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Nº 18

R E V I S T A

PERSPECT IVA

REFLEXÕES SOBRE A TEMÁTICA INTERNACIONAL


ISSN 1983-9707 ANO 08 AGOSTO/SETEMBRO 2015
ISSN 1983-9707 ANO 10 fevereiro/março 2017
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

Revista Perspectiva : reflexões sobre a temática


internacional / Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Faculdade de Ciências Econômicas, Centro Estudantil de
Relações Internacionais. Ano 9, n. 18(fev./mar. 2017) – Porto
Alegre : UFRGS/FCE/CERI, 2008 -

Semestral.
ISSN 1983-9707.

1. Relações exteriores : Política. 2. Relações


internacionais. 3. Política internacional. 4. Cooperação internacional.
CDU 327

Responsável: Biblioteca Gládis Weibbelling do Amaral, Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS


SUMÁRIO

EDITORIAL....................................................................................................7
por Paulo Visentini

ARTIGOS

O Sistema Internacional na Formação da Base Industrial de Defesa


Soviética: da Revolução à Bomba de Hidrogênio (1917-1953)......................... 9
Valeska F. Monteiro
Joana B. Vaccarezza

O papel da Revolução Cubana nas Revoluções Terceiro-Mundistas


durante a Guerra Fria: o internacionalismo cubano em Angola e na
Nicarágua.......................................................................................................30
João Vítor Correa Nogueira
Karina Ruiz
Marielli Prestes Bittencourt
Rodrigo Fuhr
Vitória Gonzalez Rodriguez

A Revolução Sandinista...................................................................................58
Gabriela Ruchel de Lima
Maria José Ahumada

A Revolução Iraniana: Rupturas e Continuidades na


Política Externa do Irã..................................................................................... 70
Murillo Müller do Espírito Santo
Tiago Oliveira Baldasso

A Revolução Baath no Iraque e na Síria: o que mudou? ................................. 85


Daniela Zapata de Oliveira

A Revolução Cultural e Popular na Líbia de 1973.........................................100


Felipe Bressan Giordani
Gabriela Verdi Borges

Revolução no Camboja: Impactos na Correlação de Forças


do final da Guerra Fria .................................................................................116
Guilherme Etzberguer
Maria Gabriela Vieira
Mateus Borges

A Revolução Angolana e seu Impacto Internacional.........................................131


Amabilly Bonacina
Rafaela Serpa

Revolução Etíope: Impactos Regionais e Sistêmicos.......................................144


Luiza Nunes Côrrea

Resposta Hegemônica aos Ideais Revolucionários: Contrarrevolução


e o seu Impacto no Sistema Internacional......................................................164
Gabriela Freitas dos Santos
Luísa Acauan Lorentz

RESENHA
HALLIDAY, Fred. Revolution and World Politics: The Rise and Fall of the Sixth
Great Power. London: Macmillan, 1999. ......................................................183
Resenhado por Guilherme Thudium

ENTREVISTA
Entrevista sobre Revoluções e Relações Internacionais,
com Analúcia Danilevicz Pereira, Professora da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ..................................190

PARÂMETROS PARA SUBMISSÃO DE ARTIGOS ................................ 193


SUMMARY

EDITORIAL....................................................................................................7
by Paulo Visentini

ARTICLES

The International System in the Formation of the Soviet Industrial


Defense Base: from the Revolution to the Hydrogen Bomb
(1917-1953)......................................................................................................9
Valeska F. Monteiro
Joana B. Vaccarezza

The role of the Cuban Revolution in Third-World Revolutions


during the Cold War: the Cuban internationalism in Angola
and Nicaragua..................................................................................................30
João Vítor Correa Nogueira
Karina Ruiz
Marielli Prestes Bittencourt
Rodrigo Fuhr
Vitória Gonzalez Rodriguez

The Sandinist Revolution.................................................................................58


Gabriela Ruchel de Lima
Maria José Ahumada

Iranian Revolution: Ruptures and Continuieties in


Iran’s Foreign Policy.........................................................................................70
Murillo Müller do Espírito Santo
Tiago Oliveira Baldasso

The Baath Revolution in Iraq and Syria: what has changed?........................... 85


Daniela Zapata de Oliveira

The 1973 Libian Cultural and Popular Revolution........................................100


Felipe Bressan Giordani
Gabriela Verdi Borges

Revolution in Cambodia: Impacts on the Correlation of


Forces ofthe end of the Cold War...................................................................116
Guilherme Etzberguer
Maria Gabriela Vieira
Mateus Borges

The Angolan Revolution and its International Impact....................................131


Amabilly Bonacina
Rafaela Serpa

Ethiopian Revolution: Regional and Systemic Implications ..........................144


Luiza Nunes Côrrea

Hegemonic Response to Revolutionary Ideals:Counter-revolution


and its impact on the International System....................................................164
Gabriela Freitas dos Santos
Luísa Acauan Lorentz

REVIEW
HALLIDAY, Fred. Revolution and World Politics: The Rise and Fall of the Sixth
Great Power. London: Macmillan, 1999. ......................................................183
Resviewed by Guilherme Thudium

INTERVIEW
Interview on Revolution and International Relations,
with Analúcia Danilevicz Pereira, Teacher of
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ..................................190

PARAMETERS FOR ARTICLES SUBMISSIONS .....................................193


Editorial

As Revoluções têm sido quase completamente negligenciadas nos estudos


de Relações Internacionais, especialmente quando comparadas aos estudos sobre a
guerra entre os Estados e a paz. Quase não há centros de estudos especializados ou
revistas científicas dedicadas às Revoluções como eventos internacionais. Inclusive
na Carta da ONU, bem como na abordagem da maioria dos internacionalistas,
esses fenômenos sociopolíticos são abordados como eventos internos que perturbam
a ordem internacional. Ou seja, constituiriam uma anomalia.
Todavia, as Revoluções ocorrem em um contexto internacional que tenciona
as estruturas internas, provocando uma ruptura que implica na transformação (e
renovação) da ordem mundial. As Revoluções provocam simpatia no exterior, bem
como instigam a reação de uma contrarrevolução. As alianças militares, histori-
camente, foram formadas para enfrentar o desafio de Revoluções ou de Estados
Revolucionários, desde a Revolução Francesa até o Século XX.
Mais importante: quando uma revolução é vitoriosa e constrói um Estado
socialista, como ela pode ser “acomodada” na ordem mundial? O enfoque do
realismo, nesse sentido, capta apenas a forma, sem enfocar a essência do fenômeno
revolucionário no plano internacional. Nesse sentido, vale a pena ler a obra clássica
de Fred Halliday, “Revolution and World Politics”, resenhada nesse número especial
da Revista Perspectiva.
Ele é o resultado da postura inovadora dos estudantes de graduação em
Relações Internacionais da UFRGS. Ao saber do curso Revoluções e Relações
Internacionais, que ministrei em Programas de Pós-Graduação, eles solicitaram
que ele lhes fosse oferecido na graduação. O resultado foi um semestre dinâmico e
estimulante, com a descoberta de uma nova dimensão das Relações Internacionais,
quando se avizinhava o centenário da Revolução Russa.
Foram elaborados trabalhos de conclusão que aqui são reunidos como
elemento de apoio aos estudantes de todo o Brasil, num número temático da
Perspectiva. Em particular foram enfocados os casos de Revoluções do Terceiro
Mundo, pouco estudadas e que representam excelentes objetos para a elaboração
de futuros TCCs. Tal projeto não teria sido possível sem a iniciativa e o apoio
de todos os estudantes envolvidos no curso e, em especial, aos Pesquisadores
de Pós-Graduação do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais
(NERINT) que auxiliaram na produção deste número: Guilherme Thudium
(PPGPOL-UFRGS) e Leonardo Augusto Peres (PPGPOL-UFRGS).

Paulo Fagundes Visentini


Professor Titular de Relações Internacionais - UFRGS
O Sistema Internacional na formação da Base
Industrial de Defesa soviética: da Revolução à
bomba de hidrogênio (1917-1953)

Valeska F. Monteiro
Joana B. Vaccarezza*

RESUMO: Este artigo tem como tema a formação da Base Industrial de Defesa
soviética e o papel representado pelo Sistema Internacional nesse processo, da
Revolução de 1917 ao desenvolvimento da bomba de hidrogênio em 1953.
A modernização da União Soviética foi uma das missões logo adotadas pela
Revolução Russa após sua consolidação em 1922, e teve como consequência a rápida
industrialização do país. Parte-se do pressuposto de que a construção e a evolução do
Base Industrial de Defesa nesse contexto é resultado não apenas da visão que tinham
os revolucionários a respeito das etapas necessárias à Revolução, mas também de
uma necessidade de sobrevivência em um mundo capitalista, competitivo e hostil
à Revolução.
PALAVRAS-CHAVE: Revolução Russa; União Soviética; Base Industrial de Defesa;
Sistema Internacional.

* Graduandas em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
REVISTA PERSPECTIVA

1 Introdução
Em 2017, comemora-se o centenário da Revolução Russa. A história do
século XX foi marcada pela ocorrência de uma revolução socialista no centro do
Sistema Internacional (SI). Grandes acontecimentos da história mundial foram
influenciados e influenciaram o desenvolvimento da Revolução soviética, a mais
longeva da história. O objetivo deste artigo, nesse sentido, é analisar qual o papel
exercido pelo SI no processo de formação da Base Industrial de Defesa soviética,
desde a revolução de 1917 até o desenvolvimento da bomba de hidrogênio em
1953. Parte-se da hipótese de que os rumos desse Estado revolucionário foram,
em alguma medida, resultado da interação com o SI e dos constrangimentos que
impôs, e não somente das decisões internas.
O referencial teórico utilizado para realizar esta análise parte dos escritos de
Fred Halliday em seu livro “Repensando as Relações Internacionais” (HALLIDAY,
1999). Nessa obra, o autor discute as Revoluções enquanto um “poder” atuante no
SI, mas frequentemente esquecido pelos analistas da área de Relações Internacionais.
Partindo dessa premissa, Halliday (1999) chama atenção para a importância de
entender como as Revoluções afetam as relações internacionais e o Sistema Inter-
nacional, e como por eles são afetadas. O autor define, portanto, ao menos quatro
áreas de análise relevantes em qualquer estudo de Revoluções: suas causas internas
e externas; a política externa do Estado Revolucionário; as respostas dos outros
Estados; e a formação desse Estado sob a perspectiva de quanto constrangimento
externo lhe é imposto (HALLIDAY, 1999, p. 149).
Neste estudo, ainda que estejam presentes essas quatro áreas de análise em
alguma medida, ganha enfoque a última, que diz respeito a “como (...) os fatores
internacionais e o sistema como um todo constrangem o desenvolvimento interno
pós-revolucionário dos Estados e determinam suas evoluções políticas, sociais e
econômicas” (HALLIDAY, 1999, p. 149). No caso da história russa/soviética, o
mais importante a ser analisado a esse respeito são as inúmeras tentativas dos outros
Estados do SI de “socializar” a Revolução - ou seja, suavizá-la e fazê-la se ajustar ao
capitalismo. Procurou-se atingir esse objetivo tanto por meio da guerra quanto da
ameaça dela, sendo a Guerra Civil e a contrarrevolução os impulsos iniciaisdesse
processo.

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O Sistema Internacional na formação da Base Industrial de Defesa Soviética:
da Revolução à bomba de hidrogênio (1917-1953)

Para melhor analisar como isso ocorreu, destacar-se-ão os principais acon-


tecimentos do período, desde a Guerra Civil até o imediato pós Segunda Guerra
Mundial. Objetiva-se avaliar qual relação a Base Industrial de Defesa (BID)estabelece
com os próprios rumos da Revolução, quais foram os constrangimentos externos
impostos à estae de que modo eles impactaram no desenvolvimento da BID. Os
temas de defesa e de industrialização se constituíram em uma constante ao longo
da história da Rússia revolucionária e da União Soviética. Com a conclusão da
Guerra Civil, ainda que os bolcheviques tenham saído vitoriosos, permanece na
sociedade russa um sentimento de cerco. Essa percepção de ameaça vinda do mundo
capitalista perduraria ao longo de toda aRevolução, tendo papel importante nos
caminhos adotados por seus líderes nos anos seguintes (BARBER et al., 2000).
Ainda vale ressaltar o uso do termo Base Industrial de Defesa nesta pesquisa
como um conceito amplo para uma análise holística de um objeto de estudo que
não necessariamente se trata apenas de algo físico e concreto (complexo de indústrias
em determinado local), mas de uma rede intrincada – que inclui fornecedores,
pesquisadores, fábricas, infraestrutura civil e as próprias Forças Armadas – e que
possibilita a fabricação de armamentos estratégicos à sobrevivência do Estado.
Este conceito é utilizado a partir de Regiane de Melo (2015), que define “Base
Industrial e Tecnológica de Defesa (BITD)” como uma rede de estruturas e de
instituições estatais, organizações militares, centros de pesquisa, universidades e
empresas, os quais, juntos, tomam parte na pesquisa & desenvolvimento (P&D)
e, principalmente, na produção de meios estratégicos de defesa nacional (MELO,
2015, p. 35).

2 A Revolução Russa consolidada (1917-1922)


Em outubro de 1917, a Rússia ingressou no processo revolucionário que,
anos depois, culminaria na criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS) e na consolidação do que ficaria conhecido como Revolução Russa.
Considera-se aPrimeira Guerra Mundial (I GM) e os dramáticos impactos que
ela causou na Rússia como motoresdesse processo. A Guerra gerou sérias conse-
quências e impôs enormes sacrifícios aos russos, dentre eles a queda na produção

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REVISTA PERSPECTIVA

de alimentos, as enormes baixas em combate (e fora dele), as derrotas na frente de


batalha, a desmotivação, as deserções e as insubordinações. De fato, a situação da
Rússia poderia ser caracterizada como verdadeiro caos interno. (VISENTINI et
al, 2013;BUSHKOVITCH, 2014)
As greves, as manifestações e os motins pressionando o governo central
já haviam levado à abdicação do Czar Nicolau II em março daquele ano. De
março a outubro de 1917 existiu um governo dual na Rússia. De um lado, houve
a formação do Governo Provisório com os antigos representantes da Duma de
Nicolau II, os quais pretendiam sustentar ao máximo o poder central, ainda que
na sua forma precária. Estes optaram pela permanência da Rússia na I Guerra
Mundial. Ao mesmo tempo, o soviete de Petrogrado ganhava força, tornando-se
elemento político de oposição ao Governo Provisório, uma espécie de “governo”
alternativo. Sovietes se formaram também em Moscou e em outras cidades, unindo
soldados, camponeses, trabalhadores. Antigos líderes socialistas voltaram do exílio
na Europa ocidental e começaram a organizar os sovietes para tomar o poder e para
transformar o regime. A situação de caos interno no país e a falta de autoridade
central possibilitaram, em certa medida, a consecução deste objetivo (VISENTINI
et al., 2013; BUSHKOVITCH, 2014).
É nesse momento que diversos partidos saem da clandestinidade e orga-
nizam a população russa para tomar o poder e para iniciar a revolução socialista. O
Governo Provisório reage com forte repressão armada aos grupos revolucionários,
que têm dificuldade de se reorganizar. Em outubro, finalmente, Vladimir Lenin
retorna da Finlândia e reúne os líderes bolcheviques, que nessa época são maioria
política nos principais sovietes. O evento símbolo desse período é a invasão dos
Guardas Vermelhos ao Palácio de Inverno, encerrando o Governo Provisório. A
partir de então, os bolcheviques tomam o poder na Rússia, proclamando a República
Socialista Soviética Russa (VISENTINI et al, 2013; BUSHKOVITCH, 2014).
O principal desafio que surge com o início da Revolução é a construção
do socialismo em meio à Guerra e ao caos interno (colapso da rede de transportes,
falta de alimentos, economia desestruturada, epidemias). Os líderes revolucionários
decidem pela saída da Rússia da Primeira Guerra Mundial em março de 1918,
a fim de tentar reverter a situação interna precária. Porém, a contrarrevolução

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O Sistema Internacional na formação da Base Industrial de Defesa Soviética:
da Revolução à bomba de hidrogênio (1917-1953)

irrompe de maneira violenta, marcando o início de uma sangrenta guerra civil


na Rússia com ingerência de potências externas. Os revolucionários criam, então,
o Exército Vermelho dos Operários e Camponeses para combater os principais
grupos armados opositores: cossacos e ucranianos no Sul, legião tcheco-eslovaca
na Sibéria Ocidental, Exército Branco de cossacos da Sibéria, liderado por Kolchak
(BUSHKOVITCH, 2014).
Em novembro de 1918 se encerra a Primeira Guerra, e britânicos, franceses,
canadenses, norte-americanos e japoneses passam a apoiar vários dos grupos oposi-
tores1 na Guerra Civil russa. O apoio externo à contrarrevolução interna veio de
várias formas, desde o envio de pessoal combatente - invasão do território russo - até
a ajuda financeira, passando por fornecimento de armas, suprimentos, munições,
entre outros (WILLIAMS, 1994; VISENTINI et al, 2013; BUSHKOVITCH,
2014;). As tropas aliadas britânicas e francesas chegaram a combater no Sul, mais
próximas dos brancos ucranianos (mas também apoiando Kolchak), enquanto as
tropas japonesas concentraram-se na parte mais oriental da Rússia, como Vladi-
vostok (BUSHKOVITCH, 2014).
Dificultando ainda mais a situação interna da Rússia, em 1920 o país entra
em guerra com a Polônia: esta, aproveitando-se da situação de vulnerabilidade
do Estado russo, invade a Ucrânia. A Rússia reage forçando a retirada das tropas
polonesas. Os russos, porém, continuam a guerra ao invadir a Polônia, chegando
até a capital Varsóvia. Nesse momento o Exército Vermelho fica cercado pelos
poloneses, os quais, com ajuda francesa, forçam a retirada russa e retomam suas
fronteiras mais ao Leste, firmando tratado de paz. Essa foi uma derrota significativa
para o Exército Vermelho e para os revolucionários de modo geral, mostrando que
a agressão externa poderia se tornar uma ameaça constante ao território russo.
Portanto, para defendê-lo a Rússia precisaria se estabilizar internamente e encontrar
condições para melhorar suas capacidades militares (BUSHKOVITCH, 2014).
Ainda assim, mesmo com a derrota para a Polônia em 1920, a Guerra
Civil foi vencida pelos bolcheviques em 1921, com os principais grupos brancos
derrotados pelo Exército Vermelho. A questão que fica em aberto é como foi
possível para a Rússia, nas condições em que se encontrava, vencer as forças brancas

1 Tais grupos ficaram conhecidos como “brancos”, em oposição àcor vermelha da Revolução Socialista.

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REVISTA PERSPECTIVA

contrarrevolucionárias. O relato do próprio general russo Georgi Júkov acerca desse


período pode contribuir nesse debate. O Gen. Júkov relata em suas memórias como
um esquadrão comandado por ele no Exército Vermelho conseguiu vencer um
regimento inimigo inteiro na Revolução Russa devido à abundância de munição
e de canhões do lado revolucionário (JÚKOV, 2015, p. 100). À primeira vista,
essa informação é curiosa: como um país em situação caótica internamente teria
conseguido sustentar tanta abundância de meios militares no campo de batalha?
Essa situação só é possível ao se considerar o que o próprio Júkov (2015) explica
nas páginas seguintes sobre a integração entre as forças produtivas e o poder militar.
Júkov (2015, p. 102) descreve como o Exército Vermelho era o único lado
do campo de batalha que possuía viaturas de combate blindadas, mostrando a
grande vantagem militar, seja quantitativa, seja qualitativa, do lado russo.Ainda
existem alguns veículos militares dessa época que corroboram as afirmações do
General. O Austin-Putilov é o principal deles: adaptado de um projeto inglês, foi
o mais importante carro para os russos na Primeira Guerra Mundial e na Guerra
Civil, produzido em larga escala. Para a época, era relativamente avançado, com
blindagem de 8mm, duas metralhadoras e autonomia de 200km, além de ser um
carro bastante robusto (ABRIL COLEÇÕES, 2010).
Júkov (2015) ressalta que o importante para a vitória da Revolução na Guerra
Civil foi a “união Exército Povo”, que, em outras palavras, significava o alinha-
mento de objetivos entre as capacidades produtivas soviéticas (civis, metalúrgicos,
operários) e os soldados. Segundo Júkov (2015), concentrou-se poder e recursos
imensos da economia nacional nas áreas militares mais relevante à Revolução. Esse
alinhamento, a integração civil-militar, possibilitou a criação das condições para
que a vantagem militar estivesse a favor do Exército Vermelho frente aos brancos
(JÚKOV, 2015, p. 106-107). Disciplina, unidade de comando, organização de
Exército regular, com controle centralizado e uniforme em todos os níveis (subor-
dinação e disciplina rigorosas) foram outros fatores que permitiram a vitória da
Revolução. O General Júkov ressalta ainda o “conhecimento, comprometimento
e determinação das tropas” (JÚKOV, 2015, p. 108).
Em suma, pode-se dizer que, em grande medida, a sobrevivência e a origem
da Revolução Russa se dão justamente graças à união entre forças produtivas - as

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O Sistema Internacional na formação da Base Industrial de Defesa Soviética:
da Revolução à bomba de hidrogênio (1917-1953)

indústrias que resistiam em meio à Guerra - e Forças Armadas, com ênfase no


Exército Vermelho e na força terrestre. Em certo sentido, pode-se avaliar que o
impulsoa esse processo veio, em primeiro lugar, da invasão terrestre do território
russo por forças que se opunham à Revolução e que, por isso, buscavam sufocá-
-la. Em outras palavras, o ímpeto inicial à BITD é dado pelo Exército Vermelho
em meio à Guerra Civil imposta pelas potências externas (BARBER et al., 2000).
Justamente essa BID nascente teria possibilitado a vitória dos revolucionários.
Em relação à organização econômica e produtiva da URSS nessa época,
adotou-se o Comunismo de Guerra. Este consistiu em um plano socialista de
contingência, ou seja, adaptado para a severa realidade russa. Portanto, incluiu
diversas políticas econômicas não previstas inicialmente pelo socialismo, como
o confisco de cereais (devido à falta de alimentos), a nacionalização de fábricas e
do comércio, a centralização de instituições econômicas no Estado, um partido
único central e o Exército Vermelho enquanto sustentação militar desse processo.
Finalmente, em dezembro de 1922, se deu a constituição da URSS2, encerrando
o período de comunismo de guerra (VISENTINI et al., 2013; BUSHKOVITCH,
2014).
Estabelecida a URSS, criava-se um desafio à ordem internacional mundial
capitalista, uma vez que se constituiu em um país socialista isolado em meio a
potências capitalistas hostis. Contudo, a política externa soviética, de um modo
geral, tendeu mais à coexistência pacífica do que ao internacionalismo proletário.
Em outras palavras, seguiu-se mais a linha leninista de busca pelo “interesse
nacional” soviético do que a de internacionalização da revolução. Ainda assim,
a relação do Estado Revolucionário com a diplomacia e a política mundiais era
complicada: a URSS, pelos motivos supracitados, se considerou em guerra com o
mundo capitalistadurante toda a sua existência, precisando, portanto, se defender.
A ameaça da guerra se tornou, assim, uma maneira de gerar coesão social interna
e de justificar a acelerada industrialização e militarização (WILLIAMS, 1994).
2 A URSS possuía uma estrutura federal baseada em território e etnia. Moscou era o centro de várias repúbli-
cas soviéticas, tecnicamente independentes (mesma condição jurídica da Rússia), que gozavam de autonomia
cultural, por exemplo, mas que eram governadas pelo Partido Central (centralização política e econômica). À
União cabia os encargos de defesa, relações exteriores, transportes, comunicações, planejamento econômico.
Inicialmente eram membros a Rússia, a Ucrânia, a Bielorrússia e a Transcaucásia; posteriormente foram criadas
as Repúblicas da Ásia Central no âmbito da União(Cazaquistão, Quirguistão, Turcomenistão, Uzbequistão e
Tadjiquistão) (VISENTINI, 2013).

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REVISTA PERSPECTIVA

3 Do Isolamento a Potência Mundial: a formação do BITD


soviética (1927 a 1945)
Como mencionado acima, nos anos iniciais o foco da revolução esteve
na consolidação do Estado revolucionário e na reconstrução do país. O desgaste
material e humano sofrido pela Rússia entre a I GM e a Guerra Civil fora enorme.
Nas estimativas reunidas por Paul Kennedy(1989), constam cerca de 30 milhões de
russos mortos por combate, ferimentos, epidemia ou fome. A queda na capacidade
produtiva foi tamanha que apenas em 1927 se atingiu o mesmo nível de produção
de 1913. Tendo em vista a debilidade interna e externa da revolução, exposta na
seção anterior, Lênin propôs “dar um passo atrás”, aliando elementos socialistas
e capitalistas no desenvolvimento econômico da Revolução, pela Nova Política
Econômica (NEP). De forma resumida, pode-se afirmar que a NEP procurava
recuperar a deteriorada economia russa por meio do estímulo à volta (temporária)
da iniciativa privada, principalmente na produção agrícola e de bens de consumo.
O setor agrário foi o grande beneficiário da NEP, e a economia russa, centrada
no campo, pôde de fato se recuperar. O setor industrial (e, portanto, a produção
de armamentos) tinha papel secundário na política econômica da época, mas,
ainda assim, apresentou resultados positivos. Estima-se que em 1926 os níveis
de produção manufatureira foram equivalentes ao nível pré-I GM (KENNEDY,
1989; VISENTINI et al., 2013).
Foi a partir do fim da década de 1920 que a indústria de defesa soviética teve
um boom, decorrente da mudança na política econômica adotada pela Revolução.
Ao final dos anos 1920, os soviéticos já haviam aprendido com a Guerra Civil
e com a Primeira Guerra Mundial que a indústria de defesa era essencial para a
sobrevivência de um Estado, principalmente se tratando de um Estado conside-
rado “inimigo” ou párea pelos demais Estados. Assim, o importante para a guerra
era a entrega de grandes quantidades de armas, munições, tanques e aeronaves,
produzidos em tempos de paz e também de guerra. Essa percepção leva não só à
indústria de defesa, como também à industrialização do país como um todo, dado
o caráter dual da tecnologia (emprego civil e militar). A construção civil e militar
foi feita em larga escala, materializando os centros produtivos e tecnológicos que
compunham o complexo militar-industrial soviético (BARBER et al., 2000).

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O Sistema Internacional na formação da Base Industrial de Defesa Soviética:
da Revolução à bomba de hidrogênio (1917-1953)

Assim, entre o fim dos anos 1920 e a Segunda Guerra Mundial (II GM),
articulou-se uma Base Industrial e Tecnológica de Defesa. Tal composição do setor
produtivo com fins militares diferia do que existia ainda no Império, caracterizado
por algumas indústrias especializadas com pouco poder de mobilização da economia
como um todo para a guerra (BARBER et al., 2000). Esse processo foi decorrente
do debate no interior do Partido Bolchevique acerca das prioridades produtivas
que deveria ter a Revolução. Em 1927, o XV Congresso do Partido optou pela
proposta da Esquerda, representada por Trotsky e pelo economista Breobrazhenskii,
que defendia o investimento massivo no setor de bens de produção e de insumos
básicos (tais como ferro, aço, energia e combustíveis) - embora essa mesma Esquerda
tenha sido derrotada e perseguida a partir de então. O produto imediato desse
debate foi a criação dos planos quinquenais (KONTOROVICH, 2015).
O marco político-econômico em que essa mudança ocorreu era composto
pela política de coletivização do campo e pela planificação da economia nos planos
quinquenais, sob a supervisão da Gosplan, o Comitê Estatal de Planejamento.
Adiciona-se, ainda, um contexto político mais amplo de “guinada à esquerda”
e de predominância dos quadros “internos” sobre os quadros “cosmopolitas” do
Partido que marcam a ascensão de Stalin como líder da Revolução e a política de
perseguição e terror no ambiente interno. Cabe mencionar também que a política
econômica adotada por Stalin, especialmente a política de coletivização, visava não
só ao desenvolvimento da economia e das capacidades militares, mas também à
eliminação da contradição entre elementos capitalistas e socialistas gerada pela
NEP (VISENTINI et al., 2013).
Os responsáveis diretos pela produção eram os ministérios, ou comissariados
do povo, seguindo uma cadeia de supervisão em vários níveis hierárquicos. Ao
longo do processo formativo da BITD, os ministérios responsáveis pelo desen-
volvimento da indústria de defesa foram se especializando. Em janeiro de 1932,
o Ministério da Indústria foi dividido entre o Ministério da Indústria Pesada e o
Ministério das Indústrias Leves. Em dezembro de 1936, foi criado o Ministério
da Indústria de Defesa. No prelúdio da II GM, este se dividiu em quatro áreas:
indústria de aeronaves (NKAP), de armamentos (NKV), de construção naval
(NKSP) e de munição (NKB). Apesar dessa especialização, a divisão entre setores

17
REVISTA PERSPECTIVA

produtivos para fins “civis” e “militares” não era tão clara. Assim como as fábricas
sob a direção dos ministérios dedicados à indústria de defesa desenvolviam produtos
civis em períodos de paz, fábricas tipicamente civis produziam produtos de dupla
finalidade e, conforme crescia a perspectiva de guerra, convertiam sua produção
para uso militar. Além disso, participavam da BITD fábricas de produção de bens
de uso geral, tanto insumos básicos (como metais e combustíveis) como bens de
consumo não-durável consumidos pelos soldados (como alimentos e vestimentas).
Existia, portanto, na indústria de defesa soviética, uma certa divisão entre “ativa”
e “reserva”, em que variava a intensidade do emprego das forças produtivas para
fins militares ou civis (BARBER et al., 2000).
Em 1928, foi implementado o I Plano Quinquenal, que previa uma dimi-
nuição da participação relativa do setor bélico na economia (BARBER et al.,
2000). Já no II Plano (1932-1937), observa-se a preocupação específica com a
produção de armamentos. Neste período, destacou-se a produção de tanques e de
aviões, esta superior à de todas as outras potências em alguns anos do período. Em
1937, com a percepção da iminência de uma guerra contra a Alemanha nazista,
além de provocações japonesas na fronteira extremo-oriental soviética, houve uma
verdadeira reorientação da economia soviética para a guerra, ativando-se as fábricas
“reservas” (KENNEDY, 1989).
Não obstante, a produção soviética para a defesa não se limitava aos plane-
jamentos gerais da Gosplan. Em paralelo ao I Plano, por exemplo, o Comissariado
do Povo para Assuntos Militares e Navais (NDVM) produziu seu próprio plano
quinquenal. Este foi considerado bastante irrealista, pois estabelecia metas que
não poderiam ser cumpridas tendo em vista a capacidade produtiva da época. Na
verdade, a iniciativa evidenciava a pressão do setor militar, ligado às forças armadas,
sobre o setor industrial a fim de obter prioridade nas decisões de investimento.
Além disso, com a evolução do quadro de hostilidade internacional e o crescente
“alarme de guerra” no interior do quadro dirigente soviético, muitas vezes os planos
previamente elaborados, que objetivavam maior equilíbrio entre a produção de
bens de produção, de “destruição” e de bens de consumo, eram deixados de lado
para favorecer o setor de defesa (SIMONOV, 2000a; BARBER et al., 2000).

18
O Sistema Internacional na formação da Base Industrial de Defesa Soviética:
da Revolução à bomba de hidrogênio (1917-1953)

A partir da breve exposição sobre a indústria de defesa no período entre


guerras, surgem alguns questionamentos. Quais eram as motivações por trás dos
desenvolvimentos na economia soviética como um todo e na indústria de defesa
em particular? Retomamos a questão principal do artigo: que papel teve o contexto
internacional no processo que descrevemos de formação da BITD soviética? A
seguir, trataremos de episódios que evidenciam diferentes influências do SI sobre
a política soviética industrial de defesa.
Kontorovich (2015) questiona a visão tradicional na literatura econômica3
que indica que a industrialização dos primeiros planos quinquenais, nos moldes em
que ocorreu, tinha como fim o crescimento econômico em si mesmo. Reunindo
uma série de discursos de Stalin, bem como textos oficiais e manuais de economia e
de história da época, chega à conclusão de que a preparação militar era um objetivo
prioritário na escolha do modelo de industrialização adotado.Destacavam-se três
linhas gerais na argumentação pró-industrialização acelerada e intensiva no setor de
bens de capital: referentes à consolidação do socialismo na URSS; ao crescimento
econômico; e à equiparação das capacidades militares às das potências capitalistas.
Dentre elas, a linha da segurança era claramente favorecida. Embora seja arriscado
explicar os verdadeiros objetivos baseando-se nos discursos oficiais, essa ideia
ganha peso ao se considerar o fato de que os dirigentes centrais evidenciaram os
fins militares dos planos econômicos, mesmo quando isso poderia prejudicar a
imagem pacífica da Revolução (KONTOROVICH, 2015).
Seguindo a argumentação, o autor coloca em questão qual o fim da política
de defesa à época. Ou seja, aceita-se que havia um interesse deliberado e público
no desenvolvimento de capacidades bélicas, do ponto de vista tanto quantitativo
quanto qualitativo, mas para defender-se de quem ou do quê? Para o autor, em
meados da década de 1920, antes da ascensão de Hitler ao poder, ainda não havia
ameaças claras oriundas do sistema internacional que justificassem tal medida. O
que Kontorovich (2015) não considera, porém, é que não só a Alemanha nazista
constituía ameaça externa à União Soviética. Como já mencionado, mesmo com
o fim da Guerra Civil e das intervenções estrangeiras na revolução, seguiu no

3 Os autores que publicaram obras mais recentes a partir dessa visão, segundo Kontorovich, são Spulber, Gre-
gory, Berend e Ofer.

19
REVISTA PERSPECTIVA

sistema internacional certa hostilidade com a URSS, cuja principal evidência é o


bloqueio comercial (KENNEDY, 1989). Além disso, há que considerar o efeito
que a derrota na I GM ea reação internacional desde o início da Revolução tiveram
sobre a moral e a percepção dos bolcheviques a respeito do contexto internacional
e da segurança da URSS (BARBER et al., 2000).
Em 1927, difundiu-se um alarmismo no interior do partido e na sociedade
soviética de que a guerra contra a revolução era iminente4. Esse contexto teve um
impacto decisivo sobre os rumos da política soviéticade defesa, influindo nas deci-
sões do XV Congresso e principalmente na opção pelo incremento na produção
de armamentos. Atualmente, se entende que à época não havia fundamentos reais
para tal alarme, apesar da formação da “pequena Entente” entre os países vizinhos à
URSS e da crise nas relações com a Grã-Bretanha(SIMONOV, 2000a; SONTAG,
1975). Considera-se também que o pânico difundido naquele ano cumpriu um
papel no controle interno da revolução, tanto do Partido sobre a sociedade, quanto
do grupo stalinista contra a oposição de esquerda (Trotsky) e de direita (Bukharin).
No entanto, a revisão dos documentos oficiais da época aponta que a direção do
Partido tinha um medo real de uma possível invasão externa (SIMONOV, 2000a;
SONTAG, 1975). Em 1928, o Comissário de Defesa estimou que as capaci-
dades militares soviéticas seriam predominantemente inferiores a uma provável
coalizão adversária, composta por Polônia, Finlândia, Romênia e países bálticos
(SAMUELSON, 2000).
Além do medo referente à possibilidade de agressões de países capitalistas
vizinhos, existia uma intricada relação entre a capacidade soviética de dissuadir
ou responder a esses ataques e a estabilidade interna do regime. Simonov (2000a)
afirma que, consciente da debilidade do regime soviético frente a ameaças externas
e internas, a classe governante concluiu:
[...] que o atraso militar e econômico do país era passível de minar a au-
toridade do regime por meio de complicações internacionais, que com a
menor ameaça de se transformarem em uma grande guerra, revelariam sérios
problemas internos, e que estes emergiriam sobretudo na área das relações
entre as autoridades e os camponeses, que formavam a espinha dorsal de um
exército mobilizado (SIMONOV, 2000a: 45, tradução nossa).

4 Na literatura em inglês, o episódio tem a denominação de the 1927 war scare ou war alarm.

20
O Sistema Internacional na formação da Base Industrial de Defesa Soviética:
da Revolução à bomba de hidrogênio (1917-1953)

Ao longo dos anos 1930, a ameaça do sistema de Estados capitalistas tornou-


-se cada vez mais concreta, até culminar na Grande Guerra Patriótica, como os
soviéticos chamavam a frente oriental da II GM. Enquanto a crise de 1929 levava
o mundo capitalista a um panorama generalizado de desemprego e de estagnação,
a URSS seguia seu processo de recuperação socioeconômica e de industrialização.
O socialismo popularizou-se, sobretudo na Europa. A URSS, um novo modelo de
nação que havia escapado à Grande Depressão, ganhou prestígio. Contudo, isso
levou ao aumento das ameaças internacionais à revolução. Em reação ao agravo
econômico e ao fortalecimento do socialismo, assistiu-se à ascensão da direita em
muitos países, em especial os regimes da Itália, do Japão e da Alemanha (KENNEDY,
1989). Esses países - que mais tarde formariam o Eixo na II GM - assinaram,
entre 1936 e 1937, o pacto anti-Kominterm. Com ele, oficializaram suas intenções
previamente declaradas de extinguir o socialismo, o que não só significava perseguir
membros dos Partidos Comunistas locais, mas também constituía uma ameaça
clara à integridade da União Soviética.
O forte sentimento anticomunista do período, entretanto, não se limitava a
governos de cunho fascista. Os dirigentes políticos britânicos e franceses tampouco
estavam confortáveis com a ideia de um Estado socialista industrializado e armado
no continente europeu sob o mando de Stalin. O fato desses dirigentes esperarem
que o III Reich atacasse a URSS é um dos elementos explicativos para a política
de apaziguamento desenvolvida por Chamberlain ao longo dos anos 1930. A
hesitação da Grã-Bretanha e da França frente às agressões da Alemanha sobre os
países vizinhos, bem como à invasão italiana da Abissínia e à invasão japonesa
da Manchúria, frustraram a política soviética de segurança coletiva e reforçaram a
necessidade soviética de garantir sua própria segurança frente aos iminentes ataques
do Eixo (VISENTINI et al., 2013).
Nesse sentido, em 1939, Stalin “procurou neutralizar os vizinhos pouco
confiáveis, firmando acordos e instalando bases nas três pequenas repúblicas
fascistas do Báltico (Lituânia, Letônia e Estônia) ” (VISENTINI, 2013, p. 51).
Outra medida tomada para garantir a defesa soviética contra os ataques do III
Reich foi a transferência de algumas indústrias para os Urais, descentralizando a
produção de armamentos na URSS. A fronteira entre indústrias da “ativa” ou da

21
REVISTA PERSPECTIVA

“reserva”, mencionada anteriormente, praticamente deixou de existir (BARBER et


al., 2000). Os esforços produtivos do país centraram-se na produção para a guerra
total. O III Plano Quinquenal (1938-1943), que privilegiava melhorias qualitativas
na economia soviética, não pôde ser implementado. Segundo Visentini (2013, p.
41), seus resultados concretos foram “apenas a melhoria do transporte ferroviário,
fluvial (com a construção de canais), a abertura da rota ártica (com quebra-gelos)
ligando Murmansk a Vladivostok e a produção armamentista intensificada”.
A eclosão da Segunda Guerra Mundial foi a epítome da crise no interior do
sistema capitalista e da reação à revolução. A preparação soviética para a guerra na
década anterior provou-se necessária e bem-sucedida, até certa medida. Kennedy
(1989) hesita ao explicar a vitória soviética na guerra por sua produção industrial
intensa e resiliente. Ainda assim, expõe em números a superioridade material da
URSS frente à Alemanha:
Apesar dos prejuízos econômicos provocados pela Operação Barbarossa -
queda de 57% na produção de carvão, 68% na de ferro-gusa e assim por
diante - vale a pena notar que a Rússia produziu 4 mil aviões a mais do
que a Alemanha em 1941 e 10 mil a mais em 1942, e isso apenas para uma
frente de luta [...] (KENNEDY, 1989, p. 338).

Com a vitória do Exército Vermelho sobre Berlim e o fim da II GM no teatro


europeu, a URSS adquiriu o reconhecimento dos povos libertados. Os acordos
de Yalta definiram boa parte da região como zona de influência soviética. Nesses
países, foi acordada a manutenção das formas democráticas e a formação de frentes
populares unindo setores social-democratas e socialistas. Com o tempo, a Europa
Oriental passaria definitivamente ao campo socialista e permitiria o surgimento de
inovações nas relações internacionais. Esse desenvolvimento, na medida em que
significou a articulação de uma rede de comércio e de especialização na produção
industrial, traria mudanças também à BITD soviética, além da própria integração
militar promovida pelo Pacto de Varsóvia (DUPUY & BETTATI, 1969).
A vitória soviética também elevou a URSS ao status de potência mundial,
provando seu poderio militar e econômico, sendo o único país no continente
europeu capaz de “preencher o vazio deixado pela desorganização dos derrotados e
pela fraqueza dos vencedores na Europa Oriental” (DUPUY & BETTATI, 1969,
p. 5, tradução nossa). Porém, ainda no estágio final da guerra, os EUA, sob o

22
O Sistema Internacional na formação da Base Industrial de Defesa Soviética:
da Revolução à bomba de hidrogênio (1917-1953)

governo Truman, davam sinais do baixo nível de tolerância que adotariam frente
ao socialismo. O lançamento das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki,
considerada estrategicamente desnecessário, foi sobretudo uma demonstração de
força norte-americana(VISENTINI et al., 2013). Stalin percebeu o recado. A partir
do fim da guerra, a BITD soviética tomaria novos rumos. Por um lado, houve a
desmobilização de certos setores produtivos. Por outro, um forte investimento no
desenvolvimento de novas tecnologias para manter-seapar dos EUA (BARBER et
al., 2000). Esse processo será tratado na seção a seguir.

4 A Guerra Fria e o Início da Corrida Armamentista (1945


a 1953)
Com o final da II GM, a ênfase da pesquisa, do desenvolvimento e da
produção industrial militar muda: inicia a corrida soviética pela bomba atômica.
Logo após a bomba de Hiroshima, a URSS reorienta suas capacidades produtivas
não só para a tarefa de reconstruir o país, como também para dar consecução ao
projeto da bomba atômica e de seus meios de entrega. A percepção de monopólio
dos EUA sobre essa tecnologia militar, bem como sua capacidade destrutiva e o
poder de barganha que ela acarretava em política externa, foram os elementos
centrais que motivaram as lideranças soviéticas a buscarem os mesmos objetivos
(HOLLOWAY, 1997).
O enfoque da BITD soviética não se deu apenas na bomba atômica em
si. Era preciso adquirir capacidades relacionadas aos meios de entrega e de defesa
da mesma, o que incluía radares, foguetes/mísseis e propulsão à jato (motores e
turbinas) (HOLLOWAY, 1997; HARRISON, 2000). Isso explica o fomento a
essas tecnologias no Plano Quinquenal do pós-Guerra e o aumento em três vezes
no volume de gastos militares no ano de 1946 comparativamente a 1945. Em
relação às capacidades defensivas, criou-se em 1947 as Forças de Defesa Antiaérea,
que congregavam interceptadores, radares e canhões antiaéreos, criando novas
demandas sobre a BITD. Ainda, a Força Aérea de Longo Alcance (bombardeios
estratégicos) e a necessidade de mísseis de longo alcance impactaram igualmente
a organização da BITD. Novos centros de pesquisa e produção foram criados,

23
REVISTA PERSPECTIVA

incluindo os Escritórios de Projeto5 dos projetistas Tupolev, Miasishchev (ambos


de bombardeios), e Glushko (de motores para mísseis) (HOLLOWAY, 1997).
A construção dessas capacidades foi antes uma resposta ao desafio imposto,
principalmente pelos Estados Unidos, do que uma iniciativa e uma superioridade
a priori soviéticas. Logo após lançarem a bomba de Hiroshima sobre os japoneses,
os estadunidenses já elaboravam planos de possíveis usos desse tipo de armamento
contra a URSS. Além disso, foram necessários grandes recursos e esforços no sentido
de criar novos laboratórios de pesquisa, de teste e de produção das capacidades
atômicas, anteriormente inexistentes na URSS. Esse processo não se deu de modo
natural, mas como resposta à ameaça externa, o que elevou os gastos militares com
a BITD em um momento delicado de reconstrução do país no pós-Segunda Guerra
Mundial(HOLLOWAY, 1997).
O papel da espionagem na aquisição da expertise para construção da bomba
e dos meios de entrega demonstra o atraso soviético e a necessidade de resposta
rápida ao desafio externo. Todas as informações recolhidas passavam por diversos
testes locais antes de serem aplicadas, mas, de modo geral, não eram contrainte-
ligência e contribuíam para as pesquisas soviéticas (HOLLOWAY, 1997). Além
disso, muito da tecnologia e daexpertise com foguetes e mísseis, por exemplo,
foi adquirida dos alemães: documentos, instalações e protótipos mostraram aos
soviéticos novas fronteiras em termos de capacidade e de alcance desses sistemas.
Certamente, nenhum desses avanços teria sido possível se a União Soviética já não
dispusesse de acumulação prévia de expertise e de capital humano, mas o fato é que
as pressões externas forçaram o uso de pesquisas estrangeiras na BITD soviética
(HARRISON, 2000).
Finalmente, em 29 de agosto de 1949, a União Soviética fez seu primeiro
teste com a bomba nuclear, a qual usava Plutônio como material físsil. Com o teste
bem-sucedido da bomba, estabelece-se na URSS uma indústria atômica capacitada
não somente para fins militares, como também para uso civil em usinas termo-
nucleares, navios quebra-gelo e submarinos - o que demonstra a capacidade de

5 Escritório de Projetos é a tradução que se atribui para as instituições (estatais) que, na URSS, faziam pesquisa,
desenho e prototipação de armamentos ou de seus componentes. Na literatura, encontra-se frequentemente a
expressão OKB, que é a sigla para as três palavras que compõem o nome russo. Após essa etapa dentro do OKB,
essencial para o desenvolvimento do sistema, a produção em série se dava diretamente nas fábricas.

