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A rotina antes do paraíso: narrativas sobre a

história de um destino turístico potiguar

TIAGO CANTALICE DA SILVA TRINDADE

resumo O presente artigo propõe-se a realizar era buscar compreender as interações afetivo-
uma breve análise das alterações no cotidiano da -sexuais entre mulheres estrangeiras e homens
comunidade da Praia da Pipa-RN, que foram dire- nativos/locais. Contudo, antes de refletir sobre
tamente impulsionadas pelo advento do turismo o foco central da pesquisa, fazia-se necessário a
– constituinte da paisagem local. Baseando-se nos da- tentativa de remontar a história da praia, partin-
dos adquiridos durante a pesquisa etnográfica, na qual do das trajetórias de vida de alguns/mas de seus/
os moradores mais antigos do distrito tiveram papel suas mais antigos/as moradores/as, explorando
fundamental na construção e registro dessa história como eram o cotidiano, as relações interpessoais
oral, buscou-se questionar a representação prosaica e a organização social na comunidade de Pipa
que se faz dos destinos turísticos como detentores de no período anterior ao advento do turismo, para
uma pureza, autenticidade e ingenuidade, que são logo em seguida apresentar sua atual conjuntu-
ameaçadas pelo intenso fluxo desses forasteiros. As- ra, destacando as mudanças vindas juntamente
sim, o trabalho tenta evidenciar o quanto o turismo com as levas de forasteiros que se espraiam por
pode transformar as redes de sociabilidade locais, ao todas as partes do distrito e como a comunidade
mesmo tempo em que a comunidade receptora cria local foi adaptando-se e também tomando par-
mecanismos de reformulações simbólicas diante des- te nessas transformações. Assim, torna-se mais
sas mesmas mudanças, ou seja, mesmo quando são fácil visualizar, a posteriori, as manipulações e
induzidas por fatores externos, elas são conduzidas de reformulações simbólicas realizadas pela comu-
modo nativo, o que fica claro através da observação nidade receptora do destino turístico de Pipa,
dos câmbios ocorridos nas relações de gênero. que objetiva tirar proveito da chegada dessa ati-
palavras-chaves História Oral. Turismo. Re- vidade, com destaque aqui para a manufatura
lações e Representações de Gênero. Trocas Cultu- das representações locais de gênero empreendi-
rais. Agência. da por alguns homens autóctones e adventícios.
Vale frisar que serão exatamente essas relações
e representações de gênero que desempenharão
Introdução a função de eixo norteador e termômetro dos
câmbios sociais que se deram em Pipa.
Este artigo é composto por parte dos registros
e análises que resultaram do estudo etnográfico Praia da Pipa: uma história feita de
realizado na Praia de Pipa, no litoral potiguar histórias
– foco de grande movimentação turística –,
que serviram de base para o desenvolvimento A Praia da Pipa é um dos distritos do muni-
de meu trabalho de dissertação, cujo objetivo cípio de Tibau do Sul e fica localizada a cerca de

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90 km ao sul de Natal, capital do Rio Grande ses ávidos pela extração de Pau-Brasil e, poste-
Norte. Desde a segunda metade da década de riormente, ocupada por holandeses6. De base
1990, Pipa vem se tornando um grande centro agrícola, o local primeiro se chamava Aldeia de
de atração turística do estado, tão divulgada e São João Batista de Guaraíras. Em 1911 adqui-
visitada quanto a capital potiguar. riu a condição de distrito de Goianinha, já sob
Não há dados disponíveis e precisos no site a nomenclatura de Tibau. Em 1953, foi eleva-
da Secretaria Estadual de Turismo (SETUR- do à condição de Vila; dez anos depois, Aldeia
-RN) sobre Pipa, apenas a informação de que o de São João Batista de Guaraíras foi desmem-
distrito está entre os cinco destinos potiguares brada do município de Goianinha, e durante
mais frequentados, sendo que o fluxo total de sua emancipação acrescentou-se a locução ad-
turistas para o estado, entre brasileiros e estran- verbial “do Sul” ao seu nome original para se
geiros, em 2006 (dados mais recentes), foi de diferenciar de uma localidade homônima no
2.186.880 visitantes. Desse total, pouco mais litoral norte do estado.
de 30% foram de estrangeiros, vindos majo- Nessa época, por volta da década de 1950,
ritariamente de Portugal (6,17%), Espanha Pipa não passava de uma vila de pescadores,
(5,83%), Itália (4,83%), Holanda (2,81%), desprovida de quaisquer intervenções e bene-
Inglaterra (1,47%), Noruega (1,47%), Argen- fícios governamentais. Não havia água enca-
tina (1,39%) e França (1,22%)1. Tratando-se nada, tratamento de esgoto, rede pública de
de turismo doméstico, os principais estados a energia, atendimento público de saúde, rede
emitir turistas para o Rio Grande do Norte são de ensino, muito menos estradas de acesso. O
Pernambuco (13,72%), São Paulo (13,08%), meio de transporte mais usado eram os carros
Paraíba (9,03%), Ceará (8,03%), Rio de Janei- de boi e os cavalos.
ro (7,89%), Distrito Federal (3,00%), Bahia Para podermos vislumbrar melhor a dinâmi-
(2,67%), Minas Gerais (2,25) e Rio Grande do ca social desta praia, quando ela ainda não havia
Sul (1,22%)2. sido descoberta pelos turistas, recorremos à me-
De maneira geral, estes são também os esta- mória de alguns de seus/suas antigos/as morado-
dos e países de origem da maioria dos turistas res/as para tentar delinear a história do povoado
que visitam a Praia da Pipa, só que, ao contrá- da Pipa, não apenas pela ausência quase total de
rio do que ocorre com o resto do estado, pelo registros bibliográficos sobre seus primórdios,
que se pôde observar, a maioria deles parece mas, sobretudo, como método etnográfico,
ser formada por estrangeiros3. Mas duas ques- numa legítima tentativa de captar de que manei-
tões se impõem: como essa praia tornou-se um ra esses discursos vão sendo revelados. Busca-se
grande pólo turístico internacional? Como era explicitar quais os marcos significados na prag-
a vida em Pipa antes da chegada do turismo? mática dessa população como históricos, o que
Dados da contagem do IBGE (Instituto é digno de ser rememorado, como os mitos de
Brasileiro de Geografia e Estatística), feita em origem vão sendo construídos nessas narrativas
20074, nos informam que a população do mu- de vida, na história oral contada por aqueles/as
nicípio de Tibau do Sul é de 10.959 habitan- que viveram todo o processo de transformação
tes5. Esse nome, de origem indígena, significa do vilarejo da Pipa em destino turístico e que é
“entre duas águas”, já que o povoado fica entre transmitida de geração a geração.
a Lagoa Guaraíras e o Oceano Atlântico. A re- A primeira pessoa com quem conversamos
gião já foi habitada por indígenas, “descoberta” durante o trabalho de campo com esse intui-
pelos portugueses, invadida por piratas france- to foi D. Domitila, professora aposentada que

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vive em Pipa desde que nasceu, há 83 anos Essa versão sobre a história do início do po-
eremete-se às histórias que eram a ela contadas voado é reproduzida por sua filha, D. Palmi-
por seus pais e avós para remontar à história do ra, 47 anos, também nascida e criada em Pipa.
lugar. Antes da chegada dos seus familiares na Ao mito de origem narrado por sua mãe, ela
região existiam apenas posseiros. Ela informa acrescenta que esses primeiros moradores, que
que sua família sempre morou em Pipa e que vinham da Itália, traziam consigo vários baús
na verdade foi uma das primeiras a se instalar repletos de ouro, que foram enterrados por
pela localidade. D. Domitila revela que a praia medo de que fossem roubados.
recebeu o nome de Pipa devido a uma pedra,
tomada como ponto de referência pelos pesca- Olhe, um dos primeiros moradores diz que
dores, que a achavam semelhante a um barril foi os meus bisavós. Meus avós, bisavós, né?
de pipa, daqueles em que se armazena vinho7. Contava minha vó, isso aí já é uma coisa que
eu lembro que ela me contava, que eles vieram
Toda vida, [minha família] sempre foi daqui. embarcados. Era como se fosse uma história de
Quer dizer, o meu avô, meu bisavô, meu avô que tinham fugido, que eles eram italianos, né?
não, era meu bisavô, ele era da Itália, ele veio da E vinham fugidos, né? Que é contrabando, né?
Itália, disse que pra lá... E não veio só ele não, Então, eles se ancoraram aqui e fizeram... Aí mi-
na expedição que ele veio, veio muita gente pra nha mãe sempre conta assim, que diz que minha
cá, porque disse que lá tinha uma lei, que eles vó, minha vó não, minha bisavó, diz que esses
não... o... não sei se essa época era governo ou se morro aqui, que isso aqui era tudo terra. [...] Aí,
era rei, não sei o que era... Eu sei que disse que ela disse que foram os primeiros. Era o povo de
não aceitaram lá o que ele queria, né? Aí fugiu minha vó que era dos Castelo, nera? Que eles
um povo, como hoje em dia o povo num foge chamavam de Siliveira, era Silveira, mas cha-
né? Aí, fugiram nessas barcaças, que disse que mavam Siliveira, tá entendendo? Aí era o velho
era umas barcaça, que antigamente tinha umas Castelo, Castelo Siliveira e diz que trazia, minha
vela assim que cruzava, disseram que o povo vó contava, meu bisavô trazia, quando ele vi-
saiu tudo naquelas barcaças [‘É Nau!’, completa nha de contrabando, trazia... antigamente baú,
Dani, sua neta.] e chegaram aqui. Quando che- era cuia de quarto, que era de madeira, cuia de
garam aqui no Brasil, aí muita gente se assituou quarto, essas coisas... disse que ele trazia assim,
por aqui, de Goianinha pra cá, muita gente se o barco cheio, só de ouro e media. Aí pra nin-
assituou onde esse meu bisavô se assituou aqui. guém num pegar, ele enterrava. [Quem fazia
Aí, diz que ele se agradou daqui e o que eles fa- isso?] Meu bisavô. Enterrou muita... Eu digo até
ziam quando chegaram aqui no Brasil era mas- hoje que aquele nojento devia ter deixado pra
catear, era comprar o tecido, comprava uns baú gente... [risos] (D. Palmira, 47 anos, proprietá-
grande e comprava um animal e andavam ven- ria e administradora de um camping).
dendo aqueles tecidos. Chamavam mascate, né?
Andando, mascateando. Então era isso o que A chegada de italianos fugidos por meio de
eles faziam. Então meu avô andando por aqui, naus, que aportaram em Pipa, trazendo consi-
meu bisavô andando disse que admirou-se mui- go várias botijas de ouro, configura-se em um
to disso aqui e então comprou um terreno bom mito de origem, que nega sua ascendência por-
aqui, dois terrenos grandes e que pretendia mo- tuguesa e inaugura um outro descobrimento,
rar aqui, viver aqui, casar, como de fato fez tudo uma colonização distinta do resto da região,
isso (D. Domitila, 83, professora aposentada). afinal esses indivíduos haviam se deslocado a

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fim de encontrar um lugar para se estabelecer nha, tudo trabalhava. E todo mundo trabalhava
e povoar, não meramente explorar, como evi- de agricultura, quando era no tempo da, da...
dencia a fala de D. Domitila. Está aí presente De outubro em diante aí começava as farinhada
também a representação da ousadia e da bravu- e terminava assim de fevereiro, março. E pesca-
ra de um povo que desafiou autoridades, des- ria era durante o verão todinho, aí o povo pes-
bravou mares e se instalou numa terra inóspita, cava, havia muito peixe. Agora, o preço do peixe
ademais sua astúcia e sagacidade em esconder era quase nada, num sabe? Era bem baratinho.
seus tesouros para não serem fáceis alvos de sa- [Vendia pra outras cidades?] Vendia, às vezes
queadores8. aparecia gente assim que vinha do sertão, desse
Sabe-se, no entanto, que Pipa manteve-se meio de mundo, comprar peixe aqui e às vezes
praticamente isolada do restante do estado até não vinha. O meu avô possuía curral de peixe9,
o início da década de 1970. Antes disso, o local disse que quando era no tempo de safra de peixe,
se limitava a duas ruas e algumas poucas famí- que dava no curral, dava muito peixe, ele ficava
lias. As pessoas viviam da pesca e da agricul- com o peixe todo aí sem ter quem comprasse,
tura, à base principalmente de mandioca para porque o povo num vinha comprar, era muito
produção de farinha. Eram esses os dois pro- longe e também não havia transporte, só era a
dutos comercializados pelos moradores de Pipa cavalo que o povo vinha aqui. A pé e a cavalo. [A
com outros povoados da região do entorno. estrada ia até onde? Ia até Goianinha?] A estrada
Mas, de acordo com os interlocutores, a pobre- ia até Goianinha, mas não prestava, era só de
za era predominante, afetava a todos, faltava de areia, num sabe? Areia, os matos, não dava pra
tudo e nem sempre havia compradores. passar um carro (D. Domitila).

