Você está na página 1de 72

Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da

Fonseca

CEDERJ

Curso Superior de Tecnologia em Gestão de Turismo


TURISMO ÉTNICO AFRO
Rio de Janeiro, 2014.

SUMÁRIO

Apresentação 0
03
Unidade I 0
04
1.1. Cultura 0
04
1.2. Turismo, etnicidade e identidade 0
06
Unidade II 2
24
2.1. Africanidade: raízes e tradições 2
24
2.2. Turismo e religiosidade de matriz africana 2
29
2.3. Comunidades Tradicionais Quilombolas 4
47
Unidade III 5
58
3.1. Análises das relações entre turistas e culturas locais. 5
58
3.2. A experiência turística na cultura contemporânea. 6
66
Unidade IV 7
69
4.1. Alguns Roteiros Afros 7
69
4.2. Gastronomia Afro brasileira 7
70

APRESENTAÇÃO

As discussões que giram em torno do Turismo Étnico no Brasil ainda são muito recentes, limitadas a
estudos, pesquisas e publicações de artigos científicos, porém esse segmento vem crescendo de forma
impressionante, fazendo com que as comunidades étnicas se organizem em torno da sustentabilidade e
preservação da sua cultura, planejando e oferecendo um produto turístico que garanta ao visitante não
somente o lazer mais também o conhecimento da riqueza cultural encontrada nas populações tradicionais
brasileiras.

Em realidade, a organização deste material tem como base uma coletânea de artigos e pesquisas
publicados em eventos que tiveram como temática a questão do afro brasileiro e sua realidade social, politica,
econômica, cultural e educacional, porém abordados sob uma ótica do turismo, bem como as vantagens e
desvantagens dessa atividade econômica para as comunidades quilombolas, as comunidades tradicionais de
religiões de matriz africana e os movimentos sociais organizados em prol da questão étnico-racial brasileira.

A existência de roteiros do turismo étnico afro no Brasil contempla uma grande quantidade de
atividades relacionadas à estética, religiosidade, gastronomia, danças, literatura, o esporte, a mitologia e lendas,
levando o turista a valorização da cultura afro-brasileira e até mesmo a romper com preconceitos cultivados
contra o afrodescendente na sociedade brasileira até os dias atuais.

O conhecimento deste segmento nos círculos acadêmicos abrem os horizontes para que os
universitários tenham a percepção da dinâmica cultural da atividade turística, fazendo com que a mesma tenha
uma percepção não somente antropológica, mas também sociológica e filosófica.

Então, futuros turismólogos, bom proveito do material!

Prof. Nadson

UNIDADE I
1.1 Cultura
1.1.1 Leitura Textual
DIMENSÃO DO PROCESSO SOCIAL. CULTURAL NACIONAL - CULTURA E SOCIEDADE, DEMOCRATIZAÇÃO DA
CULTURA.
Vamos encontrar nos espaços alternativos, fragmentários e dispersos, conquistados, na maioria das
vezes, a duras penas e com muito empenho, pequenos grupos de vizinhos, amigos, parentes, companheiros de
trabalho, de Igreja ou de partido. Tais grupos desenvolvem as suas formas de expressão, a partir de sua maneira
de pensar, de agir, fazer e, sobretudo, de organizar conjuntos de relações sociais capazes de tornar viáveis,
política e materialmente as suas atividades.

O importante é que, mesmo usando recursos oriundos de outros agrupamentos externos, reafirmam-
se e elaboram-se as relações internas desses grupos. Assim é que são reinterpretados em pequenos grupos,
duplas ou conjuntos, as músicas ouvidas nos discos, no rádio, nos shows e na TV; os poemas lidos nos diversos
livros ou nas coletâneas escolares; as histórias lidas nos romances e nas revistas, as peças assistidas no circo, na
telenovela ou no teatro.

Tudo, como verdadeiros retalhos de tecidos emendados, é material reaproveitável e possível de ser
matéria-prima concreta, amálgama aglutinador e estruturante das relações sociais internas dos grupos.

Processa-se continuamente a lei de Lavoisier: "Na natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se
transforma".

Se atentarmos para tudo que é subjacente no meio social, talvez possamos compreender que isso faz
parte de uma luta constante, muitas vezes explícita, pela constituição da identidade social, num processo que é
dinâmico e que passa por todas as esferas da vida social. Cultura é, portanto, uma dimensão do processo social,
da vida de uma sociedade.

E se é, então, para considerarmos cultura em relação à sociedade como um todo, como uma dimensão
da sociedade e de sua história, em que medida podemos falar de cultura nacional? Sabemos que cultura é um
conteúdo do que se entende por nação e que, a maneira como as nações modernas são concebidas, é
indissociável de preocupações com suas características culturais; Mas, a relação entre ambas é mais ampla do
que isso. Cultura e Nação são dimensões de referências necessárias para se entender o mundo contemporâneo.
Observemos que mesmo o confronto entre as classes sociais e seus interesses têm a cultura e a nação como
marcas e panos de fundo inevitáveis, já que ambas lhe fornecem arenas institucionais, códigos de ação, projetos
de desenvolvimento. Assim, a transformação da sociedade exige sempre que o potencial tanto da cultura
quanto da nação, seja considerado, para o fortalecimento de vínculos internacionais e para a formação de uma
civilização mundial.

É comum, hoje em dia, ao se falar em cultura brasileira, que se faça referência a certos
comportamentos, os quais sempre dizem respeito a situações envolvendo desigualdade social ou política.
Supostamente os brasileiros driblam as regras e exigências dos poderosos dando um "jeitinho" e alguém
poderia concluir que, por serem capazes de burlar as relações de poder, não estão muito preocupados em
modificá-las. Essa visão de brasilidade descreve, assim, uma realidade estática, desigual, mas que tem
Tocanismos próprios de equilíbrio. Há ainda toda uma tradição de falar no espírito conciliatório do brasileiro, e
isso sugere que é sempre possível acomodar os interesses diversos e, daí, se tem uma visão conservadora da
sociedade, cuja ênfase pode levar a ignorar as lutas sociais em prol de uma vida melhor para a população.

Ao pensarmos sobre cultura, podemos estabelecer, entre ela e a sociedade, vários planos de
relacionamento. Há aspectos importantes, por exemplo, das relações entre a cultura e a sociedade no Brasil,
que são comuns a outros países semelhantes. Podemos notar que, nas sociedades de classe, se opera uma
dissociação entre a produção material e o conhecimento que são transformados em esferas de atuação
separadas dentro da sociedade. Poderosas instituições consolidam essa dissociação.

Assim, por exemplo, nas universidades e centros de pesquisas, o conhecimento em geral, a ciência e a
tecnologia, em particular, são objetos de trabalho, matéria de produção. Essas instituições são controladas pelas
classes dominantes da sociedade e o seu controle é um dos aspectos contemporâneos das relações de poder.

A tendência de pensar em cultura como algo meio separado do processo produtivo leva a ignorar essa
questão importante, nesse sentido o controle do conhecimento é relevante não só para pensarmos as relações
entre as classes sociais no interior da sociedade, mas também para pensarmos as próprias relações
internacionais, posto que há uma concentração de desenvolvimento científico e tecnológico nas nações mais
poderosas. Por isso, o que realmente interessa é que a sociedade se democratize, e que a opressão política,
econômica e cultural seja eliminada, extinguindo de uma vez por todas, as mazelas culturais: o analfabetismo, o
controle do conhecimento e seus benefícios por uma pequena elite, a pobreza do serviço público de educação e
de formação intelectual das novas gerações, etc.

Sendo a cultura um aspecto de nossa realidade e sua transformação, para melhor expressá-Ia e
modificá-Ia são necessárias as lutas pela universalização dos benefícios da cultura, contra as relações de
dominação entre as sociedades contemporâneas e contra as desigualdades básicas das relações sociais no
interior das sociedades.

Num sentido mais amplo e fundamental, cultura é o legado de toda a humanidade, portanto, um
direito de todos.

FORMAS DE CULTURA

A partir de uma ideia de refinamento pessoal, cultura se transformou na descrição das formas de
conhecimento dominantes nos Estados Nacionais que se formavam na Europa, a partir do fim da Idade Média.
Esse aspecto das preocupações com a cultura nasce assim voltado para o conhecimento erudito, ao qual só
tinha acesso setores das classes dominantes desses países. Esse conhecimento erudito se contrapunha ao
conhecimento pela maior parte da população, um conhecimento que se supunha inferior, atrasado, superado e
que, aos poucos, passou também a ser entendido como urna forma de cultura, a cultura popular.

Aquela origem antiga dessas preocupações continua a influenciá-la, e a cultura popular é pensada
sempre em relação à cultura erudita, à alta cultura, a qual é de perto associada tanto no passado como no
presente às classes dominantes. De fato, ao longo da história, a cultura dominante desenvolveu universo de
legitimidade própria, expresso pela filosofia, pela ciência e pelo saber produzido e controlado em instituições da
sociedade nacional, tais como a universidade, as academias, as ordens profissionais (de médicos, advogados.
engenheiros e outros). Devido à própria natureza da sociedade de classes em que vivemos, essas instituições
estão fora do controle das classes dominadas.

No caso das modernas sociedades industrializadas é comum que elas sejam consideradas como
sociedades de massa, onde as instituições dominantes têm de prover e até mesmo criar as necessidades de
multidões e de seus participantes anônimos, da mesma forma que desenvolvem mecanismos eficazes para
controlar essas massas humanas, fazê-las produzir, consumir e se conformar com seus destinos e sonhos.

Uma sociedade assim exige mecanismos culturais adequados, capazes de transmitir mensagens com
rapidez para grandes quantidades de pessoas. Tais instrumentos seriam principalmente o rádio, a televisão, a
imprensa e o cinema. Eles penetram em todas as esferas da vida social, no meio urbano ou rural, na vida
profissional, nas atividades religiosas, no lazer, na educação, na participação política. Tais meios de comunicação
não só transmitem informações, não só apregoam mensagens. Eles também difundem maneiras de se
comportar, propõem estilos de vida, modos de organizar a vida cotidiana, arrumar a casa, de se vestir, maneiras
de falar e de escrever, de sonhar, de sofrer, de pensar, de lutar, de amar. Eis a cultura de massa.

Na cabeça de alguns, a cultura popular é o que costumam chamar de cultura espontânea ou folclore e
podem suceder-se sem problemas em um mesmo parágrafo. Na de outros, folclore é tudo o que o povo faz e
reproduz como tradição. Com muita sabedoria, Lufs da Câmara Cascudo mistura uma coisa com a outra e define
folclore como uma cultura popular tornada normativa pela tradição.

Na verdade, há diferenças importantes entre folclore e cultura popular. Tudo que é folclórico faz parte
acultura popular, mas tudo que é cultura não pode ser considerado como folclórico. Tomemos como exemplo
três livros, três discos e três pratos de comida em cima de uma mesa. Um prato contém uma refinada salada
mista, o outro, feijão com arroz e bife acebolado e o terceiro, uma porção de sarrabulho. Um disco é das
"Bacchianas" de Villa-Lobos, o outro de sambas, de Martinho da Vila e o terceiro, uma seleção de Bandas de
Pife. O primeiro livro é "Helena", de Machado de Assis; o segundo, o "Cante lá que eu canto cá" de Patativa do
Assaré e o terceiro, uma coletânea de lendas do Sul do Brasil. Assim, estamos diante de uma cultura erudita
através do livro machadiano, do disco de Villa-Lobos e da salada mista; feijão com arroz acebolado, os poemas
de Patativa e os sambas e Martinho são expressões de cultura e os demais são folclore, cultura de folk, ou são o
disco e o livro e o folclore.

Portanto, são diversas as formas de cultura: cultura erudita, cultura de massa, cultura popular e
cultura espontânea de folk ou folclórica.

(Secretaria de Educação. Folclore, Cultura e Patrimônio Histórico. Curso Técnico em Turismo. Escola
Estadual de Educação Profissional. Ceará)

1.2 Turismo, etnicidade e identidade


1.2.1 Estudo de artigo científico
UNIDADE II
2.1. Africanidade: raízes e tradições
2.1.1. Estudo do Artigo: CONEXÃO ATLÂNTICA: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE.

Ubiratan Castro de Araújo *


* Doutor em História pela Université de Paris IV – Sorbonne. Professor do Departamento de História e ex-diretor do Centro de
Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia. Atual presidente da Fundação Cultural Palmares/Ministério da Cultura.
Endereço para correspondência: SBN Qd.02, Ed. Central Brasília, bloco F, 1º Subsolo – 70.040.904 Brasília-DF. E-mail:
ubiratan.castro@palmares.gov.br Website: http://www.palmares.gov.br

RESUMO

Para compreender o processo permanente de elaboração da identidade negra neste país africano da
Bahia, é necessário, sobretudo, não esquecer o cordão umbilical pelo qual os baianos acreditam estar ligados à
África. Ao longo da história, depois do tempo da escravidão, este mito fundador dos negros da Bahia se adapta,
se transforma, muda suas máscaras e seus hábitos para desempenhar o papel mágico de uma espantalho que
afasta a tentação, aliás sempre proposta pelas elites brancas, de aceitar a ideia segundo a qual os negros
brasileiros seriam um simples produto da sociedade escravista luso-tropical. Para esses negros da Bahia, é
necessário estabelecer suas raízes antes e fora da escravidão. Assim, o tempo e o lugar da liberdade original não
podem estar dentro do Brasil. Utopia, anacronismo, pouco importa, esse refugio da herança cultural da
escravidão é o núcleo duro da identidade negra baiana. Esta utopia identitária fundamenta-se em uma
constante evocação e reelaboração da das matrizes culturais africanas, o que só é possível graças às
comunidades religiosas do Candomblé, verdadeiros arquivos da memória africana na Bahia.

Palavras-chave: Identidade negra – Cidadania negra – Memória e História Afro-Brasileira

A utopia africana

Para compreender o processo permanente de elaboração da identidade negra neste país africano da
Bahia, é necessário, sobretudo, não esquecer o cordão umbilical pelo qual os baianos acreditam estar ligados à
África. Ao longo da história, depois do tempo da escravidão, este mito fundador dos negros da Bahia se adapta,
se transforma, muda suas máscaras e seus hábitos para desempenhar o papel mágico de um espantalho que
afasta a tentação, aliás sempre proposta pelas elites brancas, de aceitar a ideia segundo a qual os negros
brasileiros seriam um simples produto da sociedade escravista luso-tropical. Para esses negros da Bahia, é
necessário estabelecer suas raízes antes e fora da escravidão. Assim, o tempo e o lugar da liberdade original não
podem estar dentro do Brasil. Utopia, anacronismo, pouco importa, esse refúgio da herança cultural da
escravidão é o núcleo duro da identidade negra baiana. 1

Essas tentações são especialmente apresentadas durante as conjunturas de mudança acelerada dos
termos de integração do Brasil em uma economia mundial, durante as quais foram registradas algumas medidas
importantes para a modernização da sociedade brasileira e, por consequência, das relações raciais no país.
Entretanto, o fracasso de todas as sinceras tentativas de desenvolvimento das novas identidades negras nessas
conjunturas de modernização explica o retorno dos movimentos de afirmação do negro à tradição africana, tal
como ela é preservada dentro das comunidades religiosas.

Os Nagôs e os Sabinos: a formação do Estado Nacional Brasileiro

Por volta do fim do século XVIII, no início do século XIX, o Ocidente foi sacudido pela primeira vaga de
revoluções liberais, desencadeadas pela independência dos Estados Unidos da América, pela Revolução
Francesa, pela Revolução dos Negros do Haiti, e pelas Revoluções produzidas pela expansão napoleônica na
Europa, e pelo desmoronamento do Império de Portugal. Dentro desse novo momento da mundialização,
fundado sobre o livre comércio e sobre a universalização dos direitos do homem, dois desafios se apresentaram
para a sociedade escravista brasileira: o fim do pacto colonial com a metrópole portuguesa e o fim do tráfico de
escravos africanos.

No que diz respeito ao primeiro desafio, foi necessário às elites coloniais formarem um estado
independente, com novas instituições, com uma ideologia nacional e com novos critérios de enquadramento
dos povos habitantes do território do novo estado americano. Dentro dessa nova nação, quem seriam os
brasileiros? As minorias de brancos portugueses e de brancos da terra? Ao lado da maioria de escravos
africanos, escravos crioulos, de pretos e pardos libertos e livres? Um novo regime político, ainda que exaltando
um liberalismo semeado por todos os lugares, seria capaz de aceitar a universalização dos direitos de cidadania
em benefício das pessoas de cor? A Revolução Francesa, ela mesma, não foi capaz de aceitar as reivindicações
de Vicent Ogé para o alargamento dos direitos de cidadania para os negros de São Domingos – esta é a origem
da Revolução Negra Haitiana. Da mesma maneira no Brasil, os independentes tiveram necessidade de pessoas
de cor para carregar os fuzis, mas não os incorporaram como negros cidadãos.

Neste quadro muito estreito de escolha, as populações negras da Bahia se dividiram em dois
movimentos. Os negros nascidos no Brasil, chamados na época de crioulos – libertos, escravos e negros livres –
escolheram o caminho da participação no processo de formação do estado nacional, reclamando para eles uma
nova identidade nacional, assim como na América Espanhola, sob o impulso do movimento bolivariano.
Segundo o barão de Aramaré, um general baiano, estes negros eram pessoas sem pátria, que desejavam fazer
um a seu modo, contra aquela dos descendentes dos portugueses, verdadeiros brasileiros. Esta massa crioula
constituiu a base armada das revoltas e dos levantes populares, desde a Revolução dos Búzios, em 1798, até
1838, por ocasião do aniquilamento da revolução federalista chamada Sabinada. O saldo dessa participação
política foi muito negativo: a manutenção da escravidão negra, a exclusão política pela adoção do voto
censitário e o reforço da discriminação contra os negros segundo o critério da cor da pele. Em lugar de uma
república liberal, eles viram se afirmar um Império Brasileiro escravista. Abatidos, humilhados, esses negros
brasileiros fracassaram nos seus propósitos de afirmação de uma identidade brasileira plena, a seu modo.

