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Guia Sentimental da Cidade de Pirenópolis

Elder Rocha Lima


Fotografias: Marcelo Feijó
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Luiz Inácio Lula da Silva

MINISTRO DA CULTURA
Juca Ferreira

PRESIDENTE DO IPHAN
Luiz Fernando de Almeida

CHEFE DE GABINETE
Fernanda Pereira

PROCURADORA-CHEFE FEDERAL
Lúcia Sampaio Alho

DIRETORA DE PATRIMÔNIO IMATERIAL


Marcia Sant’Anna

DIRETOR DE PATRIMÔNIO MATERIAL E FISCALIZAÇÃO


Dalmo Vieira Filho

DIRETOR DE MUSEUS E CENTROS CULTURAIS


José do Nascimento Junior

DIRETORA DE PLANEJAMENTO E ADMINISTRAÇÃO


Maria Emília Nascimento Santos

COORDENADORA-GERAL DE PESQUISA, DOCUMENTAÇÃO E REFERÊNCIA


Lia Motta

COORDENADOR-GERAL DE PROMOÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL


Luiz Philippe Peres Torelly

SUPERINTENDENTE REGIONAL DO IPHAN EM GOIÁS//TOCANTINS/MATO GROSSO


Salma Saddi Waress de Paiva
Guia Sentimental da Cidade de Pirenópolis
Elder Rocha Lima
Fotografias: Marcelo Feijó

1a Edição
Goiânia

2010
© Elder Rocha Lima. Brasília, 2010

Proibida a reprodução total ou parcial deste livro sem autorização do editor


(sanções previstas na Lei n. 9.610, de 20 de junho de 1998).

Elder Rocha Lima


Texto e desenhos

Marcelo Feijó
Fotografias

Bia Feijó
Revisão de texto

Genilda Alexandria
Projeto gráfico

Marcus Lisita Rotoli


Diagramação

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA


BIBLIOTECA ALOÍSIO MAGALHÃES

LYYYg Lima, Elder Rocha.


Guia sentimental da cidade de Pirenópolis / Elder Rocha
Lima. __ Goiânia, GO : IPHAN / 14ª Superintendência Regional,
2010.
144 p. : il. ; 22 cm.
ISBN : XXXXXXXXX-X
1. Goiás - História. 2. Goiás – Arquitetura. 3. Goiás –
Cultura. I. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. II. Título.

CDD YYY.YY
Este livro é dedicado aos meus netos
Julia, Renato, Gustavo, Ivo, Luiza, Pedro
e João que adoçam minha vida.
Introdução

Este Guia não é um guia turístico. Mas acredi- Queria fazer, inicialmente, alguns comentá-
to que possa interessar a um turista com certa curio- rios, em tom de advertência: à semelhança da Cida-
sidade intelectual, mas não, é claro, àqueles que só de de Goiás, não espere o visitante encontrar uma
vão apreciar o passeio pela Cidade após a observação Cidade repleta de monumentos e obras de arte cons-
das suas fotografias... pícuas. Ao contrário, é simples e humilde, pequena
Tento aqui uma perspectiva a vol d’oiseau da e singela, pobre e despretensiosa. Mas aí é que reside
Cidade em toda a sua complexidade física e espiri- seu grande valor, sua singularidade e sua importân-
tual. O escopo do trabalho não permite aprofunda- cia em nossa história: ela é, em si e por si, uma obra
mento, mas sim abrangência, ainda que um pouco de arte naïf, ingênua, às vezes tosca e mal acabada,
limitada. Admito uma certa visão impressionista e mas de um conteúdo estético evidente porque bro-
pessoal e, em função disto, talvez se tenha avultado tou do fundo de sensibilidades virgens.
certas coisas ou apequenado outras. Como o livrinho O isolamento a que a Província de Goiás foi
não tem pretensões acadêmicas, isto se torna, creio, submetida em virtude das lonjuras com relação à
perdoável. nossa histórica civilização litorânea nos obrigou a
Tomei como modelo meu trabalho Guia Afeti- (re)criar, a improvisar e a (re)inventar nossa maneira
vo da Cidade de Goiás, também editado pelo Iphan. de fazer e viver. Às vezes o insucesso acontecia, mas
Isso é compreensível por várias razões – são Cida- eram lições para bons aprendizes.
des irmãs, tiveram a mesma origem, isto é, o ciclo Para construir esta Meia-Ponte ou a Vila Boa
histórico do ouro e quando cessada essa exploração, de Goiás não foram convocados artistas, arquitetos,
consolidaram-se de mesma maneira, isto é, com urbanistas e outras figuras importantes (e, às vezes,
base na economia agropecuária. Por outro lado, o arrogantes), para planejar, desenhar e definir esses
intercâmbio político e cultural entre as duas cidades espaços construídos. Ao contrário, foi o povo que fez
sempre foi intenso. Também a movimentação popu- a Cidade sem planejadores e sem máquinas e com
lacional, inclusive as grandes famílias tradicionais, poucos instrumentos. Foi feita à mão por pretos, mu-
importantes ou não, daqui têm ramificações lá. O latos, caboclos, brancos, travestidos de mestres-de-
próprio autor do trabalho é descendente de famílias obras, pedreiros, carapinas, entalhadores, ferreiros,
de Pirenópolis e da Cidade de Goiás e tem bastante pintores, e tantos outros necessários para levantar as
vivência com as duas Cidades. Daí o “à-vontade” que nossas moradas, nos abrigar das intempéries, criar
se sentiu para fazer os dois trabalhos. meios de preparar nossa comida, propiciar nosso re-
pouso, acolher nossa vivência amorosa e criar nos-
sos filhos. Os instrumentos utilizados foram aqueles
absolutamente simples - o que foi possível obter na
época e que, na realidade, eram simples prolonga-
mentos das mãos.
Este livro se compõe de texto e alguns dese-
nhos a bico-de-pena produzidos pelo autor. Procu-
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rei ser, o mais possível, fiel aos modelos. Também
foram incluídas fotos de Marcelo Feijó abordando
temas que, no meu entendimento, ficariam melhor
que desenhos.
As liberdades interpretativas, tomadas nos
desenhos e fotos, são resultantes de uma conduta
normal em quem lida, hoje, com as duas formas de
produção artística: é necessário certa criatividade e
relativa liberdade para que se consiga atingir bons
resultados.
Cabe aqui uma observação: os nomes das
ruas, praças, logradouros de maneira geral, adotados
no livro, são aqueles que a população usa, por tra-
dição, e não os nomes oficiais com que se pretende
homenagear alguém, geralmente algum político em
evidência que, quando cai em desgraça, é substituí-
do por outro.
Esse trabalho só foi possível porque inúmeras
pessoas contribuíram com ele – informando, relatan-
do e recordando fatos da Cidade e sua história. Im-
possível relacionar todos, mas sou-lhes grato.
Consultamos muitas obras e documentos, to-
dos de alto nível, e que no decorrer do texto estão
explicitados, direta ou indiretamente. As imperfei-
ções aqui contidas correm por nossa conta.
O impulso inicial e contínuo recebido para
produzir este trabalho, deve-se, particularmente, a
duas pessoas – o Prefeito Nivaldo Melo e a Supe-
rintendente do Iphan em Goiás, Salma Saddi – dois
amigos incontestáveis de Pirenópolis.
O autor
Sumário

11 História da cidade
27 Espaço geográfico
65 Arquitetura
91 Arquitetura religiosa
105 Edifícios institucionais
113 Expressão intelectual e artística
125 Pirenópolis turístico
129 Festas populares
139 Costumes alimentares
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História
da cidade
O atual município de Pirenópolis ocupa uma escravos nos mercados do litoral brasileiro que, diga-
área de 2.300 quilômetros quadrados e abriga uma se de passagem, não eram objetivos muito nobres.
população de cerca de 20.000 habitantes. Os elogios que cabem aos bandeirantes poderão ser
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A formação histórica da Cidade de Pirenópolis limitados à coragem física que ostentavam e que os
é espelho da formação da Cidade de Goiás. Ambas fazia mover, com muitas dificuldades, pelo sertão
foram motivadas por dois impulsos econômicos que inóspito do Brasil Central.
lhes deram semelhanças formais. Para aumentar es- Outra coisa: não havia “descoberta” alguma,
sas semelhanças, o sítio geográfico em que estão in- como se habituam a afirmar os livros oficiais de his-
seridos tem o mesmo facies. Todas as duas Cidades tória quando tratam do assunto da chegada desses
situam-se nas faldas da ondulação geológica que em brancos, por estas paragens. Nossos índios, compro-
Vila Boa se chama de Serra Dourada e em Pirenópo- vadamente, já habitavam esses cerrados há mais de
lis, Serra dos Pireneus. dez mil anos!... Na realidade, houve uma invasão
Em 1731 o companheiro do Anhanguera, que se revestiu de atitudes, frequentemente, de uma
Manuel Rodrigues Tomar descobre ricas jazidas de crueldade sem par. Os índios, verdadeiros donos da
ouro nos contrafortes da Serra dos Pireneus, junto terra, quando não aceitavam a escravidão eram di-
ao Rio das Almas. Assim, surgiu o arraial de Meia zimados a fio de espada ou tiros de arcabuzes. Isso
Ponte, que mais tarde teria seu nome mudado para aconteceu numa grande e impressionante escala na
Pirenópolis. região dos, hoje, estados de Goiás e Tocantins. Mas,
Em abono a essa afirmação quanto ao nome particularmente aqui, na região do arraial de Meia
do fundador desta Cidade, passa-se a palavra ao his- Ponte, ou não existiam indígenas, ou eles já tinham,
toriador local, o renomado Jarbas Jayme: ajuizadamente, adentrado os sertões para fugirem
Quanto à fundação do arraial de Meia Ponte, esta- das “benesses” da civilização européia que lhes trou-
mos de acordo com os historiadores e a tradição, xe maus hábitos além de doenças desconhecidas.
contestes em nos assegurarem que tal iniciativa Os negros que trabalhavam nas minas, ou
partiu de Manuel Rodrigues Tomar que, verifi- melhor, nos garimpos, provinham do Mercado de
cando serem aquelas paragens ricas do precioso e Escravos do Rio de Janeiro e eram da raça bantú,
cobiçado metal, ali se estabeleceu, com grande nú-
vindos de Angola. Outros eram originários da Bahia
mero de aventureiros, e deu início à mineração e à
lendária cidade.
e oriundos da Costa do Ouro, muitos deles maome-
tanos e homens livres em suas terras.
Sabemos que dois motivos básicos faziam mo- A mortalidade entre os negros escravos era
ver para cá o bando de bandeirantes, oriundos prin- enorme – morriam aos magotes, vítimas dos maus
cipalmente de São Paulo: a busca obsedante do ouro tratos, do trabalho pesado e insalubre dentro da água
e a preação dos índios para serem vendidos como péssima alimentação, higiene precária, maus tratos
físicos e, ainda, contaminados por doenças de bran- maus tratos que lhes impuseram. As glórias do vai-
cos. Isso é facilmente verificável nos livros de óbitos doso Marquês estão apoiadas nos cadáveres desses
da Cidade. filhos de Deus...
Apesar de tudo, houve miscigenação, inclusi- Para evitar a dispersão de esforços na busca
ve porque as experiências sexuais dos “sinhozinhos” do ouro, do qual o império português retinha para si
se faziam com as mucamas, isto é, escravas domés- a quinta parte, proibia-se na Cidade qualquer outra
ticas. Nessa hipótese, a população da nossa Cidade atividade que não fosse o comércio rotineiro e a ga-
12 formou-se com a contribuição do sangue europeu e rimpagem. É fácil imaginar que se tinha, então, uma
africano e pouco do sangue indígena, pelo menos na sociedade baseada numa colossal diferença de renda
Cidade. – alguns poucos, muito poucos, detentores de gran-
A Cidade de Pirenópolis, além de um me- de riqueza e a ampla maioria mergulhada na pobreza
lhor clima com relação à Cidade de Goiás, princi- e na extrema miséria.
palmente no que diz respeito à temperatura média, Um dos grandes representantes, por exemplo,
situava-se na confluência dos grandes caminhos em dessa estrutura social, no lado dos privilegiados, era
demanda de São Paulo, Minas, Rio de Janeiro, Bahia, o Sargento-mor Antonio Rodrigues Frota, de origem
Mato Grosso. Assim, nos seus primórdios, Meia Pon- lusitana. Morava num grande sobrado na margem
te rivalizou-se em importância econômica com a Vila direita do Rio das Almas, no sopé do morro que lhe
Boa, capital da Província. Chegou mesmo a ser co- tomou o nome e onde, hoje, estão instaladas as an-
gitada como condição de capital, mas a inércia da tenas de televisão. O botânico Willian John Burchell
administração colonial não possibilitou isso. representou-o num belo desenho a lápis quando
O ouro das margens do Rio das Almas, à se- passou por Meia-Ponte, em 1827 e cujas ruínas (ali-
melhança do ouro das margens do Rio Vermelho na cerces) ainda existiam na primeira metade do século
Cidade de Goiás, atraiu os aventureiros de todos os passado. O grande sobrado desapareceu após a mor-
perfis, muitos, como soe acontecer nesses casos, to- te da última filha do Sargento-mor. Essa residência
talmente inescrupulosos. era um verdadeiro palácio onde imperava um luxo
O império português, a cada descoberta de de nababo. Relata a lenda que, quando as filhas do
ouro aqui no Planalto Central, enchia-se de entu- Frota dirigiam-se à missa, trajando-se luxuosamente
siasmo – mais dinheiro para Portugal, mais recursos e precedidas, em procissão, por mucamas e pajens,
para a manutenção de uma classe ociosa dos fidalgos todos aspergiam ouro em pó nas em arrumadas ca-
e, mais tarde, a partir de 1755, financiamento para beleiras para bem enfeitá-las. A lenda também relata,
a reconstrução de Lisboa, sob as ordens do déspota aliás, vingando tanta soberba, que as filhas do Sar-
lúcido Marquês de Pombal. Isso se fez em tal mag- gento-mor Frota morreram na miséria, chegando ao
nitude que se pode considerar que o belo centro de nível de pedintes de esmolas.
Lisboa de hoje, foi edificado, em parte, sobre os om- O Sargento-mor Frota faleceu em 1774, dei-
bros curvados e doloridos dos pobres escravos, ba- xando doze filhos, sendo sete mulheres. Todas mor-
teando nos barrancos do Rio Vermelho e do Rio das reram em Pirenópolis, sem descendentes, e estão en-
Almas. Ou melhor, foi edificada sobre os ossos dos terradas, como os pais, na Capela de Nossa Senhora
negros que não resistiam à fome, às doenças e aos do Monte do Carmo, construída a expensas do refe-
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rido Sargento-mor para melhor atender ao conforto de conseqüências positivas como a diversidade pro-
de sua família. Esta capela é o atual Museu de Arte dutiva, a estabilidade social, a estratificação de uma
Sacra. sociedade anárquica do garimpo, a criação de cate-
Mas o ouro aluvionar, tecnicamente mal ex- gorias profissionais e um incremento nos padrões
plorado, nas margens do Rio das Almas, como não culturais.
podia deixar de ser, esgotou-se e a miséria e a de- Isso tudo e outras coisas conduziram a Cidade
cadência tomaram conta da Cidade, assim como na a assumir um perfil de aglomeração civilizada. Com
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antiga Vila Boa de Goiás. Isso começou a ocorrer o abandono da atividade de mineração e seus sonhos
aí por volta de 1770. Como a economia da Cida- de riqueza fácil, os moradores passaram a considerar
de estava toda voltada para a produção do ouro, foi aquela Cidade como local de morada, com todas as
extremamente difícil voltar-se para outro segmento implicações que isso representa. Sob ponto de vista
econômico que seria, naturalmente, a agropecuária. urbano a Cidade tomou formas definidas com suas
Essa adaptação foi dolorosa e o braço escravo teve, ruas delineadas, assim como praças, igrejas, edifícios
então, que ser encaminhado para a produção rural e públicos, etc. A vida social também tomou forma,
isso não foi fácil, em vista do desconhecimento que especialmente com a vida cultural – surgiram as or-
se tinha do assunto, tanto dos proprietários quanto questras, as escolas, os vagidos literários, o teatro,
dos trabalhadores braçais. as técnicas de representação pictórica, as festas reli-
O ouro brasileiro é na maior parte de aluvião, e se giosas ou profanas etc. Intensificou-se também o in-
encontra sobretudo no leito dos cursos d’água e tercâmbio comercial e, com isso, as viagens, em que
na suas margens mais próximas. Ele resulta de um
se pôde observar o que existia fora das fronteiras da
processo geológico milenar em que a água, tendo
atacado as rochas matrizes onde antes se concen- pequena Cidade. Os que demandavam as paragens
trava o metal, o espalhou por uma área superficial daqui já não eram aventureiros, destituídos de es-
extensa. Daí a pequena concentração em que foi crúpulos, mas pessoas que procuram um local para
encontrado e o esgotamento rápido dos depósitos, viver, criar sua família e participar das vantagens da
mesmo os mais importantes. O que sobra é de um vida urbana.
teor aurífero tão baixo que não paga trabalhos de Outro acontecimento, este curioso e emble-
vulto, e dá apenas para o sustento individual de
mático, ligado à produção do ouro, é representado
modestos faiscadores isolados, Esta situação se
prolonga aliás até hoje. Em toda a região do Bra- pela destruição da mina do Abade (o nome advém
sil Central (compreendendo os Estados de Minas de um tal Ignácio do Abade, negro velho e garimpei-
Gerais, Goiás, boa parte de Mato Grosso e Bahia) ro, que a descobriu na margens de um afluente do
ainda se encontra ouro em quase todos os rios e Rio das Almas).
margens adjacentes. Mas numa percentagem tão Essa mina ficava a 18 quilômetros da Cidade
baixa que sua exploração se torna antieconômica. de Corumbá de Goiás e foi explorada por uma com-
A ela se dedicam apenas uns pobres faiscadores
que mal conseguem apurar o seu sustento diário.
panhia de mineração, a Companhia Prado, sediada
(Caio Prado Junior – História Econômica do Brasil).
no Rio de Janeiro e que estava introduzindo métodos
mais modernos para extração do metal, ao invés dos
Mas a verdade é que essa adaptação a novas métodos empíricos dos faiscadores, de baixo rendi-
formas de sobrevivência trouxe consigo uma série mento. Tratava-se de uma evolução tecnológica.
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O gerente que operava a mina era um tal nados no barranco. O curso d’água canalizado era
Alfredo Arena, cujo verdadeiro nome era Bernard um dos afluentes do rio das Almas, que servia de
Ambalard. D’Arena, curioso personagem que mere- abastecimento da cidade de Meia Ponte.
ce um retrato mais detalhado. Era, aparentemente, Mais adiante no texto, diz o cronista:
francês e homem culto, formado em Odontologia e A água usada na lavagem do ouro ia cair no rio
ainda com conhecimentos técnicos variados. Porta- das Almas, dia sim dia não, isso porque um dia era
va estatura mediana, louro e com olhos azuis. Fa- destinado à derrubada do cascalho, e o seguinte
16 lava várias línguas e era muito polido. Além disso, para sua lavagem.O rio ficava reduzido a um curso
trajava-se com impecável elegância – trajes brancos, d’água barrenta que descia pelo leito afora, debaixo
chapéu chileno, botas, um largo poncho e sempre da indignação dos moradores de Meia Ponte. Nos
armado com revolver e cartucheira. Andava a cavalo, dias de lavagem do cascalho a corrente de lama era
tal que impedia a passagem pelo rio, atolando os
acompanhado por dois robustos seguranças negros,
cavalos e privando d’água a cidade.
armados de poderosas garruchas e três enormes cães
de fila cabeçudos. Sua casa em Corumbá de Goiás era A população de Pirenópolis protestava, as au-
de um luxo e comodidades impressionantes – pos- toridades, timidamente às vezes, protestavam, inclu-
suía água encanada, mobílias finamente trabalhadas sive o governo estadual, e essas manifestações de de-
e vindas da Corte, tapeçarias e cortinas de veludo. sagrado quanto a atitude de Arena chegaram até ao
Tinha na casa uma sala de armas com espingardas, conhecimento do Imperador Pedro II que nada fez.
clavinotes, revólveres, espadas, garruchas, etc. Seus Mas as respostas do gerente da mina às interpelações
banquetes eram famosos na Cidade e como bebidas da autoridade eram tergiversadoras e, frequentemen-
corriam o champagne e cognac franceses. Apesar de te, irônicas ou sarcásticas. Fazia, por outro lado, uma
polido, era, quando queria, desaforado, irônico e política no sentido de agradar o comércio e popula-
sarcástico. ção de Corumbá, estimulando um sentimento de ri-
Seguem-se trechos de uma crônica do Sr. Luiz validade nas populações das duas Cidades, Corumbá
Reginaldo Fleury Curado, reproduzida pelo his- e Pirenópolis, cujos resquícios permanecem até hoje.
toriador Jarbas Jayme em seu Esboço Histórico de Arena preparou-se para enfrentar alguma in-
Pirenópolis: vasão das minas – sabia que era odiado - construiu
...instalou-se Arena no Abade, num dia perdido casa de pólvora e chegou a colocar um canhão e
do ano de 1885. Contratou trabalhadores na vi- morteiros em um ponto estratégico, para sua defesa,
zinha Corumbá e fez construir rego d’água, todo das minas e da pequena Cidade que tinha construído
calçado, que conduzia o líquido a duas calhas de em volta dela.
madeira pixada, no fim das quais havia um apare- Mas, ao que parece, o francês sentiu que sua
lho hidráulico que impelia a água, com força, para
posição começava a ficar insustentável e, mais ainda,
dentro de uma tubulação de ferro, através da qual
era atirada ao barranco. Na ponta dessa tubulação
ao que parece, as minas estavam se exaurindo. De
uma peça que regulava o esguicho, controlando a forma oportuna, Arenas viajou para o Rio de Janeiro,
maior ou menor força com que a água era atirada. sob o pretexto de visitar a família.
Um homem, de uma escada, segurava a manguei- Nesse momento, com ânimos exacerbados,
ra, orientando o seu jato para os lugares determi- e em vista da inércia dos poderes constituídos, um
grupo de vinte e quatro cavaleiros, armados, com as estabeleceu-se em Pirenópolis e, com uma pequena
caras pintadas de preto e embuçados, invadiu as mi- fortuna nas mãos, voltou-se, principalmente para
nas e destruiu as suas instalações, isso ocorreu em atividades de produtor rural, mas com um dimen-
22 de março de 1887. Três dias depois, voltaram e sionamento de caráter industrial.
destruíram o que ainda sobrara. O grupo que empre- Em 1802 iniciou a construção do Engenho
endeu essa razia foi comandado por um jovem herói São Joaquim (atual Fazenda Babilônia) - uma inicia-
de 17 anos, Sisenando Gonzaga Jayme de tradicional tiva extremamente ousada, pois foi um dos maiores
família meiapontense. engenhos de açúcar do Brasil na época.
Não resta dúvida que essa atitude foi uma ma- Casou-se em 1803 e teve vários filhos, que
nifestação pioneira de defesa do meio ambiente! morreram, só lhe restando uma filha que se casou
Arena, por esse tempo, estava no Rio de Janei- com um seu braço-direito nas suas atividades indus-
ro, mas assim mesmo tentou processar os pretensos triais e comerciais. O Comendador era um homem
autores do atentado. A justiça se moveu e depois de bastante religioso e com preocupações intelectuais
muitas peripécias os “caras-pretas” foram absolvidos. muito acentuadas, tanto que criou, a suas expensas,
Alfredo Ambalard d’Arena nunca mais voltou a primeira biblioteca pública da Cidade.
a Goiás e morreu, nos princípios do século passa- O biografado também importou uma tipo-
do, em Araguari, Minas Gerais, onde se tornara grafia completa do Rio de Janeiro (fabricada fora do
fazendeiro. Brasil) e publicou, durante muitos anos, um jornal
Igualmente, um dos personagens mais sedu- denominado Matutina Meyapontese que foi o pri-
tores da história de Pirenópolis, foi o Comendador meiro jornal editado em Goiás. Esse fato demonstra
Joaquim Alves de Oliveira. Sua importância social, sua visão progressista. Curioso é que o Comendador
política e econômica para a Cidade foi de tal or- não importou o tipógrafo, e a tipografia da época,
dem que se pode, sem exagero, considera-lo como ainda à maneira de Guttemberg, utilizava-se dos ti-
uma instituição, ao invés de um simples cidadão pos móveis, de chumbo, que eram arranjados à mão
particular. e às avessas – tarefa que exigia muita habilidade,
Esse homem empreendedor foi quem evitou além de certa cultura. A técnica era compor palavra
que a Cidade entrasse em decadência, em virtude da por palavra, linha por linha, coluna por coluna, tudo
falência das atividades de extração do ouro, pois pro- isso dentro de uma certa lógica e elegância visual,
vocou, com suas iniciativas pessoais e com grande inclusive com o uso de vinhetas.
êxito, um deslocamento da economia rumo ao eixo Mas o Comendador era um homem ousado:
da agropecuária. sabia que residia na Cidade um certo Mariano Teixei-
Joaquim Alves de Oliveira nasceu em 1770 no ra dos Santos, habilidoso sapateiro, homem letrado e
Arraial de Pilar de Goiás, outra Cidade de Goiás eri- sério. O fundador do jornal não teve dúvidas, man-
gida em função da mineração aurífera. Ficou órfão dou chamá-lo e disse-lhe, segundo Jarbas Jayme:
muito cedo e foi criado e educado por um padre. Em Mandei chamá-lo, Seu Mariano, porque necessito
1792 foi para o Rio de Janeiro para se ordenar como de sua pessoa. Comprei u’a máquina para fazer
sacerdote, mas lá foi despertado para as atividades aqui um jornal e lembrei-me que o senhor, habi-
comerciais, onde teve sucesso. Voltou para Goiás e lidoso como é, poderá encarregar-se desse serviço.
18

