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Bandeiras, pessoas e causos em circulação: notas sobre o movimento e o território

durante a Folia do Divino1

Karina da Silva Coelho (PPGAS USP/SP)

Resumo: Neste artigo apresento a circulação de bandeiras, pessoas e palavras durante o


período da Folia do Divino Espírito Santo entre vilas insulares e continentais na divisa
do litoral paranaense e paulista. Trata-se de um território em constante movimento, no
qual as dinâmicas territoriais são estabelecidas e mediadas pelos deslocamentos dos
moradores entre baías e canais e pelo próprio movimento desse ambiente, através das
marés e ventos. Família, festas, fé e trabalho são as principais expressões que motivam
o deslocamento por um território que não se limita a um lugar geográfico, mas a um
lugar existencial. Neste artigo tomo como ponto de partida a peregrinação da Folia do
Divino a fim de pensar sobre a circulação de pessoas, seguindo as bandeiras; e a
circulação de palavras, através dos causos contados durante o café gordo, como uma
expressividade que faz o território. No período em que a Folia e sua tripulação
percorrem a região, os deslocamentos dos moradores são intensificados. Esse trânsito
dos moradores acompanhando as bandeiras é um modo de produzir contiguidade entre
famílias e vilas separadas pelo mar. Do mesmo modo que produz movimento entre
vilas, a Folia suspende o movimento dos moradores para fora de sua vila quando as
bandeiras chegam no porto. É tempo de receber a visita do Divino. Pretendo pensar os
causos contados durante esse período como forma narrativa que constitui uma memória
comum sobre o território, conectando pessoas, lugares, casas, tempos e memórias. A
partir da circulação de palavras e de pessoas ao longo da Folia do Divino, busco
descrever o movimento como prática de conhecimento entrelaçada pela família e pelo
território.

Palavras-chave: movimento; território; Folia do Divino; causos.

A contação de causos2 durante a Folia do Divino nas ilhas do litoral norte


paranaense e sul paulista me chamou a atenção durante as duas vezes que acompanhei a
peregrinação das Bandeiras do Divino Espírito Santo e da Santíssima Trindade, em
2016 e 2018.3 Os causos contados durante o café gordo são um momento muito especial
de confraternização, conversa e acolhimento. É hora de aproximação da tripulação das

1 Trabalho apresentado na 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 09 e 12 de


dezembro de 2018, Brasília/DF.
2 Estão grafados em itálico categorias, expressões e falas de meus interlocutores.
3 Apresento neste paper uma reflexão preliminar sobre questões que perpassam minha pesquisa de
doutorado. São ideias que requerem um amadurecimento maior, mas que envio sob forma de um ensaio
livre, pensando na importância de discutir essas questões enquanto ainda realizo trabalho de campo.

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Bandeiras com os moradores e da confraternização entre vizinhos e familiares. Contar
causos é uma prática que permeia diversos momentos do cotidiano entre as vilas que
estudo. Ela se tornou interessante de ser observada durante a Folia do Divino devido à
sua recorrência, pois a cada casa visitada, a cada café servido durante as visitas das
bandeiras, era a contação de causos em torno de uma mesa de café que reunia os
moradores e prendia sua atenção em assuntos que rememoravam suas memórias sobre
as Bandeiras e sobre o território.
A territorialidade caiçara, em especial na região fronteiriça entre o litoral sul
paulista e norte paranaense, abarca o movimento não apenas como uma possibilidade,
mas como uma certeza, é parte da memória territorial dos moradores dessa região. Neste
ano de períodos prolongados em campo me deparei com duas narrativas interessantes
que expressam o território em movimento: de que a Bandeira é coisa do início do
mundo; e de que abertura da Nova barra é o início do fim. Enquanto na primeira
narrativa podemos observar o modo encontrado pelos mais velhos para explicar sua fé
no Divino, como algo que remete não só às suas próprias experiências, mas às estórias
contadas pelos seus pais e avós; na segunda, de que a abertura da Nova barra é o início
do fim, encontramos um modo de narrar um novo movimento do território: a abertura de
uma nova barra que dividiu a ilha do Cardoso (território paulista) em duas partes
territoriais. Esse acontecimento geológico, há muito tempo esperado e sobre o qual
ainda não é possível precisar os efeitos sobre as vilas da região, parece marcar o início
de um novo tempo em que a imprevisibilidade do movimento do mar e, portanto, da
terra, pode determinar (em último caso) a realocação de duas vilas, Pontal do Leste (SP)
e Barra do Ararapira (PR), para outro lugar.
Tomo os causos como inspiração para este texto por dois motivos. Primeiro pelo
modo como esses momentos produzem contiguidade4, aproximando e conectando
moradores de vilas separadas pelo mar e pelo mato, pois informa sobre fatos ocorridos
nas vilas por onde a Bandeira passou anteriormente, construindo uma memória comum.
Mesmo que seja contado de maneiras diferentes de acordo com a localidade, a
informação passada é a mesma. O segundo motivo está relacionado ao modo como aos
causos são atribuídas versões distintas a medida que circulam entre vilas. Acredito ser

4 Ao “produzir contiguidade”, a contação de causos, assim como outros momentos rituais durante a Folia
do Divino não apenas mantêm como reavivam e constituem um sentimento de pertença ao território
caiçara, assim como observa Pereira (2011) em sua pesquisa sobre as Folias de Urucuia, em Minas
Gerais.