Os negros nascidos na África, escravos e libertos, rechaçados por todos, brancos e negros brasileiros,
foram estimulados a empreender várias revoluções escravas. De 1811 até 1835, por ocasião do levante dos
africanos islamizados chamados de Malês, suas esperanças foram renovadas. Para esses revolucionários, não
estava em questão a criação de um novo Estado Americano, mas simplesmente, a superação do estatuto da
escravidão e a colocação, em seu lugar, de um estado negro fundado sobre as tradições africanas. Derrotados
como os outros, eles guardaram ao menos a honra do bom combatente. A propósito desses combatentes, foi
formado o mito da resistência africana, com um forte apelo identitário.

A Abolição e a República

No final do século XIX, tempo do cientificismo e do imperialismo, as elites brasileiras propuseram, mais
uma vez, a modernização da sociedade brasileira. O Brasil era o último país escravista do Ocidente e a única
monarquia na América. Era necessário então abolir a escravidão e proclamar a república. E os negros brasileiros,
que pensavam eles? Abolição, sim, mas com o direito a terra e ao trabalho. República sim, mas com a ampliação
dos direitos de cidadania para todos os brasileiros. Para miséria deles, foram considerados pelos republicanos
positivistas como pouco civilizados para o trabalho qualificado e para a liberdade. Assim, o novo regime
republicano brasileiro decidiu pela substituição da mão-de-obra escrava pela mão de obra livre pela via da
imigração europeia. No que diz respeito aos direitos de cidadania, a Constituição de 1891 decidiu pela
incapacidade política da maioria negra, recentemente saída da escravidão, excluindo-os do direito ao voto sobre
o pretexto do analfabetismo. Era ainda uma questão de cultura! Existiam no Brasil pessoas civilizadas e outras
bárbaras. Esta república constituiu então uma espécie de colonialismo interno pelo qual os verdadeiros
brasileiros seriam aqueles que guardariam, dentro da sua cultura, os traços construtivos da civilização europeia.

Era o tempo de civilizar os bárbaros a tiros de fuzis. Essa nova ordem foi finalmente imposta em 1897,
quando o Exército brasileiro, sob o comando da esquerda republicana, exterminou o arraial baiano de Canudos
e decapitou milhares de camponeses negros e mestiços, considerados culpados de barbarismo, resistência à
modernidade, monarquismo, etc. Ainda no território do massacre, o coronel Dantas Barreto escreveu à família
dizendo que ele estava impaciente para retornar à civilização – Rio de Janeiro – porque ele estava, por muito
tempo, entre os Tuaregs, no deserto, de fato naquele fim de mundo que era o interior da Bahia? Depois dessa
derrota, todos os movimentos negros de integração política fracassaram: os negros republicanos, a guarda
negra monárquica e mesmo o Partido Operário Democrático da Bahia, dirigido por antigos negros abolicionistas.

Na experimentação de um papel colonizador, as elites brasileiras e sua republica adotaram as ideias


racistas, desenvolvidas na Europa, sob o rotulo da modernidade cientifica. Produziram um sistema de
representações que se dizia cientifico, no qual os negros da Bahia e suas tradições africanas foram enquadrados
em uma classificação inferior enquanto raça negra africana, portadora de uma cultura selvagem, um perigo
potencial à civilização. Era necessário então, segundo esses cientistas do racismo, compreender as diferenças
culturais das etnias africanas representadas na Bahia, entender todos os perigos ocultos que eles poderiam
aportar contra a civilização e contra a civilização e contra a ordem republicana. Esse barbarismo era muito mais
perigoso porque estava disfarçado em práticas religiosas, ou em manifestações folclóricas. A Faculdade de
Medicina da Bahia foi um dos centros mais prestigiados no Brasil, nos domínios da Medicina Legal, da
criminologia, da Antropologia Criminal. Nessa instituição foram produzidos os critérios da racialização do povo
baiano. Era o tempo da Antropologia de Nina Rodrigues.

Da teoria a pratica, o novo regime passara então a considerar toda manifestação publica da cultura
negra de origem africana como uma vergonha para o Brasil civilizado. A capoeira foi então declarada como
contravenção criminal, assim como a religião africana – o Candomblé. Os grupos de carnaval formados por
negros, que desfilavam na rua com motivos africanos – a coroação do rei Ménelik da Ethiopia, por exemplo –
foram proibidos pela policia. Não estava em questão fazer a Bahia parecer com a África.

É assim que os negros da Bahia, para salvar suas identidades, se refugiaram na africanidade originária.
Apesar das expedições punitivas da policia, os candomblés resistiram. Apesar das dificuldades, os intelectuais
negros, tal como o Prof. Martiniano Bonfim, estabeleceram contato direto com os Agoudas da Costa Ocidental
Africana. A pureza africana constitui então o núcleo duro da resistência negra contra o colonialismo interno.
Manoel Querino, um antigo abolicionista, desenvolve as proposições sobre o papel do colono negro na
formação do Brasil. Segundo ele, a honra dos negros brasileiros seria a sua africanidade, porque o colono negro
tinha trazido para o Brasil todas as virtudes do trabalho, da disciplina, da sociabilidade, da espiritualidade, da
força civilizatória. Os portugueses, ao contrário, aportaram para o país o resto de suas civilizações, os
condenados pela justiça, a violência da conquista, a preguiça dos senhores de escravos.

A democracia Racial.

Depois dos anos 30 do século XX, em seguida a revolução que propôs a modernização do velho Brasil
republicano, mais uma vez a questão racial estava no centro da questão nacional brasileira. Os imperativos da
industrialização e o surgimento de uma nova classe operária exigiam um novo enquadramento das classes
populares no Brasil. Quem são os brasileiros? É sempre a mesma questão! Um novo paradigma, aquele da
democracia racial brasileira, substitui o racismo cientifico de outrora.

Este novo choque de modernidade impôs as elites brasileiras um grande desafio: como integrar as
massas dentro de um processo de desenvolvimento, sem os riscos da revolução social e fracionamento do
tecido social, levando em conta a diversidade racial da população? Os dois grandes modelos propostos ao
mundo, justamente após a segunda Guerra Mundial, eram, de um lado a revolução e o comunismo soviético e,
do outro lado, a democracia americana, marcada pela segregação e conflitos raciais permanentes. Como então
enquadrar as massas sem perder o controle? Contra o perigo revolucionário, é colocada em ação uma dinâmica
social centrada sobre a mensagem de união nacional à procura do desenvolvimento econômico, sob controle do
estado populista, interposto entre os burgueses e os operários para amortecer a luta de classes.

No que respeita a população negra, viu-se o estabelecimento sólido de uma ideologia nacional, em
que um dos elementos constitutivos era a negação da questão racial. Este novo conceito se apoiara sob a
convergência de duas fortes correntes teóricas, da direita e da esquerda. Inicialmente, o desenvolvimento do
marxismo como instrumento de analise e ação política, a partir da obra de Caio Prado Jr., recolocara a questão
racial no domínio da historia da escravidão colonial, nos termos da expansão do capitalismo centrado na Europa
e depois nos Estados Unidos. De fato, a questão racial seria amplamente secundária, pois os descendentes dos
antigos escravos são hoje os explorados sob o capitalismo contemporâneo. Do antigo sistema de exploração,
restam alguns traços secundários, no domínio da cultura de fato um epifenômeno da superestrutura social. O
verdadeiro problema do povo seria sua consciência de classe, o instrumento necessário para o inicio da
revolução social e não as identidades fundadas sobre algumas permanências culturais. Esta tradição está
enraizada no pensamento de esquerda no Brasil. É a convicção de que a questão racial e as identidades que ai
decorrem são questões externas ao Brasil, uma espécie de exportação malvada ou desastrosa de um problema
que não interessa senão aos Estados Unidos, e cuja evocação no Brasil somente pode acarretar o fracionamento
do proletariado brasileiro.

Do lado da direita, a obra de Gilberto Freyre lança as bases da negação da questão racial no Brasil pela
afirmação da democracia racial contemporânea, resultado histórico da adaptação da sociedade patriarcal
portuguesa aos trópicos. A apologia da mestiçagem das três raças, do branco, do índio e do negro foi tomada
como ideologia de estado para demonstrar e desenvolvimento harmônico do povo brasileiro, um povo novo
dentro da versão contemporânea apresentada por Darci Ribeiro. Segundo Gilberto Freyre, estava se
estabelecendo no Brasil um tipo meta racial denominado moreno. Uma vez que não havia uma prática de
segregação de raças como nos Estados Unidos, a questão racial não aparecia na classificação dos problemas
brasileiros. O racismo seria então uma questão americana, e os brasileiros, em seu subdesenvolvimento,
deveriam ser muito orgulhosos de terem superado um problema que sempre constrange os ricos americanos.

Para os movimentos negros brasileiros, o grande obstáculo à formação das identidades negras,
autônomas e antirracistas, foi a deportação da questão racial do imaginário brasileiro. Racismo era coisa de
estrangeiro, de americano. Diz-se hoje que o pior do racismo brasileiro é crer e fazer crer que não existe racismo
no Brasil. Em um cenário contemporâneo de mundialização da cultura e da informação, em que se tornam
possíveis as trocas entre vários movimentos negros no mundo, este obstáculo não chega a ser superado. Apesar
do surgimento e da estabilização de novas identidades e de práticas sociais formadas dentro destes contatos, do
pan-africanismo, do blackpower, do reggae, do hip hop, tudo termina sendo reduzido a uma escala de efêmeros
acontecimentos da moda internacional, igualmente estrangeiros em relação ao Brasil.

O único refúgio dos movimentos negros na Bahia para a afirmação de sua identidade, para além da sua
herança da sociedade escravista da Bahia, é a tradição africana, guardada com cuidado pelas comunidades
religiosas do candomblé. Ninguém ousa dizer que o candomblé, cada um cultivando suas raízes africanas
específicas suas nações, seja estrangeiro, na Bahia. Isto explica o fato de que, desde a experiência política e
cultural de Edison Carneiro sob a ditadura do Estado Novo em 1937, até os movimentos de esquerda negra
contemporânea, inspirados por “aggiornamientos” à la Gramsci e Thompson, todos esses marxistas negros
procuram dentro do candomblé o relicário de sua identidades ancestrais. Esta coabitação necessária entre o
materialismo e o candomblé produziu a deliciosa excentricidade cultura que Jorge Amado chamava
“materialismo” mágico.

Os suportes materiais da Utopia

Assim, ao longo da historia do Brasil independente, as comunidades formadas por homens e mulheres
muito pobres, colocados em regiões negras nos subúrbios da cidade, todos submetidos ao peso do racismo,
foram capazes de constituir um lugar da memória africana. Como isto foi possível? Os que creem respondem
logo em seguida: é o poder dos Orixás!. Os menos crentes estão sempre em condição de afirmar que as
características das religiões africanas. Fundadas sobre os cultos dos ancestrais, têm necessidade guardar na
memória coletiva toda a ambiência cultural originaria, sem a qual os orixás não teriam sentido. Isto explica o
empenho dessas comunidades na preservação das tradições africanas, da língua Yorubá e da recusa à
nacionalização do candomblé, tal como ocorreu com a Umbanda.
As razões religiosas, somente, não explicam totalmente o fenômeno da preservação da memória
africana. O Candomblé, como aliás as outras tradições, foi atacado por todos os choques da modernidade, e
também obrigado a toda sorte de adaptação para assegurar a solidariedade interna nas comunidades. Teve
igualmente que estabelecer as negociações e as trocas com “os outros”, os clientes, os que procuram no
Candomblé socorros e cuidados materiais e espirituais. Como fazer para impedir que as adaptações sucessivas
não resultem em um tipo de deformação da tradição originária e, por consequência, o enfraquecimento desses
lugares de memória, sés e bastiões de nossa identidade negra baiana?

Ao longo dos anos, as pessoas do candomblé desenvolveram estratégias para assegurar a


sobrevivência das comunidades e, ao mesmo tempo, para a consolidação desse corpus de memória. Antes de
mais nada, era necessário manter o contato permanente com a “fonte”, com o fundamento, com a África.
Durante a escravidão, assim como a aranha, o tráfico transatlântico de escravos teceu sua teia de conexões
entre as duas bordas do Atlântico, um verdadeiro e complexo território de terras e de águas pelo qual
circularam homens e mulheres, com seus bens, seus poderes e seus saberes. Este foi o fluxo e refluxo da Bahia
para o Golfo de Benin, de que nos falou Pierre Verger, que ocorreu por meio do transporte de pessoas. Isso
tornou possível um sistema de circulação de mercadorias, compreendendo os produtos utilizados nos rituais,
como também a circulação de religiosos Yialorixás, babalorixás e babalôs.

Este vai-e-vem sobre o Atlântico nutriu a tradição religiosa e, por consequência, assegurou o fluxo de
informações políticas e culturais entre a África e a Bahia. As revoltas africanas do início do século XIX
determinaram a chegada, na Bahia, das informações sobre os movimentos sociais na África. Depois do fim do
tráfico de escravos, de 1850 até 1889 a navegação na direção da costa da África quase cessou. Apesar da
interdição, a antiga teia ancorou seus laços na memória efetiva dos povos sobreviventes, os afrodescendentes
baianos na borda oeste e os Agudas espalhados ao longo da borda leste do Atlântico. Persistiu ainda a
correspondência entre familiares e conhecidos.

No final do século XIX a chegada da República ao Brasil e a ocupação colonial na África impôs o
distanciamento das duas bordas do Atlântico. Alguns religiosos, como o Babalaô Martiniano Bonfim e a Yalorixá
Aninha, ainda conseguiram várias vezes realizar a travessia para a Costa da África, durante a primeira metade do
século XX. Apesar desses esforços heroicos, aquele foi o tempo mais difícil para a preservação da memória
africana no Brasil.

Em 1959, ano da criação do Centro de Estudos Afro-Orientais na Universidade Federal da Bahia,


assistiu-se ao restabelecimento das relações bilaterais entre Bahia e África, por força da ação desse encontro
universitário, em quadro da diplomacia brasileira para a África. Durante uma dezena de anos, pesquisadores e
professores partiram em missão nas duas bordas do Atlântico. Foi assim que os religiosos do Candomblé fizeram
a descoberta de que seu modo de falar dos Yorubá, mesmo arcaico em relação àquele falado
contemporaneamente na Nigéria, ainda era entendido e louvado nos cursos dados por professores da língua
Yorubá no CEAO, vindos da Universidade de Ilê Ifé. Depois de 1970, mais algumas personalidades negras da
Bahia tiveram sucesso na Bahia tiveram sucesso na travessia do Atlântico, graças ao apoio da UNESCO e de
outros organismos internacionais.

Hoje, constatamos que as possibilidades de contatos entre as comunidades africanas e as afro-baianas,


por sus próprios meios, são praticamente impossíveis diante dos custos da viagem. De outra parte, as
instituições públicas, tal como a universidade, não tem êxito na constituição dos suportes materiais para
assegurar a circulação de pessoas e de ideias entre os dois lados do Atlântico, de forma a realimentar a memória
africana das comunidades religiosas da Bahia. Diante do perigo da desafricanização, da dissolução da memória
afro referente, em uma conjuntura cultural marcada pela pressão interna para a navegação das identidades
negras e da pressão externa da geleia geral globalizante, é imperioso redobrar os esforços para o
restabelecimento desta conexão atlântica, condição indispensável para o fortalecimento da identidade negra
baiana. É importante reconhecer também que esta conjuntura é marcada por um novo choque de
modernidade, com a realização da III Conferência Mundial contra o Racismo, na África do Sul, em 2001, e pela
posse de um novo governo de esquerda no Brasil. Esta será, com fé nos Orixás, uma outra história.
REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Ubiratan Castro de. 1846: um ano na rota Bahia-Lagos: negócios, negociantes outros parceiros. Afro-
Ásia, Salvador, nº 21-22, p.83-110, 1998-1999.

______. A política dos homens de cor no tempo da Independência. Recife:CLIO/UFPE,2001.

______. Sans glorie: le soldat noir sous le drapeaubrésilien, 1798-1838.In:CROUZET, François (Org.). Pourl
´histoireduBrésil. Paris: Harmattan, 2000. p.527-540.

AMOS, Alcione M. Afro-brasileiros no Togo: a história da família Olympio, 1882-1945. Afro-Ásia, Salvador, nº23,
p.175-197,1999.

BACELAR, Jéferson. A Frente Negra Brasileira na Bahia. Afro-Ásia, Salvador, nº17, p.73-85, 1996.

CENTRO de Estudos Afro-Orientais da UFBA (CEAO. Encontro de Nações do Candomblé. Salvador: Ianamá/CEAO-
UFBA, 1984.

MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo, SP: Brasiliense, 1982.

MESTRE DIDI (Deoscóredes Maximiliano dos Santos). História de um Terreiro Nagô: crônica histórica. São Paulo,
SP: Carthago e Forte, 1994.

OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. Quem eram os negros da Guiné? A origem dos africanos na Bahia. Afro-Ásia,
Salvador, nº 19-20, p.37-73, 1997.

QUERINO, Manoel. O colono preto como fator da civilização brasileira. Afro-Ásia, Salvador, nº13, p.143-158,
1980.

REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês (1835). São Paulo, SP: Brasiliense,
1986.

RODRIGUES, João Jorge (org.). A música do Olodum: a revelação da emoção. Salvador: Olodum, 2002.

SOUMONNI, Elisée. Daomé e o mundo atlântico. Amsterdam: Brasil: SEPHIS:CEAA, Universidade Cândido
Mendes, 2001.