Eu alcancei aqui com muito pouca gente. Era... Essas falas, aqui trazidas, são relevantes,
a Pipa era muito pequena pra hoje em dia, era pois nos ajudam a compreender a amplitude
pequena demais. Tinha poucas famílias, alcan- das transformações pelas quais a Praia da Pipa
cei muita gente que já morreu, que era... Essa passou após o advento da atividade turística.
rua, que a gente mora, essa rua de baixo, que Dessa forma, conversei ainda com Seu Mado-
chama Rua de Baixo, né? Era fácil de contar as la, um ex-agricultor, que mora neste pedaço de
casas que tinha e a Rua de Cima era também do mundo desde que nasceu, há 70 anos, e que
mesmo jeito. Era só essas duas ruas, pra canto também presenciou todas essas mudanças. Esse
nenhum mais a gente saía. Só tinha essas duas senhor de cabelos brancos bem finos, dentes
ruas. [E o pessoal vivia mais de quê?] De pesca, falsos, mas de sorriso verdadeiro, anda com a
o homem que dava pra pescar era de pescaria, ajuda de uma bengala. Quando entramos em
num sabe? E quem dava para a agricultura, era sua casa, a convite de uma de suas filhas, após
agricultor. Às vezes, quem era agricultor tam- ter me apresentado, sentamos num banco de
bém era pescador, fazia as duas coisas. E aqui o madeira comprido, de tom cru. Lá, ele me con-
povo vivia disso, não tinha... O pessoal aqui não tou as lembranças de um tempo em que Pipa
tinha nem do que viver, era uma coisa... Sempre era esquecida e quase ninguém sabia localizá-la
havia muito peixe, havia muito peixe. Farinha, no mapa:
quando eu era menina ainda, aí tinha farinhada
aqui, que o povo botava muito roçado, muita Rapaz, a Pipa antigamente era um... uma som-
farinhada nas casas de farinha. [Tinha muita brinha. E as casa era tudo de taipa, coberta de
casa de farinha?] Tinha umas cinco casa de fari- palha de coqueiro, num é? Só quem possuía

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uma casa, a casa coberta de telha era aquele Em suma, pelo que podemos ver nesses
melhorzinho, aquele melhor que nem Manuel relatos, Pipa se resumia a muita terra e pouca
do Hemetério, o véio Chico Castelo, que era o gente. As áreas mais próximas da praia tinham
pai de D. Domitila, Antônio Pequeno e algu- cada uma seu dono, mas as áreas de cultivo,
mas pessoas, mas as outras era tudo casasinha que ficavam na região mais alta e afastada,
comum, casasinha de, de... [Mas esses outros eram terras comuns, como diz Seu Madola, era
que tinham uma melhor condição trabalhava terreno solto, mas quando alguém começava a
com a mesma coisa?] É, só na roça e pescaria. tratar da área para cultivar alguma coisa, nin-
[Todo mundo aqui trabalhava em pescaria e guém mexia. Depois de tirada a safra, a terra
roça.] Pescaria, a maior parte aqui foi uma praia era abandonada, formando as capoeiras.
que transportava peixe pra fora, farinha pra fora,
aqui se achava cinco casa de farinha. Cinco casa As roças, os plantios de roça era aqui pra dentro,
de farinha. [E essas coisas vendia pra onde? Pra na mata. Aquilo ali que brocava o mato, come-
Natal?] O peixe, o matuto vinha, toda semana çava no mês de Santana [Julho], cortar mato
vinha apanhar, vinha comprar pra levar pra San- né? Santana, agosto, setembro, quando era em
to Antônio, Nova Cruz, por aquelas quebrada outubro se ia plantar. Quando o inverno era
de acolá tudinho, né? Era que nem farinha. [Era mais favorável, nascia toda, mas quando não era
pouca gente que morava por aqui?] Pequeno. Só perdia uma parte, outra, mas outra se livrava.
tinha mesmo moradia na rua de baixo, ali hoje É outubro, novembro, dezembro, janeiro, até
onde é a praia, aquilo ali era uma rua, onde é fevereiro se plantava roça aqui. [Mas essas roça
aquelas barracas. A igreja era em frente àquela tinha dono ou era terra de ninguém?] Todos
barraca que tem de, do menino lá, a derradeira nós era produtor, cada uma família botava uma
que tem. Ali era uma igreja, a igreja. [Então essa parte. [Mas o terreno não tinha dono não? Era
aqui é nova?] É nova. Essa aqui tá com cinquen- cercado?] Não, era bem mesmo da comunidade
ta e tantos anos de construída. A igreja lá, aon- (Seu Madola).
de tem aquelas barraca, aquilo ali era uma terra
preta, tinha um pé de fruta-pão, um pé de fruta- O ritmo de vida em Pipa era radicalmente
-pão bem na porta. Os bois de rede, você conhe- diferente. Sem energia elétrica, o sol é que di-
ce Boi de Rede? [A dança? Boi de Reis?] Boi de tava a hora de dormir e acordar. Com os seus
Rede, que tem Boi Calema e tem... esse é Boi de primeiros raios ou com a cantoria dos galos
Rede. Essa era a diversão que tinha antigamen- ainda de madrugada, as pessoas se levantavam
te. [Mas era do pessoal adulto ou das crianças?] para mais um dia de labuta. O candeeiro, ao
De toda nação, toda a comunidade. Era Boi contrário, trabalhava poucas horas, pois basta-
de Rede, era cantor de viola, era pastoril e era va o sol descer no horizonte e se deitar lá para
aquele ZambêŒ, aquele que bate aqui ó [entre as as bandas da Lagoa Guaraíras, que as pessoas se
pernas] [Que ainda toca em Tibau?] Cabeceira aprontavam para dormir.
[distrito de Tibau do Sul]. Aquele que bate aqui. Pipa também contava com uma divisão do
E pastoril, Drama. [Como é que é o Drama?] O trabalho pouco complexa, baseada no gênero,
Drama é, é... cai que nem uma... como é que na idade e nas relações de parentesco. Todos sa-
apresenta... [Um teatro?] Um teatro. É que nem biam qual era o trabalho do homem e a função
um teatro (Seu Madola, 70 anos, ex-agricultor e da mulher. Ao homem cabia realizar a pesca,
tirador de coco). construir e consertar os barcos, preparar os
terrenos para receber as sementes, arrancar as

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mandiocas, moê-las e cozinhar a farinha, assim fato de que a maioria dos estudos sobre tais
como deslocar-se até Goianinha para vender comunidades privilegia o ponto de vista do
peixe e farinha na feira. As mulheres, além do homem, ou seja, do pescador. Assim, segundo
trabalho doméstico, estavam incumbidas das ela, a agricultura, pensada como uma ativida-
tarefas de retirar água das cacimbas – esses po- de feminina, termina por ser subsumida por
ços artesianos só existiam em alguns pontos da esse ponto de vista. Woortmann ainda propõe
Rua de Baixo –, elas também contribuíam na a ideia de que ao espaço natural desses locais
agricultura e ajudavam na fabricação da fari- sobrepõem-se espaços sociais, definidos com
nha, raspando a mandioca, cevando a moenda base no gênero. Dessa forma, o mar é percebi-
e limpando a goma. O processo da produção do como domínio do homem e a terra, como
da farinha é detalhado por D. Domitila: da mulher, com alguns pontos de trabalho con-
junto, a exemplo da praia.
Os homens era pra arrancar a mandioca, bo- Entretanto, pelo que se pôde ver, em Pipa,
tar pra casa de farinha e vinha em animal e as esse esquema dicotômico não tem contornos
mulheres raspar, né, a mandioca, cevar, aí era tão bem definidos. Apesar de o mar ser real-
uma roda, dois homens, um de um lado, ou- mente um espaço masculino, como afirma D.
tro de outro, moendo. E a mulher cevando, aí Palmira, a terra não era um domínio totalmen-
caía aquela massa, aí daquela massa que caía, te feminino. As atividades ligadas à agricultura
tinha uma prensa, aí botava uns negoço como eram desempenhadas conjuntamente, tanto
umas tábuas, assim, assim, assim [uma de um por mulheres quanto por homens, o que se
lado da outra], aí botava aquilo ali com uns pa- estendia também à produção de farinha. Essa
nos de carnaúba, tirava as folhas de carnaúba e bipolarização espacial, portanto, não é condi-
botava aquilo naquela massa em cima, aí quan- zente, nesses moldes, com a realidade aqui es-
do acabava tinha uma prancha desse tamanho tudada11. O domínio da mulher talvez estivesse
assim, botava em cima, tinha um fuso assim e mais atrelado ao espaço da casa em si.
tinha um pau que botava naquele fuso que era As crianças, por sua vez, brincavam com a
furado e aí rodava, aquilo rodava, rodava e ia imaginação e a criatividade. Numa terra com
imprensando, ia imprensando e aquela aguinha poucos habitantes, carente de uma série de re-
ia saindo da massa, até ela enxugar, ficava bem cursos, os brinquedos tinham de ser inventados
enxutinha. Aí tirava daquela prensa, botava no ou, então, os objetos tinham de ganhar novos
poço, as mulher penerava, aí ia pro forno, né? significados. Assim, faziam-se cata-ventos de
Secar aquela massa, aí era a farinha. palhas de coqueiro, as latas viravam carros, as
mangas tornavam-se vacas e bezerros, as espi-
Pelo que esses relatos deixam-nos entrever, gas de milho se transformavam em bonecas.
em Pipa, as atividades produtivas não se limita- Logicamente se brincava na praia, brincava-se
vam à pesca. Apesar de sua origem ser atrelada de roda, cabra-cega, mancha, entre outras brin-
à ideia de uma comunidade de pescadores, ha- cadeiras.
via também a produção agrícola e a fabricação Os adultos divertiam-se através dos folgue-
de farinha, que, juntamente com o peixe, era dos, do Boi de Rede, do Coco de Zambê, das
um item comercializado nas redondezas. Para cantorias de viola, do Pastoril e do Drama12,
Ellen Woortmann (2007), que pesquisou algu- além das festas religiosas, com destaque para
mas comunidades litorâneas da costa potiguar, as comemorações do padroeiro, São Sebastião.
o realce dado à atividade de pesca deve-se ao Aliás, a religiosidade estava sempre muito pre-