Paisagem da Fazenda Babilônia, antigo Engenho São Joaquim


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Altar da capela da Fazenda Babilônia


20

Sinos da Fazenda Babilônia


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Cozinha da Fazenda Babilônia


Sei que o senhor não entende da arte, mas os pa- com quartos e residência para hóspedes. Uma
dres Gonzaga e Manuel Amâncio têm instruções a terceira divisão é a morada dos escravos casados.
respeito e lhe darão as necessárias explicações. Dei- Os pátios, igualmente cercados de muro, servem
xa sua tenda e venha, que terá melhor resultado. para o gado. Existe ainda uma horta, onde há mar-
meleiros, um pequeno moinho e uma fiação de
Esse pedido do Comendador, homem pode- algodão. Todos esses edifícios são térreos e daí a
roso, não era para deixar de ser atendido e o pobre grande extensão do conjunto. As pedras da casa
sapateiro, mesmo em pânico, aceitou a incumbência. são unidas com barro. São dignas de louvor a or-
22 Os conhecimentos dos padres eram teóricos e dem e a decência que reinam nessa propriedade. O
vagos, mas assim mesmo conseguiram transmitir ao principal produto do estabelecimento, depois do
sapateiro alguma coisa além dos sapatos. açúcar, é o algodão, que o dono envia anualmente
De uma maneira ou de outra, em 5 de março ao Rio de Janeiro, no valor de 20.000 cruzados. As
de 1830, veio à luz o primeiro número do Jornal, a provisões para uso doméstico, milho, feijão, arroz
partir daí com duas edições semanais e, logo depois, etc., apesar de consideráveis em vista do número
de escravos e pela largueza com que são tratados,
três edições. O jornal era, na realidade, uma espé-
produzem-na os próprios negros Usam-se para o
cie de Diário Oficial, publicando coisas de interesse
serviço divino duas capelas com belos altares e
dos governos estaduais e municipais de Goiás e Mato bem providos de alfaias de prata.
Grosso, com raras notícias jornalísticas, como as co-
nhecemos hoje. Também o extraordinário naturalista francês
O jornal circulou até 1834. Após seu fecha- Auguste de Saint-Hilaire esteve em Meiaponte e no
mento as máquinas e o tipógrafo foram para a Cida- seu livro clássico Viajem à Província de Goiás, muito
de de Goiás para constituir o Diário Oficial. crítico às nossas coisas, não economizou elogios ao
O Engenho São Joaquim foi grande produtor Comendador.
de algodão para exportação. Açúcar, farinha de man- Em 1833 ocorreu uma tragédia em sua família
dioca, rapaduras, algodão, fumo e outros produtos - sua mulher foi assassinada. A verdadeira estória do
eram enviados ao Rio de Janeiro por uma tropa de fato está envolta por um manto de dúvidas, infor-
300 muares (levavam três meses em viagem). mações incorretas, interpretações oficiais contradi-
O brilhante naturalista austríaco Johann Em- tórias, lendas, etc. Daí para diante, os entusiasmos
manuel Pohl, que esteve viajando pelo Brasil entre do similar regional do Barão de Mauá perderam seus
1817 e 1821, esteve em Goiás e visitou o Engenho ímpetos. Em 1851, com 81 anos, morreu o Comen-
São Joaquim e em seu livro Viajem ao Interior do dador e seu corpo foi sepultado na Igreja Matriz da
Brasil, assim se refere a ele: Cidade. Com sua morte encerrou-se um ciclo eco-
...chegamos a um dos maiores engenhos de açú- nômico onde esse grande homem representou um
car do Brasil, o Engenho do Coronel Joaquim Al-
papel decisivo.
ves, ... Este engenho é magnificamente instalado e
cercado de muros. O edifício compreende muitas
Um clima de decadência apossou-se da Cida-
divisões, pátios etc. A residência do dono é ligada de após a morte do Comendador e o esfacelamento
com as habitações dos escravos solteiros. Uma di- do seu império econômico. Colaborou com isso a
visão única forma o engenho propriamente dito, nova Cidade surgida próxima a ela - Santana das An-
tas, mais tarde, Anápolis, que lhe sugou inúmeras popular, com uma visão particular do catolicismo,
atividades econômicas. muitas vezes em confronto com a ortodoxia da Igreja
Mas, posteriormente, com a construção de Católica.
Goiânia e, mais tarde, Brasília, houve um aumento Mas, antes de tudo, Lagolândia foi e é marcada
expressivo nas atividades econômicas de Pirenópolis pela presença da taumaturga conhecida como Santa
principalmente em função do turismo e da exporta- Dica. Embora falecida em 1970, sua projeção messiâ­
ção do quartzito – a conhecida pedra de Pirenópo- nica ainda se debruça sobre a Cidade e há, por parte
lis (excelente para revestimentos de piso) que ainda de sua população, o orgulho e respeito por ter sido o 23
hoje tem papel importante na sua economia. berço e a morada de Benedita Cipriano Gomes; San-
Em 1989 a Cidade foi lembrada, pelas auto- ta Dica dos Anjos, nascida em 1905. Desde a mais
ridades no assunto, como um dos mais expressivos tenra idade Benedita Cipriano acusou dotes excep-
exemplos da arquitetura e urbanismo do passa- cionais, no entendimento de sua família. Cresceu e
do colonial e foi parcialmente tombada pelo Iphan tornou-se uma moça frágil, mas ostentando uma be-
(Instituto do Patrimônio e Histórico Nacional) que leza incomum, algo surpreendente principalmente
cuida de sua preservação com bastante competência entre a gente sofrida e mal tratada de nossos sertões.
e, infelizmente, poucos recursos. Com isso as ativi- Desde mocinha a nossa Dica começou a praticar
dades turísticas tiveram um novo alento e a Cidade curas milagrosas com a simples imposição de mãos.
vivificou-se ainda mais. Entrava também em transe, permanecendo em sono
À volta de Pirenópolis situam-se vários povo- hipnótico, e afirmava que os anjos falavam com ela e
ados como, por exemplo, Praca, Caxambu, Lagolân- lhe davam orientações para seu procedimento.
dia e Capela. São de reduzida população, mas todos A notícia das curas milagrosas da já agora
têm sua história e principalmente suas festas anuais, apelidada Santa Dica espalhou-se pelas cercanias de
simultaneamente religiosas e profanas, que atraem Lagolândia e depois irradiou-se para regiões mais
centenas de “festeiros”. longínquas. Em torno de sua figura, começou a se
Desses, o principal deles é Lagolândia – pe- reunir um grupo de pessoas absolutamente conven-
quena Cidade que se situa a 34 quilômetros da sede cidas de seus dotes extra-sensoriais e que lhe tinham
do município. Sua fundação prende-se a exploração uma obediência e uma admiração sem restrições.
do ouro que se encontrava em aluviões nos cascalhos Lagolândia principiou a se tornar uma Meca para
dos ribeirões e rios da região, principalmente no Rio doentes e pessoas ávidas para penetrar no seu mun-
do Peixe que fazia jus ao seu nome em razão de sua do mágico. Não se pode ignorar que essas pessoas,
alta piscosidade. sertanejos na sua maior parte, tinham a tal receptivi-
Sobre esta Cidade paira uma sombra de misti- dade às pregações da messias sertaneja como aqueles
cismo que se traduz em uma série de festividades re- que se reuniram em torno do Antônio Conselheiro,
ligiosas: Festa de São Sebastião, Folia de Santos Reis, no interior da Bahia em passado não muito remo-
Folia e Festa de São João Batista, Festa do Divino Pai to e condições sociais parecidas. O pano de fundo
Eterno, Festa de São Benedito e Nossa Senhora do não era muito diferente: as terríveis dificuldades de
Rosário e Festa de Nossa Senhora da Conceição. Essa sobrevivência do sertanejo numa região onde a pos-
marca mística tem um forte componente religioso- se da terra era de poucos e onde faltava-lhes tudo,
principalmente educação, saúde e moradia. E, ainda, e humana do movimento de Lagolândia e somente
seu trabalho duro na terra, como empregado, meeiro viam a ameaça a seus poderes absolutos e ao pró-
ou arrendatário era pessimamente remunerado e au- prio sistema econômico vigente. Nessas tentativas de
sente de quaisquer direitos trabalhistas. Santa Dica exterminar a sedição aconteceram muitas mortes de
dava-lhes esperança e constituía uma liderança que gente absolutamente inocente, de ambos os lados.
talvez transformasse suas vidas miseráveis e, inclu- Mais tarde as coisas se acalmaram, o quadro político
sive, chegava a reclamar, num tom revolucionário e mudou, mas o prestígio da Santa Dica pouco se alte-
inquietante para a classe dominante, da falta de ter- rou, tomou novas formas.
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ras para seus apaniguados. Nessa época, o tom messiânico de Benedita
Examinando os acontecimentos de Lagolân- Cipriano foi temperado com uma dose de desejo de
dia, a primeira coisa a observar seria que Benedita mando político – parece que a mosca azul a mor-
Cipriano, embora analfabeta, tinha qualidades de li- deu. O prestígio dela foi utilizado eleitoralmente por
derança que se pode remeter a um enorme carisma. vários políticos, inclusive por Juscelino Kubistchek,
Suas arengas, como as do Conselheiro, eram ouvidas nas suas campanhas eleitorais.
com fervor e respondiam a anseios íntimos das almas No auge da sua fama milagreira, um jornal da
simples e sequiosas de justiça que a cercavam. Capital da República mandou um repórter cobrir
Sua fama ultrapassou as fronteiras do Estado, os acontecimentos. O jornalista Mario Mendes que
a imprensa do Rio de Janeiro, São Paulo e outros se ligou tanto à Santa Dica que acabou se casando,
grandes centros, começou a publicar notícias do mo- oportunisticamente, com ela, fez uma carreira políti-
vimento messiânico que medrava em Goiás. A figura ca, por intermédio da esposa, tendo sido, inclusive,
de Santa Dica ajudava a criar lendas em torno do prefeito da Cidade de Pirenópolis.
assunto – mulher frágil, analfabeta e de certa bele- Santa Dica casou-se duas vezes – a primeira
za - provocava um interesse quase sensacionalista, com Mario Mendes que certas pessoas afirmam ter
contrapondo-se à imagem de um messias feio, es- vendido sua esposa para um seu apaixonado, Fran-
quálido e repelente que era mais fácil de se admitir, cisco Teixeira, que viveu com ela até sua morte, em
particularmente em vista da figura muito divulgada Goiânia, em 1970. Mesmo depois de ter redimensio-
do Conselheiro. nado sua vida, abandonando a chefia de grupos de
O Governo do Estado começou a preocupar- seguidores, continuou sua missão de curar enfermos
se, e, por essa época, dominava o clã dos Caiados, e acolher desvalidos em sua casa, em Goiânia.
latifundiários e autoritários. Tentaram, a poder de ar- A trajetória de vida de Santa Dica já foi ob-
mas, desmanchar a multidão dos seguidores de San- jeto de inúmeros estudos acadêmicos, filmes e
ta Dica – transformaram-na, sem que ela pretendes- documentários.
se, numa guerrilheira. Com essas atitudes belicosas, Benedita Cipriano Gomes e seu marido Fran-
apoiadas pela Igreja oficial, o movimento messiânico cisco Teixeira estão sepultados na praça principal de
cresceu ainda mais e o discurso e a conduta da líder Lagolândia, praça, aliás, muito bem cuidada pelas
religiosa e/ou política se encaminharam para o terre- senhoras da Cidade.
no político. O túmulo de Santa Dica é bastante visitado e
Faltava aos dirigentes políticos e da Igreja da ainda hoje recebe pedidos dos que ainda crêem na
época um mínimo de compreensão antropológica sua santidade e poder de cura.
Na época do auge do poder messiânico de
Santa Dica o ilustre poeta católico Jorge de Lima,
nome destacado das letras nacionais, de caracterís-
ticas modernistas, lá do Rio de Janeiro, escreveu um
longo poema dedicado a ela e do qual reproduzimos
algumas estrofes:
Santa Dica
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Quando ela era pequena
Não sofreu bicho de pé...
Quando ela ficou moça,
A cama dela era estreitinha,
As mãos juntas para o céu,
Pernas juntas para o mundo. (...)
Quando ela ficou moça
Ficou santa,
Fez milagres,
Curou gente,
Curou moléstias-do-mundo,
Curou mais
Que Padre Cícero Romão (...)
O Rio do Peixe (...)
– Rio Jordão (...)
O rio santo do sertão (...)
Rio do Peixe de Santa Dica,
Rio do Peixe?
– não
Rio do Cão.
SantaDica do Rio do Peixe,
Santa Dica de Goiás,
Santa Dica do Sertão?
– não
Santa Dica do Rio de Janeiro,
Santa Dica de São Paulo,
Santa Dica do Brasil!
Santa Dica, ora por mim!
2
Espaço
geográfico
O Cerrado Mais Uma Vez Visualmente o Cerrado se caracteriza por uma
Cai o risco no chão vegetação de arbustos, geralmente retorcidos, folhas
e certa flora, coriáceas, cascas rugosas e raízes muito profundas
desenhada por um gnomo, (alguém já afirmou, com muita propriedade, que 27
louco,
o cerrado é uma floresta às avessas). O chão é re-
expele a última experiência,
descontrolada, vestido de uma vegetação típica de capins e plan-
com a geometria dos fractais. tas rasteiras de variadas formas. O cerrado, com seu
Florescem os campos gerais. aspecto característico, é, às vezes, interrompido por
Na trégua entre iguais e desiguais. matas ciliares, ou mesmo matas ralas. Árvores maio-
Vives como eu. E torto res comparecem nessas matas e representam um lo-
e arqueado, com o velho esforço cal de repouso para os viajantes, homens ou animais.
de sobreviver do árido no cerrado. Nos meses de julho e agosto, período da es-
(Paulo Bertran – Sertão do Campo Aberto) tação das secas, o cerrado assume cor monótona,
pardo-acinzentado, e apenas se orna de poucas flores
A Cidade de Pirenópolis tem a mesma estrutura e raros frutos. Nesse momento acontecem as queima-
e fisionomia geográfica que tem a Cidade de Goiás. das, prática idiota e criminosa que, sob o pretexto de
Elas, as duas Cidades, se parecem em muita coisa, limpeza e renovação, mata espécies botânicas e ani-
inclusive nisso – ambas foram aninhadas ao sopé de mais, além de perturbar a atmosfera com emissão de
uma serra de características geológicas e botânicas monóxido de carbono, nosso grande inimigo. Feliz-
muito similares – a Serra Dourada em Vila Boa e a mente, mas não justificando essa prática indecente, o
Serra dos Pireneus em Meia Ponte. cerrado tem certa capacidade de recuperação – aque-
A topografia tumultuada do sítio da Cidade les campos pretos, aparentemente mortos, logo de-
possibilitou, inclusive, a ocorrência de inúmeras ca- pois das primeiras chuvas, renascem e se vê ressurgir
choeiras que constituem um dos atrativos da Cidade. a vida e acontecem os campos floridos e verdejantes.
A nossa Cidade localiza-se no centro do Brasil, Quem tem uma capacidade de observação
distante 150 quilômetros de Brasília, 120 de Goiânia mais acurada pode divisar no cerrado uma varieda-
e 1300 do litoral. Está em plena região dos Cerra- de de formas, desenho e cores, através de suas fo-
dos que ocupa, ou melhor, ocupava, antes de sua lhas, sementes, frutos, texturas de troncos, inflexão
exploração descontrolada pela agricultura e pecuá- de galhos, etc. Tudo isso se apresentando com uma
ria, cerca de 30% do território nacional. Em termos variedade formal surpreendente. Ao lado desse visu-