VERGER, Pierre. Fluxo e relfuxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos, dos
séculos XVII a XIX. São Paulo, SP: Corrupio, 1987

2.2. Turismo e religiosidade de matriz africana


2.2.1. Leitura do Artigo: TURISMO E RELIGIOSIDADE POPULAR: TRADIÇÃO E MUDANÇA NA FESTA DO DIVINO
ESPÍRITO SANTO DO MARANHÃO1

Mundicarmo Ferretti2

INTRODUÇÃO

Falar em religiosidade popular é falar em crenças e rituais de uma população e na relação essa
população com o sagrado. Mas é preciso lembrar que, quando a população é mais ou menos homogênea, sua
cultura popular se confunde com cultura nacional e não há grandes diferenças em sua religiosidade, mas,
quando existem na população diferenças socioculturais expressivas, sua cultura e sua religiosidade (um dos seus
principais elementos) apresentam grande variedade.

No Brasil, até a abolição da escravidão (1888), a cultura das camadas dominantes (da elite) procurava
seguir o padrão da nobreza portuguesa, principalmente nas áreas mais próximas à sede do poder (cidades, vilas)
e, apesar de na época não se pretender criar uma sociedade igualitária, alguns elementos dessa cultura de elite
foram impostos aos segmentos populares (negros, índios, caboclos, degredados), como ocorreu com a língua
portuguesa e com o catolicismo, que foi a religião oficial até a Proclamação da República (1889). Mas os
segmentos populares das cidades e das áreas rurais (de origem indígena, africana e outros), excluídos ou quase
excluídos das escolas e às vezes marginalizados nas igrejas, tinham seus próprios modelos e tradições culturais.

A religiosidade popular nem sempre é vista de forma adequada pelas elites socioeconômicas. As
diferenças por ela apresentada em relação à das camadas dominantes é frequentemente interpretada como
decorrentes de arcaísmos (sobrevivências de um passado longínquo) ou de ignorância (baixa escolaridade), e,
não raramente, a religião popular é referida na literatura acadêmica como: fetichismo, magia, feitiçaria etc. É
curioso que nem sempre as pessoas consideradas avançadas - que têm uma história de luta pela valorização da
cultura popular -, conseguem escapar dessa visão preconceituosa. Nina Rodrigues, pioneiro dos estudos sobre o
negro no Brasil, apesar de ter valorizado as religiões afro-brasileiras, referiu-se a elas como “fetichismo”
(RODRIGUES, 1935)3

Cultura popular e diferenças regionais

Quando se comparam as produções e modos de vida de populações de regiões geográficas diferentes


as suas diferenças culturais costumam aparecer de modo bastante visível e essas diferenças podem ser
facilmente detectadas, tanto na rua e em outros locais públicos (como feiras; mercados; largos de igrejas,
durante festejos religiosos etc.), como em locais privados (terreiros de religião afro-brasileira e outros ). Mas é
ilusório pensar que a cultura de elite é homogênea. Apesar da ação uniformizadora do sistema escolar, grandes
são também as diferenças por ela apresentadas 4.

Embora as diferenças culturais tenham sempre despertado a curiosidade dos povos 5, na sociedade
moderna elas se transformaram em atração turística e tem estimulado várias atividades econômicas orientadas
para o lazer. Os “pacotes turísticos” costumam incluir, além de atividades voltadas à apreciação das belezas
naturais, programas direcionados ao conhecimento das riquezas culturais das populações locais, com ênfase no
artesanato, na culinária e nas festas populares.

Turismo e religiosidade popular

A participação de turistas nas festas e rituais religiosos, embora costumem emprestar a elas maior
brilhantismo, tem causado alguns problemas. Com exceção dos programas caracterizados como turismo
religioso, os turistas costumam participar de festas e rituais religiosos populares sem conhecimento ou sem
preocupação com as normas que os regem e, não raramente, criam certos embaraços. Quando a afluência deles
é muito frequente ou assume grandes proporções, tende a causar grande impacto naquelas atividades, daí a
necessidade de discussão do problema entre produtores culturais, folcloristas, técnicos, antropólogos e outros
interessados em cultura popular. O interesse turístico pelas produções culturais populares tradicionais, apesar
de poder incentivá-las, às vezes, tem atuado negativamente sobre elas. É sabido que as produções “para
turistas” são geralmente menos elaboradas, mal acabadas e que às vezes foram descaracterizadas para se
adaptarem à programação turística e a outros padrões estéticos. Pretendemos a seguir analisar a questão da
interferência do turismo no folclore tomando como referência a Festa do Espírito Santo na capital maranhense 6.
A Festa do Espírito Santo em São Luís-MA

A Festa do Espírito Santo, de origem europeia, é encontrada em vários estados brasileiros,


principalmente naqueles onde a população de origem açoriana é expressiva. No Maranhão ela é realizada com
grande esplendor no Domingo de Pentecostes envolvendo “toda” a cidade, como ocorre em Alcântara, ou,
simultaneamente em várias comunidades, como ocorre em São Luís, onde é realizada principalmente em
terreiros de mina – religião afro brasileira hegemônica na capital (como na Casa das Minas e na de Casa de
Nagô) ou sob a liderança de pessoas ligadas à religião afro-brasileira (como a realizada por dona Nilza, no bairro
Goiabal). Mas nos terreiros as festas para o Espírito Santo são realizadas durante quase todo o ano, excluindo-se
apenas o período do Carnaval, da Quaresma e algumas outras datas de grandes comemorações populares 7. No
Maranhão, embora as Festas do Divino incluam em sua programação uma missa, celebrada em igreja católica,
são comandadas inteiramente por devotos do Espírito Santo, na maioria das vezes, como falamos
anteriormente, ligados a terreiros de mina, daí a sua frequente relação com voduns e encantados.

As Festas do Divino dos terreiros de mina são realizadas quase sempre durante o seu festejo grande,
quando as casas de culto rendem homenagens às suas principais entidades espirituais (como Vó Missa/Nanã,
sincretizada com Santana – no terreiro de mãe Elzita; Dom Luís Rei de França, no Terreiro de Yemanjá, do
falecido Jorge Itaci) ou são em si uma obrigação para uma entidade espiritual, como ocorre com a Casa das
Minas, onde é uma obrigação para NochêSepazim, vodum da família real do Daomé, conhecida como devota do
Espírito Santo.

No Maranhão a Festa do Espírito Santo tem uma longa duração e compreende várias etapas sendo as
principais: 1) abertura da tribuna (ocasião em que são armados os tronos do império e dos mordomos); 2)
buscamento e levantamento do mastro (tronco que, depois de enfeitado, deverá ser plantado no local da festa
para ser visualizado de longe e anunciar a sua realização); 3) festa propriamente dita (com missa, cortejo do
império, distribuição de comida, toque de caixa etc.); 4) derrubada do mastro; 5) transferência das posses
(quando o império transfere ao escolhido para atuar no ano seguinte os símbolos de nobreza usados por ele:
cetro, coroa, etc.); 6) e serração do mastro e/ou carimbó (brincadeira de caixeiras após o encerramento da
festa). Alguns momentos da festa, como o levantamento e a derrubada do mastro, e o dia da festa
propriamente dita são mais solenes e atraem grande público. Em São Luís, um certo número dessas festas
começa Sábado de Aleluia (que antecede ao domingo de Páscoa) e vão até a 2ª feira depois de Pentecostes
(durando, portanto, mais de 50 dias). Nas festas longas, embora as atividades principais se concentrem em uma
ou duas semanas, nas outras semanas são também realizadas algumas atividades, como toque de caixa às 6h da
tarde, aos sábados etc.

A Festa do Espírito Santo é realizada no Maranhão com muito luxo, muita fartura e muito zelo para
que nada saia errado, pois se acredita que qualquer falha pode atrair grandes desgraças. É uma festa
dispendiosa, cansativa, que envolve muitos segredos, mas é também uma atividade que reforça a esperança em
dias melhores, a autoestima e o prestígio do grupo. É também a festa onde há maior congraçamento de pessoas
de diferentes crenças e classes sociais e por ser uma das principais manifestações folclóricas do Maranhão, vem
há anos merecendo o apoio do governo8.

O interesse turístico sobre a Festa do Espírito Santo no Maranhão

Os ritos religiosos populares e as festas de santos costumam atrair não apenas devotos, mas também
pessoas que às vezes desconhecem ou que não comungam das crenças e valores a eles associados. Alguns
desses rituais constituem manifestações folclóricas expressivas (como é o caso da Festa do Divino Espírito Santo
em São Luís e em Alcântara, no Maranhão, de que nos ocupamos anteriormente), daí porque são incluídos em
calendários turísticos realizados pelo setor público e em programações de turismo cultural ou religioso
realizadas por algumas empresas especializadas. Pretendemos discutir aqui alguns problemas gerados pela
participação ou presença de turistas em rituais religiosos e apontar alguns cuidados que se precisa tomar para
que ela não venha a prejudicar grandemente aquelas atividades religiosas.

Os ritos e festas do folclore religioso, como a Festa do Espírito Santo, são realizados geralmente por
devotos e envolvem grupos ou comunidades que professam a mesma fé. Mas, como falamos anteriormente,
muitos deles atraem grande número de pessoas para quem a religião não tem tanta importância, que têm outra
religião ou um outro sistema de crenças. A presença desses “não devotos” nas festas e rituais religiosos pode ter
um efeito positivo sobre elas, uma vez que podem reforçar a motivação para a sua realização e aumentar o
desejo dos devotos de realizá-las cada vez melhor. E não raramente esses “não devotos” contribuem
financeiramente para a realização da festa, quer diretamente, quer indiretamente, participando de leilões, rifas,
bailes com entrada paga, comprando comidas e lembranças em barracas dos devotos etc.

Mas a participação de “não devotos” nas festas e rituais religiosos pode também acarretar problemas.
Algumas vezes eles comparecem em grande número ao local do festejo ou de realização do ritual, passando na
frente de quem tem alguma relação com o que ali está sendo realizado ou tomando o lugar de quem contribuiu
para a sua realização. E, não tendo consciência do valor religioso da festa ou ritual, podem provocar mudanças
na sua atmosfera, aumentando a bebedeira e a algazarra existente em torno deles, desrespeitando regras e
proibições, e desviando a atenção para o que está sendo realizado 9.

Nos últimos anos tem havido muita reclamação sobre o comportamento de pessoas de fora e de
turistas que têm ido a Alcântara por ocasião da Festa do Divino. Os terreiros de mina frequentemente se sentem
também agredidos pela presença de pessoas de bermuda ou de roupa preta nas festas, e reclamam de pessoas
atravessando o barracão durante a realização de rituais, geralmente em busca de melhor ângulo para as suas
fotos ou de melhor local para as suas gravações de áudio, que às vezes são até proibidas.

Um outro problema gerado por essa participação é o risco da introdução de mudanças nas festas e
rituais religiosos para satisfazer o gosto daquela clientela passageira ou para adequá-los à sua disponibilidade de
tempo, o que levaria fatalmente, mais cedo ou mais tarde, à transformação da festa religiosa em puro
espetáculo para turista. Os cânticos dos rituais e festas religiosas populares, por exemplo, além de longos,
costumam ser repetidos muitas vezes, sem problema para os devotos, pois costumam estar ali sem nenhuma
pressa, uma vez que estão cumprindo uma obrigação ou estão ali por devoção, daí porque costumam participar
deles integralmente, do inicio ao fim. Mas constituem um grande problema nas programações turísticas.

Como é bastante conhecido, as festas e rituais da cultura popular, além de longas, costumam ter data,
hora e local determinados por motivos religiosos ou pela tradição, razão pela qual nem sempre se adéquam à
programação turística. Os que ocorrem à noite, por exemplo, não costumam acabar antes do amanhecer, até
porque durante a madrugada os transportes coletivos são poucos e muitas pessoas são obrigadas a
permanecerem no local até de manhã. Por outro lado, existem etapas de festas ou rituais que só podem ser
realizadas ao escurecer, ao raiar o dia, ou nas “horas grandes” – 6, 12, 18 e 24 horas.

Existe mais um problema para a religiosidade popular, quando as festas passam a despertar maior
interesse turístico, o surgimento de grupos motivados apenas pela demanda mercadológica. Sem nenhum
compromisso religioso, esses grupos têm toda liberdade para criar e recriar em cima da cultura tradicional e, às
vezes, alguns terminam se destacando mais do que os tradicionais e até influenciando os antigos que, no
processo de adaptação às demandas turísticas, como estratégia de sobrevivência, abandonam as formas
tradicionais e passam a imitar os grupos mais jovens (o que ocorre frequentemente após o falecimento de seus
criadores).

A inclusão de rituais religiosos afro-brasileiros em calendários turísticos

Os rituais religiosos afro-brasileiros há muito, vêm sendo objeto de atenções de não devotos, atraídos
pela beleza de suas danças, músicas e indumentárias etc. Esse interesse (embora às vezes seja fruto do
desconhecimento de sua verdadeira natureza ou da redução daqueles rituais a espetáculos para diversão das
camadas populares) foi e continua sendo legitimada por vários pais-de-santo e, na maioria das vezes, parece
que não tinha um impacto muito negativo sobre as religiões afro-brasileiras. É possível que no passado os
próprios líderes religiosos tenham procurado atrair aquela clientela no intuito de reduzir o preconceito existente
nas camadas sociais mais altas sobre aquelas religiões.

Atualmente a presença de “não devotos” nos terreiros tem crescido graças à integração de
programação de instituições que atuam na área de turismo, o que tem sido objeto de críticas e de preocupações
de líderes religiosos. Não raramente se ouve falar em São Luís, com um tom crítico, em terreiros “de turistas” e
em rituais “para turistas” realizados naquelas casas. E, como os terreiros vinculados à programação turística
costumam passar por um acentuado processo de mudança, é também grande a resistência encontrada nessa
área em relação a programas do setor público de empresas que visem propiciar a visitação de turistas àquelas
casas.

Em 2002, pesquisadores do GP-Mina, realizando pesquisa de levantamento para a FUMTUR,


encontraram em alguns terreiros grande resistência em relação à sua inclusão na lista dos que poderiam
receber turistas, temendo o controle dos coordenadores de programas e mudanças por eles impostas em
relação a seus calendários das festas e rituais, pois, segundo eles, “nos terreiros toda mudança tem que ser
solicitada ou aprovada pelas entidades espirituais” 10.

Os exemplos apresentados parecem suficientes para mostrar que a inclusão de festas e rituais
religiosos em calendários turísticos tem que ser feita com cautela, principalmente quando ocorrem em locais
privados (como em terreiros de religião afro-brasileira).

Conclusão

A interação entre turismo e religiosidade popular é problemática e precisa ser acompanhada pelos
produtores culturais, técnicos e responsáveis pela formulação de políticas públicas, para que o primeiro não
venha a causar danos à segunda. A participação intensa de turistas em uma atividade religiosa pode levar a
substituição dos seus motivos e desvirtuá-la facilmente, se os motivos para a sua realização forem substituídos
por interesses econômicos.

Mas, enquanto os devotos conseguirem encarar com naturalidade a presença de turistas em suas
festas e rituais, e continuarem realizando essas atividades por promessa, obrigação, tradição ou por prazer, o
turismo não deverá afetá-las grandemente.

O risco maior de interferência negativa do turismo sobre a religiosidade popular surge quando os
produtores culturais tradicionais deslocam o foco de sua atenção para os expectadores externos (os turistas),
encarando-os como motivo especial de orgulho (já que são geralmente de classe social superior a deles) ou
como oportunidade de lucro.

Referencias Bibliográficas
ANDRADE, Mario. Musica de feitiçaria no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; Brasília: INL/PROMEMORIA, 1983.

Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, n. 32, São Luís, agosto, 2005. (Agenda Cultural).

Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, n. 34, São Luís, junho, 2006. (Agenda Cultural).

Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, n. 35, São Luís, agosto, 2006. (Agenda Cultural).

FERRETTI, Mundicarmo. Desceu na Guma: o caboclo da Mina em um terreiro de São Luís. São Luís: EDUFMA,
2000.

FERRETTI, Sergio. Religião e cultura popular: festa da cultura popular na religião afrobrasileira do Maranhão.
Vídeo. São Luís, 1995 (17’).

Notas
1
. Apresentado no 12º Congresso Brasileiro de Folclore. Mesa Redonda 1. Natal, de 29/08 a 1/09/2006. Publicado no
Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 36, 2006.
2
. Comissão Maranhense de Folclore; Dra. Em Antropologia; pesquisadora de Religião afro-brasileira.
3
. E, algumas décadas depois, Mário de Andrade referiu-se à música produzida nos terreiros como “música de feitiçaria”,
apesar de ter sido um “apaixonado” por ela (ANDRADE, 1983).
4
. Um exemplo dessa diversidade pode ser encontrado na diferença de sotaques observados na fala das populações das
diversas regiões, apesar da costumeira imitação dos grandes centros pelos menores.
5
. O relato de viajantes sobre o “Novo Mundo” despertou grande interesse dos europeus e influenciou obras de arte
(pinturas, tapetes e louças passaram incluir imagens da flora, da fauna e retratos dos nativos das terras “descobertas” pelos
europeus).
6
. Para maior informação, ver FERRETTI, Mundicarmo (2000); FERRETTI, Sergio (1995); NUNES, Izaurina (2003).
7
. Ver agenda organizada pelo Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho e publicadas no Boletim da CMF, n, 32
(2005), 34 e 35 (2006).
8
. O Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nos seus números 32 (2005) e 34 (2006), fornece uma relação de 50
Festas do Espírito Santo apoiadas financeiramente pelo Governo do Estado no período 2005-2006.
9.
Na Festa do Espírito Santo de Alcântara, o desrespeito a certas proibições, como a de cruzar os braços em locais e
momentos especiais, obriga o infrator a “pagar uma prenda”. Para que não escape, ao ser flagrado, um dos fiscais da festa
amarra uma fita em seu braço e só desamarra após o cumprimento da obrigação (que consiste, geralmente, em dar algum
dinheiro).
10
. Em 2002, coordenamos um trabalho do GP-Mina (grupo de pesquisa vinculado ao Departamento de Sociologia e
Antropologia da UFMA), para a FUMTUR (Fundação Municipal de Turismo de São Luís) o levantamento de informações
gerais e o calendário de festas e rituais públicos de trinta terreiros de São Luís, com vista a fornecimento de informação a
turistas interessados em religião afro-brasileira. O trabalho, solicitado pela Fundação Municipal de Turismo (FUMTUR – São
Luís-MA), foi realizado por três membros do grupo de pesquisa, com a nossa orientação, e envolveu 30 terreiros da ilha de
São Luís (a maioria da capital). Pelo menos 50% desses terreiros já haviam sido pesquisados de forma sistemática por
estudantes ou pesquisadores maranhenses e vários deles já eram conhecidos na literatura especializada e/ou havia sido
cadastrados pelo Centro de Cultura Domingos Vieira Filho (ligado à administração estadual) como produtores de folclore,
pela realização anual de Festa do Espírito Santo, Bumba-boi de encantado, Pastor etc.