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sente na vida das pessoas. O catolicismo era sua soas não esperava por ninguém, né? As minhas
única expressão e as festas de santo movimen- coisas era eu quem fazia. Aí lá, ele [- seu pai -] di-
tavam todo o vilarejo. D. Domitila, mostrando zia que se eu tivesse o atrevimento de ir falar com
o quanto a dedicação à religião era expressiva, ele [- seu namorado -], me dava uns bofete e era
recorda que para construir a igreja atual todas assim. Ninguém tinha o direito de nem beijar,
as pessoas ajudaram, carregando pedras para de nem de andar pra canto nenhum, era proibi-
erguer seu alicerce e suas paredes. do tudo. Sabe como é tudo? O negoço de casar,
As orientações religiosas eram responsáveis chegava o dia: ‘A senhora quer me dar sua filha
também pela vigília que os pais faziam sobre em casamento?’ ‘Dô!’, se tava tudo certo, ‘Dô!’,
os namoros. O controle sobre esses relaciona- aí ia ela pra esperar pelo casamento pra poder
mentos era extremamente rígido. As famílias você ter direito... [risadas] [Mas num tinha aque-
temiam que suas filhas fossem desonradas e, la história de ficar prometendo a filha, mesmo
assim, comprometessem suas chances de selar antes de nascer, pra um outro?] Não, não, tinha
uma aliança duradoura e abençoada pelo matri- não. Quando eu nasci, não alcancei... desde que
mônio. Esse controle, além dos olhares vigilan- nasci não. Mas o negoço dos namoro era difícil,
tes, incluía ameaças verbais e físicas. Os relatos ninguém tinha liberdade não (D. Domitila).
colhidos comprovam essas informações e acres-
centam que a maioria dos casamentos dava-se Os namoro, antigamente, pra o rapaz dar um
entre pessoas da própria comunidade, apesar de beijo numa moça era preciso ser roubado, quan-
algumas vezes serem estabelecidos matrimônios do a véia, quando o pai mais a mãe cochilava, o
com pessoas de outros lugarejos. Não obstan- camarada tava em riba dela dando beijo. Hoje
te, apesar do tradicionalismo que envolvia os não, hoje até os padre diz: ‘Vai beijar não?’ [ri-
relacionamentos amorosos, não havia, segun- sos] [Aqui tinha a tradição de prometer a filha
do os interlocutores, o costume de ocorrerem ao filho de um amigo? Do casamento ser arran-
casamentos prescritos, comuns em outras regi- jado?] Não, não. O rapaz quando dava de na-
ões, em que as filhas, às vezes logo após o nas- morar com uma moça, aí tinha uns que passava
cimento, eram prometidas a serem casadas com dois, três anos, quatro, aí quando, e às vezes,
determinados rapazes, visando estabelecer e/ou porque você sabia, a lenha perto do fogo, não
estreitar relações entre duas famílias distintas. tem como... Aí quando dava fé o cabra mexia
Todavia, os interditos eram numerosos. com uma, aí quando aparecia a história, aí o
pai mandava chamar seu Fulano, aí casava, né?
Ah, meu filho. Os namoros de antigamente, Quando num queria, vai pra justiça e a justiça
meu filho, misericórdia, não pegava nem na obrigava. Mas hoje não, hoje ele casa se quiser.
mão um do outro. Eu me casei em [19]48... Foi! [... Eu sei que o senhor é daqui, mas sua mulher
Quarenta e oito eu me casei, em junho de 48, aí, é daqui também?] É. [Era geralmente assim,
nessa época, em 48, já era muita coisa avançada, duas pessoas nascidas aqui?] É, mas tinha gente
mas eu não tinha o direito, que lá em casa tinha que chegava, namorava com os de fora. Tanto
uma casa de farinha, assim perto da casa, já pa- as daqui casava com os de fora, como as de fora
rede e meia com a casa. A casa de farinha assim casava com os daqui também (Seu Madola).
pelo sul, a casa assim [na frente]. Eu não tinha
o direito de ir com meu namorado nem pra casa Os relatos acima mostram como os relacio-
de farinha, que, às vezes, a gente queria ir ajeitar namentos amorosos eram marcados por uma
qualquer coisa pra comprar, porque aqui as pes- série de prescrições, que pretendiam minimizar

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os perigos previsíveis que a “lenha perto do fogo” getação densa e abundante, o mar era bem mais
podia trazer à honra da família, haja vista que recuado. Onde atualmente existe uma fileira de
tais relações, aos olhos dos pais, pareciam pre- barracas (quiosques) rentes ao quebra-mar, na
determinar as ações (Sahlins, 2003) e algumas praia principal, existia uma rua de areia preta,
delas geralmente levavam ao descrédito social e algumas casas e, antes do mar, um coqueiral.
moral dos sujeitos transgressores. Dessa forma, Seu Madola diz que para se ter uma noção do
qualquer espécie de contato mais íntimo, como quanto o mar era afastado, havia um pátio de
um beijo, deveria ser efetuado com bastante vaquejada na frente da Rua de Baixo.
atenção e cautela, caso contrário, os mecanis- A roça e as capoeiras ficavam em oposição
mos sociais (formais e informais) de controle às praias e junto com elas compunham os prin-
dos corpos e dos desejos seriam prontamente cipais referenciais da região. Sua orla, de acordo
acionados. com D. Palmira e Seu Madola, seguia a seguin-
Outro ponto a se destacar é que as intera- te divisão, a partir do seu limite com a sede do
ções com pessoas de fora não se limitavam ao município de Tibau do Sul: Praia de Cacimbi-
comércio. Esses sujeitos tomavam parte tam- nhas (o nome refere-se às grandes e inúmeras
bém no mercado matrimonial pipense, como depressões que se formam no solo marinho),
mostra a fala de Seu Madola. “Os (as) de fora” Praia do Madeirinho, Praia do Madeiro, Praia
não eram pipenses, mas seguramente também do Curral (em referência a um curral de pesca
não provinham de áreas muito distantes do que ainda se encontra no local, porém abando-
atual distrito. Eram pessoas, conforme diz D. nado) ou Praia do Canto, Ponta do Morcego,
Palmira, oriundas dos municípios da redonde- Praia do Porto, Praia da Pipa (Praia da Frente
za, como seu falecido pai, que era de Barra de ou Praia Principal), Praia dos Afogados (um
Cunhaú, praia vizinha. alerta para o mar revolto), Praia do Moleque,
Ao trazer esses dados, não se quer negar Praia da Cancela, Praia das Minas (em referên-
a possibilidade de agência desses indivíduos, cia às histórias das botijas enterradas com ouro)
deseja-se apenas frisar que numa sociedade um e Praia de Pedra D’água, no limite com o distri-
tanto quanto isolada, em contato com outros to de Sibaúma. Algumas dessas denominações
grupos sociais orientados por valores e insti- foram alteradas com a chegada do turismo,
tuições semelhantes, tendo apenas a religião como conta Seu Madola:
católica, em sua vertente mais popular, o pa-
rentesco e a divisão sexual do trabalho como Olhe, a Praia dos Golfinhos foi montado depois
organizadores sociais, o campo de ação dos que o pessoal [os turistas] chegou. A praia ali do
indivíduos tornava-se bastante limitado, cerra- Amor foi depois também que o pessoal chega-
dos entre atos prescritivos e interditos. Isso fica ro. Agora, os veranistas de Goianinha, quando
evidente nas falas, explicitadas acima, sobre a vinham veranear foi que botaram o nome daí,
conformação dos relacionamentos amorosos, do alto, do Morro dos Amores, era onde eles
que exigia o respeito aos ideais de masculinida- paqueravam né? [Mas é mais pra cá, né?] É aí,
de e feminilidade estabelecidos coletivamente. esse morro aí, era esse morro né? Eles subiam e
Contudo, as diferenças entre a Pipa de hoje paqueravam ali em cima, fazer amor por lá por
e a de sessenta ou cinquenta anos atrás não se cima, por isso que botaram o nome do Morro
limitam ao modo de vida. A geografia do local do Amor. Agora, depois foi que passaram pra...
também era muito distinta. Além das grandes depois que pôs a chegar esse povo, a Praia do
faixas de terra sem nenhuma habitação, da ve- Amor. [Agora, a Praia do Amor sempre teve esse

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nome ou era outro nome ali?] Não. Foi agora lo. Era assim, não tinha estrada, não tinha nada
desses tempos pra cá. Era os Afogados. [E os (D. Domitila).
Golfinhos, tinha outro nome?] Os golfinhos
chamava a Praia do Madeira, Madeirinha e o O fluxo desses visitantes era baixo e se
Canto. O Canto é esse aqui, logo esse aqui [a restringia ao período do verão, que coincide
primeira ponta], o Madeira é aquele que tem com o das férias escolares. Dessa forma, uma
o hotel em cima e Madeirinha é aquela outra vez ao ano já era esperado que alguns veranis-
ponta que tem pra pegar Cacimbinhas. tas chegassem à praia. Contudo, a partir da
segunda metade da década de 1970, surfistas
A notória mudança nos modos de vida, nos começaram a aparecer na região, seduzidos pe-
referenciais da praia e na estrutura da cultural las ondas, que até hoje atraem boa parte dos
local, que se deu com maior intensidade nos visitantes. Os interlocutores os consideram res-
últimos 15 anos, foi induzida por um elemento ponsáveis pela disseminação do nome da praia
externo, o turismo, mas, como veremos, e pa- pelo estado e pelo país, atribuindo-lhes o posto
rafraseando Marshall Sahlins (2003), foi con- de descobridores da Pipa.
duzida e orquestrada de modo nativo.
Começou vir, olhe, as primeiras pessoas que
O Paraíso são os Outros! – da chegaram aqui foram... quem descobriu mais
construção turística de um destino isso aqui foram os surfista, que vinham pra cá
e aí saíam espalhando, né, que a praia era mui-
Na década de 1960, antes mesmo da aber- to boa, tudo mais. Aí haja vir gente fotografar,
tura da estrada atual, quando o distrito não levava pra lá, saía revista, saía atrás e aí foi con-
possuía energia elétrica nem água encanada, tinuando. [E eles ficavam onde?] Ficava aqui...
os primeiros visitantes começaram a aparecer, quando era esses surfista, ficava na casa de Deda,
vindos principalmente do município de Goia- do finado Deda, que era um pequenininho que
ninha, a 27 km. A pequena distância tornava- tinha aqui, que fazia comida pra eles, ficava na
-se grande quando levamos em consideração as casa de Marina, ficava na casa de Eunice e pra
condições da via de acesso e os meios de trans- eles dormirem, pra você vê, pra eles dormirem,
porte utilizados. eles amarrava as rede nos coqueiro, de um co-
queiro pra outro. Cê acha que eles no verão, eles
A estrada ia até Goianinha, mas não prestava, procurava o carro? Não, dormia assim, ao relen-
era só de areia, num sabe? Areia, os matos, não to mermo, dormia dentro dos carro. Aqui podia
dava pra passar um carro. Aí quando o pessoal dormir com o carro aberto, num tinha quem
de Goianinha começaram a... que deram com bulisse em nada, neste tempo não tinha quem
essa praia aqui, que começaram a veronear, que bulisse [...] (D. Domitila).
chamavam veronista, os que vinha de Goiani-
nha, Natal, né? Aí chamavam de veronista, não [E depois, dos veranistas de Goianinha, quem
era turista naquela época, era veronista. Aí eles foram os primeiros pra vir pra cá visitar?] Os
vinha, passava o verão aqui, o mês de janeiro, surfistas. Na década de setenta, de setenta e sete
fevereiro, aí vinha em carro de boi. Carro de pra setenta e oito apareceu os primeiros surfistas
boi, não sei se você conhece carro de boi, né? Aí por aqui. Abacate foi um dos primeiros surfistas,
vinha no carro de boi e quem podia, os mais ve- era Abacate, acho que era Zé Ramalho, o nome.
lhos, vinha naquilo, os mais novo vinha a cava- Edivaldo veio mas eu num conhecia Edivaldo

