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Universidade Federal do Espírito Santo

Natália Crivellaro Couto


Relatório da aula de campo de Geografia Humana e Cultural

São João de Petrópolis, 25 de Junho de 2019

Saímos da Universidade Federal do Espírito Santo às 08:00 da manhã em um micro ônibus


subindo em direção ao Vale do Timbuí, mais precisamente Santa Teresa, tão estudado em
nossas aulas de Geografia Rural através do livro Aspectos geográficos da área de colonização
antiga do Estado do Espírito Santo de Pasquale Petrone. É importante destacar aqui que nossa
turma iria analisar as três comunidades que ele descreve ao fim de seu livro: Santo Antônio
do Canaã, São João de Petrópolis e São Roque do Canaã. A turma se dividiu em três grupos e
cada qual com seu orientador responsável pela aula de campo.

Nossa aula foi em conjunto com Geografia Rural e por vezes os elementos das duas
disciplinas se emaranhavam e criavam a realidade descrita por nós. Até que ponto
poderíamos analisar as duas disciplinas em conjunto? Em qual momento deveríamos focar
nos aspectos individuais de cada área da Geografia? Esses foram meus anseios que carreguei
durante o percurso até São João de Petrópolis, comunidade que foi escolhida pelo meu grupo.
Passamos por Santa Teresa, paramos no Mirante dos Imigrantes e analisamos o percurso que
teríamos pela frente na descida do Vale do Canaã.

As perguntas usadas como fagulhas em nossas reflexões de Geografia Humana e Cultural


foram:

Onde está a cultura na paisagem observada? Como encontramos a cultura do lugar? As


características do lugar são visíveis ou invisíveis? As expressões culturais deixaram marcas
inapagáveis no lugar? Uso do solo, práticas agrícolas, construções e festas típicas locais.

Nas próximas páginas espero poder trazer alguns direcionamentos para essas inquietações. O
que garanto é que não existe uma resposta final e nem certa para elas.

Vítor, orientando do professor Scarim, faz uma fala no ônibus quando estávamos quase
chegando ao nosso destino a respeito de alguns fatos que ele pesquisou antes do trabalho de
campo. O que nos chama atenção e que é justamente sobre a história da comunidade que
vamos visitar, São João de Petrópolis, e o capitão Vivaldi e a revolta de Calhau. O que ele
pediu para observarmos também sobre um fenômeno chamado palimpsesto que são registros
históricos apagados e reescritos no mesmo local por outras pessoas. Pode ser um texto em um
papel, um mapa ou as marcas na paisagem. Iremos nos atentar a essa última representação.

A história de São João de Petrópolis começa pelo seu nome interessante. Ele foi dado em
homenagem ao São João que se tornou padroeiro da cidade e a Monarquia Portuguesa que
comandava a República do Brasil na promessa de que o imperador viria visitar as terras
recém colonizadas pelos italianos em 1875. Aliás, logo no início da história do povoado
começa também as contradições. Há relatos de que na verdade quem habitou as terras antes
da chegada dos italianos vindos do Vale do Timbuí (Santa Teresa), foram os poloneses que
chegando de minas gerais pelas margens do Rio Doce e subiram e o Vale do Canaã e ali se
estabeleceram. Ainda hoje na cidade há uma espécie de ressentimento entre os dois povos
descendentes: italianos e poloneses, chamados pejorativamente de polacos.

O primeiro ponto de parada do nosso pequeno grupo foi uma escola chamada Frederico
Pretti, na comunidade citada acima pertencente à cidade de Santa Teresa para falar com a
diretora e professora de geografia Simone. Logo no caminho indo para a escola o que nos
chamou atenção foi a construção da mesma, construída em tijolinhos onde cada sala era um
módulo com telhado de várias águas. Quando questionamos a diretora sobre a construção da
mesma e ela disso que foi um estilo arquitetônico importado do Canadá e que lá são usadas
essas construções para aquecer e escoar a neve. Estávamos no meio de um vale onde no frio
era realmente frio e no calor muito calor, fazendo com que fosse desagradável para as
crianças estudarem na escola independente do dia.

