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HISTÓRIA DO BRASIL I
Prof. Andréa Slemian
Documento da aula: Terra de Santa Cruz, Brasil, América portuguesa

Mundus Novus (1503), Américo Vespúcio

“Há dias lhe escrevi extensamente acerca do meu regresso das terras novas, que, na
frota a expensas deste Sereníssimo rei de Portugal, corremos e descobrimos; as quais terras
nos deve ser permitido chamar Novo Mundo, porque, entre os nossos maiores não houve o
menor conhecimento de que fossem habitadas, e para todos que ouvirem será uma novidade.
E, entretanto, esta opinião vai além da dos antigos, pois deles a maior parte dizem que, além
da equinocial, para a banda do meio-dia, não existia terra continental, mas somente o mar
Atlântico, e os que afirmaram haver aí terra negaram que fosse habitada de racionais. Mas o
ser esta opinião falsa, e a verdade o contrário, se provou nesta minha última viagem, pois
naqueles meridianos encontrei terra continental habitada de mais povos e animais que a nossa
Europa e a Ásia ou África, e os ares mais temperados e amenos que em qualquer outra região
conhecida, conforme direi, tratando do que vi ou ouvi digno de notar neste Novo Mundo,
segundo se verá mais abaixo [...].
Começarei pela gente. Foi tanta a multidão dela, mansa e tratável, que encontramos
naquelas regiões, que, como diz o Apocalipse, não se pôde contar. Os de um e de outro sexo
andam nus, sem cobrir nenhuma parte do corpo, como saem dos corpos das mães, e assim
vão até a morte. Têm os corpos grandes e robustos, bem dispostos e proporcionados, de cor
tirante à vermelha, o que, segundo creio, lhes procede serem tintos pelo sol, andando nus [...].
Não possuem panos de lã nem de linho, nem mesmo de algodão; porque os não
necessitam, nem têm bens de propriedade; porém tudo lhes é comum. E vivem juntos, sem
rei nem Império, e cada qual é senhor de si.
Tomam tantas mulheres quantas querem, e o filho se junta com a mãe, e o irmão com
a irmã, e o primo com a prima, e o caminhante com a que encontra. Basta a vontade para
matrimoniarem, no que não observam ordem alguma. Além disso não possuem templos nem
leis, nem são idólatras. Que mais direi? Vivem secundum naturam, e se podem conceituar de
epicureus mais que de estóicos. Não há entre eles comerciantes nem comércio.
Guerream-se entre si, sem arte nem ordem. Os mais velhos, com alguma parcialidade,
obrigam a quanto querem os jovens, e os levam à guerra, na qual se matam cruamente; e aos
que cativam não poupam as vidas senão para que os sirvam toda a vida, ainda que a outros
comem, sendo certo que é entre eles a carne humana manjar comum; e se há visto haver o
pai comido mulher e os filhos. E um conheci eu, a quem falei, que se gabava de haver
saboreado trezentos corpos humanos, e até estive vinte e sete dias em certa povoação, onde
vi dependurada pelas habitações carne humana salgada, como entre nós se usa com o
toucinho e a chacina de porco.
Digo mais: até se admiram de como nós não comamos os nossos inimigos, nem
façamos uso de sua carne, que dizem saborosíssima. Suas armas são arcos e flechas; e quando
se afrontam em ação não cobrem nenhuma parte do corpo para defender-se, e nisto são

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semelhantes aos animais. Procuramos dissuadi-los quanto nos foi possível destes bárbaros
costumes, e eles nos prometeram deixá-los.
As mulheres vão nuas, e conquanto libidinosas, como disse [anteriormente], são assaz
belas e bem formadas, e pasmoso nos pareceu que, entre as que vimos, nenhuma se notava
que tivesse os peitos caídos; e as que já haviam parido, pela forma do ventre e sua contração,
não se diferenciavam das virgens, e se lhes semelhavam nas outras partes do corpo, do que
por decência deixo de ocuparme; mas quando podiam tratar com os nossos cristãos, impelidas
pelo desejo, não tinham o menor pudor [...].
A terra daquelas regiões é fértil e amena, de muitos montes e morros, e infinitos vales,
e regada de grandes rios e fontes, coberta de extensos bosques, densos e apenas penetráveis,
e povoada copiosamente de feras de todas as castas. Nela nascem, sem cultura, grandes
árvores, as quais produzem frutos deleitosos, e de proveito ao corpo e nada nocivos, e
nenhuns frutos são parecidos com os nossos. Produzem-se inumeráveis gêneros de árvores e
raízes, de que fabricam pão e ótimos mingaus, além de muitos grãos ou sementes não
semelhantes aos nossos.
Metais nenhuns aí se encontram, exceto o ouro, do qual há abundância, se bem que
desta viagem nenhum conosco trouxemos; mas deram-nos dele notícia os habitantes,
afirmando que nos sertões havia muito, mas que não o estimavam nem apreciavam.
[...] E por certo que se o paraíso terreal existe em alguma parte da terra, creio que não
deve ser longe destes países; ficando situado ao meio-dia, com ares tão temperados, que nem
no inverno gela, nem no verão faz calor [...]”.

(Extraído de Darcy Ribeiro & Carlos de Araújo Moreira Neto - A fundação do Brasil:
testemunhos 1500-1700. Petrópolis, Vozes, 1992, p.101-106).

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