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não... Mas sei que foi esse Abacate, que até hoje gringos... Aí começaram a comprar aqui em dó-
eu sei que o Abacateiro ainda tá lá, né? Que foi lar, né? As coisas. [E era por agência que eles
em homenagem a ele. Mas Edivaldo foi... [Aí vinham?] Que eu saiba não, visse? Eles vinham
plantaram um abacateiro em homenagem a sozinhos... E aí quando vinha, ficava embeleza-
ele?] Não, o Abacateiro é o nome do ponto [de do com a natureza e eles queriam ficar, aí, in-
surf.] [...] Aí Abacate começou a namorar com ventavam de comprar... Aí compravam e como
a filha de Manoel do algodão, com Marleide. o dólar na época era muito mais alto... Aí eles
Aí ela começou a namorar com esse surfista, aí compravam aqui barato, barato demais ficava
disseram que engravidou, não sei [...] Aí Deda, um terreno aqui... compraram aqui um bocado
que era aleijadinho assim, era quem acolhia os de coisa com dólar (D. Palmira).
surfista, que era quem cozinhava pra eles, que
fazia tudo pra eles. Aí eles ficavam na casa de Os gringo? Rapaz, os gringo chegaro aí de quinze
Deda. [Acampados?] Acampados, não. Ficavam anos pra atrás. Um pouco mais ou menos, né?
na casa dele mesmo. [...] Aí ele é quem cozi- Quer dizer que algum que vinha, só vinha só e
nhava pra esses surfistas, todo mundo que vinha voltava logo. Mas esses que tão assituado aí, que
procurava logo Deda... [Então era mais homens vieram, assim, de botar comércio, pra melhorar
que vinha pra cá.] Era só homem, só homem... mais a situação, foi de quinze anos atrás pra cá,
E era assim, mais em Jipe, nesses carros assim num foi? [Eles viajavam geralmente sozinhos ou
(D. Palmira). já vinham em grupo?] Não, eles sempre que via-
javam... naquele tempo era mais calmo do que
Pouco tempo depois da chegada desses pre- hoje. Vinham sozinhos. [Nesse tempo já existia
cursores ádvenas, levas de outros surfistas e hi- pousada?] Já, tinha pousada, a primeira pousada,
ppies, vindos de Natal, Fortaleza, João Pessoa e o primeiro hotel que foi construído aqui na praia
Recife, começaram a aportar em Pipa, encanta- da Pipa foi aquele dali que chamam, como é? Da
dos com as suas belezas naturais e rusticidade Madeirinha. [O Village?] O Village e aí aquele
de seu povoado. da ladeira, que desce pra ladeira do Amor. [O
Depois de algumas melhorias na infraestru- Sombra e Água Fresca?] Que foi de Elôncio. [É o
tura de base, como a instalação de uma rede de Sombra e Água Fresca?] Não, aquele que tem ali
abastecimento de água, no início dos anos de embaixo. O Hotel da Pipa. Foi o primeiro que
1980, a distribuição pública de energia e a cons- funcionou aqui (Seu Madola).
trução de uma via asfaltada, no início da década
seguinte, um número cada vez maior de pessoas Nesse período, chegar em Pipa ainda era
deslocou-se para lá, vindas de cada vez mais lon- muito atribulado; por isso, quem quisesse co-
ge, muitas delas da região Sudeste do país. Foi nhecer a praia tinha que fazê-lo por conta pró-
após a construção da estrada entre Goianinha pria, e era assim que esses viajantes realizavam
e Pipa que também apareceram os primeiros suas excursões, de forma independente, sem a
turistas estrangeiros. Daí em diante, surgiram mediação de agências de viagens. Muitos des-
as primeiras pousadas e hotéis, que, em pouco ses brasileiros e gringos13 ficaram estonteados
tempo, começaram a dominar a paisagem. com Pipa e adotaram-na como local de resi-
dência. Os estrangeiros tinham mais facilidade
Os gringos? Acho que na década de [19]80... de comprar terrenos e imóveis devido à força
Acho que depois da estrada, visse? Em 89 mais de suas moedas. As terras que antes ficavam ao
ou menos, entre 88 e 89, que começou a vir os relento e que pouco ou nada valiam como mo-

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eda, do dia para a noite, começaram a adquirir se canto, quando era no ano que entra já não
mais e mais importância frente aos anseios dos plantava mais ali, já soltava aquele mato, já ia
ávidos empreendedores do turismo. A terra, plantar noutro mato. Todo mundo trabalhava
antes subestimada, por existir em abundância, aí, agora quando chegou, começou a chegar tu-
conquistou um valor de troca nunca imagina- rista e começou a comprar terreno, aí o povo se
do pelos antigos moradores. apossou tudinho, né? Cada um que quisesse o
Finalmente os tesouros de Pipa foram en- seu pedaço (D. Domitila).
contrados, foram desenterrados do anonimato
e vendidos aos quatro cantos do mundo. Ao Com a metamorfose do vilarejo em paraíso
contrário do que pensavam seus antigos mora- turístico, deu-se um processo de ocupação de-
dores, eles não se encontravam em botijas, es- sordenada, pois após vender suas propriedades,
condidos em minas, mas sim à vista de todos. os moradores de Pipa apossavam-se de outros
Entretanto, foi aos olhos dos forasteiros que espaços, cada vez mais em direção à área antes
eles se revelaram, informa Seu Madola: “Aqui destinada às roças. Estes mesmos moradores,
ninguém sabe... nascemos e nos criemos aqui, que viviam da pesca e da agricultura, em sua
mas ninguém sabia a boniteza daqui, porque maioria, abandonaram suas atividades tradicio-
aqui tudo era cheio de coqueiro, de mangueira, nais e tornaram-se, a partir da invasão turística,
de tudo. Nós achava feio, já eles hoje sente por- camareiras, garçons, porteiros, recepcionistas,
que tá tudo descoberto. [Construído?] É!” auxiliares de serviços gerais, motoristas, segu-
E, a exemplo de outras localidades, os “sa- ranças e caseiros dos empreendimentos dessa
queadores”, representados pelos hoteleiros, atividade globalizada. A dimensão mercadoló-
munidos de um arsenal discursivo de teor de- gica passou a governar as relações sociais (Wo-
senvolvimentista, não tardaram em aparecer, ortmann, 2007).
cobiçando a pilhagem dessas preciosidades.
Mas os seus legítimos proprietários, por sua vez, El turismo es parte de un gran movimiento de
demonstrando a mesma ousadia e astúcia de capital. Veraneantes y turistas, forman parte del
outrora, não titubearam em tomar parte na di- proceso global de integración a un nuevo or-
visão dessa fortuna. A metáfora é válida, pois o den económico. […] los turistas cambiaron a
turismo chegou de surpresa, sem pedir licença, las personas del lugar. Buscando reencontrar el
e impulsionou, sem pestanejar, a transformação paraíso perdido en sus ciudades, corren el riesgo
da feição do distrito. A maior parte das pessoas de construir el infierno para los ‘auténticos’ del
do local, em busca de uma melhor qualidade de lugar, repitiendo lo que ya ocurrió en otras loca-
vida, não hesitava em ceder à especulação imo- lidades ‘paradisíacas’. Por más ‘alternativos’ que
biliária e em se desfazer de suas propriedades. se piensen, son parte del proceso que alteró el
movimiento y la organización del espacio/am-
Só os terrenos que era aqui perto da... aqui na biente (Op. cit., p. 481).
Pipa mermo, pertinho, que a gente mora hoje
em dia por aqui, eram esses terreno mesmo que A atividade do turismo mudou, assim, não
tinham dono, num sabe? Esses terrenos mais pra só a paisagem local, mas também as relações
lá adiante, onde esse povo tão circulando hoje de trabalho. Antes cada indivíduo era proprie-
em dia, esses terreno o povo plantava, mas não tário de sua terra e dono de seus instrumentos
era de ninguém, plantava, fazia um roçado... de produção, organizados como trabalhadores
Eles faziam uma queimada esse ano aqui nes- autônomos com vistas à subsistência, mas que

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agora, inseridos numa lógica capitalista, passa- tações neoliberais do livre-comércio15. Como
ram a vender sua força de trabalho, cada vez resultado, grande parte de suas matas foram
mais especializada, conformando uma comple- devastadas, dando lugar a pousadas, restauran-
xa divisão social do trabalho, aos proprietários tes, hotéis, lojas e resorts. Algumas espécies da
dos equipamentos turísticos. Mata Atlântica local entraram em processo de
Em oposição, porém, à consideração feita extinção, como a Guabiraba16. Ademais, inú-
por Woortmann (2007), a chegada do turis- meros desses hotéis encontram-se sobre falésias
mo, a apropriação das terras cultiváveis por que, sem a proteção da cobertura vegetal, não
hotéis e outros meios de hospedagem, além resistem à força das ondas e findam por ceder
da ampliação da oferta de trabalho, através da mais rapidamente.
disponibilização de (sub)empregos por esses
mesmos equipamentos, não alteraram apenas a Si el espacio es un ambiente, un ecosistema,
condição social da mulher, o que para a autora él no es apenas un ambiente natural, dado,
desembocara em uma maior subordinação ao más un ambiente cognitivamente aprendido
homem. Apesar de o mar (visto como domínio y culturalmente construído. Como ambiente
masculino) realmente não ter sido loteado tal construído, es un espacio ‘significado’, cuyo
qual grande parte das terras (“domínio” femi- uso social le atribuye un sentido. La noción de
nino) do distrito, a “indústria” do turismo tor- ambiente incluye, entonces, las relaciones so-
nou a atividade tradicional da pesca não mais ciales y la cultura que hacen de la “población”
atraente à maioria dos homens do local, princi- de ese ecosistema una sociedad. Si la historia es
palmente os mais jovens. Poucos se dispõem a dada por la desarticulación del ambiente cons-
tirar seu sustento de uma atividade tão arrisca- truído, ella es también el proceso de atribución
da14, preferindo trabalhar como recepcionistas de nuevos significados al espacio, de nuevos
ou garçons em terra firme. Portanto, o turismo usos sociales, y del desplazamiento social de
separou mulheres e homens de seus meios de los agentes tradicionales. El cambio ambiental
produção e inseriu-os na lógica do mercado, significa la alteración de las relaciones con el es-
reconfigurando a ambos. Alguns autóctones, pacio, de los hombres entre sí, y de las mujeres
no entanto, conseguiram desenvolver um ne- con los hombres en función de ese espacio (Op
gócio próprio, mas poucos prosperaram. cit., p. 481).
Essa conjuntura fez, então, emergir em Pipa
uma visível divisão de classes. Não que antes A mudança cultural acelerada, por isso mais
não existissem relações de mercado, mas certa- visível, pela chegada do turismo em Pipa e a in-
mente elas ocupavam um lugar de menor des- terpretação de Woortmann sobre o espaço, or-
taque na sociedade. Assim, é somente a partir denado culturalmente, como significante e (res)
da chegada do turismo que o trabalho, a terra significado, ressoam a ideia de Sahlins (2003)
e os corpos assumem características de merca- quanto à simultânea volatilidade e reprodutibi-
doria. lidade da estrutura, que se manifesta nas ações
A administração pública do município de dos agentes envolvidos no contexto. A atividade
Tibau do Sul, à qual Pipa está atrelada, deixou, turística – elemento histórico, por isso contin-
por muito tempo, que a reordenação física e gente e arbitrário – transformou a conformação
social provocada pelo turismo atuasse de for- espacial da praia, a relação dos moradores com
ma livre e descontrolada, acreditando talvez na o espaço e entre si mesmos. A um só tempo,
autogestão dessa atividade, seguindo as orien- os turistas foram envolvidos pelas categoriais