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essa uma maneira bastante interessante de abordar o movimento das Bandeiras, sua
tripulação e moradores por entre um território em constante movimento, afinal de
contas, junto à circulação de Bandeiras e pessoas, circulam palavras através dos causos.
Mais que isso, a Folia, através dos causos contados constitui uma memória comum
sobre um território que não se limita a um espaço físico delimitado, mas ajuda a pensar
a territorialidade por entre um território em constante movimento.
Portanto, o território não é só um lugar ou lugares, uma localização geográfica. Um
território marcado por movimentos (das marés, dos ventos, de pessoas, de Bandeiras e
de palavras) é um lugar existencial5, marcado pelas histórias e experiências individuais e
coletivas. Ao pensar os causos contados durante a Folia do Divino como forma
narrativa que constitui uma memória comum, busco descrever o território como prática
de conhecimento entrelaçada pelo movimento, pela fé e pela família.

A Bandeira é coisa do início6 do mundo

Durante o período de Pentecostes deste ano, a Folia do Divino Espírito Santo da


ilha dos Valadares percorreu em 31 dias, 17 vilas entre os municípios de Guaraqueçaba
e Paranaguá (litoral paranaense), e Cananeia (litoral paulista), visitando 13 capelas e
261 casas de devotos. Os festejos encerraram na grande Festa do Divino, realizada entre
os dias 18, 19 e 20 de maio, em Pontal do Leste, vila da ilha do Cardoso, em Cananeia
(SP). Durante esse período, as Bandeiras e sua tripulação percorreram um total de 725
quilômetros de barco.
Romaria e Folia são tratados como termos que se complementam pela tripulação
que acompanha as Bandeiras. Segundo o mestre da romaria, Aorélio Domingues, a Folia
dá uma ideia mais completa dessa peregrinação das Bandeiras, pois para ele, andar com
a Bandeira é andar em romaria fazendo devoções ao Divino Espírito Santo. Ao mesmo
tempo é Folia, pois é tempo de união, de comunhão, de ampliar a família, de festejar: é
tempo de alegria.

5 Ao abordar a territorialidade caiçara a partir das expressões que fazem desse território um lugar
existencial dialogo diretamente com a perspectiva de Deleuze e Guattari (2000)[1980]; e também com
Carneiro (2010) em sua pesquisa de doutorado sobre o “povo dos Buracos” no norte de Minas Gerais,
quando a autora descreve o modo como a circulação de palavras e pessoas “ordenam modos de viver e se
relacionar”, atributos que compõem os “contornos do espaço” (: 26).
6 Em diversos contextos de manifestações religiosas associadas à cultura popular no Brasil a afirmação de
que determinado festejo remete ao “início do mundo” é muito comum.

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O que a gente fez dali do porto pra cá é romaria. O que a gente vai
fazer na comunidade é romaria. Folia do Divino é a tripulação, é o
pessoal que toca. Chama-se folia. É folia porque depois rola uma
brincadeira, rola uma alegria, rola, né, é uma folia. E tem a louvação
do Espirito Santo.
[Mestre Aorelio Domingues, abril de 2018].

A Folia do Divino é coisa do início do mundo, dizem os moradores das ilhas, que
aguardam ansiosamente pelo período de Pentecostes, ano após ano, esperando a visita
do Divino em suas casas. Não é possível precisar o ano de início da Folia nas ilhas, mas
é algo que está inscrito na memória dos mais velhos, que remetem ao tempo de
primeiro7 pra contar causos envolvendo romeiros e a Folia. É coisa do início do mundo,
tão antigo quando a ocupação caiçara nessa região. É comum ouvir dos moradores nesse
período muitas histórias saudosas dos tempos em que havia Folia de inúmeros santos
padroeiros nas vilas. A fé sempre foi expressa em movimento. Ainda que hoje as
comemorações dos padroeiros das vilas sejam realizadas em um fim de semana, toda
festa de santo requer uma procissão no mar, com barcos enfeitados levando a(o)
Santa(o) Padroeira(o).
A Folia do Divino percorre o que venho chamando de território caiçara 8, na divisa
entre os municípios de Guaraqueçaba (PR) e Cananeia (SP). Antigamente existiam mais
mestres de Folia, e por isso saiam sempre dois grupos de romeiros em peregrinação logo
após o domingo de Páscoa. Uma tripulação era responsável por carregar a bandeira
vermelha, do Divino Espírito Santo, em direção ao Sul, e a outra carregava a bandeira
Branca, da Santíssima Trindade, em direção ao Norte. Cada uma com uma tripulação de
foliões percorriam as vilas em sentidos opostos durante o Pentecostes, e se encontravam
no final deste período para a realização da Festa do Divino.

7 Tempo de primeiro é um termo usado por meus interlocutores para descrever um tempo passado, e que
geralmente se opõe ao modo como atualmente as coisas são conduzidas na região. Geralmente é utilizado
quando se conta um causo: de primeiro era assim. O uso feito desta categoria, entre os caiçaras, é análogo
ao termo usado pelos interlocutores de outras pesquisas que se concentram no interior de Minas Gerais,
como em Carneiro (2010), Andriolli (2011) e em Medeiros (2015).
8 Ao falar em território caiçara faço referência à área geográfica onde se concentra expressões culturais
caiçaras já mapeadas em pesquisas acadêmicas e pelo IPHAN, através do registro em 2012, do Fandango
Caiçara como patrimônio cultural imaterial. Esse território é mais extenso, vai do litoral sul do Rio de
Janeiro ao litoral norte do Paraná, mas a pesquisa se concentra na região paulista e paranaense, região do
Lagamar.

