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A carta de Caminha
Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até um ribeiro grande,
e de muita água, que ao nosso parecer é o mesmo que vem ter à praia, em que nós
tomamos água. Ali descansamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dele,
entre esse arvoredo que é tanto e tamanho e tão basto e de tanta qualidade de
folhagem que não se pode calcular. Há lá muitas palmeiras, de que colhemos muitos e
bons palmitos.
Ao sairmos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos em direitura à cruz que
estava encostada a uma árvore, junto ao rio, a fim de ser colocada amanhã,
sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem
o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. E a esses dez ou doze que lá
estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo foram todos beijá-la.
Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a
nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma,
segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar
aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa
tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual
praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela
simplicidade. E imprimirse-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar,
uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens
bons. E o Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa
Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação
deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!
Havia muitos destes índios pela costa junto das capitanias, tudo enfim estava cheio
deles quando começaram os portugueses a povoar a terra; mas porque os mesmos
índios se alevantaram contra eles e faziam-lhes muitas traições, os governadores e
capitães da terra destruíram-nos pouco a pouco e mataram muitos deles, outros
fugiram pera o sertão, e assim ficou a costa despovoada de gentio ao longo das
capitanias. Junto delas ficaram alguns índios destes nas aldeias que são de paz, e
amigos dos portugueses.
A língua deste gentio toda pela costa é, uma: carece de três letras – scilicet, não se
acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem
Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente.
Estes índios andam nus sem cobertura alguma, assim machos como fêmeas, não
cobrem parte nenhuma de seu corpo, e trazem descoberto quanto a natureza lhes
deu. Vivem todos em aldeias, pode haver em cada uma sete, oito casas, as quais são
compridas feitas à maneira de cordoarias; e cada uma delas está cheia de gente duma
parte e doutra, e cada um por si tem sua estância e sua rede armada em que dorme, e
assim estão todos juntos uns dos outros por ordem, e pelo meio da casa fica um
caminho aberto para se servirem. Não há como digo entre eles nenhum Rei, nem
Justiça, somente em cada aldeia tem um principal que é como capitão, ao qual
obedecem por vontade e não por força; morrendo este principal fica seu filho no
mesmo lugar; não serve doutra cousa se não de ir com eles à guerra, e conselhá-los
como se hão de haver na peleja, mas não castiga seus erros nem manda sobre eles
cousa alguma contra sua vontade. Este principal tem três, quatro mulheres, a primeira
tem em mais conta, e faz dela mais caso que das outras. Isto tem por estado e por
honra. Não adoram cousa alguma nem têm para si que há na outra vida glória para os
bons, e pena para os maus, tudo cuidam que se acaba nesta e que as almas fenecem
com os corpos, e assim vivem bestialmente sem ter conta, nem peso, nem medida.
José de Anchieta