em si mesmos as Por outro lado, as frações de classe mais ricas

71
em capital cultural, lutam pela acumulação in- colégios tradicionais e renomados ao mesmo
cessante desta forma de capital, para manter tempo em que possibilitam um capital de in-
sua raridade específica e pela valorização de um formação sobre o “cursus” para a universidade,
estilo de vida mais ascético, contrapondo-se às incentivando-os a fazer o vestibular “treineiro”,
frações mais ricas em capital econômico. Por proporcionando, assim, toda a calma, seguran-
esta razão, as frações de classe ricas em ca- ça e tranquilidade para o sucesso no ingresso.
pital cultural tendem a se lançar abertamente Além de tudo isto, a habitualidade com o espa-
às sanções escolares, pois, como sugere Bour- ço universitário também é fundamental como
dieu elas “nada podem opor à atração exercida incentivo inconsciente as escolhas.
pelos signos de consagração escolar que sua
dedicação escolar lhes assegura” (BOURDIEU, No que se refere ao papel da escola, a aná-
2015 [1970], p. 331). Mesmo assim, a lógica da lise de Nogueira aponta a escolha dos pais por
reprodução social tende à manutenção dessa escolas privadas e de maior qualidade quanto
oposição e da posição de cada uma dessas fra- mais se avança no percurso escolar. No ensino
ções de classe na estratificação. A progressiva médio, por exemplo, só há um caso de um an-
acumulação de capital cultural pelas frações tigo estudante de escola pública nos 37 casos
dominadas do grupo dominante não tem poder analisados. Sobre as instituições escolares, o
para provocar a médio prazo uma reformulação estudo realizado por Nogueira dá maior ênfase
dentro deste grupo, no que se refere à posição no conhecimento proporcionado pelas escolas
no espaço social. O sistema escolar não tem e cursinhos do que na continuação e consoli-
força para impor absolutamente suas próprias dação do habitus produzido no âmbito familiar,
hierarquias na sociedade mais ampla e, por esta dado ao forte papel da família na possibilitação
razão, “o diploma vale fora do mercado escolar de desejos a destinos universitários e acadê-
o que seu detentor vale econômica e social- micos (NOGUEIRA, 2000). É importante notar
mente” (BOURDIEU, 2015[1970], p. 333). Quan- que, como sugerido na exposição do modelo
to mais se eleva na hierarquia social mais “o teórico, é numa específica socialização familiar
diploma não passa, em última instância, de uma que os indivíduos desenvolvem uma matriz de
caução facultativa que serve para legitimar a percepção que, no caso analisado por Nogueira,
herança” (BOURDIEU, 2015 [1970], p. 334). os fazem realmente interessados nos estudos
e nas carreiras escolares. Não é um mero in-
II teresse verbalizado, mas sim a incorporação de
um determinado habitus no seio de famílias de
Nas linhas que seguem apresentaremos, professores universitários, que faz com que os
a partir de casos empíricos, como acontece a jovens desenvolvam uma real libido pelos estu-
reprodução de ambas as frações de classe do dos para poderem e quererem investir em tais
grupo dominante e como, necessariamente, carreiras.
esta reprodução, por mais que com especifici-
dades em cada caso, passa pela escola e pela Além da universidade ser uma quase evi-
família. Inicialmente observaremos a lógica da dência nas trajetórias das famílias oriundas
reprodução das camadas intelectualizadas, par- desta fração de classe é cada vez mais notório
tindo do estudo realizado no Brasil por Maria a internacionalização dos estudos. Ou seja, cada 72
Alice Nogueira (2000) sobre alunos de gradua- vez mais os filhos das famílias ricas em capital
ção ou recém-formados da UFMG filhos de pai cultural passam por experiências de estudos no
e mãe professores do ensino superior, com alta exterior. Este aspecto é observado em outro ar-
titulação acadêmica. tigo de Maria Alice Nogueira (1998). Nesta aná-
lise é percebido que pais professores com alta
As famílias deste meio exercem importante titulação acadêmica recorrem a variados meios
influência na trajetória de seus filhos, que são para que seus filhos tenham experiências de
socializados de forma a enxergar a universida- estudos no exterior. O intuito último é de que
de como um caminho completamente natural. tais experiências possam gerar tanto efeitos
Como aponta Nogueira, “mais do que uma de- diretos sobre o percurso escolar (domínio de
cisão, a ida para a universidade aparece, nestas outro idioma) quanto efeitos mais difusos (enri-
trajetórias com a força de uma quase evidência” quecimento cultural). A autora demonstra como
(2000, p. 32). De forma consciente ou incons- há um verdadeiro esforço dos pais com vista a
ciente os pais dão todo o suporte para a rea- este fim. Uma estratégia muito frequente diag-
lização desta trajetória. Colocam os filhos em nosticada por Nogueira é o aproveitamento de

72
bolsas de pós-graduação no exterior como um O foco de sua pesquisa é sobre as famílias
meio de possibilitar uma experiência internacio- francesas da velha burguesia e a nobreza afor-
nal para os filhos. Em vários casos, conforme tunada, cuja educação e instrução das jovens
o artigo sugere, a decisão dos pais em passar gerações é decisiva no processo de reprodu-
uma parte da pós-graduação no exterior estava ção social e para a produção de herdeiros que
até mais relacionada com os estudos do filho façam jus à sua linhagem. Como diz Pinçon e
que com a própria carreira do pai ou da mãe. Pinçon-Charlot, antes de tudo, “o herdeiro é
E, neste cenário, a incorporação de todos estes herdado por uma herança” (2002, p. 16).
estímulos ao aprendizado de línguas e de ou-
tras culturas se dá de modo natural e, em ge- Alinhado ao modelo teórico de Bourdieu,
ral, prazeroso. Mas, no final do processo, o que esta pesquisa empírica demonstra que o pri-
aparecerá é apenas um indivíduo dotado de um meiro estágio deste processo de socialização
amplo capital cultural que pode ser mobilizado que produzirá os herdeiros observa-se nas
em situações oficiais (provas, vestibulares, en- famílias. “Ela está no centro dos processos de
trevistas de emprego) e não oficiais (conversas acumulação, conservação e transmissão do ca-
informais, amizades, matrimônios) para gerar pital econômico e das formas de capital que
retornos crescentes. formam as grandes fortunas” (2002, p. 14). O
peso cada vez maior dos diplomas escolares,
Seja no esforço para internacionalizar os forma de institucionalização da legitimidade do
estudos, seja na escola do país onde se resi- conhecimento, levou as famílias tradicionais a
de, outra questão fundamental neste proces- entrarem na concorrência pelo acesso às gran-
so de reprodução social é o capital social que des escolas. O reconhecimento da importância
pode ser construído nas escolas. Este aspecto dos diplomas, após a resistência inicial, indica a
é trabalhado por Bonaldi (2017), que aponta a ideia de mudança para a reprodução da posição,
escola como possibilitadora de uma rede de so- a qual foi apresentada no início deste artigo.
ciabilidade, tanto com os amigos quanto com Nesse sentido, a entrada desses herdeiros na
os professores, que articula afastamentos ou competição reflete uma mudança do espaço
aproximações a um determinado estilo de vida, social de modo que “a evolução das relações de
compatível com o investimento feito pelos pais força entre as classes tende [agora] a excluir
na educação dos seus filhos. Assim, a influência de modo mais completo a imposição de uma
dos colegas atua como forma de capital social hierarquia fundada na afirmação bruta e brutal
e consolidação das trajetórias. Um exemplo é das relações de força” (BOURDIEU, 2015[1970],
o caso de uma informante de Bonaldi que ao p. 311). O que existe neste mecanismo é uma
mudar para uma escola de maior qualidade em faceta do poder simbólico em que, a saber, as
relação à primeira, relata o seu afastamento relações de sentido são “a modalidade com que
dos antigos amigos devido ao que ela chama de as relações de força se manifestam” (MICELI,
“desinvestimento escolar”. A escola, portanto, 2015, p. 13).
também é um meio de acumulação de relações
que podem ser mobilizadas de forma conscien- A despeito desta entrada na concorrência
te e inconsciente para reprodução das posições pela obtenção de diplomas, a escola foi enten-
2 sociais (BONALDI, 2017). dida apenas como espaço de instrução, um “mal
necessário”. As famílias se mantiveram como o
Em oposição à fração citada no parágrafo principal espaço de educação das novas gera-
acima estão os grupos ricos em capital econô- ções. É importante destacar que “no caso das
mico. A partir de agora trataremos das elites famílias da alta sociedade, a parcela do explíci-
econômicas de diversos países (França, Ingla- to parece ser maior do que alhures” (PINÇON;
terra, Estados Unidos da América e Rússia) PINÇON-CHARLOT, 2002, p. 15). Neste pro-
que pertencem à fração de classe dominante do cesso, a primeira herança a ser transmitida
grupo dominante. Mesmo constituindo grupos para os herdeiros é a linhagem resguardada no
dominantes diferentes, devido às diferentes berço da grande mansão. De modo implícito, o
experiências nacionais, perceberemos seme- jovem será ensinado a cultuar seus antepassa-
lhanças no que diz respeito aos mecanismos de dos, valorizando a história da sua família e se
perpetuação da sua posição. Referente a esse apresentando como pertencente a tal; o “nós”
grupo iremos inicialmente expor a socialização acima do “eu” representado pela utilização do
dos herdeiros ricos na França tratada no texto sobrenome.
de Pinçon e Pinçon-Charlot (2002).

73
A segunda herança se dá partir da trans- necem uma rica ilustração a partir de um es-
missão imperceptível da cultura nas famílias da tudo comparativo entre internatos americanos
alta nobreza e na velha burguesia. De maneira e ingleses. Há uma diferença central entre as
sempre precoce, a transmissão da alta cultura respectivas elites que utilizam estes colégios
se dá a partir do afeto entre os familiares. A para educação e produção de seus herdeiros:
apropriação é sempre de modo natural e não
como um conhecimento externo. A própria casa “Uma diferença-chave entre a Inglaterra
é um museu de alta cultura que desde muito e os Estados Unidos é uma aristocracia
cedo, o herdeiro se apropria, insensivelmente, e dona terra socialmente reconhecida no
que ficará em sua mente como “uma lembrança primeiro país. Na Inglaterra o pertenci-
maravilhosa da infância e do calor da relação mento a uma família (reforçado pela ri-
com uma avó atenciosa” (PINÇON; PINÇON- queza quando possível) é ainda a base
-CHARLOT, 2002, p. 18). Nestas práticas que primária da distinção social, enquan-
fazem o herdeiro se apropriar da alta cultura, to que, nos Estados Unidos, a riqueza
quase por “osmose”, inclui-se um cosmopolitis- (usualmente sob a forma de propriedade
mo perceptível tanto nos vários idiomas falados de firmas) pode ser reforçada pela família
quanto nas muitas viagens ao exterior. e/ou pela etnia”.