de regiões brasileiras está, a antiga Meia Ponte, no al contrapõem-se os sons emitidos pelos seus habi-
chamado Centro-Oeste, especificamente Planalto tantes, centenas de insetos e pássaros enchem o ar
Central do Brasil. com sua música que vão do grave ao agudo metálico.
Quem, repito, tem olhos para ver, ouvidos para ou- Em elogio ao buriti lembremos um trecho do
vir, nariz para cheirar, enfim, uma alma um pouco escritor regionalista mineiro Afonso Arinos de Melo
poética, tem no cerrado um repertório prazeroso e Franco:
encantador e, seguramente, se apaixonará por ele. No meio da campina verde, de um verde esma-
O historiador e poeta Paulo Bertran e outros ecido e merencório, onde tremeluzem, às vezes,
atribuíram tanta importância a esse ecossistema que as florinhas douradas do alecrim do campo, tu te
enfatizaram a expressão Homo cerratensis para nós ergues altaneira, levantando ao céu as palmas tesas
– velho guerreiro petrificado no meio da peleja!
daqui destas bandas, projetando-nos no passado
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ancestral, com psiquismo e cultura particulares que Mas o cerrado não é só botânica: o que dizer
ele, o cerrado, imprimiu na alma de seus habitantes, de seus habitantes, inclusive os alados? Quem co-
antes mesmo dos europeus chegarem. munga com as belezas do cerrado não se esquece dos
Os frutos do cerrado formam um capítulo a contrapontos sonoros dos inumeráveis pássaros que
parte – nos oferece a pitanga, o abiu, o araçá, o barú, revoluteiam por galhos e planam nos céus, a rolinha
a guapeva, o ingá, o jaracatiá, a mangaba, os cajus fogo-pagou, com seu vôo musical, o João-de-barro,
(do arbusto ao rasteiro), a curriola, o araticum, o esse nosso construtor, sempre atarefado e de canto
murici, a marmelada de cachorro, a cagaita, o velu- escandaloso, a seriema com sua estranha risada, o
do, a mama-cadela, a gabiroba, os coquinhos varia- quero-quero agressivo, os periquitos que cantam de
dos (macaúba, catarro, e outros mais). Isso só para pura alegria de viver o dia todo, os povís delicadís-
falar em alguns comestíveis para nós, pois existem simos, a juriti nos assustando pelo vôo repentino,
outros que só os animais apreciam. Reinando abso- os passos-pretos executando seus dobrados, e, à
luto nesse mar de arbustos, sub-arbustos e plantas tardinha, a saracura cantando três potes, além das
rasteiras, alteia-se o pequizeiro que pela sua majesta- jaós melancólicas cantando as dores de suas penas.
de merece ser citado aqui pelo expressivo nome téc- Isso para não encompridar o assunto. Quanto aos
nico – Caryocar brasiliense. Trata-se de uma espécie animais de pelos, hoje raridades, tem-se, ou melhor,
extraordinária quando bem adulto, de belo porte e tinha-se, o veado-campeiro, a suçuarana, o lobo-
sombra amiga na soalheira do sertão. E, para nosso guará, o tatu, a raposa arisca, o tamanduá, o guariba
gáudio, ostenta uma flor belíssima, antecedendo o cujo urro assusta os medrosos, e na outra extremida-
fruto que é a paixão culinária do goiano. de, de diminuto tamanho, os macaquinhos sonhins
Contrapondo-se à secura do cerrado, o oá- alegres e buliçosos.
sis acontece vez por outra, um resfriado, um brejo Seria uma injustiça esquecer-se de citar ou-
(onde se pode beber água de cacimba, cavada por tros entes que habitam estas plagas, principalmente
algum viajor) e que, quase sempre ostenta a elegân- o curupira, proto-ambientalista, que, coitado, está
cia do buriti, com seu fuste de coluna arquitetôni- sendo derrotado na sua missão histórica de prote-
ca, apresentando na copa um conjunto de folhas em ger as árvores e os bichos. Se as coisas continuarem
leques, contidas numa forma esférica, verde-escuro. como estão indo terá que requerer aposentadoria e
No buriti a geometria se regozija: tronco, folhas, fru- na condição de aleijado, pois tem os pés para trás,
tos obedecendo a um rigor de geometria euclideana, como todos os geralistas sabem.
antítese da liberdade caótica da vegetação adusta que Mas voltando a outros habitantes de nos-
envolve seu habitat – geometria fractica do cerrado. so cerrado: os insetos, grilos, cigarras, zumbis etc.
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fornecendo os sons agudos necessários à polifonia antes de ser um acidente geográfico, é um acidente
agreste. Mas, por falar em insetos não nos esqueça- histórico e também sentimental para o meiaponten-
mos das borboletas, essas flores aladas: se/pirenopolino. Nasce no município de Pirenóplo-
Porque nos Gerais, a mesma raça de borboletas, lis, especificamente no Parque Estadual da Serra dos
que em outras partes é trivial regular – cá cresce, Pireneus.
muito maior; e com mais brilho, se sabe; acho que Qual a razão desse nome, um pouco estranho?
é do seco do ar, do limpo, desta luz enorme. O historiador Jarbas Jaime assim o justifica: Cheio de
(Guimarães Rosa - Grande Sertão, Veredas)
34 fé em sua estrela e de esperança no futuro, prometera
E, finalmente, para não dizer que não se falou Tomar (descobridor do ouro na região da, hoje, Pi-
de flores, avultando na policromia do cerrado lem- renópolis) que, das primeiras bateadas, o respectivo
bremos a caraíba (um tipo de ipê) que uma vez por produto destinaria ao pagamento de missas, em su-
ano se engalana com suas flores amarelas, mas tão frágio das almas do purgatório... Esse gesto era um
amarelas que fariam os girassóis de Van Gogh morre- pedido prévio de perdão por tudo aquilo que repre-
rem de inveja. Mesmo durante o resto do ano o cer- senta o garimpo – ambição desenfreada, cruel traba-
rado se paramenta de dezenas de florzinhas anôni- lho escravo, violência e sofrimento.
mas azuis, roxas, amarelas, vermelhas, brancas, para O arraial de Meia-ponte originou-se, então,
satisfação dos beija-flores e abelhas que fazem com do garimpo do Rio das Almas, como a Vila Boa nas-
denodo seu trabalho de amorosa fertilização. ceu do ouro do Rio Vermelho. Centenas de escravos
Embora Pirenópolis situe-se na região chama- mourejavam sobre suas grupiaras, bateando dentro
da de Planalto Central do Brasil, de dominância vi- d’água, curvados e com sol inclemente castigando
sual horizontal, bem característica, em vista de pre- suas costas, seu suor, suas lágrimas e seu sangue mis-
téritos acidentes geológicos, a Cidade encravou-se turaram-se com suas águas barrentas. Esses pobres
numa micro-região de topografia bastante tumultu- homens eram dirigidos e orientados pelos chicotes
ada. Está como que envolvida e abraçada pela serra dos feitores que, inclementes, não permitiam uma
dos Pireneus. Esta serra tem uma paisagem digna de parada para descanso. Grande parte deles, exaustos,
ser desfrutada, como se fora ruínas de uma Cidade judiados e mal alimentados, entregavam suas almas
de ignota civilização, além de sua botânica, às vezes ali mesmo no Rio – nome apropriado, por esse viés!
extravagante. Aliás, a serra é um ambiente cheio de O ouro em pó ou pepitas acumulava-se nos
surpresas, tanto na sua formação rochosa quanto na fundos dos vértices das bateias, sob a feroz vigilância
vegetação ali existente. Existe por lá um ecossistema do representante de sua graciosa majestade que, em
particular, com formas novas e insuspeitas. Ainda Lisboa, aguardava o quinto do ouro ali sofridamente
está pedindo estudos mais completos. extraído, para alimentar a nobreza ociosa, para pagar
Digno de comentários é a hidrografia da re- suas dívidas com a sugadora Inglaterra e reconstruir
gião – tanto o Rio das Almas quantos outros nos Lisboa.
oferecem recantos de extrema beleza, principalmen- Mas, justiça seja feita, o rio não entregou só o
te pelas suas cachoeiras apropriadas a um bom ba- precioso e vil metal, dava também de beber aos ho-
nho lúdico. Com referência ao Rio das Almas, seria mens e animais, o sustento das lavadeiras, e era, ain-
conveniente alongar mais o assunto, afinal, este rio, da, o local dos banhos lúdicos (os homens pelados
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Lavadeira no
Rio das Almas
em certos “poços” e as mulheres vestidas de camiso- (...)
la em outros ), costume herdado dos índios, já que Outros, sapos-pipas,
os reinois não eram muito chegados a essa prática, (Um mal em si cabe)
exceto em certas ocasiões da vida – casamento ou Falam pelas tripas:
Sei! – Não sabe! – Sabe!
funeral, por exemplo.
Nós, principalmente brasileiros do interior, Recorramos também ao poeta Fernando Pes-
herdamos esse hábito de banhos diários dos indíge- soa, por analogia poética:
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nas que adoram os banhos de rio e os transformam O Tejo é o mais belo rio que corre pela minha
em cotidiana atividade lúdica. Saint-Hilaire quando aldeia,
cá esteve viu no rio bons predicados: Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela
Como disse o clima de Meiaponte parece bastante minha aldeia
sadio. Na época de grande calor, todos os habi- Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha
tantes, de ambos os sexos, se banham no Rio das aldeia.
Almas, o que contribui a mantê-los em bom estado
de saúde. Com o tempo e a incúria as margens e as águas
do rio encontram-se degradadas, mas felizmente,
Não se sabe se essa prática também seduziu o um projeto em andamento recuperará a natureza e
francês que, a fiar no que se conhece também não se definirá suas margens como o grande local de recreio
trata de um povo muito chegado a esse costume... da Cidade, atendendo sua vocação secular e restabe-
Mas também esse rio é um rio da vida, pois, lecendo a dignidade do rio da alma do pirenopolino.
como já dissemos, saciou a sede de homens e ani-
mais, foi meio de vida para pessoas humildes (os Parque Estadual da Serra dos Pireneus
aguadeiros). Era e é o local de recreio dos pireno- Este Parque merece uma referência especial.
polinos com seus poços de banho como a Rama- Está localizado entre os municípios de Pirenópolis,
lhuda que comparece em todas as suas recordações Cocalzinho de Goiás e Corumbá de Goiás. Situa-se
saudosas. acima de 1.200 metros de altitude.
Em certa época do ano, abriga a maravilho- O Parque foi criado em 1987 para resguardar
sa orquestra de batráquios cujos cantos à noite eco- um recanto geográfico-paisagístico do mais alto sig-
am pelas ruas e esquinas da Cidade num concerto nificado. Lá se encontra uma natureza bem preser-
magnífico, não muito diferentes dos sapos de Recife, vada. Por sorte, a má qualidade para agricultura e
lembrados pelo poeta Manuel Bandeira: pecuária de suas terras possibilitou isso. Ele é admi-
Enfunando os papos, nistrado (mal administrado, diga-se, de passagem)
Saem da penumbra, pelo Estado de Goiás e nem sequer conta com uma
Aos pulos, os sapos. fiscalização, e muito menos com um centro de estu-
A luz os deslumbra.
dos, como seria de desejar.
Em ronco que aterra, Paisagiticamente a natureza ali se engalanou
Berra o sapo-boi: de formações rochosas de formas surpreendentes,
Meu pai foi à guerra! devidamente revestidas de liquens onde predomi-
Não foi! – Foi! – Não foi! nam as cores verde, laranja e amarelo. Não se sabe,
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mas talvez algum duende tenha feito ali suas pin- E, sobretudo, não nos esqueçamos: a paisa-
turas em seus momentos de inspiração – seriam do gem pertence a quem sabe a olhar.
Curupira, protetor de nossas campos, cerrados, ma-
tas e dos animais, seus habitantes? Espaço urbano
Encontramos nesse local todas as belezas das Ao primeiro contacto com a disposição ur-
formas, desenhos e cores que o cerrado assume. Nes- bana do centro histórico de Pirenópolis, como da
se sentido ele é uma amostra do que é esse ecos- Cidade de Goiás ou de outra qualquer Cidade do
42 sistema. Inclusive, com suas águas – lindos regatos período colonial, percebemos certa desordem que
gorgulejantes fornecendo água cujo paladar é ines- afasta a idéia de um desenho prévio, de uma diretriz
quecível. Justifica-se aqui o título do cerrado – “mãe no seu traçado: um traçado em xadrez, por exemplo,
das águas”. Nos desvãos dessas rochas e nas margens tão comum nas Cidades de hoje, grandes ou peque-
desses regatos desenvolve-se uma flora que qualquer nas. As ruas da Cidade não são retas, mesmo a cha-
jardim zen japonês se curva e pede passagem. A har- mada, antigamente, de Rua Direita (na realidade, o
monia formal dos conjuntos vegetais é algo que exi- nome significava rua principal) é ligeiramente torta.
ge uma contemplação serena e um reconhecimento Os ângulos de encontro de duas ruas nem sempre
evidente que andou por ali o dedo de Deus. Essa são retos e as praças, ou Largos, como se dizia an-
vegetação típica do cerrado de altitude se orna de tigamente, nem sempre são retangulares. Tudo isso
flores de desenhos e cores inéditos para os olhos do resulta, no que se costuma chamar, em urbanismo,
espectador, e que se revezam, durante o ano, como de desenho orgânico, ao invés do geométrico.
moça vaidosa que se enfeita a toda hora do dia. Além Com certa contradição, nas Cidades da Amé-
dessa escala de jardim japonês, podemos enxergar rica Espanhola, a Coroa de Castela adotou um sis-
morros que se alteiam como o Morro Cabeludo, com tema de rigorosas e minuciosas normas que resul-
seus paredões de rochas de formas talvez vulcânicas, taram em abstratas concepções geométricas, através
mas suavizadas pelo trabalho dos ventos seculares das instruções contidas nas chamadas Leis das Ín-
que arredondaram suas arestas. dias. Essa legislação regia, com detalhes, o desenho
Neste Parque, acontece um franco diálogo en- urbano, atendendo, inclusive, a questões referentes
tre o micro e o macro paisagismo. a clima, ventilação, insolação etc. Aqui no Brasil as
Sugerimos a todos, devidamente acompanha- únicas exceções ao aparente desmazelo português da
dos por um guia credenciado, a passar uma manhã era colonial foram as Cidades da região missioneira
nesse Jardim do Éden. Se isso ocorrer numa manhã no Rio Grande do Sul, onde os padres jesuítas, no
do mês de abril, essa experiência, garantimos, será afã de montar uma utopia cristã, elaboraram dese-
inesquecível. nhos urbanos rigorosos para as reduções indígenas,
Ao lado do visual temos como complemento em que predominavam certas normas, inclusive re-
o auditivo – a orquestra dos pássaros e insetos que petidas em todas as Cidades que eles, os padres e os
por ali fizeram seu palco iluminado. Isto e mais: em índios, fundaram. Essas Cidades eram previamente
contraponto com as cores, formas e sons têm-se os projetadas, ao contrário das urbes coloniais, que iam
perfumes silvestres – e assim temos envolvimento acontecendo um pouco de maneira um tanto desor-
completo dos sentidos. denada, ao longo dos tempos.
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Assim, ao contrário de qualquer intento orde- A cidade que os portugueses construíram na Amé-