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Em sua configuração atual9 as duas Bandeiras se unem e peregrinam juntas, com
uma mesma tripulação. A cada ano a Folia do Divino incorpora novos elementos
cênicos, foliões, vilas e percursos. Em 2018 a Folia visitou quatro novas 10 vilas, três
delas em Cananeia e uma nova em Guaraqueçaba. Esses detalhes expressam a
centralidade do movimento através da circulação das Bandeiras, e o quanto os percursos
e a condução da Folia são circunstanciais. Não é feito de improviso, embora possa
parecer a primeira vista. Ela segue um protocolo pautado na tradição da bandeira,
assegurado pelo alferes e pelos mestres da Romaria, que detêm esse conhecimento. Mas
é circunstancial no sentido em que está sempre sendo feita: depende em primeiro lugar
da vontade do Divino de ir e vir.
As Bandeiras não devem andar na chuva, por exemplo. Se elas chegam em uma vila
e começa a chover muito, é sinal de que elas querem permanecer ali, de que a
comunidade precisa que o Divino, através das Bandeiras e de sua tripulação
permaneçam por mais tempo. Depende também da forma como o Divino é recebido em
cada lugar, do modo como cada oratório é montado. A romaria nunca é igual, as
cantorias, os versos trovados, apesar de terem uma estrutura e repertório comum, são
compostos na hora a partir da imagem que o devoto prepara para a visita do Divino. Os
versos puxados pelo mestre da Folia e acompanhado pelos outros tocadores é feito e
inspirado pela composição do oratório de cada casa e pela emoção e história da família.
Portanto, todo o decorrer da visita do Divino depende da relação que se dá naquele ato
entre bandeiras, devotos e tripulação.
A Folia acontece diariamente durante o período de Ave Maria, iniciando as 6h da
manhã, com a alvorada, e terminando as 18h com o encerro ou fechamento das
bandeiras. Se ao longo do trajeto passamos por uma casa perto das 18h, é lá que as
bandeiras vão passar a noite, pois não se faz cantoria depois desse horário. Se as
bandeiras dormem nessa casa, a alvorada no dia seguinte, as 6h, é realizada lá. O que os
romeiros pedem é que a família onde a bandeira pernoitar abra a casa às 5:30, 5:40 do

9 Em sua configuração atual, a Folia do Divino Espírito Santo no litoral norte paranaense e sul paulista
não é motivada como retribuição ao pagamento de alguma promessa por um folião, que chama a Folia.
Ela tem sido organizada por alguns integrantes da Associação Mandicuera de Cultura Popular de ilha dos
Valadares (município de Paranaguá), que percorrem a região durante o período de Pentecostes há 22 anos.
Ainda que muitos devotos e foliões peregrinem junto às Bandeiras pagando promessas suas ou de
familiares falecidos, esse festejo possui essa particularidade em relação à vasta bibliografia antropológica
sobre Folias, principalmente no Estado de Minas Gerais.
10 O percurso e as vilas pelas quais passam as Bandeiras são definidos a cada ano. São os moradores das
vilas que procuram o grupo ao longo do ano pedindo para que os romeiros passem por elas.

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dia seguinte para que os foliões cheguem há tempo de afinar os instrumentos e tomar o
intiruma, um café preto. O café gordo deve ser servido apenas depois de feita a
alvorada. A visita é divida em três partes. Ao adentrar a casa é cantada a chegada.
Depois de tocada, as Bandeiras são guardadas pra repousar e é servido um café para a
tripulação e para quem mais estiver acompanhando a Folia. Terminado o café, é hora de
dar a despedida11, ou seja, fazer a cantoria final e terminar a visita. Novamente as
bandeiras são levadas para a sala da casa, a tripulação se posiciona e a cantoria
começa.12

A fé em movimento: circulação de Bandeiras e pessoas

Não é a toa que descrevo a circulação nessa ordem, pois a Folia segue um
protocolo: as bandeiras reponteando na frente, e logo atrás os tocadores e os devotos.
Ninguém deve andar na frente das bandeiras, pois são elas que conduzem a Romaria.
As bandeiras vermelha do Divino, e branca da Santíssima Trindade foram feitas e
sempre são ornamentadas, ano a ano, pelo alferes da Folia. Quando não estão em
trânsito elas ficam na Capela do Divino Espírito Santo, na ilha dos Valadares (localizada
no município de Paranaguá, PR). As duas bandeiras ficam presas a um mastro, todo
pintado de vermelho e branco e logo acima da bandeira há uma cachopa de flores, onde
se penduram pedidos e agradecimentos ao Divino e à Santíssima Trindade.
Pedidos e agradecimentos são feitos de variadas formas. O alferes carrega fitas de
cetim de muitas cores, que são vendidas a preço de custo aos devotos. Depois de
escolher a cor, o alferes mede a altura do devoto e corta a fita do seu tamanho, para que
ele escreva seu pedido ou agradecimento. Essas fitas são penduradas com alfinetes na
cachopa. Assim como as fitas, fotos, cartas e notas de dinheiro podem ser penduradas na
cachopa. Cada vila tem modos diferentes de devoção e relação com as Bandeiras.
Algumas penduram muitas fitas, outras só penduram fotos ou dinheiro. O dinheiro
11 Assim como no Fandango Caiçara, a cantoria da Folia é dividida em partes como a chegada e a
despedida. Toda música de Fandango tem essas duas partes.
12 A organização da rotina da Folia é muito parecida com a abordagem feita por Chaves (2014) ao
abordar o os “períodos liminares” das folias norte mineiras por ele pesquisadas, especialmente em
relação a o que o autor denomina como “plano do dia”, que se refere ao trânsito entre casas por onde a
Folia faz o giro; e “plano de visita”, que remete ao formato das visitas. Com exceção das danças, as
visitas às casas de devotos da Folia do Divino no território caiçara também se estruturam através da
chegada → canto → comensais → despedida.