Como já dito, a escola insere-se na lógica Percebe-se que a elite inglesa descrita neste
da instrução. Os saberes, as boas maneiras e texto se assemelha às elites francesas estuda-
a disciplina são centrais nesta instituição. Pin- das por Pinçon e Pinçon-Charlot pela proximi-
çon e Pinçon-Charlot apontam que nas fases dade com a aristocracia e pelo capital simbólico
iniciais do ensino (primário) a opção destas fa- referente à linhagem. As elites norte-america-
mílias não é de modo exclusivo pela escola pri- nas, por sua vez, apresentam características
vada. Muitos herdeiros iniciam sua vida escolar distintas, devido ao processo histórico de for-
na escola pública. Porém, a segregação espacial mação do país. Desde a análise de Tocqueville
nas cidades francesas permite que os filhos (2004) sobre o desenvolvimento da democracia
das frações de classe aqui descritas predomi- americana está claro que a não existência de
nem nas escolas dos bairros nobres onde estas uma aristocracia dona de terras marcou subs-
famílias vivem. Além disto, o grau de ingerên- tancialmente a formação desta sociedade.
cia destas famílias na própria escola é bastan-
A comparação entre os internatos nos dois
te elevado devido a sua supremacia simbólica,
países permite perceber que as características
tornando os “estabelecimentos públicos prati-
de cada sociedade influenciam bastante nos
camente privatizados em seu funcionamento”
modos como as escolas realizarão sua tarefa
(PINÇON; PINÇON-CHARLOT, 2002, p. 21).
de instrução. Neste processo, Cookson Jr. e
A utilização das escolas públicas se limita Persell (2002[1985]) apontam três fatores fun-
às fases muito iniciais. Para se evitar os conta- damentais para essa reprodução: os diretores, a
tos crescentes com filhos de empregados que disciplina dentro dos internatos e os currículos.
moram na mesma região, busca-se instituições A diferença na operacionalização destes aspec-
escolares mais seletivas. Os métodos peda- tos em cada internato está intimamente ligada
74
gógicos que colocam o aluno como o principal à história de cada país, e acaba por reproduzir
responsável pela sua formação são frequentes. um tipo de herdeiro específico, dotado de es-
Eles estimulam o controle de si, de sua apre- quemas de percepção e ação que o diferencia
sentação e o senso de responsabilidade, ao dos demais em um dado contexto sociocultural.
mesmo tempo que fornecem uma educação
Mas a despeito de todas as diferenças li-
cosmopolita com línguas estrangeiras e a con-
gadas à estrutura social, o essencial dos in-
tinuação da “relação de familiaridade profunda
ternatos é socializar os membros da elite para
com as obras de arte e a história” (PINÇON;
produzir herdeiros tradicionalistas. Os interna-
PINÇON-CHARLOT, 2002, p. 24).
tos operam, em geral, na produção de estu-
Se, conforme aludido acima, uma educação dantes provavelmente conservadores e prote-
cosmopolita é incentivada, não se deve perder tores de sua linhagem. E separar os jovens em
de vista que as especificidades nacionais tam- internatos é uma das estratégias para evitar
bém marcam estes processos de reprodução. os possíveis contatos com membros de outras
Cookson Jr. e Persell (2002[1985], p. 105) for- classes como os empregados e os novos ricos.
Aqui, a segregação consciente opera como uma
74
das estratégias destas famílias para manter a escolas, com o ensino de línguas estrangeiras,
distinção social entre as classes e frações de eram exceções no interior do sistema e, devi-
classe. Neste sentido, o controle matrimonial do a sua diferenciação adjunta a seu perfil de
torna-se outra forma importante da reprodu- excelência, tornaram-se instituições desejadas
ção social. E aqui voltamos ao texto de Pin- pelas elites.
çon e Pinçon-Charlot para apresentar outra
estratégia complementar, do caso francês, que A composição dessas escolas acabou por
também utiliza da segregação, da criação de ser fortemente homogênea, tendo como alu-
espaços exclusivos de socialização. Estamos nos, sobretudo, os membros dos grupos proe-
falando dos Rallyes, ou seja, grupos de jovens minentes da federação russa da União So-
de ambos os sexos na faixa etária dos 11 aos viética. As escolas tornaram-se, então, um
13 anos para realização de atividades de lazer, importante espaço de socialização para as
culturais e esportivas. Intimamente ligados à poderosas famílias da Rússia socialista. Essa
atuação das famílias, os rallyes são “grupos de exclusividade se deu, principalmente, pelos se-
crianças e adolescentes cuja composição é de- guintes fatores: 1) a segregação espacial das
finida cuidadosamente pelas mães fundadoras” cidades russas adjunta a maior presença das
(PINÇON; PINÇON-CHARLOT, 2002, p. 26). O escolas especiais nos bairros centrais e histó-
intuito último é a aproximação dos jovens das ricos, onde viviam estes grupos diferenciados;
famílias ilustres e a consequente separação dos 2) a seleção dos alunos que, no fim, era feita
novos ricos que também podem pagar as caras pelos diretores. Estes muitas vezes cediam às
escolas, mas possuem “costumes primitivos”. pressões de pais notórios na aceitação de seus
Nos rallyes, a transmissão da alta cultura man- filhos (TCHEREDNITCHENKO, 2002[1993]).
tém o mesmo padrão que no seio da família. Por fim, o acesso restrito às escolas de línguas
permitiu às famílias russas mais proeminentes
Um último caso empírico é a manutenção possuir um capital cultural que as mantivessem
da posição social das elites russas. Este caso em sua importante posição conforme a Rús-
é relevante, uma vez que exemplifica como o sia voltava a ser uma economia de mercado.
fenômeno da reprodução social possui largo al- Quando a transformação da estrutura política e
cance. Até aqui estudamos casos de reprodu- econômica se findou, elas possuíam o domínio
ção que, no máximo, se deram de uma estru- de línguas estrangeiras, principalmente o inglês,
tura social diferenciada para outra igualmente que na sociedade globalizada que estava a se
diferenciada. O caso das elites russas, na pas- constituir era e é fundamental para a ocupação
sagem do período soviético para o pós-soviéti- das principais posições sociais.
co, nos fornece um exemplo em que um grupo
que se consolidou numa posição de destaque O caso das escolas russas ilustra bem como
(elite política e inteligentsia) numa sociedade elites econômicas e/ou culturais acabam por
não economicamente (porém, simbolicamen- estar melhor posicionadas para adotar estra-
te) estratificada utilizou-se de determinados tégias mais eficazes nos momentos de intensa
mecanismos para manter sua posição após a transformação social. Elas conseguem cap-
transformação da estrutura social e, por conse- tar mais rapidamente o sentido e a lógica das
4 quência, dos sistemas de ensino. Neste sentido, transformações para utilizá-las em seu favor
o fato de partir de uma situação de maior nive- (NOGUEIRA, 1998, p. 128). Entende-se, portan-
lamento econômico, não impediu os grupos que to, a estratégia bem-sucedida das elites rus-
possuíam destaque de manter sua posição no sas com as escolas de línguas num contexto de
espaço social mesmo após drásticas mudanças. abertura política e, ao mesmo tempo, de cos-
mopolitização do ensino, não só na Rússia, mas
As escolas especiais de língua na Rússia, a nível mundial. Após o reequilíbrio da estrutu-
descritas por Tcherednitchenko (2002[1993]), ra social, aquelas famílias bem posicionadas no
forneceram privilégios culturais (representados período soviético possuíam um valioso capital
pelo domínio de línguas estrangeiras) para os para a manutenção de seu posto no alto da
filhos dos dirigentes e da inteligentsia, ou seja, hierarquia social.
aos grupos destacados. As escolas especiais
de língua foram um instrumento de reprodução III
social que as elites da época de Khruchtchov
À guisa de conclusão, é importante apon-
buscaram reconstruir, dado a liberação cada
tar que todo movimento realizado pelas elites
vez maior delas em relação ao Estado. Essas
reafirma o argumento central aqui defendido: a
75
transformação com vista à reprodução. Ora, se mente das elites econômicas que tem a escola
os títulos escolares se impõem como uma força apenas como ambiente de ensino sem dever
irresistível às frações ricas em capital econô- tudo a ela, as elites culturais retiram do sis-
mico, a adesão aos valores escolares por elas tema escolar tudo o que são e dependem dele
implica, igualmente, uma série de estratégias para manter sua posição na estrutura social.
conscientes e inconscientes para que, mesmo
aderindo as sanções escolares, perpetuem-se Como visto, há diferenças fundamentais na
enquanto tal. Não acontece, como vimos, uma relação das elites culturais ou econômicas com
adesão simples ao sistema escolar, mas junto a escola. Mas, a despeito destas diferenças, o
a isto um movimento que leva a própria esco- que salta aos olhos nas várias pesquisas mo-
la e a sociedade mais ampla à valorização de bilizadas é a constante necessidade de grupos
conhecimentos e práticas que, definitivamen- restritos criados e/ou controlados consciente-
te, só encontram lugar de aprendizagem em mente com vista à reprodução da ordem social
locais deveras restritos. A criação dos rallyes, e manutenção das relações de força entre as
por exemplo, aponta uma estratégia conscien- classes. Destes grupos é justamente a família o
te adotada pelas elites francesas para frear os mais restrito de todos. A sociologia da educa-
vários contatos e manter o círculo sempre res- ção, ao desnaturalizar e desmistificar a família,
trito, de modo a garantir os costumes refinados a expõe como o grupo que, em aliança com o
e o matrimônio adequado para seus filhos. sistema escolar, atua em sentido a reprodução
da ordem social. Naquela socialização muito
Os internatos, tanto norte-americanos precoce, geradora de determinadas disposições
quanto ingleses, operam na mesma lógica: um – a constituição inicial do habitus –, as clas-
ambiente fechado às demais classes e frações ses dominantes podem se perpetuar enquanto
de classes possibilitando a criação de um estilo tal. Sejam as frações ricas em capital cultural
de vida condizente com suas condições mate- que, como vimos com os filhos de professores,
riais. Junto a isto, os internatos são uma forma transmitem a libido e a vontade de se dedi-
de continuar o processo de criação de um ha- car aos estudos e, por consequência, garantem
bitus alinhado àquele iniciado no seio da família. sua posição de, ao menos, dominados dentre os
Portanto, em cada sociedade, com sua respec- dominantes; sejam as frações ricas em capital
tiva tradição e cultura, estas escolas operam na econômico que, tendo de articular novos me-
reprodução das elites econômicas, mantendo canismos para a manutenção da ordem social,
sua posição de dominantes dentre as frações continuam a produzir em seus lares, mas não
dominantes. só, todos aqueles indivíduos completamente
dotados de atributos que os distinguem e di-
Em oposição às frações de classe ricas em ferenciam dos demais, fazendo com que eles
capital econômico, há as frações ricas em ca- apareçam como “naturalmente” dotados de
pital cultural. Para estas, o sistema escolar é tudo quanto é valorizado socialmente. A famí-
fundamental para manter sua posição. Nestas lia é, portanto, este grupo deveras restrito que
famílias, a universidade aparece como uma evi- acaba por, inicialmente, monopolizar a matriz de
dência. Os filhos de professores pesquisados percepção e ação dos agentes e, em seguida,
por Maria Alice Nogueira (1998; 2000) desen- junto a outros círculos, em especial a escola e, 76
volvem na família uma libido pelos estudos e em alguns casos, a escola muito restrita das
um real interesse por tudo que multiplique seu elites, articulam um mecanismo complexo de
capital cultural. Variadas estratégias fazem com inércia que faz com que, mesmo na mudança
que a escola, o aprendizado de idiomas, apareça da estrutura, a ordem social com sua relação
para eles como atividades prazerosas as quais de forças perdure.
vale a pena investir tempo e dinheiro. E tudo
isto é fundamental uma vez que, diferente-

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONALDI, Eduardo Vilar. (2017), “Eu e meus amigos”: capital social, estilos de vida e trajetórias educacionais. Política &
Sociedade, 16, 37, p. 348-376, .

BOURDIEU, Pierre. (2016[1966]), “A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura”, in M.A.Nogueira &
M.A.Catani (Ed.), Escritos de educação. Petrópolis, RJ, Vozes. p. 43-72.

76
_____. “Esboço de uma teoria da prática”. (1983[1972]), in R. Ortiz (Org.), Pierre Bourdieu. São Paulo, Ática, p. 46-81.

_____. “Espaço social e poder simbólico”. (2004[1986]), in P. Bourdieu: Coisas ditas. São Paulo, Brasiliense]. p. 149-168.

_____. “Gostos de classe e estilos de vida”. (1983[1973]), in R. Ortiz (Org.), Pierre Bourdieu. São Paulo, Ática, p. 82-121.

_____. “Os três estados do capital cultural”. (2016[1996]). in M. A. Nogueira & M.A.Catani (Ed.), Escritos de educação.
Petrópolis, RJ, Vozes, p. 79-88.

_____. “Reprodução cultural e Reprodução social”. (2015[1970]), in S. Miceli (Org.), A economia das trocas simbólicas. São
Paulo, Perspectiva, p. 295-336.

_____; PASSERON, Jean-Claude. (2014), Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Florianópolis, Editora UFSC, 2014.

BUENO, Kátia Maria Penido. “DOM (ideologia do)”. (2017), in A. Catani [et al]. (orgs.), Vocabulário Bourdieu. Belo Horizonte:
Autêntica, p. 151.

COOKSON, Peter; PERSELL, Caroline. (2002[1985]), “Internatos americanos e ingleses. Um estudo comparativo sobre a
reprodução das elites”, inA.M.F.de Almeida; M.A.Nogueira (Orgs.). A escolarização das elites. Um panorama internacional
da pesquisa, Petrópolis/RJ, Vozes, p. 103-119.

MICELI, Sergio. “Introdução: a força do sentido” (2015), in S.Miceli (Org). A economia das trocas simbólicas, São Paulo,
Perspectiva, p. 7-61.

NOGUEIRA, Maria Alice. (2000), “A construção da excelência escolar. Um estudo de trajetórias feito com estudantes
universitários provenientes das camadas médias intelectualizadas”.,in M.A.Nogueira ; G. Romanelli; N. Zago (Org.). Família e
escola. Trajetórias de escolarização em camadas médias e populares, Petrópolis/RJ, Vozes, p. 125-154.

_____. “Capital cultural”. (2017), in CATANI, Afrânio [et al]. (orgs.). Vocabulário Bourdieu. Belo Horizonte, Autêntica, p. 103-
106.

_____. (1998), “Uma dose de Europa ou de Estados Unidos para cada filho: estratégias familiares de institucionalização
dos estudos”. Pro-posições, 9, p. 1-25.

PINÇON, Michel; PINÇON-CHARLOT, Monique. (2002), “A infância dos chefes. A socialização dos herdeiros ricos na
França”, in A.M.F.de Almeida & M.A.Nogueira (orgs.), A escolarização das elites. Um panorama internacional da pesquisa.
Petrópolis/RJ, Vozes, p. 11-28.

SAHLINS, Marshall. (2008), Metáforas históricas e realidades míticas. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

SINGLY, François de.(2017), “Família”, in A. Catani [et al.] (orgs.), Vocabulário Bourdieu, Belo Horizonte, Autêntica, p. 195-197.

TCHEREDNITCHENKO, Galina. (2002[1993]), “Um espaço reservado – As escolas especiais de língua estrangeira na
Rússia”. in A.M.F.de Almeida & M.A.Nogueira (Org.), A escolarização das elites. Um panorama internacional da pesquisa.
Petrópolis/RJ, Vozes, p. 182-191.

TOCQUEVILLE, Alexis de. (2004), A democracia na américa. São Paulo, Martins Fontes.

6 WACQUANT, Loïc. “Esclarecer o habitus”. (2007), Educação & Linguagem, 16: 63-71.

Recebido em 30 de março de 2019

Aprovado em 27 de agosto de 2019

77
78

78
8

79
REVISTA TRÊS PONTOS | Centro Acadêmico de Ciências Sociais da UFMG| Ano 16, N. 2 | Jul/Dez 2019 | ENTREVISTA

“Nós temos urgência em recuperar nossos ‘re’ positi-


vos, de REaver as nossas REtomadas, de REpensar a sus-
tentação da vida, de reconexão com as nossas identidades”

Entrevista com a liderança Célia Xakriabá

Resumo: Com a intenção de registrar e tornar pública as considerações feitas por Célia Xakriabá Entrevista con-
acerca da atual conjuntura governamental brasileira me vi instigada a realizar essa entrevista. Con- cedida em abril de
2019.
siderando também a relevância da temática sob a qual versa esse dossiê e a restrita circulação das
narrativas indígenas em revistas acadêmicas, percebo as colocações de Célia Xakriabá como signifi-
cativas para repensarmos o nosso lugar como não indígenas ante o cenário político que se configura. Amanda Jardim
As narrativas encontradas aqui foram guiadas por perguntas elaboradas previamente e abordam Mestranda em
as ameaças declaradas aos povos indígenas desde que o presente governo assumiu a presidência. Antropologia pela
Célia, uma liderança jovem de atuação expressiva no movimento indígena nacional, percebe os dis- Universidade Fede-
ral de Minas Gerais
cursos oficiais como ações que promovem o desmantelamento de políticas que até então garantiam
(UFMG), bolsista
o direito dos povos indígenas ao território, à educação e à saúde. Também nota que, em retaliação CAPES.
a expressividade indígena contrária a retirada de direitos conquistados, artifícios extra oficiais são
mobilizados atentando a integridade física dos povos indígenas. Essas questões e outras estão pre- Contato:
sentes na entrevista. Antes de apresentar a entrevista em si, retomo alguns elementos biográficos <jardim.am@gmail.
com>
de Célia, assim como breves comentários acerca da história do povo Xakriabá.

Os Xakriabá pertencem ao tronco étnico-linguístico Macro-Jê, Família Jê, língua Akwe, dialetos
Xávante, Xerénte e Xakriabá, sendo esse último não mais falado. Localizam-se territorialmente no
norte de Minas Gerais, no município de São João das Missões. As terras indígenas xakriabá com-
preendem duas áreas contíguas localizadas no interior do sertão minero e se estendem à margem
oeste do rio São Francisco: TI Xakriabá (homologada em 1987) e TI Xakriabá Rancharia (homologada
em 2003). Trata-se da maior população indígena do estado, composta por cerca de 10.500 habi-
tantes distribuídos em 34 aldeias (LOPES, 2016). Assim como vários povos indígenas, os Xakriabá
passaram, ao longo da segunda metade do século XX, por um processo político de reivindicação
do território e afirmação identitária, também chamado de “emergência étnica” ou “etnogênese” (cf.
OLIVEIRA, J. P., 1999).

Os Xakriabá só foram devidamente reconhecidos pelo Estado brasileiro como etnia indígena
durante a década de 1970. No entanto, a presença desta população em Minas Gerais é largamente
documentada nas fontes históricas do século XIX (SANTOS, A. F., 1997). A criação de um Posto
Indígena pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio), em 1973, foi uma das respostas às ações vio-
lentas de fazendeiros contra este povo denunciadas pelas lideranças xakriabá. Ainda que o Posto 80
se configure como um marco importante no processo de reconhecimento desta etnia, sua criação
não garantiu a imediata demarcação de seu território. Pelo contrário, a intensificação de conflitos
fundiários, somada aos limites da legislação e da política indigenista da época, se estendeu até a
homologação, ocorrida somente em 1987 - após uma trágica chacina de lideranças indígenas. Tais
conflitos persistem e podem ser melhor evidenciados nos processos chamados de retomada terri- 1 As expressões
torial 1, em que há interesse do povo xakriabá pela ampliação de suas terras. Tais processos ocorrem nativas aparecerão
também em outros territórios indígenas e se justificam, dentre outras razões, pelo fato da terra já em itálico.
demarcada não suportar o crescimento populacional e as atividades relacionadas a esse crescimen-
to. Em represália aos movimentos de retomada, os ruralistas muitas vezes ameaçam a vida dos
xakriabá, quando não praticam atos de violência física como forma de impedir a posse da terra que
lhes é reivindicada por direito.