nador do tipo plano diretor, as definições do dese- rica não é produto mental, não chega a contradizer
nho dos aglomerados urbanos brasileiros foram se o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na
desenvolvendo se não totalmente a la diable, como linha da paisagem.
Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previ-
poderia parecer inicialmente, mas submisso a impul-
dência, sempre esse significativo abandono que ex-
sos de natureza subjetiva, como rebatimento físico
prime a palavra “desleixo” – palavra que o escritor
de um modo ou sistema de vida social e política que Aubrey Bell considerou tão tipicamente portugue-
imperava na época; o planejamento da Cidade foi, sa como “saudade” e que, no seu entender, implica
assim, resultado de uma participação coletiva, às ve- menos falta de energia do que uma íntima convic-
zes inconsciente, e não brotou de uma prancheta de ção de que “não vale a pena”. Pode-se acrescentar
desenho de autor. que tal convicção, longe de constituir desapego
Mas esse fato fez com que Paulo Santos, o ou desprezo por esta vida, se prende antes a um
grande estudioso da nossa arquitetura colonial, afir- realismo fundamental, que renuncia a transfigurar
masse que nessas Cidades existem uma coerência a realidade por meio de imaginação delirante ou
orgânica, uma correlação formal e uma unidade de código de postura e regras formais (salvo nos casos
onde estas regras já se tinham estereotipadas e dis-
espírito que lhe dão genuidade. O resultado da in-
pensem, assim, qualquer esforço ou artifício). Que
formalidade da traça, como se dizia antigamente, aceita a vida, em suma, como a vida é, sem cerimô-
dessas urbes, é de uma riqueza estética que atrai e nias, sem ilusões, sem importâncias, sem malícia e
emociona, observada através de seus ângulos visuais muitas vezes, sem alegria.
insuspeitos e surpresas de perspectiva que tornam
o palmilhar de suas ruas uma aventura comovente. A antiga Meia Ponte é, antes de tudo, uma
À propósito, lembremos que Cidades como Cidade portuguesa plantada nos trópicos e, mais
Ouro Preto, Diamantina, Cidade de Goiás, Tiraden- ainda, com certo sotaque mulçumano. Esse ar mul-
tes e outras, foram organizadas para caminhar a pé, çumano nos veio, incidentalmente, por intermédio
condição, aliás, necessária para apreciação de seu en- da influência moura em Portugal, através de séculos
canto e de um desfrute estético. de dominação, e que, assim, chegou aqui por vias
As primeiras observações que o visitante des- indiretas; essa contribuição não se limita ao traçado
sas Cidades faz é no sentido de que o espaço urba- da Cidade ou projetos de suas casas, mas transpare-
no é fechado, cerrado, em contraste, por exemplo, ce também em alguns hábitos e costumes, principal-
com os espaços abertos de Goiânia ou de qualquer mente nas classes rurais, hospitalidade e tratamento
outra Cidade moderna. O fato é que o espaço fecha- recôndito dado às mulheres da casa, etc.
do fornece uma sensação de proteção e aconchego Na arquitetura residencial percebe-se essa
e, no caso de Pirenópolis ou Cidade de Goiás, mais influência na presença das alcovas (quartos sem
acentuada pelas elevações que as circundam. abertura para o exterior) e janelas de rótulas, gelo-
É realmente curioso que os bons resultados visuais sias e venezianas móveis que permitem ver a rua,
dos traçados dessas Cidades citadas não derivam de sem que se possa ver quem está no interior. Hoje,
atitudes conscientes e racionais, pois como observou nem tanto – pode-se janelar à vontade – os tempos
o historiador Sergio Buarque de Holanda, no seu ex- mudaram! Outro indício da influência árabe/moura
celente Raízes do Brasil: são os beirais acachorrados, isto é, peças de madeira
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salientes e com perfil recortado, sob as telhas dos ás, contrariava aquilo que o império lusitano insistia:
beirais. Infelizmente, em varias edificações da Ci- uma colonização litorânea, cujos resquícios ideoló-
dade vamos encontrar os beirais substituídos pelas gicos ainda persistem em dias de hoje, haja vista a
platibandas, numa lamentável intenção de “moder- indisfarçada resistência a Brasília.
nizar” a arquitetura. As cidades são o produto do tempo.São os mol-
Com referência ao espaço urbano, a mútua e des dentro dos quais a existência dos homens se
coincidente influência medieval e mulçumana, fez resfria e condensa, dando forma duradoura, por
com que se criasse, nas nossas Cidades coloniais, via da arte, a momentos que, de outra forma, fin-
50 dariam com os vivos e não deixariam atrás de si
uma informalidade de caráter orgânico com sabor
meios de renovação e de participação mais ampla.
de casbá e medieval, e um agradável equilíbrio en-
Na cidade, o tempo torna-se visível: os edifícios,
tre espaços livres e construídos que supera, estetica-
os monumentos, as vias públicas, mais claramen-
mente falando, certo tratamento moderno, em que te que o testemunho escrito, mais sujeito ao olhar
geralmente predominam mais os interesses da espe- de muitos homens do que os artefatos dispersos
culação imobiliária do que as boas funções urbanas. do campo, deixam uma impressão nas mentes até
O mercantilismo dos tempos modernos tirou dessas mesmo dos ignorantes ou dos indiferentes.
Cidades o encanto de uma morada em escala hu- (Lewis Munford – A Cultura das Cidades)
mana e substituiu-o por um conceito de aglomerado
sem caráter e sem dimensões, a Cidade tornou-se A organização do desenho urbano da Cidade
uma mercadoria. de Pirenópolis não a diferencia, em linhas gerais, das
Ressaltemos que a construção de Brasília foi demais Cidades coloniais, particularmente daquelas
a grande contribuição para a recuperação da ciência do ciclo do ouro. Nelas não se sente a disciplina, ge-
e arte urbana. Pena é que a lição não foi aprendida, ralmente cartesiana, dos traçados urbanos elabora-
conforme se esperava. dos na prancheta, por pessoas preparadas para esse
Nesse sentido, Cidades como Vila Boa (Cida- ofício. Os traçados atuais obedecem ao modismo, às
de de Goiás), Meia Ponte (Pirenópolis), Ouro Preto, teorias, aos princípios predominantes na nossa épo-
Tiradentes, Olinda, Diamantina e outras são labora- ca e consagrados pelas instituições acadêmicas.
tórios vivos de pesquisas quanto ao bom desenho Não se quer dizer com isso que Cidades
urbano e cujos valores transcendem épocas: como Ouro Preto, Diamantina, Tiradentes, Cidade
Se aquelas cidades agradam tanto é porque nos- de Goiás, caminharam alopradamente, fazendo-se
so instinto e o nosso bom senso, mais que nossos tabula rasa de qualquer princípio de ordenamento.
conhecimentos acadêmicos, nos dizem que as so- Comandou-se o desenho dessas Cidades sob certas
luções delas são boas. E teremos muito a aprender determinantes, os caminhos criados no tempo, in-
estudando-as – não para copiá-las, é claro – mas clusive os caminhos dos burros, segundo o arqui-
para corrigir distorções que o exagerado tecnicis- teto e urbanista francês Le Corbusier, os acidentes
mo da Idade Industrial tem gerado em nós.
naturais, isto é, a topografia, os ditames econômicos
(Paulo Santos – Formação das Cidades no Brasil
Colonial) ou geológicos, a natureza do solo onde se pretende
construir e outros acontecimentos fortuitos ou não.
No plano político e econômico a localização Ao lado disso tudo, geralmente, comparecia a von-
das Cidades do ciclo do ouro do atual Estado de Goi- tade política reguladora da administração, seguida
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em parte e pretendendo criar, em muitos casos, uma sua ocupação foi profundamente marcada pela pre-
estética urbana, segundo critérios deles, políticos/ sença portuguesa que aqui esteve desde os primeiros
administradores, imbuídos, às vezes, de teorias aca- momentos, como exploradores, e, posteriormente,
dêmicas européias. Mas, o relaxo luso... nas figuras dos comerciantes, funcionários e mili-
Na América espanhola, como já se disse, o tares.
governo imperial foi rigoroso e minucioso nas suas A psicologia desses homens era no sentido da
determinações: através das chamadas Leis das Índias ousadia, da coragem e do espírito de aventura. Não
54 que impunham normas de desenho, zoneamen- eram homens afeitos ao trabalho rotineiro, lento e
to, traçado de vias, praças e largos, orientação em paciente de um colono. Só o tempo, a exaustão das
relação à rosa dos ventos, etc. Disso tudo resultou minas e conseqüente pobreza conseguiram mudar
em concepções de desenho de caráter abstrato, tipo
esse quadro, surgindo assim o autêntico cidadão pi-
“tabuleiro de xadrez” onde não se evita certo sabor
renopolino. Esse homem foi obrigado, em parte, a
monótono e artificial.
ganhar a vida com o suor de seu rosto e não unica-
Em Pirenópolis não se percebe com tanta cla-
mente com o suor e sangue do escravo negro.
reza, como na Cidade de Goiás, em virtude da ex-
Esse comportamento nos diferencia bastante
tensão menor da malha urbana, essa característica de
dos colonos ingleses nos Estados Unidos da América,
traçado orgânico em oposição ao geométrico.
pois eles para ali foram para fundar um novo país,
A associação da política de valorizar o litoral
com novos conceitos de prosperidade e liberdade,
e dar-lhe características de centro de decisões da ad-
cívica e religiosa. Foram para ficar, e, em função dis-
ministração colonial obrigou Cidades como Vila Boa
e Meia Ponte a andar com suas próprias pernas e so, levaram a capacidade de trabalho, a perícia e os
isso, em parte, foi bom, pois criamos aqui uma cul- instrumentos para exercitar e executar suas tarefas e,
tura própria que ainda se reflete nos dias de hoje. sobretudo, queriam construir uma nação, metafori-
No caso das Cidades do ciclo do ouro, vemos camente queimaram os navios que os conduziram à
que a política lusa para a edificação e consolidação nova pátria. Isso acrescido de que o desenvolvimen-
da Cidade, embora transcorressem mais de duzen- to tecnológico da Inglaterra era imensamente supe-
tos anos após a “descoberta” do Brasil, permaneceu rior aos dos portugueses, os seus trabalhadores eram
a mesma do início da colonização. Nada mudara competentes em seus ofícios e não desprezavam o
quanto ao comportamento dos portugueses ou seus trabalho manual, como ocorria na cultura portugue-
descendentes diretos em relação ao novo território, a sa. E mais: os novos colonos americanos avançaram
terra dos goiases. Reeditou-se tão somente a postura para o interior do país com afoiteza e determinação,
daqueles que se estabeleceram no litoral no primeiro nem sempre em busca do ouro, mas do cultivo da
século do domínio lusitano. terra e, tristemente, também exterminaram os povos
Para aqui não vieram trabalhadores no sentido indígenas, com um ímpeto sanguinolento. Primeiro
comum da palavra, mas aventureiros que aportaram foi de verdade, depois, de mentira, com os filmes de
nessas bandas com a finalidade de enriquecer rapi- faroeste, a tentativa de justificar o genocídio!
damente e depois regressar à “santa terrinha”. Segun- Os portugueses, de uma forma ou de outra,
do Gustavo Neiva Coelho, foram corajosos e intimoratos no seu afã de descor-
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tinar o mundo. O poeta maior de nossa língua, Fer- sensação íntima que pode se chamar de sensação es-
nando Pessoa, nos falou: tética e que se manifesta calma e discretamente.
Mar Português Um dos componentes desse fenômeno da es-
Ó mar salgado, quanto do teu sal tética dos espaços urbanos se traduz pela limitação
São lágrimas de Portugal! de perspectiva. Nela os nossos olhos não desvendam
Por te cruzarmos, quantas mães choraram, uma paisagem em sua inteireza – há um obstáculo
Quantos filhos em vão rezaram! visual à frente que conduz a uma surpresa. O cami-
58 Quantas noivas ficaram por casar nhar (não se esquecendo, insistamos, que as nossas
Para que fosses nosso, ó mar! Cidades coloniais são para ser percorridas a pé ) tor-
na-se uma sucessão de novas situações visuais e esse
Valeu a pena? Tudo vale a pena
caminhar assume um comportamento dinâmico, ao
Se a alma não é pequena.
contrário de um divisar completo e inteiro que é es-
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
tático, como, por exemplo, quando vemos uma rua
Deus ao mar o perigo e o abismo deu, larga e reta, sem fim definido e que não apela à nossa
Mas nele é que espelhou o céu. sensibilidade . Várias sensações podem nos acome-
ter com relação aos espaços físicos, inclusive claus-
De qualquer maneira, um irreverente diria trofobia ou agorafobia. Em qualquer paisagem urba-
que o romantismo português foi mais divertido que na em que nos situemos podemos nos envolver em
a sisudez e chatura britânicas! E isso, talvez, tenha sutis impressões de acolhida ou expulsão. Podemos
moldado o temperamento brasileiro, digamos, mais ser tentados a fugir ou permanecer.
folgazão! Embora a Cidade seja um fenômeno geográ-
Detenhamo-nos um pouco mais no aconteci- fico total, do ponto de vista ótico ela se subdivide
mento da estética urbana. Uma Cidade não é, pura e em uma cadeia de acontecimentos fortuitos que a
simplesmente, constituída de espaços livres, praças, fragmentam. Em Cidades como Pirenópolis, em
ruas e edifícios dispostos aleatoriamente, ou mesmo qualquer ponto que estejamos não há sentimento de
obedecendo a meros relacionamentos funcionais. rejeição, porque ela foi edificada na nossa escala, na
Não é simplesmente um todo formado de espaços li- escala humana. As ruas, principalmente, são cami-
vres ou construído, o todo urbano tem que ser maior nhos, eixos de comunicação e não ameaçadoras vias
que a soma das partes! de transporte motorizado. As praças foram organi-
Ficando apenas nos aspectos visuais, na cha- zadas para deambulação vagabunda ou local para se
mada estética urbana, o chão deve estar casado com reunir e não para estacionamento de carros.
os espaços construídos e é necessário que se estabe- Até agora elogiamos e comentamos a Cidade
leçam relações de harmonia entre um e outro. Isso em preto-e-branco. E com relação a cores, como ela
ocorre em Cidades como Brasília, Florença, Ouro se comporta?
Preto, Vila Boa ou Pirenópolis, não importando seus Uma atmosfera tranqüila dentro e fora de casa era
tamanhos, significados ou importâncias. Quando se dominante dessa arquitetura, feita de silêncios, a
caminha pelas ruas e praças de nossas Cidades bar- que a coloração das janelas e portas (verde, azul,
rocas ocorre um aventura emotiva e sentimos uma ocre e vinho) destacada contra o fundo branco da
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parede caiada, pelo contraste, discreta vibração
que não chegava a perturbar aquela atmosfera...
(Paulo Santos – Quatro Séculos de Arquitetura).