Já presentes na escola, esta se mostrou toda enfeitada para nós, com bandeirolas de festa
junina bem típica do mês que se comemora o São João, santo que inclusive foi homenageado
pelo nome da cidade. Sentamos no corredor mesmo, aguardando a diretora Simone, em
conversa com a professora Roselaine que começou a nos explicar a história de sua família:
origens, propriedade de terra e o uso e ocupação da mesma. Como também estávamos
fazendo aula de campo de Geografia Rural ficamos bem interessados no que ela tinha a nos
falar analisando se comprovava ou refutava o que vimos em sala de aula. Foi um bom papo
de 10 minutos de duração e após disso chegou a professora Simone, quem nós esperávamos
para mais 1 hora de conversa.
E seguindo o assunto da professora Roselaine, a professora Simone Zamprogno nos mostrou
sobre o livro que escreveu: O núcleo Timbuy/ Santa Teresa (ES) entre a memória e a
história. Nesta obra ela consegue fazer um apanhado histórico da região em que mora
inspirada por seu avô que lhe contou muitos relatos. Ela começa a sua narração
principalmente pela ótica do momento da chegada dos imigrantes e do dia da partilha dos
lotes de terra 26 de junho de 1875, feriado de Santa Teresa, e para os moradores, mais
importante do que a data de emancipação da cidade. Fala dos anseios dos imigrantes em
saírem da Europa num contexto de guerras de unificação da Itália e pré Primeira Guerra,
muito assustados pelo fantasma do alistamento militar e etc. Fala que alguns pagavam suas
passagens e outros o governo pagavam, já chegando endividados aqui porque primeira safra
de café demorava alguns anos para ser colhida. Mas para eles valia muito apena, pois a Itália
estava passando por situações de fome e pragas também. O governo italiano queria se livrar
dos pobres e o governo brasileiro queria novos trabalhadores e colonos para as terras
devolutas. Simone fala muito da nacionalidade deles e da sensação de pertencimento, por isso
que eles possuem suas culturas e ritos de vida tão vívidos, apesar de todo o sofrimento, eram
saudosistas a Itália. Inclusive, quando esses colonos aqui chegaram instalaram-se num
barracão provisório do governo antes de conseguir construir suas casas em seus lotes, a
comunidade até hoje é muito conhecida por barracão por causa dessa construção dos
imigrantes.

Se tratando de colonos, podemos observar como as marcas dessa colonização europeia se faz
presente no espaço. Seja por meio da festa típica e feriado da cidade em homenagem ao santo
padroeiro ou por algumas construções antigas e de arquitetura colonial típica de imigrantes.
Casas baixas e espaçosas com uma varanda grande onde podia-se receber visita dos vizinhos
ou apenas ficar passando o tempo sentado em uma cadeira de balanço. O que mais vai ficar
marcado culturalmente em minha mente a respeito de São João de Petrópolis é seu
sincretismo religioso. A igreja é a parte central e se faz muito presente nesse núcleo rural bem
como um cemitério que conseguimos observar as lápides com os nomes das principais
famílias. E cria-se um critério para o funeral dos corpos. As famílias mais abastadas possuem
mais recursos para lápides exuberantes e esculpidas de granito e situam-se na entrada do
cemitério enquanto as demais vão compondo o restante do espaço em suas singularidades de
túmulos.
São João é uma vila pequena de população majoritariamente jovem e idosa. Esse fato ocorre
tendo em vista a localização de um Instituto Federal do Espírito Santo no local, fazendo com
que vários jovens se mudem para lá em busca de estudos. Já a população idosa é a que
permanece, sendo que os adultos em idade economicamente ativa migraram para outras
regiões e cidades maiores em busca de trabalho e melhores condições de vida. Segundo
moradores entrevistados, a relação entre ambos os grupos é amigável, sendo que a principal
interação acontece durante a festa de São João no dia 24 de Junho, santo padroeiro que é
homenageado pelo nome da comunidade e em sua festa anual.