2.2.2. Estudo de Caso: O DESENVOLVIMENTO DO “TURISMO ÉTNICO” NA BAHIA: O CASO DA CIDADE DE


CACHOEIRA1

Xavier Vatin2
Resumo: O conceito de “turismo étnico” tem se desenvolvido de forma significativa nas últimas décadas. A Bahia, que
representa há muito tempo a imagem idealizada de uma África mítica transposta nas Américas, através de relatos de
viajantes, dos trabalhos clássicos da antropologia afro-brasileira e, recentemente, dos esforços redobrados de órgãos
governamentais federais e estaduais de “Cultura e Turismo”, chamou rapidamente a atenção de um público específico: os
“africano-americanos”. Nessa perspectiva, a cidade de Cachoeira, às vezes vista como a “Meca do candomblé”, recebe a
cada ano um número crescente de turistas negros estadunidenses, em busca de “raízes perdidas”, herança africana e
ancestralidade. A Festa de Nossa Senhora da Boa Morte, deste ponto de vista, marca o momento central do calendário
turístico, litúrgico, festivo e antropológico da cidade. É nesta perspectiva múltipla que tentaremos analisar os mecanismos
identitários e étnicos em ação nesse novo cenário/mercado “etno-turístico”.

Palavras-chave: turismo étnico; transnacionalização das religiões afro-brasileiras; diáspora africana nas Américas.

Meu interesse antropológico pelas relações entre o turismo internacional e meu objeto de estudo – as religiões afro-baianas – começou
em 1992, durante uma cerimônia no Terreiro Pilão de Prata, em Salvador. Apoiado na janela do barracão com material de gravação
sonora para registrar o ritual, chegou ao meu lado um grupo de turistas norte-americanos brancos. Um deles olhou para mim e
perguntou: “Howmuchisthe show?”. Desde este dia e ao longo dos anos que seguiram, surgiram diversas interrogações na cabeça do
“baiano por opção” que me tornei: Qual a visão êmica dos turistas estrangeiros sobre o candomblé? Qual o impacto potencial do
desenvolvimento do turismo internacional sobre as comunidades religiosas afro-baianas numa Bahia que utiliza o candomblé como
cartão postal? O que será aquele tão falado “candomblé para turistas”, do qual se queixam religiosos ortodoxos e turistas em busca de
“autenticidade” e “pureza africana”? Qual a expectativa dos turistas afro-americanos ao chegar na “Roma Negra” (Salvador) e na Bahia
de forma geral? Como é que, na cidade de Cachoeira, os adeptos das religiões de matriz africana e as irmãs da Boa Morte encaram a
expansão rápida do turismo étnico afro-americano? Tentarei apontar nesta comunicação alguns elementos de reflexão sobre o
desenvolvimento recente do “turismo étnico” na Bahia, com uma ênfase no caso específico de Cachoeira.

O desenvolvimento do turismo étnico: diáspora africana e “africano-americanos”

O conceito de “turismo étnico”, ou “turismo de raízes” (roots tourism) na terminologia anglo-saxônica,


tem se desenvolvido de forma significativa nas últimas décadas. Será abordada aqui uma modalidade específica
deste turismo, praticada pelos “africanoamericanos”, ou negros estadunidenses, na sua busca de raízes perdidas
na África e nas Américas Negras – para usar o termo usado por Roger Bastide (1967) – ou, para retomar uma
terminologia mais recentemente empregada por Stuart Hall (2003), na diáspora africana nas Américas.

A supremacia das perspectivas eurocêntricas e “estadunidocêntricas” nas ciências sociais em


fortalecido a ideia de que há um modelo exclusivo de “modernidade”, vivido primeiramente nos centros
econômicos mundiais e, em seguida, adotado nas “periferias”. Esta mesma lógica pode ser encontrada nos
estudos sobre negritude no Brasil, que caracterizam muitas vezes a experiência negra estadunidense como a
mais “moderna” da diáspora africana.

Seria preciso uma densa reflexão teórica para superar a centralidade dos Estados Unidos nos estudos
sobre “negritude”, recuperando a noção de diáspora africana como complexo multicentralizado. Para tanto,
podemos apontar a posição da Bahia como centro importante para a formação do mundo moderno, bem como
para a construção de identidades negras contemporâneas. O desenvolvimento rápido do “turismo de raízes”
afro-americano no Brasil vem justamente questionar o papel aparentemente coadjuvante do Brasil na diáspora
africana, em um contexto dominado pela hegemonia dos conceitos “US-cêntricos” de negritude. Ao mesmo
tempo, o “turismo de raízes” aponta para três tipos de desigualdades: a disparidade entre aqueles que têm
acesso à viagem e os que não têm; a crença de muitos turistas afroamericanos de que podem trocar o que eles
considerem como a sua “modernidade” pelas “tradições” das comunidades negras locais com as quais
interagem durante as suas viagens; o acesso muito maior dos “africano-americanos” – de African-American,
termo mais politicamente correto atualmente vigente nos Estados Unidos, equivalente de negro ou
afrodescendente no Brasil – aos meios pelos quais a África e a diáspora podem ser representadas. Os negros
localizados no Norte e no Sul do continente americano têm um acesso muito desigual a fontes de poder
globalizadas. Desta forma, mesmo oferecendo aparentemente a possibilidade de desafiar os fluxos tradicionais
de intercâmbio cultural Norte-Sul, o turismo étnico afro-americano confirma a hierarquia em vigor dentro do
Atlântico Negro. Idealizando uma África mítica, fonte única da civilização, o afrocentrismo estadunidense, com
certo maniqueísmo, contrapõe uma visão unilateral ao tradicional eurocentrismo tão justamente combatido. No
entanto, nos dois casos, a África é reduzida a uma imagem única e estereotipada. Paul Gilroy afirma, sobre a
visão afrocêntrica nos movimentos negros:

“As formações autoritárias e proto-fascistas da cultura política negra do século XX têm sido
constantemente estimuladas por um desejo intenso de recuperar as glórias perdidas do passado
africano. O desejo de restaurar esta grandeza longínqua nem sempre tem coincidido com um
entusiasmo equivalente em remediar a situação difícil da África no presente” (Gilroy, 2000: 323).

Há de constatar então que o turismo étnico desembarca na Bahia num contexto de relações desiguais
de poder e de trocas possíveis, opondo a priori tradições africanas e africanismos baianos à modernidade negra
estadunidense. Ao chegar à Bahia, os turistas afroamericanos esperam fazer uma viagem ao passado, aos
tempos remotos da ancestralidade. A atemporalidade dos mitos e o tempo místico dos ritos extraem, por um
momento, esses turistas de seu caminho rumo ao futuro e à “modernidade”. Tal encontro parece responder à
busca de uma forma peculiar de exotismo, auto-referenciada, introspectiva.

A busca da África na Bahia: viajantes, antropólogos... e turistas

A Bahia representa há muito tempo a imagem idealizada de uma África mítica transposta nas
Américas, através dos relatos de viajantes, dos trabalhos clássicos da antropologia afro-brasileira e,
recentemente, dos esforços redobrados de órgãos governamentais federais e estaduais de “Cultura e Turismo”,
no intuito de chamar a atenção de um público específico: os “africano-americanos”. Patrícia Pinho explica as
origens históricas deste fenômeno recente:

“A majoritária população negra da Bahia contribuiu para que viajantes e exploradores que visitaram a
cidade durante os séculos XVIII e XIX a descrevessem como uma cidade negra, apelidando-a de “nova
Guiné” e “Negrolândia” (Verger, 1999). Mais tarde, a Bahia recebeu ainda os títulos de “Roma Negra” e
“Meca da Negritude”, designações que apontam para sua condição central na rede de circulação de povos
e símbolos negros. “Roma Negra” e “Meca da Negritude” são termos que enfatizam claramente o caráter
da Bahia como uma cidade-mundial, primeiro porque destaca sua centralidade no Atlântico Negro – que
(...) é um sistema que permite a existência de muitos centros em sua configuração diaspórica – e, em
segundo lugar, porque caracteriza a Bahia como um ponto de convergência, contato e peregrinação”
(Pinho, 2004: 43).

As ramificações históricas, inauguradas com a chegada dos primeiros escravos africanos na Bahia em
meadas do século XVI, os relatos de viajantes e exploradores acima mencionados, junto aos conceitos de
africanismos e africanidade desenvolvidos pela antropologia clássica afro-brasileira, de Nina Rodrigues a Roger
Bastide, ao longo do século XX, vão convergir para fazer da Bahia, desde a década de 1970, um atrativo de
destaque para o recém nascido turismo étnico afro-americano:

“É precisamente o que parece ter sido preservado da África na Bahia que tem atraído um número cada vez
maior de turistas negros dos Estados Unidos. Desde a década de 1970, os afro-americanos têm viajado à
Bahia para encontrar “africanidade”. O que começou como uma viagem informal de um grupo de amigos
se transformou ao longo das últimas décadas em um mercado estruturado e organizado que inclui
agências de turismo do Brasil e dos EUA. Eu chamo este fenômeno de “turismo de raízes” porque é
desenvolvido por pessoas que viajam para encontrar suas “raízes africanas”, estejam estas localizadas no
continente africano ou em países da diáspora com significativas populações negras. Os turistas de raízes
afro-americanos buscam conhecer culturas negras diaspóricas e estabelecer uma conexão com povos
afrodescendentes de outras partes da diáspora. (...) Salvador e as cidades do Recôncavo, reconhecidas por
sua forte herança negra, têm sido locais de visitação cada vez mais frequente por parte de militantes
negros de outros estados do Brasil ede turistas afro-americanos em suas viagens de “retorno às raízes”.
Muitos negros norte-americanos visitam a Bahia a fim de conhecer de perto o que eles afirmam ser suas
“tradições perdidas”. (...). Esses turistas negros vêm à Bahia com a intenção de reencontrar suas “raízes
africanas”, que não estariam apenas na África, mas em todos os lugares da diáspora onde a África tem
sido recriada” (Pinho, 2004: 47-48).

A mesma autora conta o seu primeiro contato com turistas afro-americanos na Bahia

“A primeira vez em que me deparei com um destes grupos [turistas afro-americanos], acreditei que se
tratassem de turistas africanos, já que estavam todos vestidos com longas batas coloridas, além de
ostentarem penteados chamativos ou de cobrirem a cabeça com grandes turbantes. Só depois das
primeiras conversas com aqueles “africanos”, foi que descobri que eram, na verdade, afro-americanos. A
“africanidade” deles é tanta, e tão bem conferida é a “autenticidade”, que permite a (con)fusão com a
matriz, ou ao menos com o que se imagina dela” (Pinho, 2004: 21)

A autora negra estadunidense Rachel J. Christmas relata a sua visita à Bahia:

“Nós sentimos o pulso africano na batida do samba, conhecido como semba em Angola; o engolimos com
a comida condimentada, feita com castanhas, leite de coco, gengibre e quiabo, também usados na cozinha
africana; o testemunhamos nas cerimônias de Candomblé, enraizado na religião dos iorubás da Nigéria; o
ouvimos no musical sotaque iorubano do português falado no estado da Bahia. (...) Hoje, os baianos estão
muito mais conscientes de suas origens do que estão os afro-americanos” (Christmas, 1992: 253-254).

Vamos ver agora como esta forma nova de turismo encontra incentivos a diversos níveis de
articulação, do local ao global.

O turismo étnico na Bahia: incentivo internacional, federal e estadual.

Artigos de jornais encontrados na Internet dão a dimensão do fenômeno relacionado ao turismo


étnico na Bahia e colocam a Festa da Irmandade da Boa Morte, em Cachoeira 4, como ponto culminante desta
nova onda turística afro-americana:

“A Bahia virou uma Meca para turistas negros americanos que buscam entender melhor a herança e as
tradições africanas, de acordo com uma reportagem publicada neste domingo pelo diário americano “Los
Angeles Times”. De acordo com a reportagem assinada por Patrick J. McDonnel, milhares de americanos –
e quase todos negros – visitam o estado todo o ano em busca desse resgate do passado. (...) Um dos
exemplos encontrados pelo LA Times foi o consultor Semaj Williams que, embora seja natural de Nova
Jersey, se identifica “totalmente” com o Brasil. “Para mim, está evidente que em outra vida eu fui
brasileiro”, disse Williams. “Tenho certeza: o Brasil é um dos meus lugares.” (...) Para muitos, segundo o
jornal americano, a cultura africana foi muito diluída nos Estados Unidos, mas ainda pode ser vista no dia-
a-dia dos baianos. Nem mesmo a barreira da língua dificulta a identificação dos turistas afro-americanos
com os negros brasileiros, segundo a reportagem. Tradições populares comuns na Bahia, segundo o jornal,
“evocam para muitos o fantasma da escravidão e as suas consequências, trazendo à tona lembranças de
uma tradição oral passada adiante por falecidos avós e bisavós”. Nos Estados Unidos, agências de turismo
especializadas em clientes afro-americanos lotam hotéis baianos e vendem pacotes que incluem escala no
Rio de Janeiro e outras cidades brasileiras. Mas o ponto alto da viagem, segundo o LA Times é o festival de
Nossa Senhora da Boa Morte [grifos nossos]. “É uma encarnação clássica do sincretismo religioso:
elementos do catolicismo importado pelos portugueses coexistem com a devoção afro-brasileira, em
especial, o credo conhecido como Candomblé”, diz a reportagem. “Nós afro-americanos falamos da nossa
conexão com a África, mas não temos muitas provas dessa conexão. Quando vamos para o Brasil, tudo
fica evidente e faz sentido”, afirma, na reportagem, WandeKnow Gonçalves, uma professora afro-
americana que se apaixonou pelo Brasil e por um brasileiro, e hoje mora na Bahia (BBC Brasil e Portal
Globo)”5.

Para estimular esta forma de turismo étnico, um convênio foi assinado entre governos federal e
estadual em agosto de 2007, na ocasião da Festa da Boa Morte, em Cachoeira, e determinou a liberação de
recursos para o Programa de Ação de Turismo Étnico Afro da Bahia:

“A cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano, será beneficiada com recursos da ordem de R$ 1.245.200,00
para o Programa de Ação do Turismo Étnico Afro da Bahia. Em meio aos festejos da Irmandade de Nossa
Senhora da Boa Morte, o governador Jaques Wagner e a ministra do Turismo, Marta Suplicy assinaram o
convênio para atender, principalmente, aos turistas afrodescendentes de vários países. (...) O Programa de
Ação do Turismo Étnico Afro da Bahia foi destacado pela ministra, ao justificar o investimento do governo
federal neste segmento. Para ela, a Bahia é o coração do Brasil, em termos afros, e é necessário trabalhar
para desenvolver o desejo do turista negro conhecer as suas raízes. (...) “A Bahia é plural e tem muito a
oferecer ao país e ao mundo”, disse, destacando a história e a tradição, a exemplo da secular festa da
Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte [grifos nossos], da cidade de Cachoeira. (...) Acompanhado de
vários turistas norte-americanos, o professor de Antropologia da Universidade de Nova York, Davis Earl,
elogiou a preocupação do governo com o turismo étnico afro e se disse orgulhoso de conhecer Cachoeira e
a Irmandade da Boa Morte, desde 1986, o que já possibilitou a vinda de mais de 70 outros turistas dos
Estados Unidos, para conhecer a história e a tradição da secular festa do Recôncavo. A Irmandade de
Nossa Senhora da Boa Morte é formada por mulheres negras e mestiças com mais de 40 anos,
representando uma tradição de 235 anos [sic]. Juíza Perpétua da Irmandade, Estelita Santana, de 101
anos, lembrou que a confraria católica comemora o passado e o futuro, embalados pelo amor a Maria.
Com 65 anos de irmandade, Estelita é uma das 22 irmãs que ainda mantém a tradição, ao lado de mais
sete noviças. A mais velha do grupo é Narcisa Cândida da Conceição, Dona Filhinha, com 104 anos” 6.

No artigo seguinte é apresentada a opinião do Secretário de Turismo do Estado da Bahia sobre a


importância do turismo étnico para a Bahia, mostrando a dimensão das expectativas turístico-financeiras em
torno do “turismo de raízes”:

“Com o objetivo de resgatar a cultura afro, a Bahia começa a divulgar o roteiro de turismo étnico, uma
iniciativa da Secretaria do Turismo do Estado (Setur). “De cada dez baianos, oito são afrodescendentes e
temos que valorizar aquilo que temos para oferecer”, afirma Domingos Leonelli, secretário de Turismo do
estado. O turismo étnico pretende conquistar não apenas brasileiros vindos de outras regiões do país,
como também os norte-americanos. “Há condições favoráveis para estimular a vinda de negros dos
Estados Unidos para conhecer a Bahia. Muitos querem buscar sua identidade”, diz Leonelli. Salvador reúne
vários pontos que merecem visitação. A Festa de Nossa Senhora da Boa Morte [grifos nossos], realizada na
cidade de Cachoeira, também integra o roteiro. De acordo com o secretário, a intenção do novo programa
é fazer com que os turistas passem mais tempo na Bahia e, consequentemente, gastem mais, favorecendo
a economia local”7.