24
O Sistema Internacional na formação da Base Industrial de Defesa Soviética:
da Revolução à bomba de hidrogênio (1917-1953)

spillover da Base Industrial de Defesa desse país (SIMONOV, 2000b). Ainda no


final de 1949, a prioridade da BITD passa a ser, então, a bomba nuclear de fusão ou
bomba de hidrogênio. Em 5 de março de 1953, porém, Josef Stalin morre, poucos
meses antes do primeiro teste bem-sucedido com bomba de hidrogênio, em 12 de
agosto de 1953. Pode-se dizer que esses acontecimentos marcam o encerramento
de um período: a partir de então a URSS adquire uma BITD sólida, consolidando
suas capacidades estratégicas (HOLLOWAY, 1997).
Ainda que se tenha visto ao longo do texto que os rumos da Revolução
Russa foram influenciados pelo aspecto externo advindo do constrangimento do
SI, deve-se lembrar que o oposto também foi verdadeiro: essa foi a Revolução mais
longeva e com efeito mais duradouro da história. Seus impactos sobre o Sistema
Internacional ficam ainda mais claros neste período pós-Segunda Guerra Mundial,
no início da Guerra Fria. Isso acontece, porque, neste momento, a própria URSS
havia mudado seu status no SI: não era mais uma potência revolucionária margi-
nalizada que poderia ser invadida por outras potências antagonistas; tornara-se
uma superpotência altamente militarizada (WILLIAMS, 1994).
A União Soviética, apesar de muito enfraquecida pelo esforço de guerra,
contava com grande capacidade de barganha frente às potências aliadas, uma vez
que fora responsável pela derrota alemã na frente oriental. A partir dessa época, a
Revolução exerce influência sobre o Terceiro Mundo e sobre as lutas de libertação
nacional na África e na Ásia, bem como em regimes comunistas nesses países
(WILLIAMS, 1994; VISENTINI et al, 2013). O desenvolvimento das sociedades
de bem-estar social (social democracia europeia) surge, então, como resposta ao
desafio imposto pela URSS de crescimento com melhor distribuição de renda e
qualidade de vida (VISENTINI et al, 2013).
As potências capitalistas ocidentais, por meio da Guerra Fria, promovem a
luta internacional contra o comunismo, incluindo embargos econômicos contra
regimes comunistas para dificultar o acesso à tecnologia, principalmente militar.
Foi criada, ainda, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na tenta-
tiva de cerco e contenção à Revolução: incluiu-se a maior quantidade de Estados
possível, para evitar que estes entrassem em processo revolucionário (WILLIAMS,
1994). É difícil determinar o quanto dessa resposta capitalista à Revolução soviética

25
REVISTA PERSPECTIVA

impactou ou condicionou os rumos internos do regime. Ainda assim, a ênfase nas


capacidades militares, a criação posterior da Organização do Tratado de Varsóvia
(OTV) e a espionagem para fins de produção dentro da Base Industrial de Defesa
podem ser citados como exemplos desses impactos.

5 Considerações Finais
Ao longo do período analisado por este trabalho, concluímos que a formação
da BITD soviética decorreu de um processo interno de desenvolvimento da revo-
lução. Contudo, a relação entre esse processo, as características internas à Revolução
Soviética e o Sistema Internacional são multidirecionadas. A formação e a evolução
da Base Industrial de Defesa na Rússia possibilitaram, primeiramente, que a Revo-
lução fosse vitoriosa na Guerra Civil e, posteriormente, que a União Soviética
vencesse os aliados na Europa Oriental na Segunda Guerra Mundial,alcançando
o status de superpotência ao fim da guerra. Neste sentido, é a formação da BITD
que influencia o desenvolvimento do SI durante o século XX.
No que toca à influência do SI sobre a formação da BITD, podemos iden-
tificar distintos papéis. Em primeiro lugar, momentos de combate direto, como a
Guerra Civil e a Segunda Guerra Mundial, determinaram um esforço produtivo
urgente da Revolução para sobreviver às agressões externas. Outro papel conside-
rado é aquele cumprido pelo “fantasma” da contrarrevolução e da intervenção dos
países capitalistas, presente ao longo de toda a história soviética, influenciando o
pensamento da cúpula dirigente e de toda a sociedade sobre a necessidade de se
armar para se defender. No meio termo, estão as situações manifestas (tácitas ou
explícitas) de ameaça à revolução, como certos pronunciamentos de Hitler e de
Truman. Em tais contextos, as preocupações do partido em relação à capacidade de
defesa da URSS eram incrementadas, motivando novos investimentos e mudanças
institucionais na BITD.
Por fim, há que considerar a utilização pragmática, por parte da cúpula
política da URSS, da percepção pessimista acerca do panorama internacional
na sociedade soviética. Em certo sentido, as tensões - ou expectativas de tensões,
pelo menos - no sistema internacional serviam também como justificativa para
a manipulação da opinião, tanto no interior do Partido bolchevique quanto no

26
O Sistema Internacional na formação da Base Industrial de Defesa Soviética:
da Revolução à bomba de hidrogênio (1917-1953)

conjunto da sociedade, a favor de uma ou de outra proposta política, que supos-


tamente interessava a grupos específicos. Contudo, não se pode interpretar que os
desdobramentos da indústria de defesa soviética tenham sua finalidade limitada
a interesses privados e internos. A própria história demonstrou o valor da BITD
soviética, não só para a sobrevivência da Revolução, mas também para a defesa
contra o totalitarismo e a agressão externa.

The International System in the Formation of the Soviet Industrial


Defense Base: from the Revolution to the Hydrogen Bomb (1917-
1953)

ABSTRACT: This article focuses on the formation of the Soviet Defense


Industrial Base and on the role played by the international system in this
process, from the 1917 Revolution to the development of the hydrogen
bomb in 1953. The modernization of the Soviet Union (USSR) was one of
the goalsadopted by the Russian Revolution after its consolidation in 1922,
and resulted in the rapid industrialization of the country. We startfrom the
assumption that the construction and evolution of the Soviet Industrial
Defense Base was a result not only of the revolutionists’ view of the necessary
stages of the Revolution, but also of a need to survive in a capitalist world
that was competitive and hostile to the Revolution.
KEYWORDS: Russian Revolution; Soviet Union; Industrial Defense Base;
International System.

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29
O papel da Revolução Cubana nas revoluções
terceiro-mundistas durante a Guerra Fria: o
internacionalismo cubano em Angola e na
Nicarágua

João Vitor Correa Nogueira


Karina Ruiz
Marielli Prestes Bittencourt
Rodrigo Führ
Vitória Gonzalez Rodriguez*

RESUMO: Este artigo trata sobre o papel da Revolução Cubana para o Terceiro
Mundo, em especial para Angola e Nicarágua, no contexto da Guerra Fria. Cuba,
por meio da sua política externa - calcada no internacionalismo e, em certa medida,
na exportação da revolução - influenciou diversos países terceiro-mundistas em seus
processos revolucionários. Para tal, foram importantes o envio de cubanos para as
operações além-mar, bem como sua participação em treinamentos militares. Foi
dessa maneira que o Estado cubano, ainda que menor do que as Grandes Potências,
logrou influenciar a dinâmica da Guerra Fria, sendo importante para o tabuleiro
geopolítico da época e para o estabelecimento de zonas de influência.
PALAVRAS-CHAVE: Cuba; Revolução; Terceiro Mundo; Guerra Fria; Angola;
Nicarágua.

* Graduandos em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O papel da Revolução Cubana nas revoluções terceiro-mundistas durante a Guerra Fria:
o internacionalismo cubano em Angola e na Nicarágua

1 Introdução
O presente artigo visa a explicitar a considerável importância de Cuba
no contexto da Guerra Fria. A pequena ilha caribenha1, depois do seu processo de
Revolução - terminado em 1959 - logrou, por meio do internacionalismo e da sua
política externa revolucionária, influenciar as dinâmicas do confronto Leste-Oeste,
sendo peça importante para o estabelecimento de zonas de influência. Assim, este
texto busca evidenciar a capacidade cubana de ser um Estado solidário em termos
internacionalistas, capaz de aliar discurso à prática na consecução do objetivo de
fortalecer processos revolucionários no Terceiro Mundo.
O artigo está divido em três seções, além da introdução e da conclusão.
Na primeira, faz-se uma contextualização histórico-teórica acerca da Revolução
Cubana em si, com especial atenção para o conceito de internacionalismo e seu
impacto no Sistema Internacional, de maneira geral, e para a influência no confronto
Leste-Oeste, de maneira mais particular. Na seção seguinte, faz-se uma abordagem
mais prática da política externa e do internacionalismo cubano, descrevendo as
formas pelas quais Cuba projetou sua política externa revolucionária para os países
terceiro-mundistas, desde o envio de técnicos e profissionais até a atuação militar
direta na África, na Ásia e na América Latina. Por fim, na terceira seção, têm-se
dois estudos de caso com relação à influência de Cuba: em Angola e na Nicarágua.
Tais casos são reflexos do impacto da ilha para além de suas fronteiras.
No contexto de Guerra Fria, a descolonização, bem como processos revolu-
cionários e conceitos como nacionalismo e internacionalismo, importam: nota-se
a transformação do Terceiro Mundo em um palco de importantes disputas não só
ideológicas, mas também estratégicas. Nesse sentido, a intensa aproximação entre
Cuba e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), principalmente
depois da aliança entre China e Estados Unidos da América (EUA) em 1971, é
importante para o equilíbrio de forças. O eixo Havana-Moscou passou, então (na
década de 1970), a apoiar mais fortemente as revoluções terceiro-mundistas, em
um contrabalanço ao eixo Washington-Pequim. Nesse cenário, o papel de Cuba e

1 Azicri (1988, p. 233) destaca a localização estratégica da ilha, a qual considera “central para o seu desenvolvi-
mento histórico”. Nesse sentido, destaca-se a proximidade ao Mar do Caribe, ao Golfo do México, ao Atlântico,
ao Canal do Panamá, ao México e aos Estados Unidos.

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REVISTA PERSPECTIVA

da Revolução Cubana é crucial e a projeção do seu internacionalismo tem impactos


nas Relações Internacionais até hoje.

2 Breve contextualização histórica e teórica


A presente seção busca contextualizar histórica e teoricamente a exportação
da revolução. Nesse sentido, uma rápida passagem sobre o histórico da Revolução
e do processo de construção do nacionalismo cubano em si é essencial para que se
possa dimensionar as mudanças que ocorreram na ilha - e que esta projetou para
outros países por meio de sua política externa internacionalista e revolucionária.

2.1 O processo de libertação nacional e a construção do nacionalismo


em Cuba
Para entender melhor a Revolução Cubana, é importante considerar sua
relação com os EUA na virada do século XIX para o XX. Nesse sentido, cabe
considerar que, por mais que pequena e isolada fisicamente, Cuba - principalmente
devido à sua produção de açúcar - sofreu com intervenções históricas de potências
coloniais e imperialistas. Desde a proclamação do Destino Manifesto2, a ilha cari-
benha fora vista como uma extensão do território estadunidense. Já para o final
do século XIX, sob a égide da Doutrina Monroe, o confronto da Espanha com o
governo norte-americano permitiu que, enfim, este último colocasse Cuba sob sua
esfera de influência, tendo a Emenda Platt3 como segurança da subserviência cubana.
A dependência cubana surge logo nos primeiros anos da atuação norte-
-americana. Nesse sentido, Kapcia (2010) destaca a ocupação militar unilateral dos
EUA sobre Cuba entre 1898 e 1902, que teve como motivações: (i) garantia da
estabilidade; (ii) “americanização” das atitudes cubanas; (iii) erradicação do poder
do novo nacionalismo cubano; e (iv) criação de um “Estado-cliente” na ilha. A
manutenção de uma forte vinculação das economias, mesmo depois da retirada

2 Crença e doutrina que serviu como base ideológica para a expansão do território dos Estados Unidos para além
de suas fronteiras originais, influenciando, inclusive, a projeção de poder norte-americana nas ilhas caribenhas.
3 Emenda adotada pelo Congresso estadunidense e que estava presente na Constituição Cubana de 1901. Em
sua principal atribuição, a Emenda Platt permitia intervenção militar direta a qualquer momento que o interesse
norte-americano fosse ameaçado (PEREIRA, 2013). Tal documento, de acordo com Kapcia (2010, p. 15),
formalizava o status cubano enquanto um “protetorado” ou “nova colônia”.

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O papel da Revolução Cubana nas revoluções terceiro-mundistas durante a Guerra Fria:
o internacionalismo cubano em Angola e na Nicarágua

formal dos EUA, fez com que Cuba sentisse amargamente as crises econômicas
dos anos 1920, deixando 25% da população em situação de desamparo e, em
1933, diminuindo pela metade a produção nacional de açúcar (PEREIRA, 2013).
A situação precária fez surgir movimentos revolucionários em Cuba, que foram
respondidos com o aumento da repressão do governo pró-EUA e com o surgimento
de figuras autoritárias como Fulgencio Batista. Pode-se afirmar que, sem a atuação
direta e agressiva dos EUA, a Revolução Cubana não teria obtido substrato na
sociedade para atuação.
A Revolução Cubana, mesmo com todas as forças contrárias que tentaram
desestabilizá-la, é um projeto revolucionário bastante singular, que dura quase 60
anos. Entre os processos históricos que conduziram a essa revolução, Kapcia (2010)
destaca a combinação de dois: o colonialismo prolongado a que Cuba foi submetida
até 1898; e o neocolonialismo que se seguiu a partir de então - por parte da Espanha
e dos EUA, sucessivamente. Ao longo do processo revolucionário que objetivava
a queda do regime de Batista, Kapcia (2010) destaca três fatores importantes: o
surgimento de Fidel Castro como principal líder da oposição; o desenvolvimento
de um compromisso com a revolução social e com o anti-imperialismo, principal-
mente em função das guerrilhas na Sierra Maestra; e o enfraquecimento do regime
de Batista em função tanto da sobrevivência e do sucesso das guerrilhas quanto da
forte repressão do regime da situação.
Cabe, também, ressaltar que o processo revolucionário vitorioso está
inserido em um contexto de revoluções de libertação nacional no Terceiro Mundo.
De acordo com Hobsbawm (1990), a nação é qualquer grupo de pessoas suficien-
temente grande cujos membros se consideram como parte de uma nação. Nesse
sentido, o autor conceitua o fenômeno do nacionalismo a partir da obra de Ernest
Gellner (1983), segundo o qual o nacionalismo é o princípio que sustenta que a
unidade política e nacional deve ser congruente. Além disso, há um sentimento de
pertencimento, que faz com que o nacionalismo preceda à nação. A partir disso,
pode-se analisar os impactos da Revolução Cubana na construção e consolidação
do nacionalismo cubano, considerando o ambiente pré-revolucionário, no qual
surgem as primeiras formas de nacionalismo em Cuba.

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A luta pela independência cubana - diga-se o processo revolucionário em


si - teve início no século XVIII, mas há quem sustente que a Revolução iniciou
ainda nos primeiros anos da colonização, a partir da resistência do cacique taíno4
Hatuey, considerado “o primeiro rebelde da América”, aos colonizadores espanhóis,
representados sob a figura de Diego Velásquez (CHOMSKY, 2015; GOTT, 2006).
Sendo assim, em 1795, com base nas ideias iluministas, surge o primeiro movimento
independentista organizado por Nicolás Morales que tinha por objetivo unir negros
e brancos sob essa causa. Em 1810, há uma tentativa mais séria de independência,
como retrata Gott (2006), aproveitando-se da fraqueza do Estado espanhol devido
à invasão napoleônica na Espanha. Esse movimento foi o primeiro a evocar o
passado indígena, recuperando a figura de Hatuey. A partir da mobilização sobre
um passado comum e sobre um mártir genuinamente cubano, pode-se considerar
esse o primeiro passo para o surgimento de um nacionalismo em Cuba.
Ressalta-se, nesse período, a participação das “pessoas de cor livres”5 nos
movimento de independência em Cuba, sobretudo inspiradas pela rebelião escrava
que logrou a independência do Haiti, que aliada ao crescimento da população
negra escrava na ilha alarmava os colonizadores que temiam um “novo Haiti”.
Nesse sentido, surge em alguns setores da sociedade cubana um certo rechaço
pela grande presença negra no país, excluindo-os, até mesmo, da nacionalidade
cubana6. Em 1868, Carlos Manuel Céspede - posteriormente chamado de “pai da
nação” - declara o Grito de Yara, que dá início à revolução de independência em
Cuba que se prolonga durante uma década. Essa rebelião ficou conhecida como a
Guerra dos Dez Anos e, segundo Gott (2006), foi tanto uma guerra civil quanto
uma guerra racial. A guerra de independência se estendeu até a intervenção esta-
dunidense em 1898 e, após isso, até a Revolução de 1959. É nesse contexto de
luta independentista que surge o herói cubano José Martí, o qual se destacou no
campo intelectual7, fundou o Partido Revolucionário Cubano em 1892, e morreu
prematuramente em 1895, em campo, um ambiente pouco comum a ele.

4 Povo indígena que habitava a maior parte de Cuba durante o século XVI.
5 Ex-escravos e seus filhos.
6 Nas palavras de Antonio Saco: “A nacionalidade cubana sobre a qual falei, e a única nacionalidade que deveria
preocupar todos os homens sensíveis, é aquela formada pela raça branca” (GOTT, 2006, p. 72).
7 Em relação ao pensamento martiano, convém destacar que, embora influenciado pelo pensamento de Bolí-
var acerca da importância de uma união dos povos colonizados como meio de garantir seu equilíbrio com as
nações europeias, o “insuficiente desenvolvimento das forças revolucionárias na Ásia, África e América Latina”

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O papel da Revolução Cubana nas revoluções terceiro-mundistas durante a Guerra Fria:
o internacionalismo cubano em Angola e na Nicarágua

Com a implementação da Emenda Platt, em 1902, ao fim da ocupação


estadunidense em Cuba, o país se torna independente, inaugurando a chamada
República Cubana. Contudo, ainda que liberta dos laços coloniais, a população não
havia “se constituído como povo cubano, ou uma nação com identidade própria”
(WRIGHT, 1910 apud GOTT, 2006, p. 136). Ou seja, a independência não foi
suficiente para que houvesse a constituição de um nacionalismo unificador, capaz
de criar uma nação.
Fruto dos processos revolucionários anti-imperialistas de libertação nacional
do pós-Segunda Guerra Mundial, é a Revolução Cubana, em 1959, que logra a
criação da nação cubana:

Sob Castro, Cuba tornou-se um país comunista em que o nacionalismo era


mais importante do que o socialismo, onde a lenda de Martí mostrou-se
mais influente do que a filosofia de Marx. A habilidade de Castro, e uma
das chaves da sua longevidade política, está em manter os temas gêmeos do
socialismo e do nacionalismo permanentemente em movimento. (GOTT,
2006, p. 173)

Nesse sentido, há uma retomada na figura histórica de José Martí, que se


converte em uma espécie de mentor da Revolução cuja liderança está representada
por Fidel Castro. A partir desse momento, Cuba se torna de fato independente,
diferentemente da situação de 1902. Com a vitória da Revolução, o nacionalismo
cubano ganha novo significado. Segundo Gott (2006, p. 219): “Castro atrelara a
locomotiva revolucionária às poderosas forças de um nacionalismo cubano renovado
e estava acima de qualquer questionamento”. O nacionalismo pressupõe a unidade
da população a partir de um sentimento comum. Ademais, uma sociedade coesa se
torna mais resistente às adversidades. nesse sentido, a Revolução Cubana assegura
a unidade da população pelo Partido Comunista de Cuba como mecanismo de
coesão nacional, conforme consta no artigo 5º da Constituição de Cuba:

(SERRACINO, 2015, p. 25, tradução nossa), levou Martí a defender a união das ilhas caribenhas, aliadas a alguma
potência europeia, como forma de influenciar o equilíbrio internacional. Esta visão acerca da importância de
balancear as relações exteriores do país se relaciona a importância da autonomia para a política externa cubana,
conforme veremos na sequência

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“El Partido Comunista de Cuba, martiano y marxista-leninista, vanguardia


organizada de la nación cubana, es la fuerza dirigente superior de la socie-
dad y del Estado, que organiza y orienta los esfuerzos comunes hacia los
altos fines de la construcción del socialismo y el avance hacia la sociedad
comunista” (CUBA, 2014, p.12)

Sendo assim, o nacionalismo se configura como um dos pilares que sustentam


a Revolução em Cuba. O caráter socialista e revolucionário do país, portanto, não
deve ser analisado sem levar em consideração o nacionalismo cubano a ele imbricado.

2.2 O internacionalismo cubano: impacto da Revolução Cubana e de


sua Política Externa no Sistema Internacional
A Revolução, enfim, teve sua “aurora” em janeiro de 1959, quando Fidel, em
um discurso em Santiago, deixou claro que daquela vez seria diferente do que fora
em 1898: os Estados Unidos não tomariam o poder novamente, pois a Revolução
lograra tomá-lo (GOTT, 2006). Para melhor entendimento do processo revolu-
cionário cubano, faz-se necessária a compreensão de dois conceitos: nacionalismo
e internacionalismo.
Cabe considerar o paradoxo desempenhado pelo conceito de nacionalismo:
se, por um lado, fomenta guerras, ditaduras e ascensão de regimes como o fascismo,
por outro, foi o que engendrou lutas de libertação nacional para que países colo-
nizados pudessem se tornar independentes e para que processos revolucionários
de cunho socialista pudessem angariar apoio - inclusive o cubano (LÖWY, 2000).
Conceitualmente, Löwy (2000, p. 78) desenvolve que
uma nação não pode ser definida tendo apenas como base critérios abstratos,
externos e “objetivos”. A dimensão subjetiva, ou seja, a consciência de uma
identidade nacional, a vitalidade da cultura nacional, a existência de um
movimento político nacional, também é importante. (...) É importante fazer
uma distinção cuidadosa entre, de um lado, o sentimento de identidade
nacional, o apego a uma cultura nacional, a consciência de pertencer a uma
comunidade nacional, com seu próprio passado histórico e, de outro lado, o
nacionalismo. O nacionalismo enquanto ideologia compreende todos esses
elementos, mas também uma coisa a mais, que é o ingrediente decisivo: a
escolha da nação como valor primordial do ponto de vista social e político,
valor ao qual todos os outros devem ser, de qualquer forma, subordinados.

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O papel da Revolução Cubana nas revoluções terceiro-mundistas durante a Guerra Fria:
o internacionalismo cubano em Angola e na Nicarágua

É importante considerar que “o socialismo marxista é fundamentalmente


oposto ao nacionalismo” (LÖWY, 2000, p. 80). Isso se dá tanto por não se consi-
derar a nação um “ente monolítico” (no sentido de indiferenciado), quanto por se
considerar a importância da fidelidade não à nação, mas ao proletariado - sujeito
histórico internacional - e à transformação socialista do mundo - objetivo histórico
internacional (LÖWY, 2000). Nesse sentido, “o socialismo é, então, um movimento
internacionalista em razão do caráter universalista e humanista de seus valores e
de seus objetivos” (LÖWY, 2000, p. 80). Apesar disso, não se pode esquecer que o
internacionalismo não se desenvolve sem o reconhecimento de direitos nacionais
e da igualdade entre as nações, pois esses elementos são condições necessárias para
a solidariedade internacional entre as nações.
Com relação ao paradoxo e às contradições que envolvem os conceitos de
nacionalismo e internacionalismo, pode-se dizer, resumidamente, que o primeiro
tem uma dimensão emancipadora, no sentido de possibilitar processos de inde-
pendência e de rebelião contra opressões; ao mesmo tempo, acaba limitado por
seus particularismos. É nesse sentido que pode haver certa complementaridade
com o segundo conceito: a solidariedade internacionalista, símbolo do segundo,
depende dos contextos históricos e do combate político, e pode vir seguida do
nacionalismo - como no caso de Cuba.
Prova da íntima relação entre o internacionalismo e a política externa
cubana é a presença cubana em revoluções africanas e latino-americanas. Nesse
sentido, Visentini (2014) destaca o envolvimento cubano nas colônias portuguesas
depois da Revolução dos Cravos. Segundo o autor, Cuba representa “a nação latino-
-americana de mais longa e ininterrupta presença no continente africano, no qual
exerce grande influência, mesmo que não diretamente econômica” (VISENTINI,
2014, p. 56). A presença cubana na África, por exemplo, não só apoiou estratégica
e militarmente movimentos de libertação nacional, como cooperou em termos
sociais e formou quadros políticos e técnicos no continente (VISENTINI, 2014).
Como fruto da aliança do internacionalismo com a política externa de
Cuba, tem-se a exportação da revolução a partir do pequeno país insular. Nesse
sentido, cabe ressaltar a importância de Cuba para a soberania de Angola, para a
defesa da revolução na Etiópia e para a independência da Namíbia (VISENTINI,

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2014), bem como para a defesa de movimentos revolucionários em países latino-


-americanos, como a Nicarágua e a Bolívia. Fernández (2003) caracteriza como
exportação da revolução tanto o apoio a guerrilhas, de modo mais específico,
quanto a defesa de causas de caráter progressista, de modo mais geral.

2.3 Influência do internacionalismo no confronto URSS versus EUA


Na esteira da Guerra Fria, a defesa do anticolonialismo mostrava-se impor-
tante. Assim, Moscou e Havana foram peças-chave na detenção das pretensões
sino-americanas no continente africano. Nesse sentido, cabe destacar, por um lado,
o envolvimento direto de Cuba e o envolvimento indireto do Pacto de Varsóvia
no continente, que foram importantes para a formação de novas elites africanas e
para a construção estatal (VISENTINI, 2014).
É nessa época, no começo da década de 1960, que surge o Movimento
dos Não Alinhados (MNA), institucionalizando muitos dos princípios discutidos
em Bandung. O MNA, pautando a autodeterminação e a independência dos
povos como importantes bandeiras, não ficou isento de heterogeneidade dentre
seus membros. Nesse sentido, Cuba muitas vezes agiu de modo a contestar os
EUA, defendendo a URSS frente ao MNA (FERNÁNDEZ, 2003; PEREIRA &
MEDEIROS, 2015). Domínguez (1989) destaca que, assim como Cuba auxiliou
diversos países do MNA em termos militares, econômicos e técnicos, tais países
foram muito importantes para Cuba em termos comerciais, sendo os principais
mercados para as crescentes exportações cubanas de açúcar. Em uma linha similar
está a Conferência Tricontinental de Havana, ocorrida em 1966, em que ocorre
a fundação da Organização de Solidariedade dos Povos da África, Ásia e América
Latina. Essa Conferência teve como pauta a condenação do imperialismo, do
colonialismo e do neocolonialismo; nesse sentido, foi símbolo da solidariedade
revolucionária, centralizando questões referentes a lutas por libertação nacional
(PEREIRA & MEDEIROS, 2015).
A relação entre Cuba e a União Soviética pode ser dividida em diferentes
períodos. Da Revolução Cubana até o fim da década de 1960, a prioridade da
política externa cubana foi a consolidação de sua revolução - sem que isso impedisse
a exportação desta. Existiam divergências entre Cuba e a URSS no entendimento

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o internacionalismo cubano em Angola e na Nicarágua

sobre a melhor estratégia revolucionária; assim, o período não foi símbolo de


muita sintonia. A participação de Cuba no MNA gera desconfianças no Kremlin
que, apesar disso, não deixa de apoiar Havana. Do final da década de 1960 até
meados da década de 1970, ocorre um aprofundamento da aproximação entre
Cuba e a URSS, o que permitiu, em função do apoio econômico e militar, maior
protagonismo internacional cubano ao longo dos anos 1970 (FERNÁNDEZ,
2003; PEREIRA & MEDEIROS, 2015).
Com relação ao papel de Cuba nas revoluções terceiro-mundistas, Domín-
guez (1989) destaca que o nível de apoio da ilha a movimentos revolucionários
variou ao longo do tempo, mas esteve sempre presente desde 1959. Foi característica-
-símbolo de sua política externa por motivos tanto ideológicos quanto estratégicos
- vinculados, inclusive, à própria sobrevivência do regime. Com relação a isso e,
indiretamente, a movimentos contrarrevolucionários, Fidel disse, em discurso de
encerramento da Conferência Tricontinental de Havana:

os imperialistas estão em todo o mundo. Para os revolucionários cubanos,


o campo de batalha contra eles engloba o mundo inteiro… E assim nosso
povo entende… que o inimigo é único e o mesmo [...] E assim, dizemos
e proclamamos que o movimento revolucionário em toda esquina deste
mundo pode contar com lutadores cubanos (CASTRO apud DOMÍN-
GUEZ, 1989, p. 116).

O papel de Cuba, bem como o dos Estados Unidos, para movimentos


revolucionários e contrarrevolucionários no Terceiro Mundo é importante em
função, como afirmado, do estabelecimento de zonas de influência. Nesse sentido,
cabe considerar objeções de um país ao outro: ao passo que os EUA criticam Cuba
por suas relações com a URSS, pelo emprego de tropas além-mar e pelo apoio a
movimentos revolucionários, Cuba critica as sanções econômicas norte-americanas e
a ocupação de Guantánamo, por exemplo (DOMÍNGUEZ, 1989). É nesse sentido
que o apoio a revoluções e contrarrevoluções também está atrelado ao desejo de
diminuição da força do inimigo.

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3 A política externa cubana: Internacionalismo na prática


Em 1959, no berço do Estado revolucionário, o arquipélago cubano contava
com menos de 7 milhões de pessoas. Mesmo assim, seu internacionalismo ecoou
em todo o Terceiro Mundo e, como já se afirmou, mudou a estrutura do embate
entre as duas grandes potências da época. Para se entender o porquê da projeção
da Revolução Cubana ter sido tão expressiva, é necessário entender que seu projeto
de política exterior não foi uma completa novidade revolucionária.
Mas antes, para analisar a política externa cubana, é útil ter em mente as
fases das relações internacionais de países revolucionários sugerida por Halliday.
Para o autor, estes países passam por: (i) um “período de graça” frente ao sistema
internacional; (ii) uma fase de conflito entre um ativismo revolucionário de proje-
ções internacionais e forças contrarrevolucionárias; (iii) uma fase de aparente
“normalização” das relações, em que a revolução parece estar contida; e (iv) uma
fase de confronto a longo prazo (HALLIDAY, 1999, p. 136). Analisando Cuba,
Segrera (1988 apud SILVA, 2012), sugere uma periodização que vai de encontro à
de Halliday: (i) entre 1959 e 1962, há o estabelecimento uma política externa ativa
e independente que buscou evitar o isolamento; (ii) entre 1962 e 1970, uma etapa
de isolamento; (iii) entre 1970 e 1979, a etapa de socialismo institucionalizado,
com grande aproximação aos países do Conselho de Ajuda Mútua (CAME); e após
de 1980, (iv) uma etapa de consolidação revolucionária, marcada pela ampliação
das relações diplomáticas cubanas.
Cuba, em seu ponto mais extremo, está localizada a meros 140 quilômetros
dos Estados Unidos da América. Sua produção de açúcar sempre fora atrativa para as
potências mundiais, e o isolamento físico da ilha a obrigara a manter laços constantes
com seus vizinhos mais próximos e também com a América Latina. O internacio-
nalismo não se caracterizou como uma anormalidade pós-revolução; o que mudou
foi tão somente a forma pela qual a República Cubana se projetou mundo afora.
A busca por manter laços permite compreender porque os revolucionários, antes
de tomarem o poder, dirigiram somente “críticas limitadas a política do governo
dos EUA e as atividades que as empresas de mesma nacionalidade desenvolviam
em Cuba.” (DOMÍNGUEZ, 1998, p. 184, tradução nossa). Contudo, tornava-se
claro para parte dos dirigentes que as reformas pretendidas levariam a um conflito

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O papel da Revolução Cubana nas revoluções terceiro-mundistas durante a Guerra Fria:
o internacionalismo cubano em Angola e na Nicarágua

com os EUA. Assim, enquanto em março de 1959 Castro, então primeiro ministro,
deu as boas vindas ao capital estrangeiro, a viagem feita poucos meses depois aos
EUA, inicialmente para buscar fundos, tornou-se um momento decisivo:

¿Podrían sus líderes llevar a cabo una revolución auténtica y radical con el
apoyo de la United Fruit Company, la Coca-Cola, el Chase Mahnattan
Bank o la Standard Oil? ¿Aceptaría Fidel Castro la austeridad económica
que predicaba el Fondo Monetario Internacional (FMI), abrazaría a Richard
Nixon, vicepresidente de Estados Unidos, y proclamaría la amistad entre
Estados Unidos y Cuba ante las puertas de la base naval de Guantánamo?
Durante el viaje a Estados Unidos dijo a su gabinete económico que no
debían pedir ayuda extranjera a altos funcionarios del gobierno estadouni-
dense, el Banco Mundial, o el FMI (...) (DOMÍNGUEZ, 1998, p. 186)

Não que os EUA fossem financiar a Revolução Cubana. Se do lado cubano


avançavam as expropriações de empresas estrangeiras - iniciadas com a reforma
agrária e que tomaram força após negativa das empresas estrangeiras de refinar
petróleo comprado na URSS -, do lado estadunidense aumentavam as medidas
de boicote econômico e a organização de forças contrarrevolucionárias, em grande
parte formada por exilados cubanos (DOMÍNGUEZ, 1998).
Concomitante ao avanço do bloqueio estadunidense houve um aumento na
atuação diplomática cubana. Sob direção do chanceler Raul Ochoa, foi feita uma
reestruturação e um crescimento do Ministério de Relações Exteriores cubano para
que, com destacado domínio sobre economia internacional e assuntos militares,
tivesse capacidade de atuar como um ministério de vanguarda (BELLO, 1999
apud SILVA, 2012). Nessa primeira fase da revolução, a diplomacia cubana buscou
manter uma política globalista, atuando em fóruns internacionais para defender-se
daqueles que buscavam isolar o país e, pelas circunstâncias, passou a aproximar-se
aos países socialistas.
Quando a Organização dos Estados Americanos (OEA) votou uma conde-
nação a suposta interferência de outras potências no continente, Castro respondeu
com o que seria conhecido como a I Declaração de Havana, de setembro de 1960.
Nesta, Castro, em nome da Assembleia Nacional, agradece o apoio sino-soviético,
manifestando apoio a estes países frente a política de hostilidade e isolamento levada
a cabo pelos Estados Unidos e, sob imposição, pelos demais países latino-americanos

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(CASTRO, 1960). Cabe lembrar que Kruschev, poucos meses antes, havia decla-
rado que os mísseis soviéticos estavam dispostos a defender Cuba - sinalizando
uma cooperação militar que levaria, dentre outras coisas, a Crise dos Mísseis de
19628. A revolução tomava seus rumos enquanto Castro condenava a “exploração
do homem pelo homem e a exploração dos países subdesenvolvidos pelo capital
financeiro imperialista.” (CASTRO, 1960, tradução nossa), afirmando que manteria
as relações com os países socialistas - e em janeiro de 1961, as relações entre EUA
e Cuba seriam oficialmente rompidas.
É preciso considerar que a atuação do Estado revolucionário cubano no
Sistema Internacional ocorreu em várias esferas. A primeira - e mais básica - delas é
o fato de sua própria sobrevivência ser um importante acontecimento internacional.
Nos cinquenta anos anteriores à tomada de Havana pelos revolucionários, Cuba
não somente era uma aliada dos Estados Unidos, mas completamente dependente
da atuação da nação norte-americana. Ter uma anomalia ao seu modelo tão perto
de sua própria casa serviu (e ainda serve) como ameaça aos ideais estadunidenses
e, consequentemente, como uma limitação ao poder americano. Sua simples
existência serviu para diminuir a projeção da potência na região do Caribe e da
América Central, permitindo que surgissem outras insurreições à dominação norte-
-americana, desgastando, assim, o governo dos Estados Unidos (VISENTINI, 2013).
A imagem simbólica de Estado revolucionário fora uma das mais impor-
tantes contribuições de Fidel para o Terceiro Mundo. Surgindo em um vácuo de
atuação da maior potência socialista e em um momento de heterogeneidade no
bloco socialista, aquilo que Westad (2007) chamou de divisão sino-soviética, Cuba
conseguiu projetar-se como um modelo desse novo movimento. Utilizando-se de
sua transformação social interna, o discurso cubano alicerçava-se na necessidade
de uma “real independência” da atuação imperialista, conquistada por meio de um
fortalecimento da soberania dos Estados menores. A tese caribenha, especialmente
para a América Latina, era de que o Terceiro Mundo deveria tomar uma postura de
não alinhamento e de neutralidade frente às grandes potências (PEREIRA, 2013).

8 Conforme destaca Domínguez, Castro, mesmo pesando o crescente isolamento cubano, reconheceria que a
atuação da URSS fora a que, naquele momento, havia salvo seu governo (DOMÍNGUEZ, 1998). Ademais, a
relação com a URSS proporcionará a Cuba a proteção militar e uma considerável capacidade militar, diminuindo
a pressão estadunidense, auxílio econômico e, como lembra Silva, “a possibilidade de apoiar materialmente os
movimentos revolucionários no Terceiro Mundo.” (SILVA, 2012, p. 77).

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O papel da Revolução Cubana nas revoluções terceiro-mundistas durante a Guerra Fria:
o internacionalismo cubano em Angola e na Nicarágua

Não é só a uma imagem revolucionária anti-estadunidense que Cuba pode


ser relacionada. O seu desafio ao curso socialista programado pela União Soviética
e a seu dogma político serviu - e muito - para a consagração de um movimento
não alinhado. O apoio soviético dado às revoluções terceiro-mundistas, por mais
primordial para a sobrevivência do campo revolucionário durante a Guerra Fria,
geralmente era focado no âmbito militar - falhando, assim, em fornecer maior
apoio aos Estados revolucionários (PEREIRA, 2013).
Cuba, por sua vez, teve um papel central no continente americano através
da construção da estratégia de defesa revolucionária ativa. Esta determinava como
resposta aos ataques dos EUA a internacionalização do conflito, através do apoio a
guerrilhas e a operações encobertas no vizinho do norte (HALLIDAY, 1999). Seu
símbolo é a I Conferência de Solidariedade dos Povos da Ásia, África e América
Latina9, conhecida como I Tricontinental, sediada por Cuba em 1966. Nesta, além
da fundação da organização de mesmo nome e da Organização Latino-americana
de Solidariedade, Castro declarou apoio a “qualquer movimento revolucionário
em qualquer parte do mundo”, enquanto Guevara, vendo que o Terceiro Mundo
seguia marcado por guerras, sonhava com dois, três, vários Vietnãs10 (SUÁREZ,
1966 apud HALLIDAY, 1999, p. 118; GUEVARA, 1967).
Ademais, a II Declaração de Havana proferida em 1962 é, para Halliday,
marco da entrada da política externa cubana em sua fase confrontativa. Feita em
resposta a expulsão de Cuba da OEA, a declaração também critica indiretamente
a política soviética de convivência pacífica com os EUA, ao argumentar que os
povos não teriam reais benefícios em quaisquer alianças com o imperialismo.
Questionando os ataques estadunidenses a Cuba, Castro aponta que o medo
estadunidense da revolução cubana era, em essência, medo do levantamento dos
povos latino-americanos, pois, ainda que revoluções não fossem exportáveis, as
condições objetivas estavam dadas e as subjetivas poderiam ser construídas - e,

9 Dentre os participantes estavam protagonistas de vários movimentos de libertação nacional, como Fidel Castro,
Salvador Allende e Amílcar Cabral. Sua realização ter sido feita em Havana corrobora com a perspectiva de que
Cuba pretendia fortalecer o Movimento dos Não Alinhados e, consecutivamente, projetar seu modelo de revolução.
10 “¡Cómo podríamos mirar el futuro de luminoso y cercano, si dos, tres, muchos Vietnam florecieran en la
superficie del globo, con su cuota de muerte y sus tragedias inmensas, con su heroísmo cotidiano, con sus golpes
repetidos al imperialismo, con la obligación que entraña para este de dispersar sus fuerzas, bajo el embate del
odio creciente de los pueblos del mundo!” (GUEVARA, 1967).

43
REVISTA PERSPECTIVA

como afirmou então, o dever de todo revolucionário é o de fazer a revolução11


(CASTRO, 1962, p. 20).
A retomada da ideia de dever revolucionário serviu, também, como repro-
vação à falta de atuação soviética na realização das revoluções mundo afora. Seu
desempenho, fortificando uma terceira via, em conjunto com o da revolução
vietnamita, fortaleceu uma alternativa para a esquerda global que não o de entrada
no “segundo mundo” soviético. Essas ações indiretas alimentaram uma imagem
inspiradora para a unidade que surgia entre os não alinhados. Conforme Westad
(2007, p. 198), o “exemplo desses revolucionários implicou uma licença para
entrar em ação voltado por e para si mesmos, ao contrário da dominação militar
estadunidense ou a dogmaticidade política Soviética”.
A política externa cubana, contudo, não se focou somente na imagem de
esperança, de transformação social e de resistência, nem em ações indiretas. Azicri
(1988) bem reconhece que a política externa revolucionária cubana era um misto
de um pragmatismo necessário para sua sobrevivência e um desejo de exportar
o seu ideal revolucionário. Sua primeira aproximação - logo após a mudança de
governo - foi com o governo reformista e moderado da Venezuela, ainda antes da
tomada de qualquer medida mais radical no seu internacionalismo, e, como vimos,
o rompimento com os Estados Unidos e a sucessão de rupturas nas relações econô-
micas e diplomáticas dos países latino-americanosforam mais inevitáveis do que
intencionais, tornando necessária uma busca por outras alternativas (PEREIRA,
2013).
A saída prevista, então, era para o bloco socialista12. Entretanto, seguindo
seu ideal de “real independência”, Cuba não via como uma possibilidade continuar

11 “Aplastando la Revolución Cubana, creen disipar el miedo que los atormenta, el fantasma de la revolución
que los amenaza. Liquidando a la Revolución Cubana, creen liquidar el espíritu revolucionario de los pueblos.
Pretenden, en su delirio, que Cuba es exportadora de revoluciones. En sus mentes de negociantes y usureros
insomnes cabe la idea de que las revoluciones se pueden comprar o vender, alquilar, prestar, exportar o importar
como una mercancía más. (...) Pero el desarrollo de la historia, la marcha ascendente de la humanidad, no se
detiene ni puede detenerse. (...) Las condiciones subjetivas de cada país — es decir, el factor conciencia,
organización, dirección — pueden acelerar o retrasar la revolución según su mayor o menor grado de
desarrollo; pero tarde o temprano, en cada época histórica, cuando las condiciones objetivas maduran, la conciencia
se adquiere, la organización se logra, la dirección surge y la revolución se produce.” (CASTRO, 1962, p. 9-10).
12 Nesse sentido, Hobsbawn aponta que, para além da própria ideologia social-revolucionária dos cubanos, as
atitudes dos Estados Unidos em razão de um anticomunismo apaixonado e em defesa de seus investimentos
inclinavam “os rebeldes latinos antiimperialistas a olhar Marx com mais bondade” (HOBSBAWN, 1985, p.
427 apud SILVA, 2012, p. 47).

44
O papel da Revolução Cubana nas revoluções terceiro-mundistas durante a Guerra Fria:
o internacionalismo cubano em Angola e na Nicarágua

um mero fornecedor de matérias primas brutas e, consequentemente, dependente


de uma das potências. Assim, sua resolução era a de fortalecer esse novo bloco - de
não alinhados - principalmente nos seus países vizinhos. Essa primeira abordagem
com os países caribenhos e latino-americanos não era, portanto, a exportação de
um modelo ideológico revolucionário per se, mas também uma política defensiva
aos ataques estadunidenses (AZICRI, 1988). A necessidade de se tornar uma
potência regional ficou clara conforme o cerco fechava em torno de seus aliados
econômicos e o medo de um isolacionismo escalava.
Corroborando a ideia de política defensiva, pode-se analisar outra parte do
discurso proferido por Fidel Castro na Conferência Tricontinental. Nesse excerto,
o líder revolucionário confirma a hipótese de Azicri (1988) em relação ao prag-
matismo para sua sobrevivência, ao mesmo tempo misturado com um discurso
fortemente ideológico.

Nós somos uma pequena nação, não muito distante das costas da metrópole
do imperialismo. Nossas armas são eminentemente defensivas. Mas nossos
homens, de todo coração, nossos militantes revolucionários, nossos com-
batentes, estão dispostos a lutar contra os imperialistas em qualquer parte
do mundo. (CASTRO apud LANIC, 1966, p. XX, grifo nosso)

Essa nova identidade nacional - não mais aliada a uma grande potência,
mas sendo ela mesma o pivô de um movimento - trouxe o Estado revolucionário
para mais perto dos aliados latinos, colaborando para a superação do isolamento
imposto à ilha. Por outro lado, também permitia amenizar a pressão externa sobre
a população cubana. Nas palavras de um dos combatentes cubanos na Bolívia:

Ele [Castro] nos explicou a importância de nos prepararmos com grande


força e determinação, porque se Cuba precisava gastar dez mil dólares para
criar um combatente como nós, custaria ao imperialismo mais de cem mil
para destruí-lo… Conduzindo a luta na América Latina, nós também farí-
amos com que o imperialismo, que então concentrava todos seus esforços
sobre Cuba, tivesse que liberar imediatamente 50% da pressão exercida
sobre o país e colocá-la em direção a América do Sul. (“Benigno”, 1996
apud HALLIDAY, 1999, p. 121, tradução nossa)

45
REVISTA PERSPECTIVA

O internacionalismo guerrilheiro13, personificado nos ideais guevaristas


fortificou-se até 1967, quando Guevara foi morto na Bolívia. Entre 1963 e 1964,
Cuba havia treinado pelo menos 1500 guerrilheiros na região do Caribe e da América
Latina (WESTAD, 2007). As guerrilhas, entretanto, encontraram problemas
desde o seu início; a falta de apoio soviético e do suporte de Partidos Comunistas
nacionais fez com que a política não progredisse.
Cuba caminhava, então, para o período de institucionalização e normati-
zação do processo revolucionário. Destaca-se o surgimento do Partido Comunista
Cubano (PCC) e a realização de seu I Congresso em 1975, que levaria a aprovação,
por plebiscito, da Constituição de 1976. No que concerne ao aqui discutido, cabe
ressaltar que a Cuba, uma vez integrada a planificação econômica do Conselho
de Ajuda Mútua (CAME) desde 1972, elabora uma Constituição semelhante às
dos países do Leste europeu, nos quais o PCC, a propriedade estatal e o planeja-
mento econômico centralizado eram basilares (SILVA, 2012). No que concerne a
política externa, destacam-se o Artigo 11, em que Cuba situa-se como integrante
da comunidade socialista, e o Artigo 12, em que o país adota os princípios do
internacionalismo proletário e da solidariedade combativa dos povos (CUBA,
1976), condena o imperialismo e:

b) condena la intervención imperialista, directa o indirecta, en los asuntos


internos o externos de cualquier Estado, y, por tanto, la agresión armada y
el bloqueo económico (...);

c) califica de delito internacional las guerras de agresión y de conquista;


reconoce la legitimidad de las guerras de liberación nacional, así como la
resistencia armada a la agresión y a la conquista, y considera su derecho y
su deber internacionalista ayudar al agredido y a los pueblos que luchan
por su liberación (...) (CUBA, 1976)

Na periodização sugerida, este período de institucionalização seria também


o de, sobretudo no caso cubano, aparente contenção da revolução.Simultanea-
mente ao escasseamento gradual das políticas guerrilheiras, o internacionalismo

13 De acordo com Halliday, as primeiras operações visando auxiliar ou fomentar focos guerrilheiros tiveram
início em 1962 e, nos anos seguintes, “Cuba estava de uma forma ou outra apoiando guerrilhas em quase todos
os países latino-americanos, exceto México.” (HALLIDAY, 1999, p. 120).