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ofertado dentro da cachopa é sinal de pagamento de promessa de gente já falecida, por
exemplo.
Um aspecto que chama a atenção é o quanto a relação do devoto com a Bandeira e
o Divino é pessoalizada. Ela não é a mesma, assim como a fé é expressa de modo muito
pessoal. Os devotos carregam as Bandeiras durante a andança entre uma casa e outra.
Alguns trechos são mais longos, como, por exemplo, a caminhada até a casa de seu
Cinísio, em Pontal de Leste (ilha do Cardoso, SP), quando se percorre uns 15 minutos a
pé pela praia até a entrada de sua casa. Carregar a bandeira nas mãos durante um longo
percurso pode se tornar uma tarefa difícil. Como o pessoal da bandeira fala muito
durante esses momentos, a bandeira tem o mesmo peso do pecado que a pessoa
carrega. Quanto mais pesada, mais pecado tem o devoto. O curioso é que as Bandeiras
não têm o mesmo peso. Carreguei ambas as bandeiras em longos trajetos durante a Folia
e a bandeira do Divino é bem mais pesada que a da Santíssima Trindade. Sempre que
alguém tem dificuldade em carregar uma das Bandeira devido ao peso, ouvem-se
comentários seguido de muitas risadas de todos, que se divertem ao pensar uns sobre os
pecados dos outros.
A fé na bandeira é a fé no Divino. O Divino também tem uma relação muito pessoal
com cada devoto. Quanto maior sua fé, maior é o seu Divino. A pessoa expressa sua fé
no Divino quando o recebe em sua casa, no modo como a organiza para a visita e cria
uma imagem bonita para aquele momento. Criar uma imagem bonita significa organizar
a sua casa para esse momento tão especial. Cada casa reserva uma particularidade:
alguns oratórios levam fotos de familiares falecidos, noutras os santos de quem a família
é devota, bíblias, velas acesas, copos com água. Em uma casa os devotos montaram um
oratório com Nossa Senhora Aparecida e apetrechos de pesca que simbolizam a luta dos
pescadores artesanais pelo acesso ao uso do território.
Portanto, a romaria é feita da fé e da devoção das pessoas pelo Divino. O
interessante é pensar que toda a composição dos versos feita pelo mestre é construída na
hora, a partir do modo como as imagens bonitas que ele vê o inspiram. A cerimônia é
feita em conjunto, ela é conduzida pelo mestre, mas essa condução depende de uma
série de negociações feitas entre todas as pessoas presentes, que dão um clima para
aquele momento. Os versos sempre são trovados a partir da imagem construída naquele
momento. A duração das cantorias varia de casa pra casa, assim como o tempo de

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permanência nas vilas. Participei de cantorias que duraram cinco minutos, outras de dez
e quinze. Em um encerro as 18h, a cantoria junto com a beijação e o
guardamento/fechamento das bandeiras durou no total 37 minutos.
O Divino tem essa relação muito pessoal com os devotos. Se o tempo vira (o clima)
e chove muito a Bandeira fica impossibilitada de andar. É sinal de que as Bandeiras
necessitam ficar mais tempo naquela casa ou vila. Ela quer permanecer lá. E de fato
cada visita é muito diferente uma da outra. Os fechamentos das bandeiras ao entardecer,
as 18h são sempre embalados pelo pôr do sol, pela luz que entra nas casas iluminando o
ambiente já um pouco escuro. Velas acesas sobre a mesa, imagens de Santos, fotos de
família, devotos emocionados. O som da rabeca, da caixa e da viola, a cantoria. Tudo
isso cria um clima, um ambiente, uma imagem muito bonita mesmo. É impossível não
se conectar a tudo o que está acontecendo ali.
Assim como mencionei que cada visita tem sua particularidade, pois ela, assim
como toda a Folia, é feita ao longo de seu caminhar, em cada vila as Bandeiras são
recebidas de uma forma distintas ao longo dos anos. Como bem mencionou o mestre
folião da romaria, cada vila cria o seu modo de receber a bandeira. Em cada vila por
onde as Bandeiras passam, a primeira visita a ser feita é na capela. Nas capelas o
protocolo é diferente, apenas se canta a chegada, pois cantar a despedida é sinal de
desrespeito: o Divino não de despede de uma capela ou de uma igreja. Após a cantoria
de chegada, o mestre folião apresenta a tripulação das Bandeiras e combina com os
moradores como será a visita do Divino. Por quais casas vai passar, qual percurso irá
realizar. É coisa do início do mundo que as Bandeiras andem sempre pra frente.
Portanto, a primeira casa a ser visitada deve ser escolhida de modo que as Bandeiras não
precisem voltar pra trás. Bandeiras sempre reponteando, sempre em frente, como diz o
mestre folião.

Também é coisa do início do mundo que os devotos das vilas acompanhem o


movimento das Bandeiras – não apenas deslocar-se entre vilas, mas suspender o
movimento para fora de sua vila enquanto elas estão lá. Enquanto as Bandeiras
permanecem num lugar, os moradores também devem permanecer. Significa que não
devem sair pra trabalhar, mas apenas acompanhar as visitas das Bandeiras nas casas da
vizinhança. É tempo também de comunhão entre vizinhos e familiares. Quando as
Bandeiras se deslocam até a próxima vila, é hora de os devotos andarem com elas até lá.

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No percurso entre Vila Fatima (ilha do Superagui, PR) até Tibicanga (ilha das
Peças, PR) as bandeiras e a tripulação foram levadas por seu Aníba e Betinho,
moradores da primeira vila, em suas embarcações. Assim que chegamos em Tibicanga,
as bandeiras foram recebidas pelos moradores até a Capela de São João Batista,
padroeiro da vila. Seu Aníba continuou acompanhando as Bandeiras até lá, e como foi a
primeira vez que essa tripulação visitava essa vila, foi feita uma conversa na capela
explicando como a Folia funcionava. Aníba pediu pra dar um testemunho de sua fé,
contando como, para ele, era importante que a vila suspendesse suas atividades
enquanto as Bandeiras permanecessem lá. Ele disse que pra ele não custava nada parar
um ou outro dia de trabalho pra receber a Bandeira. Que ele faz isso há 45 anos, pode
não ter tudo o que quer, mas que nunca faltou nada em sua casa. Interessante pensar a
partir desta fala, que ainda que as Bandeiras produzam um movimento contínuo de
pessoas entre as vilas durante o Período de Pentecostes, ela também suspende o
movimento.