A Cidade está imiscuída num festival de ver-


des: verdes das matas ciliares que acompanham
o Rio das Almas, verdes das árvores frutíferas que
compõem os quintais, verdes das árvores que som-
breiam as ruas, inclusive a copas das palmeiras que 63
se erguem para o céu sempre azul, azul cerúleo. Di-
ria Clarice Lispector: Verde e verde, e depois o mesmo
verde, que, de repente, por vibração de verde, se torna
verde.
Além dessas cores, os passarinhos que se abri-
gam nas árvores, fornecem diariamente um fundo
sonoro – pontificando o sabiá, secundado pelo pas-
so-preto e pela algazarra dos periquitos na sua ale-
gria permanente. Mas também a rolinha fogo-pagou,
à tarde, nos coloca na alma uma saudadezinha do
não-sei-o-quê. E por falar em verde, Pirenópolis é,
talvez, a única Cidade do período colonial que tem
ruas com tratamento paisagístico em que se utilizou
arvores e plantas ornamentais – Rua Aurora e Rua do
Bonfim, ambas bastante bonitas.
3
Arquitetura
Inicialmente as construções que serviam aos no Oriente, e de origem árabe. No nosso caso o mé-
primeiros povoadores do novo local de mineração, todo é singelo e lógico:
às margens do Rio das Almas, eram mais próximas 1 – Edifica-se uma estrutura de madeira (re-
do rancho precário e transitório do que a uma ha- tiradas em boa lua) com baldrames, esteios, vergas 65
bitação digna de quem veio para ficar. Os que arri- etc., aparelhadas a enxó sobre alicerces de pedras
baram aqui primeiro, portugueses, paulistas ou mi- (aqui, com as lajes locais);
neiros, não enfrentavam as agruras de uma estafante 2 – Cobre-se esse conjunto com telhado com-
e perigosa viajem em busca de uma nova morada, posto de madeira, em parte com paus roliços, e te-
um novo lar, nova vida e, portanto, movidos por lhas cerâmicas “coloniais”;
sentimentos de pioneiro, à maneira de ingleses na 3 – As vedações externas ou internas são exe-
América do Norte. O que os movia era a embriaguez cutadas em três variações que podem conviver entre
do ouro ou diamantes, a sedução do enriquecimento si: pau-a-pique, adobes (tijolos feitos com barro crú)
rápido, da elevação no plano social pela bateia bam- ou taipa de pilão (barro socado entre formas de ma-
boleada por escravos e do bamburrio, comemorado deira, constituindo paredes monolíticas e utilizado
com orgias extravagantes. geralmente para grandes obras, de paredes espessas).
Assim, as primeiras edificações eram pouco Essa técnica construtiva ecológica, singela e
mais que ranchos em que se empregavam o sapé, lógica, é de extraordinária duração, pois a maioria
a folha de buriti, o pau roliço e a taquara. As pa- das construções dos centros históricos de Pirenó-
redes, exigindo mais conforto e segurança, eram de polis e outras Cidades do período colonial, estão
pau-a-pique: estrutura de madeira não aparelhada, em bom estado, suportam reparos e algumas delas
armação de taquaras amarradas com embira ou tiras têm mais de duzentos anos de idade. Isto contrasta
de couro cru e, por fim, o barro, às vezes misturados bastante com a arquitetura de hoje que lida com o
com bosta de vaca, jogado nesse entramado, técnica obsoletismo.
construtiva, aliás, que se mostrou eficiente e durável. Por outro lado essa padronização construti-
Provada sua eficiência, esta técnica foi eleita como va colaborou para certa uniformidade das fachadas,
método construtivo adequado a edificações definiti- dando à Cidade uma agradável unidade formal. A
propósito do assunto cabe aqui um comentário do
vas e de maior porte. A maior parte dos prédios de
mestre Lúcio Costa, esclarecendo, inclusive, as ori-
Pirenópolis, ainda existentes e oriundos do passado,
gens de nossa arquitetura:
foram construídos com pau-a-pique, aliados com o
Ora, a arquitetura popular apresenta em Portugal,
adobe, taipa de pilão e tijolos queimados – isso que a nosso ver, interesse maior que a “erudita” –
costumamos chamar arquitetura de terra. Não é pri- servindo-nos da expressão usada, na falta de outra,
vilégio aqui do Brasil, pois é encontrado em todo o por Mario de Andrade, para distinguir da arte do
mundo e em épocas variadas – talvez tenha nascido povo a “sabida”. É nas suas aldeias, no aspecto viril
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de suas construções rurais a um tempo rudes e grande maioria dos pioneiros, as edificações abando-
acolhedoras, que as qualidades da raça se mostram naram seus aspectos provisórios e se sofisticaram: as
melhor. Sem o ar afetado e por vezes pedante de estruturas de madeira passaram a ter uma robusteza
quando se apura, aí, à vontade ela se desenvolve compatível com o volume da construção, as pare-
naturalmente, adivinhando-se na justeza das pro­
des eram revestidas com argamassa de cal e areia,
porções e na ausência de “make up”, sua saúde
plástica perfeita – se é que podemos dizer assim.
pintadas com leite de cal ou tabatinga e os telhados
Tais características, transferidas na pessoa dos foram equipados com telhas de cerâmica, tipo canal.
antigos mestres e pedreiros incultos – para nossa As esquadrias, toscas no início, simples tampos de
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terra –, longe de significarem um mau começo, madeira mal enjambrados, requintaram-se com ve-
conferiram, logo, pelo contrário, à arquitetura nezianas e guilhotinas guarnecidas com malacache-
portuguesa na colônia, esse ar despretensioso tas oriundas da antiga Cidade de São José do Tocan-
puro que ela soube manter, apesar das vicissitudes tins, fazendo vezes de vidraças. Os antigos carapinas
porque passou, até meados do século XIX. transformaram-se em marceneiros hábeis (Pirenópo-
lis contava com grande número deles e eram, geral-
Vejamos como era, por dentro, essa casa dos
mente, pessoas letradas – até sacerdotes exerciam o
goianos meiapontenses. Aqui juntei observações mi-
ofício, inclusive como entalhadores, como atestam
nhas com as do historiador Jarbas Jayme e também
os retábulos de altares das igrejas da Cidade).
da arquiteta Adriana Mara Vaz de Oliveira que esgo-
Com essa evolução foi possível transformar os
tou o assunto num belo livro (Um Estudo da Casa
jiraus em camas, os singelos tamboretes em cadeiras
Meia-pontense).
e os cavaletes com tábuas mal aparelhadas em mesas.
Desenhamos aqui uma casa típica, que pode
Os pisos de terra batida passaram a ser revestidos
se adaptar a várias situações programáticas e as ex-
com as lajes de arenito locais ou mezanelas.
ceções de praxe, mas sem perder o partido predomi-
Como Pirenópolis não era capital do estado,
nante. Sobre ela pode-se fazer algumas observações:
não ocorreram edificações de vulto destinadas às
1 – A porta de entrada que dá acesso a um
funções públicas, com as pompas e circunstâncias
corredor comunica-se com uma varanda, aberta para
necessárias, indispensáveis na Cidade de Goiás que
um jardim, e que era a sala de estar da família; era a capital da Província. Nesse sentido, as edifica-
2 – A certa altura do corredor encontramos a ções de Meia-ponte são mais singelas, sem alardes
porta do meio, geralmente com sua folha dividida ao arquitetônicos e decorativos que a administração
meio com relação à altura, facilitando a ventilação do império lusitano exigia nas capitais para melhor
que se faz, em continuidade, com a varanda. Essa expressar seu poder. Chegou-se ao cúmulo, no caso
ventilação que varria a casa, mais os pés-direitos al- da Vila Boa, de se enviar da Corte lusitana projetos
tos, atendia, inclusive, os quartos-alcovas da herança de arquitetura, como o caso da Casa de Câmara e
moura. Essa sábia disposição garantia o conforto am- Cadeia, hoje Museu das Bandeiras, e outros, como
biental nos dias quentes do ano. provavelmente o belo barroco-rococó Chafariz que é
Essa planta imaginária apresentada já corres- um ícone arquitetônico da Cidade.
pondia à segunda etapa da ocupação das margens Em compensação, em Pirenópolis, edifica-
do Rio das Almas, quando vencidos os ímpetos de ram-se algumas residências apalacetadas, como as
riqueza rápida e pretendido retorno imediato para a do Sargento-mor Antonio Rodrigues Frota ou a do
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Comendador Joaquim Alves de Oliveira que, inex- a organização interna da família e como ela se insere
plicavelmente, desapareceram sem deixar vestígios, na estrutura social, com sua escala de poderes, usos,
somente poucas referências iconográficas. Uma costumes, etc. Sem essa compreensão, o exame de
constatação se impõe ao examinar a arquitetura das uma planta residencial apresenta-se como meramen-
residências meiapontenses: as técnicas de edificação te aleatória. Assim, por exemplo, as alcovas (quartos
eram de cunho popular, sem interferência de sabidos sem abertura para o exterior) correspondem à posi-
e diplomados. Quanto aos seus aspectos funcionais: ção da mulher dentro do sistema familiar, em cer-
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A continuidade do agenciamento dos ambientes da to período histórico – recôndita e discreta e sempre
casa conduz à permanência de sua disposição. A sob o domínio e vigilância paterna/materna (herança
distribuição dos ambientes era realizada por faixas, cultural lusitana e mourisca).
sendo a social voltada para a rua, a íntima no centro Particularmente, a arquitetura residencial de
do terreno e de serviços no fundo. Essa disposição
Pirenópolis apresenta uma interessante contribuição
indicava a permanência do resguardo da mulher
e o controle paterno sobre os filhos. Em contra-
decorativa com os lambrequins (peças recortadas de
partida, a maquiagem efetuada nos ambientes so- madeira fixadas nas pontas dos caibros dos beirais) e
ciais indicava a introdução da mulher ao convívio sob forma de bandeirolas na arte superior das portas,
social, retirando-a da reclusão e transportando-a a em bonitos rendilhados. Essa ornamentação é típica
novo papel social. Esses ambientes decorados com da Cidade e mais uma vez comprova o atavismo ar-
esmero eram preservados os momentos extraordi- tístico do pirenopolino.
nários, indicando que a mulher assumia um papel
eventual, que era o de saber receber. No dia-a-dia,
a lida feminina ainda era muito árdua, e o seu pa-
pel ainda era o de controle da casa, prejudicado
pela ausência de aspectos domésticos que facilitas-
sem o seu trabalho. Nesse sentido, a assessoria de
escravos ou de agregados era sempre necessária,
assim como diversos ambientes de serviço, capazes
de abrigar várias atividades.
(Adriana Mara Vaz de Oliveira – Um Estudo da
Casa Meia-pontense)

Este trecho acima confirma observações feitas,


por outro viés, quanto ao aspecto geral das constru-
ções históricas de Pirenópolis, suas plantas e trata-
mento de interiores, e mais, confirma o entendimen-
to de que a arquitetura, erudita ou popular, é um
produto cultural, ou melhor, é o reflexo da infraes-
trura sócio-econômica como um todo. Assim, para
se entender a disposição funcional em planta de uma
edificação residencial, em qualquer latitude, longitu-
de ou época, é indispensável que se tenha em mente
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Arquitetura
religiosa
Igreja de Nossa Senhora do Rosário cerces de pedra; no interior ela é suficientemente
ornada, mas não tem forro.
Majestoso edifício religioso é um dos ícones
da Cidade. O início de sua construção remonta a Em sua primeira fase ela foi terminada em 93
data de 1728. Sua construção foi um ato de extrema 1732. Só teve o aspecto externo que tem hoje em
coragem, pois seu porte exigiu uma técnica constru- 1736, quando foram construídas as duas torres. Ela
tiva que não era usual na época e muito menos nes- ostenta uma volumetria clara, prismática e sem orna-
tas lonjuras do Planalto Central. mentação. Nesse sentido ela é bastante diferente das
Além de sua função religiosa, os meiaponten- igrejas do período barroco de nossa arquitetura, es-
ses a erigiram também como representação orgu- pecialmente o mineiro, com suas paredes, em muitos
lhosa de uma Cidade, de uma comunidade, de uma casos, onduladas, e com presença de um tratamento
região - era um monumento emblemático de uma decorativo.
urbes que pretendia ser uma sociedade civilizada e Os trabalhos internos em talhas de madeira
organizada. O historiador Jarbas Jaime, pirenopolino eram fruto do talento artístico dos artífices da Cida-
extremado dizia, com um pouco de exagero: de, assim como toda sua policromia. Sempre nos es-
Há na suntuosa e vetusta Matriz, verdadeira har- pantou a qualidade desses trabalhos produzidos por
monia, maravilhosa no conjunto, e os olhos mais pessoas que não receberam ensino formal, mas se
exigentes não se chocam, ao percorrer as arcadas e desempenharam com uma competência fora do co-
os magníficos altares do majestoso templo, autên- mum – eram maravilhosos autodidatas. Em 1863 os
tico relicário das glórias e tradições meiapontense. pintores locais Ignácio Pereira Leal, Antonio da Cos-
(Jarbas Jaime – Pirenóplolis: Casas de Deus e Casa ta Nascimento (Tonico do Padre) e Francisco Hercu-
dos Mortos)
lano de Pina (Chiquinho Chichi) pintaram o teto da
Não resta a menor dúvida que a matriz foi tes- capela-mor da Matriz, capela-mor e altar principal
temunha e participante dos acontecimentos históri- - perfeitamente enquadrados dentro dos princípios
cos da Cidade e, mais ainda, foi um museu vivo onde estéticos do nosso barroco. Mais do que isso, denun-
se exprimia a expressão artística dos habitantes, ciando talentos de criação e domínio técnico invul-
principalmente através das artes plásticas e da mú- gar. Curiosamente, o pintor Ignácio Pereira Leal, que
sica. O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, ganhava sua vida como fazendeiro, deixou registra-
no seu clássico Viajem à Província de Goiás, arguto e da sua passagem, como artista, na Matriz, através de
observador, assim se expressou sobre o templo: uma inscrição: Principiei esta pintura a 1o de novem-
A igreja paroquial dedicada a Nossa Senhora do bro de 1863 e acabei a 31 de outubro de 1864, pela
Rosário é bastante grande e ergue-se numa praça qtia. De 200$. Ignácio Pêra. Leal.
quadrada; suas paredes feitas de taipa, têm 12 pal- No ano de 1999, este magnífico exemplo de
mos (nove pés) de grossura e assentam sobre ali- arquitetura religiosa comemorou o término da sua
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restauração devidamente capitaneada pelo Instituto Este templo ostenta um exterior modesto, mas
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Mas, dentro dos princípios estilísticos de um barroco co-
desgraçadamente, na madrugada de e 5 de setembro medido, que foi uma marca do centro-oeste, como se
de 2002, ocorreu um incêndio que quase destruiu vê na Cidade de Goiás, Pirenópolis e outras Cidades
por inteiro a Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosário. do ciclo do ouro que apresentam, externamente, uma
É impossível descrever o impacto que essa tra- arquitetura sóbria com volumetria bem equilibrada.
gédia teve sobre a Cidade, foi como Meiaponte tives- O Sargento-mor fez mais que construir a cape-
se perdido sua alma. la – trouxe de Salvador, capital da Bahia, a imagem do
Infelizmente, grande parte das perdas foi irre- senhor do Bonfim, transportando-a, segunda a len-
mediável – as pinturas, parte da imaginária, os obje- da, nos ombros de 260 escravos, “mercadoria” que
tos litúrgicos, documentos, etc. tinha adquirido no mercado de escravos de lá. Dei-
Ignorando os riscos e com destemor, mem- xando de lado a brutal contradição do fato histórico
bros da comunidade conseguiram salvar vinte ima- em que chicoteava-se o lombo de pobres negros para
gens do templo, inclusive da padroeira. Os responsá- transportar a imagem do doce e também chicoteado
veis pela restauração houveram por bem transportar libertador, prossigamos: trata-se de uma imagem de
altar e retábulos da Igreja de Nossa Senhora dos Pre- regular altura, esculpida em madeira, obedecendo,
tos, demolida e que estavam guardados na Igreja do de maneira competente, aos cânones da estatuária
Carmo para a Igreja Matriz. Estas relíquias tinham religiosa barroca. A imagem foi entronizada no altar-
sido preservadas por pessoas de boa vontade da Ci- mor, com um retábulo em madeira esculpida por ar-
dade, felizmente, e acabaram encontrando seu lugar tesãos meiapontenses de século XVIII. Este conjun-
na Igreja incendiada. Depois de inúmeras discussões to, na sua singeleza, representa um belo exemplar da
em que a população da Cidade participou, chegou- arte brasileira do nosso passado barroco.
se a bom termo na restauração. Foi feito o que se Este templo já sofreu inúmeras interferências
pôde, e de maneira correta e, ainda mais, os proce- na sua arquitetura, inclusive cometida pelo nosso fa-
dimentos de restauro constituem, hoje, exemplo de moso Tonico do Padre que introduziu na torre certo
como se deve agir num caso similar. sabor gótico, mas em 1907 voltou ao aspecto inicial.
Está lá de novo, para alegria de olhos de to- As pinturas do teto e restauração de outras ficou sob
dos e satisfação de nossos sentimentos, a bela Matriz, o cargo do talentoso Ignácio Pereira Leal e isso ocor-
elegante e imponente, sóbria e majestosa. reu em 1887.
Esta capela abriga outra preciosidade: a ima-
Capela do Senhor do Bonfim gem do Senhor dos Passos, em tamanho natural e
Em situação urbana e espacial adequada, que é carregada na Procissão do Encontro durante
numa parte mais elevada da Cidade, o Sargento- a Semana Santa. Dentro dessa Ermida encontram-
mor Antônio José de Campos, de origem lusitana, se alguns túmulos – lembremo-nos que era tradição,
e morador de Meiaponte, se propôs a construir esta em tempos passados, o enterro de pessoas importan-
capela e, ainda, fornecer os respectivos paramentos tes no interior, e de seus escravos no adro.
e a imagem do padroeiro. Fez isto entre os anos de Hoje, a igreja encontra-se em bom estado, de-
1750 e 1754. vidamente restaurada pelo Iphan.
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Altar da Capela do Senhor do Bonfim