46
O papel da Revolução Cubana nas revoluções terceiro-mundistas durante a Guerra Fria:
o internacionalismo cubano em Angola e na Nicarágua

da ilha caribenha começou a tomar uma nova forma. Seu apoio moldou-se em
uma concepção, agora sim, terceiro-mundista; sua política de confrontamento
na América Latina tornou-se uma política de cooperação, com o fortalecimento
de discursos esquerdistas e de não alinhamento (PEREIRA, 2013), e seus olhos
abriram-se para as lutas da Ásia e da África. Seu apoio à descolonização africana
foi essencial para a vitória de movimentos revolucionários (principalmente de
Angola, Argélia e Etiópia), ao mesmo tempo em que fortaleceu seu vínculo com
países terceiro-mundistas. Seu envolvimento direto em Angola, principalmente,
foi inesperado para o bloco capitalista, suscitando uma vitória à ilha e ocasionando
um salto qualitativo na projeção da política externa cubana. Para comparação,
em 1965 400 soldados cubanos estavam atuando na África Central (GLEIJESES,
2003); já entre 1975 e 1990, Cuba enviou 300 mil soldados para missões além-
-mar, tendo constantemente 30 a 50 mil soldados atuando na África, na Ásia e na
América Latina (DOMÍNGUEZ, 2001).
A atividade da ilha caribenha na África começou já em 1962, apoiando
os movimentos de descolonização da Argélia. Oferecendo as “bases da cooperação
médica (civil) e militar com a Frente de Libertação Nacional (FLN) da Argélia”
(PEREIRA, 2013, p. XX), Cuba começava a alicerçar o seu apoio direto às revoluções
terceiro-mundistas. O envio de Guevara para Angola em 1964 demonstrou para o
mundo a preocupação de Cuba com os movimentos de descolonização. Conforme
a agressão estadunidense aumentava , mais a proeminência do internacionalismo
cubano expandia.
As maiores vitórias da política externa cubana vieram nos dez anos seguintes
ao surgimento do Estado revolucionário. A doutrina pragmática já demonstrada
nos anos anteriores continuou na década de 1970, com um comprometimento
maior com a questão africana. Duas grandes vitórias aconteceram neste momento
no continente: a defesa do governo de Agostinho Neto em Angola (a mais crítica
vitória cubana e com maior influência no Sistema Internacional) e o apoio ao
governo revolucionário Etíope. A atuação em Angola foi um marco para o inter-
nacionalismo cubano; quanto à Etiópia, a maior problemática esteve no fato de o
embate ter ocorrido não contra uma potência imperialista, mas contra um compa-
nheiro terceiro-mundista (Somália, que tinha ambições territoriais na região). O

47
REVISTA PERSPECTIVA

envolvimento cubano, que passou de 400 militares para 16 mil em 1978 (AZICRI,
1988), esteve pautado na contenção da ambição somali ao território etíope - o que
Fidel considerou como uma atitude marcadamente imperialista.
Por mais que seu lastro de atuação na África e na Ásia fosse maior do que
somente essas duas vitórias (contando com atuação no Zimbábue, na Namíbia e
outros), não só de vitórias militares caracterizou-se a política externa cubana do
período. De fato, uma nova esfera de atuação começou a se consolidar no período
e persistirá até mesmo após o período da Guerra Fria. Centro de expertise em
áreas acadêmicas, Cuba enviou milhares de especialistas nas mais diversas áreas
da sociedade para ajudarem na construção de uma África pós-revolucionária (em
saúde, educação, agricultura e construção civil, por exemplo) e cerca de 20 mil
civis voluntários para atuarem na região. O espírito internacionalista em muito
expandiu com essa medida; devido à vitória de uma pequena ilha caribenha em
duas das maiores guerras por procuração (proxys) da década e à uma interação
vis-à-vis com países terceiro-mundistas africanos, o laço cubano com o resto do
mundo estreitou-se e a revolução conseguiu um novo suspiro de incentivo e orgulho
(PEREIRA, 2013).
A atuação de Cuba, nos próximos anos, esteve mais focada no Movimento
dos Não Alinhados. Em 1979, Havana foi a sede do sexto encontro dos não
alinhados; entre 1979 e 1983, Fidel presidiu a organização, falando por ela nas
instituições mais diversas, fazendo inclusive discursos na ONU. Seu apoio técnico
e militar aos países em desenvolvimento persistiu, chegando a ter 50 mil cubanos
cumprindo missões mundo afora e 2 mil profissionais da área de saúde dando
suporte aos países do Terceiro Mundo (AZICRI, 1988). Na década de 1980, até
o final da Guerra Fria, o discurso Cubano absorveu as demandas do movimento,
defendendo, por exemplo, o não pagamento da dívida externa dos países latinos
como forma de promover o desenvolvimento. Sua atuação tornou-se mais moderada
e de cooperação.
No Caribe, a questão não era diferente. Vinte anos depois da Revolução
Cubana, em 1979, enfim outro país da região seguiu o modelo cubano de enfren-
tamento à atuação estadunidense. A revolução dos sandinistas depôs o ditador
Anastasio Somoza Debayle, pró Estados Unidos, e pôs fim à dinastia Somoza no

48
O papel da Revolução Cubana nas revoluções terceiro-mundistas durante a Guerra Fria:
o internacionalismo cubano em Angola e na Nicarágua

governo nicaraguense. O apoio cubano fora importante para o surgimento da Frente


Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) nos anos 1960, fornecendo armamentos
e treinamentos (principalmente por meio da Dirección de Inteligencia Cubana, ou
“DI”, um órgão de inteligência criado pelo movimento revolucionário), embora
tenha diminuído nos anos 1970. De forma direta, somente em 1978 a República
Cubana voltou a atuar na Nicarágua, fornecendo auxílio para a revolução. Estando
tão perto de casa, Cuba também auxiliou com técnicos e profissionais, além de um
câmbio de civis voluntários. Os dois Estados caribenhos, unidos, lutaram contra
um inimigo em comum14. Por serem tão relevantes para o Terceiro Mundo e para
o internacionalismo cubano, adentraremos mais a fundo nos casos da Nicarágua
e de Angola na próxima seção.

4 Estudos de caso
O internacionalismo cubano não representou apenas um apoio aos países
socialistas; mais do que isso, representou um apoio aos países terceiro-mundistas.
Ao apoiar países que realizaram revoluções ou que estavam em processo de descolo-
nização, Cuba reforçava os laços latino-americanos com a África, promovia o ideal
revolucionário e fortificava uma alternativa às políticas das grandes potências. O
auxílio fornecido por Cuba superava não apenas em proporções, mas também em
valores absolutos, o apoio fornecido por países do Primeiro Mundo em assistência
humanitária ao Terceiro Mundo. Os 10 mil cooperantes cubanos, se comparados
aos salários da Organização das Nações Unidas, equivalem à toda ajuda da ONU
ao Terceiro Mundo durante os anos 1970 (MOREIRA & BISSIO, 1979).
A seguir, a atuação da Cuba em dois conflitos pivôs para o sua projeção
externa será analisada mais a fundo. Primeiro, será abordada a vitória na manutenção
do Estado revolucionário angolano, que simbolicamente representa quão longe a
pequena ilha caribenha conseguiu influenciar as relações internacionais da Guerra
Fria. Em seguida, tem-se uma análise mais próxima da realidade latino-americana:
sobre o apoio dado à revolução sandinista nicaraguense, que serviu como símbolo

14 O apoio dado por Cuba à Nicarágua consistiu, da mesma forma que a projeção para a América Latina no
início dos anos 1960, em uma política de defesa contra o “Estado que pretendia os destruir”. Para mais infor-
mação, ver Halliday (1999).

49
REVISTA PERSPECTIVA

da repressão norte-americana aos processos revolucionários e do potencial cubano


de desafiar a grande potência ianque.

4.1 Angola
Em novembro de 1975, Cuba lançou a iniciativa militar contando com
36 mil soldados para combater a invasão de Angola pelo Zaire e pela África do
Sul. O apoio cubano, contudo, foi muito além da defesa militar; aliás, operações
como esta são exceção dentre as experiências da ilha. O internacionalismo cubano
é muitas vezes compreendido como apenas uma parte do campo soviético, porém
é preciso diferenciar o campo socialista das políticas de Cuba, sendo possível
afirmar que os esforços cubanos no final dos anos 1980 eram uma tentativa de
combater o reformismo de Gorbatchev. Apesar dos objetivos iniciais da operação
cubana não incluirem um engajamento tão grande como se demonstrou com os
anos, a necessidade de constante envio de novos reforços para manter a segurança
das operações resultou em uma escalada sem precedentes (GEORGE, 2005). A
esfera militar do internacionalismo cubano representou apenas uma face de todo
o auxílio prestado aos países africanos, e o compromisso com esse ideal permitiu a
Cuba ser o único país do Terceiro Mundo capaz de projetar uma influência exterior
tão grande durante a Guerra Fria (LOPEZ, 2002).
Mesmo depois de vencer a guerra de libertação nacional, o Movimento
Popular de Libertação de Angola (MPLA) precisou lidar com duras oposições
internas e externas ao mesmo tempo em que reconstruía o Estado. Além de herdar
uma capacidade estatal reduzida do Estado colonial português, Angola precisou
lidar com um país arrasado pela guerra interna que continuava na luta armada
contra o Zaire e a África do Sul. O socialismo foi encontrado como a melhor alter-
nativa para fornecer bases ideológicas na construção de um Estado que oferecesse
um novo modelo de sociedade à população, contando com o apoio de Cuba para
reduzir as lacunas nos serviços públicos de saúde, educação, segurança, transporte
e construção civil (CASTELLANO, 2015).
A ajuda cubana pode ser dividida entre os militares e os cooperantes volun-
tários, que se caracterizavam pelo forte comprometimento com a causa. Os serviços
prestados pelos cooperantes cubanos envolviam a construção de edifícios e a

50
O papel da Revolução Cubana nas revoluções terceiro-mundistas durante a Guerra Fria:
o internacionalismo cubano em Angola e na Nicarágua

reconstrução de pontes destruídas, a realização de projetos agrícolas, pecuários,


avícolas, na pesca e nas repartições públicas. Eles trabalhavam incansavelmente,
chegando a 10 ou 12 horas diárias de trabalho, incluindo algumas horas durante
os sábados, recebendo trinta dólares mensais a mais que seus salários na ilha. Ao
contrário dos técnicos europeus, os cubanos não exigiam altos salários nem condições
de vida específicas, demonstrando a grande importância da educação e da ideologia
no apoio à construção dos países africanos. Possuindo maior concentração em
Angola após a guerra, a ajuda técnica cubana também se destaca na capacidade de
improvisação e de reparação de peças antigas, tendo em vista possuírem dificuldades
similares na ilha (MOREIRA & BISSIO, 1979).
Ao contrário de alguns países latino-americanos como o Brasil da década
de 1970, os cubanos não buscavam na África uma expansão de seu mercado
interno, e forneciam maior auxílio humanitário e técnico se comparado aos vizi-
nhos latino-americanos. A cooperação e a busca pela libertação eram vistas como
desafios comuns a ambos. Se internacionalista é aquele capaz de se sacrificar pelos
outros povos, os cubanos, nas lutas de libertação em Angola, cumpriram seu dever
- auxiliando o processo de descolonização e a revolução nacional. (MOREIRA &
BISSIO, 1979)

4.2 Nicarágua
Desde que foi controlada pelos americanos, em um longo processo de
exploração, até o sucesso da Revolução, a luta de libertação de Cuba sempre foi
contra o poderio dos EUA. Sendo assim, além do internacionalismo como prin-
cípio de atuação nas revoluções mundiais, o dever cubano contra a exploração
da Nicarágua representava um esforço em função da empatia por já ter sofrido
processo similar no passado.
Não se tem como objetivo, aqui, demonstrar a similaridade entre os casos
históricos de Cuba e da Nicarágua; contudo, é evidente que ambos contêm claras
semelhanças, principalmente um governo autoritário apoiado pelos Estados Unidos.
Essas semelhanças desencadearam o temor norte-americano de que ocorresse uma
repetição do êxito da Revolução Cubana. Enquanto isso, a revolução na Nicarágua,
ao obter sucesso em 1979, instaurou um sistema democrático, multipartidário, de

51
REVISTA PERSPECTIVA

economia mista e que buscava o não alinhamento a qualquer das superpotências.


Ambas ideias de um sistema socialista e liberal coexistiam no país, mostrando o
caráter de revolução popular com cooperação de alguns setores da burguesia. Além
disso, a revolução sandinista não ocorreu apenas com as bases estabelecidas por
Cuba; desde a criação da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), em
1961, a organização uniu anti-imperialismo, marxismo, valores cristãos e valores
liberais (PEREIRA, 2013).
A revolução na Nicarágua ocorreu em um período em que Cuba buscava
maior moderação em seu envolvimento no apoio às revoluções no Caribe e na
América do Sul, tendo em vista seu grande envolvimento em Angola e nas grandes
campanhas contrarrevolucionárias dos Estados Unidos. Nesse sentido, a ajuda
cubana à Nicarágua impeliu os soviéticos a apoiarem o novo regime e a estabele-
cerem laços comerciais (WESTAD, 2007).
O processo contrarrevolucionário liderado pelos Estados Unidos incluiu
os Contras, movimento anti-sandinista, veementemente apoiados pela Doutrina
Reagan. Os Contras operavam a partir de sua sede em Honduras e realizavam
ataques no norte da Nicarágua, destruindo pontes, escolas, hospitais, fazendas.
Provocaram a morte de mais de 50 mil pessoas e o deslocamento de mais de 250
mil camponeses. Desde a luta contra o regime de Somoza, Cuba forneceu grande
apoio logístico e militar ao movimento sandinista e, quando a FSLN chegou ao
poder, o apoio cubano estendeu-se a áreas da saúde e da educação (PEREIRA,
2013). Para balancear os movimentos apoiados pelos EUA, os países socialistas,
incluindo Cuba, forneceram amplo apoio para a luta revolucionária depois da
ascensão ao poder.
Dessa forma, pode-se observar que o apoio cubano à Nicarágua foi feito
em duas frentes: primeiramente, visando ao sucesso da revolução; em seguida, o
processo de estruturação do Estado e o combate às contrarrevoluções promovidas
pelos Estados Unidos. O internacionalismo cubano também possui a dualidade
terceiro-mundista e socialista; mesmo que uma não exclua a outra, é possível
compreender as preocupações e os objetivos da ilha. Assim, almejando uma sociedade
internacional e a fortificação de laços entre os países que sofreram com potências

52
O papel da Revolução Cubana nas revoluções terceiro-mundistas durante a Guerra Fria:
o internacionalismo cubano em Angola e na Nicarágua

estrangeiras, Cuba conseguiu opor-se à presença americana e constranger o apoio


soviético a revoluções no Terceiro Mundo.

5 Considerações finais
Uma vez consolidado o nacionalismo cubano durante o processo revolu-
cionário, ele passa a possuir um caráter internacionalista. Tal elemento aparece,
conforme visto, na busca por construir uma política externa de vanguarda ainda
nos primeiros anos de revolução. Pode-se inferir, nesse sentido, a importância que
o processo de coesão nacional teve no fortalecimento do Estado para que o mesmo
pudesse se projetar externamente no momento posterior à Revolução.Ainda assim,
mesmo o cubano mais otimista não poderia ter imaginado, na década de 1950,
que a pequena ilha caribenha obteria status e importância maiores do que muitos
Estados com maior poder econômico e militar. Nos 32 anos desde o triunfo da
Revolução Cubana - quando da tomada de Havana pelos revolucionários - até a
queda do regime soviético, Cuba projetou-se como uma liderança do Movimento
dos Não Alinhados, constituiu uma terceira via com objeções às duas potências
mundiais e foi catalisadora da independência de vários Estados antes sob domínio
imperialista ou ditatorial. Sua presença na América Latina, na África, na Ásia e
no Oriente Médio foi pautada em uma luta constante contra o colonialismo,
com intervenções militares ou técnicas em vários Estados revolucionários, sendo
destacado o seu papel em Angola e na Nicarágua.
A exportação da revolução não se resume a dar suporte técnico-militar aos
Estados em processo revolucionário, mas em fornecer apoio para a consolidação e a
fortificação dos Estados terceiro-mundistas. Não foi apenas por meio do socialismo
que Cuba revolucionou o Sistema Internacional, mas também por meio de suas
políticas de cooperação Sul-Sul, mostrando que além de uma alternativa a um sistema
econômico também existia uma alternativa a um sistema político internacional.
O maior legado do internacionalismo cubano, portanto, extrapola suas
intervenções. A vitória em Angola e a insubordinação frequente a qualquer tipo
de dependência trouxe seu espírito de resistência e transformação social como um
modelo de Estado revolucionário. É impossível pensar no Terceiro Mundo durante
a Guerra Fria e ignorar a atuação cubana, responsável por grandes alterações à

53
REVISTA PERSPECTIVA

correlação internacional de poder. Mais do que isso, é inadequado pensar, no


Século XXI, em uma cooperação Sul-Sul ou em uma projeção do Movimento dos
Não Alinhados e ignorar a herança histórica e ideológica da república caribenha
para o Terceiro Mundo.
A resposta de como uma pequena ilha de cerca de 10 milhões de habitantes
conseguiu projetar seus interesses tão profundamente no Sistema Internacional
passa, principalmente, pelo seu internacionalismo. A exportação de sua revolução
e o apoio dado às mais diversas revoluções e movimentos de libertação nacional
moldaram a imagem externa da República Cubana e, até hoje, motivam - e inspiram
- o movimento revolucionário mundial.

The role of the Cuban Revolution in third-world revolutions


during the Cold War: The Cuban internationalism in Angola
and Nicaragua

ABSTRACT: This article is about the role of the Cuban Revolution for the
Third World, especially for Angola and Nicaragua, in the context of the Cold
War. Cuba, through its foreign policy - based on internationalism and, in a
certain way, on the export of its own revolution - influenced several Third
World countries in their revolutionary process. For such, the exchange of
personnel for overseas mission, together with its participation in military
training, were of great importance. This were the means by which the Cuban
state, even if small compared to the Great Powers, managed to act upon the
dynamics of the Cold War, being of great importance for the geopolitical
board at the time and for the establishment of zones of influence
KEYWORDS: Cuba; Revolution; Third World; Cold War; Angola;
Nicaragua.

54
O papel da Revolução Cubana nas revoluções terceiro-mundistas durante a Guerra Fria:
o internacionalismo cubano em Angola e na Nicarágua

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57
A Revolução Sandinista

Gabriela Ruchel de Lima


María José Ahumada*

RESUMO: O movimento sandinista na Nicarágua pôs fim às lutas populares


contra sucessivas e violentas ditaduras que compuseram o cenário da América
Central ao longo do século XX. A trajetória teve início com a resistência dos
combatentes liderados por Augusto César Sandino, no final da década de 1920.
O presente artigo divide-se, então, em cinco partes principais:a primeira tem por
intuito a contextualizaçãodo cenário nicaraguense antes da revolução; a segunda
corresponde às décadas seguintes, após o assassinato de Sandino e a instauração
da dinastia Somoza; à terceira parte cabe explicar como, mesmo após sua morte, a
luta de Sandino serviu de inspiração para o surgimento de um amplo movimento
de oposição, a Frente Sandinista de Libertação Nacional. A quarta e a quinta parte
abordam, respectivamente, a Revolução Sandinista em si – e como, em 1979, após
anos de confrontos, o movimento sandinista derrotou o regime ditatorial – e o seu
legado, desde a trajetória histórica do movimento até o seu triunfo.
PALAVRAS-CHAVE: Nicarágua;Revolução Sandinista; Frente Sandinista de
Libertação Nacional (FSLN); Dinastia Somoza.

* Graduandas em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A Revolução Sandinista

1 Introdução

Dentreas diversas experiências revolucionárias e golpes de Estado que


permearam o continente americano após a Segunda Guerra Mundial, destaca-se
a Revolução Sandinista e a sua relevância para a América Central e o contexto
histórico de ditaduras pelo qual passariam alguns países. Depois de seu processo de
independência, a Nicarágua, assim como outras nações americanas, teve seu Estado
controlado por elites intimamente ligadas ao interesse do capital internacional.
A grande maioria da população assistiu a um violento processo de empobre-
cimento da nação a favor de interesses das potências capitalistas, principalmente
dos Estados Unidos. A desigualdade e a dependência causaram uma situação de
caos que culminou na crise deflagrada durante o governo de José Santos Zelaya
(1853 – 1919). A partir de então, os Estado Unidos – no claro intuito de preservar
seus interesses econômicos – resolveu intervir diretamente nas questões do estado
nicaraguense, onde os presidentes instalados no governo recorriam à ajuda militar
dos Estado Unidos a fim de evitar ou de silenciar os levantes de guerrilheiros
contrários à situação submissa da nação.
Este trabalho versa sobre os antecedentes da Revolução Sandinista, bem
como a formação e o desenrolar da ditadura de Somoza. Posteriormente, perpassaa
formação da Frente Sandinista de Libertação Nacional, oposição ferrenha ao
governo ditatorial com raízes reminiscentes no movimento sandinista iniciado
por Augusto César Sandino.

2 Antecedentes
Atualmente o maior país da América Central continental, com cerca de
5,6 milhões de habitantes, a Nicarágua foi, inicialmente, uma colônia hispânica,
de economia essencialmente agroexportadora – voltada sobretudo ao café – e que
passoupor um breve surto minerador (FERNANDÉZ, 2013).
Por volta do século XIX, vivenciando as diversas transformações que atingiam
o ambiente colonial hispânico, os nicaraguenses engendraram o seu processo de
independência, e atingiram sua autonomia em 1821, sendo o país inicialmente

59
REVISTA PERSPECTIVA

conglomerado ao território das Províncias Unidas da América Central. A disputa


entre liberais e conservadores transformou a Nicarágua em um exemplo de fragi-
lidade no que se refere às instituições políticas concebidas após os processos de
independência da América Colonial. Entre 1855 e 1857, o desgaste provocado
pelos vários conflitos civis permitiu que William Walker, aventureiro estaduni-
dense, comandasse saques, confiscos de terras, além de tentativas de estabelecer a
escravidão. Walker declarou-se presidente da Nicarágua após a realização de uma
eleição não contestada e tomou posse em 12 de julho de 1856, lançando em seguida
um programa de americanização, o qual declarava o inglês como língua oficial,
além de promover uma reorganização da moeda e da política fiscal para incentivar
a imigração oriunda dos Estado Unidos. Com isso, as disputas políticas continu-
aram e foram marcadas por intervenções políticas britânicas e norte-americanas
(FIGUEROA, 2005).
Em maio de 1857, Walker se entregou ao comandante da marinha norte-
-americana e foi repatriado; contudo, retornou à Nicarágua tempos depois e,
entregue posteriormente às autoridades de Honduras, foi fuzilado em 1860,
marcando o que seria o primeiro passo para a libertação nacional. Depois de três
décadas de uma ditadura oligárquica, teve início a Revolta Liberal de José Santos
Zelaya, em queliberais nicaraguenses conseguiram chegar ao poder com a proposta
de modernizar as práticas e as instituições políticas do país. Em 1897, durante o
governo de José Santos Zelaya, uma nova constituição foi assinada com o intuito de
superar os entraves que impediam a superação dos problemas nacionais. Sentindo-se
ameaçados com essa situação, os Estados Unidos intervieram no país, passando a
controlar asferrovias, o Banco Central e a alfândega (FIGUEROA, 2005).
Esta intervenção estadunidense direta incitou uma revolução popular contra
Adolfo Díaz, candidato apoiado pelos Estados Unidos para ocupar o posto presi-
dencial. Emiliano Chamorro, militar e político nicaraguense opositor ao governo de
Zelaya, ajuda a conter a revolta contra Adolfo Díaz, recebendo, como recompensa
por sua contribuição, a nomeação de ministro plenipotenciário nos Estados Unidos.
No exercício de seu cargo, assinou em 1914 o Tratado Bryan-Chamorro, pelo qual
se concedia aos Estados Unidos o direito perpétuo para construir um canal que
uniria o Mar das Caraíbas ao Oceano Pacífico através da Nicarágua. Em 1917, foi

60
A Revolução Sandinista

eleito presidente da República e até a década de 1920 os vários incidentes políticos


da Nicarágua seriam acompanhados de perto pelas autoridades políticas norte-
-americanas. Quando julgavam necessário, tropas de mariners eram enviadas pelos
Estados Unidos para anular o resultado de uma eleição e para legitimar a ascensão
de um líder comprometido com seus interesses econômicos (FERNANDÉZ, 2013).
Nesse período, um movimento guerrilheiro liderado por Juan Bautista Sacasa,
José María Moncada e Augusto César Sandino toma forma, ao percebera forte
intervenção militar norte-americana nos países do Caribe, o que acaba por gerar um
sentimento nacionalista e anti-estadunidense a fim de combater a ação estrangeira
em seu país. Em 1932, a Nicarágua passa por eleições tidas como cruciais e aceitas
por Sandino em troca da retirada das tropas norte-americanas, o que efetivamente
acontece. Entretanto, quando os Estados Unidos deixam a Nicarágua, coexistem
três forças de poder: a Guarda Nacional, que surge como um organismo de poder
diretamente ligado aos Estados Unidos e dirigida por Anastasio Somoza García;
o presidente eleito, Juan Bautista Sacasa (tio de Somoza); e as forças sandinistas
(FIGUEROA, 2005).
Tendo o controle do Congresso e sendo a Guarda Nacional encarregada do
processo eleitoral, Somoza obteve a presidência por meiode um golpe governa-
mental. Inicia-se, então, uma guerra de extermínio contra as forças sandinistas, e
Augusto Sandino é assassinado. A partir desse momento, entre os anos de 1936 e
1978 Somoza se preservou no poder por meioda ação política direta ou por meio de
parentes visivelmente atrelados à sua influência. Essa verdadeira “dinastia política” se
conservou no poder graças ao controle da Guarda Nacional e àutilização de diversos
instrumentos de natureza autoritária. Tal situação só se modificaria quarenta e três
anos mais tarde, com o triunfo da Revolução Sandinista (FIGUEROA, 2005).

3 Estado Somozista (1939-1979)


O regime ditatorial criado pela dinastia Somoza na Nicarágua estabeleceu
um mandato com características particulares. Dentre tais características está a
presença de um governo pessoal, a existência de elites políticas que diferiam das
elites socioeconômicas tradicionais, a dominação pessoal das forças armadas, a

61
REVISTA PERSPECTIVA

corrupção como prática institucional e o uso da coerção e da repressão contra as


forças opositoras (MARTÍ I PUIG, 2012).
A Guarda Nacional, uma das heranças deixadas pela intervenção estadu-
nidense na Nicarágua, foi uma instituição com conexões diretas com os Estados
Unidos. É importante destacar o papel que a Guarda Nacional tinha no sistema de
governo dos Somoza, uma vez que detinha o controle da imigração, da alfândega,
do setor de comunicações, assim como da tributação. Seguindo o objetivo de se
estabelecer um regime autoritário, modificou-se a constituição para transformar o
poder em hereditário e assegurar, assim, o prolongamento do mandato dos Somoza.
Tacho Somoza, como era chamado, normalizou as relações com os EUA e decidiu
estreitar os laços com a administração de Franklin Roosevelt; dessa aproximação
teria surgido a célebre frase do presidente estadunidense. “Somoza poderá ser um
bastardo, mas é nosso bastardo” (PEREIRA, 2013).
Uma das características principais do governo estabelecido por Somoza
García foi a acumulação desmedida de dinheiro. Essa se deu, a princípio, por meio
de expropriações de plantações de café e de concessões às empresas estadunidenses
com o objetivo de explorar matérias como ouro e borracha. Sua fortuna aumentou
consideravelmente e pouco a pouco a família Somoza se converteu em detentora
dos maiores monopólios do país. Tacho Somoza era então o homem mais rico da
Nicarágua eos negócios que lhe pertenciam encontravam-se ligados a atividades
ilegais, tais como o contrabando, a prostituição, dentre outros. Enquanto o ditador
convertia-se no homem mais rico do país, o povo encontrava-se cada vez mais
submersopela pobreza. A população nicaraguense tinha, à época, um alto nível de
analfabetismo e um péssimo sistema de saúde.
A Nicarágua era, tanto política quanto economicamente, bastante relevante
para os Estados Unidos, tendo em vista que o país era utilizado como centro para
a realização de intervenções na América Latina. Dentre elas podem ser citadas
a Guatemala (1954), Cuba (1961), com o fracasso da Baía de Porcos– dada a
resistência das tropas revolucionárias cubanas –,e aRepública Dominicana (1965).
Em 1956 deu-se o primeiro golpe ao regime dos Somoza, que teve seu líder
assassinado por um jovem nicaraguense. Ao ter estabelecido o poder hereditário na
constituição, um dos filhos do Somoza tomou seu lugar no poder. Desse modo, a

62
A Revolução Sandinista

dinastia ditatorial somozista continuava, agora em mãos de Luis Somoza Debayle


na presidência e de Tacho Somoza Debayle na Guarda Nacional. O contexto do
triunfo da Revolução Cubana e da realidade de pobreza vivenciada pela maioria da
população nicaraguense às custas do enriquecimento ilícito de seus dirigentes, foram
os pilares para o surgimento, posteriormente, da Frente Sandinista de Libertação
Nacional (FSLN) (MARTÍ I PUIG, 2012).

4 A Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN)


Fundada oficialmente em Honduras no ano de 1961 por Carlos Fonseca
Amador, Tomás Borge Martínez e Silvio Mayorga, a Frente Sandinista de Liber-
tação Nacional (FSLN) foi um partido político nicaraguense que contava, em sua
formação, com parte da população rural, estudantes e dissidentes do Partido Socia-
lista da Nicarágua e do Partido Conservador. Nomeado como uma homenagem
a Augusto César Sandino, líder da resistência contra a ocupação estadunidense na
década de 1930, o partido caracterizava-se poruma estratégia armada de caráter
rural, aproximando-se das cidades com o decorrer do tempo.
A partir de 1969, a FSLN definiu-se como uma organização político-militar
com perfil anti-imperialista, tendo como método de ação a guerra popular com
o objetivo de derrubar a ditadura de Anastasio Somoza (FERNANDEZ, 2013).
Apenas Borge viveu o suficiente para ver a chegada dos Sandinistas ao poder; no
início da década de 1970, a FSLN lançava iniciativas militares limitadas e fracassou
no começo da luta devido à falta de experiência militar. O objetivo, contudo, foi
atingido dez anos depois, em 1979, e estabeleceu um governo revolucionário, queos
sandinistas comandaram primeiramente como parte de uma Junta de Reconstrução
Nacional, tendo exclusividade apenas a partir de março de 1981.
Alvos de uma forte campanha liderada pelo presidente dos Estados Unidos,
Ronald Reagan, desde o início da década de 1980, os sandinistas passaram a sofrer
forte oposição dos chamados “Contras”, grupo guerrilheiro de direita recrutado
pelo Guarda Nacional somozista e financiado pelo governo americano. Em 1984,
foram realizadas eleições livres e o líder sandinista Daniel Ortega foi eleito com
60% dos votos; entretanto, os opositores conquistaram quase um terço dos assentos
no parlamento. Enquanto isso, os esquadrões da morte dos Contras, financiados

63
REVISTA PERSPECTIVA

pela CIA, intensificaram suas atividades com o intuito de desestabilizar o governo


sandinista eleito. Em 1990, após anos de resistência aos Contras, a FSLN perdeu as
eleições para Violeta Barrios de Chamorro apósreformar a constituição em 1987.
Contudo, conseguiu manter um número significativo de assentos no parlamento.
Ainda hoje a FSLN é um dos dois maiores partidos políticos da Nicarágua, ao lado
do Partido Liberal Constitucionalista.
Em 2006, Ortega reelegeu-se presidente da República da Nicarágua com 38%
dos votos. O processo eleitoral foi bastante elogiado, inclusive pelo ex-presidente
dos Estados Unidos, Jimmy Carter, que – juntamente com Alejandro Toledo,
ex-presidente do Peru, e Nicolas Ardito, ex-presidente do Panamá – integrou
uma comissão de observadores internacionais. Apesar dos elogios quanto à trans-
parência do processo eleitoral, membros da oposição não queriam reconhecer a
eleição de Daniel Ortega e pediram que se recontassem os votos minuciosamente
(FIGUEROA, 2005).
Ortega finalmente assumiu a presidência do país, declarando seu compromisso
em eliminar a pobreza da Nicarágua estimulando o investimento privado a fim de
gerar mais empregos. Declarou-se, ainda, disposto a manter um relacionamento
amigável com os EUA, ciente dos custos de um eventual confronto com aquele país
– tal como o embargo econômico imposto à Nicarágua em 1980, que arruinou a
ambição sandinista de obter progressos na educação e na saúde. Em 2011, segundo
dados oficiais do Conselho Supremo Eleitoral (CSE), Daniel Ortega foi reeleito
com 62,46% do total de votantes (FIGUEROA, 2005).

5 A Revolução Sandinista (1979 - 1990)


A ditadura de Anastasio Somoza encontrava-se em evidente decadência,
ocasionada, por um lado, pela insatisfação das elites tradicionais econômicas e,
por outro, pelos movimentos revolucionários formados pelo povo nicaraguense,
principalmente pela Frente Sandinista de Libertação Nacional. As elites econô-
micas nicaraguenses mostraram seu descontentamento com o regime somozista,
uma vez que seus interesses comerciais eram prejudicados, vistoque Somoza e seu
círculo mais próximo detinham o controle das principais atividades econômicas em

64
A Revolução Sandinista

aliança com o capital estrangeiro. O povo nicaraguense foi a esfera mais afetada,
dado que o país atravessava uma crise econômica e social de grande envergadura,
evidenciada pelo alto nível de pobreza e de analfabetismo dominante entre a
população (FERNANDÉZ,2013).
Desse modo, em meio ao descontentamento generalizado de cidadãos dos
mais diversos setores dá-se o declínio definitivo da ditadura. O estopim para o fim
do regime dos Somoza foi o terremoto que afetou Manágua, em dezembro de 1972.
Esse desastre natural afetou o país de forma avassaladora, visto que pelo menos
70% dos prédios da capital ruíram e uma grande porcentagem da população foi
atingida. O terremoto atraiu os olhos do mundo para o país e foi oferecida ajuda
internacional para a reconstrução, fato que foi visto como uma oportunidade,
pela família Somoza, para um maior enriquecimento, ao mesmo tempo em que
poderiam recuperar o poder enfraquecido. Tendo em consideração os objetivos dos
Somoza, Anastasio nomeou-se presidente do Comitê Nacional de Emergência; desse
modo, os Somoza puderam tirar proveito da situação, comercializando as doações
recebidas, realizando especulação financeira e obtendo créditos altos e contratos
fraudulentos para a restauração do país (FERNANDÉZ,2013).
Se fez evidente, no âmbito internacional, a corrupção e as desigualdades
sociais nas quais estava submergida a Nicarágua. Como se não bastasse, outro fator
determinante para a queda de Anastasio Somoza foi a tensão política que culminou
no assassinato de Pedro Joaquín Chamorro, em janeiro de 1978. Chamorro era
um conhecidojornalista de oposição e pertencia à elite tradicional nicaraguense;
assim, o crime exacerbou os ânimos e acelerou o processo de insurreição. Nesse
contexto, quanto mais se debilitava o regime dos Somoza, maior poder passava
a adquirir a Frente Sandinista de Libertação Nacional. No decorrer de 1978, a
FSLN organizava insurreições, tanto rurais quanto urbanas, que minguavam o já
escasso poder somozista.
Um ato mais notável que debilitou ainda mais o regime foi a tomada do
Palácio Nacional por 25 homens da FSLN pertencentes àchamada tendência
terceirista, em agosto de 1978. Foram tomados reféns os membros da Assembleia
Legislativa, liberados apenas mediante pagamento prévio do resgate, feito por
Somoza. Tal ação fez com que os EUA percebessem que não se tratava mais de

65
REVISTA PERSPECTIVA

um assunto de competência da administração de Carter, pois, dada a repressão


exercida pela Guarda Nacional, passava dos limites do marco da política de Direitos
Humanos. Propunham, assim, propusessem aintermediação da Organização dos
Estados Americanos (OEA), que nunca foi levada a cabo (MARTÍ I PUIG, 2012).
A reta final da ditadura somozista chega com a ofensiva armada proposta
pela FSLN em todas as frentes de guerra. Em junho de 1979,dá-se a convocação
à uma insurreição generalizada. No 17 de julho de 1979, a revolução sandinista
toma o poder da Nicarágua e o ditador Anastasio Somoza foge para os Estados
Unidos – para posteriormente fixar sua residência no Paraguai, onde imperava a
ditadura de Alfredo Stroessner.
Com o triunfo da revolução sandinista se instaura a Junta de Governo de
Reconstrução Nacional (JGRN), composta por membros de diversos setores sociais,
dentre os quais se destacam Daniel Ortega, da FSLN, e Violeta Chamorro – viúva
de Pedro Joaquín Chamorro – como membro independente. Assim, foi estabe-
lecido um regime democrático com uma economia mista – fato relevante, pois a
revolução contou com apoio tanto dos estratos sociais mais baixos como das elites
econômicas tradicionais, que queriam garantirseus interesses comerciais. Do mesmo
modo, o governo adotou uma política de não alinhamento e de autodeterminação
(FERNANDÉZ, 2012).
A curta duração da revolução, de 1979 a 1990, é explicada, por um lado,
pelas diversas vertentes formadoras da FSLN, pois, ao chegar ao poder, as dife-
renças foram se acirrando, o que gerou uma ruptura. Por outro lado, como foi
mencionado anteriormente, ao formar uma aliança com setores privilegiados, o
governo viu-se limitado a estabelecer as medidas necessárias para a manutenção
do regime e não conseguiu implementar políticas de caráter mais socialista, para
evitar afetaros interesses das elites. Desse modo, o fator de maior relevância para
o desaparecimento da revolução foi a contrarrevolução, na qual se uniram setores
da oposição, como os indígenas miskitos que, financiados pelos Estados Unidos,
iniciaram uma guerra sangrenta que afetou substancialmente o regime sandinista.
A revolução sandinista contou com um amplo apoio do bloco socialista,
especialmenteda República Cubana, que forneceu um grande suporte em diversos
âmbitos – tais como militar, político, educacional e de saúde. Essa contribuição

66
A Revolução Sandinista

foi de vital importância para resistir aos ataques exercidos pelos Contra. Assim, é
válido ressaltar o papel de grande parte das repúblicas latino-americanas ao formar
o Grupo da Contadora, como um meio de apoio ao fim da agressão contra Nica-
rágua (PEREIRA, 2013 apud VISENTINI, 2013).
A revolução chega ao fim com o triunfo, nas eleições de 1990, da União
Nacional Opositora,coalização liderada por Violeta Chamorro que reunia grupos
de extrema direita e conservadores que contavam com o apoio dos EUA. Deve-se
levar em consideração, contudo, que o triunfo não demonstrava uma atitude
contrária ao regime sandinista, mas refletia o desejo da população de pôr fim à
guerra contínua entre sandinistas e Contras.

6 Legado e Considerações Finais


Comemorando seu 37º aniversário em 2016, a revolução Sandinista pôs
fim, em 1979, a uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina. O movi-
mento contribuiu para o desaparecimento de um poder regional somozista que
possuía forte ingerência em outras ditaduras da América Central, além de pôr
em evidência as crises pelas quais passavam tais ditaduras (FIGUEROA, 2005).
De acordo com Figueroa (2005), a Revolução Sandinista expressou que a causa
profunda da maré revolucionária regional foi o esgotamento e a saturação de uma
forma de governo – a ditadura militar –, atrelado ao esgotamento de uma forma
de acumulação – o latifúndio agroexportador (FIGUEROA, 2005).
O voto do povo nicaraguense, em 1990, não foi, portanto, uma manifes-
tação diretamente contra a Frente Sandinista de Libertação Nacional, mas contra
a continuidade de uma guerra demasiadamente violenta entre os sandinistas e sua
oposição. Mesmo que o socialismo não tenha sido devidamente implementadona
Nicarágua, a Revolução e o triunfo sandinista marcaram a transição de uma dita-
dura corrupta e sanguinária para a instauração de um regime democrático, com
políticas sociais e de gênero, havendo uma incorporação massiva de mulheres ao
ensino fundamental e médio. Além disso, a revolução inseriu na sociedade um senso
de democracia e de justiça social, criou instituições duradouras, modificando não

67
REVISTA PERSPECTIVA

só o exército como também a polícia, a propriedade de terras rurais e as políticas


sociais, a exemplo da campanha nacional de alfabetização.

The Sandinist Revolution

ABSTRACT: The Sandinist movement in Nicaragua wasthe end of popular


struggles against successive and violent dictatorships that made up Central
American. Itstrajectory began with the resistance of the combatants led by
Augusto César Sandino, in the end of 1920s. This article is divided, then,
in five main parts. The first one is intended to contextualize the Nicaraguan
scenario before the revolution; the second discusses the following decades,
after César Sandino’s death and the establishment of the Somoza dynasty;
the third part explains how, even after his death, Sandino’s struggle served
as inspiration for the uprising by an opposition movement, the Sandinist
National Liberation Front. The fourth and the fifth parts deal, respectively,
with the Sandinist Revolution itself - and how, in 1979, after years of
confrontation, the Sandinist movement defeated the dictatorial regime –
and its legacy, from a historical trajectory of the movement to its triumph.
KEYWORDS: Nicaragua;Sandinist Revolution;Sandinist National Libe-
ration Front (SNLF);Somoza dynasty

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A Revolução Iraniana: Rupturas e
Continuidades na Política Externa do Irã

Murillo Müller do Espirito Santo


Tiago Oliveira Baldasso*

RESUMO: O presente artigo visa à análise da política externa iraniana no período


anterior e posterior à revolução de 1979. Nesse sentido, serão analisadas, por meio
de revisão bibliográfica de obras que abarcam o tema, as relações internacionais
do Irã com os países de seu entorno regional e com as grandes potências, Estados
Unidos e União Soviética, bem como os impactos da revolução islâmica no sistema
internacional. Por fim, serão destacadas as linhas de rupturas e de continuidades da
política externa do país ao longo do período.
PALAVRAS-CHAVE: Irã; Guerra Fria; Política Externa; Revolução.

* Graduandos em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A Revolução Iraniana: Rupturas e Continuidades na Política Externa do Irã

1 Introdução

Ao longo do século XX, o Irã foi considerado um importante ator regional


na Ásia, sendo peça chave na condução das políticas das grandes potências para o
Oriente Médio e no “tabuleiro de xadrez” da Guerra Fria. Se entre as décadas de
1940 e1970 as reformas socioeconômicas e ocidentalizantes promovidas pelo Xá Reza
Pahlavi garantiram aos Estados Unidos grande influência sobre o país, a Revolução
Iraniana de 1979, por sua vez, transformou o papel do Irã no cenário internacional,
emergindo como um novo poder desafiante, independente e nãoalinhado.
A revolução iraniana foi uma revolução de massas, dirigida, no entanto,
por uma elite clerical que se empenhou em criar uma teocracia. Além disso, foi
a primeira revolução a ser televisionada para milhões de espectadores. O levante
iraniano, portanto, pode ser caracterizado como uma revolução de independência
e de defesa da identidade nacional frente ao processo globalizador promovido pelas
grandes potências, que tende a corroer as fronteiras e a identidade nacional. A
insurreição liderada pelo Aiatolá Khomeini provocou uma grave crise nas adminis-
trações Carter (1977-1981) e Reagan (1981-1989), nos Estados Unidos, abrindo
uma rachadura no cerco estadunidense ao sul da União Soviética; para o Kremlin,
por sua vez, demonstrou a fragilidade na teoria leninista-marxista para explicar as
revoluções no Terceiro Mundo, contribuindo para percepções soviéticas quanto ao
desafio islâmico. A revolução iraniana, portanto, introduziu uma novacontenda ao
sistema bipolar vigente até então. Regionalmente, a nova República Islâmica afetou
os demais países, rompendo com a frágil ordem local e estremecendo a emergente
aliança de forças moderadas no Oriente Médio.
Destarte, o presente trabalho busca a compreensão dos determinantes que
conduziram a política externa do Irã em dois períodos distintos, antes e depois da
Revolução islâmica e clerical de 1979, bem como analisar as mudanças promovidas
pela quebra do regime e o seu impacto no sistema internacional. Nesse sentido,
a primeira seção trata da política externa do Xá Reza Pahlavi e seu alinhamento
aos Estados Unidos da América, desde 1954, com a queda do primeiro-ministro
Mossadegh, até 1979; já a segunda descreve as diretrizes da política externa do
Irã revolucionário durante a década de 1980, período de afirmação da revolução
e posterior reorientação na política externa. Por fim, a terceira seção busca traçar

71
REVISTA PERSPECTIVA

os principais pontos de ruptura e de continuidade da política internacional em


comparação entre os dois períodos.

2 A Política Externa de Reza Pahlavi

Para melhor compreensão da política externa iraniana, é necessário ter em


mente alguns constrangimentos geográficos e históricos dessa nação, os quais
impuseram durante muito tempo certos padrões de atuação, perpassando diferentes
períodos e governos.
A geografia do Irã é um desses fatores. Situado em um território montanhoso
e que durante séculos serviu de passagem entre o Oriente Médio e a Ásia Central,
a geografia iraniana ajuda a delinear a política externa do país, cujo “cerco” por
outros Estados e a localização estratégica entre o Mar Cáspio e os Golfos Pérsico
e de Omã contribuem em certa medida para que a política externa do país possua
historicamente um viés “iranocêntrico”, havendo uma espécie de percepção cons-
tante de “cerco”,de uma ameaça de influência externa, confirmada pelos inúmeros
períodos em que o Estado iraniano esteve sob jugo de potências externas à região,
como a Rússia, o Reino Unido e os Estados Unidos da América (EHTESHAMI,
2002, p.284). A geopolítica do petróleo reforça essa tese, pois o Irã encontra-se
banhado ao sul pelo Golfo Pérsico,por onde escoa boa parte do petróleo mundial
- sendo a produção de petróleo a espinha dorsal da economia iraniana.
Para o período de nossa análise, é importante ressaltar também os antecedentes
históricos relevantes para entender as relações internacionais do Irã. Por quase 150
anos (1800-1940 aproximadamente) o país esteve sob dominação ou influência de
potências extrangeiras. Durante o século XIX, o Irã envolveu-se em conflitos com
a Rússia, sofrendo perdas territoriais e eventualmente sendo ocupado pelo país no
início do Século XX; depois, com a Primeira Guerra Mundial, foi ocupado pelo
Reino Unido; e posteriormente, durante o governo do Xá Reza Pahlavi, entrou
na esfera de influência norte-americana, sofrendo um processo de ocidentalização.
Todos esses períodos contribuíram para que a política externa do Irã no século
XX se desenhasse cada vez mais na direção do bloqueio de influências externas,
da independência política e da autossuficiência econômica, conceitos que seriam

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A Revolução Iraniana: Rupturas e Continuidades na Política Externa do Irã

motes do Movimento Revolucionário de 1979 e que foram diretrizes marcantes


da política externa a partir de então (EHTESHAMI, 2002, p.285).
Como ressalta Ehteshami (2002, p. 285, tradução nossa),
Para a elite iraniana, pré e pós-revolução, poder econômico e autossufici-
ência em termos econômicos foram vistos como os pré-requisitos para a
independência política e para a influência regional.