Célia nasceu em São Paulo, capital, em 1989, dois anos após o início da homologação da terra
indígena xakriabá. É filha de Seu Hilário Corrêa e Dona Maria Nunes (também conhecida como Bia).
Seu pai, uma das principais influências na sua iniciação no movimento indígena regional, foi eleito ve-

80
2 Versos entoados reador do município de São João das Missões no início dos anos 2000. Ele é atuante na Associação
em situações es- Indígena Xakriabá da aldeia Barreiro Preto (AIXBP) desde 1995. Atualmente, é Secretário de Cultura
pecíficas, como nas
do município. Célia também se apresenta como neta de Seu Zé do Rolo, seu avô materno. Rezador
festas de casamen-
to. Trata-se de uma
e especialista em Loas2, ele é uma grande referência para sua neta, tendo ela, em sua dissertação
importante expres- de mestrado, se apresentado mencionando a importância de tal ascendência:
são oral xakriabá.
É assim que me apresento, como corpo falante que herda essa ressonância/melodia no en-
3 Historicamente, o
êxodo temporário,
toar da palavra, o que não é muito comum para uma jovem, sendo mais presente entre os
que consiste em mais velhos, que são considerados sábios da tradição da ciência Xakriabá. (...) Sou neta de
sair para trabalhar figura importante nas loas, José de Souza Freire, mestre na entoação em versos, que são
na lavoura de ca- muito comum no meu povo. Meu avô é ainda respeitado pelo conhecimento da tradição oral
na-de-açúcar em Xakriabá, em especial da linguagem cantada. Essa entoação eu trago na minha oralidade e
São Paulo ou Mato
no construir do meu pensar, e é assim que muito me apresento (CORRÊA XAKRIABÁ, 2018,
Grosso do Sul, tem
sido a principal fon-
p. 25).
te de renda extra
encontrada pelos
homens jovens e Seu Manelão (pai da mãe do pai de Célia, falecido) é outra figura importante e mencionada por
adultos xakriabá Célia. Segundo ela, as histórias de Manelão estão muito presentes nas memórias de seus parentes
a partir dos anos e são amplamente narradas quando a escrita de cartas destinadas aos retirantes que haviam se
1960 (GOMES; deslocado para São Paulo3 são revisitadas (JARDIM, 2016).
MIRANDA, 2014;
MONTE-MÓR et Célia Xakriabá é a terceira filha pertencente à geração mais nova da família. Antes dela, nasce-
al., 2006).
ram as irmãs Sandra (em 1985) e Simone (em 1988) e, depois, o irmão Edgar (em 1990)4. Entre as
4 A família em
últimas gerações xakriabá, como observam Gomes, A. et al (2013, p. 218), é possível perceber um
questão possui intenso e acelerado processo de modificação nas condições de vida da população e no território. Os
notoriedade entre sujeitos pertencentes a essas gerações nasceram e cresceram em um período da história xakriabá
os Xakriabá, o que caracterizado pelas homologações das terras indígenas. Também, pela implementação e estadualiza-
pode ser confir- ção das escolas indígenas no território, em 1997. É nesse ano, quando as escolas indígenas começam
mado a partir da
a ser introduzidas na terra indígena xakriabá, através do Piei/MG (Programa de Implementação de
citação de seus
integrantes em al- Educação Indígena em Minas Gerais)5, que Célia dá início a sua trajetória escolar.
guns trabalhos pro-
duzidos por pesqui- Os ditos mais velhos, ante o crescente processo de escolarização de seus filhos, netos e bisnetos
sadores indígenas na terra indígena, denotam uma valorização da leitura, da escrita e dos conhecimentos adquiridos
(cf. LOPES, 2016; na escola ao se referirem à geração descendente como a dos mais sabidos (GERKEN et al, 2004).
OLIVEIRA, A. R. J., Já os mais jovens referem-se aos mais velhos como os professores de cultura (PEREIRA, 2013),
2016), assim como contadores de história (ANASTÁCIO, 2018), jogadores de Loas, raizeiros, rezadeiros (LOPES, 2016) e
por pesquisadores
doutores do cerrado (CORRÊA XAKRIABÁ, 2018).
não indígenas (cf.
ESCOBAR, 2012;
A geração dos mais sabidos, ou seja, a dos mais jovens, é formada por um grande número de
GOMES; MIRAN-
DA, 2014; PEREI- professores que atuam nas escolas indígenas. Nas últimas décadas, tem cabido à juventude xakriabá
RA, 2013; JARDIM, o protagonismo nas disputas territoriais travadas com fazendeiros nos processos de retomada do
0 2016). território, resgate6 da cultura e afirmação de uma identidade anteriormente silenciada entre os mais
antigos (XAKRIABÁ CORRÊA, 2018). Vale notar que a educação escolar indígena também tem de-
5 Em resposta às sempenhado um papel fundamental na recuperação da cultura xakriabá, inclusive no que diz respeito
demandas do mo-
ao processo de revitalização linguística (GOMES, A., 2006).
vimento indígena
por professores in-
Célia, pertencente à geração dos mais sabidos, acompanhou não só como aluna o processo de
dígenas para lecio-
narem nas escolas introdução do Ensino Fundamental e Médio na terra indígena. Após concluir o Ensino Médio, iniciou
das aldeias, a partir sua carreira acadêmica na licenciatura Fiei (Formação Intercultural para Educadores Indígenas -
de 1995, em Minas UFMG) em 2009, e, depois de formada, em 2013, exerceu brevemente o cargo de professora de
Gerais, dá-se início cultura na escola Xukurank (aldeia Barreiro Preto), onde havia estudado. A época tinha apenas 24
ao Magistério In- anos7.
dígena (Piei/MG).
Po s te r i o r m e n te , A formação de Célia na licenciatura, concomitante a sua circulação no movimento indígena, foi
outras políticas pú-
significativa para que assumisse outros desafios, como o cargo de gestora indígena adjunta à Se-
blicas que garanti-
ram a continuidade cretaria de Educação do Estado de Minas Gerais (SEE/MG) na viabilização da criação da categoria
da formação de Escola Indígena para o estado, competência que exerceu de 2015 a 2017. Em meados de 2016, quan-

81
do trabalhava intermediando as demandas dos povos indígenas mineiros junto a SEE/MG, Célia foi professores indí-
aprovada no mestrado profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais da Uni- genas: em 2005, o
Prolind (Programa
versidade de Brasília (MESPT/UnB), concluído em julho de 2018. Ela é a primeira mestra acadêmica
de Apoio à For-
de seu povo. Atualmente, ela cursa o doutorado em Antropologia na UFMG e vê nessa formação mação Superior e
uma oportunidade de atuar na defesa dos direitos indígenas. Licenciaturas Indí-
genas) e em 2009,
Pode-se dizer que Célia é uma liderança reconhecida nacionalmente. Deve-se destacar que a ini- o Reuni (Programa
ciação e representatividade política assumida por mulheres é inusitada entre os Xakriabá (GOMES; de Apoio ao Plano
TEIXEIRA, 2012). Comecei a acompanhar, embora ainda de maneira ainda distanciada, seu engaja- de Reestruturação
mento político no movimento indígena e sua trajetória acadêmica quando ela cursava a licenciatura e Expansão das
Universidades Fe-
Fiei. Quando isso se deu, em meados de 2013, eu era estudante da UFMG (Universidade Federal de
derais).
Minas Gerais) e cursava a graduação em Antropologia. Tinha como interesse de pesquisa a presença
indígena nessa instituição, entretanto, só em 2015 a elegi como interlocutora para a realização de 6 As expressões
meu Trabalho de Conclusão de Curso, o que proporcionou que devolvêssemos ainda mais nossos recuperar, resga-
laços de afinidades e, posteriormente, de comadrio. Hoje, após quase 6 anos acompanhando-a, per- tar ou revitalizar
cebo que parte de meus entendimentos sobre o povo Xakriabá, sobre a presença indígena na uni- contidas aqui refe-
rem-se à retomada
versidade e sobre o movimento indígena estão intrinsecamente ligados a seus discursos e práticas
da cultura, conceito
militantes. Espero, em parte, poder compartilhá-los através dessa entrevista. nativo que tam-
bém faz alusão à
Retomando alguns pontos que considero cruciais em sua trajetória de vida, inicio: retomada territo-
rial, compreendido
por Santos (2010)
como pegar de vol-
Em relação a trajetória de vida Célia, pergunto: trazer essa criança para participar do evento!’ E ta algo que havia
“Como se deu sua iniciação e vínculo com o eu tinha feito uma fala bem importante sobre a sido perdido e dar
movimento indígena?” questão da sustentabilidade. [...] E eu era uma continuidade a algo
pessoa que sempre tava com a mão na cane- que havia sido in-
Ela responde: “Eu lembro que eu tinha treze ta, mas também com uma mão e os pés no
terrompido.
anos de idade quando iniciei no movimento chão do território também. [...] Então, foi muito 7 Segundo Pereira
indígena. Fui iniciada pelas lideranças xakriabá por esse movimentar [acompanhando os pais e (2013), inicialmente,
que começaram a me chamar para participar de outras lideranças] que eu considero que minha aqueles que ensi-
reunião em Brasília, na Funai, reuniões impor- primeira escola foi o movimento indígena e con- navam cultura nas
tantes. Eu lembro que um dos momentos que tinua sendo. Assim como a primeira universida- escolas eram pro-
me marcou no movimento indígena foi quando, de foi o movimento indígena e continua sendo.
fessores emprega-
na ausência de meu pai, que eu acompanha- dos sem educação
[...] Eu considero que os meus professores são formal, sendo eles
va muito, e de outras lideranças no Congresso as lideranças. Eu nunca fiz um curso de Direito. anciãos, artesãos,
Nacional; me pediram para fazer um pronun- Tudo que eu aprendi sobre a legislação foi jun- festeiros, lideran-
ciamento na Câmara. E eu fiquei pensando: ‘... to às lideranças. E é interessante pensar nisso ças, pajés – den-
Esse povo deve tá sem juízo! Como que pode ... Elas não dominam a caneta, mas elas têm tre eles, a grande
uma menina de treze anos assumir uma fala de um poder tão grande pela oralidade, de saber
maioria já de idade
povo assim?’ E eu me senti muito provocada, avançada. Por isso,
na ponta da língua onde é que está o direito. destaco o inusitado
com ansiedade, não sei se a palavra é medo ... É relativo a gente pensar se a gente sabe de fato de Célia assu-
82
Mas aí todas as lideranças começaram a me di- Direito, porque nós somos o próprio. Então, o mir o cargo como
zer que eu tinha uma missão diferente. Porque Direito tá no corpo. É uma narrativa difícil a da professora de cul-
é bem comum as meninas xakriabá com essa área do Direito, mas as lideranças têm de cabe- tura sendo tão jo-
idade de treze, catorze, até os dezesseis anos ça alguns artigos da Constituição de 88, como
vem.
já ir se projetando para constituir família. Com o artigo 231 e o 232. [...] Eu estou sentindo que
treze anos eu estava quase entrando no En- esse meu movimentar no movimento indíge-
sino Médio, estava participando do movimen- na está sendo muito duradouro [...]. Porque às
to de forma mais articulada no território e do vezes as lideranças passam a assumir outras
‘lado de fora’ quando as lideranças me levavam. responsabilidades, que não são menos impor-
Eu lembro que meu pai me levou para partici- tantes, como constituir família. Principalmente
par em Goiânia em um curso de permacultura se avaliarmos que o movimento indígena não é
quando uma liderança não pode estar presente. somente as pessoas que estão projetando vi-
Meu pai, quase dez anos depois, me contou que sibilidade do ‘lado de fora’. Movimento indígena
o pessoal que era financiador do curso falou é todo mundo que está se movimentando na
assim: ‘Nossa! Que irresponsabilidade do Hilário luta de alguma forma. Percebo que essa minha
82
participação na luta como presença efetiva é ... Para mim, ser mulher, principalmente nesse
devido a minha dedicação, em dedicar a minha momento que estamos vivendo, nesse mo-
vida para o movimento. Mesmo que eu esteja mento que existe uma política enferma, de um
na institucionalidade, na experiência, por exem- conhecimento que está em crise, nós, mulhe-
plo, da Secretaria de Educação do governo de res indígenas, não somos apenas a insurgên-
Minas, eu não abri mão do movimento. Em- cia. Porque sempre existiu um movimento de
bora eu sentisse que a institucionalidade me mulheres indígenas, só que ele foi invisibilizado.
prendesse. Mesmo na universidade, eu faço Por exemplo, se eu perguntar pra você: qual
questão de ter esse espaço de forte presen- foi a primeira mulher indígena a ser prefeita?
ça. Assim como outros estudantes indígenas A gente pensa que isso é de agora, mas na
fazem, ao movimentar. Por isso que, mais uma década de oitenta já existia uma prefeita in-
vez, o movimento indígena não é só aqueles dígena. Eu mesma fiquei surpresa quando no
que estão em Brasília. Ele acontece em vários ATL [Acampamento Terra Livre] a gente foi fa-
lugares, ele é orgânico, ele está no nosso corpo, zer essa busca ativa sobre qual foi a primeira
nesse movimentar. O movimento indígena é o mulher indígena a entrar na universidade, so-
corpo em movimento na luta por direitos. Eu bre qual foi a primeira mulher indígena a ser
não me iniciei sozinha no movimento indígena, cacique. Então, a gente percebe que no Brasil
fui iniciada de forma coletiva, pelas lideranças. inteiro existe uma forte articulação das mulhe-
As lideranças começaram a me chamar e dizer res indígenas, mas ela não tinha tanta força.
assim: ‘Olha, o que você faz outras meninas Na época da Constituinte, os discursos políti-
já tiveram oportunidade. Elas passaram a ter cos elaborados estavam vinculados a nossas
limitação porque casaram cedo. Mas você tem lideranças homens, mas já existiram mulheres
uma missão diferente, um potencial.’ E muitas indígenas que estavam na sustentação da luta.
vezes eu não acreditava nisso. Eu lembro muito Então, estamos acreditando muito que esse
do CAA [Centro de Agricultura Alternativa do ano de 2019 é de articulação dessa grande po-
Norte de Minas Gerais] e da Articulação Ro- tência das mulheres indígenas. Tem se dito que
salino Gomes [articulação que reúne povos do o século XXI é das mulheres, em especial das
Norte de Minas e Alto Vale do Jequitinhonha] ... mulheres indígenas, porque nós somos um cor-
Porque eu cresci nesse lugar, junto aos povos po de cura. Nós somos uma luta de cura, tanto
tradicionais, articulando com outros movimen- para se pensar o movimento indígena em geral,
tos, com outras pessoas e nessa época eu não quanto para se pensar em todas as crises vi-
me projetava como liderança. E o movimento venciadas no útero da sociedade. Nós, mulheres
indígena não é um lugar de carreira política, indígenas, estamos repensando e renovando as
onde as pessoas têm em mente fazer uma nossas estratégias de resistência junto às nos-
trajetória, ganhar nome. O movimento indígena sas lideranças indígenas. Nós não chegamos
é muito mais que um movimento social: é um para dividir, causar intriga. Nós chegamos com
movimento tradicional.” essa possibilidade de cura dos lugares nesse
movimentar indígena que precisa da força da
Eu pergunto: “Ainda sobre seu envolvimento mulher indígena, dessa voz. A nossa maior es-
no movimento indígena, gostaria de saber mais tratégia está no corpo e na voz da mulher in-
2 sobre como é ser mulher, ser liderança indíge- dígena que tem muita potência. As mulheres
na, ser mulher liderança?” têm ocupado lugares importantes para além do
chão da aldeia, na institucionalidade, em outros
Célia Xakriabá responde: “Ser mulher e ser mu-
campos da política. A expressão disso é, mais
lher indígena é nascer na resistência. Agora,
de trinta anos depois da Constituinte, ter Joê-
essa palavra que tem sido muito referenciada
nia Wapichana como a primeira mulher indígena
do ‘lado de fora’: liderança. Ela tem dois signi-
deputada federal. Expressão disso também são
ficados. Internamente [entre os Xakriabá], ser
as muitas mulheres indígenas sendo as primei-
liderança é uma outra coisa. Embora algumas
ras a ocuparem cargos institucionais. Ocupar,
as lideranças do território reconheçam o papel
com esse primeiro protagonismo, recai em al-
fundamental desse transitar do ‘lado de fora’,
guns questionamentos. Por exemplo, quando
quem tem nos referido como liderança são ou-
me perguntam: ‘Como eu me sinto em ser a
tras pessoas [não indígenas]. Para mim, para
primeira mulher indígena a ocupar um lugar
ser liderança ‘do lado de fora’, você tem que ter
na coordenação aqui no estado de Minas Ge-
um conhecimento profundo do que é ser lide-
rais?’ ‘Como me sinto em ser a primeira mulher
rança do ‘lado de dentro’ [...]. Mas, retomando
xakriabá a concluir um mestrado?’ ‘Como eu
83
me sinto a ser a primeira mulher indígena a mento Terra Livre desse ano as pessoas me
estar no doutorado da UFMG?’ Não se iludam! perguntavam: ‘Quantos indígenas tem aí?’. Eu
Ser a primeira não nos faz mais importante, dizia: ‘Dez mil!’. Retrucavam: ‘Não, quê isso! Cê
mas nos dá uma responsabilidade redobrada de tá me enganando!’. Eu falava: ‘Não! É porque
querer questionar as estruturas, os sistemas. vocês não estão conseguindo enxergar!’. Cer-
Em pleno século XXI, só agora que nós somos tamente eu não estou falando ‘como se fosse’,
as primeiras! Isso me dá essa responsabilidade algo imaginado. Realmente, quando nós vamos
maior e redobrada de ter o compromisso de pra Brasília, quando nós ocupamos as ruas, não
não deixar que eu seja a última. E, também, de são apenas 4 mil pessoas que estão ali pre-
dar esse retorno de que nós, mulheres indíge- sentes. Existe uma força da ancestralidade que
nas, que estamos trilhando um caminho com com certeza equivale a 10 mil pessoas. É uma
um pé no chão da aldeia, sem perder esse lugar força da entoação do canto, é uma força que
de vista. Nós, que estamos segurando a mão vem da entoação do maracá, é uma força que
na caneta, somos tão importantes quanto as é carregada na orientação do pensamento do
mulheres indígenas, xacriabá, que continuam cocar que está em nossas cabeças, é uma força
segurando a mão no pilão, a mão no barro, que está nas pinturas corporais. Esse gover-
como sustentação da cultura.” no é de quatro anos, mas quero ver desafiar o
nosso ‘ser luta’ que são de muitos séculos. O
Eu pergunto: “Compreendendo que o movimen- governo tem o poder da canetada, mas ele não
to indígena nacional atua de várias maneiras, sabe ser resistência e muito menos ‘ser luta’
com demandas de específicas, sejam elas étni- como nós povos indígenas somos. Esse go-
cas, de gênero, dentre outras ... Partindo para verno pode nos ameaçar tentando transferir a
uma ênfase mais global, mais macro, eu gos- demarcação dos territórios indígenas, mas nós,
taria que você nos dissesse sobre as principais movimento indígena, nós, mulheres indígenas,
ferramentas de luta escolhidas pelo movimento nós, juventude indígena, estamos organizados.
para atuar no cenário político atual.?” [...] Quando tentam negociar uma política pú-
blica, estão tentando negociar o nosso direito.
Célia Xakriabá responde: “Nesse atual cená-
Quando tentam negociar a saúde, a educação
rio político, dessa conjuntura desconjuntada, é
e, principalmente, o território indígena, tentam
muito importante as pessoas entenderem que,
negociar as nossas vidas e as nossas vidas não
em tempo de flexibilização do armamento, de
estão sob negociação. Eles estão tentando nos
armas que têm executado nossos corpos, não
matar de todo jeito. Se não acabam com nos-
conseguirão executar as nossas vozes. A cada
sas vidas nos assassinando, eles tentam ma-
vez que morre uma liderança, a nossa voz faz
tar o nosso modo de vida. Pior do que a gente
se multiplicar. A cada vez que morre uma lide-
morrer pelo genocídio é morrer pelo etnocídio.
rança, o útero fica mais fértil e nasce mais um
Quando a gente morre pelo etnocídio não tem
guerreiro. A nossa principal estratégia de luta
como a gente se reconstituir. Pensar o exter-
tem sido, sem dúvida nenhuma, colocar nossa
mínio da nossa identidade é pensar em cortar
estratégia de retomada de território para re-
e queimar nossas raízes, em plantar eucalipto
tomar as ruas e nós fazemos isso de forma
numa terra fértil. O genocídio tentou nos matar
muito diferente e peculiar que nenhum movi- 84
em 1500, na época da ditadura, e tenta nos
mento consegue fazer. A nossa força não está
matar nesse cenário, mas nosso útero é fértil.”
exatamente na quantidade de corpos que ocu-
pam a rua, que ocupam o Congresso Nacional, Eu pergunto: “E como o movimento indígena
que ocupam as BR’s. A nossa força está na tem visto a presença indígena na universidade?
espiritualidade, daquilo que muitos não conse- Como você vê as conquistas alcançadas e que
guem ver, não conseguem acreditar, mas tem estão ameaçadas? Por que a carreira acadêmi-
medo disso. Quantas vezes eu fui pra Brasília ca pode ser considerada também uma ferra-
em manifestação da reforma da previdência e menta de luta?”
estavam lá mais de 50 mil pessoas e elas não
conseguiram chegar nem no Congresso Nacio- Célia Xakriabá responde: “É interessante pen-
nal, nem no Ministério da Saúde. Enquanto nós, sar nessa pergunta. Todo mundo que conhece o
indígenas, em quase 4 mil pessoas, consegui- movimentar do meu corpo dificilmente em uma
mos entrar no Congresso. Não porque a polí- primeira fala minha vai me definir como acadê-
cia era menos resistente, mas porque a nossa mica. Acho que essa característica de enraiza-
força tem sido a espiritualidade. No Acampa- mento é muito interessante ... Ao transitarmos