Capela de Nossa Senhora do Monte do Carmo
(atual Museu de Arte Sacra)
A capela situa-se na margem direita do Rio das
Almas e foi construída por ricos mineradores portu-
gueses: Luciano Nunes Teixeira e seu genro Antonio
Rodrigues Frota. A data das obras é imprecisa, mas
foi a terceira igreja católica construída na Cidade.
102 Modesta e pequenina, possui três altares com
retábulos de madeira entalhada. Os dois altares late-
rais, em tempos recentes, vieram da demolida igreja
de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.
A imagem do altar-mor veio de Portugal e ali
está entronizada há mais de 250 anos.
Os construtores dessa igreja e seus familiares
estão sepultados em uma de suas sacristias e seus es-
cravos foram sepultados no adro e no seu derredor.
Em 1827 o botânico e artista inglês William
John Burchell andou por cá e fez, com a maestria de
grande desenhista, uma panorâmica da Cidade, em
que figuram a Igreja e o famoso sobrado dos Frotas
(desse sobrado só nos restou o nome do morro –
Morro dos Frota). A solução volumétrica externa que
o artista inglês documentou é bastante diferente da
atual e, sem sombras de dúvidas, mais elegante, de
uma cadência mais ordenada (a capela, nessa época,
estava ameaçada de ruir e estava escorada, como o
minucioso Burchell documenta).
Ao longo do tempo, como costuma aconte-
cer, sua arquitetura sofreu varias intervenções, mas,
hoje, devidamente restaurada, abriga o novo Museu
de Arte Sacra que está sob os cuidados do Institu-
to Brasileiro dos Museus, do Ministério da Cultura,
abrigando imagens e objetos sacros que estavam dis-
persos pela Cidade.
A solução arquitetônica externa da igreja é
estranha ao estilo barroco e está longe de um bom
arranjo estético.
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Edifícios
institucionais
Diferentemente da Cidade de Goiás que sem- çados, os presos, em cima, no andar, os senhores
pre foi sede de governo, Pirenópolis não foi aqui- conselheiros. Mas como toda a medalha tem seu
nhoada com edifícios que abrigassem um aparato reverso, o sistema oferecia certas vantagens como
a contínua ciência das autoridades pelo que ocor- 107
administrativo e político mais complexo. Na realida-
resse, e a acessibilidade aos presos, através das gra-
de os poderes se limitavam à Prefeitura, ao Quartel, des, da família e de quem passasse: um bilhete, um
ao Fórum e a Casa de Câmara e Cadeia. Desses o que doce, um olhar – uma flor.
resta é o ultimo, hoje ocupado pelo Museu do Divi-
no, abrigando peças artísticas de viés popular e que Teatro de Pirenópolis
foram e são produzidas para suplementar as festivi- Situado ao lado da Matriz encontramos um
dades religiosas da Cidade. Este museu é adminis- edifício que dificilmente poderemos classificar como
trado pelo Ibram (Instituto Brasileiro dos Museus – barroco, parece mais uma construção inspirada nos
Ministério da Cultura). As peças expostas abrangem enxameies europeus, mas, de qualquer maneira sin-
a expressão espontânea e artística popular da Cidade gelo e de agradáveis proporções. Foi construído por
que, sem sombras de dúvidas, representam um rico particulares com a finalidade de ser teatro. Depois
patrimônio que tem caráter de certo ineditismo nas de muitas vicissitudes, encontra-se, hoje, restaurado
manifestações de arte popular no Brasil. e adaptado às exigências modernas. Preservou-se sua
O edifício em si é inexpressivo – uma volume- fachada e detalhes arquitetônicos de época. Tem 467
tria cúbica despojada e/ou pobre. Já seus interiores metros quadrados, com bons camarins e 186 poltro-
sofreram um processo de restauração criativo e bas- nas. É bastante utilizado nos dias de hoje e participa
tante saboroso, compensando a singeleza exterior. intensamente da vida cultural da Cidade.
Lembremos que as Casas de Câmara e Cadeia
eram uma instituição da administração colonial por- Cine Pireneus
tuguesa. O andar térreo era destinado aos crimino- Este edifício foi construído em 1930 como te-
sos e o segundo abrigava os vereadores, cujas fun- atro em pretenso estilo neo-clássico. Mais tarde, em
ções eram diversas das que hoje têm os eleitos sob
1936, foi transformado em teatro com sua fachada
este nome. Os de ontem dividiam com o governador
alterada para um desenho com sabor art-déco.
as responsabilidades da administração municipal e
Ficou abandonado, quase em ruínas, por uns
também julgavam os indiciados por faltas graves.
tempos. Em 1998 foi restaurado e adaptado às fun-
Segundo o Mestre Lúcio Costa, em Registro de
ções de cinema e teatro.
uma vivência:
As Casas de Câmara e Cadeia obedeciam ao odioso
costume lusitano de assentar sem rodeios o poder
sobre a cadeia – embaixo, no térreo, com vãos for-
temente gradeados e paredes, pisos e forros refor-
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6
Expressão
intelectual e artística
Uma convivência, mesmo que não demorada, dos olhos e encaminha-se para os ouvidos, ouvirá
com Pirenópolis leva um indivíduo, com um míni- alguém dedilhando um piano ou executando um
mo de espírito de observação, a constatar, em pri- violino, ensaiando uma flauta, ou mesmo ouvirá um
meiro lugar, que perpassa pela Cidade certo sopro ensaio de uma das bandas da Cidade.
artístico que acontece desde priscas eras, constatável Se o nosso personagem conviver mais com
principalmente se o indivíduo a que aludimos tiver a população perceberá algo não muito comum em
a curiosidade de mergulhar um pouco no passado. outras comunidades: sempre alguém está fazendo
Essa presença de vocação artística é compreensível, algo artístico, mesmo que, em muitos casos, não seja
pois, sempre, o que passou deixa um resíduo, nos totalmente em termos profissionais , fazendo másca-
marca e aponta rumos e, ainda, determina um cami- ras de capetas ou de bichos-bois para as cavalhadas,
nho, quer queiramos ou não. E aqui já comentamos pintando, geralmente com tratamento naïf, as festas
como atividades artísticas e culturais da Cidade tive- da Cidade, esculpindo coisas em casca de cajazeiras,
ram, no passado, presença cotidiana e vários artistas tecendo em teares rudimentares panos com variados
aqui viveram e exerceram seus ofícios. tissumes, executando móveis com sobras de madei-
Se esse hipotético indivíduo andar pela Cida- ras, produzindo cerâmicas artesanais, etc.
de, não com o ânimo de turista formal – aquele que Uma pergunta pode ser levantada: por que
não vê o que viu, perceberá num canto ou num re- essa dedicação às manifestações artísticas, principal-
canto de sua arquitetura, uma manifestação de certo mente à música e artes plásticas? Por que desse ím-
gosto, um apuro num determinado acabamento, um peto artístico que domina essa gente meiapontense?
arranjo mais cuidado num detalhe, enfim, uma cla- Procuremos no tempo, caminhemos para trás
ra e singela intenção estética, sem alarde ou sem in- e se contemplemos o início da formação dessa co-
tenções secundárias – obedecendo somente o prazer munidade que se alojou nas margens do Rio das Al-
de fazer uma coisa bem feita. O vagabundo amigo mas e nas faldas da Serra dos Pireneus, por razões
verá o desenho de uma janela, um beiral acachor- um pouco acidentais. O início aqui da civilização se
rado, um lambrequim bem recortado, uma padieira deu sobre os alicerces da concupiscência coletiva. O
guarnecida com recortes, uma pintura de esquadrias ouro ofereceu função magnética e seus pioneiros não
tratada com boas soluções nas cores e, se for sufi- hesitaram em cometer torpezas de 14 quilates para
cientemente curioso, olhará o interior das casas e chegar ao brilho cegante do metal ouro. De resto,
perceberá sobre a mesa um “centro” bem bordado, não foi diferente do que acontecia ou aconteceu em
uma máscara de cavalhada em papel machê pendu- outras regiões do país. O suor e o sangue dos negros
rada na parede, um retrato de família, um quadro re- tingiram as águas límpidas do Rio das Almas!
presentando uma paisagem, um oratório que acom- Para purgar esses pecados, para conjurar as
panha a família séculos etc. Mas se sua impressão sai indecências, exorcizar os demônios que dominavam
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Lambrequins
todos, apelava-se para o perdão dos céus e recorria- que marcaram e cunharam essa vocação artística e
se à Igreja para acalmar suas consciências. Levanta- intelectual da Cidade. Dividimos esse grupo em três
vam-se templos, decoravam-no com obras de arte, segmentos, abrangendo passado e presente: escrito-
musicavam as cerimônias, entalhavam-se altares, res, musicistas e artistas plásticos. Alguns nasceram
esculpiam-se imagens, pintavam-se paredes e tetos. por cá, outros adotaram a Cidade como se fossem
À época, principalmente, a igreja era exigente quan- naturais dela.
to à solenidade do culto e o ambiente físico deveria
obedecer aos luxuosos cânones barrocos. Literatura
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Nesse caso, a Igreja passou a ser a grande in- Jarbas Jayme
dutora do desenvolvimento artístico da comunidade O grande historiador de Pirenópolis nasceu
e ela oferecia parâmetros, regras e normas a serem em 1895 na Fazenda Água Limpa. Fez o primário
seguidos. Mas as cerimônias e as festas religiosas na Cidade natal e o secundário no Seminário Santa
também exerceram o papel de elemento associati- Cruz, situado no Arraial de Ouro Fino, Cidade de
vo para um conglomerado que nascia de maneira Goiás. Esse Seminário era um estabelecimento de
anárquica. Influenciados pelos padres, apareceram ensino famoso por sua eficiência e responsável pela
outras formas de comunicação social festiva: o tea- formação humanista de inúmeros ilustres cidadãos
tro e a encenação das lutas entre o bem e o mal, os goianos. Lá o futuro homem de letras aprendeu, in-
mouros e os cristãos, a música profana, etc. clusive, o latim e o francês. Já com quarenta anos de-
Essa purga coletiva ensinou aos meiapontenses dicou-se ao jornalismo colaborando com jornais de
os nobres prazeres da expressão artística e quando o Goiás e Minas. Foi membro do Instituto Genealógico
ouro minguou e os demônios da sovinice e da am- Brasileiro. Acreditava, como outros historiadores, na
bição desenfreada recolheram-se aos covis infernais, importância da pesquisa genealógica como suporte
continuaram a práxis da manifestação artística para da história. Era um cidadão profundamente ligado à
deleite próprio e adequado a uma expressão cultural sua Cidade e a sua gente.
coletiva - já se tornara uma tradição, mais do que Seu estilo literário era simples, escorreito
isso, tornou-se componente de uma hereditariedade. e sem afetação. Seus textos são de leitura agradá-
Ora, isso tudo, esse ímpeto pra produção ar- vel e tratados com a elegância de quem domina o
tística de hoje tem então uma razão, tem um moti- vernáculo.
vo, tem uma origem, tem uma herança e exemplos. Obras publicadas: Cinco Vultos Meiaponten-
Essa herança é forte e queremos aqui destacá-la. Na ses, Do Passado ao Presente Vale Seis!, Anedotário
área musical e literária, mais do que qualquer outra, Meiapontense, Esboço Histórico de Pirenópolis e Fa-
Pirenópolis é pródiga de valores. Tanto é assim que mílias Pirenopolinas, em quatro volumes e publica-
justifica-se a criação da Academia Pirenopolina de do postumamente e, ainda, Os Sumos Pontífices (his-
Letras, Artes e Música. tória dos Papas, a partir de São Pedro).
Aqui neste trabalho foram escolhidos alguns Deixou uma obra póstuma, devidamente com-
nomes de produtores artísticos, foi uma escolha plementada pelo Professor José Sisenando Jayme,
pessoal que não implica em julgamento de valores, seu filho, chamada Pirenópolis, Casa dos Homens e
mas constituem, a meu ver, figuras emblemáticas Pirenópolis Casa de Deus/Casa dos Mortos.
Se pretendermos classificar essa última obra, mente o ambiente da Pirenópolis de sua infância que
teremos que apelidá-la de incrível, inédita e extra- o marcou indelevelmente. Sua linguagem é contem-
ordinária. Nela os autores contam a história de 341 porânea, ágil e bastante livre e criativa, sem ranços
casas que remontam ao Brasil Colonial, por quem de academicismo, mesmo denunciando, claramente,
foi construída e quantos moradores tiveram. Os co- sua vasta cultura no ramo da filosofia.
mentários sobre elas são saborosos. É uma autêntica Após sua aposentadoria no serviço diplomá-
história da Cidade e as notas de pé de página contam tico, voltou para sua Cidade natal, dedicando-se ao
fatos históricos, casos pitorescos, tragédias, escânda- estudo e produção literária e aqui faleceu.
los, anedotas, mexericos etc., com muita vivacidade. Aqui, neste pequeno livro, não hesitamos em
Os livros (a obra foi editada em dois volumes) colocá-lo na lista dos grandes escritores brasileiros
são enriquecidos com ilustrações a cores (pinturas) e desejando que sua obra tenha maior divulgação.
realizadas pelo pintor pirenopolino Pérsio Forza- Seu conto Dom Silogildo é uma obra-prima do conto
ni que consegue um feito inédito: juntou um certo brasileiro, onde se mistura, de uma maneira inédita,
tratamento naïf com fidelidade na documentação filosofia, cultura popular e humor.
arquitetônica. Publicou, entre outros, os seguintes livros:
Jarbas Jayme faleceu em 1968 e está sepultado Drama de Um Padre (livro de cunho pessoal, onde
no Cemitério de São Miguel na sua sempre amada relata seus problemas vivenciais com relação ao sa-
Pirenópolis. cerdócio), Intruduction du Sens Cosmique en Philo-
sophie (obra estritamente filosófica e escrita em fran-
Isócrates de Oliveira cês), A Hora do Anticristo, Dom Silogildo e Outros
Nasceu em 1922 em Pirenópolis. Ainda na Contos, e Frederico e o Mundo Real (ficção com for-
infância saiu de sua terra e ingressou no Seminário tes componentes poéticos).
Menor Santa Cruz, na Cidade de Bonfim, em Goiás,
e completou sua formação sacerdotal na Cidade de Eliane Lage
São Paulo, nessa oportunidade, estudou filosofia e Sob este nome existe uma personalidade en-
teologia. cantadora, inclusive no convívio pessoal. Sua histó-
Ordenado sacerdote exerceu o ministério reli- ria de vida é uma sucessão de encantos, vivências
gioso por uns tempos, mas abandonou a vida eclesi- maravilhosas e convivência com pessoas inteligentes
ástica e encaminhou-se para a carreira diplomática. e sedutoras.
Nessa carreira ocupou vários postos e viveu em vá- Nasceu em Paris, de origem, digamos, aris-
rios países na Europa, na Ásia e na América do Norte tocrática. Aristocracia burguesa paulista, pontuada
e América Latina. Fez curso de pós-graduação no De- pelo dinheiro, mas dinheiro casado com a cultura
partamento de filosofia da Rice University e obteve o e o bom gosto. Teve educação exemplar, inclusive
grau de Mestre em Filosofia. Publicou vários livros, convivendo com gente, às vezes bizarras, mas que se
tanto na área de filosofia, como na ficção. Tanto num envolvia, cotidianamente, com artes e erudição.
caso como no outro, sempre manifestou inclinação Por uma série de circunstâncias, ainda muito
para as especulações teológicas e filosóficas. moça, tornou-se uma das principais atrizes do cine-
Como ficcionista sua obra demonstra uma ma brasileiro na época da Vera Cruz. Esta compa-
completa inserção na sua Cidade natal, principal- nhia foi criada, com as mais nobres intenções, para
solidificar a produção, ainda incipiente, do cinema Certos estudiosos de sua obra reagem quanto ao seu
brasileiro. Foi a principal atriz de inúmeros filmes autodidatismo, pois seus conhecimentos técnicos
antológicos, inclusive o Sinhá Moça que foi grande eram de tal ordem que seria praticamente impossí-
sucesso na época, contracenando com Anselmo Du- vel obtê-los sem um ensino metódico, acadêmico ou
arte. A Vera Cruz, infelizmente, durou pouco tempo, oficinal. Mas, seja como for, ignora-se o nome ou
mas serviu para formar uma idéia de cinema, com nomes de seus mestres, e mais, nunca houve por es-
implicações artísticas e industriais, entre nós. tas bandas escultores que deixassem obras de cunho
Em 1977 Eliane Lage mudou-se para Pirenó- erudito como as de nosso escultor e que pudessem
polis, por pura opção sua e tornou-se fazendeira. servir de modelo para o artista, a não ser, é claro, a
Eliane adotou a Cidade como sua, logo de início, mas, arte sacra importada de Portugal.
realidade, ela é que foi adotada pela Cidade como O escultor, já com 34 anos, e consagrado,
uma das suas mais queridas cidadãs meiapontenses. muda-se para a Cidade de Goiás, a convite do go-
Em 2000 Eliane imaginou escrever sua auto- vernador do Estado. Mais tarde casou-se com a filha
biografia e em 2005 a Editora Brasiliense lançou desse Governador. Exerceu vários cargos públicos,
Ilhas, veredas e buritis. Pirenópolis já comparece no pertencendo assim à elite social, embora praticasse,
título – Veredas e Buritis! igualmente, um ofício não muito comum nessas eli-
Como texto autobiográfico é um dos melhores tes sociais. O escultor era perfeitamente identificado
que já se escreveu no Brasil, pois além dos compo- com o barroco brasileiro e também tratava suas pe-
nentes naturais de um trabalho no gênero, inclusive ças com particular cuidado na volumetria, e extremo
com um pano de fundo histórico sobre a Vera Cruz e zelo na pintura e encarnação. Aliás, o profissionalis-
incríveis peripécias pessoais, é estilo e poesia, poesia mo desse artista iniciava-se na escolha e preparação
em prosa que encanta, deslumbra e comove. de sua matéria-prima, a madeira, inclusive na seca-
gem. Após essa primeira fase, o escultor, com suas
Artes plásticas goivas, formões e macetes fazia surgir suas figuras
Veiga Vale que se apresentavam com extrema elegância de pos-
tura, proporções anatômicas perfeitas e gesticulação
José Joaquim da Veiga Vale nasceu em Pire-
bem resolvida, resultando em expressividade, leveza
nópolis em 1806 e morreu na Cidade de Goiás em
e ritmo que fornecem à sua obra a marca do classicis-
1974. Sua origem familiar é de gente antiga por cá.
mo renascentista, com componentes barrocos.
O nome desse artista já deixou de ser unica-
Seus panejamentos eram bem trabalhados nas
mente goiano e atualmente qualquer trabalho sério e
curvas, contracurvas, anfractuosidades e dobras li-
completo que se faça sobre história da arte no Brasil
neares em feixes, traduzindo pleno domínio da visão
não pode ignorá-lo, pois é um legítimo representante
espacial.
da melhor arte sacra barroca que se praticou no Bra-
Nosso artista produziu uma obra apolínea,
sil. Aqui na Cidade fez seu aprendizado de pintura e
isto é, tranquila, suave, serena e equilibrada, diferen-
escultura. Sua pintura, aliás, voltou-se quase unica-
te do genial e dionisíaco Aleijadinho, tumultuado,
mente para participar da sua escultura na encarnação
deformador, vigoroso e dramático.
e colorido das vestes de suas peças. Esse aprendiza-
do de Veiga Vale foi sempre uma incógnita histórica.
Ignácio Pereira Leal dade são adornadas com cabeças de bois de grandes
O pintor e fazendeiro sob este nome nasceu dimensões. Os artesãos se esmeram na forma e cores
em Meia-Ponte em 1832 e faleceu na Cidade de Goi- e essa forma de arte popular é inédita, não conhece-
ás, para onde se mudara. mos outras Cidades que tenham a Cavalhada entre
seus folguedos e que produzam peças iguais e com o
Foi o autor da pintura do teto da Capela-mor
mesmo sabor artístico.
da Matriz de Pirenópolis. Trabalhou na execução
A Festa do Divino que caminha paralela-
desse teto entre os anos de 1863 a 1864, e foi au-
mente com as cavalhadas e com datas próximas,
xiliado no seu trabalho por Antonio da Costa Nas-
também exige uma série de objetos artísticos para
cimento (Tonico do Padre) e Francisco Herculano
instrumentá-la.
de Pina (Chiquinho Chichi). No forro do trono da
Predominam as representações, sobre vários
Capela deixou atestada a sua autoria. Infelizmente a
suportes, da pomba que simboliza o Espírito Santo.
citada pintura foi devorada pelo incêndio da Matriz
em 2002, mas existe uma boa documentação foto- Artistas primitivos
gráfica dessa obra que permite avaliar a competência Selecionamos, aqui neste trabalho, três artis-
do artista. tas primitivos de Pirenópolis, ou, como se diz em
Não se sabe quais foram os professores des- livros especializados, artistas naïfs. Utilizamos do
se talentoso pintor, embora achemos impossível um mesmo critério do adotado aqui para os escritores,
autodidatismo – sua técnica e as implicações cultu- isto é, não se trata de um juízo de valores, mas dadas
rais que a obra ostenta, demonstram, se dúvida, um as características do presente trabalho, essa escolha
aprendizado eficiente. Sob ponto de vista estilístico, é pessoal e indicativa de um conjunto de artistas de
a pintura em foco acusa uma obediência ao que era Pirenópolis que adotam esta abordagem estilística.
usual na época, isto é, a concepção plástica barroca. Uma coisa é constatável na arte ingênua – não
sofre rejeição por parte de ninguém – o sopro poéti-
Artes populares
co que anima essas obras é muito evidente e comove
A Cidade sempre foi pródiga de artistas não- a todos, grego ou goiano.
eruditos que produziram e produzem uma série de O que caracteriza o estilo desses artistas é uma
objetos artísticos que vão dar apoio às festas religio- forma de expressão que prescinde do aprendizado
sas – festas do Divino e as cavalhadas. No último acadêmico, isto é, eles não usam recursos eruditos
caso, isto é, na representação das lutas de mouros e de composição, desenho, perspectiva, tratamento de
cristãos, comparecem os “mascarados” que são cida- cores etc. Geralmente são artistas instintivos e suas
dãos que saem às ruas, em bando ou sozinhos, vesti- obras deixam transparecer inocência e simplicidade,
dos com roupas coloridas e com máscaras em forma e, ainda, geralmente, toques poéticos quase infan-
de cabeças de bois com enormes chifres enfeitados tis, tanto na temática como na fatura. Pode mesmo
com flores de papel, onças, capetas, caveiras e mons- ocorrer o caso que esse artista se enquadre como
tros. Esses mascarados são chamados de cucurucus. pessoa culta, mas no manejo dos pincéis costuma se
As belas máscaras de bois se tornaram um dos ícones comportar como naïf, comandado pelas suas quali-
da Cidade e modelados em uma espécie de papier dades morais de seres angelicais, como Van Gogh,
maché. Na época das festividades as praças da Ci- por exemplo.
O Brasil é um país extremamente pródigo em pintou, até hoje, cerca de 3.500 quadros em sua vida
artistas naïfs e alguns deles entraram na história da laboriosa. Sua temática era e é exclusiva das coisas
arte como representantes da melhor arte brasileira, de sua Cidade: casario, igrejas, paisagens, procissões
como é o caso do Cardosinho, Heitor dos Prazeres, e festas religiosas da Cidade e temas similares. Seus
Manezinho de Araújo, Antônio Poteiro etc. Ainda estudos regulares se limitaram ao primário – o resto
mais, existem uma série de pintores eruditos que se foi a universidade da vida que o ensinou.
deixaram influenciar pelos primitivos, como o bra- Sua personalidade? Simplicidade, alegria de
122 sileiro Guinhard ou o vilaboense Octo Marques, por viver e humildade franciscana que comove e explica
exemplo. O Brasil tem também um dos melhores a doce poesia que trespassa pela sua obra, sua vida
museus do gênero arte primitiva, é o Museu Interna- sofrida de garoto da roça e “aleijado” não sombreou
cional de Arte Naïf do Brasil, no Rio de janeiro (Rua seu viver pleno e ele, como artista e como pessoa,
Cosme Velho, 561). soube sublimar suas deficiências.
Queremos aqui deixar claro que a obra desses Ilustrou, saborosamente, a obra de Jarbas Jai-
artistas merece de nossa parte, isto é, dos que são afi- me sobre o casario da Cidade. Sua fidelidade ao tema
cionados dessa expressão artística, o mesmo respeito foi impressionante, não excluindo sua concepção ge-
que merecem os trabalhos de quaisquer outros artis- ral, idêntica aos primitivos que estão sempre próxi-
tas eruditos e encontramos neles a mesma qualidade mos uns aos outros no seu modus faciendi.
estética que se exige numa obra de arte produzida Em certos casos Forzani toca as fronteiras da
por artistas de formação culta. A linguagem é a mes- pintura erudita, tal a complexidade espacial de al-
ma, existem tão somente variações de gramática. En- gumas de suas telas, enfrentando até desenhos pers-
fim, no caso, o que interessa é se são bons artistas ou pectivos complexos. O que causa espanto é o seu
não, pouco influindo os caminhos expressivos tri- autoditatismo que superou o isolamento de fontes
lhados. Não se pode, pura e simplesmente, inquiná- culturais a que esteve submetido, durante sua vida
los de folclóricos – reducionismo incorreto. no interior de Goiás. Somente uma vocação fora dos
Acreditamos, igualmente, que a presença de limites normais, exacerbada mesmo, pode justificar
tantos artistas no gênero, existentes em Pirenópolis, seu comportamento como artista.
dão à Cidade uma característica impar no cenário Pérsio Forzani é, sem sombras de dúvida,
artístico de Goiás, fato cultural que não pode ser dei- um dos grandes artistas de Goiás e uma glória para
xado de lado. Quem sabe se amanhã ter-se-á o Mu- Pirenópolis.
seu de Arte Naïf de Pirenópolis?
Zé Inácio Santeiro
Pérsio Forzani José Inácio Nascimento, conhecido como Iná-
Descendente de tradicional família meiapon- cio Santeiro nasceu em uma fazenda em 1949. Desde
tense, nasceu esse artista em 1933. Nasceu com um menino participava ativamente das festas populares/
defeito físico nas pernas, o que o obrigou a ter uma religiosas que são freqüentes no interior de Goiás.
vida sedentária. Essa quase imobilidade e sua clara Começou a desenhar, pintar e modelar o barro desde
vocação pelas artes plásticas permitiu que produzisse criança, obedecendo ao impulso íntimo que é o apa-
muito. Autodidata começou a pintar com oito anos e nágio dos artistas, populares ou eruditos. Sua temá-
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Pintura a óleo - Pércio Forzani