Isso não ocorre da mesma maneira em todos os lugares. São poucas as vilas
predominantemente católicas na região. Muitos moradores desses lugares foram, pouco
a pouco, convertidos para religiões evangélicas ou neopentecostais nos últimos 20 anos,
em decorrência da instalação de grandes igrejas nas vilas maiores. Em Barra do
Ararapira (PR), Pontal do Leste (SP), Vila Rápida (SP), Nova Enseada da Baleia (SP),
Vila Fátima (PR), Pereirinha/Itacuruçá (SP) e São Miguel (PR) mantêm-se a tradição de
toda a vila parar durante a visita do Divino. Não apenas parar, mas se aprecatar
(previnir) para a visita do Divino: fogos de artifício, mistura, peixe, abacate, café. Um
dinheirinho guardado pra pagar promessa ou ofertar pro santo, etc. Já em vilas divididas
entre católicos e neopentecostais e/ou evangélicos, vemos, como em Bertioga (ilha das
Peças, PR), metade da vila parada, em festa, e outra metade mantendo suas atividades
de trabalho, embora sempre muito curiosos e observadores das festividades. Ainda que
tenha essa separação entre religiões diferentes, são muito crentes que recebem o Divino,
ou acompanham as visitas.

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O café gordo e a contação de causos

Durante uma visita a dona da casa começa a chamar todo mundo pra
tomar café:
- Café, café, venham tomar café.
alguém pergunta:
- e pra senhora, o que que a bandeira mexe com a senhora?
- ai, mexe ca fé, né?

Todo causo requer um café, assim como todo café requer um bom causo. Um causo
só é bem contado se conseguir arrancar boas gargalhadas daqueles que o ouvem. Em
oposição ao intiruma, que é um café preto e sem mistura, tomado rapidamente. O café
gordo é momento de reunião, de fazer folia, de contar causos, de fazer festa, dar risada.
Enquanto as pessoas se fartam com o café gordo servido pela família que está
recebendo a visita, os romeiros começam a contação de causos, que acaba sempre em
muita risada e diversão. É o ponto alto da comunhão entre devotos, momento de
conversar, de compartilhar intimidades, de matar as saudades e rememorar causos de
outras Folias e de causos que ocorreram ao longo do percurso da Folia.
Para ter graça, ou deve se referir a alguma pessoa conhecida ou o contador de
causos tem que ser muito bom. Portanto, aquela(e) que souber contar bem uma estória é
ouvido por todos com muita atenção, do contrário, é possível ver várias pessoas
contando causos simultaneamente. O principal contador de causos da Folia é Jairo
Souza, o romeiro mais antigo da tripulação. Nascido em Ararapira Velha (ilha do
Superagui, PR) ele começou na romaria aos 12 ou 13 anos, cantando como tipe e
acompanhando seu avô, e mais tarde se tornou mestre tocador de caixa. São mais de 40
anos participando da Folia, fato que o faz um exímio contador de histórias. O mestre
folião e o alferes também costumam contar causos, mas eles não têm o mesmo sucesso
que Jairo, ou seja, nem sempre conseguem prender a atenção de todos. Isso se deve a
vários motivos, mas destaco um em especial. Jairo é nascido no sítio13 e compartilha das
estórias, vocabulários e memória territorial da região. Como ele mesmo conta, percorreu
inúmeras vezes vários dos percursos feitos pelos foliões desde muito jovem, quando a

13 Ser nascido no sítio é ter nascido nas ilhas do litoral norte paranaense, em Guaraqueçaba. A ideia do
sítio se opõe à cidade, principalmente para aqueles que nasceram no sítio e se mudaram para a ilha dos
Valadares, em Paranaguá. Entre os foliões, apenas Jairo é nascido no sítio. Embora o mestre folião e o
alferes tenham nascido em Valadares, andam em romaria já há mais de 20 anos. Sobre a oposição sítio –
cidade entre os caiçaras e seus movimentos entre as ilhas de Guaraqueçaba, e a ilha dos Valadares, em
Paranaguá, ver Martins (2006).

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tripulação da Bandeira percorria as vilas em canoa a remo. Por isso é também muito
conhecido por todos, entre algumas vilas recebe o apelido de Jairo pachola ou
pacholinha14. Sabe contar causos sobre vários mestres foliões com quem seguiu em
romaria ao longo de sua vida.
Saber contar causos demanda certa intimidade com as memórias territoriais, com
causos antigos, com o vocabulário e expressões caiçaras. Além disso demanda ter o
domínio do saber contar. O contador de estórias deve saber entonar a voz de modo que
chame a atenção, deve saber imitar os trejeitos das pessoas de quem está falando. Tem
todo um modo de se expressar corporalmente em cena, porque o contador de estórias
sempre conta os causos de pé, movimentando-se de um lado para o outro. São feitas
caras e bocas imitando o modo de falar, andar, remar, pescar. Muitas vezes ele não
precisa nem dizer sobre quem está falando, pois o modo como imita os trejeitos da
pessoa faz com que todos saibam.
Tava lá na Barra [do Ararapira] e lá longe vinha doizinho remando e remando
[enquanto o contador fala, vai imitando o modo que a pessoa rema]. Antes que pudesse
terminar as pessoas já adivinham de quem se está falando. O riso é alto. Quem não
conhece a pessoa ri da gargalhada dos outros.
O personagem principal de um causo geralmente é alguém conhecido por aqueles
que estão ouvindo, fato que o torna engraçado e faz render infindáveis gargalhadas.
Portanto, para cumprir o papel de fazer rir, um mesmo causo pode ter inúmeras versões,
cada uma com um personagem principal diferente. As versões são criadas dependendo
de para quem ou onde é contado, afinal de contas, a estória tem mais graça quando
informa sobre algo ocorrido com um conhecido ou uma atividade comum, como o
batelanço, um tipo de pesca individual feita de canoa a remo no mar de dentro, prática
de Barra do Ararapira.
Um causo é contado sempre envolvendo dois foliões. O que começa o papo para
que o contador de estórias entre em cena. É a forma de puxar o causo, por exemplo,
perguntando para Jairo sobre determinada pessoa ou situação, para que ele continue a
estória.
A pessoa vai colocando detalhe, puxando Jairo, e ele vai modificando
a estória, trazendo novos elementos, depende de onde estamos. Tipo,
durante o café, pergunto, e aí Jairo, e aquela tal pessoa? Aí que ele
começa, ao ser provocado, digamos assim.