Nesse sentido, destaca-se outro fator importante para a caracterização de


um padrão de política externa do Irã: a percepção histórica da elite iraniana de seu
país como um ator central na região, consequência do “iranocentrismo” citado.
Durante o governo do Xá Reza Pahlavi, esse viés é nítido, tendo o Irã atuado como
um bastião ocidental na segurança da região e buscado exercer preponderância
militar na zona do Golfo. Com a revolução iraniana, como salienta Ehteshami
(2002), esse papel de ator central regional ganha um caráter também religioso ao
colocar o Estado como baluarte do Islamismo xiita, afetando suas relações com os
Estados vizinhos.
O Irã da Dinastia Pahlavi, composta pelos governos de Reza Xá (1925-
1941) e de seu filho Mohammad Reza Xá (1941-1979), foi essencialmente um
período em que o Irã esteve sob influência direta de potências extrarregionais: o
Reino Unido e os Estados Unidos da América.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o Irã foi invadido pela União Soviética e
pelo Reino Unido, sob o pretexto de garantir combustíveis e linhas de suprimentos
vitais aos aliados, uma vez que o Irã havia se declarado neutro no conflito. Com a
Conferência de Teerã, em 1943, ficou estabelecida a independência do Irã e foram
definidas suas fronteiras. No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, cresceu
no país o movimento do Fronte Nacional, grupo de tendência democrata-liberal
e nacionalista que rivalizava com o poder do Xá.
Em 1951, foi eleito primeiro ministro do Irã o líder desse movimento,
Mohammed Mossadegh, político progressista e nacionalista, cuja principal medida
foi a nacionalização da produção de petróleo do país, o que o tornou extremamente
popular. Os principais interesses afetados foram os da companhia britânica Anglo-
-Persian Oil Company1, que explorava petróleo no país desde o início do século

1 A atual British Petroleum.

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REVISTA PERSPECTIVA

e cuja propriedade fora nacionalizada. Outras companhias de petróleo também


foram expulsas do país, gerando uma crise diplomática com o Reino Unido e
também com os EUA.
Dois anos após o incidente, Mossadegh foi deposto por um golpe orques-
trado pelos serviços secretos britânico e norte-americano, os quais juntaram forças
para reconduzir o Xá Reza Pahlavi ao poder. Após o golpe contra o governo de
Mossadegh em 1953, o poder ditatorial do Xá foi ampliado e iniciou-se um
período de acelerada modernização e ocidentalização do país, de caráter secular
e autoritário. A consolidação do Xá no poder ecoou na política externa na forma
de um relacionamento controverso e estreito com os EUA. Gozando de grandes
influxos de recursos advindos de um melhor ajuste das rendas do petróleo (mas
ainda beneficiando as companhias estrangeiras), o Xá pode operar uma série de
reformas.
Essa série de reformas ficou conhecida como a “Revolução Branca”. Nota-
damente a partir de 1963 e até 1978, esse processo visava: à secularização e ociden-
talização do país; à modernização da economia como forma de fazer frente ao
comunismo; e à eliminação das classes opositoras políticas. Grandes investimentos
em educação e saúde foram feitos, bem como uma reforma agrária, nacionaliza-
ções de terras e empresas e medidas para amenizar as relações de classe no setor
industrial. Foram feitas também diversas obras de infraestrutura e o país avançou
no processo de industrialização.
Esse processo sofreu grandes críticas e ferrenha oposição de setores clericais,
ligados à posse de terras e que tiveram seu poder político diminuído no período.
Desse setor surge a base política de contestação que resultaria na Revolução de 1979.
No que tange às relações regionais, o regime do Xá representou uma ligeira
fricção das relações entre o Irã e os demais países árabes, uma das razões seria o
reconhecimento do Estado de Israel em 1960 por parte de Teerã, consequência do
alinhamento aos norte-americanos. O fortalecimento militar do país, bem como a
participação ativa em fóruns como a OPEC, seriam indícios, segundo Ehteshami
(1995), de uma política de Estado expansionista, lastreada na política de “regional
policeman” da Doutrina Nixon/Kissinger. Esse armamento do país também entra

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A Revolução Iraniana: Rupturas e Continuidades na Política Externa do Irã

no contexto da crescente importância do Golfo Pérsico e do petróleo na década


de 1970, e viu paralelos na Arábia Saudita e no Iraque.
No entanto, a relação primordial da política externa iraniana no período
que vai de 1953 até a Revolução de 1979 se deu com os Estados Unidos. Em
troca de um suprimento contínuo de hidrocarbonetos, os EUA providenciaram
cerca de 1 bilhão de dólares em ajuda externa (GASIOROWSKI, 2004) e forne-
ceram equipamentos e treinamento militar ao Irã a ponto de tornar o regime do
Xá o mais bem armado do Oriente Médio (EHTESHAMI, 1995, p. 289). O Xá
buscou criar um vultuoso exército para o país, transformando-o em um dos cinco
maiores em termos de armas convencionais do mundo. Operando um programa
de ocidentalização e modernização da economia, ainda que de forma autoritária, o
Irã era considerado pelos Estados Unidos, assim como o Brasil na América Latina,
um aliado regional no combate à expansão do comunismo e da União Soviética.

3 As Relações Internacionais da República Islâmica

Os conceitos chave da política externa iraniana pós-revolução são elucidados


na nova Constituição nacional, implementada já em 1979.O Artigo 11 se baseia
na crença universal do Islã, sem reconhecimento de divisões políticas, pois
[...] todos os muçulmanos são uma só nação e o governo da república Islâmi-
ca do Irã é responsável [...] que se façam esforços contínuos para conseguir
a unidade política econômica e cultural do mundo do Islã (IRÃ, 1979).

Já o Artigo 152 prega pela liberdade e não alinhamento do país, afirmando:


A política Externa da República do Irã baseia-se [...] na preservação da
independência em todos os aspectos e na integridade territorial do país,
defendendo os direitos de todos os muçulmanos, o não alinhamento com
as potências dominantes e relações mútuas de paz com países não hostis
(IRÃ, 1979).

O Artigo 153 segue no mesmo sentido, afirmando que “[n]ão é permi-


tido concluir qualquer contrato que envolva a dominação estrangeira dos recursos
naturais e econômicos, a cultura, o exército e outros domínios da nação” (IRÃ,
1979). Em seguida, o Artigo 154 prega pela não intervenção, concluindo que o
Irã

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REVISTA PERSPECTIVA

[...] reconhece a independência, a liberdade e a prática da justiça como


direitos universais de todos os povos do mundo [...] ao mesmo tempo em
que se abstém de qualquer interferência nos assuntos internos de outras
nações [...] (IRÃ, 1979).

Segundo Ehteshami e Zweiri(2008), podemos enumerar quatro pilares


para a política externa iraniana, de acordo com a Constituição de 1979: (i) rejeição
de todas as formas de dominação estrangeira; (ii) preservação da independência
e integridade territorial do país; (iii) defesa dos direitos de todos os muçulmanos
sem alinhamento às potências hegemônicas; e (iv) manutenção do relacionamento
com países não beligerantes. Esses princípios têm guiado a política externa do
país desde a Revolução e sob sua luz fica claraa compreensão do apoio dado pelo
regime aos movimentos de resistência muçulmana pelo mundo e ao conceito de
exportação da revolução, pregado por muitos líderes durante os anos 1980.
Era claro tanto para Khomeini quanto para seus seguidores que a revo-
lução não teria sentido se fosse limitada somente a um país. O Irã, portanto, seria
a “vanguarda”, levando uma mensagem carregada de um poderoso zelo religioso
messiânico, com o intuito de contagiar os demais países da região, mas afirmando
que isso se daria pelo exemplo e não pela força (ZAHAR, 1991, p. 167-8). A
exportação da revolução teria dois propósitos bem definidos: (i) desestabilizar
a situação política no Oriente Médio e criar um ambiente hostil aos interesses
Ocidentais; e (ii) o Irã, como um Estado islâmico, xiita e revolucionário, estaria,
primeiramente, interessado na libertação das oprimidas população xiitas nos demais
países da região, em especial no Golfo Pérsico, Líbano e Iraque (PHILIP, 1994, p.
121).
Os meios pelos quais a República Islâmica levaria o seu exemplo aos
demais países da região, segundo León Rodríguez Zahar(1991), seriam seis: (i)
organizações multilaterais, onde o governo iraniano proporia a criação de novos
organismos, uma vez que os já existentes faziam parte de um sistema rechaçado
pelo Irã, como a criação de uma Corte Internacional de Justiça Islâmica e um
Mercado Comum Islâmico; (ii) a propaganda, visto que a difusão da nova imagem
do país no exterior foi priorizada, com o intuito de atrair simpatias.Nesse âmbito,
o rádio desempenhou um papel de destaque; (iii) peregrinações a lugares santos,
principalmente na Arábia Saudita, onde Khomeini procurou inflamar peregrinos

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A Revolução Iraniana: Rupturas e Continuidades na Política Externa do Irã

a promover manifestações anti-imperialistas, anti-israelitas e antiocidentais; (iv) a


subversão, apesar do princípio de não-intervenção interna expresso na Constituição
e nos discursos oficial.Não é possível identificar até que ponto as manifestações
internas nos países da região teriam sido fruto de processos espontâneos; apesar
disso o governo não ocultou seu apoio direto aos xiitas no Líbano, no Bahrein, no
Iraque e no Afeganistão; (v) o terrorismo, apesar de não haver provas concretas de
que o Irã tenha fomentado esse tipo de prática com o intuito de coagir seus vizinhos
e grandes potências; e (vi) a guerra, pois para Khomeini trata-se do conceito de
autodefesa, referindo-se diretamente à defesa do Islã e de sua população oprimida
por regimes tirânicos. O objetivo de Khomeini, por meio destes instrumentos,
era que seu movimento se universalizasse. Seu apelo, obviamente, ganhou maior
influência nas populações xiitas dos países vizinhos onde esse grupo era maioria,
porém subjugado a uma elite sunita, como no Bahrein, com 72%, no Iraque,
60%, no Catar, 80% e no Líbano, com 30% de população xiita (ZAHAR, 1991,
p. 169-171).
Entre os anos de 1980 e 1988, o Irã esteve em guerra com o Iraque. Durante
esse período, o regime de Khomeini esteve isolado regionalmente, em parte devido
à linha dos países árabes moderados em favor do Iraque e em parte resultado do
discurso radical adotado por Teerã em fóruns internacionais. Ao longo da década,
o Irã somente pode contar com a Síria como seu aliado, além de Iêmen do Sul
e da Líbia como estados amigos. Com seus vizinhos não árabes, principalmente
Paquistão e Turquia, Teerã procurou manter relações de cordialidade. Entretanto,
as relações com Iraque, Kuwait, Arábia Saudita, Sudão, Egito, Israel, Jordânia,
Marrocos, Tunísia, Iêmen do Norte e Afeganistão eram conflituosas (EHTESHAMI,
2002, p. 297).
Após o triunfo da Revolução Iraniana, os países do Golfo Pérsico assim
como o Iraque, enxergavam uma dupla ameaça no novo regime iraniano: ideológica
e militar. Entendiam que seriam os candidatos ideais para a expansão da revolução,
uma vez que eram Estados monárquicos e possuíam contingentes significativos de
população xiita marginalizada e discriminada, dado que os regimes nesses países
são sunitas, como no Iraque. Nesse sentido, os países do Golfo procuraram alinhar
suas políticas, criando o Conselho de Cooperação do Golfo como mecanismo de

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REVISTA PERSPECTIVA

defesa, no qual participavam os seis países árabes da região – Bahrein, Kuwait, Catar,
Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Omã. Entretanto, Teerã procurou exportar
a revolução para esses países por meio do exemplo, e não pelaforça. Primeiramente,
devido ao conflito com o Iraque, onde o governo iraniano depositava sua atenção.
E, também, devido à proteção que esses países recebiam do Ocidente. Além das
tensões pela questão das populações xiitas, o que mais desagradava a Teerã era o
apoio financeiro e logístico fornecido por esses países ao Iraque durante o conflito
(ZAHAR, 1991, p. 190-195).
A visão de Khomeini no que tange a política internacional de seu regime
islâmico foi consistente. Segundo ele, os Estados seriam feudos de déspotas corruptos
e opressores, considerando que a opressão interna contra as populações nacionais
se reproduz entre os Estados: os tiranos internacionais, ou seja, as superpotências
(ZAHAR, 1991, p. 166-167). Nesse sentido, outro aspecto fundamental da política
externa iraniana pós-1979 é o não alinhamento. De uma perspectiva islâmica, isso
somente seria possível se uma pessoa for subserviente apenas a Deus e a nenhum
outro poder na Terra. Do ponto de vista iraniano, o não alinhamento era moti-
vado por meio de uma política “nem Leste nem Oeste”, promovendo autonomia
e capacidade política e econômica independente (PHILIP, 1994, p. 123). Em
mensagem aos peregrinos à Meca no ano de 1980, Khomeini pregava:

Neutral countries, I call upon you to witness that America plans to destroy
us, all of us. Come to your senses and help us achieve our common goal.
We have turned our backs on the East and the West, on the Soviet Union
and America, in order to run our country ourselves. Do we therefore deserve
to be attacked by the East and the West? The position we have attained
is an historical exception, given the present conditions in the world, but
our goal will certainly not be lost if we are to die, martyred and defeated
(WESTAD, 2007, p. 296).

As relações bilaterais com os Estados Unidos durante os anos 1980 foram


marcadas por divergências. Para Khomeini, a confrontação com os norte-americanos
era a confirmação de que seu caminho revolucionário e religioso estava correto
(WESTAD, 2007, p. 296). Apesar da proclamada neutralidade perante o conflito
entre Irã e Iraque, os norte-americanos não eram indiferentes. Sua influência foi
promovida, ao menos indiretamente, por meio de terceiros países mais envolvidos

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A Revolução Iraniana: Rupturas e Continuidades na Política Externa do Irã

no conflito, como os Estados do Golfo, envio de armamentos e por meio de seu


poderio econômico. Ainda durante o governo Jimmy Carter, os Estados Unidos
encaminharam aviões de controle e alerta antecipado para a Arábia Saudita, após
o pedido de Riad, mediante temor de uma agressão iraniana. Em contrapartida, o
governo saudita tratou de manter o abastecimento petrolífero aos norte-americanos,
a partir da tendência de queda das exportações de Irã e Iraque. Horas antes de
Reagan assumir a Casa Branca, em janeiro de 1981, os reféns presos na embai-
xada estadunidense em Teerã foram liberados. Esse fato parecia indicar que nem
iranianos nem soviéticos tinham intenções sobre o Golfo Pérsico. A presença da
Rapid Deploment Force norte-americana no Oceano Índico era garantia suficiente
de segurança para as monarquias do Golfo.Além disso, a Arábia Saudita e seus
vizinhos tranquilizaram os norte-americanos e europeus ao garantir o suprimento de
petróleo para o Ocidente durante o conflito. Em geral, a política de Reagan seguiu
as mesmas linhas de Carter: a possibilidade de intervenção no Irã foi deixada para
último plano, a presença militar no seu entorno estratégico, entretanto, tinha a
intenção de intimidar os revolucionários e de garantir a segurança das monarquias
do Golfo (ZAHAR, 1991 p. 196-197).
As conflituosas relações entre Washington e Teerã não significaram uma
boa relação com Moscou, e o Irã nem considerava essa possibilidade. Os iranianos
guardam um ressentimento histórico frente aos russos no que tange as espoliações
territoriais e ocupações do século XIX, princípios arraigados na Constituição.
Apesar do papel preponderante do partido comunista do Irã, o Tudeh, no processo
revolucionário, seu relacionamento com o governo islâmico começou a se dete-
riorar no final de 1982, quando o Irã decidiu levar a guerra com o Iraque adiante
contra petição do Kremlin. No ano seguinte, após o vazamento de documentos que
comprovavam a ligação entre o Tudeh e a URSS, líderes do partido foram presos
e 18 diplomatas soviéticos expulsos do país. As relações bilaterais alcançaram seu
mais baixo nível até então. Outros pontos de tensão entre Teerã e Moscou seriam
a questão do Afeganistão, onde o regime iraniano apoiou grupos armados contra
as forças soviéticas no país, e a venda de armamento do Kremlin para Bagdá, que
teria como base o Tratado de Amizade entre os dois países assinado em 1972
(ZAHAR, 1991, p. 200-204).

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REVISTA PERSPECTIVA

Apesar da política “nem Leste nem Oeste”, o regime islâmico em Teerã


demonstrou em algumas ocasiões um caráter pragmático, movido por necessidades
econômicas e estratégicas, superando a aversão às grandes potências. Nesse sentido,
Anoushiravan Ehteshami(2002, p. 299-300) afirma que, a partir de junho 1988,
Teerã passou por uma fase de reorientação em sua política externa, cujo maior marco
foi a aceitação da resolução 598 do Conselho de Segurança das Nações Unidas,
pois promovia o fim das hostilidades com o Iraque. Dessa forma, o Irã poderia
normalizar seu relacionamento com os demais vizinhos da região. Além disso, o
cessar-fogo removeu os obstáculos para uma maior aproximação entre Moscou e
Teerã, processo facilitado pela retirada soviética do Afeganistão. Ao longo de 1989,
visitas diplomáticas foram feitas em ambos os países, resultando em um acordo
multibilionário de comércio e cooperação militar. Essa aproximação pavimentou
a relação entre Rússia e Irã após o desmantelamento da União Soviética.
Em clara mostra do pragmatismo em sua política exterior, o Irã se apro-
ximou do “Grande Satã” para reabastecer seu arsenal durante o conflito com o
Iraque. Afinal, o equipamento bélico iraniano era puramente norte-americano,
herdado do regime anterior, e, nesse sentido, necessitava de repostos, também,
norte-americanos. Para os Estados Unidos, significou o fim de um jogo duplo na
Guerra do Golfo, pois até então parecia sólido o apoio norte-americano ao Iraque
no conflito2. O escândalo, que ficou conhecido como “Iran-Gate”, não se tratou
de uma simples troca de reféns por armamentos, pois, apesar da troca de regime,
o valor estratégico iraniano para os Estados Unidos não havia mudado. As pressões
internas norte-americanas devidas ao escândalo, bem como as pressões externas
expressas pelos países árabes aliados dos Estados Unidos obrigaram Washington e
Teerã a voltarema suas posições antagônicas (RAMAZANI, 2008, p. 8; ZAHAR,
1991, p. 197-198).
Apesar do zelo e do desafio revolucionário, por meio do discurso de não
alinhamento às potências hegemônicas, o regime iraniano pós-1979 pode ser
caracterizado como um ator racional e pragmático na condução de sua política
externa. O período final da década de 1980 e a subsequente reorientação na política

2 O comércio entre Iraque e Estados Unidos cresceu em um bilhão de dólares entre 1981 e 1984 (ZAHAR,
1991, p. 197).

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A Revolução Iraniana: Rupturas e Continuidades na Política Externa do Irã

internacional de Teerã podem ser atrelados à percepção dos líderes iranianos


em um ambiente de transformação regional e global com o fim da Guerra Fria
(EHTESHAMI, 2002, p. 283-284).

4 Rupsturas e Continuidades
A partir da análise das políticas externas da monarquia Pahlavi e do regime
após a Revolução Islâmica, fica evidente a inflexão no comportamento adotado
pelo país no cenário internacional. Se sob o governo do Xá as relações externas do
Irã eram pautadas por um alinhamento com os países Ocidentais e principalmente
com os Estados Unidos, pelo respeito àsorganizações internacionais e ao direito
internacional, assim como pelo estabelecimento de relações cordiais com todos os
países, independentemente do seu sistema econômico e social, sob o regime islâmico
a política externa tinha como princípios básicos o não-alinhamento e a manutenção
da independência e soberania nacional. Philip (1994), aponta na direção de uma
condução das relações internacionais do Irã centralizada nos governos, em que a
opinião popular possui mínima influência na tomada de decisões que os afetam
diretamente. Entretanto, a Revolução devolveu à nação o seu cerne religioso que
havia se perdido durante o período monárquico, e isso, por sua vez, promoveu a
saída do materialismo como principal motor da formulação política. Nesse sentido,
apesar das claras rupturas nos princípios de condução do país entre os dois regimes,
podemos traçar algumas linhas de continuidade entre eles.
As relações iranianas com seu entorno regional nos períodos anterior e
posterior à revolução mantêm certo grau de congruência nos seus objetivos, diferindo
somente no método. Ambos os regimes compartilhavam uma mútua percepção do
papel que o Irã deveria desempenhar no Golfo, qual seja, sua supremacia perante
os demais Estados. Por um lado, o Xá procurou fortalecer as forças armadas do
país, transformando-as numa das cinco maiores forças do mundo em termos
convencionais, com o intuito de criar ordem e liderança regional em seu entorno;
por outro, Khomeini procurou concentrar seus esforços na exportação da revolução
islâmica a fim de fortalecer sua posição como liderança espiritual e ideológica na
região.Nesse sentido, a expansão lógica e natural do regime seria o Iraque, que
reunia algumas condições favoráveis para a realização projeto, uma vez que possuía

81
REVISTA PERSPECTIVA

a maior população xiita fora do Irã, continuidade geográfica e uma ampla interação
histórica e cultural com o país. Entretanto, com o reconhecimento da Resolução
598, o objetivo revisionista de remodelar o Golfo Pérsico com base nas diretrizes
islâmicas é completamente revisto para o reequilíbrio regional estabelecido pelo
Xá ao longo dos anos 1970, a partir da normalização do relacionamento de Teerã
com os demais países do Oriente Médio (PHILIP, 1994, p. 126; ZAHAR, 1991,
p. 174).
O relacionamento iraniano com as superpotências apresentou grandes traços
de ruptura entre a política externa anterior e posterior a 1979. Nesse sentido, para
os Estados Unidos a revolução islâmica demonstrou que o comunismo não era
a única ideologia a confrontar o poder norte-americano; além disso, ela cortou a
antiga aliança entre a monarquia de Pahlavi e os EUA, sustentada desde a queda
de Mossadegh em 1954 - Teerã promovia, agora, posições anti-imperialistas. Para
os soviéticos, a vitória de Khomeini evidenciou que a teoria marxista para as revo-
luções do Terceiro Mundo não bastaria para todos os levantes, e a reação clerical
seria uma alternativa à teoria do imperialismo predatório. Além disso, a intenção
do aiatolá, por meio de seu Islã integrista, de espraiar a revolução, causou temores
em Moscou, pois a religiosidade intrínseca ao movimento iraniano apresentava
uma nova dimensão às ideologias esquerdistas e anti-imperialistas difundidas até
então no Terceiro Mundo (WESTAD, 2007, p. 299; PHILIP, 1994, p. 118).
O relacionamento bilateral com os Estados Unidos foi, sem dúvida, uma
grande inflexão entre os dois regimes. Se durante o regime Pahlavi o Irã foi conver-
tido em um mercado cativo às exportações militares estadunidenses e as reformas
socioeconômicas do Xá eram baseadas no american way of life, privilegiando o
consumo de massas, o aiatolá Khomeini via nos norte-americanos um de seus três
maiores inimigos (compunham ainda a lista Reza Pahlavi e Saddam Hussein).

5 Considerações finais
Analisando os principais eixos da política externa do Irã nos períodos pré
e pós-Revolução Islâmica, pode-se verificar que os constrangimentos geográficos
da região e o papel geopolítico do petróleo se mantiveram como elementos

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A Revolução Iraniana: Rupturas e Continuidades na Política Externa do Irã

influenciadores, bem como a tendência progressiva do país a evitar ingerências


externas. No entanto, a Revolução marcou um ponto de inflexão ao remover
os Estados Unidos como parceiro primordial do país e inseri-lo no Sistema
Internacional como uma potência regional contestadora e anti-imperialista. Além
disso, adicionou-se todo um conteúdo religioso às relações internacionais do país,
que passou a buscar a liderança do secto xiita do Islã.

Iranian Revolution: Ruptures and Continuities in Iran’s Foreign


Policy

ABSTRACT: This article aims to analyze Iranian foreign policy in the


period before and after the 1979 Revolution. In this sense, , through a
review of the literature, the international relations of Iran with countries of
its regional environment and with the great powers, the United States and
the Soviet Union,will be examined, as well as the impacts of the Islamic
revolution on the international system. Finally, the lines of rupture and
continuity of the country’s foreign policy over the periodare highlighted.
KEYWORDS: Cold War; Foreign Policy; Iran; Revolution.

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84
A Revolução Baath no Iraque e na Síria: o que mudou?

Daniela Zapata de Oliveira*

RESUMO: O presente artigo se propõe a estudar as revoluções do


Partido Baath nos Estados do Iraque e da Síria nos anos de 1968 e 1963
respectivamente, visto que apresentam a ideologia como ponto de inflexão
para as formas de governos atuantes na maior parte do Oriente Médio.
A nova corrente, porém, só consegue expressiva popularidade nesses dois
países. Analisar-se-á se as revoluções em questão seguiram os três princípios
do Baathismo.. Para o estudo, divide-se o artigo em quatro partes:a
introdução, com os conceitos baathista, duas partes de desenvolvimento,
uma para cada um dos Estados, e a conclusão.
PALAVRAS-CHAVE: Baath; Iraque; Síria; Revolução; Oriente Médio.

* Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
REVISTA PERSPECTIVA

1 Introdução

A ideologia baathista foi criada por volta do início da década de 1940 na


Síria, por Michael Aflaq, e tinha como objetivos principais a unidade, a liberdade e
o socialismo. Ela surge derivada dos movimentos nacionalistas do final da Primeira
Guerra Mundial em conjunto com as correntes secularistas que ganhavam cada
vez mais força na região e na luta contra a colonização europeia (NAPOLEONI,
2015; AFLAQ, 1945).O Baathismo se posicionava contra a tendência de alguns
países árabes de utilizar as regras do Islã nas políticas governamentais dos Estados.
Ele concorria,então,com o naasserismo egípcio, vistoque seus ideais seguiam a
mesma linha com diferenças pontuais (VISENTINI, 2014).
Tanto o Baathismo quanto o NasserismopropõemumEstado nacionalista,
modernizador e pan-arabista, além de elementos socialistas, porém a diferença
se dá pelo fato de que o Baathismo reconhece o Estado como secular, em queas
crenças e leis religiosas devem permanecer separadasde suasleis e ideais.O Naasse-
rismo reconhece a presença do islã no Estado, porém não persegue nem massacra
segmentos minoritários ou outras religiões, ou seja, o Estado não é laico, mas há
liberdade de expressão religiosa (GHAREEB, 2004).
No Oriente Médio, o Baathismo teve núcleos em todos os Estados árabes,
como uma ideologia pan-arabista, porém teve apoio mais expressivo principalmente
na Síria e no Iraque. Nos outros países, não conseguiu superar o Naasserismo
ou mesmo o Islamismo. Foi nesses dois Estados que conseguiu implementar sua
ideologia por meio darevolução. As duas revoluções ocorreramna década de 1960,
e suas linhas foram completamente diferentes entre si, tornando-as rivais uma da
outra (VISENTINI, 2014).
A dissidência se deu em 1966, e aconteceu principalmente por questões
ideológicas. No Iraque,seguia linha unipartidarista e com postura centralizadora,
enquanto na Síria era parte de uma grande frente e aliada àURSS. A ideologia
seguida nas duas correntes, porém, era a mesma, o que tornava a rivalidade ainda
maior, visto que cada um dos segmentos defendia que a sua maneira de interpretação
era a mais correta (MATTHEWS, 1993; MOHAMMED, 2016).

86
A Revolução Baath no Iraque e na Síria: o que mudou?

Partindo disso, é interessante compreendercomo as duas revoluções baathistas


se caracterizam e como elas atuaram em cada um dos dois países onde teve maior
expressão e conseguiu alcançaro poder. Este artigo se divide em quatro partes
contando com esta introdução. A segunda parte analisa a Revolução Baath no
Iraque, tratando da conjuntura no qual o Partido Baath encontra espaço para sua
atuação no país e, após o seu sucesso, de como a revolução mudou o contexto
iraquiano comparando ao que se propunha a mudar. Além disso, procura entender
quais foram os seus motivadores e os pontos de inflexão para a sociedade iraquiana.
Partindo do ponto de que uma revolução deve ter um elemento catalisador para
que ocorra e de que deve gerar mudanças sistemáticas para a sociedade onde é
aplicada, os mesmos fatores serão analisados na terceira parte deste artigo, porém
levando em consideração a revolução ocorrida na Síria. Na quarta seção, realizar-se-
-ãoas considerações finais a respeito dessas duas revoluções seguindo praticamente
a mesma ideologia, porém com sociedades e resultados completamente distintos.

2 Iraque

Em 1963, o Partido Baathchega ao poder pela primeira vez. Com um


golpe arquitetado em conjunto com os naasseristas iraquianos, o partido depõe
o brigadeiro Qasim da presidência.Este, por sua vez havia deposto a monarquia
Hashemita anteriormente, liderando o movimento em conjunto com o coronel
Arif, o qual agora, tirava-lhedo poder. Tanto naasseristas, quanto baathistas, quanto
oficiais do exército compuseram o novo governo.
Em meados de 1963, porém, as tensões começaram a se acirrar entre as
correntes que haviam derrubado Qasim. As divergências derivavam de dentro do
partido Baath, no qual a Guarda Nacional não conseguia alinhar-se ao exército e
as discordâncias políticas internas tanto de cunho nacional quanto internacional
não eram solucionadas. Formava-se então mais um cenário de instabilidade gover-
namental como outros tantos anteriores (TRIPP, 2007).
Em novembro, Arif reuniu todas as unidades do exército em que poderia
confiar e um golpe foi lançado contra a parcela baathista da coalizão, tirando-a do
governo e deixando somente os outros dois parceiros. Agora, o exército, liderado

87
REVISTA PERSPECTIVA

por Arif, e a corrente naasserista governavam o Iraque. A sede da Guarda Nacional


foi ataca, no intuito de fragilizarogoverno baath, e todos os suspeitos de serem
simpatizantes do partido foram presos. Todos os outros partidos políticos foram
banidos e deu-se início a uma nova fase de repressão política e de regime militar
ditatorial (SIMONS, 1994).“Isso demostrou que a chave para as forças armadas
ainda era a chave para o poder, independentemente das formas de organização
civil que haviam emergido nos dois regimes anteriores” (TRIPP, 2007, p. 169,
tradução nossa). Com esse cenário, só restava ao partido Baath, tentar dominar
o exército também.

2.1 Contexto do golpe


Após o segundo golpe de 1963, o novo conselho que foi formado conferiu,
em seguida, a liderança para Abdul Salaam Arif.Seu núcleo de governo se completava
com seu irmão Abd ar RahmanArif e seu colega Coronel Said Slaibi. Arifseguiu a
linha socialista e instaurou um programa de governo em que houve nacionalização de
bancos, de seguradoras e de alguns segmentos da indústria de construção e primária.
Essas medidas pouco adiantaram para a resolução dos problemas territoriais com o
povo curdo no norte do país, ou para diminuir as tensões entre baathistas, naasse-
ristas e nãonaasseristas; tampouco resolveu os problemas econômicos iraquianos,
porém, pelo menos para a população, demonstrou que o governo estava agindo
de maneira a tentar encontrar uma solução para as questões nacionais, o que se
mostrou um dos poucos legados deixados pela proposta de união entre Iraque e
Egito (SIMONS, 1994).
As forças naasseristas que apoiaram o golpe esperavam por uma união do
Iraque à República Árabe Unida. Em 1964, medidas foram tomadas para a efetivação
da proposta, iniciando-se inclusive a convergência militar, econômica e política,
porém a união nunca chegou a acontecer(GLOBAL SECURITY, 2011). Em 1965,
o governo rompeu também com os naasseristas e tentou levar ao poder mais civis.
Abd ar RahmanBazzaz foi o primeiro civil a ser ministro desde a monarquia. Ele
tentou acabar com a formação militar do governo, bem como implementar um
plano econômico de cinco anos para incentivar o investimento externo privado.

88
A Revolução Baath no Iraque e na Síria: o que mudou?

A morte de Arif, em 1966, deixa o governo fragilizado. Seu irmão, o general


Major Abd ar RahmanArif assume a liderança do país, nomeadopor oficiais do
governo. Sua falta de personalidade,diferente de seu irmão, o deixou exposto a
esses elementos que o tinham indicado para governar o Iraque, o que deixou o
país ainda mais vulnerável (TRIPP, 2007; SIMONS, 1994).
As questões da região curda, bem como a crise de petróleo com a Síria em
1966-1967, enfraqueceram o governo de Arif. Porém, o que acabou com o apoio
a ele e com seu crédito foi a não intervenção iraquiana quando o exército israe-
lense sobrepujava os exércitos egípcio, sírio e jordaniano e conquistava boa parte
das fronteiras árabes na Guerra dos Seis Dias. Os interesses de uma pequena elite
estavam ali representados, porém a autoridade faltava ao governo de Arif. Nesse
momento,mais um governo começou a cair. Acusações de corrupção deterioraram
ainda mais a situação (MATTHEWS, 1993).
Dois oficiais do exército resolveram agir de forma independentee planejar um
golpe contra o governo de Arif. Em julho de 1968, os coronéis Abd ar RazzaqanNayif
e Ibrahim ad Daudo derrubaram do governo. O partido Baath rapidamente se
aproveitou da falta de organização dos dois oficiais e da sua falta de estabilidade em
manter a posição conquistada e tomou o lugar que Nayif e Daud haviam logrado.
Em poucas semanas, o partido havia manobrado ambos os oficiais e se assentava
pela segunda vez no governo iraquiano,dessa vez para ficar (TRIPP, 2007).
O golpe pelo Baath foi efetuado em 17 de julho orquestrado pelo general
Ahmad Hasan al-Bakr e apoiadopor Michael Aflaq e Saddam Hussein - que mais
tarde seguiria na linha sucessória de Bakr. Em um mês, o cenário político havia
mudado completamente: Bakr se autoproclamou Primeiro Ministro e Chefe de
Estado e levou ao governo a ala mais radical do partido Baath (SIMONS, 1994).

2.2 O governo baath e suas consequências para o Iraque


O governo baath se tornou um governo repressivo e totalitário e se assentou
infringindo o medo em sua população (STEWART, 2015). Apesar desse fato, após
a subida do governo baathista ao poder, o Iraque passou pelo maior período de
estabilidade política de sua história, contrastando fortemente com os anos anteriores,
desde a formação do Estado pelos ingleses (MATTHEWS, 1993).

89
REVISTA PERSPECTIVA

Segundo Tripp (2007),o regime estabelecido em meados de 1968 era teori-


camente baathista, mas, como mais tarde alguns acontecimentos revelariam, isso
não significava que os governantes pudessem ser resumidos ao seu alinhamento
ao partido. Esta era apenas uma de suas faces e influenciava somente de maneira
parcial suas ideias com relação ao Iraque e com relação àmaneira de governar o
país. O fato de que a maioria das figuras principais do novo regime eram mili-
tares do exército também seriamarcante, e muito importante para a disposição e
a estabilização do novo regime.
Com relação ao regime econômico:
O patronato seletivo foi um princípio aplicado à população [...] O governo
de Hasan al-Bakr usou muito da retórica socialista radical, mas na verdade fez
com que todas as diretrizes econômicas fossem voltadas principalmente para
o aumento do controle de Hasan al-Bakr e seus associados. Isso significava
que as principais políticas econômicas do regime tomavam duas formas
principais. Uma era em grande parte de natureza populista. Ela tomou forma
no início de 1969, no cancelamento de toda a compensação por terras con-
fiscadas. Em um só golpe, isso aliviou os beneficiários da redistribuição de
terras do encargo financeiro que a compensação tinha implicado. Também
removeuum item importante de despesas do governo. Além disso, foram
introduzidos subsídios de produtos básicos, bem como serviços sociais e de
assistência e benefícios fiscais limitados, que não deveriam ser plenamente
desenvolvidos até que recursos significativos ficassem disponíveis após o
aumento maciço da renda do petróleo de meados de 1975, mas deram a
impressão de um governo preocupado com o bem-estar econômico do povo
como um todo (TRIPP, 2007, p.197, tradução nossa).

Após 1975, o rendimento do petróleo era realmente vultuoso e o governo


foi rápido em investir a partir desse aumento de recursos. As rendas derivadas desse
aumento foram destinadas ao aumento de segurança pública, a projetos habitacio-
nais populares, a investimentos em saúde e educação. Essas medidas foram sentidas
não só momentaneamente, mas também ao longo dos anos, levando a crer que o
governo estava cumprindo seu papel.
Na verdade, essas medidas beneficiaram não só a população, mas prin-
cipalmente indivíduos empreendedores de quem Saddam gostaria de ter apoio.
Essas medidas, portanto, foram sentidas pela população porque esses indivíduos
estavam prontos para receber os benefícios, que, por sua vez, foram repassados
para a população.Isso levou ao aumento de uma rede de beneficiários de recursos

90
A Revolução Baath no Iraque e na Síria: o que mudou?

do Estado que a Saddam interessava agradar, para sustentar desde já sua futura
subida ao poder:
O baath só pôde permanecer no poder no Iraque através da criação de uma
estrutura de coerção e controle composta por um grupo de cerca de meio
milhão de membros, uma estrutura apertada de quadros e ativistas partidários
e uma organização política que atendia mais ao partido do que ao Estado. A
este respeito, o Partido Baath tem aspirado tornar-se O Estado. Além disso, o
partido penetrou todos os principais setores civis da sociedade iraquiana - os
sindicatos, a função pública, as instituições educacionais e as organizações
profissionais. Mas talvez a chave para a manutenção do poder do baathseja
o exército iraquiano. O primeiro regime baathista, em 1963, falhou após
somente nove meses predominantemente por causa da retirada do apoio
do exército. Assim, a prioridade central do segundo regime baathistae,
particularmente, de Saddam Hussein, desde que se tornou líder em 1979,
foi manter a lealdade dos militares. Isso foi feito por meio de uma mistura
de coerção e incentivo. O suborno era um instrumento - o exército recebia
grandes recursos, tanto em termos de equipamento quanto em termos de
um padrão pessoal de vida. Um incentivo mais positivo era proporcionado
pelas oportunidades para os oficiais militares se tornarem empreendedores
em uma ampla gama de atividades produtivas nos setores público e privado
(MATTHEWS, 1993, p.37, tradução nossa).

O Iraque sob o comando do Baath tornou-se um governo intolerante, tanto


com sua população, que vivia sob uma ditadura sem espaço para questionamento,
quanto na política externa, onde não havia espaço para diálogo com Estados que
não estavam alinhados à sua política. Isso mais tarde viria a se tornar objeto de
pressão internacional, muito embora essa fosse a política que viria a permanecer
ao longo do regime de Hussein (SIMONS, 1994). A concentração de poder sob a
égide de uma só elite transformou a linha do partido de eliminação das diferenças
entre as etnias e crenças em mera ideologia. A ideia, porém, da rejeição do modelo
capitalista seguiu nos princípios do governo, que achou por bem buscar apoio na
URSS como aliada socialista (MATTHEWS, 1993).
O governo baath, ao longo dos anos, transformou a vida da sua população.
Nota-se o aumento da indústria no país, o investimento em setores da saúde e
educação. Porém, o governo baath, principalmente o de Saddam Hussein, além
de repressivo, como todos os outros, levou a população a um incontável número
de guerras regionais por disputa de poder. Conforme a população foi crescendo e
a juventude amadurecendo, essa parte da população só se lembrava da destruição

91
REVISTA PERSPECTIVA

de seu país e do desgaste civil pelo qual foram obrigados a passar em nome da
busca de seu líder por poder. Esse fator foi de grande importância para a perda de
apoio de grande parte da população pelo governo baath, principalmente depois
da Segunda Guerra do Golfo.

3 Síria

A Síria, desde antes da colonização europeia e da formação do Estado sírio,


era uma região onde a religião exercia muita influência na política. A elite notável-
baseava seu status nas posições religiosas que seus membros possuíam no Estado
turco. Com o passar das décadas e o surgimento de novas ideologias, o secularismo,
o nacionalismo e a modernização foram ganhando espaço na sociedade síria. Nesse
contexto, na década de 1940, como afirmado anteriormente, surge o Baathismo na
sociedade síria. Sua atuação na política passa a ocorrer desde 1954, porém somente
em 1963 é que chega ao poder por meio do golpe militar.

3.1 Contexto da tomada de poder


As eleições de 1943, apesar de terem caráter nacionalista, trouxeram de
volta a antiga elite predominante do início do século XX. As famílias de notáveis
estavam mais uma vez monopolizando as decisões centrais. Nos moldes das antigas
formas de governo, o que estava por vir eram mandatos instáveis, com disputas
de poder que durariam até 1970, quando subiriaao poder a família al-Assad, em
conjunto com o Partido Baath,que chegaria ao poder um pouco antes, em 1963
(ERLICH, 2014; MCHUGO, 2015).
Apesar de ter apoio dessa elite de notáveis no parlamento, o presidente Shukri
al-Quwatli temia o poder que o exército poderia obter. Dentro de pouco tempo, a
democracia que havia se instaurado no processo de independência se transformaria
em uma ditadura militar, com inúmeros golpes de Estado e o exército tomando o
poder de forma nunca antes vista na Síria (MCHUGO, 2015).
O primeiro golpe foi contra o próprio Quwatli, em 1949 - apoiadopelos
EUA - levando ao poder o comandante do exército, o Coronel HusniZaim. Quase
cinco meses depois, outro golpe militar foi efetuado, por meio do qual o líder

92
A Revolução Baath no Iraque e na Síria: o que mudou?

desejava instaurar uma assembleia constituinte ao final do ano; porém, uma semana
depois, o último golpe foi dado e o Coronel Adib Shishakli subiu ao poder. Ele
governaria até 1954, em umregime que seria de fato um regime ditatorial extre-
mamente repressivo (ERLICH, 2014).
Shishakli reestruturou o exército de maneira a torná-lo quase cinco vezes
maior do que aquele que o último presidente eleito havia composto. Estando em
um contexto de ditadura, essa estrutura militar não servia somente para proteção
contra investidas externas, mas era destinada também ao controle interno da
população, proibindo, dessa forma, protestos contra o governo. Surge então uma
oposição baathista. Com a união dos líderes do Partido Baath e Akram Hourani
foi fundado o Partido Árabe Socialista Baath. O partido tinha cunho secular, com
o intuito de fazer a política sem ligação religiosa, emcontrapartida ao que a elite
proprietária fazia. Inicialmente, era formado em um regime republicano reformista
e entrava em conflito com as monarquias árabes a as potências externas que impe-
diam a modernização da Síria (VISENTINI, 2014).
Em 1954, Adib Shishakli foi deposto e no mesmo ano o parlamento foi
reorganizado. A partir daí, até 1958, observa-se uma grande atuação da ideologia
Baath no cenário político sírio em parceria com o Partido Comunista, no intuito
de enfraquecer os partidos conservadores. Um desalinhamento entre os partidos,
porém, fez com que o Partido Baath aprovasse o projeto de lei de união com o
Egito, formando a RAU. “O Baath foi importante tanto no movimento que levou
à formação da República Árabe Unida em 1958, quanto em sua divisão em 1961”
(HOURANI, 2001 p. 285). A principal diferença entre os dois momentos éque
em 1954, o partido não acha espaço para se posicionar na política síria, e em
1961, com a ajuda da corrente esquerdista baathista, tira a Síria da União, e pode
impulsionar o programa do partido, baseado no desenvolvimento econômico e
social e na modernização (VISENTINI, 2014;MCHUGO, 2015).
Segundo McHugo (2015), apesar de o fim da República Árabe Unida ter
levado àantiga forma parlamentarista de governo na Síria, e de os notáveis que
governavam o país tentarem retomar essa antiga ordem, o golpe militar de 1963
foi a “sentença de morte” do ancient régimegovernado pelas tradicionais famílias
notáveis sunitas, demonstrando que, apesar de o Partido Baath ter abdicado de

93
REVISTA PERSPECTIVA

sua importância política durante a RAU, essa premissa já não se aplicava mais e
eles estavam prontos para lutar pelo governo.

3.2 O governo baath e suas consequências para a Síria


O golpe militar de 1963 não tinha somente a intenção de ser uma tomada
de poder, mas um movimento revolucionário no país. A proposta do partido de
“revolução de cima para baixo” para alcançar seus objetivos teve resultados palpá-
veis para a população. A população assalariada aumentou de 32,9% em 1960
para 37,8%em 1975; o proletariado agrícola foi em grande parte transformado
em um campesinato, com a reforma agrária. As medidas adotadaspelo governo
conseguirem diminuir a concentração de renda e impedir sua restruturação. O
sistema educacional também sofreugrandes mudanças, principalmente no nível
universitário: o acesso à educação superior foi amplamente alargado a partir de
1963 (HINNEBUSCH, 2001).
Com o passar do tempo, o Baathjustificaria os meios pelos fins, e trabalharia
com coerção e violência para atingir os seus objetivos. O nacionalismo árabe defen-
dido foi se transformando propriamente em um nacionalismo sírio, atendendo
aos interesses particulares da Síria, com base na centralidade de Damasco para a
nação árabe.
Apesar de o partido ter tomado o poder por meiode um golpe militar, o
governo que subiu ao poder em 1963 não era baseado somente no exército, mas
era híbrido em uma mistura entre exército e partidos – pois, apesar de a elite
governante passar a ser alauíta, o governo era formado por uma coalizão entre
partidos não só dessa corrente. Além disso, disputas internas dentro do partido
levaram a outros golpes, em 1966 e em 1970, que levariaao poder, então, Hafez
al-Assad (ERLICH, 2014; HINNEBUSCH, 2001).
A despeito dos militares governarem sob a retórica do Baath, as ideologias
iniciais haviam se perdido com a distorção do poder e do passar dos anos (ERLICH,
2014). O novo governo se caracterizaria por um estilo muito comum na região
naquela época:o“populismo autoritário” seria usual principalmente em Estados
recém descolonizados e governados por elites modernizantes e nacionalistas.
Esses Estados eram ameaçados externamente, o que lhes conferia a necessidade

94
A Revolução Baath no Iraque e na Síria: o que mudou?

de proteção militar, e, ao mesmo tempo, estavam em situação interna instável.