Outros artigos fazem menção ao referido convênio e às iniciativas para atrair os turistas negros
estadunidenses:

“(...) Em agosto de 2007, foi assinado um convênio entre o Ministério do Turismo e o governo da Bahia, em
Cachoeira (BA), para a implementação do Programa de Desenvolvimento do Turismo Étnico-Afro, que é
uma ação pioneira. O programa recebeu um investimento de cerca de R$ 1, 3 milhão e tem por objetivo
atrair mais visitantes, sobretudo os afrodescendentes norte-americanos, para a Bahia, especificamente
para Salvador e Recôncavo. Já foram realizadas quatro missões aos Estados Unidos, com foco no turismo
étnico. O investimento do programa, no momento, está sendo aplicado no mapeamento de necessidades
dos locais nos quais os turistas norte-americanos se hospedarão e em Home-Spaces para diversificar o
atendimento da rede hoteleira. Esse trabalho de mapeamento envolve a Universidade de Brasília, a
Universidade Federal da Bahia (Ufba) e também a Universidade do Estado (Uneb). Home-Spaces são
pousadas que estão sendo construídas para suprir as necessidades dos turistas que se hospedarão nos
empreendimentos por meio de um pré-cadastro. Esse mapeamento resultará num diagnóstico que será
usado para sanar as deficiências turísticas da Bahia. A cada evento desenvolvido pela Setur, é realizada
uma pesquisa relacionando os participantes do evento com o turismo étnico, como por exemplo o
Seminário de Matrizes Africanas, no qual foi identificado que o “povo de santo” aprova o Programa, que
dentre outras coisas servirá para mostrar de que forma eles gostariam de ser tratados [grifos nossos]” 8.

Vale ressaltar o aspecto inovador deste “Seminário de Matrizes Africanas” promovido pela Secretaria
de Turismo do Estado da Bahia. No entanto, há de se perguntar como o “povo de santo” foi representado em tal
ocasião, relembrando que existem na Cidade de Salvador e Região Metropolitana em torno de dois mil terreiros
de candomblé. É pouco provável que haja consenso sobre o assunto do turismo étnico e é importante, do ponto
de vista antropológico, pensar nas consequências possíveis de uma massificação deste turismo sobre a estrutura
organizacional e a liturgia dos terreiros de candomblé.

“O Programa de Desenvolvimento do Turismo Étnico-afro foi lançado pelo governo em agosto do ano
passado, durante a Festa da Boa Morte, em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, que a cada ano atrai um
número cada vez maior de visitantes estrangeiros. Na época, o Ministério do Turismo assinou um convênio
no valor de R$ 1,245 milhão para ações imediatas de diagnóstico. Grande parte desse dinheiro já foi
investida em cursos e seminários voltados para associações de capoeira e comunidades religiosas de
matriz africana e em pesquisas que identificaram as principais necessidades para a estruturação desse tipo
de segmento turístico no Estado. (...) Origens – Aguinaldo Silva, presidente do bloco carnavalesco Filhos de
Gandhy, com sede no Pelourinho, avalia positivamente o programa estadual de incentivo ao turismo
étnico-afro: "Além de trazer divisas para o estado, proporciona que esses turistas conheçam as suas
origens fincadas na África", afirmou. Para o guia de turismo Josué Cassiano, essa é uma boa política. "Os
negros norte-americanos têm interesse na busca por sua identidade cultural. Mês passado, por exemplo,
guiei um pai-de-santo nova-iorquino", contou” 9.

Tais ações e relatos inserem-se em um contexto globalizado de transnacionalização das religiões afro-
americanas – entre as quais se destacam o candomblé baiano, a santeria cubana e o vaudou haitiano –
estimulada pela intensificação da circulação em um Atlântico Negro multicentralizado.

A repercussão jornalística da vinda de Condoleezza Rice à Bahia: raízes perdidas, globalização, capital.

Neste contexto de desenvolvimento significativo do turismo étnico afro-americano, a vinda de


Condoleezza Rice à Bahia, em 14 de março deste ano, toma uma dimensão simbólica inédita. A Secretária de
Estado estadunidense parece sintetizar em si só a ambivalência, as ambiguidades e os limites de um ideal
afrocêntrico de povo negro unido na diáspora. Símbolo máximo do poder imperialista estadunidense tão
execrado na América Latina, Rice, enquanto mulher negra, representa ao mesmo tempo um dos grupos
histórica e socialmente mais oprimidos das Américas, no passado e no presente. Ao chegar à capital baiana, esta
foi recebida pelo coral da Irmandade da Boa Morte na Igreja do Rosário dos Pretos, no Pelourinho. Momento
certamente inaugural de uma nova era para os povos da diáspora africana nas Américas... Vejamos alguns
artigos encontrados na Internet:

“Irá chegar um novo dia, um novo céu, uma nova terra, um novo mar". Estes foram os primeiros versos do
afoxé que o coral da Irmandade da Boa Morte [grifos nossos] cantou para saudar a secretária de Estado
norte-americana, Condoleezza Rice, na manhã de hoje (dia 14 de março), na Igreja do Rosário dos Pretos.
A secretária chegou às 8h15, em companhia do prefeito João Henrique; do governador doEstado, Jaques
Wagner, e dos ministros da Cultura, Gilberto Gil, e do Turismo, Marta Suplicy, dentre outras autoridades.
(...) Desenvolvimento do turismo étnico: Além da história, musicalidade, culinária, religiosidade e natureza
que compõem o imaginário negro de Salvador, a cidade vem cada vez mais ganhando elementos que
fortalecem a prática do turismo étnico. Ações da Secretaria Municipal da Reparação (Semur) têm sido
imprescindíveis para o planejamento e desenvolvimento do setor. O mapeamento dos terreiros e seu
tombamento como patrimônio do município, as ações de incentivo ao empreendedorismo junto aos
artistas afrodescendentes e o apoio ao Corredor Cultural, no bairro da Liberdade, expressam a
preocupação da Prefeitura em promover não apenas a igualdade racial, mas a organização do setor
turístico. Os resultados já podem ser percebidos pela ação de regularização fundiária de 33 terreiros do
município, que se encontra em processo na Secretaria Municipal da Habitação (Sehab).” 10

“A secretária de Estado americana, Condoleezza Rice, participará na noite desta quinta-feira, em


Salvador, de jantar com o governador Jaques Wagner e empresários. Segundo a Agência Estado, a
principal pauta do encontro será o estímulo ao turismo étnico. Desde o ano passado, o governo baiano e o
Ministério do Turismo elaboram um plano para atrair turistas afrodescendentes americanos a Salvador e à
região do recôncavo, as áreas que mais concentram a população negra no Brasil. (...)Às 11h, ela tem
encontro a portas fechadas com o chanceler Celso Amorim, no Palácio Itamaraty. Eles assinarão um
acordo sobre o combate à discriminação racial [grifos nossos]” 11.

A coalizão entre interesses econômicos – desenvolvimento do turismo étnico – e preocupações sociais


e humanistas – combate à discriminação racial – pode soar um tanto estranha. Somente o futuro nos dirá se a
implantação de tais medidas será positiva para população negra no Brasil e de que forma um acordo
Brasil/Estados Unidos sobre o combate à discriminação racial não significará uma simples
transposição/imposição de um modelo estadunidense atrativo em certos pontos, porém já tendo mostrado os
seus limites in loco. Continuamos o nosso percurso na repercussão jornalística da vinda de Rice:

“A secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, manifestou “encantamento” com a cultura


brasileira ao passear hoje por monumentos históricos de Salvador, em companhia dos ministros do
Turismo, Marta Suplicy, e da Cultura, Gilberto Gil, e do governador da Bahia, Jaques Wagner. Ao tomar
conhecimento das propostas para aumentar o intercâmbio entre afrodescendentes brasileiros e norte-
americanos [grifos nossos], Rice disse que está vendo com muito interesse o projeto de incentivo ao
turismo étnico-afro, desenvolvido em parceria entre o MTur e o governo baiano, e prometeu fazer
propaganda do Brasil e da Bahia nos Estados Unidos. O projeto, que já recebeu investimentos de R$ 1,12
milhão do MTur, é inspirado pelo interesse dos afrodescendentes norte-americanos em conhecer lugares
no mundo com fortes raízes africanas. A ministra Marta Suplicy destacou a importância dessa visita e falou
dos investimentos do Ministério na promoção do Brasil nos Estados Unidos. “Estamos investindo nesse
mercado potencialmente importante para o Brasil. Em 2007, investimos US$ 10 milhões e, neste ano,
teremos US$ 16 milhões para divulgar o Brasil nos Estados Unidos. Especificamente para o projeto de
turismo étnico, o Ministério direcionou R$ 1,12 milhão. Os afrodescendentes são um público expressivo,
representam 12% do PIB norte-americano”, afirmou a ministra” 12

Será que haverá realmente um aumento do “intercâmbio entre afrodescendentes brasileiros e norte-
americanos”. Aliás, qual a porcentagem da população negra no Brasil tem na prática vivenciado um intercâmbio
com “afrodescendentes norte-americanos”? Em termos de deslocamento para os Estados Unidos, o número
deve certamente ser extremamente insignificante. Há de constatar na realidade que este turismo étnico não se
estabelece de fato de forma bilateral. De cem turistas negros estadunidenses que visitam a Bahia, quantos
negros baianos já foram para os Estados Unidos? Este “intercâmbio” se inscreve em uma conjuntura marcada
pelas disparidades sociais, econômicas e geopolíticas Norte-Sul 13. O desenvolvimento do turismo étnico
dificilmente escapará deste contexto desigual.

“Muito além da compenetrada função de chefe de Estado da nação mais poderosa do mundo, Condoleezza
Rice assumiu, durante sua visita ao eternamente informal Centro Histórico de Salvador, ontem pela
manhã, papel de turista embasbacada. Recebida com sorrisos e presentes por onde passou, Rice não
desperdiçou a chance de se emocionar com as possibilidades culturais e étnicas que aproximam, segundo
ela, as comunidades da diáspora negra de lá e de cá. (...) Durante a audição da segunda música, um
lamento negro em forma de ijexá (Que cor, autoria de Girassol – Afoxé Badauê), Condoleezza Rice não
resistiu aos apelos sonoros e visuais: acompanhou a melodia com palmas, balançou a cabeça para os
lados, quicou o pé de apoio no ritmo dos timbaus e alternou olhares de espanto e êxtase. (...) A
representante do governo norte-americano deu de cara com os meninos do grupo Bagunçaço, e flertou
com os pequenos instrumentistas: musicista que é, pegou duas baquetas e arriscou uma marcação
batendo uma na outra, mostrando toda sua intimidade com o assunto. [grifos nossos] (...) Americanos são
esperados e vêm atraídos pela ancestralidade comum e desdobramentos culturais tão diversos e próximos.
Até o final deste ano, a expectativa é de que mais de quatro mil norte-americanos negros venham à Bahia
na modalidade que vem sendo chamada de turismo étnico – tema na pauta da secretária Condoleeza Rice
em sua visita a Salvador.”14

Constatamos aqui a preocupação de legitimar a condição de “verdadeira” afrodescendente da Sra.


Rice. Como “boa afrodescendente”, Condoleezza “não resistiu aos apelos sonoros e visuais: acompanhou a
melodia com palmas, balançou a cabeça para os lados, quicou o pé de apoio no ritmo dos timbaus e alternou
olhares de espanto e êxtase”.

Temos aqui a mais contundente prova da persistência de uma visão essencialista de “raça” ainda
vigente no Brasil do século XXI, fazendo do negro uma “máquina” de produzir ritmos e músicas, como nos
velhos tempos do evolucionismo do século XIX. Até quando tal visão permanecerá no Brasil?

De qualquer forma, a repercussão midiática traz à tona a relação ambígua de amor, fascínio, atração e
ódio latente e contido que a Bahia – e o Brasil de forma geral – mantém com o modelo estadunidense, seja
branco ou africano-americano.

Para terminar este capítulo, vejamos o percurso do africano-americano Clarence Smith, que fez
fortuna captando de forma precursora as premissas do mercado étnico afro desde a década de 1970 nos
Estados Unidos e enxerga hoje a Bahia como “uma espécie de Eldorado da herança cultural africana”:

“No final dos anos 60, os Estados Unidos viviam um período de tormenta racial. O assassinato dos líderes
negros Martin Luther King e Malcolm X foi seguido de arruaças nos guetos das grandes cidades. A Lei dos
Direitos Civis, que acabara de ser assinada, gerava protestos racistas no sul do país. O americano Clarence
Smith viu nessa confusão toda uma oportunidade de ganhar dinheiro. Largou o emprego de vendedor de
seguros e criou uma pequena revista para mulheres negras, a Essence. O primeiro número, lançado em
1970, teve uma tiragem modesta, de 50 000 exemplares. Desde então, a Essence não parou de crescer.
Hoje, vende 1 milhão de exemplares por mês e é lida por mais de 7 milhões de pessoas. Em torno dela,
Smith construiu um conglomerado voltado para a classe média negra americana que organiza festivais de
música, edita livros e produz até óculos com apelo étnico. (...) Em busca de novos negócios, ele esbarrou
numa espécie de Eldorado da herança cultural africana: a Bahia. Como consequência, seus negócios hoje
gravitam em torno desse estado brasileiro. Primeiro, lançou um selo de música que divulga artistas locais.
Agora, ele quer transformar Salvador num centro de turismo para negros americanos em busca de suas
raízes culturais. "Apesar de seus atrativos, Salvador ainda não foi descoberta por nós", diz Smith. O
negócio que ele quer desenvolver na Bahia pode ser chamado de turismo étnico. Nos Estados Unidos, os
negros compram pacotes culturais para a África ou para o Caribe e formam um grupo à parte no mercado
de turismo. Mas as guerras civis e a falta de infraestrutura na África, além do número anormal de furacões
no Caribe nos últimos meses, têm deixado os turistas com um pé atrás. É por isso que Smith pretende
incluir nesse circuito a Bahia, onde nove de cada dez habitantes têm origem africana. Especialistas
comparam o potencial de Salvador ao de Nova Orleans, cidade recentemente arrasada pelo furacão
Katrina, mas antes um dos principais destinos da classe média negra americana. Em ambas, as atrações
são música, dança, comida, religiosidade. (...) “A Bahia tem tanto potencial turístico quanto o Havaí ou o
Caribe." Empreendedores como Smith descobriram, há décadas, o potencial do consumidor negro. Hoje,
esse mercado é formado por 36 milhões de pessoas nos Estados Unidos. É, também, uma máquina de
gastar dinheiro estimada em 700 bilhões de dólares anuais – maior que toda a riqueza produzida no Brasil.
Só em viagens, o gasto é superior a 35 bilhões de dólares por ano. Além de revistas, as empresas oferecem
de livros a vestidos de noiva, passando por cosméticos para a comunidade negra. (...) No Brasil, esse nicho
ainda está em seus primórdios. Isso se explica, em parte, pela disparidade de renda entre brancos e negros
no país. Por enquanto, os avanços mais significativos vêm acontecendo no mercado de cosméticos.
Empresas como Johnson & Johnson já começam a lançar produtos desenhados para esse público. "O
mercado brasileiro de afrodescendentes está hoje onde o dos Estados Unidos estava há alguns anos", diz
Smith. "O potencial de crescimento nas próximas décadas é enorme" 15.
Cachoeira: “Meca do candomblé” e Irmandade da Boa Morte

Nessa perspectiva, a cidade de Cachoeira, vista por alguns como a “Meca do candomblé”, recebe a
cada ano um número crescente de negros estadunidenses, em busca de “raízes perdidas”, herança africana e
ancestralidade.

“Meca do candomblé”? De fato, a Cidade de Cachoeira possui um número muito significativo de


terreiros de candomblé e mantém preservada até hoje uma tradição religiosa quase extinta no resto do país, a
tradição JêjeMahi, oriunda de grupos étnicos provenientes do norte do Benin. No entanto, Cachoeira se destaca
também, ainda hoje, pelo vigor da sua comunidade católica, pelo fervor e a devoção dos fiéis à igreja católica.
Além disso, nos últimos anos, a inserção rápida no “mercado religioso” de diversas igrejas pentecostais e
neopentecostais têm mudado de forma extremamente significativa o perfil religioso da cidade. Há de se
perguntar se o número dessas igrejas não suplantou hoje o número de terreiros de candomblé na cidade. O
candomblé enfrenta agora a “concorrência” e os atos de intolerância religiosa dessas igrejas neste mercado
extremamente versátil e polimorfo, marcado por uma visão sincrética da fé.

Neste cenário, a Festa de Nossa Senhora da Boa Morte, do ponto de vista do sincretismo religioso,
marca o momento central do calendário turístico, litúrgico, festivo e antropológico da cidade. É nesta
perspectiva múltipla que podemos apontar alguns mecanismos identitários e étnicos em ação no novo mercado
“etno-turístico” acima mencionado.

A Irmandade da Boa Morte existe desde 1823 na cidade de Cachoeira, no Recôncavo da Bahia, sendo
constituída exclusivamente por mulheres negras descendentes de escravas africanas. As irmãs são ao mesmo
tempo católicas e adeptas do candomblé. A festa é realizada sempre na segunda quinzena de agosto e inclui
procissão, missas, ceia afro-brasileira oferecida pelas irmãs à comunidade, sendo encerrada com samba de roda.

