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Etnográfica

Revista do Centro em Rede de Investigação em


Antropologia
Número especial | 2022
Número especial

Caixas e caixeiras do Divino Espírito Santo,


Maranhão
João Leal

Edição electrónica
URL: https://journals.openedition.org/etnografica/12698
DOI: 10.4000/etnografica.12698
ISSN: 2182-2891

Editora
Centro em Rede de Investigação em Antropologia

Edição impressa
Paginação: 79-84
ISSN: 0873-6561

Refêrencia eletrónica
João Leal, «Caixas e caixeiras do Divino Espírito Santo, Maranhão», Etnográfica [Online], Número
especial | 2022, posto online no dia 22 dezembro 2022, consultado o 29 dezembro 2022. URL: http://
journals.openedition.org/etnografica/12698 ; DOI: https://doi.org/10.4000/etnografica.12698

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https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/
Caixeiras do Divino Espírito Santo (São Luís, Maranhão, 2012).
Fonte: Fotografia do autor.
Caixas e caixeiras
do Divino Espírito Santo, Maranhão

João Leal
CRIA/NOVA FCSH, Lisboa, Portugal

C
aixa é a designação dada em São Luís (Maranhão, Brasil) a um ins-
trumento de percussão que pertence à categoria dos membranofones.
É um instrumento de altura indefinida, isto é, caracterizado pela
ausência de escala, produzindo apenas um único som. Tem duas faces em couro
e a sua caixa de ressonância, cilíndrica, é construída em madeira, pintada em
várias cores. Tem entre 30-35 cm e 40-45 cm de diâmetro e entre 50 e 70 cm
de altura, e é tocado – na sua face superior – com duas baquetas.
A caixa é, em São Luís – e em outras áreas do Maranhão –, um instrumento
usado exclusivamente no âmbito das festas do Divino Espírito Santo (Gustavo
Pacheco, Cláudia Gouveia e Maria Clara Abreu, 2005, Caixeiras do Divino Espí-
rito Santo de São Luís do Maranhão; Marise Barbosa, 2006, Umas Mulheres que
Dão no Couro; João Leal, 2017, O Culto do Divino: Migrações e Transformações;
Lysandra Domingues, 2020, “Eu vou Cumprindo a Minha Sorte”: uma Etnografia
das Caixeiras de São Luís do Maranhão). É tocado por mulheres – as caixeiras –
que formam grupos que podem englobar até oito executantes. O grupo é diri-
gido por uma caixeira-régia, que é a detentora de um conhecimento exaustivo
do repertório do grupo, integrado por centenas de cânticos. É ela que puxa a
maioria dos cânticos e tem dotes reconhecidos de improvisadora. A maioria
das caixeiras são negras, de segmentos sociais de baixa renda e são tendencial-
mente idosas, muitas vezes viúvas. Geralmente começaram a tocar quando
jovens, mas depois do casamento – ou por não conseguirem conciliar as ativi-
dades domésticas e a criação dos filhos com a atividade de caixeiras, ou por os
seus maridos se oporem às suas saídas frequentes – tiveram de interromper a
sua atividade musical, à qual voltam quando ultrapassados esses constrangi-
mentos.
Geralmente, são motivações religiosas – a devoção ao Espírito Santo, uma
promessa, o pedido de algum encantado – que fazem com que uma mulher se
torne caixeira. Mas a sua consagração à caixa não pode ser compreendida sem
a sua paixão pela música.
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A articulação das festas do Espírito Santo a grupos de música tradicio-