Dessa forma, acabavam utilizando da força conferida pelo exército para controlar
e manter a ordem interna, agindo de maneira autoritária, porum lado, e poroutro
trabalhando para melhorar as condições internas do país (HINNEBUSCH, 2001).
Quando Assad sobe ao poder, com o último dos golpes militares, ascende
uma corrente mais flexível, pois o líder era um político mais cauteloso com as
consequências de seus atos e mais maleável a situaçõesque pudessem ocorrer. Seu
objetivo último na política externa era recuperar o território perdido para Israel em
1967, na Guerra dos Seis Dias, e como política interna, se assentava com a visão
baathista. Assad fez o que era preciso para aumentar o seu efetivo militar e garantir
que o poder sírio fosse assegurado, e sua principal justificativa era justamente a
recuperação do território das Colinas de Golã. Apesar de o governo baathista
anterior ser mais radical que o governo de Assad, deixou como legado um Estado
muito mais autônomo e com capacidade de rearranjo organizacional que trouxe,
por consequência, uma desconfiança do capital privado e das soluções da burguesia
empresarial (ERLICH, 2014; HINNEBUSCH, 2001; MCHUGO, 2015).
Em geral, o governante consultava o povo – até certo ponto - para assegurar
apoio político da população, e a repressão de seu governo era variada, dependendo
dequão ameaçado o regime se sentia. Um forte ponto de repressão eram as mani-
festações islamistas, que se tornaram violentas, principalmente depois de 1980
(MCHUGO, 2015).
Seguindo a linha de seu pai, Bashar al-Assad também não deu abertura ao
povo sírio, muito embora no início de seu governo tenha-se notado uma tendência
democrática que logo passou. Aprofundando os ideais baathistas, Bashar concede
uma abertura maior que seu pai à liberdade religiosa, muito embora esse não
fosse um tema polêmico no governo de Hafez – a não ser quando a oposição se
tornava violenta. Ainda nessa linha, houve uma tentativa de aprofundamento da
modernização da indústria do Estado, porém dessa vez esse movimento atingiu
somente os círculos próximos a Assad, causando inclusive uma deterioração da
produção local, o que levou a um sentimento de revolta da população, acumulado
com o ressentimento de seu líder antidemocrático, demonstrando que os ideais

95
REVISTA PERSPECTIVA

baathistas por si só já não servem para justificar a permanência de um líder no


poder por tanto tempo.

4 Conclusão

Segundo Halliday (1999), a melhor abordagem para a revolução seria um


intermediário entre a abordagem revolucionária e a convencional, derivando uma
abordagem alternativa. Dessa forma, é necessário analisar a influência do externo
sobre o Estado, entender o papel da ideologia revolucionária e contextualizar
a revolução. As revoluções baath levaram para a população, em parte, o que se
propuseram. Em suas premissas, buscavam combater os governos colonizadores
opressores, modernizar o Estado, unir o povo árabe sob uma bandeira e secularizar
os governos. Essas propostas abarcam tanto variáveis internas ao Estado quanto
variáveis internacionais.
A ideologia traz como preceitos unidade, liberdade e socialismo e visa a
estabilizar governos sucessivamente instáveis no Iraque e na Síria. Pode-se dizer que
nesse aspecto a revolução teve sucesso, pois os governos baathistas são os governos
mais estáveis da história desses dois países.
Entretanto, asrevoluções baath de certa maneira não conseguem se concretizar,
na medida que ainda atuam nos moldes das antigas elites monárquicas e que retêm
o poder. As revoluções feitas até hoje no Oriente Médio não permitiram ainda
quebrar o status quo, em que a elite permite que revoluções aconteçam somente
em certas áreas onde não prejudiquem a manutenção de seus direitos e de sua
posição no sistema regional e nacional. Dessa forma, apesar de asrevoluções baath
trazerem modernização para suas populações e estabilização para os governos, essas
duas premissas continuam beneficiando primordialmente a elite governante, sem
uma alteração na prioridade das políticas estatais.

96
A Revolução Baath no Iraque e na Síria: o que mudou?

The Baath Revolution in Iraq and Syria: what has changed?

ABSTRACT: This article intends to study the revolutions of the Baath Party
in the states of Iraq and Syria in the years of 1968 and 1963, respectively,
since they present ideology as a point of inflection for the governments in
most of the Middle East. The new ideology, however, only achievedsig-
nificantpopularity in these two countries. The article will analyze if these
revolutions followed the three principles of Baathism. The article is divided
into four chapters: an introduction, with Baathist concepts, two parts of
development, one for each State, and a conclusion.
KEYWORDS: Baath; Iraq; Syria; Revolution; Middle East.

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99
A Revolução Cultural e Popular na Líbia
de 1973

Felipe Bressan Giordani


Gabriela Verdi Borges*

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discorrer sobre a Revolução


Líbia, desde o Golpe Militar de Muammar al-Gaddafi até meados dos anos 1970.
Dessa forma, são analisadas, dentro do escopo deste trabalho, as origens ideológicas,
políticas e econômicas do processo revolucionário, que teve seu auge na imposição
da Revolução Cultural e Popular em 1973, a qual, por sua vez, abriu espaço para
a instauração do Estado da Jamahiriyya - ou “estado das massas” - na Líbia. A
esse esforço histórico-descritivo soma-se a análise crítica de aspectos internos e
internacionais envolvidos no movimento revolucionário líbio, relevante para o estudo
direcionado das revoluções dentro da área de Relações Internacionais.
PALAVRAS-CHAVE: Líbia; Muammar al-Gaddafi; Revolução Cultural;
Jamahiriyya.

* Graduandos em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A Revolução Cultural e Popular na Líbia de 1973

1 Introdução
O esforço de elaboração deste artigo tem como motivação basilar a falta de
obras, artigos científicos e estudos dedicados à temática das revoluções em geral e,
mais especificamente, da Revolução Cultural e Popular levada a cabo por Gaddafi
na Líbia a partir dos anos 1970. Ademais, com o advento da chamada Primavera
Árabe em 2011, e o sabido desconhecimento ocidental da história, realidade e
verdade dos fatos em países africanos, tal qual a Líbia, busca-se elucidar alguns
pontos importantes desse país e de seu antigo líder, uma vez que a veiculação
midiática do acontecimento pouco detalha ou se preocupa em noticiar a situação
do país a partir de um arcabouço bem fundamentado e embasado da história e da
evolução do Estado líbio.
Dessa forma, organizamos este trabalho em três seções distintas. A primeira
delas tem como meta a realização de uma retomada histórico-descritiva, de forma
a destacar e trazer à tona aspectos-chave para melhor entendermos os elementos
essenciais que vieram a influenciar a ascensão de Gaddafi e a formação de sua
ideologia. Depois, na segunda seção, discorremos sobre o cerne da análise deste
trabalho: a revolução posta em prática pelo líder líbio a partir da década de 1970,
esclarecendo suas principais causas, características, constrangimentos, desenvol-
vimentos, instrumentos e consequências, desde o golpe militar de 1969 até a
implantação da Jamahiriyya - “estado das massas”. Por fim, realizamos um diag-
nóstico crítico da Revolução Líbia, destacando aspectos teóricos e salientando as
mudanças fundamentais que ocorreram no período estudado.

2 Do domínio Otomano à Monarquia Sanussi


A Líbia encontra-se na costa norte do continente africano, banhada pelo
Mar Mediterrâneo e pelo Golfo de Sidra e fazendo fronteira com a Tunísia, a
Argélia, o Níger, o Chade, o Sudão e o Egito. Quarto país mais extenso da África
e com uma modesta população de aproximadamente 6,5 milhões de habitantes,
predomina na região o clima árido e semiárido, o que explica sua baixa densidade
populacional - a população concentra-se na região litorânea no norte do país - e
sua escassez de terras férteis. Contudo, a Líbia possui a quarta maior reserva de

101
REVISTA PERSPECTIVA

petróleo do mundo, a maior do continente africano, o que aumenta substancialmente


sua importância estratégica e energética no sistema internacional (VISENTINI,
QUAGLIA, 2012; MELOS, CLOSS, LUBASZEWSKI, 2015).
O território em que se localiza o Estado líbio na atualidade foi, ao longo de
sua história, cobiçado e dominado por inúmeros povos, como gregos, romanos,
árabes, otomanos, italianos, britânicos e franceses, por exemplo. Este fato fez com
que a região transpassasse por várias transformações culturais, religiosas e sociais,
que moldaram a criação do seu Estado e a identidade da população que ali vive.
Além disso, sendo dividido pelo deserto, o próprio território desenvolveu-se em
três segmentos distintos que pouco se identificavam entre si - a saber, os estados
da Cirenaica, Tripolitânia e Fazânia. Assim, apesar da longa e distinta história de
suas regiões, a Líbia moderna deve ser vista como uma nação relativamente nova,
a qual ainda está em processo de desenvolvimento de suas instituições e de uma
consciência nacional unificada (METZ, 1987).

Figura 1 - Divisão política da Líbia

Fonte: Fanack Chronicle of the Middle East


and North Africa (2016)

Um dos marcos mais relevantes da história antiga da Líbia constitui a


introdução do Islã e a arabização do país, concluída no século XI, por meio da
influência dos árabes vindos do Oriente Médio. O Islamismo norte africano, sob
vários califados, incorporou sistema de vida distinto, adotando práticas religiosas

102
A Revolução Cultural e Popular na Líbia de 1973

indígenas e levando o território a um longo período de prosperidade econômica e


cultural (METZ, 1987). Em 1551, os turco-otomanos, também de origem islâmica,
tomaram a região e a incorporaram ao seu vasto Império. Foi sob o domínio turco-
-otomano, no século XIX, que emergiu um movimento religioso de resistência,
também islâmico, mas que pregava uma forma puritana e solidária do Islã, dando
ao povo instrução e assistência material e criando entre eles um senso de unidade:
a ordem Sanussi. Essa ordem conquistou muitos adeptos - majoritariamente na
Cirenaica - e adquiriu conotações políticas com o tempo, consistindo na principal
força de oposição à invasão e à dominação colonial italiana após o término da
Primeira Guerra Mundial (METZ, 1987; MCKENNA, 2010).
Com a queda do Império Turco-Otomano, a Itália ganhou controle sobre a
área onde hoje se encontra a Líbia, majoritariamente nas zonas litorâneas do país.
O governo dessa metrópole uniu as três regiões em um mesmo sistema administra-
tivo, reprimiu a população e fez grandes investimentos em infraestrutura, criando
portos, ferrovias, estradas e projetos de irrigação; porém, deixou os cidadãos que
ali se encontravam desprovidos de qualquer treinamento administrativo, técnico
ou agrícola. O desenvolvimento econômico e institucional promovido pela Itália
perdurou apenas na região da Tripolitânia, devido à forte oposição às investidas
italianas que o movimento Sanussi realizava na Cirenaica. Destarte, durante a
Segunda Guerra Mundial, a ordem Sanussi uniu forças com os nacionalistas
existentes na Tripolitânia e lutou ao lado dos Aliados contra a Itália - que fazia
parte do Eixo, na tentativa de obter a independência líbia. Ao final do conflito, os
italianos perderam a posse do território, que ficou sob a administração de tropas
francesas e britânicas até 1949, ano em que se decidiu na Assembleia Geral da
ONU pela independência da Líbia (METZ, 1987; MCKENNA, 2010; VISEN-
TINI; QUAGLIA, 2012).
Nos anos que se seguiram à independência, as Nações Unidas foram incum-
bidas da difícil tarefa de decidir a criação de um novo governo para a Líbia, uma
vez que mesmo o domínio britânico estaria passando por um processo de perda
de poder e influência internacional. Vale ressaltar que controlar o território líbio
significava, dentro do jogo estratégico mundial, ter uma janela aberta para a
região do Mediterrâneo Sul. Ao final deste processo, a solução encontrada foi a de

103
REVISTA PERSPECTIVA

que o país seria organizado como uma Federação Constitucional de monarquia


hereditária, com um parlamento bicameral. Nesse momento, o território do país
é, então, formalmente dividido nas suas três províncias - Tripolitânia, Cirenaica e
Fazânia -, cada uma delas controlada por governantes indicados diretamente pelo
novo monarca (OLIVERI, 2012).
Entretanto, a formação do Reino da Líbia, sob a liderança do monarca esco-
lhido pelas potências ocidentais Muhammad Idrislo al-Sanusi (da ordem Sanussi),
não foi o bastante para gerar um sentimento de unidade entre as distintas regiões
do território líbio, que adentraram a década de 1950 empobrecidas, subpovoadas
e altamente divididas, com diferentes tradições econômicas, políticas, religiosas
e culturais. O regime monárquico e federalista então adotado manteve um alto
grau de autonomia das províncias, cada uma possuindo seu próprio parlamento,
suas próprias leis e seu próprio orçamento (VANDEWALLE, 2012; MCKENNA,
2010; MELOS; CLOSS; LUBASZEWSKI, 2015).
Ademais, com o intuito de gerar fontes de lucro e obter apoio militar, o
rei Idris concedeu bases militares tanto para a Inglaterra quanto para os Estados
Unidos no território líbio, o que demonstra a inclinação pró-ocidental da monar-
quia nas relações internacionais. Nessa mesma época, porém, contrastando com
o predomínio ocidental, tem-se a escalada do nacionalismo árabe nos países do
Oriente Médio, o qual ganhou força com os discursos do líder egípcio Gamal
Abdul Nasser. Esta ideologia de tom antiocidental pregava a independência e a
autonomia dos Estados árabes e influenciava profundamente as camadas mais jovens
da população líbia, incluindo seu futuro líder, Muammar al-Gaddafi (MCKENNA,
2010; METZ, 1987).
No final da década de 1950, foram descobertas vastas reservas petrolíferas na
Líbia, sobretudo no território da Cirenaica, culminando em um aumento substan-
cial da renda nacional e também da influência do Ocidente no país. A partir dessa
descoberta, em 1955, a situação do país mudou completamente. Cada vez mais a
Líbia tornava-se atrativa para as potências ocidentais e é nesse contexto que ocorre a
abertura do país à entrada de várias empresas estrangeiras exploradoras de petróleo
e ao capital externo. Tais companhias, destacando-se o cartel das Sete Irmãs (cartel
das sete maiores companhias petrolíferas estrangeiras presentes na Líbia), escoavam

104
A Revolução Cultural e Popular na Líbia de 1973

e transportavam o produto sem necessitar do Canal de Suez, contornar o Cabo da


Boa Esperança ou atravessar mais de um país neste processo. Tendo isso em vista,
a Líbia passou a viver um dilema: o país necessitava da presença e da tecnologia
das empresas estrangeiras para desenvolver o lucrativo setor petrolífero; porém,
ao mesmo tempo, não desejava de maneira alguma que o setor fosse controlado e
monopolizado por elas (OLIVERI, 2012). Assim sendo, a crescente importância
da Líbia no mercado global de petróleo resultou na necessidade de se gerirem os
lucros petrolíferos de forma nacional, fazendo com que o essencial processo de
unificação política formal de suas três províncias fosse finalmente concluído, em
1963 (VANDEWALLE, 2012; METZ, 1987).
Entretanto, a organização de um governo central dominante, liderado pelo
monarca Idris, e o crescimento econômico derivado do petróleo não bastaram para
suavizar o descontentamento da população com a monarquia, o qual aumentou
durante a década de 1960. A ausência de um apoio firme à causa árabe no conflito
árabe-israelense, a má distribuição das receitas petrolíferas e o avanço do nacionalismo
árabe amplificaram a insatisfação político-social da população, lançando as bases
para a sucessão do golpe militar encabeçado pelo coronel Muammar al-Gaddafi
em 1969 (VISENTINI; QUAGLIA, 2012).

3 A Revolução Cultural e Popular de 1973


O regime republicano e revolucionário líbio subiu ao poder no dia 1o de
Setembro de 1969, por meio de um golpe de Estado realizado por um grupo de
jovens militares que derrubou o governo monárquico pró-Ocidente da ordem
Sanussi. O Conselho do Comando Revolucionário (CCR), novo corpo governa-
mental liderado por Gaddafi, instaurou, então, a República Árabe Líbia, e tratou
de fortalecer e criar novas estruturas políticas no país (VANDEWALLE, 2012). Já
em seus primeiros anos no poder, Gaddafi evacuou as bases militares estrangeiras
ocidentais remanescentes, expulsou as pequenas - porém influentes - comuni-
dades italiana e judia do país, suprimiu todos os partidos políticos, nacionalizou
a indústria petrolífera líbia e comprometeu-se com a busca pela unidade árabe e
pela liberação da Palestina. Quando da tomada de poder por Gaddafi, o dinheiro
e o bem-estar chegavam ao país por meio do petróleo, embora a situação da

105
REVISTA PERSPECTIVA

desigualdade social permanecesse bastante grave (MCKENNA, 2010; SPOHR


ET AL., 2011; SHILLINGTON, 2004).
Destacamos alguns elementos da formação pessoal do líder líbio, os quais
são de suma importância, uma vez que influenciaram sua ideologia. Nascido e
criado em um sistema tribal e fundamentalista islâmico, Gaddafi teria aprendido
com os pais que sua nação fora sempre ocupada e controlada por estrangeiros, e
que essas potências externas também torturaram e massacraram cidadãos líbios. A
formação de sua liderança e de seu grupo de apoio teria acontecido ainda durante
o período de sua formação educacional. Gaddafi dedicava-se mais à carreira militar
do que ao seu curso de Direito, desprezando a maioria de seus colegas dentro da
Academia, visto que eram provenientes de famílias ricas, ligadas ao Monarca Idris,
ou filhos de famílias que negociavam com as empresas estrangeiras em território
líbio. Durante a faculdade, seus discursos anti-Israel e pró-Egito propagaram-se,
principalmente no meio militar (OLIVERI, 2012).
Em 1966, ao retornar da Inglaterra para a Líbia, o líder começou a recrutar
pessoas para sua missão de tomar o poder e de restaurar a ordem política, social e
econômica do país, em conformidade com o Islã e livre das influências ocidentais.
Em 1969, então, destituiu Idris do poder, por meio de um golpe militar. O novo
governo, ressalta-se, não enfrentou resistência e oposição relevantes nem das forças
militares ligadas ao rei deposto, nem das potências ocidentais. Os EUA teriam,
inclusive, aceitado facilmente o novo Governo, dada a forte aversão de Gaddafi ao
Comunismo - considerando que o contexto internacional de 1969 estava deter-
minado pela lógica da Guerra Fria (OLIVERI, 2012).
A Revolução realizada pelo Golpe de Gaddafi consiste em um evento muito
amplo e duradouro, pois representa o início da luta contra o sionismo e o impe-
rialismo na Líbia. Ademais, é caracterizada por diversas mudanças internas e de
posicionamento internacional, como o acirramento da doutrinação Islâmica, a
proibição de tudo que fosse contra os ensinamentos do Islã, a criação de centros
culturais para disseminar a história árabe e líbia, a defesa da jihad, o fechamento
de bases militares estrangeiras ocidentais (norte-americanas e inglesas), a aproxi-
mação com o Egito e a crítica tanto ao Comunismo quanto ao Capitalismo.Uma
vez ocupando o poder, então, Gaddafi sempre buscou sua legitimidade no discurso

106
A Revolução Cultural e Popular na Líbia de 1973

de que a vontade da população deveria ser devidamente representada (OLIVERI,


2012). De maneira simplificada, portanto, o novo regime popular de Gaddafi
objetivou angariar credibilidade por meio, principalmente: i) de um discurso antio-
cidental; ii) da busca pelaunidade árabe (ainda que o coronel tenha fracassado em
sua tentativa de estabelecer a Federação das Repúblicas Árabes, unindo Líbia, Egito
e Síria, devido à oposição popular); iii) da apropriação de aspectos progressistas do
Islã como parte do processo revolucionário; e iv) de investimentos dos lucros do
setor petrolífero em setores básicos como educação e saúde (MCKENNA, 2011;
VANDEWALLE, 2012).
Fundamentando sua ideologia no Islã, o coronel Gaddafi não via qualquer
contradição em misturar consciência religiosa com tomada de decisão política. Ele
acreditava que o Islamismo poderia trazer a regeneração espiritual e política que
os árabes, os muçulmanos e principalmente os líbios necessitavam. Tendo isso em
mente, e procurando inspiração também no socialismo árabe, no Pan-Arabismo de
Nasser e em ideais antiocidentais, Gaddafi desenvolveu sua famosa Terceira Teoria
Universal, emergente no final de 1972, que vinculou religião - o Islamismo - e
nacionalismo. Conforme se afirmou anteriormente, o líder líbio rejeitou o sistema
político-econômico capitalista ocidental e o comunismo ateísta, propondo em sua
Teoria uma terceira alternativa de filosofia política, a qual teria como base a busca
por um sistema verdadeiramente democrático e popular (SHILLINGTON, 2004).
A Terceira Teoria Universal tornou-se, então, a filosofia oficial da Revolução
Cultural e Popular instalada em 1973, após o discurso de Gaddafi na cidade de
Zuwara e o lançamento de seu Programa de Cinco Pontos. A demonstração da
má compreensão geral da população líbia em relação aos objetivos e aos ideais do
coronel e a necessidade de instigar o fervor revolucionário em seus compatriotas
foram os principais fatores que estimularam a definição da Revolução e o discurso
de Gaddafi naquele ano. Tal movimento surgiu com a missão de trazer à tona uma
herança islâmica comum da sociedade líbia e de restabelecer suas tradições, bem
como de aplicar o sistema político idealizado pelo coronel, substituir as lideranças
tradicionais tribais da Líbia, combater a ineficiência burocrática do Estado e os
problemas de coordenação política nacional (SPOHR ET AL., 2011; METZ, 1987).

107
REVISTA PERSPECTIVA

A partir de 1973, então, os projetos políticos, sociais e econômicos de


Gaddafi começaram a entrar em vigor, a partir do lançamento de seu Programa de
Cinco Pontos. Nele constavam cinco áreas de reforma: a extinção de todas as leis
do regime monárquico e sua substituição pela Lei Islâmica, a Sharia; a repressão
a todos aqueles que se opusessem ou resistissem à Revolução; a distribuição de
armamentos com o intuito de formar uma força nacional protetora do novo
regime; uma reforma administrativa, para eliminar a burocracia burguesa abusiva
e corrupta do governo; e, sustentando todas as medidas anteriores, a promoção
do pensamento Islâmico e da Revolução Cultural e Popular em voga, refutando e
destruindo tudo que fosse de encontro ao estabelecido pelo Al Corão (ELJAHMI,
2006; SHILLINGTON, 2004; SPOHR ET AL., 2011).
O principal instrumento de ação para a realização da reforma política
oriunda da Revolução foram os chamados “Comitês Populares”. Por meio desse
sistema, a população podia de fato representar e reivindicar suas necessidades
e demandas, o que legou um impacto positivo em como a sociedade em geral
percebia as transformações que estavam ocorrendo. Os comitês, espalhados por
todo o território emalguns meses, ficaram responsáveis pela administração local e
regional, envolvendo-se diretamente nos processos políticos e no controle da Revo-
lução “a partir de baixo” (OLIVERI, 2012; SHILLIGTON, 2004). Segundo Metz,
“no escopo de suas tarefas administrativas e regulatórias e no método de seleção
de seus membros, os Comitês Populares incorporaram o conceito de democracia
direta proposto por Gaddafi” (METZ, 1987, p.47). De forma a unificar estes
organismos, criou-se também o Congresso Geral Popular, órgão de representação
estatal e peça central do novo sistema, o qual ficou responsável por coordenar os
comitês. O líder desse Congresso - Gaddafi - detinha, desta maneira, o poder de
governo da Líbia (METZ, 1987).
Embora o aumento de participação política fosse essencial e muito proveitoso
para a população líbia, o que realmente contentava a sociedade eram as reformas
básicas que começavam a suprir as necessidades do país. Nesse sentido, destacam-
-se as evoluções ocorridas a partir da Revolução nas áreas de educação, saúde,
moradia e alfabetização, principalmente. Na primeira área, criou-se o Ministério
da Educação, aumentou-se o número de anos obrigatórios de frequência escolar de

108
A Revolução Cultural e Popular na Líbia de 1973

6 para 9 anos, além de serem construídas mais escolas e contratados mais profes-
sores. É de notável importância o impacto positivo das mudanças na educação
sobre as mulheres jovens líbias, as quais começaram a frequentar o Ensino Superior
e asuperar o analfabetismo. Além disso, foi abolida a poligamia, a idade mínima
para contrair matrimônio foi revista e foi criado o Departamento de Assuntos da
Mulher. A área de saúde pública foi elevada a direito, devendo seu provimento ser
gratuito. Os investimentos e o número de profissionais da saúde também aumen-
taram. Por fim, no campo da moradia, foi criada uma lei que permitia e garantia a
posse de um imóvel por família, bem como foi implementada a redistribuição de
terras. No entanto, alguns aspectos negativos dessas mudanças abruptas trazidas
pela Revolução devem ser levantados, como: a sobrecarga de atribuições para o
Estado, dada a eliminação do setor privado no país; a obrigatoriedade do serviço
militar, que reduzia a disponibilidade de mão de obra jovem; e o aumento da
oposição dentro de setores da classe média líbia, devido à radicalização das reformas
(OAKES, 2011).
Além do Programa de Cinco Pontos, da Terceira Teoria Universal e da
formação dos Comitês Populares, a Revolução de Gaddafi foi sustentada e instru-
mentalizada pelas ideias contidas no seu famoso Livro Verde, publicado em 1975,
que reunia os principais aspectos políticos, econômicos, sociais, culturais e religiosos
pensados pelo líder militar, como as noções de “democracia direta” e de “governo
do povo”. Após quatro anos de intensas transformações sociais, a evolução desse
novo sistema proposto foi finalmente consolidada em 1977, com a proclamação da
Jamahiriyya Árabe Popular Socialista da Líbia, o “estado das massas”, constituindo
o poder da população e o fim de qualquer forma de instituição convencional de
governo. O líder acreditava que a proclamação da Jamahiriyya seria a única forma
de alcançar uma verdadeira democracia popular, em que o povo seria governado
pelo próprio povo. (SPOHR ET AL., 2011; SHILLINGTON, 2004).
Contudo, segundo Shillington,
“na prática, o exercício da democracia popular, pelo menos nas áreas
mais complexas do governo, foi limitado pela necessidade de orientação e
tomada de decisão esclarecida de uma liderança [específica], que permane-
cia efetivamente no poder, mesmo com a mudança de títulos e funções”
(SHILLINGTON, 2004, p.836).

109
REVISTA PERSPECTIVA

Assim, Gaddafi, mesmo após a instituição da Jamahiriyya, continuou contro-


lando as áreas-chave do Estado, como a polícia, a política externa, o exército, o
setor petrolífero e o orçamento estatal (MELOS; CLOSS; LUBASZEWSKI, 2015).

4 Mudanças na Líbia: aspectos críticos


Durante a monarquia de Idris I, podemos classificar a Líbia como um país
internamente atrasado, subdesenvolvido, com sérios problemas no provimento
de bem-estar básico para sua população e sem uma proposta de desenvolvimento
nacional minimamente concebida ou aplicada. Quando da independência, então,
a população líbia se encontrava em situações econômicas e sociais preocupantes,
como o analfabetismo e a carência de bem-estar. Faltavam água potável, eletrici-
dade, livros e ferramentas para comunicação. Desse modo, para o novo sistema
político federalista funcionar, o Rei Idris manteve a presença estrangeira no país,
como a norte-americana, por exemplo, que reabriu suas bases militares utilizadas
na Segunda Guerra.
Em suma, a Líbia manteve-se dependente de ajuda estrangeira e vulnerável
em relação ao Ocidente. Em contrapartida, Gaddafi, em termos de alinhamento
de política externa, ao fechar as bases militares americanas e britânicas, deixou a
Líbia sem a necessária assistência militar. Entretanto, o líder não abdicou da segu-
rança de seu país, recorrendo a outros parceiros, como a França e, principalmente,
o Egito, além da URSS. Embora não alinhado a qualquer ladoda Guerra Fria, de
modo pragmático Gaddafi utilizava os recursos da venda do petróleo para a Europa
para comprar tecnologia, sobretudo armamentos e dispositivos militares desses
países. Difere-se, assim, do alinhamento mais direto com os EUA praticado pelo
Rei Idris. Tal pragmatismo condiz com a busca pelo desenvolvimento nacional
líbio, diferentemente dos alinhamentos menos socialmente concebidos da era
monárquica (OLIVERI, 2012).
Em termos de política externa, dessa forma, pode-se dizer que mesmo o
Estado líbio se declarandonão alinhado a qualquer um dos blocos disputantes da
Guerra Fria (Socialista e Capitalista) e identificado com o Terceiro Mundo, o país
não só era influenciado, como também influenciava a dinâmica desse conflito
ideológico. O processo revolucionário fornece, em si, um tipo de alicerce histórico

110
A Revolução Cultural e Popular na Líbia de 1973

para o sistema bipolar, de modo a alimentar sua corrida armamentista, dar motivos
para a competição entre URSS e EUA, além de significar uma ameaça à estabi-
lidade interna de outros países. Muito dessa visão se verifica no fato de Gaddafi
ter rompido com os Estados Unidos quando do Golpe Militar em 1969, e ter se
aproximado da URSS, a qual forneceu assistência ao país africano por bastante
tempo e em diversos setores. Dessa forma, um importante ponto de influência
para o Bloco Soviético se forjava e se solidificava na região do Mediterrâneo Sul,
somando países como Egito e Líbia. Ademais, a Revolução e as reformas na Líbia
também puderam ser percebidas como exemplo a ser seguido para outras nações
árabes, do mesmo modo como Gaddafi se inspirou em Nasser para sua Revolução.
Ao se aliar de modo mais visível aos soviéticos, a Líbia transpareceu a ideia do
encorajamento revolucionário, uma vez que o fornecimento de sustentação política,
o encorajamento ideológico, a força do exemplo e, principalmente, o fornecimento
de armas e tecnologia se configuraram como fatos dentro da Revolução Líbia,
inserida no contexto de Guerra Fria (HALLIDAY, 1994).
Internamente, Gaddafi adotou medidas mimetizadas às de Nasser, demons-
trando o quanto a influência internacional pode chegar em outros líderes e influenciar
outrospaíses, por meio de ideologias e de modelos a serem seguidos. Tudo isso,
vale ressaltar, permitido e/ou apoiado, principalmente, por uma estrutura interna
de pouca ou quase nula atenção e dedicação civil ao processo político, uma vez
que a sociedade líbia se constituía analfabeta e essencialmente preocupada com sua
subsistência. Para corroborar tal posicionamento, pode-se citar a ideia geral de que
em países onde a situação é de preocupação prima com a sobrevivência e o forneci-
mento de necessidades básicas de bem estar, não sobra espaço ou inclinação para se
pensar e se reivindicar direitos políticos e sociais maiores e mais “desenvolvidos”. Em
uma sequência do desenvolvimento humano, o desenvolvimento socioeconômico
aumenta os recursos econômicos e cognitivos, o que por sua vez torna as pessoas
“material, intelectual e socialmente independentes” (INGLEHART; WELZEL,
2005, p. 19). Assim, após a consolidação da segurança existencial, as pessoas podem
buscar metas que até então não eram priorizadas, adquirem novas preocupações na
medida em que as necessidades básicas já estão satisfeitas. Os chamados “valores de
autoexpressão” propagam-se para diversas dimensões da vida, como papéis de gênero,

111
REVISTA PERSPECTIVA

conscientização dos riscos, meio ambiente, consumo, motivações para o trabalho


e para a participação política, essencialmente (INGLEHART; WELZEL, 2005).
Além disso, em termos de sua ideologia, Gaddafi traçava um paralelo signi-
ficativo com as visões e ações de Nasser no Egito, uma vez que ambos os líderes
compartilhavam o nacionalismo e a unidade árabe, o Islamismo, o inimigo comum
figurado em Israel, e o desejo de acabar com a influência estrangeira nos seus países.
Para este último aspecto, ressalta-se a importância internacional da Conferência
de Bandung em 1955, que enaltecia e determinava princípios como autodetermi-
nação dos povos, não intervenção, não agressão e respeito mútuo, e que resultou
na criação do Movimento dos Países Não-Alinhados. Gaddafi, em outra compa-
ração com Nasser (este último ao nacionalizar o Canal de Suez), também tomou
o controle de seu principal setor, o petrolífero, ao desmantelar o monopólio das
Sete Irmãs. Ademais, Gaddafi, assim como Nasser havia feito, nomeou “FreeOffi-
cers” para seu exército, fez do “Conselho do Comando Revolucionário” seu corpo
governamental, além de publicar o já mencionado Livro Verde, de 1975, em um
paralelo bastante claro com o livro de 1954 “A Filosofia da Revolução”,escrito
pelo egípcio (OLIVERI, 2012). Nesse contexto, se considerarmos que “o mais
importante impacto internacional e internacionalista das revoluções reside não nas
ações deliberadas dos Estados, mas na força do exemplo [...]” (HALLIDAY, 1994.
p. 155), fica claro o quanto e como o Nasserismo e a política interna e externa
adotada pelo Egito sob o comando de Nasserimpactaram outras nações, como a
que nos interessa aqui, a Líbia.
Em suma, as revoluções em geral, e a da Líbia em particular, tendem a alterar
não somente o panorama doméstico de seus países, transformando sociedades, mas
também alteram relações entre Estados e nações. Desse modo, a Revolução que
depôs o Rei Idris I eque levou Gaddafi ao poder não só modificou substancialmente
o funcionamento e a organização dentro do Estado da Líbia, como também entre
tal Estado e, por exemplo, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. A busca pelo fim da
influência britânica e americana dentro do território líbio leva a fortes oposições da
população frente a esses estrangeiros, trazendo consequências como o aumento do
apoio à Gaddafi e à sua política externa, e a maior unidade nacional. Vale ressaltar
também que, para analisar uma revolução, é importante considerar a influência

112
A Revolução Cultural e Popular na Líbia de 1973

do internacional sobre o interno, tanto em momentos de revoltas e de agitação,


quanto em momentos de paz e de estabilidade. Isso porque instituições domésticas,
aparentemente isoladas do ambiente externo, como estruturas administrativas,
sistema tributário, educação e entretenimento,são constantemente moldadas por
fatores externos (HALLIDAY, 1999). Assim, definitivamente, foi o caso líbio, com
uma sociedade desde sempre ocupada e dominada pordiferentes nações estrangeiras.

5 Conclusão
A evolução histórica recente da Líbia, desde o Rei Idris até a Revolução
que levou Gaddafi ao poder, demonstrou as diferentes fases de desenvolvimento
interno e de posicionamento em política internacional pelas quais passou o país.
De subdesenvolvimento, extrema desigualdade social, falta de unidade e de um
projeto de desenvolvimento nacional e alinhamento aos EUA e ao Ocidente em
geral durante o período monárquico, passou-se para a busca do desenvolvimento
nacional sob a ditadura de Gaddafi, a participação civil na política interna e
externa, e para o posicionamento não alinhado a potência alguma, embora bastante
próximo da URSS. Ademais, durante a revolução e a aplicação prática da ideologia
de Gaddafi, evidencia-se a importância do petróleo para a projeção do país e sua
integração ao sistema internacional, além desse recurso trazer ainda mais à tona a
importância estratégica do país diante dos olhos das superpotências.
O processo revolucionário na Líbia, antes de ser um caso isolado ou comple-
tamente autônomo, se insere em um contexto maior do sistema internacional.
Primeiramente, ocorre durante a Guerra Fria e, assim, é influenciado de diversas
formas e influencia tal panorama, na medida em que o país se declarou País Não
Alinhado, se distanciou da influência norte-americana e se aproximou da URSS,
por exemplo. Segundo, a Revolução transformou substancialmente a sociedade
líbia, desde sua organização em termos institucionais até os indicadores de desen-
volvimento, perpassando pela internalização do conceito de unidade árabe, pela
adoção irrestrita do islamismo e pela promoção do nacionalismo, assim demons-
trando a familiaridade com o Nasserismo e evidenciando a influência externa sobre
a esfera doméstica.

113
REVISTA PERSPECTIVA

Por fim, se configura um digno caso histórico a ser estudado, uma vez que
apresenta diversos fatos passíveis de serem criticamente analisados no esforço de
conectar as revoluções às Relações Internacionais, concebendo os aspectos internos
e externos da primeira como mutuamente influenciados.

The 1973 Libian Cultural and Popular Revolution

ABSTRACT: This article aims to discuss the Libyan Revolution, since


the Military Coup of Muammar al-Gaddafi until the mid-1970s. Thus,
within the scope of this work, are analyzed the ideological, political and
economic origins of the revolutionary process, which had its culmination
in the imposition of the Cultural and Popular Revolution in 1973, which,
in turn, opened space for the instauration of the State of the Jamahiriyya
– or “state of the masses” – in Libya. To this historical-descriptive effort is
added the critical analysis of internal and international aspects involved in
the Libyan revolutionary movement, relevant to the study of revolutions
within the area of International Relations.
KEYWORDS: Libya; Muammar Gaddafi; Cultural Revolution; Jamahiriyya.

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115
Revolução no Camboja: impactos na correlação
de forças do final da Guerra Fria
Guilherme Etzberger
Maria Gabriela Vieira
Mateus Borges*

RESUMO: O presente artigo tem o intuito de analisar a revolução que


ocorreu no Camboja na década de 1970. Procurou-se estudar as causas que
levaram ao processo revolucionário, evidenciando os principais aconteci-
mentos anteriores a 1975, e que contribuíram para a revolução. Tentou-se
demonstrar quais foram as forças internas durante a revolução, além das
forças externas que, de certa forma, constrangeram esses agentes internos.
Apesar de a revolução ter terminado em 1979, procuraremos brevemente
abordar os principais acontecimentos que levaram aos Acordos de Paris
de 1991, marcando o início do processo de normalização do Camboja.
Ao longo de todo o artigo, tentaremos apontar as tentativas de findar o
processo revolucionário (as contrarrevoluções). Por fim, buscaremos com-
preender, mesmo com o processo de socialização vitorioso, ou seja, o fra-
casso da revolução, quais foram os impactos para o Sistema Internacional.
PALAVRAS-CHAVE: Camboja; Ásia; Relações Internacionais; Rev-
oluções Marxistas

*Graduandos em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A Revolução no Camboja: impactos na correlação de forças do final da Guerra Fria

1 Introdução

O presente artigo tem por objetivo analisar o impacto da revolução que


ocorreu no Camboja em 1975 sobre o Sistema Internacional (SI). Para isso,
embasou-se nos argumentos teóricos de Fred Halliday (1999) acerca do caráter
da revolução e de seus significados para o Sistema Internacional. Segundo ele, as
revoluções possuem uma relação de “retroalimentação” com as guerras convencionais
(as quais, segundo algumas correntes de Relações Internacionais, seriam as únicas
com capacidade de promover mudanças significativas no SI), sendo, assim, tanto
consequência quanto fator delas.
Além de Halliday (1999), diversos autores e suas respectivas correntes
teóricas buscaram avaliar a importância e os impactos das revoluções nas dinâmicas
internacionais. Destaca-se a visão realista de que são uma desordem interna, uma
espécie de peça heterogênea no Sistema Internacional, e que, portanto, provocariam
algum impacto nele. Outra visão relevante acerca das revoluções é a Behaviorista,
que as considera como “guerras internas”, podendo se radicalizar e evoluir para
um “conflito social mundial”. Há também uma visão que enxerga as revoluções
como um colapso das capacidades de gerência do Estado, não produzindo qual-
quer transição ou alteração no SI. Esta última será, em algum grau, questionada
ao longo do trabalho.
Mesmo reconhecendo a existência de distintas definições e visões sobre o
tema das revoluções, considera-se, como importante estímulo para a construção
do presente artigo, o fato desse assunto ser ainda pouco explorado no campo das
Relações Internacionais. Tendo isso em vista, procura-se aqui desenvolver mais
a fundo o tema, aliado à análise de um caso específico: a Revolução de 1975 no
Camboja. O texto é dividido em três seções, que tratam de forma descritiva os
condicionantes internos e externos, o desenrolar e as consequências da revolução,
respectivamente. Analisar-se-á, a partir de uma revisão bibliográfica sobre o tema,
seus impactos diretos na correlação de forças entre as duas superpotências da Guerra
Fria, bem como na dinâmica das relações regionais.

117
REVISTA PERSPECTIVA

2 Camboja Pré-Revolução: Contexto Externos e Interno

A Inserida no período da Guerra Fria, a Revolução que aconteceu no Camboja


- assim como grande parte das revoluções que tomaram curso no Terceiro Mundo
- demonstra que, apesar de o período ser marcado pela détente e representar uma
garantia de não confronto militar (pelo menos em grande escala), foi um período de
acirramento dos ânimos em termos políticos e ideológicos. Nesse sentido, Estados
Unidos e URSS pressionavam o mundo para entrarem em suas áreas de influência,
especialmente os recém independentes países africanos e asiáticos, que tentavam
se manter afastados da disputa entre as duas superpotências.
A Indochina (formada por Camboja, Laos e Vietnã) pode ser percebida
como uma das regiões que sentiram com maior intensidade essa pressão, sendo
praticamente inviável manter-se afastada do conflito; tal fato pode ser verificado ao
se analisar as guerras que se sucederam na Indochina, que sempre foram, indireta-
mente, um conflito entre as duas superpotências. Mesmo não sendo o país-chave
desses embates, “o Camboja era apenas um pequeno país, com forças militares
insignificantes, repousando muito próximo das linhas ideológicas e militares que
dividiam o mundo” (TULLY, 2005 p.124), e, portanto, pouco poderia fazer para
evitar que se tornasse palco para essas disputas. Esse período também foi marcado
pelo distanciamento diplomático entre a República Popular da China (RPC) e a
URSS em virtude de disputas ideológicas e territoriais (chegando a um conflito
armado na fronteira sino-soviética em 1969), permanecendo afastadas até o final
da década de 1980. Concomitantemente a esse movimento, a China passa a
aproximar-se dos EUA, que passa a reconhecer diplomaticamente a China Popular
e a apoiar a entrada desta como membro permanente no Conselho de Segurança
da ONU, substituindo a China nacionalista (KISSINGER, 2011).
Internamente, após a conquista da independência1 frente aos domínios
franceses, em 1953, o Camboja passou a ser comandado pelo príncipe Norodom
Sihanouk, que buscou das mais diversas maneiras assegurar a integridade territorial

1 Em 1949, o Camboja assina um tratado com a França por meio do qual era reconhecida a independência do
país, sendo, contudo, ainda parte da União Francesa. Isso significava que os assuntos mais importantes (defesa
nacional, diplomacia, segurança e justiça, por exemplo) ainda eram pautados de acordo com o desejo francês. Em
1953, Norodom Sihanouk, após ter dissolvido a Assembleia e somado à ofensiva vietnamita, conquista a inde-
pendência oficial do Camboja, dessa vez com a retirada completa das tropas da ex-metrópole (BIANCO, 1992).

118
A Revolução no Camboja: impactos na correlação de forças do final da Guerra Fria

do país (uma vez que os “ímpetos imperialistas” do vizinho Vietnã sempre foram
motivo de preocupação) e a paz e a estabilidade internamente. Para isso, Sihanouk
adotou uma política de neutralidade estrita, em termos externos, e uma política de
fortalecimento de seu poder internamente, ao transitar entre o apoio dos Demo-
cratas da centro-esquerda e dos pró-comunistas do Pracheachon (TULLY, 2005).
Havia também uma parcela da sociedade pró-EUA, que insistentemente
acusava o governo de comunista. Os opositores de Sihanouk buscavam apoio no
governo norte-americano para desmoralizá-lo, e, assim, chegar ao poder. Para os
EUA, era conveniente esse “apoio”, uma vez que - mesmo o governo de Sihanouk
não sendo comunista, seu governo não possuía desentendimentos com países que
haviam adotado tal regime -, o Camboja sucumbir ao socialismo significaria não
apenas o fortalecimento do bloco socialista, mas também o fortalecimento dos
ideais marxistas-leninistas na Ásia, transformando tal continente em um reduto
de revoluções socialistas bem sucedidas.
Durante a Segunda Guerra da Indochina ou Guerra do Vietnã (1955-
1975), o Camboja manteve sua política de neutralidade apenas nos primeiros
anos. Contudo, o acirramento do conflito e o transbordamento do mesmo para
dentro do Camboja revelavam a impossibilidade da não participação do Camboja,
forçando, assim, o país a abandonar a postura de neutralidade. Ainda na década de
1960, as relações entre o Camboja e os Estados Unidos são rompidas; a partir de
então a dita base vietnamita no país vizinho (“trilha de Ho Chi Minh”) passou a
ser constantemente bombardeada. A participação na Segunda Guerra da Indochina
acabou por comprometer ainda mais o governo de Sihanouk, o qual passava por
um período de intensa contestação. É, então, em 1970, que um golpe de Estado
depõe o príncipe, colocando em seu lugar o primeiro-ministro Lon Nol (CHAN-
DLER, 2008).
O novo Camboja, agora República Khmer, sob o comando de Lon Nol, durou
pouco mais de cinco anos, e foi marcado, no plano externo, por um alinhamento
ao governo norte-americano. Com relação à situação doméstica, cabe destacar
que neste período ocorre a formação e o fortalecimento do Khmer Vermelho ou
Partido Comunista do Kampuchea, o qual irá desempenhar um papel de destaque
na revolução. O príncipe Sihanouk, que se encontrava exilado em Pequim, fundou

119
REVISTA PERSPECTIVA

- com o auxílio do Khmer Vermelho - a Frente Unida Nacional do Kampuchea


(FUNK), a qual se declara o governo legítimo do Camboja, sem ter, entretanto, a
posse do território (DAYLEY, 2013).
Nesse período, era bastante disseminado na sociedade cambojana o senti-
mento anti-vietnamita, que passava a ganhar cada vez mais um tom intolerante
e racista (CHANDLER, 2008). A corrupção tomara conta de grande parte das
instituições do país, especialmente no exército - aparelhado pelos Estados Unidos
- chegando a vender clandestinamente equipamentos militares para os comunistas.
Segundo Chandler (2008, p.252) “ao final de 1972 a República do Khmer contro-
lava Phnom Penh, algumas capitais provincianas, e grande parte de Battambang.
O restante do país estava sob o domínio comunista ou sob a administração que já
não respondia ao poder central”.
A partir da proclamação da República Khmer e do exílio de Sihanouk,
desenrolou-se no país uma dura Guerra Civil. Essa guerra envolveu as forças do
Partido Comunista do Kampuchea (PCK) ou Khmer Vermelho - lideradas por
Pol Pot -, os aliados na República Democrática do Vietnã (Vietnã do Norte) e a
Frente Nacional para a Libertação do Vietnã (NLF) contra as forças governamentais
cambojanas, do autoproclamado (após outubro de 1970) Presidente da República
Khmer, Lon Nol, que eram apoiadas pelos Estados Unidos e pela República do
Vietnã (Vietnã do Sul) (COTTERELL, 2014). O conflito se arrastou por cinco
anos, e teve como saldo: um elevado número de mortos, a desorganização da - já
frágil - economia do Camboja, além da escassez de alimentos. Paralelamente, no
campo político, o país assistia ao fortalecimento do Khmer Vermelho, o qual viria
a encerrar a Guerra Civil tomando o poder em 1975; além disso, diversas revoltas
pró-Sihanouk e contra o governo de Lon Nol aconteciam, sendo duramente repri-
midas pelo exército cambojano (CHANDLER, 2008).