A devoção à Boa Morte, ou “Dormição de Maria”, corresponde tradicionalmente no calendário


católico à Assunção da Virgem aos Céus, comemorada no dia 15 de agosto. Trata-se de uma festa litúrgica da fé
católica, realizada anualmente. A programação oficial começa dia 13 de agosto, mas já no início do mês algumas
irmãs deixam suas casas para dedicar-se exclusivamente à Irmandade, na organização e preparação dos festejos,
inclusive recolhendo donativos. Durante cinco dias, as irmãs saem às ruas, adornadas como rainhas negras,
exibindo as joias e os belíssimos trajes da Irmandade. Oram na igreja para Nossa Senhora, saem em procissão –
mas, ao mesmo tempo, cultuam discretamente suas divindades de origem africana nos terreiros de candomblé.

Sobre o sincretismo afro-católico e “o segredo das noites” ligados à festa, reproduzimos aqui um
trecho do artigo de divulgação turística da Revista Viver Bahia!

“O segredo das noites: As irmãs negras, todas vinculadas a casas de candomblé de


origem jêje-nagô, negam a existência de rituais secretos. Mas em Cachoeira se conta, à
boca pequena, que o segredo da Boa Morte estaria camuflado no sincretismo religioso
da festa. Diz-se que, durante as madrugadas, os adeptos do candomblé cultuariam,
paralelamente às festas católicas, o orixá Nanã Buruku, divindade que reina nos
pântanos e águas paradas, senhora da argila, do barro que moldou o ser humano. O
segredo dos rituais noturnos – originários dos tempos da escravidão, quando os rituais
negros eram proibidos – continua preservado, permeando de encantamento e mistério
os festejos cachoeiranos de agosto”16.

Notamos o tom mercadológico deste artigo, apresentando os ritos do candomblé pelo ângulo do
encantamento e do mistério, muito propício para suscitar a curiosidade do turista de qualquer procedência.
Assim como viajam para o Brasil para participar da Festa da Irmandade da Boa Morte, os turistas afro-
americanos participam também de outros eventos que reificam e/ou recriam tradições africanas. O Festival do
Vodu, organizado na praia de Uidá, no Benin, por uma facção tradicionalista de sacerdotes e reis, constitui um
desses exemplos. O antropólogo Peter Sutherland, que pesquisa o evento, afirma que o festival desenvolve o
conceito de consciência diaspórica para enfatizar o valor local da herança tradicional. Para tanto, o festival
apresenta a cultura do vodu em um contexto transnacional e representa o Benin como o lar dos irmãos da
diáspora e como a fonte da cultura diaspórica das Américas (cf. Sutherland, 1999).

Na Festa da Boa Morte, em Cachoeira, constata-se a tentativa, por parte dos turistas, em querer
unificar o pensamento de todos ali presentes pelo fato de que seriam “irmãos negros” e que estariam portanto
imbuídos das mesmas perspectivas. No entanto, ocorrem alguns equívocos sobre o teor simbólico da festa: um
exemplo disso – que aponta para um certo maniqueísmo no pensamento dos turistas – é a lamentação
recorrente que fazem pelo fato de as velhas irmãs negras da Boa Morte louvarem uma santa branca, Nossa
Senhora da Glória. Os turistas afro-americanos geralmente não sabem que esta santa é cultuada pela
Irmandade desde o início do século XIX e que seu culto insere-se em um contexto de sincretismo religioso que,
em si, representa uma estratégia de luta e sobrevivência das crenças dos escravos. Acreditar que as irmãs
deveriam adorar uma santa negra é uma forma redutora de entender a história e parece refletir a maneira
circunscrita como, muitas vezes, a própria negritude e sua base de africanidade estão sendo definidas, em
diversos pontos da diáspora. A interpretação racial de africanidade tem imposto uma definição restritiva do que
pode e do que não pode ser considerado “africano” ou mesmo contendo africanidade. Assim se está negando
não apenas que o “africano original” tem várias e múltiplas ancestralidades – já que, como matriz, este é
entendido como algo que deveria ser mantido “puro” – mas, nega-se assim até mesmo aquilo que é óbvio e
reconhecido por ser inerente à própria noção de diáspora: um dos resultados do deslocamento dos africanos
em função do tráfico de escravos é que seus descendentes produzem culturas híbridas. Em busca da “pureza
africana”, os turistas de raízes afro-americanos viajam para diversos polos difusores de africanidade, projetando
seus desejos e expectativas sobre as culturas negras locais. Ao descrever o Festival do Vodu, Sutherland (1999)
demonstra que a figura do escravo é fetichizada através da transformação mercantilista do comércio de
escravos (slave trade) em um “turismo da escravidão” (slavetourism). Da mesma forma, a produção cultural
negra “made in Bahia” também vem sendo transformada em mercadorias, o que permite sua apropriação,
comercialização e consumo, processos nos quais os turistas afroamericanos representam importantes
consumidores e podem assim influenciar o formato e o conteúdo da produção cultural, valorizando alguns
elementos em detrimento de outros. A cada ano, é possível identificar a presença crescente dos turistas afro-
americanos na Festa da Boa Morte. Representando uma importante fonte de renda para hotéis, restaurantes e
produtores culturais, suas expectativas estão impondo novas demandas para o evento.

O afrocentrismo, de certo modo, tem como efeito colateral o fortalecimento de uma visão
“estadunido-cêntrica” da diáspora. Assim, embora parte das análises feitas sobre o racismo e as relações raciais
no Brasil, a sociedade norte-americana aparece frequentemente como o modelo a ser seguido e como o lugar
onde os negros seriam mais “evoluídos”, seja em termos de direitos civis e políticos ou pelo fato de constituírem
a maior classe média negra do mundo. Essa crença na condição de líder que teria o negro norte-americano em
relação aos outros negros do mundo está presente nos discursos de militantes brasileiros e norteamericanos.
Encontramos isso na afirmação feita por uma turista afro-americana em uma de suas visitas a Cachoeira:

“Nós (negros americanos e negros brasileiros) temos uma grande gama de coisas para trocar uns como os
outros. Quando nós vimos para a Bahia, estamos aqui para aprender sobre a nossa própria história e
nossa origem comum, porque as tradições africanas foram capazes de sobreviver aqui. Mas vocês também
têm muito que aprender conosco, sobre a nossa história de Direitos Civis, porque, nesse ponto, estamos
muito à frente de vocês” (in Pinho, 2004: 63).
À guisa de conclusão, podemos nos interrogar sobre o impacto e as consequências possíveis deste
mercado em forte expansão sobre as comunidades negras locais e suas “tradições africanas”. De que forma
ocorrerá um processo de adequação aos modelos idealizados pelos clientes norte-americanos? Quando haverá
bilateralidade e reciprocidade no turismo étnico afro? Acreditamos que, do ponto de vista antropológico e
sociológico, teremos muito que aprender com os desdobramentos futuros deste peculiar turismo étnico na
Bahia, notadamente sobre o desenvolvimento possível de uma consciência diaspórica polimorfa e multi-
referencial.

Notas:

1. Trabalho apresentado na 26ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho de 2008, Porto Seguro,
Bahia, Brasil.

2. Etnomusicólogo, Professor de Antropologia e Diretor do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia.

3. “La Secretaria de Estado Norteamericano se reunió la semana pasada con el Gobernador del Estado de San Salvador de Bahía, Jaques
Wagner, para encontrar un estímulo al turismo étnico. Desde el año pasado las autoridades del sector están trabajando en un plan para
traer turistas norteamericanos, afrodescendientes, a la ciudad. (...) En su primera visita a la capital bahiana, Rice disfrutó de la cultura
brasileña, se deleitó con la comida de mar y las caipirinhas, y hasta tuvo tiempo para disfrutar de la samba” Adnmundo.com, 16/03/08.
Site consultado em 26/04/08.

http://www.adnmundo.com/contenidos/turismo/condoleezza_rice_visita_salvador_bahia_promocion_turismo_etnico_tu_160308.html

4. Considerada Monumento Nacional pelo Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) desde 1971, Cachoeira
está encravada num vale à margem esquerda do rio Paraguaçu, no Recôncavo da Bahia. Com 32 mil habitantes, o município de Cachoeira
tem o segundo maior conjunto arquitetônico colonial do Estado, depois de Salvador. O acervo, em estilo barroco, inclui igrejas, sobrados,
prédios e monumentos que preservam a imagem e a história dos tempos coloniais e do império no Brasil.

5. “Bahia é ‘Meca do turismo afro-americano’, diz jornal”. Blog do Favre. Site consultado em 27/04/08.
http://blogdofavre.ig.com.br/2007/09/bahia-e-meca-de-turismo-afro-americano-diz-jornal/

6. “Convênio fortalece turismo étnico afro em Cachoeira”. Jornal da Mídia, 16/08/2007. Site consultado em 26/04/08.
http://www.cultura.ba.gov.br/noticias/na-midia/impresso/convenio-fortalece-turismo-etnico-afro-em-cachoeira

7. “Bahia resgata cultura afro com turismo étnico”. Globo.com, 15/11/2007. Site consultado em 26/04/08.
http://g1.globo.com/noticias/brasil/0,,mul181164-5598,00bahia+resgata+cultura+afro+com+turismo+etnico.html

8. “Governador e Rice vão abordar turismo étnico”. Notícias da Bahia, 13/03/08. Site consultado em 26/04/08.
http://www.noticiasdabahia.com.br/editorias.php?idprog=884ce4bb65d328ecb03c598409e2b168&cod=1254

9. “Condoleezza Rice se encontra com autoridades, empresários e artistas”. Diário Oficial da Bahia, 14/03/2008. Site consultado em
26/04/08. http://www.cultura.ba.gov.br/noticias/na-midia/impresso/condoleezza-rice-se-encontra-comautoridades-empresarios-e-
artistas

10. Visita de Condoleezza Rice fortalece turismo étnico”. Secretaria Municipal de Habitação, 14/03/08. Site consultado em 26/04/08.
http://www.sehab.salvador.ba.gov.br/Noticias/20080314.htm

11. “Condoleezza discutirá turismo étnico na Bahia. Secretária americana está em Brasília para reunião com Lula e Amorim”. Zero Hora,
13/03/08. Site consultado em 26/04/08.

http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default.jsp?uf=1&local=1&section=Mundo&newsID=a1793831.htm

12. “Condoleezza Rice vai fazer propaganda do turismo étnico do Brasil e da Bahia nos EUA”. Ministério do Turismo. Portal Brasileiro do
Turismo, 14/03/08. Site acessado em 26/04/08. http://www.turismo.gov.br/portalmtur/opencms/institucional/noticias/arquivos/
ministra_vai_a_bahia_conversar_com_condoleezza_rice_sobre_acaes_do_mtur_para_promocao_do_turismo_etnico.html
13. A título de exemplo significativo dessas disparidades, basta mencionar a extrema dificuldade para se conseguir um visto de turista do
Brasil para os Estados Unidos.

14. “Secretária de estado americana se empolga com o Centro Histórico”. Correio da Bahia, 15/03/08. Site consultado em 26/04/08.
http://www.correiodabahia.com.br/aquisalvador/noticia.asp?codigo=149640

15. “Lá vem o afro-americano. Como Clarence Smith quer fazer de Salvador um destino para negros americanos ricos”. Portal Exame,
16/01/05. Site consultado em 27/04/08. http://portalexame.abril.com.br/revista/exame/edicoes/0856/negocios/m0078632.html

16. Viver Bahia! Revista Oficial de Turismo da Bahia. Agosto 2007, ano 1, n° 1: 19.

Bibliografia

BHABHA, H. K. Les lieux de la culture. Une théoriepostcoloniale. Paris: Payot, 2007.

BACELAR, J. & CAROSO, C. (org.). Brasil: um país de negros? Rio de Janeiro: Pallas; Salvador: CEAO,1999.

BASTIDE, R. As religiões africanas no Brasil: contribuições a uma sociologia das interpenetrações de civilizações.
São Paulo: Livraria Pioneira Editora/EDUSP, 1971.

BASTIDE, R. LesAmériquesNoires. Paris: L’Harmattan, 1996 [1967].

CAPONE, S. A busca da África no candomblé. Tradição e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa/Pallas,
2004.

CARDOSO DE OLIVEIRA, R. “Etnicidade, Eticidade e Globalização”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32, out.
1996.

CAROSO, C. & BACELAR, J. (org.). Faces da tradição afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas; Salvador: CEAO, 1999.

CHRISTMAS, R. J. “In Harmony with Brazil’s African Pulse”. In Hellwig, D. J. (ed.), African-American Reflections on
Brazil’s Racial Paradise. Philadelphia: Temple University Press, 1992.

DIAWARA, M. In search of Africa. Cambridge, London: Harvard University Press, 1998.

FRY, P.A persistência da raça. Ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África austral. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005.

GÉRAUD, M.-A. “Esthétiques de l’authenticité. Tourismeettourisme chez lesHmong de GuyaneFrançaise”.


EthnologieFrançaise, 91, 2002: 447-459.

GILROY, P. The Black Atlantic.Modernity and Double Consciousness. London: Verso, 1993.

GILROY, P. Against Race. Imagining Political Culture Beyond the Color Line. Boston: Harvard University Press,
2000.

HALEY, A. Roots. New York: Doubleday, 1976.

HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

HOBSBAWM, E. & RANGER, T. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

MATORY, J. L. «Jeje: repensando nações e transnacionalismo». Mana, Abril 1999, vol.5, no.1: 57-80.

PINHO, P. S. Reinvenções da África na Bahia. São Paulo: Annablume, 2004.


PINHO, P. S. “African-American Roots Tourism in Brazil”. Latin American Perspectives, 2008, 35: 70-86.

RISÉRIO, A. Carnaval Ijexá. Salvador: Corrupio, 1981.

SERRA, O. Águas do Rei. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes/Koinonia, 1995.

SUTHERLAND, P. “In Memory of the Slaves”. In Rahier, J. (ed.), Representations of Blackness and the
Performance ofIdentities. Westport: Bergin & Garvey, 1999.

TAYLOR, C. The Ethics of Authenticity.Harvard University Press, 1992.

VATIN, X. Rites etmusiques de possession à Bahia. Paris: L´Harmattan, 2005.

VERGER, P. Notícias da Bahia – 1850.Salvador: Corrupio, 1999.

Fontes eletrônicas

1. “Bahia é ‘Meca do turismo afro-americano’, diz jornal”, Blog do Favre. Site consultado em 27/04/08.
http://blogdofavre.ig.com.br/2007/09/bahia-e-meca-de-turismo-afro-americano-diz-jornal/

2. “Convênio fortalece turismo étnico afro em Cachoeira”. Jornal da Mídia, 16/08/2007. Site consultado em 26/04/08.
http://www.cultura.ba.gov.br/noticias/na-midia/impresso/convenio-fortalece-turismo-etnico-afro-em-cachoeira

3. “Bahia resgata cultura afro com turismo étnico”. Globo.com, 15/11/2007. Site consultado em 26/04/08.
http://g1.globo.com/noticias/brasil/0,,mul181164-5598,00bahia+resgata+cultura+afro+com+turismo+etnico.html

4. “Condoleezza Rice apoya el turismo étnico en Brasil.” Adnmundo.com, 16/03/08.


http://www.adnmundo.com/contenidos/turismo/condoleezza_rice_visita_salvador_bahia_promocion_turismo_etnico_tu_160308.html

5. “Condoleezza Rice vai fazer propaganda do turismo étnico do Brasil e da Bahia nos EUA”. Ministério do Turismo. Portal Brasileiro do
Turismo, 14/03/08. Site acessado em 26/04/08.

http://www.turismo.gov.br/portalmtur/opencms/institucional/noticias/arquivos/
ministra_vai_a_bahia_conversar_com_condoleezza_rice_sobre_acaes_do_mtur_para_promocao_do_turismo_etnico.html

6. “Condoleezza discutirá turismo étnico na Bahia. Secretária americana está em Brasília para reunião com Lula e Amorim”. Zero Hora,
13/03/08. Site consultado em 26/04/08.

http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default.jsp?uf=1&local=1&section=Mundo&newsID=a1793831.htm

7. “Condoleezza Rice faz visita de dois dias a Salvador”. Jornal da Mídia, 11/03/08. Site consultado em 26/04/08.

http://www.jornaldamidia.com.br/noticias/2008/03/11/Bahia_Nacional/Condoleezza_Rice_faz_visita_de_do.shtml

8. “Secretária de estado americana se empolga com o Centro Histórico”. Correio da Bahia, 15/03/08. Site consultado em 26/04/08.
http://www.correiodabahia.com.br/aquisalvador/noticia.asp?codigo=149640

9. “Governador e Rice vão abordar turismo étnico”. Notícias da Bahia, 13/03/08. Site consultado em 26/04/08.
http://www.noticiasdabahia.com.br/editorias.php?idprog=884ce4bb65d328ecb03c598409e2b168&cod=1254

10. “Condoleezza Rice se encontra com autoridades, empresários e artistas”. Diário Oficial da Bahia, 14/03/2008. Site consultado em
26/04/08. http://www.cultura.ba.gov.br/noticias/na-midia/impresso/condoleezza-rice-se-encontra-com-autoridades-empresarios-
eartistas

11. “Visita de Condoleezza Rice fortalece turismo étnico”. Secretaria Municipal de Habitação, 14/03/08. Site consultado em 26/04/08.
http://www.sehab.salvador.ba.gov.br/Noticias/20080314.htm
12. “Lá vem o afro-americano. Como Clarence Smith quer fazer de Salvador um destino para negros americanos ricos”. Portal Exame,
16/01/05. Site consultado em 27/04/08. http://portalexame.abril.com.br/revista/exame/edicoes/0856/negocios/m0078632.html

2.3. Comunidades Tradicionais Quilombolas

2.3.1. Artigo para debate: TURISMO ÉTNICO EM COMUNIDADES QUILOMBOLAS: PERSPECTIVA PARA O
ETNODESENVOLVIMENTO EM FILIPA (MARANHÃO, BRASIL)

∗ Rosijane Evangelista da Silva (SILVA, R. E.)