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culturais locais (o forasteiro foi responsável pelo é pobre, tá certo de que todo mundo é pobre,
povoamento e surgimento do local, segundo as ninguém é rico, mas à vista do que viviam, que
narrativas coletadas) e inseridos no seu ecossis- o pessoal era uma casinha de taipa, às vezes tinha
tema social. Dessa forma, a comunidade local uns que num botava nem um barro no piso da
investe crescentemente nessa atividade visando casa, outros tinha uma casa arrochada de palha.
produzir “safras” cada vez maiores e mais ren- E desse tempo pra cá tudo melhorou. Por isso
táveis de visitantes, demonstrando que, mesmo que eu digo, melhorou nessa situação, agora so-
tendo cambiado os significados do lugar e do bre o negoço do povo ficare desobediente, filho
cotidiano, esses “intrusos” são bem-vindos, pois não querendo mais obedecer a pai, essas coisa,
são necessários para a reprodução da estrutura esse negoço de corrupção, isso aí piorou, num
da conjuntura (Sahlins, 2003). sabe? Essas coisa piorou, mas no bem-estar do
O ciclo do turismo sufocou quase total- povo, eu acho que melhorou muito, melhorou
mente os demais setores produtivos locais, muito (D. Domitila).
impondo seu ritmo e suas demandas. Esse pro-
cesso foi intensificado com a chegada dos gru- Na parte de ganhar dinheiro foi a melhor coisa
pos de turistas organizados pelas agências de que existiu, né? Trouxe desenvolvimento demais
viagem, a partir da segunda metade da década até, né? É trabalho pra todo mundo, né? [E a
de 1990, que colocaram a Praia da Pipa dentro parte ruim?] E na parte ruim, de tranquilida-
do circuito mundial do turismo. Dessa forma, de, né? Pra quem é nativo ficou ruim... Mas pra
a população local foi levada a se adaptar aos ganhar dinheiro foi uma das melhores coisas...
efeitos dessa atividade e reelaborar as bases de Porque antigamente aqui se morria de fome,
sua sociabilidade. saúde era precária, tinha nada, rapaz, nem em
Apesar de alguns problemas terem surgi- Goianinha, viu? (D. Palmira).
do junto com o turismo, como o aumento do
consumo de álcool e do tráfico de drogas “pe- Aqui, o [problema] que é maior é a tranquilida-
sadas”, como o crack, crescimento dos índices de, tranquilidade foi o que... [piorou]. Mas em
de violência (principalmente relacionados a outras coisas, graças a Deus, [o turismo] trouxe e
assalto17), desconfiguração da paisagem local, tá trazendo muitas coisas. [Então, o senhor acha
desmatamento e degradação ambiental, segre- que o turismo foi bom para Pipa?] Foi bom, foi
gação social, poluição sonora e visual, transfor- bom. As terras da Pipa, que tem vendida, se for
mação contínua da arquitetura, desvalorização construir é uma grande cidade (Seu Madola).
das atividades de produção e das manifestações
culturais tradicionais, os antigos moradores A aceitação da atividade turística como algo
entrevistados encaram a chegada da ativida- positivo deu-se, entre outras coisas, em conse-
de turística como positiva, uma cara aliada da quência do incremento da renda (o enrique-
Praia da Pipa, tendo em vista as benesses que a cimento está muito atrelado à ideia liberal de
acompanharam, as quais se sobressaem em suas “vencer na vida” e fazer-se a si mesmo) e da
falas frente aos pontos negativos. diversificação das atividades laborais, que per-
mitiram saciar os desejos por individualização
Ômi, pela umas coisas, pel’umas partes foi bom e por distinções identitárias (remontando à e
viu. [Pelo quê?] Pela parte de que hoje o pessoal procedendo da singularidade de seu mito de
vive melhor, num sabe? Com mais dinheiro. O origem18), que foram, por muito tempo, acor-
pessoal, hoje da Pipa, ninguém sabe mais quem dadamente, refreados em prol da estabilidade

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e coesão da comunidade, mas que também cando-se, para os fins do presente trabalho, os
transpassam e marcam a maioria das sociedades itinerários dos relacionamentos afetivo-sexuais,
da contemporaneidade. onde as parcerias entre autóctones e forastei-
A imediatez desses benefícios ofusca, po- ros/as, a exemplo da relatada por D. Palmira
rém, grande parte das desordens e problemas, entre Abacate e Marleide, tornaram-se, com o
principalmente sociais e ambientais, advindos tempo, comuns.
com o turismo, frutos do rompimento que essa
interação com elementos externos provocou na Destino Pipa
tessitura social, o que fez com que problemas
sociais fossem vistos como falências individu- Hoje vou a Pipa. Só de pensar já me sinto bem.
ais, passando a vigorar a máxima do “cada um A viagem é rápida. Menos de duas horas. Saindo
por si e Deus por todos”. No entanto, o relato da região metropolitana do Natal, começam a se
desses moradores mostra que eles se negam a formar extensos canaviais, que tentam esconder
construir um passado idealizado positivamen- o quanto desmataram a área ocupada com uma
te, ao contrário do que parece acontecer com ínfima franja de Mata Atlântica margeando a
os integrantes das comunidades investigadas estrada. A estrada está horrível de se trafegar. As
por Woortmann (2007). Para os antigos mo- obras federais de duplicação da BR-101 exigem
radores da Pipa, a lembrança das dificuldades e desvios, paradas e provocam um pequeno en-
limitações do passado faz com que eles se recu- garrafamento. Mudo de ideia e começo a achar
sem a crer que o antes era melhor que o agora. que desta vez a viagem não será tão rápida. Mas
A unidade de outrora, baseada na similitu- já saímos de Natal, passamos por Parnamirim
de de crenças, sentimentos e valores morais, foi e... “Que cidade é essa? É São José do Mipibu?”
se rarefazendo. O individualismo e a divisão “É!”, diz meu pai. “São José do Mipibu.” – re-
social do trabalho deslocaram a configuração pete meu tio, lendo o nome da cidade que está
societal para uma mais nítida diferenciação en- estampado no jardim do ponto rodoviário lo-
tre seus membros. Os agentes, cada vez mais cal. É quase uma obrigação pararmos aqui, seja
atomizados, ao interagir com os turistas, deram de ônibus ou de carro. “Aqui tem um São João
início a um processo de hibridização de antigos bom da bexiga, visse?!” – completa meu tio. Ao
valores morais, baseados nos dogmas religiosos, falar isso me veio à cabeça a imagem de um pro-
com representações sociais de todas as partes fessor meu de português, da época do secundá-
do país e do mundo. rio, natural deste município, que sempre com a
O contato intenso e constante da comuni- proximidade das festas juninas fazia propaganda
dade com os turistas transformou rapidamente de São José como sendo o melhor São João do
uma série de fatores, que extrapolam as ques- mundo.
tões relativas à economia, tirando a tranqui- Bem, comemos umas besteiras de rodoviária,
lidade que marcava a antiga vila. Costumes, que deixou meu estômago tão bagunçado quan-
modos, valores e comportamentos – “sobre to o interior dos quiosques onde eram vendidas.
o negoço do povo ficare desobediente, filho Seguimos. Os canaviais vão tomando conta da
não querendo mais obedecer a pai, essas coisa, paisagem. É um verde bonito, meio prata, meio
esse negoço de corrupção, isso aí piorou, num água. As folhas das canas bailam com o vento e
sabe?” –, juntamente com os espaços de socia- a Usina Estivas se ergue no meio da plantação,
lização, foram alterados. A mudança atingiu cinza, cuspindo fumaça, fruto das caldeiras que
todas as esferas da sociedade pipense, desta- preparam o melaço. Pouco à frente já avistamos

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Goianinha. Esse é o município que dá acesso à Vim dirigindo o carro do meu tio até aqui e,
praia de Pipa. Daqui, além dos ônibus vindos ao chegar à rua principal do distrito, vejo que
de Natal, partem também muitas vans com des- não fui o único a fazer a escolha por Pipa para
tino final naquela praia. Goianinha vive quase virar o ano. Na verdade, Pipa é um dos mais
só do comércio e da agricultura canavieira. Seu badalados reveillons do Rio Grande do Norte. A
centro é pequeno. Rapidamente o cortamos e prefeitura espera 30 mil pessoas, apesar de nes-
entramos na pista. São muitos os distritos pe- se momento, pelo fluxo de carros e de gente na
los quais temos que passar até chegarmos ao rua, parecer bem mais. Logo na entrada estava
nosso destino. Não sei pra que existem tantos, formado um engarrafamento, motivado pela já
já que são todos muito parecidos e muito pró- grande quantidade de visitantes e também devi-
ximos. O único que consigo distinguir é Piau, do às suas ruas estreitas. Sempre que venho aqui
porque fica próximo a uma curva e bem perto me deparo com novas construções advindas da
da sede de Tibau do Sul. Aliás, conforme vamos especulação imobiliária, resultado da atividade
nos aproximando de Tibau, à nossa esquerda turística. Então, Pipa sempre está de cara nova,
começamos a vislumbrar a Lagoa Guaraíras. É “repaginada”. Aqui parece uma Torre de Babel
uma coisa incrível, ela se une ao mar bem na devido à diversidade de origem das pessoas.
sede do município, o pôr-do-sol é esplendoro- Línguas, sotaques e regionalismos linguísticos
so, um espetáculo. Pena é que cada vez mais os se embaralham lembrando uma espécie de espe-
mangues daqui estão dando lugar a fazendas de ranto. A cidade cheira a protetor solar (Notas de
carcinicultura. Na entrada de Tibau amontoam- Diário de Campo – 29/12/2007).
-se uma série de resorts e hotéis de luxo, todos
afirmando ter a melhor paisagem do paraíso. A Praia da Pipa hoje em dia é uma área cos-
Engraçado que apesar de tanto luxo e de tantos mopolita, apesar de ainda manter a atmosfera
empreendimentos, a população daqui continua de uma vila de pescadores19. Muitos de seus
pobre. Gente humilde, com casas pequenas, atuais moradores são oriundos de diversas par-
na maioria, antigos pescadores e rendeiras que tes do Brasil e dos mais diferentes lugares do
servem apenas para trabalhar nas funções mais mundo. Esse cosmopolitismo torna-se mais
serviçais desses imensos meios de hospedagem. evidente nos meses de verão, que comporta a
A placa anuncia Pipa a menos de sete quilôme- chamada alta-estação do turismo, quando mo-
tros. Quando deixamos o centro de Tibau do chileiros20 e turistas institucionalizados21 vin-
Sul, adentramos na parte final da viagem e sobre dos de São Paulo, Recife, João Pessoa, Brasília,
a pista que invadiu a duna, vemos os contor- Itália, França, Portugal, Espanha, Canadá, Isra-
nos da cidade lá em baixo. Para quem vai pela el, Japão, Argentina, Uruguai, Estados Unidos,
primeira vez, Pipa é um choque. As falésias do Holanda, Inglaterra, Suécia, Noruega se mis-
lado esquerdo formam mirantes naturais; ao turam à população local, formando um grosso
lado direito estão as dunas semivegetadas. Ve- “caldo cultural”.
mos a praia da Ponta do Madeiro, o verde que Numa pequena localidade com um intenso
desce por suas barreiras e as águas calmas que fluxo turístico é esperado que, desse encontro,
alisam a areia. Mais adiante tem uma reserva ocorra uma série de relações entre população
florestal, o Santuário Ecológico. Chego a Pipa, fixada e população flutuante. Essas interações
bastante animado, mas é óbvio, estamos às vés- se dão em situações em que o morador é trans-
peras do reveillon e, finalmente, vou rever mi- formado em prestador de serviços e em outras
nha companheira, depois de estendidos 15 dias. em que ele é apenas o nativo daquele destino