3 A Revolução: do Kampuchea Democrático à República


Popular do Kampuchea
O retorno do príncipe Sihanouk, que estava no exílio, ao Camboja, em
1975, deu-se principalmente com apoio das forças do Partido Comunista do
Kampuchea (PCK) ou Khmer Vermelho. Com o Khmer no poder, inicia-se o

120
A Revolução no Camboja: impactos na correlação de forças do final da Guerra Fria

processo de eliminação completa dos antigos membros do governo de Lon Nol,


na tentativa de afirmar sua legitimidade. É nesse primeiro momento, em 1976,
que se proclama o Kampuchea Democrático, estabelecendo nova constituição pela
qual seriam abolidas propriedade privada, organizações religiosas e qualquer tipo de
agricultura familiar. Durante esses primeiros anos do regime, ocorre a transferência
de grande parte da população (cerca de 2 milhões de pessoas) das áreas urbanas
para as áreas rurais (CHANDLER, 2008). Esse movimento de evacuação das
cidades foi justificado pela necessidade de aumentar a produção de arroz2 a fim de
acumular capital e, assim, prosseguir com a revolução. Outro motivo que justifica
tal ação é o fato de que os centros urbanos poderiam ser terreno para movimentos
contrarrevolucionários, e, portanto, deveriam ser evitadas todas as possibilidades
que os viabilizassem.
Defendiam, portanto, a eliminação das cidades e a organização do país em
uma comunidade de cooperativas embasadas em uma economia natural e em uma
sociedade militarizada, que restauraria o esplendor da civilização do Império de
Angkor (TULLY, 2005). Pode-se afirmar que o que o Khmer Vermelho tenta fazer
no Camboja é algo semelhante à Revolução Cultural que aconteceu na China; com
a exaltação do passado Khmer e a ambição de um retorno à “idade de ouro” ou
Império de Angkor. Outro aspecto da ideologia do Khmer Vermelho estava ligado
ao fato de que se acreditava que para alcançar a vitória, o país teria de passar pelo
domínio do campo sobre as cidades e pelo empoderamento do povo (CHANDLER,
2008). Esse ideal ganhou mentes e corações de muitos jovens cambojanos, que
acreditavam na revolução e na ideia de uma sociedade mais igualitária. Contudo,
alguns membros do PCK, líderes de facções camponesas locais e membros das
Forças Armadas possuíam um padrão de vida diferenciado do restante da população.
Nesses primeiros anos após a tomada de Phnom Penh, o Camboja procurou
demonstrar para o resto do mundo que era uma revolução genuinamente inde-
pendente, um “socialismo que seria construído sem um modelo” (CHANDLER,
2008). Tal fato, ao se analisar o processo de revolução, mostrou-se de um todo não

2 Essa ideia foi expressamente representada n’ “O Plano de Quatro Anos”. Tal plano previa a coletivização de
toda e qualquer propriedade no Camboja, além de uma projeção para ampliar os níveis de produção de arroz
em três vezes o que se produzia normalmente (CHANDLER, 2008). O que se sucedeu na realidade foi um
projeto sem qualquer tipo de análise quanto à viabilidade de sua realização em um espaço tão curto de tempo.

121
REVISTA PERSPECTIVA

verdadeiro, uma vez que a China fora peça chave para a manutenção da revolução
- enviando armas para a manutenção da revolução (VISENTINI et al., 2013).
Com o passar dos anos, e com o poder cada vez mais concentrado nas
mãos de Pol Pot, tempos difíceis passam a assolar o Camboja: opositores do atual
governo, bem como companheiros da luta contra o governo de Lon Nol, são
duramente perseguidos; soma-se a isso o aumento do sentimento anti-vietnamita
e a deterioração da qualidade de vida da população daquele país (inúmeras são
as mortes por fome e por doenças). Essa combinação acaba desencadeando um
fluxo de refugiados em direção à Tailândia e ao próprio Vietnã, cerca de 30% da
população do Camboja (DAYLEY, 2013).
Nesse sentido, as rebeliões e insurreições contra o governo de Pol Pot passam
a ser constantes e de todos os setores da sociedade - do exército até uma parcela do
próprio PCK, sendo, contudo, duramente reprimidas. Nesse cenário de repressão
e carestia que assolava o Camboja, lideranças vietnamitas (apoiados pela URSS)
decidem apoiar os movimentos de resistência contra o Khmer Vermelho - criando
focos de instabilidade para o governo especialmente nas regiões fronteiriças. Por
outro lado, a China (após ruptura sino-soviética e aproximação com os EUA)
apoiava (com armamentos) o regime de Pol Pot a resistir às investidas vietnamitas
(BECKER, 1998).
Ao perceber que a crise no Camboja escalava rapidamente, em 1978 é fundada
pela oposição a Frente de Unidade Nacional do Kampuchea para a Salvação Nacional
(FUNKSN) para resistir e lutar contra o regime de Pol Pot, sendo liderada por
Heng Samrin (ex-general Khmer refugiado no Vietnã após a onda de perseguição
aos opositores) (VISENTINI et al., 2013). Diversos atritos seguem ocorrendo na
fronteira entre Camboja e Vietnã, até que em 1979 o Vietnã decide revidar aos
ataques enviando tropas para o país vizinho, para, também, realizar a salvação dos
vietnamitas que ali residiam (CHANDLER, 2008). É nesse momento que as forças
de Pol Pot são depostas, e é fundada a República Popular do Kampuchea (RPK).
Após a libertação do Camboja pelas forças do Vietnã, proclama-se a Repú-
blica Popular do Kampuchea (RPK); um regime de esquerda amplamente apoiado,
política e militarmente, pela URSS e pelo vizinho Vietnã. Líderes dissidentes do
Khmer Vermelho, descontentes com a forma com que Pol Pot conduziu o país, foram

122
A Revolução no Camboja: impactos na correlação de forças do final da Guerra Fria

as forças que buscaram reorganizar e reestruturar (entre 1979 e 1993) um país que
fora duramente assolado pela fome e que tivera sua população economicamente
ativa expressivamente reduzida (TULLY, 2005). Além disso, procurou-se retirar
o Camboja do isolamento no qual fora colocado em 1975 e modificar a visão que
a comunidade internacional tinha sobre o mesmo. Contudo, o abandono desse
isolamento foi dificultado pelas sanções econômicas que o país sofreu em razão
dos anos de violação aos direitos humanos durante o regime do Khmer Vermelho.
Após serem retirados do poder, Pol Pot e seus aliados mantiveram-se retirados
na fronteira entre Tailândia e Camboja, com o apoio da China (que se lança em
um confronto mais intenso na sua fronteira com o Vietnã, como forma de punição
pela invasão ao Camboja). As forças vietnamitas lançaram ofensivas contra esses
redutos do Khmer Vermelho até 1985, quando a grande maioria das forças foi
eliminada (BECKER, 1998).
Em 1986, iniciam-se, por parte da URSS, tentativas de resolução da
crise do Camboja. Regionalmente, a Indochina parece disposta a abrir o diálogo
e a solucionar as questões fronteiriças, pontos de atrito desde a independência
da região, e firmar acordos de paz. O Vietnã afirma que retirará suas tropas do
Camboja, desde que em contrapartida, os países da região assegurem o afastamento
do Khmer Vermelho também do poder no Camboja (BECKER, 1998).
Em certa medida, pode-se afirmar que a normalização interna do Camboja
foi possível graças à reaproximação entre China e URSS, iniciada em 1988. Na
contramão, tem-se um tensionamento nas relações entre China e EUA, em razão
das repressões do governo chinês nos protestos na Praça de Tiananmen em 1989.
A ONU, por sua vez, volta esforços para solucionar a crise do Camboja a partir do
final da década de 1980, culminando em 1991 na assinatura dos Acordos de Paz
de Paris, por meio dos quais seriam iniciados os processos de pacificação definitiva
do Camboja. A criação da Autoridade Provisória das Nações Unidas no Camboja
(UNTAC), em 1992, responsável por conduzir o processo de retorno à democracia
através da realização eleições gerais, é um exemplo da cristalização desses esforços
(DAYLEY, 2013). Assim, iniciou-se o longo e custoso processo de normalização
do Camboja.

123
REVISTA PERSPECTIVA

4 Consequências da Revolução: Correlação de Forças


Interna e Externa
Com as eleições em 1993, formou-se no poder uma coalizão entre o
FUNCINPEC, partido monarquista liderado por Norodom Rannaridh, filho
de Sihanouk, e o PPC, o Partido Popular Cambojano, liderado por Hun Sen,
importante líder de esquerda que atuou na deposição de Pol Pot. Tal coalizão teve
de ser formada porque, mesmo com a maioria dos votos colocando no cargo de
Primeiro-Ministro o Príncipe Rannaridh, o PPC não aceitou a derrota, forçando
um acordo que colocou Hun Sen como Segundo Primeiro-Ministro. Na prática,
por possuir larga influência no exército e em diversas esferas do governo, o maior
poder acabava ficando nas mãos do segundo (CHANDLER, 2008).
Depois das eleições de 1993, considera-se o início do período Pós-UNTAC,
quando se acredita- que se começou a fragilização processo de democratização
estimulado pelas forças das Nações Unidas. Enquanto buscava auxílio financeiro
além de suas fronteiras, o governo cambojano aprovava medidas que aumentavam
os salários do corpo político de maneira totalmente assimétrica. Enquanto policiais
e soldados ganhavam em média US$ 12 por mês, os legisladores do país recebiam
US$ 650. Os casos de corrupção, conhecidos desde os tempos de Sihanouk e Lon
Nol, se consolidaram, passando a clara ideia levantada por Tully (2005) de que
“quanto mais as coisas mudam, mais permaneciam as mesmas”. O autoritarismo
também tomou conta do governo, com diversas medidas anti-imprensa e repri-
mindo a liberdade de expressão de seus opositores.
O cenário pós-Revolução era de devastação e atraso da população. O país
permaneceu como uma das nações mais pobres do mundo, tendo entre um terço
e metade de seus 13 milhões de habitantes, à época, vivendo na miséria, ganhando
menos de US$1 ao dia. A corrupção latente afastou o investimento estrangeiro e as
taxas de crescimento econômico desmoronaram. As doações internacionais consti-
tuíam um auxílio fundamental. Em questões sociais, a prostituição se configurou
como um dos principais problemas, estimando-se que havia entre 60 e 80 mil
prostitutas no país, sendo um terço deste número constituído por menores de 17
anos. Os danos psicológicos e os traumas emocionais de um passado de genocídio

124
A Revolução no Camboja: impactos na correlação de forças do final da Guerra Fria

e miséria lançaram uma grande sombra que se manifestou em uma deterioração


social e de valores muito representativa (TULLY, 2005).
Em 1997, no entanto, a coalizão entre os dois partidos – parceiros na
corrupção e na repressão – chegou ao fim. Após algumas divergências entre
FUNCINPEC e PPC em relação à aceitação por parte de Hun Sen de diversos
desertores do Khmer Vermelho para fazerem parte do exército, Sen decidiu romper
as relações em um golpe de força. Diversos oficiais e apoiadores do partido monar-
quista foram mortos e o poder foi centralizado no PPC. Essa ação, no entanto,
eram equivocadas, se considerada a conjuntura internacional da época. Após
o golpe, diversas nações doadoras suspenderam seus auxílios, e o investimento
estrangeiro cessou. A aceitação do país na ASEAN foi postergada. O Camboja,
muito dependente de ajudas externas, vivenciou um dos piores momentos para a
sua imagem frente o SI.
Como solução encontrada, Hun Sen decidiu atender aos aconselhamentos
externos para que se promovessem eleições livres e justas em 1998. O PPC não
desejava colocar em votação seu poder adquirido por meio do golpe; muito menos
o FUNCINPEC, devastado pelos ataques sofridos, cogitava se colocar em uma
situação perigosa novamente. No entanto, percebendo que a vitória do PPC era
uma realidade, novas eleições foram levadas realizadas, o que culminou em uma
nova coalizão entre os dois partidos. O novo governo, com uma imagem mais
limpa após as eleições, pode desfrutar de um início de mandato relativamente
tranquilo. Em 1999, percebendo maior segurança interna dentro do país, a ASEAN
aceitou o Camboja como membro, sendo o último país da região a ser admitido
(CHANDLER, 2008).
Depois de se juntar à ASEAN, a política externa do Camboja tornou-se
mais ativa e engajada. Muitos foram os seus sucessos, a começar pela sua crescente
participação na estrutura securitária multilateral da região, no Fórum Regional da
ASEAN, o que assegurou uma importante medida para a construção de uma maior
confiança no que tange a assuntos externos de segurança do país. Além disso, graças
a sua presença na ASEAN, o Camboja pode desfrutar de um aumento nas suas
relações bilaterais com seus vizinhos. Por fim, deve-se considerar também que o país
foi capaz de estabilizar e consolidar a paz e a segurança internamente (KAO, 2001).

125
REVISTA PERSPECTIVA

Além da China, dois vizinhos cambojanos merecem atenção, embora por


motivos diferentes: Vietnã e Tailândia. O primeiro destaca-se pelo profundo e cres-
cente sentimento anti-vietnamita por parte da população do Camboja. Acredita-se
que esse sentimento tem diversas origens. Sabe-se que o ultranacionalismo tem
nutrido oposições ao regime de Hun Sen por muitos anos, desenvolvendo a ideia
de que o regime atual é um fantoche vietnamita. Assim, a oposição que se formou
contra o PPC também se insurgiu contra os vietnamitas. Outra visão agarra-se a
um passado colonial e de conflitos entre os dois vizinhos fronteiriços, alegando
que sempre houve uma orientação imperialista por parte do Vietnã em relação
ao Camboja, desde quando franceses empregavam vietnamitas na administração
cambojana até as reivindicações de territórios entre os dois países. Dessa forma,
sempre que a instabilidade pairava no Camboja, acreditava-se que o poder do país
poderia cair nas mãos do inimigo histórico. Com as crises de identidade cambojanas,
parecia que a solução era se agarrar a qualquer fator que pudesse trazer um senti-
mento de nação, o que, para muitos, foi o ódio anti-vietnamita, transformando-se
num elemento de identidade cambojano (BROWN, 1999; ZASLOFF, 1990).
Em relação à Tailândia, a situação foi diferente. Com o fim da Guerra
Fria, procurou-se no continente a instauração da paz, dando-se fim aos conflitos.
A ASEAN não figurava como um meio maduro para tratar diretamente com o
Camboja. Havia diferenças de pensamento muito claras quando o assunto era o país
. Enquanto Singapura, por exemplo, procurava tomar medidas contra o governo
de Hun Sen, a Tailândia desejava fazer da Indochina um mercado promissor onde
antes se fazia guerra, com um papel de liderança econômica desempenhado pelos
Tailandeses. Assim, o Primeiro-Ministro da Tailândia, Chatichai Choonhavan,
encontrou-se diversas vezes com Hun Sen para negociar programas de comércio e
também para dar fim ao imbróglio cambojano (DAYLEY, 2013).
O grande parceiro do Camboja, no entanto, foi a China. Com suas relações
internacionais abertas para o sudeste asiático graças à sua entrada na ASEAN,
e mesmo com maior equilíbrio político relativo nas relações com o Vietnã, o
Camboja não hesitou em inclinar-se ativamente e andar em direção à China. Isso
porque se enxergou na vizinha continental a potência regional que atuaria como
sua principal protetora na região, além de se considerar que sua forte economia

126
A Revolução no Camboja: impactos na correlação de forças do final da Guerra Fria

traria importantes investimentos e apoio, atuando como um parceiro estratégico


fundamental. Assim, a China pode fornecer apoio militar ao Camboja e concordou
com uma parceria cooperativa compreensiva, com a consulta de Pequim em ques-
tões de paz, estabilidade e desenvolvimento regional, assim como para assuntos
de natureza econômica. Um Acordo de Livre Comércio entre ASEAN e China,
assinado na cidade de Phnom Penh no ano de 2002, incluiu a classificação, para
algumas importações advindas do Camboja, de tarifa zero (DAYLEY, 2013). Em
troca, o Camboja passou a atuar mais ativamente nos fóruns regionais, com destaque
para a arena da ASEAN, defendendo os interesses chineses no Sudeste Asiático.
Por fim, como uma consequência da Revolução de 1975 que adquiriu
proporções para além do continente asiático, o terror instalado pelo regime de Pol
Pot, que percorreu as mídias do mundo inteiro, foi usado como um instrumento
pela direita internacional. Considerado uma dádiva para a propaganda antissocia-
lista em tempos de Guerra Fria, o regime foi apresentado como um resultado do
marxismo. Buscou-se, portanto, demonstrar os horrores do genocídio e ligá-los
intimamente ao comunismo, numa tentativa de até mesmo deslegitimar outras
revoluções de cunho socialista – por mais que a direita internacional apoiasse o
regime cambojano por meio da China (VISENTINI et al., 2013).

5 Conclusões

Assim como todas as revoluções e guerras que se sucederam no período da


Guerra Fria e que se inseriram na lógica de cooptação dos países de Terceiro Mundo
para as zonas de influência das duas superpotências ou para os conflitos proxies
das mesmas, a Revolução no Camboja acabou influenciando, em alguma medida,
a alteração da polaridade do Sistema Internacional. Para tanto, seria incompleto
analisar a alteração na polaridade após o fim da Guerra Fria sem antes analisar a
alteração na correlação de forças e interações entre as potências e superpotências,
que, de certa forma, permitiram que a Revolução no Camboja se desenrolasse da
forma que se desenrolou.
As duas mudanças de interação que foram significativas para a análise
que aqui se pretendeu fazer dizem respeito à reorientação da política externa

127
REVISTA PERSPECTIVA

chinesa. É nesse mesmo período da revolução no Camboja que a China passa a


se afastar (chegando a romper em 1980) da URSS. Não obstante, ela busca uma
aproximação com os EUA, os quais, orientados pela política de Reagan de nova
corrida armamentista, mostram-se dispostos a desenvolver essas novas relações.
Assim, ao analisarmos a atuação dessas forças no Camboja, tem-se: a China de
forma direta (justificados pelos atritos históricos desta com o Vietnã), e os EUA de
maneira indireta, apoiando a ala de Pol Pot do Khmer Vermelho e a URSS, que,
além disso, fornecia apoio irrestrito ao Vietnã, apoiando a ala do PCK que se opôs
àqueles (também mais moderada). Essas “alianças” deixam evidentes os contornos
de Guerra Proxy que a revolução e os posteriores conflitos entre Camboja e Vietnã
adquiriram em virtude da conjuntura.
Nesse sentido, a cada atrito entre Camboja e Vietnã - dado o contexto
de nova corrida armamentista da Guerra Fria - mais desgastada a URSS ficava
em termos de poder relativo. Passou a ficar cada vez mais custoso para a URSS se
inserir nessa nova modernização tecnológica e, ao mesmo tempo, apoiar militar-
mente as lutas de seus aliados. Assim sendo, uma vez que seu principal aliado nesse
conflito, o Vietnã - já desgastado das duas Guerras da Indochina - não conseguia
lidar sozinho com o Khmer Vermelho, a URSS procurou acelerar os processos
de pacificação, evitando um desgaste ainda maior em um momento em que suas
capacidades estavam sendo colocadas à prova. Pode-se afirmar que a aproximação
entre China e EUA nesse conflito contribuiu para o desgaste da URSS, e para a
posterior vitória da Guerra Fria pelos EUA, alterando, portanto, a polaridade do
Sistema Internacional.

Revolution in Cambodia: impacts on the correlation of forces of the


end of the Cold War

128
A Revolução no Camboja: impactos na correlação de forças do final da Guerra Fria

ABSTRACT: The aim of this article is to analyze the revolution that


occurred in Cambodia in the 1970s. It was sought to study the causes
that led to the revolutionary process, highlighting the main events
prior to 1975, and which contributed to the revolution. Attempts
have been made to demonstrate what were the internal forces during
the revolution, in addition to the external forces that, to some extent,
constrained these internal agents. Although the revolution ended in
1979, we will briefly look at the main events leading up to the Paris
Accords of 1991, marking the start of the process of normalization
in Cambodia. Throughout the article, we will try to point out the
attempts to end the revolutionary process (the counterrevolutionaries).
Finally, we will try to understand, even with the process of victorious
socialization, that is, the failure of the revolution, what were the
impacts for the International System.
KEYWORDS: Cambodia; Asia; International relations; Marxist
Revolutions

Referências

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129
REVISTA PERSPECTIVA

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e impactos internacionais. Porto Alegre: Leitura XXI/Nerint-UFRGS, 2013.

130
A Revolução Angolana e seu Impacto
Internacional

Amabilly Bonacina
Rafaela Serpa*

RESUMO: Este artigo tratará do processo revolucionário angolano a partir da


análise da Guerra de Independência e da Guerra Civil posterior, no período de
1975 a 2002, para compreender como se deu a inserção da Angola independente no
Sistema Internacional. A luta travada no país entre os diferentes grupos nacionalistas
- Movimento Popular de Libertação de Angola; Frente Nacional de Libertação de
Angola; União Nacional para a Independência Total de Angola - devastou setores
administrativos e econômicos e atraiu interesse tanto dos EUA e dos países europeus
quanto dos países vizinhos como Congo e África do Sul. Da mesma forma, países
como a URSS e Cuba tiveram grande papel na consolidação da Revolução em Angola.
PALAVRAS CHAVE: Angola; União Nacional para a Independência Total de
Angola (UNITA); Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA); Frente
Nacional de Libertação de Angola (FNLA); Revolução

* Graduandas em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
REVISTA PERSPECTIVA

1 Introdução

A Revolução em Angola ocorre dentro da segunda fase de independências


no continente africano durante a década de 1970. Essa segunda onda foi marcada
pela violência e pela radicalidade dos movimentos políticos, em decorrência, primei-
ramente, da intransigência da metrópole, e também da decepcionante experiência
histórica da maioria dos Estados africanos, cuja descolonização e independência
política foram vãs, pois não vieram acompanhadas de uma emancipação econômica
e cultural, levando ao neocolonialismo. Dessa forma, a Revolução em Angola,
de caráter marxista, traz à tona esses questionamentos, buscando alternativas de
desenvolvimento.
Internacionalmente, a Guerra Fria passava pelo período de détente, o qual
foi marcado pela diminuição das tensões entre Estados Unidos e União Soviética.
Entretanto, essa diminuição das tensões não é percebida no continente africano.
Como Vladimir Shubin (2008, p. XV) salientou, “as guerra travadas na África nesse
período não foram frias, mas bastante quentes”. E, principalmente, tanto Estados
Unidos quanto URSS atuaram diretamente apoiando os lados opostos do conflito.
Regionalmente, as décadas de 1960 e 1970 na África austral foram de intensa
tensão. Na Angola, na Namíbia, em Moçambique, na Rodésia (atual Zimbábue)
e na própria África do Sul, grupos guerrilheiros buscavam a independência dos
países e o fim dos regimes racistas.
O presente artigo tem como tema o processo revolucionário em Angola e
seus objetivos principais são (i) entender a consolidação da revolução a partir do
estudo dos processos de independência e da Guerra Civil no país; (ii) analisar o
impacto da atuação dos atores internacionais para a Revolução e (iii) compreender
os impactos da revolução no cenário da Guerra Fria. A hipótese central é de que a
Revolução Angolana foi a mais influente das revoluções africanas do período. Para
tal fim, o artigo se divide em apresentação do processo de independência, seguido
da descrição da guerra civil e por fim a análise do seu impacto internacional.

132
A Revolução Angolana e seu Impacto Internacional

2 O Processo de Independência em Angola

O império português foi o primeiro a chegar na África, ainda no século XV, e


o último a sair, somente na década de 1970. Em Angola, a chegada dos portugueses
foi em 1483, mas com atuação apenas no litoral, por meio de entrepostos. Apenas
no século XX, com a ascensão do salazarismo em Portugal, modificou-se a atuação
nas colônias africanas. Conforme Parada, Meihy e Mattos (2013), o impacto do
Estado Novo português (1930-1974) nas colônias foi profundo, principalmente
em Angola. O projeto “civilizador” de Salazar para as colônias portuguesas não
abria espaço para autonomia política, econômica ou administrativa por parte do
território colonial, e mantinha, por meio de uma forte repressão policial, uma
política racial discriminatória. Essa política discriminatória e autoritária começaria
a ser contestada em Angola no final da década de 1950.
A década de 1960 foi marcada pelas independências no continente africano;
entretanto, estas não ocorrem nos bastiões brancos do sul do continente. No caso
de Angola, Portugal recusa-se a conceder independência, autonomia ou qualquer
direito político aos nativos. Essa postura do governo português deve-se aos problemas
estruturais do país, como a economia, que não permitiriam promover uma relação
pautada no neocolonialismo, como as efetivadas por Inglaterra e França. Dessa
forma, a intransigência de Portugal acabou por desencadear a luta armada pela
independência em Angola (VISENTINI, 2012).
Em 1961 começam as primeiras ações armadas em Angola. A guerra contra
Portugal no país foi marcada pela presença de diversas organizações, com diferenças
sociais, étnicas e ideológicas. Segundo Elizabeth Schmidt (2013), três organizações
nacionalistas aglutinaram e dominaram a resistência armada em Angola. A primeira
delas foi o Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), fundado
ainda em 1956, e liderado por Agostinho Neto. O MPLA, grupo de orientação
marxista, era formado essencialmente por setores urbanos, assimilados, mestiços e
pela etnia Ovimbundu, e estava localizado na área central-norte do país, incluindo
a capital, Luanda (SCHMIDT, 2013). Vale ressaltar que o MPLA não prioriza
a questão racial e étnica na sua concepção, abarcando toda a sociedade angolana
(SILVA, 2008).

133
REVISTA PERSPECTIVA

O segundo maior movimento de independentista angolano foi a Frente


Nacional de Libertação de Angola (FNLA). A FNLA foi estabelecida em 1962,
e tinha como líder e fundador Holden Roberto, cunhado próximo de Joseph-
-Desiré Mobutu, presidente do Zaire (atual República Democrática do Congo).
Sua localização era no norte do país, na fronteira com o Zaire, e era majoritaria-
mente rural. Diferentemente do MPLA, defendia a questão racial, principalmente
relacionado aos brancos e mestiços presentes no outro movimento, se colocando
como “representante do autêntico nacionalismo africano” (SCHMIDT, 2013, p.
81). Ideologicamente, defendia ainda a retórica anticomunista, sem uma alterna-
tiva explícita e estruturada, buscando atrair aliados ocidentais, como os Estados
Unidos, e centrando-se na figura do seu líder (SCHMIDT, 2013; VISENTINI
et. al., 2013).
O terceiro e último movimento de libertação angolano é a União Nacional
para a Independência Total de Angola (UNITA), criada em 1966, a partir de
dissidentes da FNLA liderados por Jonas Savimbi. A base da UNITA era o sul
do país, com as etnias Ngangela, Chokwe e Ovimbundu. Inicialmente se declara
maoísta, mas logo toma uma postura anticomunista, com intuito de buscar novos
parceiros externos e de se vincular ao bloco ocidental da Guerra Fria. Essa cons-
tante diversificação das parcerias levou Savimbi a cooperar com Portugal contra
seus rivais, suspendendo suas operações militares em 1971, o que ficou conhecido
como Operação Madeira (SCHMIDT, 2013).
Mesmo Portugal sendo considerado um país sem muitos recursos e de segundo
escalão na Europa, é preciso considerar que seu potencial militar estava atrelado
à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), da qual era membro. A
OTAN, e, consequentemente, os Estados Unidos, a Inglaterra e a França, forneceram
apoio estratégico e material na repressão aos movimentos de libertação africanos.
Mesmo o Senado norte-americano tendo reconhecido, em 1959, a necessidade de
levar em conta o sentimento anticolonial na África, os norte-americanos apoiaram
Portugal até meados de 1974. Essa atuação dos países ligados à OTAN demonstrou
o caráter internacional da guerra colonial portuguesa contra a África (KIERNAN,
2009; SILVÉRIO, 2013).

134
A Revolução Angolana e seu Impacto Internacional

Segundo Visentini (2013, p. 342), “a estagnação econômica, a solidariedade


internacional à luta pela independência e o desgaste militar português na África
levaram ao êxito da resistência angolana” em 1975, devido às inúmeras ameaças ao
poder colonial português. Junto a isso, pode-se ainda ressaltar a rápida mudança
pela qual a sociedade portuguesa vinha passando no início dos anos 1970 - tanto
pela perda do mercado colonial, devido à entrada no Acordo de Livre Comércio
Europeu, quando pela crescente oposição da população ao regime ditatorial.
Esses fatores culminam, em abril de 1974, na Revolução dos Cravos: movimento
liderado por militares de esquerda portugueses que derrubou o regime salazarista
em Portugal. A derrubada do Estado Novo permitiu que, já em julho de 1974, o
novo governo anunciasse a concessão das independências às colônias africanas, o
que Westad (2005, p. 218) denominou de “colapso do Império português”.
As negociações para o estabelecimento da independência em Angola de
imediato se iniciam, levando à adoção, em 1975, do Acordo de Alvor. O Acordo
determinava um governo de transição entre Portugal e os três movimentos de
libertação angolanos (MPLA, FNLA e UNITA) com o propósito de estabelecer
os parâmetros para a partilha do poder e limitar as ações dos três movimentos
após a obtenção da independência de Angola. O governo provisório - composto
pelos representantes dos três movimentos - logo se fragmentou, com o aumento
das tensões pela tomada de poder (WESTAD, 2005).
Em novembro de 1975, ao mesmo tempo que o MPLA de Agostinho Neto
declarou em Luanda a República Popular de Angola, com a retirada de autoridades
e tropas portuguesas, a FNLA e a UNITA proclamaram, em Hambo, a República
Democrática de Angola. Portanto, a partir proclamação da sua independência,
Angola entrou em uma guerra civil entre o MPLA e o UNITA-FNLA que duraria
até início do século XXI (WESTAD, 2005; VISENTINI et. al., 2013).

3 Guerra Civil (1975-2002)

A Guerra Civil angolana eclodiu no ano de 1975, acentuando as rivalidades


que já vinham da época da pré-independência, e tornando Angola o centro da
geopolítica africana e global. Segundo Castellano da Silva (2017, p. 212), “Angola
foi palco dos interesses estratégicos de potências intermediárias da região (África

135
REVISTA PERSPECTIVA

do Sul e Zaire) e de fora dela (Cuba), bem como das potências globais (EUA,
URSS e China)”.
Após o Acordo de Alvor e a independência em novembro de 1975, constituiu-
-se dois governos paralelos, e mesmo com Portugal não reconhecendo qualquer
um deles até 1976, os demais países do Sistema Internacional foram aos poucos
reconhecendo o governo do MPLA. A independência de Angola desencadeou uma
fuga em massa da minoria branca, de volta a Portugal, ao Brasil e à África do Sul,
levando consigo sua riqueza e também seu conhecimento técnico, paralisando a
administração e a produção do país. Ademais, o país era o local de investimentos
de americanos, franceses, belgas e alemães ocidentais (VISENTINI et al., 2013;
SCHMIDT, 2013).
Os primeiros ataques entres os grupos se dão com o avanço da FNLA,
apoiada pelo Zaire, Estados Unidos e China, em direção à Luanda, que se encon-
trava sob o domínio do MPLA. Este, contando com o apoio do exército cubano,
da URSS e da Alemanha Oriental, não teve dificuldades em derrotá-los. Ao mesmo
tempo que combatia a FNLA no norte, o MPLA enfrentava a UNITA no sul, que
realizava uma ofensiva junto do exército sul-africano, também sob apoio norte-
-americano e, de menor intensidade, chinês. A UNITA ocupou um território do
sul de Angola como manobra para desestabilizar o governo do MPLA e sabotar a
infraestrutura angolana. Tanto o Zaire quanto a África do Sul estavam determi-
nados a instalar um governo alinhado em Angola, mas em 1978, por pressão dos
EUA e de Cuba, Angola assina com o Zaire um pacto de não agressão, que foi
cumprido, encerrando a atuação da FNLA no conflito, abrindo caminho para o
total apoio norte-americano à UNITA (VISENTINI et al., 2013; SCHMIDT,
2013; HÖRING, 2015).
Com o desenrolar do conflito, a UNITA se financiava por meio do comércio
de diamantes, extraídos das minas localizadas nos territórios que dominavam,
além da ajuda dos países já citados. Nesse contexto, Agostinho Neto morre em
1979, passando o poder a José Eduardo dos Santos. Este, segundo Westad (2005),
entendia bem o papel do MPLA na revolução socialista que vinha sendo liderada
por Moscou. Já em 1980 o MPLA dava sinais de estar perto de derrotar a UNITA,

136
A Revolução Angolana e seu Impacto Internacional

que, com o apoio da África do Sul, atacando a partir do Sudoeste Africano1,


tenta reverter a situação. Em 1981, Pretória lança a Operação Protea, uma grande
invasão à Angola, possibilitando à UNITA disseminar sua campanha de guerrilha,
acabando por ocupar a província de Cunene. Essa situação proporciona aos Estados
Unidos iniciar as negociações usando-se do princípio de linkage2 . Apesar da reação
angolana-cubana ter freado as investidas da África do Sul - cuja situação interna
estava consideravelmente abalada, condicionada pelo Apartheid -, mesmo assim,
a província Cunene ficou ocupada por sul-africanos até 1985 (VISENTINI et al.,
2013; WESTAD, 2005; HÖRING, 2015).
Em 1984, África do Sul e Angola negociaram sob mediação dos EUA,
resultando no Acordo de Lusaka, que definiu a retirada de Pretória dos territórios
ocupados; em contrapartida o MPLA impediria a Organização do Povo do Sudo-
este Africano, a SWAPO (sigla em inglês, South-West Africa People’s Organisation),
de usar territórios angolanos, se mostrando comprometida com o acordado pelo
linkage. As relações sul-africanas com a UNITA não foram discutidas e, apesar do
MPLA cumprir sua parte do acordo, o mesmo não foi respeitado pela África do
Sul. A UNITA quis negociar uma participação no governo do MPLA e também
exigia a retirada das tropas cubanas e soviéticas de Angola. Entretanto, estava cada
vez mais dependente da ajuda advinda de Pretória. Nesse momento, na nova fase
da Guerra Fria, os EUA aumentaram seu apoio aos movimentos racistas do sul
do continente, para que continuassem a fazer oposição aos movimentos de cunho
socialista. Do lado contrário, a URSS organizou três operações contra a UNITA
e a África do Sul: a Operação Congresso II, em 1985; ofensivas contra Moxico e
Cuando Cubando, em 1986; e a Operação Saludando Octubre em 1987, a fim de
capturar a base da UNITA em Mavinga e falhando em sua missão (VISENTINI
et al., 2013; HÖRING, 2015).
As tropas cubanas deixam o país em 1989, mesmo ano que a Namíbia
consegue sua independência, influenciando as prioridades da África do Sul. Entre-
tanto, os países ocidentais ainda apoiavam fortemente Savimbi. Em 1991, ressalta-se

1 O Sudoeste Africano, atual Namíbia, era um território ocupado ilegalmente pela África do Sul, não possuindo
governo independente, tratando-se, portanto, de uma colônia sul-africana (CASTELLANO DA SILVA, 2017).
2 Consistia na proposta americana da retirada cubana em troca da independência da Namíbia, que Pretória
aceitou (VISENTINI, 2010).

137
REVISTA PERSPECTIVA

as mudanças sofridas pela economia angolana, entrando na lógica liberal pregada


pelas instituições financeiras internacionais como o Fundo Monetário Internacional
e o Banco Mundial. Ademais, se abre o governo ao multipartidarismo, levando a
uma aproximação aos EUA. Em maio de 1991, firmou-se um Acordo de Paz em
Portugal, e no ano seguinte Dos Santos (representante do MPLA) venceu nas urnas,
não sendo reconhecido pelo líder da UNITA. Isso desencadeou o recomeço da
guerra civil e a quase derrota as forças do governo. Rapidamente, o MPLA ocupa
mais da metade do país, mas neste momento foi possível perceber a influência
estrangeira na batalha travada em Angola: com a ascensão de Nelson Mandela em
1994 e a queda de Mobutu no Zaire em 1997, a UNITA perdeu forças, apesar
da rendição só se dar em 2002 com a morte de Savimbi (VISENTINI, 2010).

4 Impacto Internacional
O primeiro impacto da Revolução Angolana, e das revoluções terceiro-
-mundistas que ocorrem simultaneamente na década de 1970, é o crescimento do
bloco socialista. Com a cisão sino-soviética, cabia à URSS buscar novos parceiros
para contrabalançar o desequilíbrio estratégico que a aproximação chinesa com os
Estados Unidos causou na polaridade do Sistema Internacional (VIZENTINI, 2000).
A reação conservadora por parte das potências ocidentais que acabou por
encerrar a détente esteve diretamente ligada às revoluções de caráter marxista vitoriosas
nesta época, como a angolana. Assim como em toda a revolução, ocorrem as reações
contrárias a essas mudanças, caracterizadas como contrarrevoluções (HALLIDAY,
1989). Essa reação inicia-se ainda no governo Carter, com ataques à coexistência
pacífica por parte de Brzezinski, assessor da presidência; entretanto, sua formali-
zação ocorreria com a chegada ao poder de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e
Margareth Thatcher, no Reino Unido. A própria emergência do neoliberalismo pode
ser caracterizada como parte de uma estratégia de contrarrevolução profunda. Em
Angola, a contrarrevolução é encabeçada pela África do Sul, mantendo a ocupação
no sul do país e apoiando a guerrilha UNITA, além de sabotar constantemente a
infraestrutura de Angola (VIZENTINI, 2000).
Os Estados Unidos, e o bloco capitalista como um todo, saem derrotados
da revolução angolana. Sua estratégia de policiamento do continente, conhecida

138
A Revolução Angolana e seu Impacto Internacional

como “policeman’, fracassa; e mesmo apoiando várias guerrilhas anticomunistas,


não conseguem vencer. Sua estratégia de não atuar diretamente nos conflitos, devido
à “síndrome do Vietnã”, os manteve retraídos em relação a um Terceiro Mundo
que aprofundava cada vez mais suas revoluções. Em decorrência desses fatores, na
década de 1990, os Estados Unidos decidem mudar sua política para a África, a
partir de um afastamento África do Sul, e um maior distanciamento de conflitos
no continente (WESTAD, 2005; VIZENTINI, 2000).
A URSS se sentiu compelida a entrar no conflito angolano para contrapor
a presença norte-americana. Ao apoiar o MPLA, pretendia manter seu status de
grande potência na África; até então não tinha sido tão atuante na questão, motivada
pelo fato do Kremlin não aprovar as intervenções propostas. A crença era de que
em algum momento a UNITA cederia e voltaria a negociar com o MPLA, porém a
ajuda dos Estados Unidos fez com que eles não sentissem necessidade de flexibilizar
seus termos de negociação. O que se observou na política soviética africana foi que
se configurou como reativa e oportunista. A aliança entre Estados Unidos e China
também foi importante para essa mudança de atuação no continente africano: os
soviéticos viram nas independências do Terceiro Mundo a possibilidade de novos
aliados para contrabalançar o poderio norte-americano e chinês. Essa participação
desencadeou a presença da China no continente, visando evitar que o Kremlin
aumentasse sua influência junto aos países de Terceiro Mundo (CHAZAN et al,
1992).
Para os países africanos como um todo, a Revolução Angolana teve grande
impacto, principalmente referente a mudanças de atuação das grandes potências
no continente. A nova possibilidade de apoio tanto soviético quanto cubano trazia
uma nova opção para o desenvolvimento dos países, e a possibilidade de buscar
vantagens dos dois lados. Ainda se deve ressaltar a vitória do MPLA sobre as forças
apoiadas fortemente pelos Estados Unidos, trazendo a possibilidade de derrota da
Grande Potência dentro do continente (WESTAD, 2005). Dessa forma, pode-se
concluir que a atuação dos Estados Unidos e da União Soviética possibilitaram o
desencadeamento e a consolidação da revolução angolana, pois, conforme Halliday
(1989), o sucesso da revolução depende do contexto internacional em que a revo-
lução se insere, visto que questiona uma estrutura vigente.

139
REVISTA PERSPECTIVA

A África do Sul, no entanto, sai como o grande derrotado do conflito.


O exército sul-africano, considerado um dos melhores do mundo, é totalmente
derrotado pelas forças angolanas com apoio de Cuba e da URSS. As revoluções
na África austral colocam um fim nos regimes racistas nesses países, e a África
do Sul é isolada no continente, sofrendo amplo boicote e pressão externa. Como
consequência, em 1990 ocorre a independência da Namíbia, e ainda na mesma
década o fim do regime do Apartheid (PEREIRA, 2010).
Em relação à presença cubana, o que se observa é que foi bem mais expressiva
que a ajuda soviética. Agostinho Neto fazia visitas frequentes a Havana, tendo uma
grande identificação ideológica com Castro. Também para a ilha a aproximação com
a Angola representava estar mais próximo dos países de Terceiro Mundo, podendo
aumentar seu prestígio frente a eles. A participação cubana acabou sendo vital para
a vitória do MPLA, pois como se afirmou, por vezes o exército cubano foi chamado
a reforçar as tropas ligadas ao MPLA. Por fim, ainda se pode acrescentar a vitória
das forças apoiadas pelos cubanos sobre as forças apoiadas pelos Estados Unidos,
que foi significativa para Havana (CHAZAN et. al., 1992).

5 Conclusões

Por meio do presente artigo foi possível fazer uma revisão histórica do que
significou a Revolução Angolana para as Relações Internacionais. A revolução
em Angola foi de grande impacto para Portugal, não só porque era sua principal
colônia, mas também para o bloco capitalista como um todo, devido às suas grandes
potencialidades econômicas (petróleo, ferro, diamantes, minerais estratégicos e
produtos agrícolas) e sua posição estratégica no Atlântico Sul e na África Austral.
Percebe-se também o grande impacto que os atores internacionais tiveram
durante o processo revolucionário - tanto positivos quanto negativos. Os países
não-alinhados, URSS, China, Cuba, e países vizinhos, como Tanzânia e Zâmbia,
deram importante apoio e ajuda direta a esses movimentos. Ao mesmo tempo,
os Estados Unidos e os países Europeus (principalmente as antigas metrópoles)
apoiavam a presença portuguesa, e posteriormente do sistema capitalista nos países
africanos, para impor seus desígnios à geopolítica internacional. Esses apoios vieram
por meio dos três grupos presentes na independência e na guerra civil de Angola:

140
A Revolução Angolana e seu Impacto Internacional

o Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA); a Frente Nacional de


Libertação de Angola (FNLA); e a União Nacional para Independência Total de
Angola (Unita). O MPLA foi o vencedor da guerra civil, e instaurou um regime
marxista no país.
Por fim, percebemos a relevância da revolução em Angola ao analisar seus
impactos regionais e internacionais. As derrotas norte-americana e sul-africana são
um grande marco da revolução, que ocasionou grandes mudanças políticas nos
dois países, como a reação conservadora nos Estados Unidos e o fim do regime do
Apartheid na África do Sul. Já a URSS, e o bloco socialista como um todo, saem
vitoriosos, devido primeiramente ao seu crescimento, e do sucesso da nova atuação
soviética no continente africano. Vale destacar a atuação cubana na revolução, de
grande importância para a vitória do MPLA. Assim, de certa forma, Cuba derrota
novamente as forças norte-americanas e consolida suas relações com a África e com
o Terceiro Mundo. Dessa forma, o Terceiro Mundo como um todo sai fortalecido,
pois além da possibilidade de novas formas de desenvolvimento, se torna uma força
importante na balança do Sistema Internacional. Entretanto, o maior impacto
da revolução angolana é a contrarrevolução que desencadeia, a partir da reação
conservadora, que irá modificar drasticamente as relações entre as superpotências,
levando ao fim da Guerra Fria.

The Angolan Revolution and its International Impact

ABSTRACT: This article will deal with the Angolan revolutionary process from the
analysis of the Angolan War of Independence and the later Civil War, from 1975
to 2002, to analyze how the insertion of independent Angola into the International
System took place. The struggle waged in the country between the different nation-
alist groups - Popular Movement for the Liberation of Angola; National Liberation
Front of Angola; National Union for the Total Independence of Angola - devastated
administrative and economic sectors and attracted interest from both the US and
European countries as well as neighboring countries like Congo and South Africa.
Likewise, countries such as the USSR and Cuba played a major role in the consol-
idation of the Revolution in Angola.

KEYWORDS: Angola, UNITA, MPLA, FNLA, Revolution.

141
REVISTA PERSPECTIVA

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143
Revolução Etíope: impactos regionais e sistêmicos

Luiza Nunes Corrêa*

RESUMO: O presente artigo busca analisar a revolução etíope de 1974 e


seus desdobramentos para a inserção internacional do país. Primeiramente,
faz-se uma breve introdução do tema e do país em questão. Depois, há um
histórico dos antecedentes da revolução e do processo revolucionário em
si. Em seguida, são demonstrados seus efeitos para sua inserção regional
e internacional, além das repercussões para o Sistema Internacional e seu
equilíbrio de poder. A isso segue-se a conclusão, na qual observa-seque,
apesar de ser seguidamente esquecida, a revolução etíope foi de grande
importância não só para a região, mas para o sistema internacional e para
o conflito entre as superpotências que ocorria no período.
PALAVRAS-CHAVE: Etiópia; Revolução; Chifre Africano; Guerra Fria.

* Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Revolução Etíope: impactos regionais e sistêmicos

1 Introdução
As revoluções têm sido um aspecto pouco presente nos estudos de Relações
Internacionais, apesar de seus importantes desdobramentos, não só internamente
para os Estados, como também para o Sistema Internacional como um todo. As
teorias mainstream acabam por não abordá-las, focando principalmente nas guerras
interestatais(HALLIDAY, 1999).
A Revolução Etíope ocorre durante o período de Guerra Fria e impacta dire-
tamente nas relações entre as duas potências hegemônicas. Além disso, se insere no
contexto da descolonização africana e em uma década em que ocorrem importantes
revoluções, tanto na África quanto no Oriente Médio. No presente artigo, busca-se
analisar não só seus condicionantes e os condicionantes do processo revolucionário
em si, mas também seus impactos, tanto internos, devido às questões étnicas do país,
quanto regionais e internacionais, baseando-se, assim, na forma de análise proposta
por Halliday (1994). Segundo esse autor, as revoluções são eventos internacionais
nos quais seria possível observar um certo grau de uniformidade. Seriam quatro as
áreas em que poderíamos fazer essas observações: nas causas da revolução, quanto
à influência dos fatores externos; na política externa dos Estados revolucionários;
nas reações dos outros Estados; nos fatores externos e no Sistema Internacional, que
constrangem o desenvolvimento interno do Estado revolucionário (HALLIDAY,
1994). Assim, justifica-se a forma de análise apresentado por este trabalho.
A Etiópia éo segundo país mais populoso da África (com cerca de 94 milhões
de habitantes),localizado no coração do chifre africano e cujo histórico remete há
milhares de anos. Sua história é permeada pela forte presença religiosa, em especial
na sua formação – que se deu, em síntese, pela dominação dos povos originários
do Sul pelos povos do Norte (CARVALHO, 2013; SCHNEIDER, 2010).
Nota-se que o processo de formação do território etíope é distinto do
restante da África, visto que ocorreu por meioda conquista militar dos próprios
povos originais e não por imposição colonial europeia. Esse fator tem consequências
até hoje, havendo grande número de etnias coabitando o território e disputando
representação política, por meiodo chamado federalismo étnico.