**Karoliny Diniz Carvalho (CARVALHO, K. D.)

RESUMO. O artigo reflete sobre a prática turística nos territórios remanescentes quilombolas, buscando analisar
o processo de inserção da comunidade de Filipa, Maranhão (Brasil), no turismo étnico. O estudo relaciona
questões referentes à memória (POLLACK, 1989), identidade (CASTELLS, 1999; HALL, 2001; CANCLINI, 2000) e
patrimônio cultural (CASTILLO-RUIZ, 1996 apud ZANIRATO e RIBEIRO, 2006), enfatizando-o como recurso
(YÚDICE, 2004) para o turismo cultural (COSTA, 2009), notadamente para o segmento turismo étnico. Partindo-
se de uma pesquisa bibliográfica e documental (DENCKER, 1998) conclui-se que o patrimônio cultural da
comunidade de Filipa pode contribuir para o etnodesenvolvimento do local, por meio de um aproveitamento
turístico balizado nos princípios da sustentabilidade cultural.

Palavras-chave: Turismo Étnico; Sustentabilidade; Filipa-Maranhão.

INTRODUÇÃO

Na contemporaneidade, o turismo caracteriza-se como um importante instrumento de dinamização


socioeconômica, apresentando um viés predominantemente cultural. Conhecer lugares, manter contato com a
dimensão material e simbólica das comunidades, e vivenciar as experiências de um lugar é compartilhar de seus
elementos e significados singulares, participando da representatividade cultural dos locais visitados.

A riqueza cultural de uma comunidade ao ser preservada como forma de manutenção do grupo é
utilizada como fomento ou elemento potencializador para a atividade turística, principalmente neste momento
em que se observa o crescente interesse pela pluralidade étnica e pela diversidade cultural.

O presente artigo objetiva refletir sobre o turismo cultural nos territórios remanescentes quilombolas,
buscando analisar as possibilidades de aproveitamento turístico do legado étnico da comunidade de Filipa,
localizada no Estado do Maranhão, enquanto fator de desenvolvimento socioeconômico.

Como aporte teórico para a fundamentação do trabalho, o estudo relaciona questões referentes à
memória (POLLACK, 1989), identidade (CASTELLS, 1999; HALL, 2001; CANCLINI, 2000) e patrimônio cultural
(CASTILLO-RUIZ, 1996 apud ZANIRATO e RIBEIRO, 2006), enfatizando-o como recurso (YÚDICE, 2004) para o
turismo cultural (COSTA, 2009), notadamente para o segmento turismo étnico.

Partindo-se de uma pesquisa de caráter bibliográfico, complementada por análise documental


(DENCKER, 1998), buscou-se também a pesquisa de campo, mediante a observação sistemática da realidade
investigada, por meio de visitas periódicas à comunidade quilombola de Filipa. A coleta de dados ocorreu nos
meses de fevereiro e março de 2009.
Utilizando como instrumento metodológico a observação não participante, tornou-se possível obter
informações sobre o legado étnico da comunidade, as articulações dos agentes em torno da proposta de
implantação do turismo naquela região, além de identificar as oportunidades para o etnodesenvolvimento local.

Diante do exposto, a argumentação proposta encontra-se dividida em seções. Inicialmente, apresenta-


se uma breve discussão sobre patrimônio cultural, identidade e memória, relacionando-os aos territórios
quilombolas. Em seguida, expõe-se o processo de articulação entre legados étnicos e o turismo cultural,
destacando-o como vetor para o fortalecimento das identidades culturais e para a promoção do
etnodesenvolvimento em comunidades tradicionais.

Posteriormente, o estudo apresenta uma discussão sobre a construção do olhar turístico no território
quilombola de Filipa, Maranhão, ressaltando as suas particularidades, bem como as estratégias de conformação
adotadas para a sua configuração como produto turístico baseado no legado étnico.

Parte-se do pressuposto de que a atividade turística pode contribuir para o etndodesenvolvimento


local e para o enriquecimento da relação entre turistas e residentes por meio de um aproveitamento balizado
nos princípios da sustentabilidade cultural.

TERRITÓRIOS ÉTNICOS: ENTRE MEMÓRIAS E TRADIÇÕES

O patrimônio cultural apreendido como testemunho das diversas vivências dos grupos sociais
apresenta-se sob várias matizes, considerando os aspectos tangíveis e espirituais que produzem sentido e
significado ao legado cultural transmitido de geração a geração. Nele estão inseridos todos os saberes e fazeres
populares, as festas e celebrações, a gastronomia, o artesanato, o patrimônio histórico-arquitetônico, a
religiosidade, ou seja, toda produção material e simbólica dos grupos sociais enquanto partícipes de um
integrado e complexo sistema de representação simbólica.

Por meio dele, os indivíduos estabelecem trocas culturais, manifestando seus vínculos identitários.
Para Castells (1999, p. 23), a identidade é um processo social, sendo definida como “fontes de significados e
experiências construídas [...] a partir da matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições
de poder e revelações de cunho religioso”. Tais significações são constantemente remodeladas e construídas,
isto é, obedecem a processos de seleção e apropriação por parte dos grupos sociais, de acordo com
determinado momento ou contexto histórico. Conforme assinala Sodré (1999, p. 45):

A identidade afirma-se primeiro como um processo de diferenciação interna e externa, isto é, de


identificação do que é igual e do que é diferente, e em seguida como um processo de integração ou
organização das forças diferenciais, que distribui os diversos valores e privilegia um tipo de acento.

Assim, os indivíduos estabelecem determinados elementos que são apreendidos como traços
distintivos de sua cultura, e se tornam alicerces para a construção das identidades. Na contemporaneidade, as
identidades tornam-se cada vez mais compartilhadas, sofrendo constantes processos de hibridismo cultural, o
que resulta para Canclini (2000) na formação de indivíduos traduzidos, que assumem diferentes posições ou
referências identitárias. Nesse contexto, o patrimônio cultural em sentido amplo passa a ser entendido,
conforme expõem Castillo-Ruiz, 1996 apud Zanirato e Ribeiro, 2006 1 como o "conjunto de elementos naturais
ou culturais, materiais ou imateriais, herdados do passado ou criados no presente, no qual um determinado
grupo de indivíduos reconhece sinais de sua identidade".

De acordo com Pollack (1989) através da memória intensifica-se o sentido de pertencimento dos
grupos sociais a um passado ou origem comum delimitando, nesse sentido, fronteiras socioculturais. Na visão de
Murta e Albano (2002, p. 125), “a memória é, portanto, um elemento constitutivo da identidade, tanto coletiva
quanto individual, e elemento importante para o reconhecimento e a valorização de indivíduos ou grupos,
agindo para reforçar sua autoestima”.

Assim, o patrimônio cultural implica sentidos de permanência, pertencimento e persistência,


considerando-se que a produção material e simbólica de uma determinada comunidade torna-se elo de
identificação do grupo a um ethos cultural comum, vetor de transmissão e compartilhamento de memórias
individuais e coletivas, e das tradições.

Essas são reinterpretadas e reconfiguradas no presente, porém, mantendo-se o substrato que lhe deu
origem. Essa configuração pode ser analisada em comunidades ditas tradicionais, nas quais a identidade é
percebida e reelaborada, segundo Poutignat e Streiff-Fenart (1998)por meio da diferença, possuindo um sentido
marcadamente territorial. Conforme observa Haesbaert (1999, p. 178-179):

A identidade social é também uma identidade territorial quando o referente central para a construção
desta identidade parte ou transpassa o território. Território que pode ser percebido em suas múltiplas
perspectivas, desde aquela que de uma paisagem como espaço cotidiano, vivido, que simboliza uma
comunidade – até um recorte geográfico mais amplo, ou em tese mais abstrato como o Estado nação.

De acordo com Diegues e Arruda (2001), a expressão comunidade tradicional é quase sempre utilizada
para identificar povos e grupos sociais que guardam uma continuidade histórica, cultural e identitária desde a
conquista europeia da América. No Brasil tal expressão está associada às comunidades que desenvolveram
modos de produção em que o trabalho não é visto como mera mercadoria e a dependência ao mercado existe,
mas não é total.

Essas comunidades desenvolvem formas particulares de manejo dos recursos naturais que não visam
diretamente ao lucro, mas à reprodução cultural e social, bem como percepções e representações em relação
ao mundo natural e cultural marcadas pela ideia harmônica de associação com a natureza e seus ciclos. Entre as
chamadas populações tradicionais destacam-se as comunidades rurais remanescentes de quilombos.

O decreto governamental número 6.040de 07/02/2007 que institui a Política Nacional de


Sustentabilidade dos Povos e Comunidades tradicionais – PNPCT (BRASIL, 2007) conceitua comunidades
tradicionais como grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que ocupam e usam
territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução social, religiosa, ancestral e econômica,
utilizando conhecimentos, inovações e práticas geradas e transmitidas pela tradição.

Redutos históricos da resistência negra, as comunidades quilombolas enquadram-se nesse perfil.


Segundo Silva (2004), um dos conceitos mais amplamente disseminados em nível nacional é o da Associação
Brasileira de Antropologia – ABA, que define tais comunidades como “toda comunidade negra rural que agrupe
descendentes de escravos vivendo da cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm forte
vínculo com o passado (ABA apud SILVA, 2004, p. 16)2”.

Tal conceito designa a situação da etnia negra em diferentes regiões e contextos, sendo utilizado para
caracterizar um legado cultural e material que oferece a esses grupos uma referência presencial no sentido de
ser e pertencer a um lugar e a um grupo específico.

Assim, os territórios quilombolas resultam de um tipo particular de percepção e apropriação do


espaço geográfico, sendo constituídos por formas de organização social, comunicação grupal e laços de
solidariedade comunitária específicos, ligando os indivíduos a um passado ou origem étnica comum.
Apresentam-se como verdadeiros sítios simbólicos de pertencimento, reveladores de vivências, crenças, ritos,
rituais, celebrações, costumes e estilos de vida dessas comunidades. Na visão de Zaoual (2006, p. 37), “os sítios
apresentam, com efeito, esta extensão imbricada que os tornam, apesar de seu caráter único, entidades plurais
que vivem da diversidade circundante”.

A identidade étnica de um grupo é o alicerce para sua forma de organização, para sua relação com os
demais grupos e de seu agir político. A atitude pela qual os grupos sociais definem o próprio pertencimento é
resultado de uma confluência de fatores determinados por eles mesmos, no qual constam itens como uma
ancestralidade comum, formas de organização política e social, elementos linguísticos e religiosos.

Para Poutgnat e Streiff-Fenart (1998, p. 129):

A etnicidade não é vazia de conteúdo cultural (os grupos encontram ‘cabides’ nos quais pendurá-la), mas
ela nunca é também a simples expressão de uma cultura já pronta. Ela implica sempre um processo de
seleção de traços culturais dos quais os atores se apoderam para transformá-los em critérios de
consignação ou de identificação com um grupo étnico.

As comunidades quilombolas são comunidades e grupos sociais cujos processos identitários de


construção sociocultural os distinguem do restante da sociedade. Tais processos tornam-se dinâmicos, balizados
em mecanismos sucessivos de construção e reconstrução identitárias, nas quais os atores sociais se apropriam,
selecionam e reelaboram determinados atributos culturais, de acordo com os diferentes contextos ou
momentos históricos.

Baseando-se nessa proposição observa-se que as comunidades tradicionais, além de se constituírem


em lugares mantenedores de uma memória étnica e cultural específica, vêm sendo incorporadas sob a forma de
roteiros e atrações culturais, às demandas das sociedades contemporâneas, nas quais se inserem o lazer e o
turismo.

TURISMO CULTURAL E ETNODESENVOLVIMENTO: INTERFACES

O turismo entendido como um dos principais fatores do trânsito ou da mobilidade humana configura-
se como uma atividade marcadamente cultural, impulsionado pelo desejo dos grupos sociais em vivenciar
experiências diferenciadoras de seu cotidiano. Dessa forma, a atividade projeta o patrimônio cultural como
instrumento mediador de aprendizagem e educação. Na visão de Moesch (2001, p. 9) o turismo constitui-se em:

Uma combinação complexa de inter-relacionamentos entre produção e serviços, em cuja composição


integra-se uma prática social com base cultural, com herança histórica, a um meio diverso, cartografia
natural, relações sociais de hospitalidade, troca de informações interculturais.

Diante do panorama crescente de profundas transformações nas relações sociais, do processo de


mundialização do capital econômico e cultural, atrelada à disseminação de redes globais em amplos setores da
realidade econômica, o turismo proporciona a redefinição dos usos dos territórios, agenciando as
especificidades naturais e culturais das regiões, e gerando oportunidades de desenvolvimento social e
econômico. Assim, os territórios de identidade transformam-se em territórios turísticos, com repercussões na
vida social, econômica e cultural das comunidades receptoras.

Nesse contexto, os turistas tidos como culturais possuem como principal motivação o desejo de entrar
em contato com diferentes culturas, visitando os elementos representativos do patrimônio de uma determinada
comunidade: conjuntos arquitetônicos, sítios arqueológicos, danças típicas, religiosidade, gastronomia, o
artesanato, a musicalidade, performances artística. Assim, o patrimônio cultural apresenta-se como atrativo
significativo para os turistas, especialmente para aqueles que buscam na apreciação do outro, um diferencial em
relação às suas vivências habituais.
O conhecimento sobre a dimensão material e simbólica reelaborada na cotidianidade de povos e
comunidades específicos através de suas diversas formas de representação constitui-se em um viés integrador,
gerando oportunidades efetivas de educação e aprendizado intercultural. Na visão de Costa (2009, p. 190):

O turismo cultural pode ser compreendido como um segmento da atividade turística que, por meio da
apreciação, da vivência e da experimentação direta dos bens do patrimônio cultural, material e imaterial,
e da mediação da comunicação interpretativa, proporciona aos visitantes a participação em um processo
ativo de construção de conhecimentos sobre o patrimônio cultural e sobre seu contexto sócio-histórico. Em
última escala, este processo auxiliará na produção de novos conhecimentos e a conservação dos bens
visitados.

Segundo Urry (1996), enquanto atividade econômica o turismo materializa-se nas relações comerciais
que se estabelecem nos destinos com a presença dos visitantes, variando de acordo com o caráter motivacional
dos grupos sociais e com as diferentes formas de apresentação das culturas visitadas durante a performance ou
experiência turística. No segmento do turismo cultural surgem, assim, várias especialidades, dentre as quais se
destacam o turismo gastronômico, o religioso, e o turismo étnico.

O turismo étnico ou o turismo baseado no legado étnico vem se afirmando como uma alternativa
frente ao turismo massificado no qual predomina o consumo desenfreado das culturas locais. Sob o paradigma
da diversidade cultural e da plurietnicidade, os turistas culturais apresentam-se como grupos de consumidores
interessados na vivência cultural no âmbito de comunidades remanescentes de etnias específicas, ou naquelas
em que predomina a representação do legado cultural herdado ao longo de processos históricos e sociais e
reinterpretado no presente sob novas significações.

De acordo com a Organização Mundial de Turismo – OMT (2003, p. 168), o turismo étnico “é voltado
para as tradições e estilo de vida de um grupo e utilizado, principalmente, para destacar o turismo nas
comunidades ou enclaves específicos, em processo de desenvolvimento”. Considera-se que a vivência dos
turistas com os elementos do patrimônio cultural pode contribuir para o fortalecimento das identidades e para
a revalorização da memória e da cultura locais.

Segundo o Ministério do Turismo (BRASIL, 2006, p. 13), “o turismo étnico é a vivência de experiências
autênticas e o contato direto com os modos de vida e a identidade dos grupos étnicos”. Consiste, portanto, na
busca pela interação e integração dos turistas com o cotidiano de comunidades que apresentam determinadas
características sociais, econômicas, além de tradições culturais baseadas num forte sentido de territorialidade.
O objetivo maior relaciona-se à busca pelo conhecimento e aprendizado intercultural.

O segmento do turismo étnico baseia-se nas novas necessidades de consumo de experiências


identificadas e percebidas como autênticas, tanto por parte da demanda turística, quanto por parte das
comunidades receptoras. Para Beni (2002, p. 145) no turismo étnico os grupos se deslocam na busca:

[...] de suas origens étnicas locais e regionais, e também no legado histórico cultural de sua ascendência
comum. Incluem-se aí ainda aqueles que se deslocam com objetivos eminentemente antropológicos para
conhecer “in loco” as características étnico-culturais daqueles povos que constituem o interesse de sua
observação (Grifo do autor).

Nesse sentido, ao revigorar o patrimônio cultural relacionando-o ao presente, o turismo cultural


oportuniza à comunidade um importante aprendizado sobre a sua própria trajetória cultural, destacando as
características históricas e culturais dos territórios étnicos, ressaltando assim, a importância dos referenciais
culturais para o revigoramento ou fortalecimento das identidades.
Conforme analisa Yúdice (2004), o patrimônio cultural, nesses casos, é entendido como recurso,
sendo utilizado como estratégia para o desenvolvimento socioeconômico de muitas comunidades. Assim,
muitas localidades têm enfatizado a preservação dos diferentes legados étnico-culturais, objetos e artefatos de
significância cultural, bens simbólicos e manifestações populares, inserindo-os no mercado de consumo cultural.
Para Graburn (2009, p. 26):

O turismo étnico depende de transmitir – mediante folhetos, vídeos e descrições em outros lugares, artes
turísticas, representações e encenações no local – a fascinante diferença, e até o exotismo, da comunidade
receptora. As mesmas forças também dão forma às auto representações regionais e até nacionais
naquelas partes do mundo que são consideradas “étnicas”. Em todo lugar, a “cultura autêntica” é
colocada na vitrine (Grifo do autor).