14 Pachola é alguém metido.

11
Entender os causos também demanda tempo e intimidade com o vocabulário
caiçara, com os lugares e pessoas. De início é difícil entender do que tanto as pessoas
riem, ou mesmo decifrar verbos, expressões e adjetivos utilizados. O fato é que também
os causos foram ficando cada vez mais engraçados a medida em que eu fui percebendo
as diferentes versões de uma mesma estória sendo contada pela vigésima vez. Muitas
vezes é a própria tripulação quem chama o riso, que primeiro ri do causo ou da
imitação.
Um outro detalhe é que o causo não deve se prolongar muito. A estória
necessariamente deve ser curta, sem muita enrolação, deve chegar logo ao ponto. É
como disse Jairo, ao ser questionado por alguém que acompanhava a Folia pela primeira
vez dizendo, Ixe, essa estória está cada vez mais curta. Rapidamente ele respondeu,
mas não é pra prolongar muito, pra bom entendedor meia palavra basta. O bom
entendedor reconhece nos trejeitos e expressões sobre de quem se está falando, pois
compartilha as memórias de outras romarias, das pessoas e do território.
Além dos que fazem rir existem causos contados com o intuito de ensinar, passando
sempre a ideia de que o Divino carrega uma força muito potente: não se brinca com o
Divino e não se desdenha Dele. São causos contados ou para os mais jovens ou para
pessoas de fora, que não conhecem a tradição da Bandeira. Em várias vilas ouvi duas
estórias que segundo os moradores havia acontecido ali mesmo.

#1
A bandeira tava chegando e fulano [em cada lugar era uma pessoa
diferente] que tava no trapiche, lidando com seu barco novo, tirando
ele pra sair. Ele disse:
- Ah, eu que não vou parar o que eu tô fazendo pra ir atrás dessa
Bandeira né?
E não parou o que estava fazendo para ver a chegada da Bandeira na
ilha. Tratou ela como se fosse bobagem e não parou seu trabalho. Aí
passado um tempo, o motor do barco dele que era novo parou de
funcionar.

#2
Fulano [em cada lugar era uma pessoa diferente], desdenhando da
Bandeira disse que ia chutar a Bandeira quando a visse, quando ela
chegasse no porto. Ele apenas disse que o faria, mas não fez. Logo no
dia seguinte ele foi jogar bola, como de costume. Na primeira vez em
que foi chutar a bola, ele quebrou a perna, apenas com um chute na
perna. Pense.

12
O início do fim: o território em movimento

Para os moradores das vilas insulares e continentais da região do Lagamar o mar é


uma coisa viva. O território pensado a partir dos moradores é permeado por relações
entre pescadores/caiçaras e a lua, a maré, os ventos, o sol, o Divino, os peixes, as aves,
os animais de caça, etc. Como afirmei no início desse texto, o território não se restringe
a um lugar físico e/ou geográfico, mas se constitui enquanto prática de conhecimento
entrelaçada pelo movimento, pela fé, pela família, pelos bichos. Os moradores nem de
perto são os únicos agentes. No entanto, cabe a eles a responsabilidade de manter as
possibilidades de existência de todos esses outros agentes, responsabilidade que é
assumida através do reconhecimento de que tudo está movimento, e que é necessário
respeitar as vontades da natureza, e se adequar a ela.
Durante os últimos meses estive em Barra do Ararapira, uma das seis vilas
localizadas na ilha do Superagui (Guaraqueçaba, PR). Minha principal questão durante
este último período em campo era entender o que fixa os moradores nessa vila em
especial, já que grande parte da minha pesquisa de campo neste ano esteve concentrada
em entender o movimento dos moradores entre vilas na região do Lagamar Caiçara,
incluindo os períodos que acompanhei a Folia do Divino entre abril e maio, e uma
viagem de canoa entre ilhas e vilas da região durante o mês de julho.
Logo no início da pesquisa de campo, em setembro deste ano, pedi para que um
morador da vila me levasse próximo ao local onde morava15 quando criança. Ao longo
dessa caminhada pude observar e compreender melhor as dinâmicas territoriais dos
moradores dessa vila, acostumados a montar e desmontar suas casas ao longo dos anos
em função do movimento do território. Em vários momentos, Delmiro apontava para o
mar e me mostrava onde ficava a casa de seus pais, onde ficavam as árvores que ele
subia e brincava quando criança, entre 50 e 100 metros à frente, um local totalmente
tomado pelo mar nos últimos 40 anos.
No entanto, para entender o que os mantém fixados nessa vila é necessário antes
compreender a fluidez e a instabilidade do mar e da terra, o movimento das marés e
ventos e, principalmente, entender a dinâmica da barra16, uma desembocadura pela qual