145
REVISTA PERSPECTIVA

O fato de não ter havido dominaçãoestrangeira no país é motivo de orgulho


nacional, tendo inclusive influenciado uma série de movimentos sociais mundo
afora, como o movimento rastafári e o pan-africanismo, tornando a Etiópia um
exemplo de resistência na África negra. Sua ocupação por tropas italianas a partir
de 1935 e o apoio para a libertação do território (a qual ocorre em 1941) oferecido
pelas então metrópoles Inglaterra e França gerou uma contradição – de potências
coloniais sendo a favor da independência de um país africano – que incentivaria
movimentos de descolonização no continente (VISENTINI, 2010).
Uma das principais características do país era a manutenção das estruturas
sociais e políticas há muito estabelecidas, como o regime imperial. O último
imperador,HailéSelassié, tornou-se parte da estrutura depoder ao casar-se com uma
das filhas de Melenik II, na época imperador da Etiópia. Ele assumiria o trono em
1928, o que levaria a um longo e conturbado período de governo, se encerrando
somente na década de 1970 (MARCUS, 1994). O período posterior à sua coroação
como imperador, ocorrida em 1930, foi marcado por uma série de reformas na
estrutura política etíope. A Constituição formalmente apresentada em 1931 previa
uma legislatura bicameral, em que pela primeira vez pessoas de fora do circuito
nobre poderiam participar da política – ainda que essas participações não tenham
ocorrido de imediato. Ademais, foram empreendidos esforços no desenvolvimento
de infraestrutura e comunicação (rádios, linhas de telégrafo, importação de carros
para transporte) e reformas educacionais afim de desenvolver o capital humano
no país, embora essas reformas não tenham sido universais no que diz respeito ao
acesso à educação (MARCUS, 2002). Pode-se dizer, assim, que
[...] as reformas lideradas por HailéSelassié ajudaram a criar o bloco de cons-
trução fundamental para a metamorfose gradual da Etiópia de um Estado
feudal e tributário em uma estrutura econômica com lógica monetária e
um participante na ordem econômica do mundo moderno (ADEJUMOBI,
2007, p. 57, tradução nossa)1.

As reformas de Selassié contaram também com a contratação de especialistas


europeus, os quais auxiliaram na conclusão de um tratado entre Etiópia, Inglaterra,
França e Itália para a compra de armamentos. Preocupado com sua segurança
1 Do original: Haile Selassie–led reforms helped create the foundational building block for the gradual meta-
morphosis of Ethiopia from a feudal or tributary state to a cash-nexus economic structure and a participant in
the modern world economic order (ADEJUMOBI, 2007, p. 57).

146
Revolução Etíope: impactos regionais e sistêmicos

interna, o país tinha pouco poder de influência sobreas colônias vizinhas, o que
facilitou a conclusão desse acordo em 1930, representando um marco no reconhe-
cimento da Etiópia como um Estado soberano, com capacidade de exercer poder
livremente dentro de seu próprio território (MARCUS, 1994; SCHWAB, 1985).
Isso não impediu que a Itália invadisse a Etiópia em 1935, usando como
pretexto um pequeno incidente. Essa ação militar já era planejada, pelo menos,
desde 1931, e foi facilitada pela política de apaziguamento praticada pelas outras
potências europeias, as quais tentavam evitar uma outra guerra desgastante como
fora a Primeira Guerra Mundial. O bloqueio da venda de armas para ambas as
partes prejudicou de maneira significativa o exército etíope, que acabou derrotado,
obrigando seu imperador a fugir do território em 1936 (ADEJUMOBI, 2007;
VISENTINI, 2010).
Selassié somente retornou ao comando do país em 1941 e, até o golpe em
1974, a ação da Etiópia na região e no cenário internacional passa a ser bem mais
assertiva, orientada a partir de uma agenda que buscava, entre outros, o acesso
ao mar, a recuperação da Eritreia, a obtenção de reparações de guerra da Itália, a
assistência para a modernização militar e, por fim, a contribuição estadunidense
por meiode investimentos em projetos de desenvolvimento, de transferência de
tecnologias e de apoio político (MARCUS, 1994).
O ponto alto da ação regional etíope é a anexação daEritréia, em 1962, a
qual não ocorre sem conflitos – que persistiriam não só durante a administração
de Selassié, mas durante todo o período posterior. Essa política levou também a
uma posição de liderança no continente africano, principalmente no âmbito da
Organização da Unidade Africana (OUA) (criada em 1963)pois a ênfase que o
discurso etíope colocava no fato de o país nunca ter sido oficialmente colonizado
atraía a admiração de diversos povos do continente e até mesmo de fora dele
(HALLIDAY& MOLINEUX, 1981).

147
REVISTA PERSPECTIVA

2 O Processo Revolucionário

2.1 Antecedentes

As contradições que originaram a revolução que destituiriaHailéSelassié já


se faziam presentes há bastante tempo, sendo claro que mudanças extremas eram
necessárias para reverter as características pré-capitalistas da sociedade etíope, a qual
continha elementos que a aproximavam de um sistema feudal, principalmente em
relação à propriedade da terra e à extração de excedentes agrícolas (HALLIDAY&
MOLINEUX, 1981; SCHMIDT, 2013). Porém, nada indicava que correriam
mudanças tão drásticas e, principalmente, que o novo regime seria de esquerda,
vistoque o país não contava com um partido ou com organizações socialistas. Assim,
os EUA não conseguiram evitar a revolução não devido a qualquer atuação sovié-
tica, mas por que ela ocorreu de forma espontânea a partir dos constrangimentos
internos (HALLIDAY& MOLINEUX, 1981).
No ano de 1960, se iniciam os eventos que culminariam na derrubada do
regime: ocorre uma tentativa golpe para derrubar o imperador, que é impedido
pelos militares. Assim, estes passam a ter maior consciência de seu poder e de sua
importância para a manutenção do regime, levando o imperador a fazer concessões
cada vez maiores para garantir seu apoio (HALLIDAY& MOLINEUX, 1981;
WESTAD, 2005;VISENTINI, 2013). A anexação da Eritreia (1962) - e, conse-
qüentemente, a luta de libertação desencadeada pela EPLF- e as rebeliões de Gojjam
(1967-1968), aceleram esse processo, o que soma-se a uma maior politização dos
estudantes, os quais foram os responsáveis por fazer a ligação entre os militares, os
camponeses e o proletariado urbano, todos descontentes com a situação do país
(TAREKE, 2009; VISENTINI, 2013).
O baixo desenvolvimento econômico, o desemprego, a concentração cada
vez maior de poderes nas mãos do imperador, a crise agrícola e as tentativas falhas
de modernização da produção no campo aumentaram a pressão por reformas,
principalmente por parte dos estudantes (SCHMIDT, 2013). A essas questões
associavam-se o baixo nível de integração à economia internacional e a baixa inte-
gração entre as regiões do país (HALLIDAY& MOLINEUX, 1981).

148
Revolução Etíope: impactos regionais e sistêmicos

2.2 A Revolução Etíope


O golpe ocorre após uma grande seca causar devastação econômica e priva-
ções à população, entre1972-1973, ocasionando a morte de aproximadamente
300 mil pessoas como consequência da recusa do governo central em pedir ajuda
externa (temendo pela imagem externa do país) e do fato de que os camponeses
foram forçados a continuar produzindo para exportação (VISENTINI, 2013;
SCHMIDT, 2013). O quadro foi agravado pelo primeiro choque do petróleo
ocorrido no mesmo ano, o qual aumentou a inflação e as pressões econômicas
sobre a população (HALLIDAY& MOLINEUX, 1981; VISENTINI, 2013;
SCHMIDT, 2013)
A deflagração do golpe ocorre em fevereiro de 1974, quando militares
dissidentes tomam várias cidades e cercam prédios públicos na capital, após um
aumento crescente nas desde o mês anterior:
O estágio final da revolução etíope começou em janeiro de 1974, com
uma série de motins liderados pelos militares em várias províncias e com
demonstrações da população inquieta na capital. No que começara inicial-
mente como um fenômeno urbano, estudantes, professores, serventes civis
e soldados embarcaram numa rebelião contra os representantes imperiais de
HailéSelassié, seus apoiadores da nobreza e da aristocracia feudal e a nascente
burguesia nacional. Campanhas populares e revoltas foram acompanhadas
por pedidos de separação entre Igreja e Estado e de igualdade religiosa,
regional, ocupacional e socioeconômica (ADEJUMOBI, 2007, p. 119,
tradução nossa)2.

Selassié consegue conter os protestos dos militares atendendo às suas


reivindicações, mas apenas temporariamente, pois naquele momento inicia-se
uma politização cada vez mais aguda dos militares, dos estudantes, dos profes-
sores, dos taxistas, dos membros da burocracia estatal, dentre outros grupos, que
continuam mobilizados e fazem oposição ao regime (HALLIDAY& MOLINEUX,
1981; VISENTINI, 2013). A situação permanece estagnada até junho, quando
ocorre uma revolta de jovens oficiais, a partir da qual é formado o Derg (Comitê

2 Do original: The final stage of Ethiopian revolution began in January 1974 with a series of mutinies led by
the military in various provinces and demonstrations by restive citizenry in the capital. In what initially started
as an urban phenomenon, students, teachers, civil servants, and soldiers embarked on a rebellion against the
imperial representatives of Haile Selassie, its supporters of nobility and feudal aristocracy, and the nascent natio-
nal bourgeoisies. Popular campaigns and uprisings were accompanied by calls for the separation of church and
state and equality of religious, regional, occupational, and economic groupings (ADEJUMOBI, 2007, p. 119).

149
REVISTA PERSPECTIVA

de Coordenação das Forças Armadas, Polícia e Exército Territorial) (CLAPHAM,


1987).
Os debates sobre o modelo de governo a ser adotado se arrastaram por meses,
e, com o fracasso das negociações em setembro do mesmo ano, o Derg dissolveu o
parlamento e destituiu HailéSelassié, abrindo a possibilidade para oestabelecimento
de um regime de orientação marxista-leninista – por meioda apropriação das ideias
revolucionárias da esquerda etíope (WESTAD, 2005; VISENTINI, 2013). Em
outubro, a possibilidade de uma transferência de poder para os civis foi afastada, e o
Derg assume efetivamente o governo, imprimindo, primeiramente, uma orientação
nacionalista (HALLIDAY& MOLINEUX, 1981; TAREKE, 2009).
O General AmanAndom foi escolhido como primeiro porta-voz do regime,
apesar de não ser um membro do Derg. Porém, suas políticas conciliatórias em
relação à Eritréia e sua recusa em executar os aristocratas fizeram com que ainda
em novembro acabasse assassinado (supostamente por resistir à prisão), sendo
substituído pelo General Tafari Benti (HALLIDAY& MOLINEUX, 1981). Em
seguida, tiveram início as execuções de oficiais do antigo regime, além da serem
proibidas greves e protestos (HALLIDAY& MOLINEUX, 1981; WESTAD, 2005).
As Diretrizes Políticas sobre o Socialismo Etíope, lançadas em dezembro de
1974, introduziram os conceitos de igualdade social e de dignidade trabalhista,
rompendo com as diferenças de classe bastante acentuadas que caracterizavam o
regime anterior, principalmente por seu caráter feudal – o qual manteve apesar das
tentativas de realização de uma modernização conservadora (VISENTINI, 2013).
O novo governo reformulou ainda a economia, estabelecendo um programa de
reforma agrária e estatizando diversas empresas. Também ocorreram reformas no
sentido de incentivar a diversidade religiosa do país e diminuir o poder da Igreja
Copta, principalmente o econômico, visto que foi bastante afetada pela expropriação
de terras(CLAPHAM, 1987; SCHMIDT, 2013).
Esse programa de reforma agrária sofreu certa oposição, principalmente
de grupos da região de Gojjam, onde haviaum sistema de posse comunal da terra
(VISENTINI, 2013). Juntamente com essa oposição, as reivindicações de grupos
civis por maior participação no processo decisório criaram um clima de instabi-
lidade naquele momento, dificultando a consolidação dos militares no poder.

150
Revolução Etíope: impactos regionais e sistêmicos

Outro aspecto importante nessa delicada situação foram as divisões internas ao


Derg, culminando com expurgos de opositores por parte do líder Mengistu Haile
Mariam, o qual se consolidarano poder em 1977 (HALLIDAY& MOLINEUX,
1981; WESTAD, 2005; VISENTINI, 2013).
O anúncio dessas medidas se deu sem preparação prévia, sofrendo oposição
tanto da esquerda quanto da direita. A falta de capacidade administrativa do Derg
e a falta de uma orientação política clara dificultaram ainda mais sua implemen-
tação. Esse problema ameaça se resolver com a publicação, em abril de 1976, do
programa Revolução Democrática Nacional,mas sua implementaçãotanto política
(criação de um partido socialista etíope) quanto econômica é atrasada por uma série
de razões: as guerras na Eritréia e emOgaden, os conflitos entre civis e militares, as
fracas capacidades administrativas do regime e os preços do café, principal produto
de exportação do país (MARCUS, 2002; TAREKE, 2009;).
Somente em 1978 aparecem sinais de que esses problemas podem ser
resolvidos, com o lançamento de uma Campanha Nacional Revolucionária de
Desenvolvimento Econômico, a partir da qual foram lançados dois planos com a
duração de um ano cada para os anos de 1978-1979 e 1979-1980 (HALLIDAY&
MOLINEUX, 1981). Em 1979, ocorreu o lançamento de um ambicioso plano de
alfabetização em massa, o qual conseguiu atingir seus objetivos e recebeu prêmios
internacionais, sendo o da UNESCO o de maior destaque (SCHMIDT, 2013;
VISENTINI, 2013). Já em 1980, foi lançado um plano de dez anos, porém o
desempenho econômico durante o regime revolucionário ficou muito aquém das
expectativas, inclusive apresentando, em alguns anos, indicadores piores do que
os do período anterior (HALLIDAY& MOLINEUX, 1981; SCHWAB, 1985).

3 Impactos Internos e Regionais

O caráter “de cima para baixo” da revolução, ou seja, o fato desta não ter
ocorrido por meio de rebeliões provinciais que derrubaram o imperador, não
impediu que ocorresse uma conscientização do nacionalismo etíope, o que deu
origem a diversos movimentos separatistas. O baixo nível de integração predomi-
nante durante o regime imperial se manteve no período posterior, principalmente

151
REVISTA PERSPECTIVA

pela falta de capacidade do Derg de controlar efetivamente o território, o que


influenciou a desestabilização (HALLIDAY& MOLINEUX, 1981).

3.1 A Guerra de Ogaden


A percepção dessa situação instável por parte da Somália reacendeu o desejo
de criação de uma “grande Somália”3, que incorporaria o deserto de Ogaden,
território etíope (HALLIDAY & MOLINEUX, 1981; VISENTINI, 2013). No
contexto da Guerra Fria, o chifre africano tinha uma grande importância devido
à sua posição estratégica, fazendo com que os conflitos na região e a ascensão de
um regime socialista em seu maior país não passassem despercebidos às potências
hegemônicas (CHAZAN ET AL, 1999; VISENTINI, 2013). Assim, EUA e URSS
apoiaram lados opostos do conflito, tendo ocorrido uma inversão das alianças que
predominavam antes de 1974.
Os EUA, até a revolução, apoiavam o imperador Selassie, mas pouco fizeram
para impedir sua queda e, aos poucos, se aliaram à Somália. Enquanto isso, apesar
da não terem tido influência na orientação socialista do novo regime etíope, tanto
Cuba quanto URSS se aliaram, aos poucos, aos etíopes, abandonando sua aliança
com os Somalis. Nesse conflito, tanto o apoio soviético quanto o cubano foram
de extrema importância para a vitória etíope em 1978 e propiciaram uma apro-
ximação deste país com o bloco socialista. Esse apoio ocorre tanto na forma de
venda de equipamento militares, quanto no fornecimento de tropas e assessores
(HALLIDAY& MOLINEUX, 1981; VISENTINI, 2013).
A Somália, assim como a Etiópia, passava à época por diversos problemas
internos, desde a ascensão do General Siad Barre ao poder em 1969, por meiode
um golpe militar (SCHMIDT, 2013; HALLIDAY& MOLINEUX, 1981). No
ano seguinte, o regime de Barre expulsou todos os diplomatas e militares norte-
-americanos, passando a receber ajuda soviética, a qual foi fundamental durante a
seca que assolou o país em 1974-1975 (SCHMIDT, 2013).

3 A “Grande Somália” é uma ideologia nacionalista pan-somali (de certa forma incentivada pelos britânicos no
momento da independência) de reunir todos os territórios habitados por somalis no Chifre da África (Ogaden,
Djibuti e norte do Quênia) sob o mesmo governo. Essa ideologia foi defendida pelos líderes somalis desde a
independência do país em 1960. Nesse contexto, a anexação do deserto do Ogaden seria o primeiro passo para
concretizar este projeto pan-somali (TAREKE, 2009; VISENTINI, 2013).

152
Revolução Etíope: impactos regionais e sistêmicos

O auxílio soviético, porém, não se limitou aos campos humanitário e econô-


mico, tendo destacada importância para a modernização do exército somali, o qual,
em 1976, era um dos mais bem equipados da África subsaariana. A transformação do
porto de Berbera no Mar Vermelho em uma base aérea e naval sofisticada também
foi obra dos soviéticos, os quais tinham ainda acesso ao porto de Mogadiscío no
Oceano Índico (SCHMIDT, 2013; TAREKE, 2000).
Apesar de a invasão da região deOgaden pelo exército somali só ter ocor-
rido em junho de 1977, desde 1976 Mogadiscío patrocinava a ação de guerrilhas
em território etíope, aproveitando-se da instabilidade interna (TAREKE, 2000). A
guerra de atrito que se seguiu a essa invasão contou, no princípio, com expressivas
vitórias do exército invasor e quase os possibilitou conquistar a região, principalmente
devido à desorganização das tropas etíopes (SCHNEIDER, 2010; ;TAREKE, 2000).
Porém, a vantagem numérica etíope e os erros nalogística e na cadeia de comando
dos somalis (os quais tinham se programado para uma guerra curta) fizeram com
que a situação se revertesse (HALLIDAY& MOLINEUX, 1981; TAREKE, 2000).
Ainda assim, o principal fator que contribuiu para a vitória etíope foi o
rompimento de Siad Barre com os soviéticos, os quais, juntamente com os cubanos,
passaram a auxiliar o regime de Mengistu, enquanto a ajuda ocidental à Somália
não foi capaz de preencher de imediato aquelevácuo (TAREKE, 2000).
As disputas entre os dois países já vinham ocorrendo há algumas décadas,
com cada umtentando isolar o outro politicamente na região e no continente
como um todo, ao mesmo tempo em que patrocinavam opositores do regime que
estava no poder (YIHUN, 2014). Essa dinâmica se manteve mesmo durante as
negociações de paz, com o regime etíope buscando a fragmentação do rival, o que,
juntamente com os esforços somalis para isolar o regime etíope, contribuiu para
que as negociações de paz e a demarcação de fronteiras se arrastassem por vários
anos (HALLIDAY& MOLINEUX, 1981; YIHUN, 2014). Um dos principais
pontos de discordância entre eles era a preferência de Adis Abeba pela resolução
das questões por meioda Organização da União Africana, enquanto Mogadiscío
busca internacionalizar a questão; (HALLIDAY& MOLINEUX, 1981; YIHUN,
2014).

153
REVISTA PERSPECTIVA

3.2 As questões da Eritreia e da região Tigray


Já nos casos da guerra contra a Eritreia e das rebeliões internas, principal-
mente nas regiões de Oromo e de Tigray, nem mesmo o apoio soviético foi capaz
de assegurar a vitória definitiva ao regime, fazendo com que esses conflitos se
arrastassem durante todo o período, variando sua intensidade ao longo do tempo.
Essa conjuntura foi extremamente prejudicial para a implantação das políticas de
desenvolvimento econômico do regime, o qual via seus recursos desviados para o
esforço de guerra (VISENTINI, 2013).
A Eritréia foi conquistada pela Itália em 1890 e fora ocupada por forças
britânicas entre 1941 e 1952, quando, por recomendação da Assembléia Geral
da ONU, foi formalmente entregue à Etiópia como uma unidade federativa que
deveria submeter-se à soberania etíope, ainda que mantivesse sua autonomia em
questões domésticas. Em 1962, no entanto, tal autonomia foi revogada e a Eritréia
foi formalmente incorporada à Etiópia como uma das suas catorze regiões, o que
desencadeou uma guerra de libertação nacional, encabeçada por Frente Popular
de Libertação da Eritréia (EPLF), que durou trinta anos (CLAPHAM, 1996;
RENO, 2011).
A essas dificuldades trazidas pela guerra veio somar-se a Grande Seca de
1984, a qual devastou a produção agrícola do país, responsável por uma grande
parcela do PIB e pelo emprego da maior parte da população. A falta de comida e de
recursos do Estado agravou-se cada vez mais, tornando-o mais dependente da ajuda
externa advinda da União Soviética. Com a desintegração da União Soviética em
1991, portanto, os militares perderam o último pilar que os sustentava, trazendo o
regime a seu fim logo em seguida (SCHNEIDER, 2010; WOODWARD, 2013).
O cenário político que culminou com a queda do governo de MengistuHai-
leMariam, em 1991, era composto por diversas lideranças étnicas regionais que
lutavam pela libertação do país. Entre os grupos mais relevantes – articuladores
do processo de libertação e de organização política após 1991 – podemos destacar
a Frente de Libertação dos Povos do Tigray(TPLF, na sigla em inglês), e a Frente
Revolucionária Democrática do Povo Etíope (EPRDF, na sigla em inglês), ambos
os quais continuam a ser peças-chave na política etíope até os tempos atuais. Além
deles, é importante mencionar a Frente de Liberação dos Povos Eritreus (EPLF, na

154
Revolução Etíope: impactos regionais e sistêmicos

sigla em inglês), cuja luta culminou com o referendo sobre secessão e independência
da Eritreia em 1993 (TAREKE, 2009; WOODWARD, 2013).
A partir desse complexo mosaico político, podemos entender a nova Cons-
tituição etíope de 1994, que previa o federalismo étnico. Essa forma de adminis-
tração pretendia acomodar diferentes etnias em uma única federação, prevendo
sua autodeterminação e direito à secessão, caso desejado. Embora cada parte admi-
nistrativa gozasse de certa autonomia, os principais projetos de desenvolvimento
e repasses econômicos seriam organizados pelo governo central, sediado em Adis
Abeba (SCHNEIDER, 2010; WOODWARD, 2013).
Esse governo central era liderado por Meles Zenawi, líder do TPLF, que
presidiu o governo de transição até ser nomeado Primeiro Ministro, em 1995. É
notável a forte orientação governamental para o desenvolvimento, buscando investir
em obras de infraestrutura e em projetos de segurança alimentar para erradicar
os problemas de fome do país. Como consta no próprio documento oficial sobre
segurança nacional e relações exteriores da Etiópia, os princípios básicos a serem
seguidos pelo país seriam os de busca pelo desenvolvimento, de consolidação da
democracia e de inserção no mundo globalizado – de forma a melhor aproveitar
seu potencial e de captar recursos para o desenvolvimento. É importante notar
também a ênfase dada à coesão social etíope, essencial para odesenvolvimento
conjunto de toda a nação e para a manutenção da estabilidade étnica e política da
Etiópia (ETIÓPIA, 2002).

4 Impactos Sistêmicos
O debate em torno da influência dos atores externos após a queda do impe-
rador tende a gerar controvérsias, pois, ao mesmo tempo que não se pode definir
os acontecimentos como movidos apenas pelos constrangimentos externos, não se
pode também negar sua influência, exacerbando tensões e auxiliando atores locais
de acordo com seus interesses. Em um contexto de Guerra Fria, mais especifica-
mente no fim da détente e no início da segunda Guerra Fria, a revolução etíope teve
destacada relevância, principalmente devido à localização geográfica estratégica do
país. Naquelemomento, o chifre africano foi motivo de disputas internacionais e

155
REVISTA PERSPECTIVA

importante fator de acirramento nas tensões entre as duas potências (HALLIDAY&


MOLINEUX, 1981).
Ainda assim, os conflitos regionais foram ocasionados por fatores internos
e uma significativa autonomia foi mantida, principalmente por Etiópia e Somália.
O papel externo nesses conflitos se deu a partirda busca por auxílio por parte dos
Estados envolvidos, principalmente na forma de equipamentos militares e de
empréstimos – e,no caso do envolvimento cubano e soviético, com o envio de
tropas e assessores militares(HALLIDAY& MOLINEUX, 1981).
Essas intervenções externas (motivadasprincipalmente pelo contexto de
disputas cada vez mais acirradas por influência entre as potências) acabaram exacer-
bando as tensões locais (HALLIDAY& MOLINEUX, 1981;SCHMIDT, 2013), e
a militarização da região durante esse período tem influência sobre a instabilidade
que se faz presente até os dias atuais (SCHMIDT, 2013).

4.1 Estados Unidos e aliados


As relações da Etiópia com os EUA se iniciaram durante a Segunda Guerra
Mundial e se intensificaram após o fim da ocupaçãobritânica do país em 1952.
No ano seguinte, foram assinados dois acordos: um de assistência militar e outro
relativo à presença norte-americana na base de Kagnew, em Asmara, na Eritreia,
importante para as comunicações estadunidenses (CLAPHAM, 1985; LEFEBVRE,
1998; SCHMIDT, 2013). Além disso, havia a crença de que a melhor forma de
se evitar a expansão do socialismo pela região era manter a estabilidade regional,
sob liderança do imperador etíope (SCHMIDT, 2013).
A ajuda norte-americana aumenta após o golpe contra Selassie em 1960,
principalmente por meioda assinatura de novos pactos militares, em queos EUA
declaravam sua posição favorável à integridade territorial etíope, sem se compro-
meter a intervir militarmente caso algo ocorresse (WOODWARD, 2013).
O recebimento de ajuda soviética pela Somália a partir de 1969 aumentou
a importância da Etiópia para o ocidente, servindo como um aliado forte por
suas posições anticomunistas. Percebendo os perigos da situação caótica em que
se encontrava o país, os EUA tentaram, sem sucesso, pressionar o imperador a

156
Revolução Etíope: impactos regionais e sistêmicos

realizar reformas nos anos 1960, principalmente após os eventos em Cuba e no


Vietnã (WESTAD, 2005).
Nos anos 1970, a base de Kagnew se torna menos importante para os
americanos, o que, aliado ao fim das relações entre Etiópia e Israel, em 1973, após
anos de pressão dos árabes e graças àinabilidade do governo emlidar com a crise
de fome em 1972-1973, faz com que as relações esfriem progressivamente. Após a
revolução, o apoio ao Derg era mantido por razões estratégicase, até 1977, vendas
militares foram feitas e ajuda continuou sendo enviada. Nesse ano, os EUA anun-
ciam a redução da ajuda militar devido aos abusos de direitos humanos perpetrados
pelo regime, assunto que passa a ser o foco da administração Carter. A quebra se
efetiva com o anuncio de possível envio de armas estadunidenses para o Sudão e
para a Somália, rivais do regime etíope (PATMAN, 1990).

4.2 URSS e Cuba


As relações com a URSS e com o bloco socialista, principalmente com
Cuba, se intensificam a partir de 1977, quando seu apoio aos etíopes aumenta
consideravelmente. Reverte-se assim o padrão que vinha desde o pós-guerra, em
queo chifre africano era inicialmente de pouca relevância para os soviéticos, que
votaram contra a proposta de federação com a Eritréia e defendem sua indepen-
dência, o que parece ocorrido mais para se opor aos países imperialistas. Ao final
da década de 1950, estabelecem relações com Selassie, realizando empréstimos e
construindo a primeira refinaria do país (PATMAN, 1990).
A revolução etíope é recebida com cautela pelo bloco soviético, e a falta de
um partido socialista faz com que não haja apoio imediato. Em 1978, passam a
apoiar claramente as reivindicações etíopes sobre a Eritreia, condenando o movi-
mento separatista, o qual estaria sendo utilizados pelos países imperialistas para
enfraquecer a Etiópia e tirar seu acesso ao mar. Só quando Mengistu assume o
poder as reservas dos soviéticos são superadas e os acordos militares são efetivados
(VISENTINI, 2013).
Os soviéticos tentam, junto com Fidel, acordar a paz entre etíopes e somalis
e, ao falharem, se inicia a Guerra deOgaden. Nos primeiros meses da guerra, conti-
nuaram apoiando (ainda que de forma limitada) a Somália, buscando influenciá-la,

157
REVISTA PERSPECTIVA

até os conselheiros soviéticos e cubanos serem expulsos do país, o que faz com que a
ajuda em forma de equipamentos e de pessoal passe a serefetivamente fornecida aos
etíopes. Mesmo, assim, discordâncias se mantêm: a URSS defendia a necessidade
de se estabelecer um partido socialista nacional, o que foi constantemente adiado
pelo Derg (TAREKE, 2000; WOODWARD, 2013).
Por fim, o papel de Cuba foi tão importante para o regime socialista etíope
quanto o soviético. Acusados, junto com os russos, de terem traído seu antigo
aliado (Somália) e de terem mudado de lado na questão da Eritreia, os cubanos
foram mal vistos mesmo por alguns países socialistas. Antes de 1974,apoiaramo
movimento eritreu, porém a ajuda militar foi suspensa nos anos de 1970 devido às
divisões no movimento, apesar de o apoio político ter sido mantido. Em 1972, por
sua vez, estabelecem relações com a Somália, assinando em 1974 diversos acordos
de cooperação (SCHMIDT, 2013).
Como já mencionado anteriormente, as alianças se invertem e, ao final de
1977, tropas cubanas chegam para auxiliar o exército etíope na Guerra deOgaden.
Além disso, proporcionam significativa ajuda civil. Porém, em relação à guerra
contra a Eritréia, o regime cubano se absteve de pronunciamentos e suas tropas não
lutaram efetivamente ao lado do exército da Etiópia, tendo em vista a ideologia do
Movimento dos Não Alinhados (MNA) do qual o país era membro (PATNAM,
1990).

5 Conclusão
Podemos observar que, apesar de pouco estudada, a revolução etíope teve
importantes consequências para o Sistema Internacional, inclusive sendo um dos
fatores que causaram o acirramento das tensões que levaram ao fim da détentee
originaram a segunda guerra fria. O estudo dessa revolução também desmistifica
o país como sendo um país pobre e subserviente de Terceiro Mundo e o coloca
como ator autônomo (dentro do possível) e diplomaticamente relevante para além
do continente africano.
Sendo assim, a análise vai aoencontro dos postulados de Halliday (1994),
principalmente porqueo autor trata da relação entre guerras e revoluções, pois a
percepção de instabilidade trazida pela revolução ocasionou revoltas regionais e

158
Revolução Etíope: impactos regionais e sistêmicos

guerra interestatal, que por sua vez ocasionaram uma revolução que levou ao fim
do regime vigente. Também pode-se perceber como o desenvolvimento interno
do Estado revolucionário etíope foi influenciado pelas ações de outros Estados,
tanto em suas dimensões políticas e sociais quanto econômicas.
No âmbito interno, a revolução provocou transformações profundas na
estrutura social, econômica e política do país, pois uma ordem praticamente feudal,
com forte controle institucional da aristocracia e da Igreja, foi derrubada, levando
ao início um processo de modernização do país. Aspectos desse processo que se
revelaram vitais para a destruição das bases do regime foram as reformas agrária e
urbana e uma política bastante avançada para erradicar o analfabetismo.
A queda de Mengistu e o consequente fim do regime trazem, em âmbito
regional dois desdobramentos importantes. O primeiro foi a queda de Siad Barre
na Somália e a conseguinte fragmentação do país (que se mantém até hoje). O
segundo foi a independência da Eritreia, ocorrida após anos de lutas, através de
um processo considerado “amigável”. Com o passar do tempo, porém as relações
entre o novo Estado e a Etiópia se deterioram, levando a uma guerra entre os dois
países entre 1998 e 2000.
Sendo assim, o objeto de estudo do presente trabalho torna-se relevante
não só por seu caráter inovador quando comparado à outras revoluções (ao trazer
a união dos militares às movimentações das massas). É também primordial para
entender a conjuntura atual do Chifre Africano e suas dinâmicas, sem que se recorra
a lugares-comuns e visões que não condizem com a realidade regional.

159
REVISTA PERSPECTIVA

  

Ethiopian Revolution: Regional and Systemic Implications

ABSTRACT: This article aims to analyze the 1974 Ethiopian revolution


and its consequences for the international presenceof the country. First,
we make a brief introduction to the theme and to the country’s history.
Then, there is a description of the context and of the revolutionary process
itself. Next, its effects to Ethiopia’s international and regional insertion are
demonstrated, as well as repercussions for the international system and its
balance of power. This is followed by the conclusion that the Ethiopian
revolution was of great importance not only forthe region, but also forthe
international system and for the conflict between the superpowers ongoing
at that time.
KEYWORDS: Ethiopia; Revolution; African Horn; Cold War.

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163
Resposta Hegemônica aos Ideais Revolucionários:
Contrarrevoluções e o seu Impacto no Sistema
Internacional

Gabriela Freitas dos Santos


Luísa Acauan Lorentz*

RESUMO: O objetivo deste trabalho é compreender o processo das contrarrevoluções,


suas implicações nas revoluções e seu impacto sobre oSistema Internacional de
forma geral.Dessa forma, busca-se analisar como a ordem hegemônica responde
às revoluções, modificando sua própria estrutura, e como esse processo acaba por
fortalecer o sistema hegemônico. Para isso, primeiramente são abordados alguns
pontos teóricos importantes para fins de conceituação e, em seguida, analisa-se o
exemplo da Revolução Russa e da ascensão da URSS para entender como o conflito
ideológico da Guerra Fria acabou por reestruturar e fortalecer o própriosistema
capitalista.
PALAVRAS-CHAVE: Revolução; Contrarrevolução; Guerra Fria; Capitalismo.

* Graduandas em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Resposta Hegemônica dos Ideais Revolucionários:
Contrarrevoluções e seu Impacto no Sistema Internacional

1 Introdução

Se o estudo das revoluções vem ganhando espaço no campo das Relações


Internacionais apenas recentemente, a temática das contrarrevoluções ainda é, no
entanto, pouco abordada. Isso implica em um entendimento apenas parcial sobre
as revoluções, visto que ambos os processos - revolucionário e contrarrevolucionário
- interagem de forma dialética e inseparável. Portanto é preciso avançar o estudo
sobre contrarrevoluções, bem como a compreensão sobre como estas afetam as
revoluções e, de forma mais ampla, o Sistema Internacional.
As contrarrevoluções, assim como as revoluções, são elemento constitutivo
da história moderna das relações internacionais, tanto por possuírem frequentemente
causas internacionais quanto por buscarem afetar a política através das fronteiras
internacionais, de modo a incidir nas relações interestatais e no ordenamento
mundial (HALLIDAY, 1999). Dessa forma, é necessário avançar e aprofundar o
debate sobre as contrarrevoluções para compreender as relações internacionais e
os constrangimentos às revoluções, bem como seus limites.
Este trabalho busca analisar como a ordem hegemônica responde às revo-
luções, modificando sua própria estrutura, e se esse processose configura como
alternativa reformista ao projeto revolucionário, de forma a garantir a manutenção
do status quo. Busca-se compreender de que forma essas adaptações podem forta-
lecer o próprio Sistema. Para tanto, pretende-se fazer uma retomada teórica sobre
as contrarrevoluções, aplicando-a ao caso-chave da Revolução Russa de 1917 e da
ascensão da URSS, para entender como o conflito com o bloco ocidental acabou
por reestruturar o próprio Sistema Capitalista, contribuindo para a sua hegemonia
ao fortalecer as ideias de bem-estar social como resposta ao comunismo. Por fim,
pretende-se avaliar brevemente o atual contexto de transição posterior ao fim da
URSS e o que esse contexto implica para as revoluções e seu significado.

2 Discussão sobre o Conceito


“Contrarrevolução” é um termo que abrange um fenômeno bastante hetero-
gêneo, o que dificulta definição e identificação claras. Pode referir-se à derrubada

165
REVISTA PERSPECTIVA

de um regime revolucionário por oponentes dentro do próprio país, com apoio


externo; à tomada do poder não por representantes do antigo governo, mas por
uma facção contrarrevolucionária dentro do próprio movimento; ou, ainda, às
políticas ou movimentos projetados não para derrubar ou prejudicar um regime
revolucionário existente, mas para prevenir que um movimento chegue ao poder
(HALLIDAY, 1999).
A expressão pode significar tanto um pensamento ou uma doutrina quanto
uma variedade de reações à revolução, abrangendo também projetos políticos
concretos que buscamo retorno à velha ordem. Estes geralmente culminam, todavia,
em uma restauração “administrada” desta, pois, não sendo mais possível manter a
totalidade da ordem anterior: são mantidas algumas heranças revolucionárias que
não sejam percebidas como ameaças diretas à manutenção da ordem restaurada
(HALEVY, 1991). Isso porque a contrarrevolução nunca consegue restaurar as
estruturas prévias de forma plena - para isso, seria preciso voltar ao tempo anterior
à revolução, visto que não há como apagar seus efeitos dos rumos da história. Assim
como o movimento revolucionário alega rejeitar o passado, mas não consegue
fazê-lo totalmente, a contrarrevolução não consegue realizar a restauração daquilo
que foi derrubado (HALLIDAY, 1999). Pode, no entanto, desmantelar o sistema
político criado pela revolução e restaurar os principais elementos sociais e políticos
da ordem anterior. Assim, uma contrarrevolução pode ser considerada uma restau-
ração tática da aparência de velha ordem, ainda que sob nova estrutura social, mas
que permanece compatível com o capitalismo.
Para Halliday (1999), o termo se refere, então, às políticas e estratégias que
buscam a reversão de uma revolução e, por consequência, a prevenção de movi-
mentos revolucionários que, mesmo ainda não o tendo feito, possam vir a tomar
o poder - incorporando, de tal forma, tanto a reversão ou derrubada quanto a
supressão ou contenção. Dessa forma, são contrarrevoluções os golpes destinados
a impedir que grupos revolucionários cheguem ao poder ou, ainda, golpes ou
medidas sociais e políticas, incluindo reformas, que busquem derrubar regimes
reformistas já estabelecidos, para evitar medidas mais radicais (HALLIDAY, 1999).
Como exemplo, Halliday (1999) cita as reformas agrárias feitas pelos EUA após

166
Resposta Hegemônica dos Ideais Revolucionários:
Contrarrevoluções e seu Impacto no Sistema Internacional

1945, primeiro no Extremo Oriente, depois no Irã e na América Latina, projetadas


para se antecipar a qualquer revolução camponesa.
Para Arno Mayer (1971), a contrarrevolução em sua forma tradicional é
aquela entendida como resposta a um movimento revolucionário já existente,
podendo ser identificada como “contrarrevolução posterior”.Há ainda três tipos
principais que seriam, na verdade, “antirrevoluções”, porque buscam evitar que elas
aconteçam. Nesses casos, inclui-se a “contrarrevolução preventiva”, que se antecipa
à chegada de um grupo revolucionário ao poder, tal qual os golpes na Itália, em
1922, e na Alemanha, em 1933; e a “contrarrevolução disfarçada”, que às vezes
acompanha a reforma imposta de cima e trabalha para neutralizar ou anular essa
reforma; e a “antecipatória”, que envolve a destruição da oposição revolucionária
ao regime estabelecido (MAYER, 1971). A contrarrevolução antecipatória difere
da preventiva na medida em que, naquele caso, o governo em questão já detém o
poder e usa de grupos indicados por Mayer (1971) como fascistas, proto-fascistas
ou extremistas, para manter-se no poder, enquanto no movimento preventivo os
contrarrevolucionários tomariam o poder em nome da manutenção da ordem.
Para entender os movimentos contrarrevolucionários, sejam eles posteriores
ou anteriores à realização de fato da revolução, é primordial a percepção de que a
própria existência da revolução já é em si hostil, mesmo em situações em que há
somente o potencial para uma revolução. Segundo Halliday (1999), os sistemas
internacionais requerem um grau de homogeneidade - a norma internacional
que sustenta um sistema não significa apenas padrões convencionais aceitos pelos
Estados, mas também significa que os Estados e suas sociedades devem partilhar
de algum grau de similaridade em sua constituição doméstica para que o sistema
funcione. A revolução significa justamente a derrubada dessa similaridade, amea-
çando, portanto, também a ordem do sistema como um todo, na medida em que
foge da norma convencionada.
Esse argumento também é corroborado por Kissinger (1957). Para o autor, o
período revolucionário é marcado por uma tomada de consciência, já que a rotina
política comum é perturbada e passa a ser desafiada. Dessa forma, a mudança trazida
pela revolução não representa exatamente uma disputa sobre questões políticas
específicas, mas sim um ataque à própria ordem vigente (KISSINGER, 1957).

167
REVISTA PERSPECTIVA

Assim, não é uma questão de a revolução ameaçar atacar outros Estados


ou não, pois seu impacto é duplo: tanto da política que efetivamente leva a cabo
para o exterior, quanto do impacto mais amplo, “do efeito de demonstração”
(HALLIDAY, 1999, p. 2). De tal forma, é também o próprio desafio ideológico,
representado por um outro modelo de sociedade baseado em outras fundações,
que leva as potências a responderem buscando garantir a manutenção do status
quo (BURKE, 1852). Era essa a ameaça que a União Soviética representava para
os EUA, contribuindo para a crise de sua hegemonia, principalmente na década
de 1970 (HALLIDAY, 1999).
Cabe ressaltar que a própria contrarrevolução, quando posterior à revolução
já consumada, também ameaça a ordem vigente (MAYER, 1971). Isso porque,
mesmo que a contrarrevolução seja bem-sucedida em silenciar uma revolução já
ocorrida, a neutralização nunca será completa, conforme mencionado. A ordem
já terá sido alterada, de maneira que, quando é possível perceber a aproximação
de uma revolução, os Estados preferem agir preventivamente.
Independentemente da nomenclatura, a bibliografiatilizada permite afirmar
que o fenômeno da contrarrevolução, em suas mais variadas formas, abrange tanto
o elemento precaucional ou preventivo, a priori à revolução, quanto o elemento
remediador ou aplacador, a posteriori àquela. De forma concisa, pode-se considerar
que a característica definidora do fenômeno contrarrevolucionário é a busca pela
manutenção de determinada ordem e dos princípios que a acompanham, estejam
eles apenas percebidos como ameaçados ou já tendo sido derrubados por um movi-
mento revolucionário, entendido como aquele que ameaça os valores estabelecidos
e compartilhados pelos Estados.

3 A Contrarrevolução como Intervenção


Halliday (1999) aponta que o envolvimento internacional mais direto nas
contrarrevoluções é aquele dos Estados que intervêm em outro, empregando seus
recursos para opor-se a um regime revolucionário. A intervenção direta, contudo,
apresenta várias limitações e resultados escassos. Segundo o autor, em todo o período
de 1789-1989, a contrarrevolução definida como a derrubada coercitiva de um

168
Resposta Hegemônica dos Ideais Revolucionários:
Contrarrevoluções e seu Impacto no Sistema Internacional

regime revolucionário já estabelecido (a contrarrevolução posterior de Mayer) só


foi alcançada em duas ocasiões: na derrota de Napoleão, em 1815 em Waterloo,
e na derrota esmagadora do regime marxista de Granada em 1983. Em relação à
contrarrevolução definida como a violenta repressão de movimentos revolucionários,
ou seja, daqueles que ainda tentam chegar ao poder, Halliday (1999) afirma haver
mais casos em que o objetivo foi alcançado, mas mesmo nesses casos, o limite de
tais políticas ainda é muito grande. Aponta então para os exemplos da intervenção
Aliada na Rússia, logo após a Revolução de 1917; das intervenções francesas no
Vietnã, em 1954, e na Argélia, 1962; das guerras norte-americanas na Indochina,
nos anos 1960 e 1970; e dos conflitos no Irã e na Nicarágua em 1979.
As intervenções diretas são uma forma de demonstrar reação contrária e
antagonizar o Estado revolucionário, mas às vezes se prendem mais à retórica do
que aos resultados práticos para alcançar a destruição do regime rival. Dentre as
dificuldades para que a intervenção se consolide está a constante necessidade de lidar
com a opinião pública, tendência crescente com a revolução das comunicações, e de
conciliar os interesses da política doméstica (HALLIDAY, 1999). Mesmo quando
a posição da política doméstica está a favor da oposição à revolução, dificilmente
os movimentos contrarrevolucionários são homogêneos, de forma que as forças
políticas contrarrevolucionárias nem sempre compartilham a mesma visão de um
possível projeto de contrarrevolução. Apesar de estarem reunidos pela recusa ao
movimento revolucionário, isso não implica que recusem os mesmos elementos, o
que muitas vezes dificulta a formulação de um projeto unificado (HALEVY, 1991).
A opinião doméstica, em especial a opinião da sociedade em geral, está
geralmente menos disposta a sustentar os altos custos - tanto humanos quanto
políticos e econômicos - de uma intervenção quando esta se dá em outro Estado
(HALLIDAY, 1999).Diante disso, a construção da imagem de que a mera exis-
tência da revolução ameaça a própria ordem do país interventor é essencial para
justificar a adoção de tal política. Quando essa percepção passa a ser questionada
pelo público, a tendência é que o governo contrarrevolucionário tenha cada vez
mais dificuldade em justificar a manutenção da política intervencionista junto
àsua população. Foi esse o caso, por exemplo, do esgotamento da intervenção

169
REVISTA PERSPECTIVA

norte-estadunidense no Vietnã, o que levou os EUA a adotarem estratégias visando


àdiminuição do impacto e dos custos das intervenções em outros países1.

3.1 A abordagem da intervenção indireta e o papel da ideologia


Além da ação direta, as intervenções que os Estados realizam em outros
para contrapor os regimes revolucionários também podem assumir um caráter
indireto, de forma geral utilizando-se de fatores ideológicos e culturais para incidir
sobre o regime revolucionário, em um processo alusivo às guerras psicológicas ou
às guerras de propaganda.
As formas de intervenção indireta mencionadas por Halliday (1999) são:
apoio a guerrilhas, perturbação nas fronteiras e auxílio financeiro a grupos de
oposição dentro do Estado revolucionário. Além disso, essas intervenções também
podem tomar um caráter mais ideológico, próxima às táticas de guerra psicológica,
por meiodo uso de propaganda contra o regime ou de sanções econômicas que
possam enfraquecer o governo revolucionário e o seu apoio popular. Entretanto,
esse impacto ideológico não se resume apenas ao resultado imediato das políticas
estatais que buscam interferir nas revoluções. Existe um efeito propagador dessas
políticas vistoque, assim como as revoluções, as contrarrevoluções criam uma
atmosfera ideológica e psicológica ao seu redor, causando um impacto na sociedade
que vai além do efeito das políticas estatais.
Nesse debate ideológico, é importante destacar o papel essencial que a política
internacional desempenha. Ela se torna um mecanismo de propagação dos ideais
e é utilizada como uma forma de guerra civil “global”, em queas fronteiras das
nações importam menos do que os interesses sociais ou ideológicos. Assim como
o espírito revolucionário inspira processos para além das fronteiras, o mesmo pode
acontecer com as contrarrevoluções. Entretanto, Halliday (1999) assinala que as
contrarrevoluções também passam por dificuldades em “atravessar fronteiras” para
além da retórica, e que a internacionalização de uma revolução ou contrarrevolução
se torna mais prováveis apenasna medida em que os processos sociais tomam corpo
ao longo do tempo.