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turístico. De tais trocas resulta um continuum ciso saber como esses relacionamentos se dão,
de sentimentos, onde de um lado encontramos o que leva esses parceiros a empreendê-los, o
a repulsa e do outro o fascínio, e um elemen- que os positiva e os torna preferíveis frente às
to que constitui essa fascinação é o desejo, a demais possibilidades de relacionamentos. Mas
atração sexual. Através da mútua exotização e isso é um objetivo que não poderá ser alcança-
erotização do Outro, inúmeras possibilidades do neste trabalho, que pretende apenas mostrar
de relações afetivo-sexuais são empreendidas. como as alterações vindas juntas com o – mas
Durante a pesquisa etnográfica consegui- não devido exclusivamente ao – turismo impli-
mos observar e coletar informações sobre a cam também em alterações23 na subjetividade
dinâmica de um exemplar desses encontros dos atores em cena, a exemplo do que ocor-
afetivo-sexuais que se dão em contextos de via- re nas relações e representações de gênero, no
gem. Ao contrário do que pensa o senso co- desejo de diferenciação social, nos significados
mum e do que corriqueiramente foi, e ainda é, atribuídos ao que é do outro, etc., a partir das
divulgado na grande mídia e em algumas áreas narrativas desses/as antigos/as moradores/as.
da academia, eles não obedecem a uma receita Para isso, é necessário, antes, deixar claro
invariável, sempre composta pelos mesmos in- dois fatos que atuaram no processo de turisti-
gredientes. Mostram-se, cada vez com mais cla- ficação da Praia da Pipa e que nos são bastante
reza, como uma imbricada rede de socialização caros para a compreensão desse fenômeno. Pri-
extremamente heterogênea, pouco habituada a meiramente, temos que lembrar que o turismo
determinismos, e põe “sob rasura”, aproprian- em Pipa consolidou-se como um dinamizador e
do-se da noção de Stuart Hall (2007), o con- potencializador da economia local, “melhoran-
ceito que disserta sobre a mescla entre sexo e do” as condições de vida da população – “pra
atividade turística, conhecida prosaicamente ganhar dinheiro foi uma das melhores coisas...
como “turismo sexual”. Porque antigamente aqui se morria de fome,
Em Pipa, alguns homens, a maioria na- saúde era precária, tinha nada, rapaz, nem em
tivos e locais22, empreendem uma série de re- Goianinha, viu?”. Do mesmo modo, quando
lacionamentos afetivo-sexuais com mulheres adotada oficialmente pelos órgãos governa-
estrangeiras que, geralmente, encontram-se em mentais, esta atividade foi, de certa maneira,
contexto de viagem. Elas, em sua grande parte, sacralizada e apontada como condição essen-
são oriundas da Argentina, Europa Ocidental e cial para possibilitar o desenvolvimento local24,
dos países escandinavos. Por sua configuração firmando-se como via prioritária na agenda de
ser inversa à que geralmente vem sendo analisa- investimentos públicos. Entretanto, a canaliza-
da, pois aqui é a mulher que se desloca e usufrui ção de investimentos públicos e privados para
dos “serviços” sexuais de homens autóctones, o o turismo tornou a comunidade demasiado de-
caso de Pipa nos dá base para questionar a ge- pendente, em termos econômicos e simbólicos,
nerificação das atividades do “turismo sexual” e do vai e vem de visitantes.
do mercado de sexo. É difícil não constatar nem perceber o
Ao contrário do que possa parecer, esse tipo quanto o turismo está presente no cotidiano de
de interação traz elementos que o destacam do Pipa. Evidencia-se nas pousadas e hotéis, nos
prosaico e inviabilizam interpretações reducio- bares e restaurantes, nas lojas de souvenirs, nas
nistas, que o enxergariam precipitadamente casas de câmbio; porém, devido à dinâmica da
como um lugar comum, um comportamento própria atividade, cujo núcleo produtivo não se
típico de pessoas jovens. Para entendê-lo é pre- mantém fechado, mas sim se espraia por outros

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setores da economia, a priori não relacionados Não só a imitação possibilita a aquisição de


com ela, mostra-se também em padarias, lan prestígio. A inserção nesses grupos de forastei-
houses, farmácias, quitandas, mercados, princi- ros/adventícios torna-se também positivada,
palmente através dos preços elevados. pois demonstra intimidade e familiaridade
O turismo trouxe consigo uma espécie de com seus códigos e estabelece uma ruptura
verdade, semelhante àquela representada pelo dentro do próprio seio do grupo social local,
capitão Cook e seus marujos aos polinésios-ha- que se divide entre os que estão e aqueles que
vaianos, a “verdade do estrangeiro”, como di- não se encontram dentro desses novos circuitos
ria Sahlins (2003), que foi tomada pela maior de sociabilidade, bem como entre os que se re-
parte da população da Praia da Pipa também lacionam com os turistas apenas via prestação
como sua, estimulada pelas decisões das au- de serviços e aqueles que o fazem a partir de ou-
toridades políticas locais (em analogia aos sa- tros esquemas interacionais. Dessa forma, um
cerdotes havaianos) que a endeusaram a ponto dos mecanismos alçados por alguns membros
de as atividades econômicas que faziam parte da referida comunidade receptora, para terem
dos costumes pipenses, como a pesca, serem, acesso a tais representações simbolicamente va-
por muitos, abandonadas25, como afirma um lorizadas, é o envolvimento afetivo-sexual com
morador: “A maioria [trabalha] com turismo. esses/as turistas.
Hotel. Eu acho que a Pipa toda é turismo, né? Ademais, faz-se míster observar, e este é o
[Tem pouca gente trabalhando com pesca, né?] segundo ponto a destacar, que a Praia de Pipa
Só os mais velhos, pouquíssima pessoa. É tanto surgiu no cenário do turismo como um desti-
que a pesca na Pipa já tá acabando. [Daqui a no alternativo, propício àqueles que buscavam
próxima geração...] Não vai ter mais pescador” fugir da agitação do turismo de massa. Des-
(Nilson, 27, bugueiro e barman). sa forma, frequentada no início por surfistas,
A figura do turista e suas práticas foram hippies e mochileiros, a praia ganhava ares de
também “endeusadas”, iniciando um processo contracultura e boêmia. A partir disso a vila de
que Mário Carlos Beni (1998) chama de “efei- pescadores assumia um tom e uma aura de per-
to demonstração”. Em pouco tempo, a popula- missividade e liberalidade tanto sexual quanto
ção local começou a desejar roupas, costumes e no que diz respeito ao uso de psicoativos, prin-
estilo de vida do turista26, assim como ele mes- cipalmente da maconha.
mo. Tal comportamento corresponde ao que Atualmente, pode-se dizer que Pipa classi-
Marcel Mauss (2003) chamou de “imitação fica-se como um destino massificado, dado ao
prestigiosa”, a reprodução de algo social e/ou fluxo de viajantes que recebe e à infraestrutura
culturalmente valorizado, a cópia de um ethos, turística que possui, composta por um amplo
que confere status àquele que o incorpora. leque de opções de meios de hospedagem, en-
O valor atribuído não só ao que é pró- tretenimento e por um complexo gastronômi-
prio do outro, mas ao outro em si, denuncia co27 influenciado pelas e especializado nas mais
as ações de apropriação e ressignificação sim- diversas e renomadas cozinhas internacionais.
bólica elaboradas pela comunidade receptora, Embora isso não signifique dizer que a praia
que radicaliza o discurso propagandeado pelos tenha perdido seu “charme rústico” – que, na
representantes públicos e porta-vozes da inicia- verdade, não passa de um simulacro criado e
tiva privada em louvor ao turismo e à salvação recriado pela arquitetura paisagística presente
financeira que ele proporcionaria, através do na maioria dos prédios comerciais, na busca
slogan “O turismo gera emprego e renda!” incessante de apresentarem-se como represen-

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tantes de um estilo arquitetônico tradicional, viagem turística está inserida. Tomando como
em harmonia com a paisagem natural28 – e sua referência os países centrais, pode-se visualizar
mística permissiva, que ainda se prestam como a vida como uma contínua alternância entre
chamarizes, conservando antigos e atraindo dois modos de existência, regidos por distintos
novos frequentadores. padrões morais: o tempo ordinário/profano e
Diga-se de passagem, por se tratar de um compulsório do trabalho e outras obrigações,
destino de turismo de lazer (ou turismo sol e cerrados no espaço do lar, e o tempo não ordi-
mar), a grande parte dos visitantes que ali apor- nário/sagrado, voluntário e prazeroso, cujo re-
tam busca, acima de tudo, diversão. Sabendo presentante-mor é a viagem (Graburn, 1989).
que as sociedades de onde provém parte dos Como esses períodos de sacralização da vida
turistas de Pipa (Europa Ocidental e Sudeste social são bastante curtos em comparação ao
brasileiro, como São Paulo) são regidas por cotidiano profano, as pessoas tendem a viven-
uma lógica prometeica, marcada pela produ- ciá-los de forma intensa, em busca de “estados
ção, ocupação, controle e resultados, nas quais alterados”. Daí justifica-se, de certa forma, o
as atividades hedonísticas não possuem muito aumento no consumo de álcool e outras dro-
espaço, os destinos turísticos funcionam como gas, bem como a despreocupada emergência
redutos que possibilitam a emergência de sua das pulsões sexuais. As férias em terra estra-
face dionisíaca29 (Maffesoli, 2001). Pipa presta- nha possibilitam o vivenciar da errância sexual
-se a esse serviço. (Maffesoli, 2001), livre do peso das prestações
A representação de Pipa como paraíso de sexo sociais da community home. Tais comporta-
e psicoativos30, apesar de não ser oficial, parece mentos, ao contrário, possuem o respaldo mo-
ter se disseminado informalmente por vários lu- ral dessas comunidades, posto que os valores
gares e também se fixado no imaginário local, do turismo moderno, além do status social,
conforme a fala de um informante nos revela: estão vinculados à diversão e às “experiências
exóticas”. O inusitado, o mágico, o efêmero, a
Meu irmão, é aquela coisa doido. Tipo... já fosse fugacidade que marcam esse momento extraor-
pro Recife Antigo? Então, tu vai ali pro Recife dinário/sagrado faz com que aqueles que o vi-
Antigo é todo mundo parado, pá, é a mesma venciam o percebam e interpretem como mais
coisa. Agora você vai aí de noite mermão. Você real que a “vida real”, pois sua única obrigação
vê a cara da galera: é sexo, tá ligado? A galera só é com a satisfação pessoal (Graburn, 1989).
quer sexo, véio. [risos] Você fica doido, pô. É Para a comunidade receptora, desvinculada
gringa que só a porra, tudo... Você se chega ela das atividades tradicionais, o que interessa é
já dá ouvido pra tu, tá ligado? Tem outras que como ela pode se beneficiar desse comporta-
dependendo do seu papo ou da sua cara, mer- mento “desregrado” dos turistas. Se eles estão
mão, aí elas te aceitam, tá ligado? Mas é isso, a dispostos a gastar, é preciso saber aproveitar e
galera quer se drogar, quer fazer sexo, coisa boa disponibilizar serviços que atendam a suas ex-
num quer fazer. Ficam tudo... Aí é atacar mer- pectativas, que sejam condizentes com a fama
mão! [risos] [E como é que tu define a noite da da hospitalidade brasileira e que lhes conven-
Pipa?] Noite da orgia. Curto e grosso (Gabriel, çam de que estão realmente no “paraíso”. Se
24, escultor e professor de capoeira). desejarem vivenciar, comprovar e experimentar
as diferenças, atualizando as estruturas hierár-
Esse relato faz ressoar a noção de sacred quicas de poder mundialmente disseminadas
journey, de Nelson Graburn (1989), em que a (Scott, 2007), a população tratará de reforçá-