Pintor Pércio Forzani


tica foi sempre voltada para a vida que se desenrola- Rosana Regis
va em seu entorno, e, especialmente, os momentos Esta artista busca equilíbrio e versatilidade em
de alegria de nossa gente do sertão. Produz peças suas jóias feitas a mão em prata e gemas, preferen-
modeladas em argila de mascarados e cavaleiros da cialmente brasileiras.
cavalhada, além de uma pintura a óleo, também com
a temática de inspiração popular. Mercedes Monteiro
Claudimar Pereira Há quase duas décadas em Pirenópolis, resga-
tando e inovando sua tradição têxtil.
Este jovem artista, também oriundo de tra-
dicional família pirenopolina, iniciou-se na pintura Claudia Azeredo
em 1996. Também tem sua história artística definida Esta arquiteta voltou-se para um trabalho na
pelo autoditatismo. Seus assuntos pictóricos igual- área de artedesign em que utiliza, sabiamente, teci-
mente são as festas do Divino, a Cavalhada etc. Sua dos coloridos. Apresenta peças com uma composi-
pintura é bastante decorativa e tem acentos infantis ção de formas abstrato-decorativas combinadas com
bastante agradáveis, mesclada com certa dose de um uma excepcional harmonização de cores.
amável grotesco, à maneira do Antonio Poteiro.
Cristina Galeão
Circuito de criação
Formada em artes plásticas na UnB esta artista
Sob esse nome encontramos hoje seis artistas/
criou uma oficina-loja Adobe em que desenvolve um
artífices extremamente competentes produzindo ob-
excelente trabalho de pesquisa e produção na área de
jetos cujas características se definem pela soma da
cerâmica artística.
alta qualidade artesanal e rico conteúdo plástico.
Esse grupo, com suas propostas, coloca a Cidade no Música
circuito da produção artística erudita absolutamente
Talvez seja a música uma das formas de pro-
contemporânea e com potenciais multiplicadores.
dução artística que mais se destaca em Pirenópolis.
Vera Michels Fica-se admirado quanto ao número de pessoas da
Cidade que executam algum instrumento ou que
Utiliza como suporte para suas criações, tela,
têm certa familiaridade com as práticas musicais, e
cerâmica, papel e madeira em que seus desenhos e
isso vem de épocas remotas. A Cidade é um celeiro
pinturas transformam objetos simples em artigos de
de músicos, inclusive de músicos eruditos - execu-
arte, design e decoração.
tantes, professores, maestros, etc.
Roque Pereira Tudo começou com a música sacra, em épocas
passadas a Igreja era exigente na sua liturgia, espe-
Desenvolve uma nova carpintaria: toda a ma-
cialmente das missas musicadas. A forte religiosida-
deira utilizada já estava caída ao ser encontrada e, na
de de sua população facilitou a formação de músi-
criação, é aproveitada por inteiro, inclusive no seu
cos, bandas e conjuntos
desenho natural.
Uma curiosidade é traduzida pela polivalência
artística da gente meiapontense. Vemos isso, espe-
cialmente, com relação aos primeiros músicos notá- provocou alguns risos nos músicos e assistentes. Foi
veis daqui: o suficiente para o compositor, irritado, suspender
o ensaio e recolher a pauta, ocultando-a de todos.
Padre Francisco Ignácio da Luz É uma composição interessantíssima e, diríamos,
Além de sacerdote era marceneiro, mecânico e absolutamente revolucionária. Executada hoje não
pintor. Sua habilidade era tal que chegou a construir provoca os espantos que provocou à sua época.
um realejo. Nasceu em 1821 e ordenou-se padre em Tonico do Padre esteve à frente da Banda Eu-
1844. Ficou conhecido como exímio musicista e terpe, durante 35 anos – até sua sofrida morte. Dei- 125
dotado de ouvido excepcional, capaz de reproduzir xou um número muito grande de peças compostas,
uma peça musical ouvida uma única vez. sacras e profanas, todas com um estilo muito pesso-
Em 1858 este padre criou um conjunto ins- al, inconfundível mesmo. Não será exagero alinhar
trumental, sendo um dos componentes seu irmão, o esse compositor no rol de artistas geniais, principal-
Tonico do Padre que será comentado adiante. mente devido às circunstâncias de sua vida isolada
dos, digamos, centros culturais do país.
Joaquim Propício de Pina Dotado de um gênio difícil, extremamente ir-
Foi aluno de Tonico do Padre que, por sinal, ritadiço, adquiriu inimigos e alguns deles atacaram-
formou um grande número de músicos talentosos. no violentamente e os espancamentos que sofreu
Fundou e dirigiu, em 1892, a Escola e Banda provocaram sua morte.
de Música Fênix, e esta banda existe até hoje. Mi- Poderíamos citar e comentar outros músicos
nistrava aulas gratuitamente e ainda socorria com talentosos que povoaram nossa Cidade, mas isto se-
dinheiro do próprio bolso seus alunos. Ocupou vá- ria fugir ao escopo do presente trabalho.
rios cargos públicos, inclusive Intendente Munici- Por outro lado, podemos acrescentar que essa
pal (Prefeito), abrindo mão, generosamente, de seu tradição cultural possibilitou a presença, hoje, de
salário. inúmeros valores de Renome nacional, tanto na mú-
sica erudita como na popular, originários daqui e,
Tonico do Padre
nesse caso, quem herda não furta!
Sob esse apelido encontramos o desenhista,
escultor, pintor e músico Antônio da Costa Nasci-
mento. Dona Belkiss S. Carneiro de Mendonça em
seu livro A Música em Goiás, assim se referiu a ele:
(...)foi o músico meiapontense que mais nos impres-
sionou. Seu legado musical é extenso. Escreveu gran-
de número de missas e outras peças sacras, além de
Quadrilha de Dança e muitas obras profanas.
Nosso músico compôs uma intrigante peça
para orquestra chamada Concerto dos Sapos, inspi-
rada no coaxar dos sapos da beira do Rio das Almas.
Quando de sua primeira execução, houve espanto e
126