15 Bazzo (2010) descreve em detalhes como a barra próxima à Barra do Ararapira transforma, de tempos
em tempos, mar em mato e mato em mar.
16 Quando fala em Barra do Ararapira, a vila, escrevo-a com letra maiúscula. Quando uso a inicial
minúscula estou falando da barra, uma formação geológica, a desembocadura entre o mar de dentro e de

13
as águas do mar de dentro e de fora se encontram e se movem. A escolha desse local
para morar não é mero acaso do destino, mas uma busca. A busca por moradia próximo
à Barra, essa região do mar que garante piscosidade (grande número de peixes) e,
portanto, melhores condições de pesca.
Segundo os barreanos, a vila foi formada por seus ascendentes familiares vindos do
litoral paulista, especialmente do Caminho da Ararapira, um trecho dentro da ilha do
Superagui, de cerca de 12km pela densa mata atlântica, que liga a atual vila à Ararapira
Velha, atualmente uma vila fantasma. Em parte porque todos os seus moradores terem
ido embora de lá nos últimos 40 anos; em parte porque é lá que fica o cemitério onde
são enterradas as pessoas da Barra.
Barra do Ararapira tem uma peculiaridade em relação às outras vilas do Superagui.
É o local que mais sente a ação da erosão e progradação (aumento) deste território, dada
a proximidade com a barra. É também em função da barra que a vila se formou.
Segundo os moradores mais antigos, o movimento da barra em direção ao local onde
hoje se encontra foi o principal motivo para o estabelecimento da vila num local com
condições tão adversas pra se fazer e manter moradia, dada a instabilidade do território.
No entanto, é a piscosidade no rio ou mar de dentro e no mar de fora, na região
próxima à barra, que fez com que essas famílias procurassem lugares mais próximos a
ela para morar, mesmo que ao longo dos anos tivessem que mudar literalmente o local
de suas casas devido ao desmoronamento do seu território.
É com base nas histórias contadas por meus interlocutores, mas também em estudos
oceanográficos e geológicos que tenho procurado entender a dinâmica da barra.
Segundo Angulo (2004), a ilha do Cardoso17, pertencente ao Estado de São Paulo,
sofreu progradação de seu território a partir do movimento da barra em direção
sudoeste. Ou seja, a ilha do Cardoso aumentou seu tamanho nos últimos 360 anos,
acrescendo à ilha uma faixa de restinga. Ao longo desse período várias famílias foram
fazendo moradia nessa região e atualmente esse território abriga três vilas: Vila Rápida,
Enseada da Baleia e Pontal do Leste. A barra se deslocou mais de 1200 metros nessa
direção entre 1953 e 1980 (ibid). À medida que o movimento da barra aumentou a ilha
do Cardoso, causou inúmeros pontos de erosão da ilha do Superagui, em especial na

fora.
17 De Barra do Ararapira é possível ver, a poucos quilômetros de distância, a vila de Pontal de Leste (ilha
do Cardoso), já território paulista. É possível atravessar o mar que separa as duas vilas em menos de dez
minutos de voadeira.

14
região onde hoje se encontra a vila de Barra do Ararapira. Nos últimos 50 anos o mar
gastou cerca de 100 metros da vila, ou seja, o mar tomou conta dessa faixa do território.
Essa areia e terra tomada pelo mar foi se acumulando em forma de coroas18 ao longo da
extensão do mar de dentro e também foi aumentando pouco a pouco a ilha do Cardoso.
O conhecimento das fases da lua é fundamental para a compreensão da dinâmica
das marés e do território, pois a constituição (física) do território se dá através dos
movimentos constantes das marés e ventos. Em virtude da maré baixa aparecem vários
baixios e coroas, sobre os quais é necessário ter conhecimento pra navegar,
principalmente em áreas como o Canal do Varadouro e o mar de Ararapira, no qual há
um processo erosivo que é intensificado pelo funcionamento da barra do Ararapira. A
barra é caracterizada pela presença de bancos de areia que reduzem a profundidade
marítima, além de gerar forte arrebentação. Como esses reservatórios de areia estão em
constante movimento, devido à dinâmica costeira e a influência de ventos e marés, o
movimento desses reservatórios altera, de tempos em tempos, o local da desembocadura
da barra, modificando o território próximo: o constante processo erosivo, no qual a areia
sai da ilha do Superagui e incrementa a Ilha do Cardoso.
No dia 27 de agosto de 2018, um mês antes do meu retorno à Barra do Ararapira fui
surpreendida com uma notícia esperada há muitos anos pelos moradores, mas sobre a
qual não se sabia precisar quando ocorreria. Durante uma maré de lua19, no segundo dia
de lua cheia, o mar de fora e o mar de dentro se encontraram e dividiram em duas a ilha
do Cardoso. Há muitos anos essa área da ilha do Cardoso vinha sofrendo com a erosão,
provocada principalmente durante a maré vazante (maré baixa), que vinha gastando
essa região de restinga. Estive no local no final do mês de julho desse ano, e nesse
momento a ilha estava prestes a se dividir: eram no máximo 4 metros de extensão do
território da ilha que dividia o mar de dentro do mar de fora. No entanto, ninguém
previu que isso ocorreria exatos um mês e dois dias depois.
Em menos de 24h essa abertura aumentou para cerca de 200 metros; e na data em
que saí do campo, em 21 de outubro, a abertura já tinha mais de 650 metros. Ao mesmo
tempo que esse evento era algo esperado e extremamente curioso, ele trouxe muito
receio quanto a o que vai acontecer num curto espaço de tempo. E de fato já vem

18 Bancos de areia.
19 São designadas como marés de lua todas as mudanças de maré ocorridas durante as luas fortes, a Lua
Cheia e a Lua Nova.