84
no espaço de institucionalidade da universida- que o melhor lugar para se elaborar e guardar
de, a gente ficando frustrado e muitas vezes o pensamento está no território, principalmen-
a gente não consegue provocar deslocamento, te nos territórios indígenas. Quando não existir
mudança no outro. Pra gente não ficar frus- mais nenhuma árvore, quando não existir mais
trado, não devemos mudar o que a gente é. papel e caneta, nosso jeito de guardar e ela-
No espaço da universidade a gente tem que borar o conhecimento estará no território pela
sobrepor esse movimento que existe de acultu- oralidade e memória.”
ração. Porque não pensar a indigenização desse
espaço? A indigenização do outro, não é para Eu continuo: “Também no corpo, que é suporte
torná-lo indígena, mas para não nos aculturar. para se inscrever memórias ...”
Essa aculturação é sempre pensada como se
Célia Xakriabá continua: “E as pessoas me per-
a cultura do outro fosse mais forte e deves-
guntam: ‘Onde é que está a intelectualidade da
se se sobrepor à nossa. Eu posso chamar de
mulher indígena?’ Eu respondo: ‘A intelectuali-
insurgência quando as narrativas indígenas de-
dade da mulher indígena não está apenas na
batem sobre isso e provocam deslocamentos
elaboração do pensamento, ela está no corpo’.
nos corpos docentes da universidade. Faço a
Ela está tanto no corpo que tem sido territo-
reflexão de que a nossa presença nesse espa-
rializado e no território que tem sido corpo ...
ço é muito mais do que uma cadeira que nos
Na universidade, quando imaginam que a gente
conforta, é uma trincheira de luta. Quando nos
ao estar na luta, no movimento, está perdendo
perguntam: ‘Será que a luta territorial é mais
aula, está perdendo conteúdo de disciplina, eu
fácil ou mais difícil que a luta pelo território da
digo que toda luta é epistêmica, ela gera conhe-
universidade?’ Eu digo: ‘Não é mais fácil e nem
cimento. Na verdade, a luta é o território mais
mais difícil. Porque nos processos de retomada
fértil onde eu produzo e elaboro conhecimento.
de território, que inclusive eu já participei, nós
Cada vez que eu sento para escrever, eu só
enfrentamos os ruralistas, os fazendeiros. Na
consigo ter fertilidade no pensamento porque
universidade, nós enfrentamos a segunda ge-
entendo que o útero mais fértil, onde eu consi-
ração ou a terceira geração dos ruralistas, os
go colher esse pensamento, está naquilo que eu
filhos e netos deles.’ Na retomada do territó-
vivi com o corpo. É daquilo que meu pé pisou,
rio a arma que executa os corpos é a arma de
que minha mão tocou. Não dá para dizer que
fogo. Na universidade, a arma que executa os
a elaboração do pensamento está só na cabe-
corpos é a caneta que tenta subestimar nossos
ça, ele está em todo o conjunto corporificado
pensamentos. Se na terra indígena pensamos
da vivência, vivenciado ou experienciado. Nós,
em genocídio, na universidade existe um epis-
povos indígenas, só conseguimos firmar bem a
temicídio que tenta nos matar. Até se considera
mão na caneta, quando nós firmamos bem os
as nossas narrativas como objeto de pesquisa,
pés no chão do território. Esse território pode
até se reconhece nosso conhecimento como
ser o território indígena como pode ser espaços
objeto de pesquisa, mas não se reconhece os
territorializados e indigenizados. É importante
narradores e os conhecedores indígenas. Estar
pensar esses deslocamentos e ressignifica-
na universidade é fazer a provocação de que
ções de espaços e lugares. Essa elaboração do
muito mais importante do que reconhecer as
4 conhecimento, nosso trânsito na universida-
narrativas, é reconhecer os narradores. Não
de, sem dúvida nenhuma, tem sido uma forte
existe uma bula certa. Na verdade, o caminho
ferramenta de luta para as nossas lideranças,
é não nos burlar de uma receita já existente e
com esse aparato e arcabouço teórico e jurídi-
pensar outros caminhos. Se não existe caminho
co. Principalmente porque nós estamos vivendo
aberto, nós abrimos uma picada. Quando não
esse momento de genocídio legislado, quando
existe uma picada, nós abrimos o carreiro, para,
o estado brasileiro autoriza e é todo respalda-
assim, iniciarmos um outro caminho. Esse que
do em argumentos jurídicos para nos matar. E
já existe, nem sempre nos contempla. Nele não
nos matar através de uma narrativa muito bem
cabe nossos conhecimentos, nosso desaguar,
estruturada. Por isso, nós temos dito que tam-
de mãos que constroem coletivamente [...]. Es-
bém somos mortos por outras armas, por ar-
tamos na universidade não para validar nosso
mas que não a do calibre 38 e a do calibre 22.”
pensamento, não para revelar o segredo e o sa-
grado, mas para pensar o nosso conhecimento Eu pergunto: “Como foi acompanhar a Sônia
indígena como potência de cura, como episte- Guajajara na candidatura dela a vice-presidên-
mologia de cura. Essa epistemologia as pessoas cia, ou melhor dizendo, a co-presidência? Como
só vão realmente entender quando perceberem
85
se deu esse acompanhar que se estendeu, já carreira política!’. ‘Você nunca foi vereadora!’. E
que não foi pontual?” ela respondia: ‘Estamos preparados porque nós
nos preparamos na luta!’. Essa preparação na
Célia Xakriabá responde: “Esse acompanhar Sô- luta certamente faz a gente entender que uma
nia na candidatura vem de um processo ante- candidatura indígena não é fazer campanha, é
rior, do movimento indígena, do Acampamento fazer a luta de um lugar, de uma origem dife-
Terra Livre e também de outras agendas como rente. [...] Certamente, esse foi um momento da
as do PNGATI [Política Nacional de Gestão história que eu me sinto feliz de ter contribuído,
Ambiental e Territorial em Terras Indígenas], de pois gerou muito deslocamento na sociedade
discussões ambientais sobre mudanças climá- brasileira. Querendo ou não, os canais de comu-
ticas e, principalmente, de discussões sobre o nicação tiveram que estudar, colocar na pauta
protagonismo das mulheres indígenas nesses e dialogar sobre a causa indígena. Tiveram que
últimos 5 anos. [...] E foi daí, desse bordar de se preparar mesmo, porque as nossas narrati-
aproximação dos corpos que eu me aproximei vas são potentes e a gente viu um despreparo
dela e tive esse convite para ajudar na campa- muito grande das pessoas em abordar a ques-
nha. [...] E essa candidatura tinha muito a pre- tão indígena. As nossas respostas sobrepuse-
sença da mulher, da força da mulher, não era ram com muita força as perguntas feitas. As
apenas uma candidatura para uma entrada em pessoas continuam insistindo e tentando fazer
um partido, nem para ganhar uma eleição, nem uma parcela da sociedade ficar contra nós. Se é
para angariar voto. Era uma candidatura para feita a leitura de que 3% do território brasileiro
co-presidência, para balançar e mexer com as é terra indígena e de que é muita terra pra pou-
estruturas, para que o Brasil e principalmente co índio, ninguém conhece a narrativa, que pre-
os canais de comunicação nos notassem ... Era cisa ser feita, de que 1% da população brasileira
uma candidatura anti-sistêmica, que botava o detém em torno de 46% do território nacional.
dedo na ferida do projeto capitalista, uma candi- Isso se dá não apenas para o agronegócio, por-
datura que tinha um projeto bem incorporado: a que o agronegócio é uma palavra bonita, ainda.
política do bem viver. Tinha uma política de país. Deve-se dizer para o latifundiário. A sociedade
Nessa conjuntura política de agora as pessoas brasileira deve fazer a reflexão de que se ela
dizem: ‘Por que vocês indígenas são tão contra não morrer pelos conflitos territoriais, assim
o capitalismo?’ e eu tenho dito: ‘A pergunta é como quase todos os indígenas estão sujeitos a
ao contrário. Porque o capitalismo é tão contra morrer -principalmente as mulheres indígenas,
nós, povos indígenas?’. Nós, povos indígenas, vai morrer pelo veneno que chega na mesa. A
somos o único povo que tem condição de me- sociedade deve se sensibilizar que o território
xer nessa ferida sem ter o dedo sujo de sangue demarcado guarda o ar para toda a humanida-
ou de lama - nesse caso por causa das minera- de, o território demarcado guarda a água para
doras, porque nós somos vítimas desse capita- todo o planeta, o território demarcado são mui-
lismo. Hoje, no Brasil, ninguém tem essa força, tas árvores que deixam de ser cortadas, o ter-
esse protagonismo orgânico. É claro que temos ritório demarcado é a garantia da permanência
aliados, tem os ambientalistas, tem os ribeiri- da população indígena e que o território que vai
nhos, outras populações [...]. Então, foi muito no ser devastado na insistência das pessoas de
enraizamento da luta territorial que Sônia vai que os povos indígenas impedem o capitalismo 86
para a candidatura e me faz esse convite. [...] ... No dia que não existir mais lugar para nós,
A candidatura de Sônia era muito mais do que povos indígenas, nenhuma sociedade vai con-
pensar em uma vitória pelas urnas. Nesse sen- seguir sobreviver. O povo indígena sem o terri-
tido, nós acreditamos que nós ganhamos, por- tório vai ser toda humanidade sem o céu. Não
que o que estava em discussão nessa candida- existe sustentação do céu sem pensar a garan-
tura era balançar com as estruturas de poder tia do território. [...] A candidatura de Sônia vem
pensando a presença da mulher indígena nesse com um protagonismo muito grande, pois não é
espaço. Nunca se pensou, na história, que uma uma ambientalista falando por nós indígenas. É
mulher indígena teria essa postura e coragem a própria vivência na luta, vinda principalmente
de colocar o corpo à disposição, não em uma de uma mulher indígena. Isso não foi projetado
vice-presidência, mas em uma co-presidência. dois anos atrás, mas se a gente não vai para
Entendendo a co-presidência como represen- a luta, a luta vai até a gente e nos convoca. A
tatividade, pensada como significado histórico candidatura de Sônia vem como uma expressão
e político. As pessoas perguntavam para ela: atual do que nós estamos vivendo na luta. Foi
‘Mas você está preparada?’. ‘Você nunca teve uma candidatura potente e ela tem surtido re-
86
sultados. Sônia tem sido uma voz, um mecanis- nesse lugar, ou, se não, não haverá sustenta-
mo de denúncia. Quando ela fala, não fala um ção da vida. Isso é fato! A política do bem viver
corpo solitário. Ela representa uma pluralidade considera a vida das pessoas mais importante
de vozes que vêm do território indígena. A can- do que a exportação do capital. [...] A política do
didatura foi anti-sistêmica nesse sentido, colo- bem viver trabalha o corpo das pessoas, o bem
cou o dedo naquilo que ninguém do capitalismo estar das pessoas e se preocupa em pensar a
vai querer colocar a mão. Questionar o capita- felicidade dessas pessoas. O Brasil, talvez po-
lismo é questionar o hábito de cada um de nós deria dizer o mundo, não tem percebido isso.
que estamos habituados a essa única maneira Parece que a felicidade não precisa ser discuti-
de pensar a economia, o desenvolvimento sus- da no campo da política. Parece que ela precisa
tentável [...]. Em outros países precisa-se ter ser um bem estar temporário. Nesse sentido,
a consciência de que a soja importada, assim muito mais do que ficar repetindo os ‘re’ nega-
como a carne, tem sangue indígena ... Algo que tivo que está na boca de todo mundo, como o
essa candidatura denunciou, provocou desloca- REtrocesso, nós temos urgência em recuperar
mento ... Nós, povos indígenas, mesmo sendo nossos ‘re’ positivos: de REaver as nossas RE-
um povo que resistiu à colonização, à ditadura tomadas, de REpensar a sustentação da vida,
militar, a esse período que estamos vivendo, é de REconexão com as nossas identidades. A
um povo que tem cicatrizes profundas. Só nós, política do bem viver está em darmos alguns
povos indígenas, que temos cicatrizes profun- passos para trás e REtomar esse modo de vida.
das, vamos saber o remédio que cura. A socie- Assim teremos uma grande REsistência, algo
dade não vai se curar se ela não nos escutar e que nós sempre tivemos, é essa capacidade
se ela não nos escutar, ao contrário do que se de, assim como o cerrado, que quando se faz
imagina, aqueles que tiveram uma política de a queima cria outros modos de vida naquele
exterminação vão morrer junto com a gente.” lugar. A grande resistência é pensar exemplos
como o cerrado que, quando se queima tudo,
Eu pergunto: “Você fez referência à política do conseguimos tornar a terra fértil de novo, nos
‘bem viver’, que aparece muito no discurso po- recompor. Nós conseguimos viver, ao contrário
lítico do movimento indígena. Também aparece do sobreviver, em que se parece estar somente
nesse discurso a categoria ‘resistência’. Eu gos- oxigenando a vida. Nós, povos indígenas, sem-
taria que você explicasse do que se trata e o pre fomos o alvo, mas a sociedade esqueceu
que cada uma significa.” que nós sabemos ser flecha, é nesse saber ser
flecha que precisamos voltar um pouco atrás
Célia Xakriabá responde: “[...] Como pensar uma
para alcançar um horizonte mais longe. O go-
política do bem viver? Como pensar uma eco-
verno tem o poder da canetada, mas nenhuma
nomia pela política do bem viver? Como pen-
autoridade é mais forte do que a do movimento
sar uma engenharia pela política do bem viver?
social organizado. O governo pode até acabar
Como pensar todas essas estruturas de conhe-
com o Ministério da Cultura, mas ele nunca vai
cimento da sociedade, nas universidades pela
conseguir acabar com o nosso Mistério da Cul-
política do bem viver? Ela deve ser entendida
tura”.
como projeto de país. Não apenas com uma ini-
6 ciativa comunitária. As nossas iniciativas comu- Eu pergunto: “Você mencionou, em algum mo-
nitárias são potentes, mas elas não dão sus- mento durante a entrevista, sobre o ATL. Nes-
tentação para toda a humanidade. A política do se momento, recém-chegada de lá, eu gostaria
bem viver é uma política que deixa menos cica- que você dissesse sobre o que é o ATL, o que
trizes na terra, já que tudo que está vinculado ele representa, porque ele existe? Qual seu sig-
à economia, ao capital e até mesmo ao próprio nificado e propósito?”
conhecimento, de certa forma, tem um impacto
direto sobre os territórios. [...] Quando a gente Célia Xakriabá responde: “O Acampamento Terra
está falando do meio ambiente, do cerrado, da Livre é a maior assembleia dos povos indígenas
Amazônia, nós não estamos falando do outro, do Brasil, é um momento que eu considero de
nós estamos falando do nosso próprio corpo encontro com a diversidade de etnias indígenas
que vivencia dentro daquele território. Pensar brasileiras, é uma oportunidade para aqueles
o bem viver não é pensar mais uma possibili- que não transitam ou não tem oportunidade de
dade de explorar o meio ambiente. Ou o Brasil transitar no movimento indígena encontrar com
pensa um projeto que realmente dê conta da os parentes indígenas. Mesmo nós, povos indí-
diversidade ambiental e das pessoas que vivem genas, sendo muito diferentes, de culturas dife-