nal é frequente. Nos Açores existem as folias, com composição e repertórios
variáveis de ilha para ilha. Algumas festas realizadas na diáspora açoriana na
América do Norte são também dirigidas e acompanhadas por folias. E grupos
musicais tradicionais com características e funções similares – também desig-
nados folias – encontram-se ainda em vários estados brasileiros. Mas só em São
Luís – assim como noutras regiões do Maranhão – esses grupos são compostos
por mulheres.
Em São Luís, as festas do Espírito Santo – também conhecidas como festas
do Divino – realizam-se maioritariamente em terreiros de tambor de mina – a
religião afro-brasileira predominante na capital do Maranhão. Num total anual
de 80 festas, 60 realizam-se em terreiros. Algumas festas convergem para o
domingo de Pentecostes – o sétimo domingo após a Páscoa – mas a maioria
realiza-se ao longo do ano, em conjunto com a celebração de uma invocação
de Nossa Senhora ou de uma santa (ou santo) católica cultuada pelo terreiro.
As festas resultam tanto da devoção ou de promessa ao Divino Espírito
Santo do pai ou da mãe-de-santo do terreiro, como do pedido de um encan-
tado que simpatiza com a festa ou é devoto do Divino. Estão organizadas
em redor de um conjunto de símbolos religiosos que incluem a coroa, a ban-
deira do Divino e o pombo. Durante os festejos, estes símbolos são instalados
numa tribuna montada no terreiro que promove a festa. As festas dão também
grande protagonismo ao mastro: para além do seu valor religioso, ele assinala o
local de realização dos festejos.
No centro das festas encontram-se os impérios: um conjunto de crianças e
pré-adolescentes de ambos os sexos que desempenham os cargos de impera-
dor e imperatriz, mordomo e mordoma-régio(a), e mordomo e mordoma-mor.
Geralmente, a criança começa no cargo mais baixo para nos anos seguintes
ir ocupando os cargos mais elevados. O desempenho destes cargos resulta de
uma promessa feita ao Espírito Santo por um familiar da criança (ou de um
pedido feito por um encantado). Durante os festejos, os impérios – além de
outros símbolos da realeza – usam roupas “reais” especialmente confecionadas
para o efeito, sentam-se na tribuna e são os protagonistas dos vários cortejos e
procissões que integram as festas.
Estas envolvem um conjunto diversificado de rituais, que se podem esten-
der por mais de duas semanas. A abertura da tribuna, a busca e o levantamento
do mastro assinalam o início dos festejos. O dia da festa prevê a ida dos impé-
rios à missa, uma refeição cerimonial reservada aos impérios e um almoço em
que participam centenas de convidados. O encerramento da festa, por fim,
compreende o derrubamento do mastro, o fechamento da tribuna e o repasse
das posses dos impérios, quando as crianças e pré-adolescentes dos impérios
são investidos nos cargos que desempenharão no próximo ano. Muitos des-
tes segmentos contam com grande participação popular, fazendo com que as
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festas do Divino se configurem como a mais importante festa católica (ou afro-
-católica) em São Luís.
É o conjunto destes festejos que as caixeiras dirigem e acompanham musi-
calmente. Estão por isso presentes em todos os segmentos rituais em que as
festas se desdobram e são ainda responsáveis por sessões especiais de louvor ao
Espírito Santo, conhecidas pela designação de alvorada.
Um dos papéis mais destacados das caixeiras é a entoação de cânticos em
louvor do Divino e de outras entidades espirituais católicas: Jesus Cristo, invo-
cações de Nossa Senhora, santas e santos católicos. Para além das alvoradas,
esses cânticos são ainda entoados durante os segmentos rituais mais impor-
tantes das festas. Alguns deles são mesmo específicos desses segmentos e são
exclusivamente cantados no seu âmbito. Por vezes, alguns dos cânticos são
acompanhados por movimentos de dança.
Outro papel importante das caixeiras é a direção musical das festas. São
elas que, por intermédio dos seus cânticos, iniciam, conduzem e encerram os
segmentos rituais mais significativos das festas: desde a abertura da tribuna até
aos vários rituais relacionados com o mastro; da refeição cerimonial que, no dia
da festa, junta os impérios, até ao encerramento da tribuna e ao repasse das
posses. São as suas caixas e os seus cânticos que não apenas fazem acontecer
os diferentes rituais como os dotam de eficácia simbólica. Entre esses rituais
avultam a aceitação – durante o encerramento da tribuna – das promessas dos
impérios e a investidura das crianças e pré-adolescentes nos cargos que desem-
penharão no ano seguinte.
Louvando o Divino e fazendo acontecer as festas, as caixeiras são, por um
lado, as especialistas rituais por excelência das festas: são elas que conhecem na
íntegra e em todos os detalhes o seu script ritual: como, quando e quem deve
fazer o quê. Em caso de dúvidas são elas – sobretudo a caixeira-régia – que são
consultadas. São também elas que, em casos de potenciais desvios do script
ritual da festa, restauram o que está prescrito. E é com elas que o dono da festa
ou os familiares das crianças dos impérios se aconselham e de quem recebem
indicações. Por essas razões, as caixeiras são objeto de particulares deferências
por parte do dono da festa e dos familiares dos impérios. Recebem do dono da
festa um vestido, que geralmente usam no decurso da festa, e, após o encerra-
mento da tribuna, recebem oferendas várias feitas pelos impérios e pelo dono
da festa.
Mas, mais do que especialistas rituais de autoridade indiscutida, as cai-
xeiras são, sobretudo, as oficiantes principais das festas: “sacerdotisas laicas”
(Rodrigues Brandão, 1981, Sacerdotes de Viola) sobre as quais repousam as tare-
fas de intermediação entre os devotos e o Divino. São elas que no início dos
festejos trazem o Espírito Santo para a festa e são elas que no seu final – depois
de aceitarem as promessas dos impérios – agradecem e dão por finda a sua
presença entre os “pecadores”. É sobre elas que repousa a tarefa de louvar o
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Espírito Santo, contrapartida central dos mecanismos de troca que subjazem


às promessas da festa: a graça concedida pelo Espírito Santo deve ser retri-
buída pelo louvor público à divindade. O seu papel nos vários segmentos das
festas é performativo: a sua música e as suas palavras – nos termos de John
Austin (1962, How to Do Things with Words) – são frases musicais performativas
em que “dizer algo é fazer algo”.
Por todas estas razões é corrente ouvir-se que são “as caixeiras que fazem
a festa”, ou que “sem caixeiras não tem festa”. Com as suas caixas e com os
seus cânticos, são de facto elas que têm o poder de fazer a festa. O facto de
esse poder ser no feminino deve ser enfatizado. Ele corresponde por um lado a
uma característica mais geral das religiosidades de matriz africana em São Luís:
são muitos os terreiros de tambor de mina dirigidos por mulheres e a esmaga-
dora maioria das suas dançantes são mulheres. Em muitas formas populares
de religiosidade católica é a mesma tendência que é possível encontrar. Mas,
pelo menos no caso das caixeiras, trata-se de mais do que isso. A caixa é não
apenas um instrumento musical, mas, mais radicalmente, um instrumento de
empoderamento de mulheres que, na sua vida quotidiana, são frequentemente
submetidas a mecanismos de exclusão e secundarização ligados ao género.
Não é que a participação das mulheres em muitas festas do Divino não seja
importante. Mas obedece a princípios de divisão do trabalho na esfera familiar
e pública que dão visibilidade pública aos homens e remetem as mulheres para
a esfera da domesticidade. Assim, são as mulheres que fazem a cozinha e as
decorações, e são os homens que procedem à distribuição pública dos alimen-
tos e ocupam as posições de maior destaque ritual. Há evidentemente exce-
ções. Mas em nenhum outro contexto, a não ser no Maranhão, elas ocupam
uma posição ritual tão central.

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