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-las conscientemente para também tirar pro- gostou, vá. Mas vá com a sua independência,
veito desses eixos produtores de desigualdade31. porque se for depender dos outros, aí em lugar
Frente a essa nova conjuntura, seduzir, ga- nenhum não dá certo, né? Em lugar nenhum
lantear e envolver-se afetivo-sexualmente com isso não existe. [Essa foi uma mudança trazida
mulheres estrangeiras é para alguns homens pelo turismo?] Eu acho que foi, porque vê essa
nativos/locais uma forma de tomar parte nos história, porque... e principalmente aqui em
louros e nos lucros gerados pelo turismo, pois Pipa, né? Porque antes os homens daqui viviam
esses relacionamentos surgem como vias de o quê? Trabalhando pra sustentarem as mulhe-
acesso facilitado a bens e símbolos socialmente res, né? E hoje em dia não. Eles fazem o contrá-
valorizados. rio, né? Principalmente o povo mais jovem, já
Entretanto, essas novas formas de relacio- vê o contrário, as mulheres que, principalmente
namentos afetivos, particularmente as parcerias gringa, tem que sustentar eles, né? Aí, isso não
binacionais, causam opiniões diversas e diver- existe, de maneira alguma (D. Palmira).
gentes entre os moradores antigos. D. Palmira
e Seu Madola assumem um discurso um tanto Os namoro? Mudaram. O negoço hoje tá solto
moralista frente à permissividade e à fugacida- no meio do mundo. É, de primeiro, o camara-
de desses relacionamentos: da namorar com uma moça é preciso fazer, ela
tava lá acolá e de cá o cabra já tava batendo as
Ah, hoje em dia é só um tal de ficar. [gargalha- pestana pra ela. Hoje não, só é chegar na casa
da] [As pessoas costumam namorar com tu- dos pais mesmo, pegar ela na mão e sair pelo
ristas?] Hoje em dia o que vale é o turismo, é meio do mundo. Hoje a liberdade é maior. [E
o turista, é o gringo, que o povo explora. [E o hoje em dia tem um pessoal que namora com
que é que a senhora acha?] Eu pelo menos, tem turista?] Tem um bocado deles, tanto os de fora
umas gringa que me aparece aqui que eu vou também. Esses turista quando vêm, parece que
te dizer, viu. [risos] ‘Uns malacas [malandros] vêm assim mesmo de paquerar. [Com as pessoas
daqueles’, como dizia Joca. Vive aqui com a daqui?] Com as daqui e de fora que vem por
gente. [Mas tem aumentado esse tipo de rela- aqui e de todo canto. Eles chegam aqui, cada
cionamento? O pessoal tem casado com turista, homão que é dessa altura, com umas coisinha
com estrangeiro?] Olhe, Tiago, tem pessoas que desse tamanho, anda debaixo do sovaco deles,
já casaram, já foram, aí, tão morando fora, isso morenazinha, essas coisa. E aqui já tem, já foi
aconteceu muito. [Mas isso tudo a família apro- donas que... Uns leva elas só pra fazer elas sofrer
va? As famílias daqui como é que vêem isso?] É, lá, mas tem outros que... Tem uns que casou e
porque elas ajudam muito, acham que porque vive bem. [... O que você acha?] Com turista?
casou com gringo é tudo, né? Então, vão embora Rapaz, esses namoro dos turista com brasileiro,
e... [O que você acha das turistas pagarem coisas eles parecem que quando vêm, já vêm na certa,
para os homens daqui?] Ah, isso aí eu acho o fim é. Eles só tão esperando...elas acham que todo
da picada, como diz a história, porque eu acho turista é rico, todo turista é rico. [... Os homens
que cada um tem que ter... como se diz? Inde- daqui também? As turistas sustentam eles?] É,
pendência, porque no momento que um vai eu acho, sabe porque é... Hoje muitos anda a
procurar uma gringa só porque tem dinheiro, é procura dessa garapa [leia-se: de uma vida fá-
porque não tem coragem de trabalhar, né isso? cil], que elas vão, eles sabe que ela tem alguma
[...] Aí eu acho assim, que as pessoas se quer, coisa, ela pode ser feia, pode ser o que for, mas
tudo bem. Quer conhecer, quer ir embora, se vai em cima pra modo do dinheiro. [O que o

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senhor acha do homem ser bancado por mu- cedido, rico. Isso, de acordo com eles, é o que
lher?] Eu acho que tudo no mundo, essas coi- faz as famílias apoiarem esses relacionamentos.
sas assim, a mulher pode até um dia que sentir O tom da conversa muda quando come-
mal dele, pode até chagar e dizer: ‘Tu sois assim, çamos a enfatizar as parcerias entre homens
porque eu tenho, eu fico te sustentando, assim, nativos/locais e turistas estrangeiras. Montando
assim, né?’ E quando o homem toma conta de uma comparação com as apreciações que eles
sua responsabilidade, por família, por mulher, fizeram, a priori, os juízos de valor e os discur-
por tudo, ele tá sabendo que tem toda garan- sos moralizantes, a partir dessas novas questões,
tia, porque a responsabilidade é dele. Ele num surgem com bem mais veemência. As conde-
pode levar uma piada duma mulher nenhuma, nações são explícitas quando trazemos pontos
porque a responsabilidade é dele. Mas esse povo relativos à evocação por parte das turistas do
que pegar uma mulher aqui, à procura do di- papel de provedoras no âmbito da relação –
nheirinho que ela tem, tá sujeito a uma piada “Ah, isso aí eu acho o fim da picada, como diz
dela, essas coisas, né? [...] Hoje aí, a maior parte a história [...]”; “[...] hoje muitos anda a procu-
é na boa, viu. Muitos aí, tem uns que a mulher ra dessa garapa, que elas vão, eles sabe que ela
é empregada e eles nem ligam. Num quer tra- tem alguma coisa, ela pode ser feia, pode ser o
balhar. Outros, como se diz, a mulher quando que for, mas vai em cima pra modo do dinhei-
diz qualquer coisa pra eles, dizer que eles quere ro”, Do mesmo modo, recorrem aos papéis de
ficar vivendo às custas dela, aí quer se revoltar, gênero tradicionalmente postos para embasar
né? (Seu Madola). sua desaprovação, noutras palavras, na visão de
ambos, cabe apenas ao homem assumir as fun-
Como podemos visualizar, ambos os rela- ções de provedor.
tos apontam para uma desaprovação desses Em oposição a essas falas, D. Domitila, a
câmbios afetivo-sexuais binacionais. Tanto D. mais velha desses antigos moradores, apresenta
Palmira quanto Seu Madola começam falando uma interpretação menos moralista, sendo que,
da falta de compromisso dos relacionamentos para ela, é normal que quem tenha mais recursos
atuais. Logo em seguida, quando questionados termine por pagar pelo acesso a bens e serviços,
sobre os relacionamentos entre brasileiros(as) e além de se tratar de uma necessária distribuição
estrangeiros(as), eles expressam certa crítica a de renda – “Tem que partir o pão, né?”:
essas uniões, amparando-se em discursos que
se prendem à ideia de que elas sempre são mo- [Agora também tem homem que namora com
tivadas, por parte de um dos parceiros, por ex- gringas?] É. Tem. Tanto elas casam como eles
pectativas de exploração, de benefício próprio casam também. Tanto é aqui como em Tibau,
– “Hoje em dia o que vale é o turismo, é o tu- Cabeceira, Goianinha, tudo tem esse povo que
rista, é o gringo, que o povo explora”. Por outro casa. [Mas essas gringas, que se casam com na-
lado, Seu Madola acha que os turistas já vêm tivos, elas dão dinheiro pra eles e pras famílias
para Pipa com a intenção de namorar – “[...] deles também ou não?] Sim, o contrário. Aju-
parece que vêm assim mesmo de paquerar”. da, porque já tem diversas gringas com rapaz da
Porém, esses dois interlocutores concordam Pipa, diversos. [... O que você acha de mulheres
que muitas pessoas, em Pipa, se relacionam pagarem coisas para os homens daqui?] Eu num
com os (as) visitantes, pois se criou localmente acho problema não. Isso é bom mesmo. Pois é.
uma representação do(a) turista estrangeiro(a) Tem que partir o pão, né?
como sendo um indivíduo de posses, bem-su-

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O interesse extrassexual, visto com aversão res atribuídos aos viajantes, devido ao acúmulo
por uns e com naturalidade por outros, deveras de capital financeiro e cultural. Dessa forma,
caracteriza esses relacionamentos binacionais tais estudos, principalmente quando se de-
contemporâneos, que se colocam em oposição bruçam sobre as alterações nos modos de vida
ao antigo modelo vivenciado por esses interlo- da população local e, ainda com mais ênfase,
cutores, em que os papéis de gênero eram bem quando se dedicam à análise da relação entre
demarcados, o intercurso sexual deveria ser práticas sexuais e turismo, parecem subsumir a
precedido pela benção do “sagrado matrimô- ação ativa e criativa das comunidades, delegan-
nio” e os relacionamentos eram extremamente do-lhes certa atmosfera de inocência, pureza e
controlados. Vale ressaltar, no entanto, que os passividade rompidas pela chegada do turismo
relacionamentos afetivo-sexuais que ocorrem e a invasão de seus adeptos. Mas o que se deve
atualmente em Pipa envolvendo autóctones e observar, para além dessa visão saudosista, são
turistas não se resumem aos estabelecidos en- os mecanismos de reformulações simbólicas de
tre homens nativos/locais e turistas estrangeiras. teor combinatório encontrados por essas co-
Conforme as falas e durante a permanência no munidades, em que são agenciadas e articula-
campo, foram observadas outras várias con- das novas formas de relações sociais, que finda
formações, que, assim como aquelas, estavam por marcar o processo de turistificação como
inseridas ou não em alguma variação do sexo um processo extremamente tensionado, onde
mercantil: como entre esses mesmos homens e o discurso vitimário não encontra base, além
brasileiras de outros estados; mulheres nativas/ da demagogia de uma harmonia e pureza ori-
locais e estrangeiros/brasileiros de outras regi- ginais, e como uma tentativa de instaurar um
ões; e pessoas do mesmo sexo. Havia ainda a pânico moral, que, na realidade, não possui
formação de parelhas entre os próprios turistas respaldo nem mesmo entre os membros da co-
e, logicamente, entre os nativos/locais. Vê-se que munidade tida como atingida pelos males des-
as possibilidades de arranjos afetivo-sexuais se sa atividade (pós-)moderna.
ampliaram, assim como as razões motivadoras
para seu empreendimento – não estando mais
presas à representação do “amor romântico” !"#$%&' (&)!*&' +,*,-$.&/' 0,**,#$1&.' !%'
(Giddens, 1993) –, o que aos olhos de alguns é the History of a Potiguar Tourism Destination
o “fim da picada”, num claro exemplo de cho-
que de gerações. abstract This article intends to accomplish a
brief analysis of the changes in the daily life of the
Conclusão community of the beach of Pipa–RN, which were
directly caused by the advent of tourism – part of
Percebe-se, então, que o realce dado às con- the local landscape. Based on data collected in eth-
sequências negativas do advento da atividade nographic research, in which the older residents of
turística, principalmente quando os destinos the district played an essential role in the construc-
se tratam de pequenas localidades (os famosos tion and record of their oral history, we have sou-
“paraísos”, que se multiplicam a cada ano), re- ght to question the ordinary representation tourism
vela uma subestimação das ações de apropria- destinations as pure, authentic, and naive, being
ção e ressignificação da população autóctone this harmony threatened by the intense flow of out-
em referência ao turismo e seus corolários, es- siders. Therefore, this work tries to evidence how
tando diametralmente em oposição aos pode- tourism can change the local networks of sociability