87
rentes, de línguas diferentes, nós nos reunimos te desse movimento, que não é apenas movi-
em torno de 200 povos no ATL. Isso, sendo a mento social, é movimento tradicional. Todos os
diversidade do Brasil de aproximadamente 305 direitos que foram realmente garantidos foram
povos. Ter povos cantando em línguas diferen- por meio de muita luta. Nós, povos indígenas,
tes, falando em línguas diferentes é algo muito sabemos que somente através de muita luta
significativo. Além disso, nos unifica em torno que se tem efetivado e garantido o direito. As
da questão territorial. Então, de Norte a Sul do pessoas às vezes falam: ‘Gente, mas vocês não
país, de Sudeste a Nordeste, a pauta territorial têm medo de morrer em tempo de acentua-
é a discussão central do Acampamento Terra ção da violência, de flexibilização do armamento
Livre. Junto com a pauta territorial também tem que tem alvo certeiro as comunidades indígenas
sido central discutir a saúde indígena, a educa- e que acirra os conflitos territoriais?’. O alvo
ção, a juventude e a presença da mulher indíge- principal tem sido as mulheres indígenas por-
na. É bem interessante pensar que, em 2015, foi que quando mata essa mulher, mata outro da
a primeira vez dentro do Acampamento Terra terra e compromete uma nova geração futura
Livre que nós conseguimos ter uma plenária que seria gerada naquele útero. Tanto no útero
específica das mulheres. As mulheres indígenas da mulher quanto no útero da terra ... As pes-
sempre tiveram uma presença muito forte no soas me perguntam se eu não tenho medo. Eu
movimento, mas só em 2015 as mulheres con- tenho medo mesmo é de continuar viva sem
seguiram se organizar em plenária. Nós, mu- poder dizer quem a gente é. E quem disse que
lheres indígenas, não trazemos pautas alheias, nós não estamos morrendo aos poucos quando
diferentes das questões dos homens. Nós o direito é arrancado, é amputado? A cada vez
agregamos outras pautas, discutimos sobre que nossos direitos, o nosso modo de vida é
estarmos na linha de frente da luta territorial, matado, é o estado brasileiro nos matando em
nesse ocupar a institucionalidade, além de ocu- pequenas doses. Por isso, é muito importante
par o chão do território indígena. Nós, mulheres pensar o ATL como expressão significativa no
indígenas, discutimos essa presença majoritária Brasil e fora do Brasil, ressoando como uma
na universidade. É muito importante, nós mu- grande voz de resistência dos povos indígenas.
lheres, fazermos esse mapeamento de onde Não vai ser um governo de 4 anos que vai aca-
estamos transitando. Nós temos tido uma voz bar com a nossa luta. O governo pode acabar
importante, não porque estão nos dando a voz, com a SECADI [Secretaria de Educação Con-
mas porque nós temos retomado essa voz, as- tinuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão/
sim como retomamos o nosso território que foi MEC], o governo pode acabar com as políticas
roubado. As nossas vozes tem sido fortalecidas públicas que nós continuaremos na linha de
por outras mulheres que dão sustentação para frente para não deixar que o retrocesso avance,
essas que estão na linha de frente. É muito principalmente no que diz respeito às pautas
importante pensar a solidariedade das nossas territoriais. O ATL é uma voz de ativa resis-
mulheres, porque nesse campo, principalmente tência e está sustentando outros movimentos.
do ‘lado de fora’, as pessoas não discutem isso. Esse ATL teve uma forte expressão em res-
Tem se discutido a questão da solidariedade ou posta ao atual governo que tomou, como pri-
da solidão da mulher negra, por exemplo, e não meira munição — no dia primeiro de janeiro de
se tem feito a discussão da solidão da mulher 2019, a medida 870, que transferiu o Ministério 88
indígena. Quando a mulher indígena se sente da Justiça e a Funai para o Ministério da Família.
nessa solidão é por ser mulher indígena e estar Esse ministério não reconhece os povos indíge-
fora de seu território. Estamos longe de nosso nas, é tradicional, mas não respeita os povos
território-corpo, mas eu tenho dito que não es- originários; é dos Direitos Humanos em um go-
tamos longe de nosso corpo-território. Nós não verno anti-humanitário; e, é da mulher, e que
nos sentimos tão sozinhas porque, por exem- mulher é essa que não respeita a diversidade
plo, mesmo nós saindo do território xacriabá, o da mulher? E, não contente, transferiu a pauta
ser xakriabá não sai da gente. Mesmo saindo de demarcação dos territórios indígenas para
do território indígena, o ser indígena permanece o Ministério da Agricultura, que é onde está
forte dentro da gente. [...] O ATL tem sido uma a bancada ruralista, o que não é uma medida
expressão muito forte da resistência dos povos apenas conservadora, é ultra conservadora. Às
indígenas frente esse anúncio de ameaça do vezes, as pessoas entendem que junto com a
governo. Anúncio que não se inicia exatamente flexibilização dos territórios indígenas, da não
há dois anos, há quatro anos atrás. Nós, povos garantia desses territórios, chega também a
indígenas, sempre estivemos na linha de fren- flexibilização ambiental junto com tudo isso ...
88
E porque a primeira munição, o primeiro alvo, pela vida da humanidade. Quando as pessoas
somos nós povos indígenas? Por que no dia em me perguntam como se deve ajudar sendo não
que for retirado o direito dos povos originários indígena, eu digo: ‘Quantos de vocês estão dis-
ao território, o território vai ser apenas o lugar postos a ajudar quando nós estamos em uma
da venda, o lugar da comercialização capitalista mobilização pelo não derramamento do sangue
e utilitarista. Certamente, a canetada pode ser indígena?’. ‘Quantos de vocês compartilham a
a arma do século XXI, mas nós, povos indíge- nossa mobilização nas redes sociais?’. ‘Quan-
nas, acreditamos muito que a nossa identidade tos de vocês, que são solidários aos povos in-
também vai ser a arma do século XXI”. dígenas, estão fazendo esse gesto?’ Para além
das redes sociais, ‘quantos de vocês estariam
Eu pergunto: “E como despertar nas pessoas dispostos a ir para as ruas?’. Se nós não tivés-
não indígenas a consciência de que a luta dos semos ocupado as ruas e as BR’s, certamen-
povos indígenas é, na verdade, a luta de todos te a municipalização da saúde já estava dada.
os povos?” A única coisa que vai fazer a diferença nesse
momento é essa capacidade de ir para as ruas.
Célia responde: “Eu tenho falado muito ultima-
Faço ainda mais uma provocação. Quantos de
mente para as pessoas que me perguntam as-
vocês questionam quantos professores indíge-
sim: ‘Como é que eu faço para ajudar vocês?’.
nas têm nas universidades? Quantos de vocês,
Eu digo que tinha um período que se pensava
docentes que apoiam a questão indígena, estão
que era para nos ajudar, mas que agora tem
dispostos a mexer com as estruturas e as re-
que se pensar que nos ajudando vocês esta-
soluções e pensar em uma cota para a entrada
rão ajudando a vocês mesmos! Se não, vocês
de professores indígenas no meio acadêmico?
vão morrer junto com a gente. As pessoas fi-
Quantos de vocês estiveram dispostos a dar
cam pensando que, como nós estamos fazendo
um voto, nas eleições de 2018, para candida-
essa linha de frente, somente nosso corpo está
turas indígenas ou estarão dispostos a ofer-
sob ameaça. Todos nós vamos morrer e adoe-
tar seu voto para fortalecer a luta indígena nas
cer se as coisas continuarem dessa maneira.
próximas eleições? Quando vocês estiverem
Vai ter muito índice de câncer. Quando o não
fazendo isso? Vocês não estão apenas votando
indígena fortalece a luta, na verdade, ele não
em uma candidatura indígena, vocês estão vo-
luta por nós, povos indígenas, ele luta por todo
tando em um bem para a humanidade.
mundo. Luta pela vida de uma futura geração,

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANASTÁCIO, V. (2018), Um povo da Palavra: ressonâncias da cultura acústica na educação escolar indígena Xakriabá.
Dissertação de mestrado, Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Belo Horizonte.

CORRÊA XAKRIABÁ, C. (2018), O barro, o genipapo e o giz no fazer epistemológico de autoria xakriabá: reativação da
memória por uma educação territorializada. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Brasília (UnB), Brasília.

ESCOBAR, S. (2012), Os projetos sociais do povo indígena Xakriabá e a participação dos sujeitos: entre o “desenho da
8 mente”, a “tinta no papel” e a “mão na massa. Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

GERKEN, C.; GOMES, A.; OLIVEIRA, W. B.; SANTOS, M. (2004), Implantação das Escolas Indígenas em Minas Gerais:
Percurso de Recíproco conhecimento entre Índios e Não Índios. In: Anais do 2º Congresso Brasileiro de Extensão Univer-
sitária. Belo Horizonte.

GOMES, A. (2006), O processo de escolarização dos Xakriabá: história local e os rumos da proposta de educação escolar
diferenciada, In L. Soraes & M. A. Giovanetti; (orgs.), Diálogos na educação de jovens e adultos, Belo Horizonte: Autêntica.

GOMES, A.; TEIXEIRA, I. (2012), A escola indígena tem gênero? Explorações a partir da vida das mulheres e professoras
Xakriabá. Praxis Educativa, Ponta Grossa,7, número especial.

GOMES, A.; SILVA, R.; SANTOS, R. (2013), “Escola, infância e juventude entre os Xakriabá: breve retrato de um povo indí-
gena recentemente escolarizado”, in C. L. Eiterer;; I. Luz (orgs.), Sujeitos da educação: diversidade, direitos e participação
política, Belo Horizonte: Mazza.

GOMES, A.; MIRANDA, S. (2014), “A Formação de professores indígenas na UFMG e os dilemas das ‘culturas’ entre os
Xakriabá e os Pataxó”. in M. C. Cunha; P. N. Cesarino. Políticas Culturais e povos indígenas, São Paulo, Cultura Acadêmica.

89
JARDIM, A. (2016), Trajetórias e narrativas de dois estudantes-pesquisadores xakriabá. Trabalho de Conclusão de Curso,
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte.

LOPES, A. (2016), Loas e versos Xakriabá: tradição e oralidade. Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte.

MONTE-MÓR, R. L. M.; MAGALHÃES, F. N.; DINIZ, S. C. (2006), Economia e etnodesenvolvimento no Território Indígena
Xakriabá, MG. Anais XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP. Caxambu.

OLIVEIRA, J. (1999), A Viagem de Volta: Etnicidade, Política e Reelaboração Cultural no Nordeste Indígena. Rio de Janeiro:
Contra Capa.

OLIVEIRA, A. R. J. (2016), História da escrita e do ensino da escrita entre o povo Xakriabá. Trabalho de Conclusão de
Curso. UFMG, Belo Horizonte.

PEREIRA, V. (2013), Circulação da cultura na escola Xakriabá. Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte.

SANTOS, Ana Flávia. (1997), Do terreno dos caboclos de São João das Missões à Terra Indígena Xakriabá: as circunstâncias
da formação de um povo. Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília (UnB), Brasília.

SANTOS, R. (2010), A Cultura, O Segredo e o Índio: diferença e cosmologia entre os Xakriabá de São João das Missões/
MG. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte.

90

90
REVISTA TRÊS PONTOS | Centro Acadêmico de Ciências Sociais da UFMG| Ano 16, N. 2 | Jul/Dez 2019 | RELATO DE EXPERIÊNCIA

PRÁTICAS EDUCACIONAIS NA ZONA RURAL:


DIFICULDADES DE ACESSO E PERMANÊNCIA ENTRE OS PO-
VOS DO CAMPO
Educational practices in the rural area: dificultes of access and permanence between the
people of the field

Adelmo dos Santos Resumo: Este Relato de Experiência se baseia em uma atividade realizada através do Estágio In-
Filho terdisciplinar de Vivência e Intervenção na Bahia (EIVI). Utilizando a Educação Popular como base
Graduando em Psi-
metodológica, foram realizadas intervenções em um Acampamento do Movimento dos Trabalha-
cologia pela Univer-
sidade do Estado
dores Rurais Sem Terra (MST), tendo como um dos resultados oficinas realizadas com crianças,
da Bahia - UNEB. adolescentes e jovens da Comunidade. A partir disto, foi possível observar as inúmeras dificuldades
que atingem os jovens do campo, gerando situações que implicam em seu acesso e permanência
Contato nos ambientes educacionais.
<adelmodsf@
outlook.com> Abstract: This Report of Experience is based on an activity carried out through the Interdisciplinary
Eduardo Ramos
Internship of Experience and Intervention in Bahia (EIVI). Using Popular Education as a methodolo-
Belanga gical basis, interventions were carried out in a Campsite of the Landless Rural Workers Movement
Graduando em Psi- (MST), having as one of the results workshops performed with children, adolescents and young
cologia pela Ponti- people of the Community. From this, it was possible to observe the innumerable difficulties that
fícia Universidade affect young people of the field, including situations that imply in their access and permanence in
Católica de Campi-
the educational environments.
nas - PUC-CAM-
PINAS.