15
modificando uma série de coisas: o deslocamento, a dinâmica das marés, a dinâmica da
pesca e coleta. A previsão é que agora que o mar encontrou um outro lugar para entrar
na baía, diminua cada vez mais o fluxo de água que entrava na baía pela barra do
Ararapira. Com a diminuição do fluxo de água, e a erosão provocada pela nova
passagem do fluxo de água a 6 quilômetros dali, essa areia que esta sendo gasta pelo
mar, vai se depositando em outro lugar, criando uma progradação, ou seja, o aumento
territorial de alguma área próxima. Se desde antes desse acontecimento já existiam
algumas previsões de moradores e oceanógrafos sobre o que aconteceria20 com as vilas
de Pontal de Leste e Barra do Ararapira, atualmente todos especulam o que pode
acontecer.
Uma das mudanças que pode corroborar com as hipóteses de seu Rubens Muniz,
importante liderança da Barra do Ararapira, é que a abertura da nova barra que dividiu
em duas a ilha do Cardoso fará com que a areia e terra que estão saindo dessa região se
deposite em outro lugar, de modo as ilhas (do Superagui e essa faixa do Cardoso que se
separou) se juntem. Caso isso ocorra, os limites territoriais dos estados de São Paulo e
Paraná, e suas respectivas Unidades de Conservação, o Parque Estadual da ilha do
Cardoso e o Parque Nacional do Superagui, terão que ser revistos.
Outra teoria local sobre o que pode acontecer, é que a diminuição do fluxo de água
e consequente aumento da salinidade, toda essa região irá virar mangue, aumentando a
quantidade de mosquitos (que já não é pequena), além de dificultar a pesca em mar
aberto, já que os moradores terão que se deslocar seis quilômetros até o local da nova
Barra para transpô-la e acessar o mar aberto.
Ambas teorias são especulações sobre o que pode acontecer. Além delas, existem
uma série de narrativas e modos de descrever e perceber o que já está acontecendo. É o
início do fim, é o fim da Barra do Ararapira; e maldita barra, foram frases que ouvi
repetidas vezes durante os meses de setembro e outubro desse ano, principalmente pelas
mulheres. Elas sentem muito medo de navegar por essa região do mar depois que a nova
barra abriu. Como a nova barra está em constante processo de formação, o mar está
muito instável. São ondas vindo em todas as direções, é possível ver pedaços de terra
com vegetação flutuando no mar. A antiga vila de Enseada da Baleia está sendo

20 Importante ressaltar que no ano de 2016 a vila de Enseada da Baleia teve que ser removida dessa
região, devido ao risco iminente da nova barra abrir ali. Não entrarei em detalhes da remoção nesse
momento, mas os moradores puderam escolher um novo local de moradia alguns quilômetros dali
formando a Nova Enseada da Baleia.

16
totalmente comida pelo mar e é impressionante passar por ali e ver imensas árvores
caídas, casas desmontadas, enfim, ver a ação do mar invadindo a antiga vila e
confirmando uma das previsões de moradores e oceanógrafos. Esse novo contexto tem
produzido um grande alvoroço entre os moradores. Ao mesmo tempo em que muitos
têm medo do que poder vir acontecer, há uma imensa curiosidade e vontade de visitar a
antiga vila para ver como a nova barra está se formando.
Esse acontecimento tem gerado novos causos e também brincadeiras sobre o modo
de nomear a nova barra. Como vamos chamar essa parte da ilha que se dividiu? Ilha
dos aposentados? E a nova barra, Barra de Turíbio? Turíbio é um senhor que mora na
ilha do Superagui, exatamente na frente do local onde a nova Barra abriu. Foi uma
brincadeira feita pelo mestre folião do Divino nas redes sociais, em postagens dos
moradores da região. Algumas pessoas, em tom de brincadeira, as vezes utilizam o
nome barra de Turíbio para descrevê-la.

Entre o início do mundo e o início do fim

Ao longo deste texto procurei descrever etnograficamente o modo como os causos


contados durante a Folia do Divino Espírito Santo se somam a outras expressões que
compõem a territorialidade caiçara. São reflexões preliminares, pois foram produzidas
entre períodos de pesquisa de campo. Quando tive a ideia inicial para este paper não
contava com a abertura da Nova barra, esse acontecimento geológico que permanece em
intensa formação e sobre o qual ninguém ousa precisar o que vai acontecer. Optei por
registrá-lo neste momento a fim de pensar sobre as formas narrativas encontradas pelos
moradores para compor novos causos e expressar novas teorias sobre o que poderá
acontecer.
A Folia do Divino Espírito Santo por entre ilhas e vilas do litoral norte paranaense e
sul paulista promovem deslocamentos “extensivos e intensivos” (Dainese e Carneiro,
2015) de Bandeiras, pessoas e palavras por entre um território em constante movimento.
Ao descrever o que pode ser chamado de “tempo da Bandeira” 21 e o seu efeito reflexivo
no ordenamento do espaço, através dos causos, tive como objetivo refletir sobre como a

21 Aqui faço referência direta a afirmação de Moacir Palmeira (2001: 175) de que “Em princípio tudo é
‘temporalizável’, mas só é temporalizado (isto é, transformado em tempo, como o tempo da política, o
tempo das festas, etc) o que é considerado socialmente relevante pela coletividade em determinado
momento”.

17
expressividade das festas religiosas mobilizam memórias do território e reforçam
dinâmicas de pertencimento (cf. Pereira, 2011).

Referências bibliográficas

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Carneiro, Ana Cerqueira. O “Povo” Parente dos Buracos: mexida de prosa e cozinha no
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1ed.Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.

18
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Pereira, Luzimar. Os Giros do Sagrado: um estudo etnográfico sobre as folias de


Urucuia, MG. 1. ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.

19

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