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while the host community creates mechanisms of 2007 foi lançado um livro chamado “Fotografias do
symbolic reformulation to face these changes., In Coco de Zambê”, de autoria de Candinha Bezerra, e
um CD, “Zambê Pernambuquinho”, ambos pelo selo
other words, even when they are induced by exter-
Nação Potiguar. De acordo com Bezerra, o grupo de
nal factors, they are conducted in a native way, what
Pernambuquinho, distrito de Tibau do Sul, liderado
becomes clear through the observation of changes pelo Mestre Geraldo, é o mais antigo do Rio Gran-
in gender relations. de do Norte. Ver: http://www.nominuto.com/vida/
keywords Oral History. Tourism. Relations cultura/nação-potiguar-lanca-relato-sobre-coco-de-
and Gender Representations. Cultural Exchanges. -zambe/8854/ .
11. Talvez seja consequência de aqui não privilegiarmos o
Agency.
ponto de vista de homens ou mulheres, mas sim de es-
tarmos comprometidos com a busca do ponto de vista
nativo, como ensinou Malinowski (1978), e de destacar-
Notas mos o teor relacional de todos os âmbitos da vida social.
12. O drama era uma espécie de encenação, poesias can-
1. A maior parte desses vôos internacionais é fretada, os tadas em forma de teatro. Esse teatro cantado só é
chamados vôos charters. encenado por mulheres e, de acordo com a tradição
2. Mais informação podem ser encontradas no site da portuguesa, só virgens poderiam atuar.
Secretaria Estadual de Turismo do RN: http://www. 13. Categoria êmica, que já vem sendo adotada por vários
brasil-natal.com.br/setur_estatisticas. autores que se dedicam ao estudo do turismo interna-
3. Além dos países acima citados, Pipa também é visi- cional e suas dinâmicas junto às comunidades recep-
tada por turistas vindos da Suécia, de Israel e alguns toras, dentre eles Adriana Piscitelli (2001) e Kamalla
países que compunham a antiga Iugoslávia. Kempadoo (2004). Blanchette (2001) define gringos
4. Acessar: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/po- histórica e sociologicamente como aquilo que não é
pulacao/contagem2007. brasileiro e tem poucas chances de um dia ser, mas
5. O site http://www.tibaudosul.com.br/conteudo/in- que está entre nós. Esse termo, utilizado pela popu-
formativo/conheca.html informa que a população de lação pipense para identificar, com maior frequência,
Tibau do Sul é de 7.757 habitantes. Já a enciclopédia estrangeiros vindos da Europa e da América do Nor-
livre Wikipedia informa que são 11.347. te, bem como a expressão nativo(a), usada como uma
6. A ocupação holandesa no Rio Grande do Norte se autorreferência entre aqueles que nasceram na Praia,
deu entre 1634 e 1654, iniciando-se com a ocupação serão tomados neste trabalho, a exemplo das auto-
da fortaleza dos Reis Magos e se estendendo por qua- ras acima, como categorias analíticas. Todavia, para
se todo o litoral sul do estado, com destaque para o recordar sua origem empírica, essas palavras surgirão
município de Canguaretama (vizinho ao município destacadas em itálico.
de Tibau do Sul, onde fica localizada a Praia da Pipa). 14. A título de exemplo, durante a pesquisa etnográfica,
7. Francisco Fernandes Marinho (2007), historiador o barco de um grupo de pescadores perdeu o leme
nascido em Pipa, afirma que o local ainda se chamou e passou mais de dois dias à deriva, até a correnteza
Itacoatiara, mas nenhum dos interlocutores confir- levá-lo para perto da costa, numa praia da região me-
mou essa versão. tropolitana do Natal.
8. Tal discurso se assemelha bastante ao que alguns gru- 15. Arim do Bem diz que o turismo, nos destinos perifé-
pos de descendentes de imigrantes acionam, ao redor ricos, “passou a ser desenvolvido de modo intuitivo,
de todo o Brasil. sem o respaldo de pesquisas científicas e sem a presen-
9. Curral é uma técnica tradicional de pesca, em que ça marcante dos profissionais qualificados, capazes de
é criado um cercado, por onde os peixes entram na compreender a amplitude e a complexidade da ativi-
maré alta, mas ficam presos na maré baixa. dade [...]” (Bem, 2005, p. 27).
10. O Coco de Zambê é uma variação da dança do Coco 16. Sua madeira foi intensamente utilizada na fabricação
disseminada por grande parte do Nordeste brasilei- de mesas e cadeiras, ao mesmo tempo em que serviu
ro, como o Coco de Roda e o Coco de Ganzá. Na de elemento decorativo de diversas construções, já
região de Tibau do Sul, ele é o maior representante que devido a sua estrutura peculiar dava a elas um
da musicalidade e das danças populares locais. Em charmoso ar de rusticidade.

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A rotina antes do Paraíso | 195

17. Ver reportagem da Tribuna do Norte Online: “Turista vários destinos turísticos do Nordeste brasileiro, “o
sueco é assassinado após assalto a pousada em Pipa”, desenvolvimento do turismo está ligado à necessidade
publicada no dia 01/03/2009 por Ciro Marques de dar início ou continuidade ao processo de moder-
em: http://tribunadonorte.com.br/noticias/102325. nização, considerando-se o turismo, portanto, um
html. instrumento privilegiado para dinamizar a atividade
18. A relativa facilidade que a população pipense tem em econômica, às vezes, até superestimado como alterna-
lidar com pessoas de outras regiões e nacionalidades tiva econômica” (Bem, 2005, p. 22).
talvez se explique por sua origem também ser marca- 25. Para mais informações sobre contatos interculturais
da pelo convívio entre brasileiros (posseiros) e estran- diaspóricos e teoria da mudança, ver Bhabha (1998)
geiros (italianos), tomando por base os relatos acima. e Appadurai (1998). Para uma análise sobre as con-
19. Banducci Júnior (2001) diz que essas tensões entre sequências dessas situações de contato voltada às co-
globalismo e localismo, entre o rústico e o sofistica- munidades identificadas como “de pescadores”, ver
do, entre o regional e o internacional marcam muitos Woortmann (2007).
destinos turísticos no Brasil, especificamente aqueles 26. Sahlins informa que os chefes havaianos “se apropria-
que atraem grandes levas de estrangeiros. Refletindo ram de personagens da grandeza europeia ao mesmo
esse fenômeno na praia de Armação de Búzios – RJ, tempo que imitavam o estilo adequado de vida lu-
cujas semelhanças com Pipa são sensíveis, ele afirma: xuosa da Europa. [...] No início do século XIX, esse
“A presença desses estrangeiros imprimiu na provin- ‘vestir-se’ como identidades preeminentes estrangei-
ciana aldeia de pesca as marcas da metrópole, caracte- ras tinha virado alta moda no Havaí” (2003: 176).
rizada pela sofisticação, pela diversidade cultural, pelo 27. Um evento que reflete a variedade da culinária dos
convívio ao mesmo tempo próximo e superficial, de- restaurantes da praia é o Festival Gastronômico de
finido pelo caráter transitório das relações pessoais. Se Pipa, que ocorre desde 2004, sempre no mês de ou-
Búzios atraiu os moradores estrangeiros por represen- tubro, e movimenta um grande fluxo de visitantes.
tar oposição a suas origens metropolitanas, por ser a 28. Não obstante, várias espécies da flora local entraram
antimetrópole, ao acolher as diferenças, ao imprimir em processo de extinção devido ao uso de sua madeira
a marca das relações impessoais e transitórias, a cida- como elemento decorativo desses empreendimentos
de definiu seu traço cosmopolita” (Banducci Júnior, que se vendem como ambientalmente responsáveis.
2001, p. 41). 29. Ana Rosa Lehmann-Carpzov (1994) traz uma inter-
20. São aqueles viajantes que organizam e realizam suas pretação da viagem como uma experiência sagrada e
viagens independentemente, estabelecendo, por con- costura uma analogia com os cultos dionisíacos.
ta própria, seus roteiros e o período de sua estada. 30. Nos dias atuais, o consumo e a venda não se restrin-
Geralmente, interagem mais facilmente com as co- gem à maconha. Junto com a inserção de Pipa no
munidades receptoras e utilizam equipamentos de circuito internacional do turismo, o local foi anexado
hospedagem mais alternativos, como os campings e os à rota de outros psicoativos, como o crack, a cocaí-
albergues da juventude, mais acessíveis que os preços na (conhecida popularmente como pó ou bright), o
dos hotéis. ecstase (também chamado de bala) e o LSD (ácido
21. São os turistas que viajam a partir da mediação das lisérgico chamado vulgarmente de doce).
agências de viagens, através de seus pacotes turísticos, 31. A interação, presente na maioria das viagens tu-
tornando-se prisioneiros de seus roteiros, que defi- rísticas, entre turistas e população local, é mais
nem previamente o que deve e o que não interessa um dos produtos oferecidos pela “indústria” do
ser visto. Na maioria das vezes, fazem uso dos equipa- turismo. Em muitas ocasiões, a comunidade re-
mentos de hospedagem e de restauração (alimentos e ceptora integra a paisagem vendida pelo marke-
bebidas) mais pomposos. ting turístico e, assim, durante a sua estada, o
22. Ambas são categorias êmicas. Segundo os próprios viajante deseja comprovar a existência daquelas
interlocutores, locais são os adventícios que vivem em personagens. Dessa forma, a “indústria” do tu-
Pipa há pelo menos cinco anos. rismo lança mão, como afirma Silveira, de um
23. Vale frisar que as alterações em questão podem acar- processo de “vitrinização”, transformando “os
retar o reforço e/ou relaxamento da estrutura. nativos, seus modos de ser, de construir, habi-
24. O pesquisador Arim do Bem afirma que da perspec- tar e morar em ‘vitrines’ para uma observação
tiva dos países receptores, em particular, no caso de parecida com um zoológico social e cultural”

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(2007: 25). Como esse panorama implica uma Anthropology of Tourism. Filadélfia: University of
invasão do cotidiano dos autóctones, esses tra- Pennsylvania Press, 1989.
tam de construir bastidores, que permanecem HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA,
anônimos frente a essa “autenticidade encena- Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a pers-
da” (Maccannell, 1973). Há, portanto, uma in- pectiva dos estudos culturais. 7. ed. Petrópolis: Vozes,
corporação consciente e astuciosa do exotismo 2007. p. 103-133.
pela comunidade receptora, que, identificando KEMPADOO, Kamala. Sexing the Caribbean: Gender,
os alvos do olhar do turista, manufatura o au- Race and Sexual Labor. Nova York: Routledge, 2004.
têntico, tirando o maior proveito possível dessas LEHMANN- CARPAZOV, Ana Rosa. Turismo e Iden-
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UFSC, v. 15, n. 2, p. 476-484, 2007.

autor Tiago Cantalice da Silva Trindade


Mestre em Antropologia / UFPE

Recebido em 07/03/2010
Aceito para publicação em 20/09/2010

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