Contato “[...] rais Sem Terra (MST), que estava em recente


<eduardo.belanga@ Gente daqui, gente dacolá criação. A prática foi idealizada por discentes
hotmail.com> desce para a comunidade da Federação dos Estudantes de Agronomia do
faz vivência e intervenção Brasil (FEAB), que estavam insatisfeitos com
Vivian Gabriele de
e se brincar se manda até para a ocupação uma formação educacional voltada apenas para
Brito Carneiro
Graduanda em Pe- em cima da moléstia de um caminhão empresas agrícolas. No ano de 1992, a FEAB
dagogia pela Uni- [...] recebeu o prêmio de iniciativa de destaque da
versidade Federal É chegar na comunidade juventude Latino-Americana, concedido pela
da Bahia - UFBA. com o coração aberto UNESCO, e a partir disso, o Estágio de Inter-
e os pés no chão, venção se expandiu e alcançou inúmeros Esta-
Contato
pra quando voltar para casa dos a nível Nacional, deixando de estar vincu-
<viviangbbrito@
gmail.com> ficar a saudade e a contribuição lado apenas ao campo das ciências agrárias e
[...]” adotando uma dinâmica interdisciplinar. (NEP-
P a l av r a s - c h ave :
0 PA, s.d.).
Educação Popular; (Cordel do EIVI)1
Intervenção; Povos A Vivência tem uma duração total de vinte
do Campo; Educa- dias, sendo dividida em três etapas: capacitação,
ção do Campo.
O Relato de Experiência a seguir, tem vivência e intervenção, e por último avaliação. A
Keywords: Popu- como finalidade promover a discussão sobre a etapa de capacitação tem seis dias de duração
lar Education; In- necessidade de políticas de acesso e educação e são discutidas temáticas que vigoram uma
tervention; People para os povos do campo. A reflexão se baseia formação política-pedagógica, como: luta pela
of the Field; Field terra; plano camponês; terra, raça e classe; luta
em uma atividade prática realizada através do
Education. indígena; mulheres do campo; educação popular;
Estágio Interdisciplinar de Vivência e Interven-
ção na Bahia (EIVI), uma prática político-peda- trabalho de base e outros. Em seguida é reali-
gógica que atua diretamente com a realidade zada a vivência e intervenção nas comunidades,
1 NEPPA. Sobre O dos povos do campo. O EIVI surgiu no ano de tendo duração de dez dias. Nesse momento os
Estágio Interdis- 1988 na Cidade de Dourados, no Mato Grosso estagiários2 são divididos em grupos interdis-
ciplina de Vivência ciplinares, e são encaminhados para oito locais
do Sul, e foi pensado para uma atuação ligada
e Intervenção na diferentes, podendo ser comunidade, assen-
Bahia. Salvador, s.d. às áreas do Movimento dos Trabalhadores Ru-

91
tamento ou acampamento, cada uma com as e de domínio cultural. Por isso mesmo, 2 Profissionais,
suas especificidades. A última etapa tem uma nasce e constitui-se como Pedagogia estudantes ou mi-
litantes que partici-
duração de quatro dias, e nela se realizam ava- do Oprimido, vinculada ao processo de
pam das atividades
liações e troca de experiências com grupos de organização e protagonismo dos traba- de intervenção do
outras comunidades. À vista disso, pode-se ter lhadores do campo e da cidade, visando EIVI.
uma compreensão geral de como se encontram à transformação social”. (PALUDO, 2012,
os povos do campo da Bahia localizados em al- p. 281).
guns acampamentos e assentamentos do MST, 3 Orientadores que
o que nos gerou reflexões sobre o descaso e Segundo Pereira e Pereira (2010), entre as auxiliavam nas ati-
décadas de 50 e 60, as ideias de Paulo Frei- vidades realizadas.
abandono aos quais eram submetidos.
re surgem semeando a origem do trabalho da
Abordar-se-á de forma analítica os dias educação popular, no qual, abordava como o
vivenciados na Atividade prática, introduzindo processo de formação do conhecimento não
o exercício da educação popular, descrevendo poderia se limitar somente a absorção de teo-
algumas atividades realizadas e as principais rias, mas ir além de uma compreensão da reali-
dificuldades enfrentadas pela Comunidade no dade, entendendo as ações do mundo e conse-
acesso e permanência à educação básica. quentemente, uma conscientização.

Educação essa, que traz uma práxis edu-


cativa que parte de uma realidade social, “[...] e
EDUCAÇÃO POPULAR assim a visão educacional não pode deixar de
ser ao mesmo tempo uma crítica da opressão
A educação popular, foi uma das bases me- real em que vivem os homens e uma expressão
todológicas utilizadas durante o EIVI para o de sua luta por libertar-se” (FREIRE, 1979, p. 8).
desenvolvimento das atividades, tanto no pro-
cesso de capacitação, quanto nas atividades Durante as oficinas desenvolvidas no pe-
de intervenção realizadas no Acampamento do ríodo de capacitação, a escuta oferecida pelos
MST, a qual foi designado. Sobre o processo monitores3 do Estágio foi um dos primeiros
educacional, Bogo (2007, p. 101) reflete: exemplos pedagógicos voltados para a educa-
ção popular, havendo em todos os momentos
“Educar, para iniciar o pensamento, vem um forte incentivo para proporcionar a fala dos
do latim, educere, que é tirar de dentro. estagiários, percebendo quem tinha mais ou
Isto parece então perfeito, mas resta menos facilidade em se expressar verbalmen-
ainda achar o jeito, para perceber todos te, para mediar o processo de forma equâni-
os lados. Sem usar de maldade ou de ci- me. Nesse período também ficou evidente uma
nismo, a verdade é que no capitalismo, valorização do saber precedente, não advindo
cada um já nasce destinado a ser mal apenas do conhecimento acadêmico, mas dos
educado”. saberes relacionados às práticas e vivências, e
a partir disso havia uma construção e elabora-
No Brasil, a educação popular começa a ser ção dos momentos de discussão temática.
trabalhada por Vanilda Pereira Paiva (Educação
Popular e Educação de Adultos) e Celso de Rui O último eixo temático discutido foi sobre 92
Beisiegel (Estado e Educação Popular), asso- educação popular, introduzindo a temática e
ciadas às discussões relacionadas ao Estado, a ressaltando a importância da sua aplicação às
Sociedade Civil e a educação das Classes Po- vivências e intervenções. Nesse espaço, dedica-
pulares Brasileiras. A luta declarada em favor ram-se ao ensinamento e a construção de uma
de uma educação popular, surge após a primei- postura de educador popular para a atuação
ra guerra mundial, onde os índices de analfa- com os povos do campo.
betismo brasileiro eram de 85,2% (BRANDÃO,
2006). “A educação popular emerge como um
movimento de trabalho político com as
“A educação popular vai se firmando classes populares através da educação.
como teoria e prática educativa alterna- Diante de um modelo oficial de educa-
tiva às pedagogias e às práticas tradicio- ção compensatória, a educação popular
nais e liberais, que estavam a serviço da não se propõe a originalmente como uma
manutenção das estruturas de poder po- forma mais avançada de realizar a mes-
lítico, de exploração da força de trabalho ma coisa. Ela pretende ser uma retotali-

92
zação de todo o projeto educativo, desde vel construir brincadeiras que realizassem uma
um ponto de vista popular” (BRANDÃO, reflexão crítica acerca da realidade vivenciada,
2006, p. 5). utilizando materiais disponíveis em suas terras,
dando espaço para a valorização das histórias
A postura de educador popular assumida de vida das pessoas e, segundo dados de 2006
pelos estagiários do EIVI vão além dos momen- da Secretaria de Estado da Educação do Pa-
tos desenvolvidos nas intervenções e passa a raná, ponderando e respeitando as especifici-
ser absorvida na construção subjetiva de cada dades da Comunidade – o que representa a
pessoa, enquanto cidadão. Como visto por Pe- prática de educação do campo. A elaboração da
reira e Pereira (2010), os princípios da educação atividade foi construída de forma interdiscipli-
popular estão além da participação coletiva, vi- nar entre os estagiários, havendo profissionais
sam a solidariedade rumo à construção de um e estudantes das áreas da Psicologia, Peda-
projeto político mais justo, mais humano e mais gogia, Medicina Veterinária, Zootecnia, Direito,
fraterno de sociedade e, assim, pode ser visto Engenharia Ambiental e Sanitária, Educação no
como parte de grande influência na formação Campo e Ciências Agrárias.
de cada pessoa, que levará e poderá adotar
essa postura em seu cotidiano. No Acampamento existe um pequeno rio
que é utilizado como espaço de lazer, onde
habitualmente as crianças costumam nadar e
brincar. Em uma das visitações ao rio, um dos
VIVÊNCIA E INTERVENÇÃO
estagiários identificou que em sua beira havia
Entre os dez dias de vivência no Acampa- argila de boa qualidade e que ela poderia ser
mento, foram construídas e aplicadas diversas utilizada para a construção de uma oficina in-
atividades de intervenção. No primeiro dia, os fantil. Em sua realização, havia cerca de dezes-
estagiários se reuniram com os povos locais seis pessoas do Acampamento presentes, sen-
para uma apresentação e troca de conhecimen- do a maioria delas crianças com idade entre 4
tos, e a partir desse momento foram levanta- e 12 anos, tendo também adolescentes, jovens
das sugestões de atividades que poderiam ser e adultos, além dos oito estagiários. A atividade
desenvolvidas na Comunidade, sendo um pro- durou cerca de três horas e foi dividida em três
cesso de construção coletiva. momentos, tendo como objetivo provocar uma
reflexão acerca da valorização da terra e as ri-
Entre as atividades levantadas, algumas fo- quezas naturais que ela pode oferecer.
ram: reforma do galinheiro, do ponto de ônibus
e campo esportivo, limpeza da Comunidade, Uma estória4 fictícia foi construída, contan-
oficina educacional infantil e com adolescentes do sobre um menino que havia encontrado uma
e jovens, cinema, cultural, encaminhamentos pedra preciosa em sua região. Nessa estória,
documentais e outras. Dar-se-á destaque às o menino tinha o hábito de esconder as suas
atividades voltadas de forma direta para a área moedas embaixo da terra, já que ele não tinha
da educação, sendo elas, a Oficina infantil e com um cofrinho. Ele sempre cavava um buraquinho
os adolescentes e jovens do Acampamento. A em uma árvore e as enterrava, mas um dia,
2 ênfase do relato para a área educacional se re- quando precisou das suas moedinhas, não as
laciona a observações realizadas nos espaços encontrava. Cavou, de um lado, não as encon-
de intervenção, pela necessidade de internalizar trou, do outro, e também não encontrou, mas
a importância do ensino educacional, e pelo ín- quando cavou pela terceira vez e mais fundo,
dice de dificuldades para acessar as escolas ou encontrou um diamante. A estória foi associada
4 Estória baseada às plantas que estavam na beira do rio, que
na planta Pandanus
outras instituições.
quando tinham a sua terra escavada da for-
candelabrum, iden-
tificada recente- ma correta, era possível encontrar uma outra
mente na Libéria. riqueza, a argila. Após esse momento, todos re-
Devido ao seu I. OFICINA INFANTIL tornaram para a comunidade a fim de dar início
crescimento em a próxima etapa da atividade.
zonas onde há for- A intervenção foi realizada com as crianças
mações rochosas presentes na Comunidade, e para o seu acon- O segundo momento foi marcado por uma
de origem vulcâni- breve introdução ao manejo da argila, formas
tecimento, elaborou-se em conjunto com os
ca, podem abrigar
estagiários, maneiras de proporcionar uma ati- de limpar, hidratar e manusear, seguindo então
grande quantidade
de diamantes. vidade de cunho lúdico, nas quais fosse possí- para orientação e criação livre e espontânea de

93
objetos, utilizando a matéria-prima. Sementes, tuação escolar, local de estudo, e as principais
pedras e galhos também foram utilizados como dificuldades enfrentadas para ter acesso e per-
forma de personalizar a criação. manência em espaços educacionais. Realizamos
esse momento para compreender a realidade
A atividade teve em seu terceiro momento educacional do Acampamento, e foi possível
uma devolutiva das crianças, que elucidaram a observar um grande número de adolescentes
falta de conhecimento sobre o manuseamento com a situação escolar irregular, além do indi-
do material que havia em suas terras, e que ali cativo de desistências.
onde nadavam, existia uma ferramenta que po-
deria ser utilizado tanto para lazer, como criação Com a inserção e permanência, levantamos
de brinquedos e até mesmo a produção artesa- o debate acerca das formas de acesso ao am-
nal, podendo ser utilizado como fonte de renda. biente universitário, como a participação em um
Para finalizar a Oficina, músicas do Movimento exame vestibular, o ENEM (Exame Nacional do
dos Sem Terra foram cantadas, com finalidade Ensino Médio), o Programa Universidade para
de valorizar e internalizar o sentimento do que Todos (ProUni) e também Fundo de Financia-
é ser uma criança sem terrinha. mento Estudantil (Fies). Além disso, destaca-
mos que após a inserção, existem políticas de
permanência estudantil fornecidas pelo Esta-
do, que auxiliam estudantes com baixa renda,
II. OFICINA COM OS ADOLESCENTES E JO-
fornecendo isenção ou desconto com despesas
VENS
geradas pela universidade, por exemplo: auxí-
Puntel, Paiva e Ramos (2011) relatam que lio transporte, auxílio alimentação, auxílio xerox,
o os espaços rurais tem se tornado cada vez entre outros.
mais heterogêneo e desiguais, sendo a juven-
Após o diálogo sobre permanência, deu-se
tude o público que sofre os maiores prejuízos.
início a uma discussão sobre os objetivos dos
Afirmam que ao estarem imersos em um es-
jovens ligados a áreas de atuação profissional.
paço de diluição de fronteiras entre o urbano
Nesse momento, poucos relataram ter uma
e o rural, existe uma falta de perspectiva para
ideia sobre uma futura vocação, e não apre-
quem vive da agricultura acompanhar o pa-
sentavam muitas perspectivas no ingresso a
drão de modernização. Enquanto as gerações
ambientes universitários. O objetivo, em sua
anteriores tiveram mais restrições a espaços
maioria, persistia na conclusão do ensino mé-
sociais, os jovens da geração atual estão cada
dio, realização de cursos técnicos ou o trabalho
vez mais ligados às relações sociais e culturais,
como funcionário público, sendo policial.
possibilitando uma reflexão acerca da sua iden-
tidade, relações pessoais e projetos de vida. Para falar um pouco sobre caminhos já per-
corridos, houve um momento de depoimento
A segunda intervenção a se destacar, foi
pessoal, sendo esse, dinamizado por uma das
realizada com os adolescentes e jovens do
estagiárias que era assentada do MST e tam-
Acampamento, com o objetivo de dialogar so-
bém uma jovem universitária que estava ini-
bre as formas de acesso, inserção e permanên-
ciando uma segunda graduação. O momento foi
cia dos jovens do campo no ambiente escolar e
pensado para provocar uma reflexão nos ado- 94
universitário. A atividade já havia sido realizada
lescentes e jovens da Comunidade, para que
na Comunidade anteriormente, e em grupo, os
tivessem naquele momento uma imagem de
estagiários decidiram dar continuidade e inserir
espelho e referência, podendo identificar que
novos tópicos. Cinco momentos foram realiza-
eles, apesar das inúmeras dificuldades, também
dos dentro desta intervenção, sendo eles: ma-
podem estar em outros espaços.
peamento; inserção e permanência estudantil;
perspectivas de áreas de atuação; caminhos já Em seu último momento utilizamos um ví-
percorridos; educação no campo. Na atividade deo sobre jovens do campo e os acessos que
havia cerca de nove pessoas do Acampamento, eles tiveram aos diversos ambientes educacio-
tendo uma faixa etária entre 15 e 29 anos, além nais, inclusive, obtendo uma formação e retor-
dos estagiários presentes. A sua execução teve nando a sua comunidade com o conhecimento
cerca de três horas de duração. adquirido, levando para ela desenvolvimento e
transformações.
No mapeamento, se fez uma rodada de
apresentações, informando os nomes, idade, si-