E pela data que fizemos a aula de campo pudemos ver isso na íntegra. A festa já tinha
acabado, mas o pequeno lugar de 1.700 habitantes estava todo decorado com bandeirolas e
enfeites em homenagem ao São Joãozinho, como alguns apelidam carinhosamente. O que
ocorre de mais movimentado na cidade é de fato essa festa de celebração religiosa onde todos
se dedicam para essa comemoração. A cidade no dia após a festa estava pouquíssimo
movimentada, uma ou outra pessoa estavam andando na rua e o único cartório da cidade
estava fechado. Soubemos que no dia seguinte era feriado municipal de Santa Teresa, dia da
partilha de terras dos imigrantes, e em razão disso muitos viajaram ou estavam recolhidos.
Buscamos o Sindicato Rural Patronal de Santa Teresa e a Associação de Moradores e
disseram que não podiam nos ajudar sobre a história da comunidade e algumas considerações
sobre o lugar. Notamos certa má vontade de manterem um diálogo conosco. Pode ser que
estejam cansados de estudantes da Ufes sempre visitando e perguntando sobre a localidade ou
estarem se preparando para o feriado e querendo fechar mais cedo para descansar. Nos
informaram sobre uma moradora chamada Maria Auxiliadora (Dorinha) e que esta poderia
nos ajudar em tudo que precisássemos.

Conseguimos contatar Dona Dorinha e ela estava na igreja organizando as coisas pós-festa de
São João, pediu para entrarmos e batemos um longo papo sobre o início da localidade. Por
conta da idade um pouco avançada ela não conseguia seguir muito bem uma linha
cronológica dos fatos e muitos repetia por mais vezes, mas a deixamos bem livre para nos
relatar tudo que queria. Ela contou que seu bisavô era dono de tudo antigamente, seu nome
era Luiz Vivaldi, o famoso capitão de quem Vítor nos contou sobre a revolta do Calhau.
Contou-nos como era a rigidez dele e o quanto odiava os negros, não poderia ver um
passando longe na estrada que atirava para matar, o que pra nós é um absurdo a 140 anos
atrás eram completamente normal. Seguimos com os relatos e ela nos contou que ele era o
poder local da região através de uma patente conseguida pelo governo do Estado e convidou-
nos até sua casa para ver a tal patente que ela guardava. Percebemos que sua fala já possui
vícios de linguagem, pois Dona Dorinha concede muitas entrevistas, nos mostrou até
reportagens de jornais que ela saiu explicando a história de sua família e do luagar.

Ainda em sua casa, além da festa de São João que já tínhamos conhecimento, Dona Dorinha
nos explicou sobre a festa que se chama Terno de Reis que é uma variação da Folia de Reis
que é mais comum de acontecer por outras localidades do estado. Porém a Terno de Reis é
mais séria, não possui o palhaço e as máscaras típicas da outra e as vestimentas são mais
comuns e parecidas com roupas normais, arrumadas, creio que é daí que vem o termo terno.
A senhora que nos entrevistou mostrou várias fotos dela e de seus amigos da comunidade no
encontro nacional de Folia de Reis, logo acredito ser algo culturalmente muito forte na
região.

Compreendo com essa ultima colocação que a forma mais forte de comunidades do interior
se expressarem é por meio de seu sincretismo religioso com festas e devoção fervorosa.
Sabemos que a Folia de Reis culturalmente falando é uma festa que não é de origem
cristã/católica, mas a maioria dos grupos que se apresentam esboçam essa tendência. Não
julgo essas comunidades também, não se tem muitas coisas para fazer no interior, então deve-
se aproveitar a forma de interação que está posta desde o início da colonização: a igreja.
Quando chega um povo numa localidade uma das primeiras coisas que eles fazem é reservar
um espaço de templo religioso/ casa de oração para agradecer pela vida naquela nova terra e
também para pedir por futuros melhores e colheitas boas. Não consegui encontrar em São
João de Petrópolis nenhuma marca de palimpsesto a não ser a das construções. Essas,
independente da região do Brasil, vão passando por mudanças e renovações. O que não
consegui ver foi a presença de algo marcante na cidade sem ser todo o ambiente inteiramente
caracterizado por imigrantes europeus. Logo acredito que isso seja uma representação
cultural de apenas um viés. As pessoas negras que hoje moram e trabalham no pequeno e
único restaurante da cidade, se sentem representadas pelas marcas do lugar? Ou fazem parte
de mais um enorme contingente populacional que foi morto, esquecido e teve suas culturas
apagadas? Talvez o palimpsesto cultural que procuramos em localidades de fundação branca
e europeia seja esse. Alguma resistência gritando que existe para pessoas que não estão
querendo ouvir por ser a maioria da localidade.

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