7
Pirenópolis
turístico
Em virtude de sua localização geográfica e que foram feitas para a deambulação. Extramuros, os
sua proximidade de centros urbanos como Anápo- parques e cachoeiras são imperdíveis. Tanto as edifi-
lis, Goiânia e, principalmente, Brasília e, é claro, sua cações como alguns acidentes naturais estão mencio-
clara vocação turística, a Cidade é hoje uma atração nadas ou ilustradas em outro local do livro. 127
nacional. Essa população flutuante implicou uma Não insistiremos mais no assunto, pois o ob-
enorme adaptação na sua oferta comercial, princi- jetivo deste livro não é o sentido turístico. Existe,
palmente em termos de hospedagem, gastronomia na Cidade, uma quantidade razoável de folders,
e comércio, de maneira geral. Se isso trouxe, evi- prospectos, postos de informações, etc. que podem
dentemente, uma série de vantagens econômicas, orientar o interessado, além de guias de turismo bem
está exigindo da administração pública uma série de treinados.
onerosas providências para adaptá-la à sua, digamos, No caso do Parque Estadual da Serra dos Pire-
nova vocação. neus e das já famosas cachoeiras achamos que as fo-
De qualquer maneira, hoje, a Cidade conta tografias que contém o presente livro são melhores,
com uma rede hoteleira capaz de suportar os picos para encantar o visitante, que os discursos.
de ocupação turísticas – desde simples pousadas até Além dos museus oficiais já comentados, a
hotéis de certo luxo. Cidade conta com dois particulares e que merecem
No terreno da gastronomia houve, nos últi- uma visita, pois contém um bom acervo:
mos anos, um enorme incremento e desenvolveu-se
Museu da família Pompeu
um leque de ofertas que vão da cozinha regional aos
cardápios sofisticados de restaurantes. Administrado e organizado, generosamente,
Também o comércio se adaptou ao novo con- por uma das mais antigas famílias da Cidade, está
sumidor. Surgiram, inclusive, à exemplo de outras situado na Rua Nova, num belo casarão que foi sede
Cidades históricas, ateliês de jóias de prata e ouro de do jornal Matutina Meyapontense. Pode-se dizer que
boa qualidade e alguns produzindo peças com algu- ali está documentada boa parte da história da Cidade
ma originalidade no seu desenho. – documentos, objetos, fotos, utensílios etc.
Pode-se, também, encontrar na Cidade alguns Museu das Cavalhadas
exemplares de arte popular tendo como tema seu
rico folclore. Uma das contribuições da Cidade são Esse museu abriga fotos, peças e trajes que
as belas máscaras das cavalhadas que já se tornaram se referem à festa das Cavalhadas. Foi uma atitude
um ícone artístico da Cidade. Essas peças são pro- inteligente e útil para preservação dos implementos
duzidas artesanalmente com uma espécie de papier utilizados nesse acontecimento, agora, classificado
maché e com inventivas policromia e desenho. como patrimônio imaterial do Brasil, pelo Iphan.
Intramuros, a Cidade conta com inúmeras
atrações, com seus museus, igrejas, as próprias ruas
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Festas
populares
Festa do Divino Quinze dias antes do Domingo do Divino ocorre na
A festa do Divino (Divino Espírito Santo) e a zona rural a Folia do Divino em que centenas de ca-
Cavalhada acontecem em vários rincões do Brasil e valeiros, ataviados, levando as bandeiras e as bên-
em especial no Estado de Goiás. Inúmeras Cidades çãos do Divino Espírito Santo pedindo pouso nas
do interior goiano e mineiro mantêm essa tradição, fazendas, onde se desenrolam os bailes com a catira
apesar da cultura globalizada que ameaça as culturas (dança só de homens, com palmas e sapateados),
regionais e nacionais. Em Pirenópolis estas festanças cantorias, queima de fogos e banquetes.
de caráter profano-religioso assumiram uma dimen- Cavalhadas
são surpreendente, de âmbito nacional.
A Festa do Divino tem duração de doze dias e É difícil dissociar o nome de Pirenópolis ao
seu ápice é o domingo do Divino, cinqüenta dias após de cavalhadas. Este espetáculo acontece em vários
a Páscoa. Ela se constitui de vários eventos – missas, locais do Estado e mesmo do país, mas nesta antiga
novenas, alvoradas, queima de fogos, “folias” na roça, Meia Ponte ele adquiriu um brilho e uma competên-
encenação da Pastorinhas etc. A liderança desta festa cia invulgar e tornou-se espetáculo-ícone da Cidade.
é exercida pelo Imperador do Divino que é coroado Sabe-se que foi encenado pela primeira vez
na igreja, com muito respeito. Geralmente este Im- em 1826. As raízes desse evento estão mergulhadas
perador é uma pessoa querida na Cidade e de posses no passado lusitano e tempos medievais – quase se
para que, inclusive, possa oferecer aos participantes pode dizer que é algo pertencente ao inconsciente
um banquete com abundância de comida e bebida. coletivo dos povos de origem portuguesa. Trata-se
Sua escolha passa pelo sorteio entre vários candida- de uma representação simbólica da luta entre cris-
tos. Até hoje foram registrados 190 imperadores. tãos e mouros, com a derrota dos mouros e sua con-
A liturgia da desta festa é muito complicada, versão ao cristianismo.
não cabendo aqui descrevê-la, existindo vários livros Uma das coisas empolgantes nesse espetáculo
que tratam do assunto. Um dos momentos mais so- são seus valores plásticos representados pelo figuri-
lenes é a coroação do novo Imperador – é realizada no luxuoso e a movimentação excepcional de seus
uma procissão: um grupo constituído de virgens, cavaleiros. Os animais usados, belos e imponentes
vestidas de branco, vai à frente do Imperador e em cavalos, são treinados desde poldros para o mister,
seguida vai a banda de música, acompanhada pela inclusive para não se assustarem com tiros de pis-
multidão, respeitosamente. Após a missa o padre tola que faz parte da encenação. As roupagens com
oficiante retira da cabeça do Imperador a coroa de que se vestem os participantes são invenção própria
prata do antigo imperador, beija-a e a coloca sobre a das figurinistas da Cidade e se apresentam com luxo
cabeça do novo imperador. A coroa e o cetro do im- invulgar – cetins, veludos, plumas, ornamentos me-
perador foram criados em 1826 e são de prata pura. tálicos e espelhos, além de símbolos cristãos como a
pomba branca do Divino. São vários quilos de fan- Atrevidas e arrogantes foram as palavras que aca-
tasia que exigem muita habilidade e resistência física bastes de pronunciar perante minha alta soberania
dos cavaleiros. Também as os arreios são decorados, e fidedignos vassalos de minha corte. Não fossem
principalmente com peças de prata. Os mouros são as leis do meu império, consagrados às três pessoas
da Santíssimas Trindade, aplicar-vos-ia o merecido
vestidos de vermelho e os cristãos adotam a cor azul.
castigo. Entretanto, voltai e dizei ao vosso Rei que
Os litigantes são representados por 12 cavalei- não me assustam inimigas tropas, nem as terríveis
ros de cada lado. ameaças com que pretende intimidar os fiéis e des-
132 O drama se expressa através de carreiras, temidos soldados do meu esquadrão que em cam-
simbolizando lutas e igualmente de diálogos entre po estou e em campo espero.
mouros e cristãos, que são recitados durante o espe-
táculo, obedecendo a antigas tradições. A festa dura Paralelamente ao espetáculo sério das cavalha-
três dias e é encenada no Campo das Cavalhadas e se das, temos os mascarados também conhecidos como
compõe de etapas: curucucus que usam roupas bizarras e máscaras co-
1. Inicio: descoberta de um espião; loridas imitando bois, onças e gente. A máscara de
2. Diálogos entre embaixadores de mouros e boi é quase um símbolo dessa brincadeira e ela hoje,
cristãos; em grandes dimensões, ornamenta as ruas da Cidade
3. Encontro dos reis; na época das festas.
4. Batalhas; Os cucurucus, geralmente montados a cavalo,
5. Embaixadas de trégua; saem pelas ruas dançando, cantando, anarquicamen-
6. Batismo dos mouros; te. E que ninguém se zangue com as irreverências!
7. Final: competição festiva (tira-cabeças e ar- O espetáculo das cavalhadas e sua aceitação
golinhas) entre mouros e cristãos. por todos, de mamando a caducando, já foi objeto
As penúltima e última etapas contam com a de sérios estudos acadêmicos pretendendo destrin-
colaboração do padre local que batiza, simbolica- char o seu simbolismo histórico e antropológico.
mente, os mouros. Mas de qualquer ângulo que encaremos o es-
Os diálogos têm uma construção bastante sa- petáculo podemos perceber os componentes da ale-
borosa. Damos adiante uma amostra, quando o em- gria e da estética popular, à semelhança do Carnaval
baixador dos mouros fala com o rei cristão: e seu desfile das Escolas de Samba e Bumba-meu-boi,
Oh! Monarca esclarecido, o poderoso Sultão, que que, pela graça de Deus, caracterizam nosso povo.
tal raio, qual trovão, neste mundo tão temido, te
comete por partido, que deixeis a lei de Cristo e
Observações finais
abraces a de Mafoma; que se fizeres isto terás paz, O ânimo que comanda a Festa do Divino Es-
honra e, sobretudo, a sua amizade em quanto é pírito Santo em Pirenópolis e que se desdobra no es-
visto, mas, se este partido não quiseres abraçar, ve- petáculo das Cavalhadas, embora tenha raízes euro-
rás, oh Rei atrevido, a terra tremer, os clarins rom-
péias, ancorou-se no gosto popular e tornou-se, sem
perem os ares, o bronze gemer, o sangue correr aos
mares e o meu Mafoma vencer.
sombra de dúvidas, um componente da cultura local
de inestimável valor. Mais ainda: houve uma irradia-
Responde o Rei Cristão: ção, via atividade turística, desse evento em todo o
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território nacional, em termos de aceitação e admi- Curiosamente, a aceitação, ainda que parcial
ração pela grandiosidade e excelência do espetáculo. (parcial porque se limitou às Cavalhadas), das qua-
Não nos cabe aqui uma análise dessa empatia lidades desse fenômeno cultural, fora de nosso país,
pelo acontecimento, projetando-o no inconsciente aconteceu em 2005, na França, antecedendo assim,
coletivo, mas algumas de suas peculiaridades mais ainda que informalmente, a um reconhecimento ofi-
superficiais podem ser percebidas pela simples ob- cial nacional.
servação: é um teatro em que se mesclam figurino, Essa apresentação na França ocorreu no hipó-
comportamento de atores, exibição de habilidades dromo de Chantilly, com o patrocínio da grife Her-
cênicas, desempenho físico de protagonistas, argu- mes, com a presença de 40.000 pessoas.
mento, e, como no teatro clássico, começo, meio e A nossa comitiva estava composta de 31 pes-
fim. Os figurinos luxuosos, criados ao longo do tem- soas, dentre elas os 24 cavaleiros.
po, oferecem um componente de atração visual que O convite para esse evento foi do embaixador
vem se valorizando de ano para ano. E mais ainda: é Sergio Amaral e a viajem foi viabilizada pelo então
exemplo de happening de participação coletiva, sem governador de Goiás, Marconi Perillo.
nenhuma implicação profissionalizante, o que lhe As testemunhas do evento impressionaram-se
garante certa pureza de coisa espontânea e original. pela acolhida do público que aplaudiu de pé os ca-
O reconhecimento do valor como espetácu- valeiros que estavam montados em magníficos cava-
lo cultural dessa exibição necessitaria, cremos nós, los árabes, colocados à disposição dos mouros e dos
para sua consagração, de duas etapas – uma no âm- cristãos.
bito nacional que deveria ser traduzida na sua qua- O lado curioso do espetáculo corre por conta
lificação como Patrimônio Cultural Brasileiro por de certas dificuldades dos cavalos em obedecer as
manifestação do Instituto do Patrimônio Histórico e ordens dos nossos cavaleiros, dadas inclusive em
Artístico Nacional, com a devida inscrição no Livro português ou mesmo através de gestos convencio-
das Celebrações, à semelhança do que foi feito com nais, aos quais nossos cavalos daqui, devidamente
o Círio de Nossa Senhora de Nazaré de Belém do treinados, estavam acostumados. Outro aspecto cor-
Pará. Isso se fez no dia 15 de abril de 2010. Este fato reu por conta do “enredo” do espetáculo, era conve-
auspicioso, é claro, implica em um maior cuidado no niente não explicitar muito a derrotas dos mouros,
sentido de que As Festas do Divino e as Cavalhadas já que entre os assistentes encontravam-se muitos
de Pirenópolis não se transformem em mero “show” milionários árabes...
turístico, evitando desvirtuamentos na sua qualidade Mas a aceitação foi tamanha que na ocasião
de autêntica manifestação cultural. Manter essa inte- nossa Cidade foi declarada Cidade-irmã de Chantillly.
gridade, reconheçamos, é coisa extremamente difícil.
Outra etapa a ser atingida seria no sentido de
verificar como essa exibição seria recebida fora de
nossas fronteiras. Isto é, como gente de outra cultura
perceberia o espetáculo, e se essa gente compreende-
ria o seu valor artístico, mesmo que oriundo de uma
cultura diferente.
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Costumes
alimentares
Este capítulo refere-se a alguns costumes ali- simples cortesia. Significa que o convidado pode se
mentares do meiapontense, principalmente naquilo considerar bem aceito na comunidade. Esta cozinha,
que se ajusta à sua paisagem cultural. Lembre-se que como é óbvio, originou-se das cozinhas portuguesa,
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a gastronomia, antes de atender uma necessidade de africana e indígena. Do índio herdamos, principal-
ordem biológica, é um ato que se insere no modo de mente, o aproveitamento dos produtos naturais, mas
vida social e tem profundas ressonâncias culturais. sabe-se que esses nossos antepassados nunca foram
Aliás, antes de prosseguir, seria conveniente citar o bons cozinheiros, usavam as raízes, caça e pesca
Mestre Câmara Cascudo que na sua História da Ali- mal cozidos e pouco temperados, e frutos comidos
mentação no Brasil escreveu: in natura. Dos escravos recebemos a habilidade no
Inútil pensar que o alimento contenha apenas aproveitamento dos restos das mesas dos brancos e o
os elementos indispensáveis à nutrição. Contém sábio uso dos temperos, principalmente das pimen-
substâncias imponderáveis e decisivas para o tas. Dos portugueses ganhamos, principalmente, as
espírito,alegria, disposição criadora, bom humor. receitas dos doces e quitandas.
Como temos o argumento “científico” de comparar
Mas pertencemos, sem dúvida, à civilização
o homem aos modelos zoológicos, olhai como os
animais se alimentam! Com lentidão e majestade, do milho, ao invés da do trigo. O milho, especial-
os tipos mais altos da escala. Pachorra, vagar deli- mente o verde, é empregado fartamente nas nossas
ciado, prazer ruminativo, olhos vagos, focinho ao cozinhas de Pirenópolis. Certos estudiosos já consta-
léu. Nenhum come velozmente senão os inferiores, taram cerca de 150 maneiras de se trabalhar o milho
desarmados para a luta competidora, ratos, lebres, como comida, em Goiás. A principal e mais impor-
antílopes. Leões, búfalos, elefantes, gorilas sabem tante forma é a pamonha cozida. Composta unica-
comer! A urgência é inversamente proporcional à mente de pasta de milho verde ralado e cozido em
consciência da força possuída. Melhor é não comer
cartuchos de sua palha ou em folhas de bananeira,
que comer apressado, a menos que se esteja num
com pedaços de queijo-de–minas ou lingüiça é, ge-
self-service, tendo a companhia de um robot.
ralmente, ingerida acompanhada por goles de café.
A culinária goiana, de maneira geral, está liga- Além da clássica pamonha cozida, que hoje é comida
da a três fatores: a sociabilidade, aproveitamento da nacional, temos a pamonha frita, a assada (doce) e o
matéria-prima regional e a própria situação social da curau (a canjiquinha nordestina) também doce. O
dona-de-casa. goiano não dispensa a pamonha durante todo o ano
Certos pratos, por exemplo, a pamonha (pa- e, assim, o milho verde é produzido com lavouras
muna na linguagem indígena), requisitam muitas irrigadas. O angu de milho verde é utilizado para
pessoas, ou melhor, requisitavam no passado, e assu- acompanhar a galinha de cabidela ou o carirú goiano
miam ar de festa. Ainda hoje, um convite para uma – um cozido com vários vegetais e carne, especial-
pamonhada é um gesto amável, mais do que uma mente de frango. Sabe-se que nossos índios cultiva-
vam inúmeras qualidades de milho e eram grandes obtida pela socagem da mistura, no pilão apropriado
consumidores do produto, mesmo sem cozimento. e de madeira, da carne frita (de preferência carne-
Por falar em índios, sobre o assunto culiná- seca), com a farinha de mandioca e temperos. Nas
ria brasileira, Gilberto Freyre diz em Casa grande e refeições comuns é servida com arroz e bananas.
senzala: Aqui em Pirenópolis costuma ser encontrada em res-
A cilinária nacional – seja dito de passagem - fica- taurantes. Quem mora em apartamentos e não pode
ria empobrecida, e sua individualidade profunda- ter seu pilão pode substitui-lo pelo processador, isso
mente afetada, se se acabasse com os quitutes de representa certa heresia, mas...
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origem indígena: eles dão gosto à alimentação bra- Diga-se, de passagem, que a carne-seca daqui
sileira que nem os pratos de origem lusitana nem
é diferente do charque e da carne-de-sol nordestina.
os manjares africanos jamais substituíram.
Ela é demoradamente exposta ao sol e ao sereno e é
O milho seco desdobra-se em três ingredien- mais desidratada. O sereno é importante, pois im-
tes que são matéria-prima de inúmeros pratos: fari- pregna a carne com certa dose de poesia gustativa,
nha de milho, fubá e a canjica. O fubá, além do angu e recebendo, em noites com luar, sua luz, nem se
(comida dos escravos) é componente importante pra fala...
biscoitos e bolos. Merece um destaque especial, verdadeira
Em tempos de antigamente a filha do chefe indí- entronização no altar gastronômico do goiano, de
gena engravidou, sem contacto com homem. O maneira geral, o pequi, que tem o nome técnico
pai, inicialmente furioso, acalmou-se devido a um elegante e significativo – Cariocar brasiliense. O pe-
sonho. Nasceu uma menina muito bonita que re- qui, palavra de origem tupi, é um dos legados da
cebeu o nome de Mani, mas que morreu depois de cozinha indígena. Muito já foi escrito, em prosa e
um ano de existência, sem doenças, sofrimento ou verso, sobre essa fruta mágica. O pequizeiro é uma
dor. Sobre seu túmulo surgiu um arbusto novo e a
bela árvore do cerrado, exclusivamente do cerrado,
terra fendeu-se como mostrando o corpo da morta.
Encontraram raízes muito fortificantes e chamara-
e, quando velho, ostenta um aspecto frondoso, mes-
nas de Mandioca – casa de Mani. mo em plena seca. Sua sombra é acolhedora para
(Lenda indígena, transcrita por Câmara Cascudo) bichos e homens cansados. A região em que se situa
Pirenópolis é rica em pequizeiros, embora, crimino-
Nosso relacionamento com a mandioca, “rai- samente, encontram-se ameaçados pelo agronegócio
nha do Brasil”, como fala Câmara Cascudo, é de mal conduzido, principalmente pela técnica de irri-
absoluta intimidade. Relacionar todos os usos que gação de pivô central que obriga o corte das árvores.
se faz da mandioca é quase impossível e o principal O pequizeiro, antes de nos entregar seus frutos, or-
deles é a farinha de mandioca, diferente, aliás, da namenta-se com uma bela floração de belo desenho
nordestina, a daqui é queimada, macia, amarelada e lindas cores – é, inclusive, alimento para muitos
e com pequenos bijús. A paçoca de pilão era, em animais silvestres, habitantes dos gerais, principal-
tempos idos (na verdade, muito apreciada até hoje), mente veados campeiros, cutias e pacas. Seus frutos
o prato predileto dos viajantes, principalmente dos podem ser colhidos ente fins de outubro e meados
tropeiros, em vista de sua durabilidade – semanas. de dezembro. Estes frutos guardam, no seu interior,
Hoje é apreciada devido a seu inigualável sabor. É de um a quatro grãos amarelos, amarelos, amarelos!
Embora haja uma preferência inconteste do Goiana, como é que faço,
simples pequi com arroz, pode-se compô-lo também Para esquecer de ti´?
com farofa, na galinhada, e até sob a forma de licor. Goianinha, goianinha,
Aos não iniciados na arte de degustação do pequi é O que foi me acontecer?
Fui beijar-te sem cuidado
necessário algum cuidado – deve-se roê-lo superfi-
E o meu coração, coitado
cialmente, como é o costume, pois, debaixo de uma Não pode mais te esquecer.
fina camada de polpa, existe uma bola de finos es-
pinhos que grudam, dolorosa e incomodamente, na Outra paixão culinária destas bandas, em es-
língua e nas gengivas. pecial de Pirenópolis, é a guariroba, a gueroba, para
A temporada de colheita do pequi, do cajuzi- os íntimos. Trata-se de um palmito amargo extraído
nho e da mangaba é encarada como prática esportiva de uma palmeira de aspecto adusto. É comido de
e os proprietários das terras onde eles se encontra- várias maneiras, refogado com molho de tomate ou
vam, pelo menos antigamente, não reclamavam da misturado com arroz. Hoje, o produto se encontra
invasão. Hoje..., sei não! industrializado em conservas e é retirado de palmei-
Dizem as más-línguas que a mudança da ca- ras cultivadas. Existe, em Pirenópolis, uma variação
pital da Cidade de Goiás para Goiânia só ocorreu e uma preferência – um palmito mais amargo e me-
quando o então Governador Pedro Ludovico anun- nor, chamado catulé.
ciou que nas terras da nova Cidade, o pequizeiro Da quitandas, a mais apreciada é o biscoito
dava duas vezes por ano!... de queijo que guarda certa semelhança com o pão
De qualquer maneira, diz-se por cá: Em região de queijo
de pequizeiro não há homem frouxo nem mulher que A relação de sobremesas é vastíssima, princi-
nunca pariu! palmente dos doces de frutas em caldas – mangada,
Hoje, com a técnica das conservas e uso dos cajuzinho, mamão verde, etc.
“freezers”, pode-se desfrutar do pequi o ano todo – O mais delicado doce é obtido com a polpa do
notável desenvolvimento tecnológico! coco do buriti.Tem uma acidez e um sabor silvestre
Finalmente, em homenagem ao pequi, trans- inigualável.
crevemos adiante a Canção do Pequi do escritor mi- Também as rapaduras e as moças de engenho
neiro/goiano Anatole Ramos: são bastante produzidas aqui, e os doces em que
Ninguém tinha me ensinado entra melado de rapadura são sem similares no seu
Como se come o pequi. sabor caipira.
Fui comê-lo sem cuidado, A famosa Pensão Padre Rosa do folclórico Jo-
Com seus espinhos sofri. anito Jaime se gabava de oferecer habitualmente, em
Goianinha, goianinha,
média, 35 qualidades de doces. Herdamos esse hábi-
O que foi me acontecer?
to dos portugueses, devotos de doces e bolos e que
Fui beijar-te sem cuidado,
E o meu coração coitado, costumam dizer que o doce nunca amargou. Atual-
Não pode mais te esquecer. mente, existe, administrado pelo filho de Joanito, o
Ninguém tinha me avisado Restaurante Pensão Padre Rosa, tentando reeditar a
Que é perigoso o pequi. fartura dos tempos do Velho.
Outro restaurante que guarda essa tradição de
abundância é o Restaurante das Flor, com sua enor-
me variedade de pratos goianos.
Achamos que seria conveniente terminar este
texto abordando o paladar. Se reunirmos a ele outros
sentidos como o olhar, o tato e a audição percebe-
mos que todos eles podem ser satisfeitos se souber-
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mos apreciar a Cidade em toda a sua inteireza. Para
isso basta que tenhamos um espírito aberto e quei-
ramos um desfrute amplo e não um simples turismo
redutor.

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