94
DIFICULDADES DE ACESSO À EDUCAÇÃO de local, as direcionando para centros urbanos.
DO CAMPO
“A identidade da escola do campo é de-
Durante o período da Vivência, foi possível finida pela sua vinculação às questões
observar inúmeras dificuldades que atingem os inerentes à sua realidade, ancorando-se
povos do campo em seus mais diversos am- na temporalidade e saberes próprios dos
bientes sociais, situações que implicam em uma estudantes, na memória coletiva que si-
série de dificuldades de acesso e permanên- naliza futuros, na rede de ciência e tec-
cia dos mesmos, nos ambientes de promoção nologia disponível na sociedade e nos
educacional. De acordo com dados de 2006 da movimentos sociais em defesa de pro-
Secretaria de Estado da Educação do Paraná , jetos que associem as soluções exigidas
a educação do campo sempre esteve à margem por essas questões à qualidade social da
das políticas educacionais, não sendo direciona- vida coletiva no país”. (BRASIL, 2012, p.
da aos povos trabalhadores da terra. Haddad 33).
(2012, p. 215) relata que:
Além da condição precária das estradas ru-
“Conceber a educação como direito hu- rais e dos ônibus utilizados pelos estudantes,
mano significa incluí-la entre os direitos o que faz com que percam parte do ano leti-
necessários à realização da dignidade vo, prejudicando o processo de ensino/apren-
humana plena. Assim, dizer que algo é dizagem e, consequentemente, o processo de
um direito humano é dizer que ele deve formação de cidadãos conscientes dos seus
ser garantido a todos os seres humanos, direitos.
independentemente de qualquer condi-
ção pessoal. Esse é o caso da educação, “A educação escolar é base constitutiva
reconhecida como direito de todos após na formação das pessoas, assim como
diversas lutas sociais, posto que por as auxilia na defesa e na promoção de
muito tempo foi tratada como privilégio outros direitos. Por isso, também é cha-
de poucos”. mada um direito de síntese, porque, ao
mesmo tempo em que é um fim em si
Na Comunidade, existe uma dificuldade mesma, ela possibilita e potencializa
relacionada à locomoção das crianças e ado- a garantia de outros direitos, tanto no
lescentes até as suas instituições de ensino. sentido de exigi-los quanto no de des-
Por acamparem em uma região afastada dos frutá-los – atualmente, uma pessoa que
centros urbanos, utilizam o transporte público nunca frequentou a escola tem maiores
como principal meio de locomoção, que muitas dificuldades em realizar o direito ao tra-
vezes não chega ao Acampamento, gerando au- balho, por exemplo”. (HADDAD, 2012, p.
sências e atrasos. De acordo com Moura e Cruz 218).
(2013), por conta da grande evasão escolar que
ocorria nos estados e municípios brasileiros, Outra dificuldade evidenciada pelos jovens,
devido à dificuldade de acesso dos estudantes é relacionada a precariedade financeira. As fa-
da zona rural nas escolas, o Governo Federal, mílias do Acampamento, em grande parte, pos-
4 suem uma renda baseada na venda dos pro-
desde 1994 desenvolve políticas de assistên-
cia financeira voltadas ao transporte escolar, o dutos provenientes das suas plantações, como
que consiste em uma política assegurada pela hortaliças, frutas e temperos, não possuindo
Constituição Federal de 1988, em seu artigo um trabalho formal ou salário fixo. A renda das
208, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educa- famílias não chega a ser suficiente para arcar
ção Nacional (LDB), no artigo 4, e pelo Estatuto com as necessidades básicas de uma casa,
da Criança e do Adolescente (ECA), em seu ar- tampouco para a formação educacional, impe-
tigo 54, com o objetivo da promoção do acesso dindo o acesso e investimento em materiais
do alunado às escolas, condição básica para a didáticos de qualidade. Essas situações acar-
garantia do direito à educação. Entretanto, além retam na falta de acesso dos jovens ao ensino
desta política de transporte escolar nunca ter superior. Por não terem um espaço educacio-
sido uma garantia efetiva para quem dela de- nal onde possam refletir sobre seus desejos e
penda, ela vai em posição oposta ao sentido da ambições de atuação profissional e uma renda
luta pela educação do campo, já que retira as familiar que possa arcar com os custos de se
crianças, adolescentes e jovens da sua realida- estudar em locais mais distantes, levando os
jovens a não enxergarem o acesso à universi-
95
dade como uma possibilidade de futuro. espaço.

É importante fazer as crianças, adolescentes


e jovens do campo perceberem a prática educa-
CONSIDERAÇÕES FINAIS cional como um direito, e o espaço universitário
precisa ser naturalizado, aproximando a ideia
Consideram-se relevantes os resultados
das suas realidades. A ausência de políticas pú-
gerados a curto prazo pelas duas oficinas rea-
blicas de educação voltadas para o campo, leva
lizadas. A oficina infantil gerou interesse nas
a uma ausência de identificação com as pautas
crianças fazendo-as retornar ao rio para colher
discutidas em suas comunidades, criando um
mais argila, sabendo como tratar e manusear.
sentimento de não pertencimento ao espaço.
Pode-se observar que o resultado também
Ainda, existem as dificuldades materiais, como
trouxe impactos aos adultos da comunidade, le-
falta de transporte público, cursinhos populares
vando uma das mulheres da comunidade ao rio
e vagas nas escolas, que acarretam em maiores
para colher argila, a fim de construir um filtro
dificuldades de acesso e permanência.
de barro para beber água filtrada em sua casa.
A oficina com os adolescentes e jovens possi- Os povos do campo necessitam de acolhi-
bilitou a construção de desejos, despertando a mento estrutural, sendo ele material e também
vontade de estar em ambientes educacionais simbólico. É necessário investir em políticas
de nível superior, e retomando a realização do educacionais, para garantir os direitos básicos
grupo de estudos que ocorria quinzenalmente do povo e assim, assegurar vivas as tradições
no Acampamento. Além disso, optaram tam- e os guardiões dos saberes tradicionais brasi-
bém pela expansão da biblioteca que havia no leiros.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BBC. <https://www.bbc.com/portugue/se/noticias/2015/05/150519_planta_diamante__lab>. Acesso em: 28 abr. 2019.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. (2012), O que é Educação Popular. 3ª reimpressão, São Paulo, Brasiliense.

BRASIL. Formação de professores do ensino médio, etapa I – caderno II: o jovem como sujeito do ensino médio. Ministério
da Educação, Secretaria de Educação Básica: [organizadores: Paulo Carrano, Juarez Dayrell]. Curitiba: UFPR/ Setor de
Educação, 2013.

BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão - SECA-
DI. (2012), Educação do Campo: marcos normativos. Brasília. Disponível em: http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/
bib_educ_campo.pdf. Acesso em: 07 de julho de 2019.

BOGO, Ademar. (2007), “Á Educação”, in A. Bogo, Cartas de Amor, Setor de formação nacional - MST. Disponível em:
http://www.reformaagrariaemdados.org.br/sites/default/files/COLET%C3%82NEA%20CARTAS%20DE%20AMOR%20
-%20completa%20-%20Junho%202006.pdf. Acesso em: 07 de julho de 2019.

FREIRE, Paulo. (1979), Educação como prática da liberdade.  9ª edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra.
96
HADDAD, Sérgio. (2012), “Direito à educação”, in R.. Caldart et. al., Dicionário da Educação no Campo.Rio de Janeiro, Ex-
pressão Popular.

MOURA, Ana Paula Monteiro; CRUZ, Rosana Evangelista. (2013), “A política do transporte escolar no Brasil”. Dados, n., v.:2.
Disponível em: <http://anpae.org.br/simposio26>.

NEPPA. <http://neppa-ba.blogspot.com/p/eivi_30.html>. Acesso em: 29 de abril de 2019.

PALUDO, Conceição. (2012), in R. et. Al Caldart., Dicionário da Educação no Campo. Rio de Janeiro, Expressão Popular.

PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação do. Diretrizes Curriculares da Educação no Campo. Departamento de Edu-
cação Básica. Curitiba, 2006.

PEREIRA, Dulcinéia de Fátima Ferreira; PEREIRA, Eduardo Tadeu. (2010),“Revisitando a história da educação popular no
Brasil: Em busca de um outro mundo possível”. HISTEDBR On-line, 10, 40: 72-89.

PUNTEL, Jovani Augusto, PAIVA, Carlos Aguedo, RAMOS, Marilha. Situação e perspectivas dos jovens rurais no campo.
In: 1º CIRCUITO DE TRABALHOS ACADÊMICOS, 1., 2011, Brasília. Anais...Brasília: IPEA, 2011.

96
Reforma Agrária em Dados. <http://www.reformaagrariaemdados.org.br/sites/default/ffiles/COLET%C3%82NEA%20
CARTAS%20DE%20AMOR%20-%20completa%20-%20Junho%202006.pdf>. Acesso em 21 de abril de 2019.

Recebido em 30 de abril de 2019

Aprovado em 10 de outubro de 2019

97
REVISTA TRÊS PONTOS | Centro Acadêmico de Ciências Sociais da UFMG| Ano 16, N. 2 | Jul/Dez 2019 | RESENHA

THE LEFT BEHIND – DECLINE AND RAGE IN RURAL AMERICA


WUTHNOW, Robert: Princeton University Press, 2018.

Esta resenha abordará o recente livro do que tais comunidades votaram em Trump. Já Caio Motta
sociólogo americano Robert Wuthnow, chama- no segundo tipo de interpretação, de nature- Graduando em
Ciências Sociais
do “The Left Behind: Decline and Rage in Rural za econômica, coloca-se como causa principal
pela UNESP Ara-
America” (200 páginas, sem edição em portu- o fato de tais comunidades estarem sofrendo raquara, FCLAR:
guês) lançado em 2018 pela Princeton Univer- economicamente. Mais do que isso, essa in- Faculdade de Ciên-
sity Press. A presente obra pretende estudar satisfação econômica surge quando se coloca cias e Letras de
as razões pelas quais os americanos residentes como causa do declínio econômico do condado Araraquara.
de comunidades rurais se encontram ressen- o fato de a população branca e masculina estar
Contato
tidos e revoltados. Apesar de o foco da obra perdendo empregos para afro-americanos, lati- <caiomotta36@
não ser as eleições americanas de 2016, o livro nos, e mulheres. yahoo.com>
de Wuthnow é uma importante contribuição e
introdução ao debate sobre aquele que é tido É nesse contexto que Wuthnow coloca seu
como um dos principais eleitorados de Donald último livro, “The Left Behind: Decline and
Trump: a chamada “América rural”. Portanto, a Rage in Rural America”. Wuthnow, que atual-
obra de Wuthnow surge com o objetivo de qua- mente leciona sociologia em Princeton, é uma
lificar o debate e providenciar informações im- das pessoas mais apropriadas para a tarefa de
portantes para todos que pretendem entender elucidar e propor explicações sobre o compor-
o fenômeno que foi a vitória de Trump. tamento político, sociológico, e cultural das co-
munidades rurais, além de refutar preconceitos
Após e durante as eleições americanas de que permeiam a percepção dos indivíduos sobre
2016 que estabeleceram Donald Trump como essas comunidades. Wuthnow já publicou vá-
novo presidente americano, analistas políticos rias obras sobre comunidades rurais dos EUA
e sociólogos logo se prestaram ao esforço de nas quais estuda os aspectos religiosos, cultu-
compreender um fenômeno que poucas pes- rais, econômicos, raciais e políticos dessas co-
soas acreditariam que iria acontecer. E logo munidades. Metodologicamente, Wuthnow faz
se chegou a uma importante conclusão acerca uso de arquivos, entrevistas e observações de
das comunidades rurais: elas votaram subs- campo, surveys, além da análise de dados já
tancialmente a favor do candidato Republicano. existentes oriundos de censos e registros de
Apesar de poucos acreditarem que o voto rural votação. Essa variedade de métodos de análise
tenha decidido as eleições, vários viram as dis- torna sua obra uma rica fonte dados, trazendo
crepâncias entre o voto rural e o suburbano e, entrevistas e providenciando informações con-
principalmente, entre o rural e o urbano. Tam- textuais úteis que colocam as falas dos indiví-
bém se ressaltou a relação entre a população duos em contexto. 98
do condado, sua distância com relação à região
metropolitana, e sua propensão a votarem a fa- Além do mais, a presente obra serve como
vor de Trump. um resumo de anos de estudos realizados por
Wuthnow, trazendo conclusões que só foram
A partir desses fatos, interpretações acer- alcançadas com anos de aprofundamento em
ca das razões pelas quais o voto rural se deu seu objeto de estudo e análise, e servindo tam-
de determinada maneira dividiram-se em dois bém como introdução a uma literatura que al-
polos: o primeiro, cultural e racial, e o segundo, meja analisar o resultado das eleições america-
econômico; cada um dando maior força interpre- nas de 2016 de forma rigorosa e baseada em
tativa a um desses aspectos. Sobre o primeiro dados empíricos. Tendo em vista que a vitória
tipo de interpretação relacionam-se explicações de Trump foi tida como um progresso do popu-
sobre o fato de tais comunidades rurais serem lismo nos Estados Unidos, também podemos
majoritariamente brancas e também racistas. dizer que a obra serve como uma valiosa fon-
Se adicionarmos o ressentimento cultural como te de informações para a análise e posterior
um dos aspectos, podemos compreender por combate do populismo justamente por propor