1 Primeiramente, a Guerra do Vietnã foi responsável por mudanças de abordagem na política externa dos EUA,
tornando-se mais seletiva a partir da orientação da Doutrina Nixon. Na prática, a contenção da influência soviética
seria feita de modo mais indireto e, portanto, menos custoso, auxiliando movimentos contrarrevolucionários.

170
Resposta Hegemônica dos Ideais Revolucionários:
Contrarrevoluções e seu Impacto no Sistema Internacional

Ainda sobre o papel da ideologia nas revoluções e contrarrevoluções, Golds-


tone (1991) avalia que existem três fases no processo da revolução: a pré-revolução,
o período anterior à ruptura estatal; o esforço revolucionário; e a reconstrução
estatal e a estabilização da autoridade. Segundo Goldstone (1991), a partir do
momento em que as amarras institucionais do regime anterior são quebradas, a
ideologia e a cultura desempenham um papel crucial na ordem política que se
desenvolve após a revolução.
Dessa forma, podemos concluir que para dominar uma revolução a ideologia
precisa dispor de um arcabouço capaz de interpretá-la para o grande público e de
permitir que ela possa desempenhar um papel na orquestração política. Da mesma
forma que a ideologia tem esse papel central para revolução, o mesmo acontece com
a contrarrevolução. Segundo Molnar (1969), o objetivo dos movimentos contrar-
revolucionários é demonstrar que as revoluções perturbam a natureza orgânica da
sociedade. Ou seja, as revoluções proporcionariam uma quebra na harmonia que
compõe a vida comunitária e isso naturalmente iria contra o ritmo verdadeiro dos
processos da sociedade. Dessa forma, as contrarrevoluções são bem-sucedidas na
medida em que provamo equívoco dessa disrupção revolucionária e fortalecem o
“ritmo natural” das sociedades. Assim, as ideologias contrarrevolucionárias costumam
retomar precisamente aquilo que as revoluções buscam combater.
Por fim, para ilustrar a importância da ideologia no embate entre revo-
lução e contrarrevolução ressaltamos a perspectiva de Halliday (1999) a respeito da
Guerra Fria. Segundo Halliday (1999), George Kennan, o idealizador da política
de contenção, acreditava que a influência internacional de um regime revolucio-
nário estava centrada na questão ideológica e na capacidade de ser um exemplo
bem-sucedido tanto em suas capacidades diplomáticas quantomilitares - para
isso, era necessário que a ideologia revolucionária fosse capaz de dialogar com as
grandes massas. O mesmo pode ser aplicado a um governo contrarrevolucionário,
de forma que não bastava que o regime estadunidense exercesse pressão militar
sobre a União Soviética. Era necessário, também, que o regime capitalista fosse
capaz de gerir a rivalidade ideológica a seu favor. Assim, a política de contenção
proposta por Kennan sustentava que o sucesso político do Ocidente seria capaz

171
REVISTA PERSPECTIVA

de contribuir para o colapso do modelo soviético, justamente porque ficaria claro


que este não era alternativa à altura do capitalismo (HALLIDAY, 1999).

4 Da Crise do Concerto de Viena à Contrarrevolução


Capitalista

Após a derrota da Revolução Francesa com a batalha de Waterloo em 1815,


os países vencedores elaboraram no Congresso de Viena a ordem que seria estabe-
lecida, buscando contornar as heranças revolucionárias, tendo como expoente do
movimento contrarrevolucionário o chanceler Metternich (HALLIDAY, 1999).
O Congresso de Viena foi, dessa forma, uma tentativa de homogeneizar a França
pós-revolucionária, mas o retorno possível era apenas parcial, visto que por mais
que se tentasse restituir a Velha Ordem, a sociedade já havia mudado. A resso-
cialização da Revolução Francesa se dá em uma ordem já alterada, sendo possível
apenas uma versão reformada da ordem anterior (CHAN & WILLIAMS, 1985).
O Sistema de Estados europeu do século XIX visava não só conter as revo-
luções, mas também impedir que novamente houvesse uma guerra europeia. Nesse
sentido, apesar de não ser rígido, o sistema conseguiu se manter efetivo durantequase
um século, sendo posto em cheque apenas com a instabilidade generalizada que
atingiu a Europa nas duas primeiras décadas do século XX (HALLIDAY, 1999).
Esta foi consequência das chamadas crises da modernização, resultado dos processos
de urbanização e de industrialização intensos pelos quais a Europa passava, que
alteraram as estruturas e as relações sociais e foram seguidos de profundas crises
socioeconômicas - comprocessos inflacionários e recessivos -, e políticas - com o
fracasso do liberalismo do século XIX (MAYER, 1971). É nesse contexto que se
dá a Revolução Russa de 1917, que se torna um fator central acelerador dessas
contradições já em curso.
A crise dos primeiros vinte anos do século passado era tanto uma crise do
sistema entre Estados quanto uma crise do sistema político dos Estados, culminando
no grande conflito interestatal da SegundaGuerra Mundial, que deu início a um
período de revoluções e contrarrevoluções em toda a Europa (HALLIDAY, 1999).
A guerra serviu para intensificar as indagações sobre a política europeia, com a

172
Resposta Hegemônica dos Ideais Revolucionários:
Contrarrevoluções e seu Impacto no Sistema Internacional

ordem vigente perdendo espontaneidade e passando a ser cada vez mais questionada.
A contenção,dentro dos países capitalistas,da ameaça crescente representada pelo
comunismo se viu constrangida pela ruptura da divisão internacional do trabalho
em razão do conflito, que reduziu a Europa economicamente e criou as condições
para a intensificação dos conflitos de classe no Oeste – alterando fortemente as
relações sociais (COX, 1984).
O Tratado de Versalhes de1919 era, em medida ampla, uma tentativa de
replicar a estratégia adotadaem Viena um século antes, de estabelecer por conferên-
cias internacionais fronteiras definidas e organismos de cooperação internacional
institucionalizada, visando reestabelecer a ordem internacional (HALLIDAY, 1999).
Mas isso não foi suficiente para resolver a crise generalizada da sociedade europeia,
que se tornou ainda mais explosiva, culminando com a Segunda Guerra Mundial,
que apenas acelerou o declínio burguês na Europa, em parte, devido aos imensos
impactos que teve sobre as forças produtivas (COX, 1984).
Após a Segunda Guerra Mundial, novamente se busca a construção de um
quadro institucional que possa impedir maior erosão da ordem, desta vez a partir
da série de conferências em Teerã (1943), Ialta (Fevereiro de 1945) e Potsdam
(Julho de 1945).A Guerra Fria posteriordeu-seem grande parte devido ao sucesso
estadunidense em pautar nesta época a mobilização para estabelecer as condições
necessárias para o domínio burguês e para a acumulação de capital em escala
global, a partir da retórica da defesa da democracia contra o totalitarismo soviético
(COX, 1984).
A Guerra Fria era o conflito principal existente entre os EUA e a URSS
como dois sistemas sociais rivais, capitalista e comunista, organizados sob princí-
pios sociais contrastantes, com propriedade privada naqueles e coletiva ou estatal
nesta, embora pregassem da mesma forma que se tratavam ambos de sistemas
mundiais que deveriam inspirar outros Estados (HALLIDAY, 1983). Contudo,
esse conflito só adquiriu tais dimensões pelo quase colapso da burguesia europeia
ocidental em decorrência da decadência dos cinquenta anos anteriores, mencionada
acima. A existência do comunismo, diante disso, era percebida como uma ameaça
na medida em que exacerbava a crise do capitalismo, ao representar uma alterna-
tiva em potencial. Assim, nesse conflito entre capitalismo liberal e o socialismo

173
REVISTA PERSPECTIVA

autoritário, os EUA e seus aliados se colocavam como os defensores da contrarre-


volução (HALLIDAY, 1999).

4.1 Contrarrevolução e transformação capitalista


A defesa do capitalismo exigia a organização da contrarrevolução tanto dentro
de cada país quanto no estrangeiro, assumindo no mundo ocidental um caráter
largamente preventivo, em que o capitalismo buscou reorganizar a si mesmo para
estar à altura da ameaça da revolução, a qual seria a primeira realmente mundial e
histórica, visto a intensa internacionalização do modo capitalista (HERBERT, 1972).
A ascensão da URSS tornou a burguesia norte-americana notadamente consciente
sobre o que deveria ser feito para restaurar o domínio burguês: em primeiro lugar,
ficou claro aos próprios Estados Unidos que teriam que se mobilizar e mudar;
em segundo lugar, a Europa Ocidental teria de ser reestruturada; e, finalmente, o
ataque ideológico era necessário para que a disciplina fosse restaurada (COX, 1984).
Na mesma época em que a sociedade americana estava sendo remodelada
pela Guerra Fria, os Estados Unidos propositalmente voltaram-se para a reestru-
turação da Europa Ocidental, buscando atacar as duas forças tidas como opostas
ao crescimento estável capitalista: as barreiras econômicas nacionais e os Partidos
Comunistas (COX, 1984). As barreiras econômicas impediam a livre circulação de
bens e serviços para a potência capitalista, vistoque os Estados Unidos tinham sua
busca constante por mercados prejudicada pelos entraves burocráticos. Além disso,
os partidos comunistas representavam uma ameaça ideológica ao fortalecimento
do pensamento capitalista e à sua influência crescente ao redor do mundo. De tal
forma, a ajuda americana maciça, a partir do Plano Marshall de 1947, providen-
ciou assistência técnica e financeira à Europa, contribuindo para a reconstrução da
infraestrutura do continente e para o fortalecimento de suas economias, impedindo
que crises maiores se alastrassem após a Segunda Guerra, diminuindo o espaço para
o fortalecimento do comunismo ao estabilizar a região (MAYER, 1971).
A partir do Plano Marshall, programas de assistência internacional ao desen-
volvimento tornaram-se componentes centrais da política externa estadunidense.
Buscavam tanto criar mercados para os EUA, fortalecendo a economia do país,
quanto reduzir a pobreza em países em desenvolvimento a fim de diminuir a ameaça

174
Resposta Hegemônica dos Ideais Revolucionários:
Contrarrevoluções e seu Impacto no Sistema Internacional

ao comunismo por meiodo avanço do desenvolvimento capitalista (USAID, 2017)


. Em 1961, foi criada a Agência para o Desenvolvimento Internacional (USAID2,
encarregada de centralizar todos os programas direcionados ao desenvolvimento
econômico externo. A criação da USAID representava a centralidade da política
econômica de apoio como forma de contenção do comunismo, conforme deixa
claro discurso pronunciado pelo Presidente Kennedy na época de sua criação:

A habilidade de fazer compromissos de largo alcance permitiu à União


Soviética usar seus programas de assistência para tornar as nações em de-
senvolvimento dependentes do apoio russo,de tal forma avançando com
os objetivos do comunismo mundial [...].Não há como escapar de nossas
obrigações: nossas obrigações marais como líder sábio e como bom vizinho
na comunidade interdependente das nações livres – e nossas obrigações eco-
nômicas como o povo mais abastado em um mundo na sua maioria pobre,
como uma nação não mais dependente de empréstimos estrangeiros que uma
vez nos ajudaram a desenvolver nossa própria economia – e nossas obriga-
ções políticas como o único maior adversário aos opositores da liberdade.
[...] Deixar de cumprir nossas obrigações agora seria desastroso e, no longo
prazo, mais custoso. Pois pobreza generalizada e caos podem levar ao colapso
das estruturas sociais e políticas existentes, o que pode inevitavelmente ser
um convite ao avanço do totalitarismo para cada área fraca e instável. De
tal forma, nossa própria segurança e prosperidade estariam ameaçadas. Um
programa de assistência para as nações subdesenvolvidas deve continuar,
pois os interesses da nação e a causa da liberdade política requerem isso.
[...] Vivemos em um momento muito especial na história. A metade sul intei-
ra do mundo – América Latina, África, Oriente Médio, e Ásia – está imersa
nas aventuras de afirmar sua independência e de modernizar suas velhas
maneiras de vida. [...] Em nossos tempos, essas nações precisam de nossa
ajuda por um motivo especial: sem exceção, estão sob pressão comunista.
[…] mas a tarefa fundamental de nosso programa de assistência externa não
é negativamente lutar contra o comunismo: a tarefa fundamental é ajudar a
fazer uma demonstração histórica de que no século XX, assim como o foi no
século XIX – tanto na metade sul quanto na metade norte do globo – cresci-
mento econômico e democracia política podem se desenvolver lado a lado.
(KENNEDY, 1961, s/p., tradução nossa).

2 Em seguida ao Plano Marshall e ao “Point Four Program” do Presidente Truman - que estabelecia como ponto
de seu projeto para a Política Externa dos EUA um programa para compartilhamento de know-how - foram
estabelecidos também sistemas e programas educacionais, como o Programa Fullbright de bolsas acadêmicas,criado
em 1946, que globalizava o programa dos tempos de guerra de troca de profissionais entre a América Latina e
os Estados Unidos, contribuindo, em grande medida, para a exportação dos valores capitalistas a outras partes
do globo.

175
REVISTA PERSPECTIVA

Esse discurso deixa claro como os projetos de assistência externa tinham


uma lógica claramente contrarrevolucionária, visando a se contrapor às medidas
semelhantes adotadas pela URSS (para impedir que essa continuasse “avançando
com os objetivos do comunismo mundial”). Ao mesmo tempo, revela como
funcionava o discurso usado para justificar as medidas contrarrevolucionárias para
obter o apoio doméstico às intervenções no resto do mundo: pela construção da
imagem da revolução como ameaça à segurança do próprio país (“nossa própria
segurança e prosperidade estariam ameaçadas”),e pela associação da intervenção
estadunidense à defesa da liberdade e da democracia (“nossas obrigações políticas
como o único maior adversário aos opositores da liberdade”), vinculando as duas
ao capitalismo. No último trecho, percebe-se como essa narrativa é próxima a um
“dever civilizatório”, quase que em uma retomada de um “Destino Manifesto do
Século XXI”.
A ameaça real do comunismo explica também as origens do intenso cres-
cimento econômico do Leste Asiático , para além da exclusão da China como
competidora(HALLIDAY, 1999). A dificuldade de expansão da revolução na
Indochina foi bloqueada não pela intervenção militar estadunidense, mas pela
transformação preventiva, e mais efetiva, dos outros Estados regionais3. Segundo
William Blum (2003), durante os anos 1960 e 1970 a USAID trabalhava junto
da CIA e serviu diversas vezes como uma frente para o treinamento de pessoal
especializado em métodos de contra insurgência.
Em casos em que os governos eram hostis aos EUA, a USAID atuava muitas
vezes de forma contrária aos interesses do regime local, sem que este soubesse, o que
incluía frequentemente o apoio a movimentos políticos de oposição, buscando a
remoção do governo. Aqui cabe destacar a Operação Gladio, importante operação
contrarrevolucionária baseada em uma rede paramilitar secreta estabelecida em
toda a Europa nãocomunista, que recebia fundos, armamentos e treinamento
para responder em caso de um ataque soviético inesperado. Diante da ausência

3 Os EUA também prestaram apoio técnico para o desenvolvimento na China, por meio de uma Comissão
Conjunta Sino-Americana de Reconstrução Rural, fundada em 1948, após a Guerra Civil Chinesaa Comissão
mudou-se para Taiwan, onde credita-se à sua ação as bases da agricultura nos anos 1950 e 1960, que levou ao
crescimento econômico notável de Taiwan nas décadas seguintes, pela coordenação de um programa de desen-
volvimento econômico, social e técnico.

176
Resposta Hegemônica dos Ideais Revolucionários:
Contrarrevoluções e seu Impacto no Sistema Internacional

de qualquer ataque russo, contudo, a operação foi usada quase exclusivamente


para causar dano político a movimentos domésticos de esquerda (BLUM, 2003).
Cabe ressaltar o papel que as concepções socialdemocratas tiveram no enfra-
quecimento do socialismo, devido à sua incorporação ao capitalismo do período
seguinte à Segunda Guerra. As concepções socialdemocratas são essenciais para
o entendimento da contrarrevolução, pois ultrapassam a organização formal da
socialdemocracia, sendo, às vezes característica principal de setores que se dizem
em oposição a ela mesma, como ocorre no bloco capitalista, que incorpora essas
tendências. Dessa forma, a socialdemocracia simboliza a luta histórica do capita-
lismo em justificar-se perante a sociedade como progressista, especialmente como
forma de inserir os trabalhadores em seus quadros (GCI, 2009).
Nesse sentido, o sistema capitalista no Ocidente também conseguiu atingir
muitos dos objetivos que levavam à ocorrência de revoluções nos países subdesen-
volvidos, por exemplo, pela elevação das rendas eda oferta de meios de sobrevi-
vência à maioria da população (HERBERT, 1972). Onde a estrutura capitalista era
concentrada e ao mesmo tempo mantinha um padrão de vida relativamente elevado
para a população, o povo se mostrava apático, quando não hostil, ao socialismo
(HERBERT, 1972). Ao mesmo tempo, a criação da “sociedade do consumo”, que
contribuiu para aumentar a dependência da população, serviu para sustentar as
relações de produção capitalistas, para assegurar o apoio popular e para desacreditar
a racionalidade do socialismo.
Nesse contexto, os movimentos revolucionários se encontravam diante de
um problema grave de comunicação, pois o povo estava muito distante e fechado
aos conceitos e proposições da teoria marxista, o que era resultado não só de sua
educação, mas dos esforços do establishment, representado pelas grandes mídias,
em estabelecer sua própria linguagem que obscurecia as diferenças entre a sociedade
proposta pelos revolucionários e a existente (HERBERT, 1972). Em síntese, onde
não havia uma agenda revolucionária já estabelecida, havia um terreno fértil para a
grande mídia contrarrevolucionária, o que pode ser atribuído também à facilidade
do discurso conservador em dialogar com a população, por ser mais próximo ao
senso comum, bem como à dificuldade da esquerda emultrapassar seu caráter
acadêmico, que pouco dialogava com a classe trabalhadora.

177
REVISTA PERSPECTIVA

Em certos aspectos, repetia-se a tendência histórica que se seguiu à Revolução


Francesa, em que a velha ordem, após consolidada pelo Congresso de Viena, reviveu
formas tradicionais, como a religião e a família.Em 1947 não foi diferente - a vida
intelectual remodelou-se para apoiar o novo conservadorismo (HERBERT, 1972).
A partir de 1947, então, foi preciso reconstruir os suportes ideológicos da sociedade
burguesa, que se pautou tanto na retomada desses valores conservadores quanto
na construção do individualismo e da meritocracia em oposição aos objetivos
coletivos (COX, 1984).
Para a exportação dos valores capitalistas, simbolizados pelo American Way
of Life, foi essencial a atuação da grande mídia. Assim esses “contra-valores” que
pregam um “contra-comportamento” em oposição àquele propostopela revolução
socialista acabavam por isolar o movimento radical do povo (HERBERT, 1972).
Essa estratégia contrarrevolucionária preventiva tinha um grau elevado de sucesso
porque quando e onde o movimento ainda não tinha criado raízes nas bases
populares, estava sujeito à perseguição sem grandes esforços ou resistência, visto
sua fraqueza numérica.
Em suma, cabe destacar os quatro pontos em que a exploração da rivalidade
ideológica com a URSS acabou por contribuir para a estabilidade ocidental no
período do pós-guerra:
[E]m primeiro lugar, ao opor-se ao Ocidente, a URSS aparecia como uma
grande “ameaça”, o que foi aproveitado pelos Estados Unidos e incorporado
com sucesso no planejamento de política externa. Muito rapidamente, a
América passou a perceber essa “ameaça” como central para a manutenção da
posição de Washington no mundo capitalista ocidental. Muito obviamente,
a ameaça soviética angariava apoio e neutralizava às críticas domésticas das
políticas dos EUA no exterior. A ameaça de tal forma legitimava a expansão
imperial americana no pós-guerra fria assim como suas numerosas inter-
venções militares no Terceiro Mundo. Além disso, a “defesa do Ocidente”
pelos EUA contra o “imperialismo soviético” também fortalecia sua posição
no “mundo livre”, portanto reforçando a dependência de seus aliados mais
fracos sobre os EUA (COX, 1984, p 16).

Finalmente, no sentido histórico mais amplo, a luta contra a União Sovié-


tica criou um ponto fixo de oposição em torno do qual o Ocidente se uniu, após
décadas de conflito. Diante disso, a rivalidade com o bloco socialista acabou por
trazer harmonia e unidade para as relações intercapitalistas (COX, 1984).

178
Resposta Hegemônica dos Ideais Revolucionários:
Contrarrevoluções e seu Impacto no Sistema Internacional

5 Considerações Finais

A contrarrevolução capitalista, entendida no sentido amplo das políticas e


estratégias adotadas pelo bloco capitalista durante a Guerra Fria visando a conter
ou a prevenir a expansão soviética, acabou por fortalecer o sistema capitalista e
a ordem mundial que o acompanha.Isso não significa dizer que essas estratégias
foram a peça-chave para a queda da URSS. Para isso, outros fatores, incluindo as
dinâmicas internas da União Soviética, tiveram peso igualmente relevante. Antes,
o que chamamos de contrarrevolução capitalista serviu para o objetivo de impedir
a expansão do socialismo para o resto do mundo, pela exportação da revolução.
Tal ordem mundial capitalista, contudo, só pode ser mantida pela transfor-
mação do próprio sistema, calcada na transformação material do capitalismo, que
permitiu o avanço e o desenvolvimento do capital, ao mesmo tempo incorporando
traços capazes de contrapor os objetivos propostos pelo comunismo. A partir dessas
transformações, foi possível a exploração do embate ideológico para a construção
da imagem da revolução como uma ameaça à ordem interna dos EUA, expoente
do bloco capitalista, como forma de legitimar as intervenções do governo perante
sua própria população e seus aliados.
Além disso, a manutenção de políticas contrarrevolucionárias durante
a época da Guerra Fria foi orquestrada a partir da negociação do novo quadro
institucional que governaria as relações no pós-guerra, a partir dos acordos cole-
tivos estabelecidos nas Conferências que se seguiram à Segunda Guerra Mundial.
Reforça-se a tendência histórica da necessidade de legitimidade perante os Concertos
de Estados para que a agenda contrarrevolucionária consiga se sustentar - como
ocorre no Congresso de Viena em 1815, após a Revolução Francesa; nas Alianças
Monárquicas em razão da chamada Primavera dos Povos, de 1848; no Tratado
de Versalhes, após a Revolução Russa de 1917. São todas tentativas de conter a
espontaneidade da ordem das coisas - pois, conforme visto, a partir do momento
em que esta passa a ser questionada por grande parte dos componentes do sistema
e, portanto, desafiada, dificilmente se consegue conter o ímpeto revolucionário.
O fato de a ordem contrarrevolucionária, que busca amenizar os impactos de
uma revolução, ter de incorporar algumas das mudanças causadas por esta reforça,

179
REVISTA PERSPECTIVA

por si só, a importância das revoluções para a transformação das sociedades e, de


tal forma, do estudo das revoluções. Independentemente do sucesso ou do fracasso
dos movimentos em conquistar e em manter o poder, as grandes revoluções até
agora revolucionaram,de fato ede forma irreversível, as relações sociais, econômicas
e políticas. A restauração, de tal forma, só é possível caso se consiga mediar as
características centrais da velha ordem às novas características incutidas na nova
ordem, e que não mais podem ser ceifadas - não sem que se incorra no risco de
novas convulsões sociais que ameacem corroer ainda mais o tecido social. De tal
forma, o retorno à Velha Ordem será sempre uma síntese entre o novo e o velho
que consiga manter-se o mais próxima possível do estado anterior à revolução
diante das novas circunstâncias.
Por fim, a partir do estudo da contrarrevolução capitalista no século XX,
podemos arriscar algumas previsões para a conjuntura atual. A transformação do
capitalismo na segunda metade do século passado acarretou em um novo pacto
social, em que a concessão de direitos serviu para apaziguar a classe trabalhadora.
Com a consolidação e o avanço do neoliberalismo nos fins dos anos 1980, podemos
considerar que se inicia a corrosão desse pacto, com crescente agitação social, em
que as contradições do capitalismo estão cada vez mais em evidência, sinalizando
o início de uma nova onda de revoluções.

Hegemonic Response to Revolutionary Ideals: Counter-revolution


and its Impact on the International System

ABSTRACT: The aim of this paper is to understand the process of counter revolu-
tions, its implications forrevolutions and its impact onthe International System as a
whole. Therefore, we analyze how hegemonic order responds to those revolutions,
modifying their own structure, and how this process strengthens the hegemonic
system. First, theoretical issues are addressed in order to clarify the concepts, and
afterwards we analyze the example of the Russian Revolution and of the rise of the
Soviet Union in order to understand how the ideological conflict of the Cold War
helped to transform the capitalist system, making it stronger.

KEYWORDS: Revolution; counter revolution; Cold War; capitalism.

180
Resposta Hegemônica dos Ideais Revolucionários:
Contrarrevoluções e seu Impacto no Sistema Internacional

Referências
BLUM, William. Killing Hope: U.S. Military and CIA Interventions Since
World War II – Part I. Londres: Zedbooks, 2003.

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Francis Rivington, 1852.

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revolutionary foreign policy. Manchester: Manchester University Press, 1985.

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GATES, Robert M. From the shadows: The Ultimate Insider’s Story of Five
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Acesso em: 10 dez. 2016.

181
REVISTA PERSPECTIVA

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MOLNAR, Thomar. The Counter Revolution. Londres: Funk & Wagnalls Co,
1969.

182
HALLIDAY, Fred. Revolution and World
Politics: The Rise and Fall of the Sixth Great
Power. London: Macmillan, 1999.
Resenhado por Guilherme Thudium1

Em Revolution and World Politics, Fred Halliday oferece uma reavaliação


do papel das revoluções no mundo moderno, traçando as origens e a evolução do
conceito desde a Revolução Francesa até as revoluções terceiro-mundistas da década
de 1970 e o colapso do comunismo. Nascido em Dublin, em 1946, e falecido em
Barcelona, em 2010, Halliday fez parte de um seleto grupo de acadêmicos europeus
que adotaram uma perspectiva teórica crítica no estudo das Relações Internacionais
(VISENTINI, 2010). Graduado em Estudos Orientais pela School of Oriental
and Asian Studies (SOAS) da Universidade de Londres e Doutor pela London
School of Economics and Political Science (LSE), onde lecionou por mais de 20
anos, Halliday era um grande linguista e insaciável pesquisador, além de profundo
conhecedor do Oriente Médio e do Terceiro Mundo como um todo.
O estudo aqui resenhado aprofunda o sexto capítulo de uma das suas obras
mais celebradas, Rethinking International Relations (1994, com tradução para o
português pelo NERINT/UFRGS, 1999), e é divido em três partes. A primeira
delas é dedicada a uma reconstrução histórica e intelectual da ideia de “revolução”,
tendo como referência o momento constitutivo de 1789 e a sua centralidade
no Sistema Internacional, bem como para qualquer entendimento das Relações
Internacionais. A segunda parte analisa tópicos mais amplos que ajudam a explicar
o comprometimento internacional das revoluções e a sua complexa relação com

1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS), sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Visentini. Pesquisador do Núcleo Brasileiro de Estratégia e
Relações Internacionais (NERINT).
REVISTA PERSPECTIVA

essa dimensão. A última parte conclui a obra com uma análise das implicações do
estudo desenvolvido para o campo da Teoria das Relações Internacionais e para a
história contemporânea, reforçando a relevância contínua do seu aprofundamento.
Como aporte teórico, Halliday elenca três obras que considera funda-
mentais para o estudo das revoluções: States and Social Revolutions (1979), de
Theda Skocpol; The Social Origins of Dictatorship and Democracy (1967), de J.
B. Barrington-Moore; e Der Neuzeitliche Revolutionsbegriff, Entstehung und
Entwicklung, do teórico alemão Karl Griewank. Ele oferece ainda uma revisão
crítica de outras abordagens sobre o tema, como as propostas por Henry Kissinger,
David Armstrong, Kim Kyuong-won, Stephen Walt, Richard Rosecrance, James
Rosenau e Immanuel Wallerstein.
A tese de Revolution and World Politics é a de que as revoluções, assim como
os Impérios, a guerra e o nacionalismo, moldaram o desenvolvimento da política
mundial e do Sistema Internacional. Ao contrário de outros processos formadores
do sistema moderno, contudo, cuja ligação com o mesmo não é necessária ou
permanente, as revoluções influenciam permanentemente a formação do sistema
de forma a torná-lo mais forte evoluído. Por essa razão, Halliday argumenta que
qualquer discussão de política internacional que não as considere estará não apenas
incompleta, mas fundamentalmente distorcida.
Todavia, o papel das revoluções no Sistema Internacional vem sendo sistema-
ticamente subestimado. Ausentes no ensino teórico da política internacional e das
Relações Internacionais, as revoluções não podem ser vistas como uma anomalia,
ainda que configurem uma exceção sistêmica, pois acontecem recorrentemente na
história – desde a Revolução Americana, que reproduziu a ideia de soberania do
povo latente no final do Século XVIII, assim como a Revolução Francesa, até as
“Revoluções Tardias” do final da Guerra Fria.
Referenciando Martin Wight e uma das obras-chave da Escola Inglesa de
Relações Internacionais, Power Politics (1978), na qual Wight desenvolve a questão
da permanência histórica das revoluções, tem-se que, se considerarmos 1492-1517,
1643-1792 e 1871-1914 como períodos não-revolucionários e 1517-1648, 1792-
1871 e 1916-1960 como revolucionários, vemos que na maior parte da história
do Sistema Internacional as relações entre os Estados não têm sido determinadas

184
Resenha: Revolution and World Politics:
Título doThe Rise and Fall of the Sixth Great Power
artigo...

pelos fatores “normais” – segundo Wight, o direito, o costume e a política de poder


–, mas pelos “anormais”, as revoluções.
A solução aparentemente pacífica a que se chegou no pós-Guerra Fria,
portanto, envolveu décadas, ou mesmo séculos, de conflitos inter e intraestatais
para ser obtida, e em nenhum país do Sistema Internacional o caminho para a
modernidade ocorreu sem guerra ou convulsões sociais. A história mundial e do
Sistema Internacional, assim, é marcada por um ciclo de dissoluções e recomposi-
ções, onde cada fase é uma reação à etapa anterior; e nessa linha de continuidade,
as revoluções, enfatiza Halliday, marcam o caminho da história moderna.
As revoluções produzem uma abertura que possibilita a formação de uma
nova ordem. O fundamento de uma revolução como mecanismo de mudança
fundamental nas relações entre o Estado e a sociedade, segundo Halliday, tem
suas origens no marco constitutivo do final do Século XVIII. Mesmo que as
revoluções Americana e Inglesa tenham criado modelos para o Estado e para o
povo, a Revolução Francesa e, posteriormente, a Revolução Russa de 1917 criaram
modelos de Estado-nação. As revoluções, portanto, desafiam o Sistema Interna-
cional e invocam concepções alternativas às Relações Internacionais, dentro de um
quadro de transformação estrutural de uma ordem para outra. Essa transformação,
explica Halliday, se da na forma de uma mudança brusca e geralmente – porém
não necessariamente – violenta.
O significado e o uso do termo revolução sofreu modificações ao longo
dos séculos. Em vista disso, Halliday oferece uma análise de como esse termo
evoluiu. Dentro dessa amplitude conceitual, a definição de revoluções utilizada
pelo autor pode ser encontrada na introdução da obra: “grandes transformações
políticas e sociais, no contexto de uma modernidade contraditória, que envolvem
a participação em massa e a aspiração de estabelecer uma sociedade radicalmente
diferente” (HALLIDAY, 1999, p. 21, tradução nossa). De acordo com Halliday,
ainda, as revoluções ocorrem quando existem duas condições gerais: a revolta dos
dominados ou a impossibilidade de os governantes continuarem governando.
O esforço metodológico de Halliday, expõe Paulo Visentini (2016), sugere
quatro instrumentos a serem utilizados como elementos de pesquisa: (1) causa:
até que ponto o elemento “internacional” produz a revolução; (2) política externa:
como os Estados Revolucionários conduzem as relações com outras nações; (3)

185
REVISTA PERSPECTIVA

respostas: qual é a reação dos outros Estados; (4) formação: como num período
mais longo os fatores internacionais e sistêmicos constrangem o desenvolvimento
interno pós-revolucionário dos Estados e condicionam sua evolução política, social
e econômica.
Ao contrário das guerras e do nacionalismo, as revoluções reivindicam algo
novo. Halliday explica que, desde os revolucionários franceses no final do Século
XVIII até os revolucionários iranianos no final do Século XX, os Estados revo-
lucionários formularam mudanças de longo alcance tanto no âmbito doméstico
como no internacional. O elemento internacional, assim, é fundamental para a
eclosão de revoluções, e muito explorado na obra: as revoluções, afirma Halliday,
são sempre eventos internacionais e precisam ser concebidas nesse contexto. A
cadeia interativa entre o Sistema Internacional e o doméstico é exemplificada pela
sequencia de eventos do final Século XVIII e início do Século XIX: as guerras de
1760, somadas ao fermento ideológico da época – o “impacto das ideias”, também
muito explorado por Halliday – contribuíram para a Revolução Francesa, que por
sua vez levou às Guerras Napoleônicas.
Ao longo da história moderna, o destino das revoluções esteve sempre
interligado ao do Sistema Internacional: as revoluções alteram as relações entre
Estados e nações, bem como as normas e maneiras pelas quais Estados e sociedades
interagem. Ao afirmar que as revoluções são eventos internacionais e precisam ser
vistas neste contexto, Halliday tenta provocar uma revisão do nosso entendimento
do Sistema Internacional como um todo, assim como da própria disciplina de
Relações Internacionais.
O próprio internacionalismo nasce a partir de uma visão que emerge com
o Iluminismo e a Revolução Francesa de 1789. A Revolução Francesa, ainda,
ajudou a criar “tipos ideais” de organização política, incluindo modelos variados
de democracia, governança e cultura política que se encontram hoje no coração da
organização do Sistema Internacional moderno através de práticas e instituições
forjadas pelo Ocidente. Seu ideário, discorre Halliday, viria a definir o discurso polí-
tico moderno por dois séculos, conferindo o caráter meta histórico das revoluções.
Todas revoluções produzem uma ideologia que, além de provocar uma
transformação social interna, as projetam na esfera internacional. As revoluções
francesa, russa, chinesa e no Terceiro Mundo produziram convulsões sociais com

186
Título doThe
Resenha: Revolution and World Politics: artigo...
Rise and Fall of the Sixth Great Power

alcance global (IKENBERRY, 2000). Logo, central para a análise das ideias no
estudo de Halliday é a exportação da revolução – a promoção da mudança em outros
estados. Os Estados revolucionários, afirma Halliday, buscam sempre exportar a
revolução. De forma inovadora, o autor traz uma análise comparativa da política
externa destes Estados, seguindo a famosa afirmação de um dos Pais Fundadores
dos Estados Unidos da América, Thomas Paine, de que o mais importante impacto
internacional das revoluções reside na força do exemplo.
A política externa de um país revolucionário geralmente contrapõe a diplo-
macia secreta, realista e tradicional. Ela é diferente, porém, pois seus objetivos são
distintos, e não porque utilizam métodos diferenciados; e também não significa
que é menos intensa: Napoleão, lembrou Halliday, veio a ter o serviço diplomático
mais extenso e sofisticado do mundo, com missões desde os Estados Unidos até à
Ásia. A guerra, nesse sentido, como as Guerras Napoleônicas, pode servir como um
instrumento da revolução, na forma de uma ofensiva revolucionária que a utiliza
como forma de exportar a revolução, além de servir também como catalisador e
consequência de revoluções.
Todas as revoluções provocam uma reação, dentro do país e externamente,
que perdura enquanto a revolução existir: a contrarrevolução. A contrarrevolução
surge também a partir da Revolução Francesa, notavelmente nos escritos de Edmund
Burke. O Congresso de Viena de 1815, para Halliday, pode ser visto como uma
forma de legitimação da contrarrevolução: seu objetivo era re-estabilizar o Sistema
Internacional, em uma tentativa de reverter o que havia sido alcançado pela Revo-
lução Francesa, assim como o Tratado de Versalhes de 1919 também simbolizou
uma intervenção contra o regime Bolchevique na Rússia. Nessa linha, como aponta
David Armstrong (1993), a revolução é constantemente compelida a se adaptar ao
sistema vigente, que cria anticorpos com o intuito de evitar novas perturbações.
Isso se deve ao fato de que, a longo prazo, os Estados revolucionários repre-
sentam um desafio para os outros Estados, pois eles perturbam a ordem existente.
Para Burke, a própria existência do regime revolucionário implica sua hostilidade
perante ao Sistema Internacional. Tal avaliação nos transporta para uma das
conclusões mais importantes da obra de Halliday: a ideia de ruptura. Por ser uma
exceção, a revolução rompe com a lógica do Sistema Internacional, desafiando
comportamentos e o status quo, e este, por esses motivos, a rejeita. Para Halliday,

187
REVISTA PERSPECTIVA

as revoluções são, frequentemente, arbitrárias, violentas e caóticas pois representam


a desconstrução de uma ordem e, ultimamente, obrigam a criação de um Estado
ainda mais forte, bem como de um sistema igualmente mais resistente.
Nessa linha, Halliday afirma que a Revolução Francesa de 1789 constituiu
uma rejeição dos Tratados de Westfália de 1648, enquanto que o Congresso de
Viena de 1815 constituiu uma reação aos eventos de 1789, que por sua vez foi
desafiado pelas revoluções de 1848. Já a Revolução Russa de 1917, expõe Halliday,
estabeleceu a fissura fundamental das Relações Internacionais do Século XX: a
história do século passado, do fim da Segunda Guerra Mundial até o final dos
anos 1980, foi quase toda, embora não exclusivamente, uma resposta do Sistema
Internacional à revolução. A Guerra Fria, lembra Ikenberry (2000), se deu tanto
pelo choque entre a Revolução Bolchevique e o Ocidente como pelo equilíbrio
de poder entre as duas superpotências. Em outras palavras, foi a revolução que
quebrou o molde do mundo pós-1945 e anunciou um novo período histórico.
Em Revolution and World Politics, portanto, Halliday não qualifica as revolu-
ções como erros ou desvios, mas sim como parte do processo formativo dos Estados
modernos, da política moderna e do Sistema Internacional moderno. Os grandes
analistas, como Fred Halliday, discorre Visentini com propriedade (2016, p. 98),
“estudaram a revolução não sob um prisma político-ideológico, mas como um
fenômeno político de luta pelo poder. Assim, conseguem compreender e formular
estratégias adequadas à realidade”.

Referências

ARMSTRONG, David. Revolution and World Order: The Revolutionary State


in International Society. Oxford: Oxford University Press, 1993.

HALLIDAY, Fred. Repensando as Relações Internacionais. Tradução de Cristina


Soreanu Pecequilo. Porto Alegre: NERINT, 1999.

IKENBERRY, G. John. Capsule Review: Revolutions and World Politics: The Rise
and Fall of the Sixth Great Power. Foreign Affairs, May/June 2000.

188
Resenha: Revolution and World Politics:
Título doThe Rise and Fall of the Sixth Great Power
artigo...

WIGHT, Martin. Power Politics. Harmondsworth: Holmes & Meier, 1978.

VISENTINI, Paulo. Tributo a Fred Halliday. Conjuntura Austral, v. 1, n. 1,


ago./set. 2010.

______. O Impacto das Revoluções na Ordem Mundial: uma ausência nos Estudos
de Defesa. Revista Brasileira de Estudos de Defesa, v. 3, n. 2, jul./dez. 2016.

189
Revoluções e Relações Internacionais:
Entrevista com Analúcia Danilevicz Pereira,
Professora da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS)

1. A senhora concorda que o tema e a pesquisa sobre revoluções, tanto teórica


como histórica, é um assunto negligenciado pelo mainstream acadêmico das Relações
Internacionais, seja no Brasil ou no exterior? Se sim, por que isso ocorre?
Sim, concordo. Em termos teóricos, a área de Relações Internacionais (que
é nova no Brasil) é influenciada pela construção anglo-saxônica. Como sabemos,
essa construção serviu aos propósitos geopolíticos dos grandes centros de poder
mundiais. Nessa lógica, o estudo das Relações Internacionais nos níveis político,
econômico e securitário correspondeu às necessidades de compreensão dos cenários
mundiais e consequente projeção de poder, desconsiderando os processos históricos
decorrentes das experiências revolucionárias.
O estudo das revoluções é fundamental para compreender o impacto
sistêmico que as mesmas produziram, seja a revolução capitalista dos Séculos XV
e XVI, sejam as revoluções burguesas dos Séculos XVIII e XIX, seja a revolução
socialista do Século XX. Foram as revoluções que definiram a estrutura do Sistema
Internacional e as suas dinâmicas, e não as guerras ou os conflitos, que fazem parte
exclusivamente do grande jogo de poder mundial - inclusive, como meio e desdo-
bramento dos processos revolucionários. A revolução capitalista construiu o sistema
Entrevista com Analúcia Danilevicz Pereira

mundial moderno; já a revolução socialista tornou esse sistema tão mais complexo
a ponto de condicionar o próprio modelo capitalista do mundo Ocidental.

2. Por que as revoluções rompem com o Sistema Internacional vigente?


A revolução, para ser considerada como tal, pressupõe a eliminação das
estruturas econômica, política, social e cultural vigentes e a fundação de uma
outra estrutura que tem como base um projeto totalizante e de novo tipo. Nesse
sentido, a revolução representa um conjunto de mudanças que redefinem desde as
atividades produtivas e as decorrentes relações de trabalho até mudanças profundas
em nível social e cultural. Assim como foi a experiência da revolução capitalista, que
transformou radicalmente as sociedades envolvidas nesse processo, as revoluções
socialistas igualmente criaram um novo modelo civilizacional a partir da visão que
essas sociedades tinham de si mesmas.

3. Qual é o impacto das revoluções terceiro-mundistas na formação do Sistema


Internacional do Século XX?
O pós-Segunda Guerra Mundial definiu uma nova correlação de forças em
nível internacional. Nesse contexto, três novos fatores deverão ser considerados: (i) o
fim da centragem de poder europeia em nível mundial, oportunizando a emergência
de uma nova potência capitalista; (ii) o sucesso e o ineditismo do modelo soviético,
em termos de organização estatal; (iii) e a emergência do Terceiro Mundo, que
produzirá um impacto sistêmico decisivo quanto à nova balança de poder mundial.
Tendencialmente, e considerando esse novo cenário, os novos Estados
que emergiram do sistema colonial tiveram duas vias a seguir na edificação dos
seus projetos políticos, quais sejam, a manutenção dos laços prioritários com as
suas antigas metrópoles ou a ruptura revolucionária - evidentemente inspirada no
modelo soviético. E embora tenhamos que considerar a existência de um conjunto
de Estados autodefendidos neutros, essa neutralidade fazia parte de uma estratégia.
As revoluções do Terceiro Mundo foram uma resposta à velha ordem impe-
rialista do Século XIX, ao mesmo tempo em que deveriam incorporar tardiamente
os valores do Estado moderno. Portanto, a ruptura teria quer ser acompanhada da
construção de elementos nacionais. A questão nacional, por sua vez, em boa medida

191
REVISTA PERSPECTIVA

chocava-se com o elemento internacional. Boa parte dessas revoluções revelaram


que a construção do caráter nacional era uma necessidade prioritária. Esse fato
dificultou que essas revoluções avançassem como verdadeiras revoluções sociais,
muito embora tenham havido experiências significativas e que impulsionaram
o surgimento de novos Estados com forte conteúdo socializante nesse conjunto
regional.
Se parte dessas experiências fracassaram, foi porque estiveram, de alguma
maneira, condicionadas à ordem internacional bipolar. Por outro lado, o legado
sociocultural da experiência revolucionária é incontestável, ainda que muitos
desses Estados tenham adotado a economia de mercado desde o colapso do bloco
socialista.

192
“Perspectiva: Reflexões sobre a Temática
Internacional”
Parâmetros de Submissão Revista Perspectiva

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térios:
4.1 São empregados algarismos arábicos na numeração.
4.2 O indicativo de seção é alinhado na margem esquerda, precedendo o

193
título, dele separado por um espaço.
4.3 Deve-se limitar a numeração progressiva até a seção quinaria.
4.4 O indicativo das seções primárias deve ser grafado em números inteiros
a partir de 1.
4.5 O indicativo de uma seção secundária é constituído pelo indicativo da
seção primária a que pertence, seguido do número que lhe for atribuído na sequ-
ência do assunto e separado por ponto. Repete-se o mesmo processo em relação
às demais seções.
Exemplo:
Seção Primária Seção secundária Seção terciária Seção quaternária Seção quinária
1 1.1 1.1.1 1.1.1.1 1.1.1.1.1
2 2.1 2.1.1 2.1.1.1 2.1.1.1.1
3 3.1 3.1.1 3.1.1.1 3.1.1.1.1
. . . . .
8 8.1 8.1.1 8.1.1.1 8.1.1.1.1
9 9.1 9.1.1 9.1.1.1 9.1.1.1.1
4.6 Não se utilizam ponto, hífen, travessão ou qualquer sinal após o indi-
cativo de seção ou de seu título.
4.7 Destacam-se gradativamente os títulos das seções, utilizando os recur-
sos de negrito, itálico ou grifo e redondo, caixa alta ou versal e outro. O título das
seções (primárias, secundárias etc.) deve ser colocado após sua numeração, dele
separado por um espaço. O texto deve iniciar-se em outra linha.
4.8 Todas as seções devem conter um texto relacionado com elas.
4.9 Quando for necessário enumerar os diversos assuntos de uma seção
que não possua título, esta deve ser subdividida em alíneas.
4.10 Quando as alíneas forem cumulativas ou alternativas, pode ser acres-
centado, após a penúltima, e/ou conforme o caso. As alíneas, exceto a última,
terminam em ponto-e-vírgula.
4.11 A disposição gráfica das alíneas obedece às seguintes regras:
a) o tercho final do texto correspondente, anterior às alíneas, termina em
dois pontos;
b) as alíneas são ordenadas alfabeticamente;
c) as letras indicativas das alíneas são reentradas em relação à margem es-
querda;
d) o texto da alínea começa por letra minúscula e termina em ponto-e-
-vírgula, exceto a última que termina em ponto; e, nos casos em que se seguem
subalíneas, estas terminam em vírgula;
e) a segunda e as seguintes linhas do texto da alínea começam sob a pri-
meira letra do texto da própria alínea.
4.12 Quando a exposição da ideia assim o exigir, a alínea pode ser subdi-
vidida em subalíneas. As subalíneas devem começar por um hífen, colocado sob
a primeira letra do texto da alínea correspondente, dele separadas por um espaço.
As linhas seguintes do texto da subalínea começam sob a primeira letra do pró-
prio texto.
4.13 Quaisquer gráficos, tabelas, esquemas ou assemelhados devem ser
enviados separados do artigo, em anexo, sendo que esses devem ser diretamente
reproduzidos pelo autor.
4.14 Esclarecimentos sobre a normalização exigida devem ser consulta-
dos nos termos estabelecidos pela ABNT para artigos em periódicos científicos
(NBR6022).

Atenciosamente,
Conselho Executivo

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