98
a compreensão dos possíveis motivos que le- tros criam uma forma peculiar de ver a comu-
varam as pessoas a apoiarem e votarem dessa nidade, na qual ela aparece não somente como
forma. um mero lugar onde alguém fortuitamente vive.
Vê-se a comunidade, na verdade, não apenas
1 “Were rural ame- Dessa maneira, inicia-se o livro questionan- em seus aspectos geográficos, físicos, mas
ricans that one-di- do as duas principais interpretações sobre as
mensional?” sim como uma casa; o lugar em que lealdades,
eleições de 2016: podem elas explicar o que há crenças, e identidades, são formadas. Sua pró-
2 “(...) understan- de relevante no comportamento e pensamento pria identidade orienta-se, então, em torno da
ding rural America daqueles que vivem em comunidades rurais? comunidade. À essa noção de comunidade mo-
requires seeing the É suficiente postular, como o faz a interpre- ral junta-se a compreensão (que contraria as
places in which its tação cultural, que a separação existente en-
residents live as duas intepretações sobre as eleições de 2016)
tre comunidades rurais e urbanas é resultado de que a América rural não é um bloco ho-
moral communities”
do ressentimento presente nas comunidades mogêneo, mas sim um composto de pequenas
3“(...) social expecta- rurais gerado pelo fato de elas serem menos comunidades. Essa conclusão tem importantes
tions, relationships, cosmopolitas que os indivíduos que moram nas implicações, pois altera nossa forma de ver a
and obligations cidades? Isto é, “são, afinal, os americanos que
that constitute the América rural como um bloco homogêneo do-
vivem em comunidades rurais tão unidimensio- minado pelas mesmas crenças e preferências
moral communities
they take for gran- nais?” (WUTHNOW, 2018, p. 3, tradução nos- políticas.
ted and in which sa)1. Wuthnow, com uma década de estudo e
they live are year escritos sobre a parte rural dos EUA, além de A noção de comunidade moral também vai
by year being fun- inúmeras horas gastas visitando tais lugares e nos ajudar a compreender o medo e a raiva
damentally fractu- estudando suas histórias, tem como objetivo de presentes nas comunidades rurais. De acordo
red”.
analisar as questões levantadas acima. com Wuthnow (2018, p. 6), existe o medo de
4 Devemos res- que formas de se viver referentes às peque-
saltar que o con- Seu argumento principal no livro é de que nas cidades estejam desaparecendo . E a raiva
ceito de “comuni- “(...) compreender a América rural requer ver os se refere ao fato de eles acreditarem que es-
dades morais” não lugares nos quais seus residentes vivem como tão sitiados, em perigo. Tanto a raiva quanto o
se mistura com o comunidades morais” (grifo do autor, 2018, p. medo não podem ser compreendidos sem an-
conceito de “comu- 4, tradução nossa)2. Diante disso, devemos nos tes compreendermos as relações de lealdade
nidades rurais”, ou
perguntar o que o autor quer dizer por comu- formadas por esses americanos com relação às
seja, eles não são a
mesma coisa. Nes- nidade moral: ela deve ser entendida a partir de suas comunidades. Assim sendo, isso resulta
se caso específico uma perspectiva ética, relacionada com o bem do fato de que, de acordo com Wuthnow (2018,
e durante o resto e o mal, além do justo, ou deve ser entendida p. 6, tradução nossa):
do livro, Wuthnow num sentido mais específico? Wuthnow adota
utiliza o conceito de a segunda postura. Para ele, comunidade moral (...) as expectativas sociais, as relações,
“comunidade moral”
significa um lugar no qual as pessoas sentem e as obrigações que constituem as co-
para compreender
certos aspectos um tipo especial de obrigação com relação umas munidades morais que eles tomam por
das comunidades às outras. E essa obrigação também tem um certo e nas quais eles vivem estão, ano
rurais. caráter específico, relacionado com a maneira após ano, sendo fundamentalmente fra-
pela qual as pessoas sentem a necessidade de turadas3.
8 preservar as maneiras locais de existência e a
forma pela qual essas maneiras produzem ex- É, então, com o conceito de comunidade
pectativas e crenças sobre a vida cotidiana. A moral que Wuthnow entenderá tanto o fenô-
necessidade de preservar essas maneiras locais meno da raiva e o sentimento de terem sidos
não é arbitrária, mas sim se relaciona com o deixados para trás. Tendo isso em vista, pode-
sentimento de estar fazendo a coisa certa na mos passar para a apresentação dos capítulos.
medida em que se conserva as práticas locais.
No primeiro capítulo, Wuthnow parte da
Nessa noção de comunidade moral, vemos compreensão de que a América rural é com-
os modos pelos quais as pessoas interagem posta de pequenas comunidades e de que qua-
umas com as outras e, desse modo, formam se todos na América rural vivem numa ou perto
relações de lealdade. Tais relações não ficam de uma comunidade; e são essas comunidades
presas às relações entre indivíduos, mas tam- que eles chamam de “casa” (ibidem, p. 13). Nes-
bém se consolidam entre indivíduos e as comu- se capítulo, o autor ressalta a importância de
nidades onde eles se encontram. Desse modo, se compreender as comunidades rurais como
essas interações e obrigações perante os ou- coletividades e, além disso, como comunida-
des morais4 que produzem significados acerca
99
do modo de vida que eles veem como correto. sa esses residentes, eles são realistas sobre os
Justamente por produzirem esse tipo de sig- problemas que impactam suas comunidades.
nificado, as comunidades morais influenciam
as formas pelas quais seus residentes formam De todos esses problemas, o mais preocu-
opiniões sobre si próprios e os interesses de pante é o de que seu estilo de vida está desa-
suas famílias. Porém, mais do que isso, comu- parecendo e sendo ridicularizado por outsiders.
nidades morais, ao produzirem significados so- Mesmo assim, na descrição de como esses
bre que tipo de vida deve ser vivida (ou sobre problemas afetam as comunidades, Wuthnow
a “boa vida”), são vistas pelos indivíduos como descreve a não rara empatia que os residen-
representantes de um certo tipo de vida. Nesse tes demonstram com aqueles considerados
caso, o seu tipo de vida. pertencentes à comunidade moral. Não pode-
mos reproduzir, aqui, por motivos de espaço,
O autor também providencia estudos de fielmente a descrição do autor, mas ela contêm
caso que possibilitam a melhor compreensão do reflexões que se chocam com a visão tradicio-
uso do conceito de comunidade moral. No geral, nal que temos sobre essas comunidades.
esse capítulo introduz a noção de comunidades
morais como algo que consiste em um espaço No terceiro capítulo, Wuthnow foca nas so-
geográfico, mas que também vai além disso. luções propostas pelos residentes para proble-
Além do espaço geográfico, uma comunidade mas imediatos. O autor descreve as inúmeras
moral também consiste em uma população que organizações presentes nas comunidades ru-
se vê como parte dessa mesma comunidade e rais que pretendem ajudar na solução de pro-
que se engaja em extensivas interações sociais. blemas locais. Vemos como ser um membro
Há, também, uma estrutura de regras formais respeitado da comunidade passa, também, por
e informais de liderança e uma noção daquilo tentar solucionar os problemas da comunidade,
que separa aqueles que pertencem à comuni- não só os próprios e os de sua família. Um fato
dade daqueles que não pertencem (ou seja, os interessante é que, atualmente, as comunida-
insiders e os outsiders). A conclusão que o au- des, na resolução de seus próprios problemas,
tor quer transmitir é a de que comunidades ru- se encontram mais interconectadas e depen-
rais, compreendidas como comunidades morais, dentes de recursos e oportunidades externas
têm, como seus residentes, indivíduos que não do que nunca. Podemos ver um exemplo disso
chegam a conclusões sobre problemas políti- na questão dos empregos. Os residentes das
cos de forma isolada e individual. Pelo contrário: comunidades rurais tentam, a partir de vários
suas ansiedades políticas, culturais, e econômi- incentivos, trazer ou pelos menos garantir os
cas, são influenciadas pelas comunidades em empregos já existentes, mas suas tentativas
que eles vivem. Com essa forte relação entre normalmente são frustradas porque, hoje, as
as crenças individuais e comunidade, os indiví- comunidades são menos autossustentáveis do
duos se preocupam fortemente com o fato de que eles gostariam.
as comunidades que preservam sua forma de
Ademais, tais residentes desdenham de
vida estarem em perigo. Se elas estiverem em
experts externos e de agentes governamen-
perigo, novas ansiedades poderão surgir.
tais porque acreditam que eles não entendem
dos problemas que eles enfrentam. Ao mesmo 100
No segundo capítulo, vemos alguns dos pro-
blemas que desafiam o tecido moral da comu- tempo, os residentes sabem que são tão de-
nidade. Wuthnow define o tecido moral a partir pendentes de tais agentes quanto dos merca-
da noção compartilhada de que aquilo que a co- dos nacionais e internacionais. Todavia, esses
munidade representa é o correto. Os problemas desafios não impedem os residentes de forma-
analisados pelo autor estão relacionados ao de- rem associações voluntárias com o objetivo de
clínio populacional; à saída de cérebros; isto é, resolver uma variedade de problemas, inclusive
a saída de pessoas com formação, que saem a pobreza que às vezes assola suas comuni-
das comunidades em busca de melhores opor- dades.
tunidades nas metrópoles; à gravidez precoce;
No quarto capítulo, Wuthnow explora a in-
às drogas; falta de empregos; e ameaças cul-
satisfação que os residentes têm com relação
turais. Aqui, vemos vários motivos que tornam
à Washington. Sua insatisfação é, em grande
os residentes dessas comunidades frustrados
parte, canalizada numa suspeita perante o go-
e nervosos. Contudo, surpreendentemente, e
verno federal, que eles veem como distante,
de forma contrária ao estereótipo que perpas-
além de demasiadamente intrusivo, burocráti-
100
co, e ausente de bom senso. Esse capítulo é nio moral e a intolerância. Sobre o declínio mo-
extremamente importante, pois a insatisfação ral, um fato interessante foi encontrado: muitas
com Washington foi tida como um dos moti- das comunidades em que as pessoas denun-
vos pela vitória de um candidato fora do estab- ciam a decadência moral estavam, demográfica
lishment político. De acordo com os residentes, e economicamente, em situações favoráveis.
além de Washington estar distante no sentido Assim, desafia-se a interpretação econômica.
geográfico, essa distância também se expressa No quinto capítulo, temos contato com as per-
culturalmente. Para eles, o governo federal não cepções dos residentes sobre vários assuntos,
se interessa em compreender seus problemas. como aborto, homossexualidade, um suposto
Na verdade, para eles, Washington só ouve os egoísmo que corrói a confiança que as pessoas
“grandes”, e não eles, os “pequenos”. Esses são mantêm entre si. O interessante é como Wuth-
os termos usados, pois acreditam que Washin- now demonstra que o conservadorismo dessas
gton só ouve os grandes fazendeiros, os gran- populações age, no final, contra seus próprios
des negócios, os grandes bancos, etc. Na sua interesses. Isto é, se alguém vota num candi-
concepção, enquanto Washington ajuda os in- dato conservador porque ele propõe medidas
teresses dos grandes fazendeiros através de respectivamente conservadoras sobre aborto
lobistas, os interesses dos pequenos fazendei- e homossexualidade, junto com essas medidas
ros presentes em suas comunidades são es- vêm um pacote que diminui o gasto do Estado
quecidos. com os mais pobres e diminui os impostos para
os mais ricos, além de estabelecer impostos
Além do mais, Washington, quando não ig- regressivos. Tais políticos também podem rede-
nora seus problemas, faz, sob a visão dos re- senhar o mapa distrital para limitar a influência
sidentes, justamente o contrário: intervém de política de afro-americanos e hispânicos.
maneiras prejudiciais. Essa dicotomia, tal como
Wuthnow percebe, é uma constante da percep- No sexto capítulo, Wuthnow mostra como
ção dos residentes das comunidades rurais: ou as comunidades rurais abordam a população
o governo federal não se interessa pela comu- hispânica, muçulmana, o racismo e a misoginia.
nidade rural, ou intervém excessivamente; na A diversidade e heterogeneidade nas respostas
verdade, intervém tanto que não raro desejam e ações das populações dessas comunidades
ser deixados em paz. também são demonstradas nesse capítulo, e
vemos a complexidade por trás desses proble-
Porém, Wuthnow vai mais fundo e encontra mas. Por exemplo, ao mesmo tempo em que a
uma aparente razão para essa suspeita com re- comunidade hispânica foi integrada (em grande
lação ao governo federal: o fato de os residentes parte como mão de obra barata), os muçulma-
acharem que a cultura presente em Washing- nos, ainda devido aos ataques terroristas ocor-
ton é a antítese de seus próprios valores. Isto é, ridos em onze de setembro de 2001, são vistos
eles veem o modo pelo qual o governo federal como estranhos. No caso da misoginia, vemos
pensa, como uma ameaça aos valores de suas como as comunidades rurais perpetuam papéis
comunidades. Para eles, Washington é uma de gênero e como isso afeta as mulheres ha-
imensa burocracia homogênea que impõe nas bitantes.
0 pequenas comunidades regras, sem ao menos
ouvir o que essas comunidades têm a dizer. Ou No geral, o livro de Wuthnow é uma bem-
seja, o governo federal não tenta entender as -vinda introdução a todos que pretendem estu-
necessidades e desejos locais, e também não dar mais sobre a América rural e suas relações
tenta entender como essas necessidades e de- com as eleições de 2016. O livro do Wuthnow
sejos diferem da regra que o governo pretende não providencia, em si, respostas para essa re-
implantar. E é dessa frustração com o governo lação, mas é uma ótima fonte de informação
federal que uma mídia conservadora consegue para todos aqueles que querem compreender
se aproveitar. Portanto, entender as suspeitas esse segmento tão influente nos resultados da
que as comunidades rurais têm com relação à eleição citada acima. Talvez a maior contribuição
Washington é parte essencial da compreensão do livro de Wuthnow é o entendimento de que
de como o conservadorismo atua nessas co- comunidades rurais contêm uma ordem moral,
munidades e tira sua força. e que os indivíduos que vivem nela só têm suas
crenças porque elas, de certo modo, fazem sen-
No quinto e sexto capítulos, vemos, respec- tido dentro dessa ordem moral. De fato, há uma
tivamente, aquilo que eles entendem por declí- heterogeneidade nessas comunidades maior do

101
que se usualmente fala, mas compreender as mento é essencial caso queiramos entender
crenças dos indivíduos como parte de um teci- bem o conservadorismo populista que afeta
do moral feito de alianças, amizades, lealdades, essas comunidades e pode acabar por mudar
e crenças, perante a comunidade e o estilo de radicalmente a forma como a política é feita no
vida nela engendrado, nos permite entender âmbito nacional, caso um candidato faça refe-
melhor a razão de tais indivíduos acreditarem rência às demandas de tais comunidades.
da forma que acreditam. E ter esse entendi-

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
WUTHNOW, Robert. (2018), The Left Behind: Decline and Rage in Rural America. Princeton, Princeton University Press.

Recebido em 22 de abril de 2019

Aprovado em 02 de agosto de 2019

102

102
Nominata
Agradecemos àqueles/as que atuaram como pareceristas no volume 16, número 2, Dossiê
Retrocessos e Resistências, por sua criteriosa dedicação e sempre gentil avaliação dos textos
submetidos.

Ana Ester Pádua Freire (PUC-MG) – <anaesterbh@gmail.com Aline>


Andreia Regina Moura Mendes (SEMEC PARNAMIRIM) – <andreia.mendez2@gmail.com>
Anna Paula Bennech (Universidade de Würzburg – Alemanha) – <annabennech@gmail.com>
Celso Luz Gusman Neto (PUC-SP) – <cgusman@gmail.com>
Christian Carlos Rodrigues Ribeiro (UNICAMP) – <christianribeiro@outlook.com>
Clayton da Silva Guerreiro (UNICAMP) – <clayton.guerreiro@yahoo.com.br>
Crislaine Matozinhos Silva Modesto (UNICAMP) – <criselcler@gmail.com>
Deise Brião Ferraz (UFRG) – <deisebferraz@gmail.com>
Evaine Patricia Siepmann Silva (Unicentro) – <evainesiepmann@gmail.com>
Gabriela Perin (UFRGS) – <gabiii_perin@hotmail.com>
Gustavo Bruno de Paula (FaE/UFMG) – <gustavobrp@gmail.com>
Homero Chiaraba Gouveia (UFBA) – <chiaraba.homero@gmail.com>
João Víctor Martins Saraiva (PUC-MG) – <joao.saraiva@sga.pucminas.br>
Juliana Batista Cavalcanti Miranda Tavares (UFRJ) – <julianajubcmt@yahoo.com.br>
Laionel Vieira da Silva (UFPB) – <laionel.vs@gmail.com>
Laura Gomes Barbosa (UFJF) – <lauragb.barbosa@gmail.com>
Leila Marrach Basto de Albuquerque (UNESP) – <leilamarrach@uol.com.br>
Leonardo Azevedo (UFJF) – <leonardoazevedof@gmail.com>
Leonardo Rocha (UNISSALE) – <leonard.rocha@hotmail.com>
Manuella Riane Azevedo Donato (UFPE) – <manudonato@gmail.com>
Maria Rita Rodrigues (UERJ) – <mariarita.rdg@gmail.com>
Michel Belmiro Ilíbio (UNESC) – <mbilibio@unesc.net>
Pedro Arruda Júnior (EACH-USP) – <pedroarrudajunior@yahoo.com.br>
Sérgio da Silva Santos (UNB) – <sergiosantosciso@gmail.com>
Tailon Aparecido Gomes Garcia (UFU) – <tailon.1@hotmail.com>
Thalita Rodrigues (UFOP) – <rodrigues.thaalita@gmail.com>
Tsamiyah Carreño Levi (UFSC) – <tsalevi@gmail.com>
Vilmar Oliveira (PUC-MG) – <psi.vilmar@gmail.com>
Vinicius Volcof Antunes (UFRJ) – <vi_volcof@hotmail.com>

103
Crédito às
Ilustrações
Angie Caleff
Ilustra a página 46
Sou graduada em Design de Produto pela UFPR, amo minha profissão, e sempre senti uma
grande necessidade de me expressar politicamente, de gritar e evidenciar tudo aquilo que é
injusto e cruel. Por isso uso das artes gráficas como um “hobbie terapêutico”, como uma vál-
vula de escape mesmo. É através da arte que sinto que posso ter voz. Me interesso muito
por processos de criação como o Design Think e User Experience. Hoje trabalho com criação
de produtos feitos com papel cartão reciclado. Design é a solução de problemas, tais como os
problemas sociais.
Contato: <www.instagram.com/angye.di/> e <www.behance.net/angyesigned42>

Dangelis Brito
Ilustra a capa
Trabalho com o comércio de pães artesanais feitos por minha irmã e mãe, além disso, com
produção musical. Quando criança queria ser quadrinista, mas hoje a arte é um passatempo.
Atualmente minha criatividade me guia, então nunca sei o fim da história, mas o início é uma
caneta esferográfica no papel.
Contato: <https://instagram.com/dangelisking?igshid=114d97v4cfdst>

Douglas Gonçalves Pereira


Ilustra as páginas 22, 56, 78 e 79
Artista, natural de Laguna - Santa Catarina. Graduado em Arquitetura pela Universidade do
Sul de Santa Catarina, e especialista em Arqueologia e Patrimônio Cultural pela Fucap.

Fernanda Kaippert
Ilustra as páginas 34, 77, 97 e 102
Sou Fernanda. Estudante de Psicologia, que percebeu a arte como uma força poderosa de te-
rapia e como uma ponte para dentro de mim. Por meio dela, me encontro - e mais importante
- me expresso de infinitas maneiras.
Contato: <https://www.instagram.com/fk_artess/>

Heitor Vilela
Ilustra a página 90
Poesias ilustradas, ilustrações rabiscadas, aquarelas psicodelicamente pintadas, o traço que
contempla o pensamento. Arte feita pelo jornalista, chargista, radialista, desiludido de chapéu e
desenhista de parque Heitor Vilela. Pela luta, pela arte, pelo vandalismo estético, contra mora- 104
listas e fundamentalista. A favor do prazer e da liberdade.
Contato: <https://www.facebook.com/rabiscosescarrados>

Laura Diniz Pascoal


Ilustra a página 103
Graduanda em Artes Visuais na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Laura Pasco-
al debruça seus trabalhos por meio de colagens e pinturas, ligando preto e branco a cores
berrantes, padronagens das letras de frases decompostas que a artista desenvolve com uma
poética simultaneamente irônica, melancólica e por vezes bem-humorada entre o abstrato co-
lorido e o figurativo humano realista. Tal diálogo faz de sua poética uma junção poderosa entre
esses dois eixos.
Contato: <https://www.instagram.com/lauradpascoal/>

104
4

105

Você também pode gostar