Em articulação aos processos de produção e consumo de mercadorias e bens simbólicos que operam
em nível global, na qual a atividade turística se insere, reacendem-se as discussões sobre o desenvolvimento
sociocultural dos territórios numa perspectiva local. Na visão de Santana (2009) os debates em torno dessa
questão, de um modo geral, referem-se aos resultados– nem sempre benéficos às comunidades receptoras – da
encenação das culturas, valores e tradições enquanto produtos destinados ao consumo visual e estético, na
perspectiva de atender às necessidades culturais dos visitantes. A esse respeito Bahl (2004, p. 66) comenta que
“o artificialismo nem sempre é o desejado, mas torna-se um recurso para a manutenção do sonho daqueles
turistas sequiosos em conhecer aspectos da cultura de um local e de seu comportamento”. Ao mesmo tempo
enfatiza que:

[...] a participação popular pelo incentivo às manifestações locais torna-se um ponto benéfico em que a
localidade se prepara a partir de seus próprios interesses, e que justamente serão a sua marca registrada e
diferencial, evitando-se o artificialismo e a promoção de fenômenos produzidos e sem razão de existirem
(BAHL, 2004, p. 66).

A noção de etnodesenvolvimento é quase sempre confundida com o conceito de desenvolvimento


sustentável das comunidades étnicas, porém tal noção é pouco abrangente e, apesar deste conceito englobar a
dimensão da sustentabilidade, seu papel enquanto fator revigorante do patrimônio cultural e fortalecedor do
pertencimento étnico envolve questões mais amplas.

De acordo com Diegues e Arruda (2001), o discurso sobre esse tema surgiu no contexto latino-
americano de forma mais consistente a partir da década de oitenta como fruto de debates da reunião de
especialistas em etnodesenvolvimento e etnocídio em São José da Costa Rica. Seu conceito se formou como
alternativa às teorias desenvolvimentistas e etnocidas que de acordo com Verdum, 2002 apud Farias (2003, p.
72)3, “tomavam as sociedades indígenas e as comunidades tradicionais em geral como obstáculo ao
desenvolvimento, à modernização e ao progresso”.

Stavenhagem, 1985 apud Grünewald (2002, p. 51) 4 propõe uma caracterização sobre
etnodesenvolvimento como “um desenvolvimento que mantém o diferencial sociocultural de uma sociedade,
ou seja, sua etnicidade”. Assim, essa denominação perpassa pelas questões da sustentabilidade, mas considera
além delas. Baseando-se nessa definição, o etnodesenvolvimento significa que “a etnia, autóctone, tribal ou
outra, detém o controle sobre suas próprias terras, seus recursos, sua organização social e sua cultura e é livre
para negociar com o Estado o estabelecimento de relações segundo seus interesses”.

Dessa forma, pressupõe e exercita a capacidade social dos atores de comunidades tradicionais por
meio de projetos definidos de acordo com seus valores e anseios, alicerçados nos recursos reais e potenciais
disponíveis no seu território, na utilização de seus significados e experiências históricas e coletivas, no sentido
de guiar de forma autônoma o seu desenvolvimento.
A COMUNIDADE QUILOMBOLA DE FILIPA E BUSCA PELO ETNODESENVOLVIMENTO

A comunidade quilombola de Felipa localiza-se no município de Itapecuru, distante 120 km de São


Luís, capital do Maranhão, tendo como via de acesso a BR 135. Conforme apresentado por Silva (2003), o
território possui uma área de 428 hectares, abrigando 35 famílias descendentes de mesmo tronco familiar,
totalizando 170 pessoas. O capital social e as sinergias culturais das comunidades tradicionais e especificamente
da comunidade de Filipa são estímulos para a implantação da atividade turística tanto no espaço natural –
envolvendo atividades ligadas ao meio ambiente e a rotina rural - quanto do turismo cultural – direcionado para
a vivência de tradições e costumes específicos da comunidade quilombola.

O potencial turístico de Filipa está baseado nos seus aspectos naturais e culturais. Como atrativo
natural destaca-se o rio Itapecuru, matas inexploradas e paisagens verdes que favorecem a implantação de
trilhas e práticas de contemplação, lazer e descanso. Ressaltam-se ainda as possibilidades de trocas culturais
mediante o contato com as pessoas da comunidade e o conhecimento sobre as práticas rurais que ali se
desenvolvem.

Ao visitante pode ser oferecido o contato direto com a vida do campo, possibilitando-lhe uma
experiência genuína de mergulho na realidade rural e de contato com a natureza, por meio da organização
comunitária e dos valores e práticas de sociabilidade que ordenam a vida cotidiana do lugar (por exemplo, as
produções nos campos de cultivo e a confecção de farinha), complementadas pelas tradições orais.

Dentre os aspectos culturais destaca-se o Tambor de Crioula, parte significativa do lazer e do


imaginário cultural local. Herança dos ancestrais, o Tambor de Crioula em Filipa não obedece a um calendário
específico de apresentações. Configura-se como elemento do lazer comunitário que pode ser brincado e
ensinado aos turistas em qualquer época, sem comprometer o aspecto tradicional da brincadeira. A própria
característica afrodescendente da comunidade, o status de comunidade tradicional e o modo de produção
sustentável já despertam o interesse dos visitantes.

Outra festa tradicional é o Festejo em homenagem a São Sebastião, padroeiro local. O festejo
harmoniza os elementos religiosos e profanos, pois além da parte ritual representada pela novena que precede
a festa, da missa e da ladainha rezada em latim realizada na capela dedicada ao Santo localizada no centro do
povoado, conta também com torneios de futebol e baile regado ao som do reggae 5. A festa acontece no
segundo final de semana de outubro e atrai muitos turistas para a região. Entretanto, observa-se a necessidade
de implantação de uma infraestrutura básica e de serviços visando à satisfação das necessidades dos visitantes.
Em Filipa, o legado e as singularidades culturais organizados em padrões muito particulares reforçam a
participação e o protagonismo da comunidade na implantação e gestão do turismo alicerçado na perspectiva de
um desenvolvimento endógeno e sustentável. A comunidade de Filipa tem experimentado desde meados dos
anos noventa um processo de transformação.

O desejo de melhorias foi despertado a partir de uma revalorização dos sentidos identitários culturais
e coletivos de pertencimento, e do fortalecimento de suas expressões étnicas que levou os atores locais a
consolidar laços de união visando uma organização comunitária e uma articulação com instituições
representativas das comunidades tradicionais em esferas mais abrangentes.

Conforme analisa Silva (2003), as iniciativas vão desde a implantação em parceria com a Empresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária – EMBRAPA/MA de um projeto piloto de criação de galinhas caipiras
híbridas, implantação de técnicas de cultivo de mandioca e de uma agroindústria de farinha comunitária visando
o aumento da produtividade, até uma plantação clonal de castanha de caju para distribuir sementes para outras
comunidades e produtores, além de montagem de tanques para cultivo de peixes com vistas a transformar-se
em um equipamento pesque e pague.

Devido às características particulares do conjunto comunitário, o desenvolvimento dessas iniciativas


de pequeno porte tem produzido bons resultados e despertado o interesse pelo modo de vida e de produção de
Filipa. Nesse sentido, observa-se a chegada espontânea de pequenos grupos de visitantes interessados na busca
dos produtos locais, no contato com a comunidade ou na tranquilidade das belezas locais.

Assim, emergem formas ainda incipientes de turismo com base no legado étnico, que apesar de não
gerarem recursos suficientes para satisfazer as necessidades da comunidade, começam a despertar o interesse
dos comunitários. O turismo baseado no legado étnico tem ensejado se revelar uma estratégia eficaz de
desenvolvimento sociocultural e ambiental.

Para tanto, a atividade de turismo cultural deve considerar as reais necessidades e os anseios da
comunidade, sobretudo de comunidades como Filipa, detentoras de um patrimônio cultural diferenciado. Os
projetos de desenvolvimento turístico devem potencializar as especificidades naturais e culturais dos territórios,
enquanto estratégia para a formatação de produtos, roteiros e atrações que valorizem as singularidades, as
diferentes paisagens, os conhecimentos tradicionais e práticas culturais que constroem os lugares de
identidade.

Benevides (2002, p. 25) destaca a importância dos seguintes fatores para a consolidação do turismo
cultural balizado nos pressupostos da sustentabilidade:

A manutenção da identidade cultural dos lugares como próprio fator de atividade turística; uma
construção de uma via democrática para o desenvolvimento de certas localidades, articuladas pelo
turismo como fator estruturante de valorização de suas potencialidades ambientais e culturais, com
participação da população local na construção ativa desse processo.

A sustentabilidade no turismo cultural, sobretudo naquele baseado nos legados étnicos, pressupõe
uma atenção especialmente voltada para as especificidades locais, os problemas sociais, para a diversidade
cultural. A promoção da sustentabilidade está diretamente relacionada a uma concepção estratégica e em longo
prazo de desenvolvimento que deve se apoiar segundo Irving (2003) numa interpretação interdisciplinar e
integral da dinâmica das comunidades tradicionais.

A construção da sustentabilidade no turismo é consequência da responsabilidade de todos os


envolvidos, um processo complexo que exige adaptações, mudanças, propõe agendas e modelos para políticas
pública se, principalmente, compromisso com seus princípios. Para alguns é ainda somente uma utopia, mas
para muitos tem se tornado cada vez mais uma realidade, sobretudo para aquelas pessoas, grupos sociais e
principalmente comunidades onde os princípios encontram reflexos nas representações e reproduções das
relações sociais e estão transformando as realidades locais.

Reportando-se à cultura, segundo Rodríguez (1997, p. 58):

A dimensão cultural busca nas raízes endógenas, a diversidade e a pluralidade cultural, pela preservação
do patrimônio, dos recursos culturais em respeito aos modelos autóctones. Através da capacidade de
autogestão das comunidades locais, participando na tomada de decisões, procura sistemas alternativos de
tecnologia e produção.

Praticado segundo essas diretrizes, valorizando as experiências comunitárias e a participação efetiva


em todas as etapas da atividade, o turismo cultural que compartilha os princípios do etnodesenvolvimento, bem
como os elementos básicos que impulsionam as comunidades quilombolas, é possível vislumbrar uma
perspectiva potencial de um desenvolvimento holístico que proporcione de fato a melhoria desejada pelas
comunidades tradicionais ao seu padrão de qualidade de vida.

No processo de organização da atividade turística como alternativa de renda e melhoria da qualidade


de vida de seus moradores e geradora de sustentabilidade, os aspectos que marcam os laços de
reconhecimento cultural e pertencimento da comunidade podem ser determinantes para o modelo de
desenvolvimento que a comunidade deseja implantar e se corresponderá aos resultados e benefícios que
almeja.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Territórios étnicos podem traduzir-se em um elo de identidade e pertença entre os grupos sociais, ao
mesmo tempo para os turistas, podem transmutar-se em um cenário estratégico para o atendimento de suas
necessidades de evasão, ócio e lazer. O etnodesenvolvimento alicerçado no turismo cultural possibilita às
comunidades fortalecerem o sentimento de pertença e desenvolverem a sua capacidade de autogestão, no
sentido de construir novas formas de produção de serviços para o turismo, sem padronização, com
autenticidade e de maneira criativa, baseado no compromisso, na participação e na solidariedade.

O turismo étnico se conforma desse modo num processo de descoberta e de construção coletiva,
quando as comunidades tradicionais discutem e determinam o que querem, o que podem e como querem fazer
para o desenvolvimento dos seus territórios e dos agentes que nele habitam. A comunidade quilombola de
Filipa tem vivenciado esse processo, por meio da arregimentação de seu patrimônio cultural, de suas memórias
e tradições pela atividade turística.

No intuito de estabelecer uma relação harmônica entre turismo étnico e comunidades tradicionais
torna-se necessário promover uma gestão compartilhada dos recursos e valores locais, capaz de conciliar os
projetos de desenvolvimento econômico e a elevação da qualidade de vida para os segmentos sociais.

As particularidades dos territórios étnico-culturais devem ser consideradas e potencializadas no


decorrer da formatação de produtos turísticos, promovendo maior articulação entre os agentes locais, visando
ao alcance da sustentabilidade dos projetos turísticos.

REFERÊNCIAS

BAHL, M. Viagens e roteiros turísticos. Curitiba: Protexto, 2004.

BENEVIDES, I. P. Turismo e PRODETUR: dimensões e olhares em parceria. Fortaleza: EUFC, 2002.

BENI, M. C. Análise estrutural do turismo. São Paulo: SENAC, 2002.

BRASIL, Ministério do Turismo. Turismo Cultural: Orientações básicas. Brasília: Ministério do Turismo, 2006.

BRASIL. Decreto nº 6.040 de 07/02/2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos
e Comunidades tradicionais – PNPCT. Disponível em: <htpp: //www.planalo.gov.br/ccivil_03/Ato2007-
2010/2007/Decreto/ D6040.htm>. Acesso em: 08/05/2010. Turismo Étnico em comunidades quilombolas:
perspectiva para o etnodesenvolvimento em Filipa (Maranhão, Brasil)

CANCLINI, N. G. Culturas híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Heloísa Pezza Cintrão,
Ana Regina Lessa. 3. ed. São Paulo: Edusp, 2000.

CASTELLS, M. O Poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.


COSTA, F. R. Turismo e patrimônio cultural: interpretação e qualificação. São Paulo: SENAC, 2009.

DENCKER, A. de F. M. Métodos e técnicas de pesquisa em turismo. São Paulo: Futura, 1998.

DIEGUES, A. C. S.; ARRUDA, R. S. V. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. 4. ed. Brasília: Ministério do
Meio Ambiente, 2001.

FARIAS, G. A participação da comunidade no planejamento do turismo. Turismo: tendências e debates.


Salvador, ano V, n. 5, p. 29-33, jan./jun. 2003.

GRABURN, N. Antropologia ou Antropologias do Turismo? In: GRUNEWALD, R. de A.; GRABURN, N.; BARRETTO,
M.; STEIL, C. A.; SANTOS, R. J. dos. (Orgs.)

Turismo e Antropologia: novas abordagens. São Paulo: Papirus, 2009, p. 13- 52.

GRÜNEWALD, R. de A. A Reserva da Jaqueira: Etnodesenvolvimento e Turismo. In: RIEDL, M.; ALMEIDA, J. A.;
VIANA, A. L. B. (Orgs.). Turismo Rural: tendências e sustentabilidade. Santa Cruz do Sul: EDUSC, 2002.

HAESBAERT, R. Identidades Territoriais. In: ROSENDAHL, Z. (Org.). Manifestações da cultura no espaço. Rio de
Janeiro: EdUerj, 1999.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2001.

IRVING, M. de A. Turismo como instrumento de desenvolvimento local. In: D’ÁVILA, M. I.; ROSA, P. (Orgs.).
Tecendo o desenvolvimento. Rio de janeiro: Mauad, 2003.

MOESCH, M. Animal Kingdom: um estudo preliminar. In: CASTROGIOVANNI, A. C. Turismo Urbano. São Paulo:
Contexto, 2001, p. 89-98.

MURTA, S. M.; ALBANO, C. Interpretação, preservação e turismo. In: MURTA, S. M.; ALBANO, C. (Orgs.).
Interpretar o patrimônio: um exercício do olhar. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO TURISMO. Turismo Internacional uma perspectiva global. 2. ed. Porto Alegre:
Bookman, 2003.

POLLAK, M. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15,
1989.

POUTIGNAT, P.; STREIFF-FERNART, J. Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de
Fredrik Barth. São Paulo: UNESP, 1998.

RODRIGUÉZ, J. M. M. Desenvolvimento Sustentável: níveis conceituais e modelos. In: CAVALCANTI, A. P. B.


(Org.). Desenvolvimento Sustentável e planejamento: bases teóricas e conceituais. Fortaleza: UFC- Imprensa
Universitária, 1997.

SANTANA, A. Antropologia do turismo: analogias, encontros e relações. Tradução de Eleonora FrenkelBarretto.


São Paulo: Aleph, 2009.

SODRÉ, M. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Vozes, Petrópolis, 1999.

SILVA, A. V. M.Kalunga: identidade étnica de uma comunidade remanescente de quilombo. Amsterdã: Urije
Universiteite, 2004.
SILVA, R. E. da. Sustentabilidade e Turismo: Uma relação possível em Filipa - MA. Monografia (Graduação em
Turismo) – Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2003.

URRY, J. O olhar do turista: lazer e viagens nas sociedades contemporâneas. São Paulo: EDUSC, 1996.

YÚDICE, G.A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: UFMG, 2004.

ZANIRATO, S. H.; RIBEIRO, W. C. Patrimônio cultural: a percepção da natureza como um bem não renovável. In:
Revista Brasileira de História, v. 26, n. 51, 2006.

ZAOUAL, H. Nova economia das iniciativas locais: uma introdução ao pensamento pós-global. Rio de Janeiro:
DP&A, 2006.

Notas:                                                     

∗ Bacharel em Turismo pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Mestranda em Cultura e Turismo pela Universidade Estadual de
Santa Cruz (UESC), Ilhéus, Bahia (BA). Endereço para correspondência: Rua Boa Esperança, 99, apartamento 405, Bloco IV, condomínio
Fernando de Noronha, Angelim. CEP: 65490-250 - São Luís – Maranhão (MA/Brasil). E-mail: fedele.e@hotmail.com.

** Bacharel em Turismo pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Mestranda em Cultura e Turismo pela Universidade Estadual
de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, Bahia (BA). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). Endereço para
correspondência: Rua Barão do Rio Branco, Quadra I, número 14, (Sítio Leal). CEP: 65045-340 - São Luís – Maranhão (MA/Brasil). Email:
karol27_turismo@yahoo.com.br

1. CASTILLO-RUIZ. Hacia una nueva definición de patrimonio histórico?PH Boletín del Instituto Andaluz del Patrimonio Histórico, Sevilla:
IAPH, n. XVI, set. 1996, p. 22.

2. ABA. Associação Brasileira de Antropologia. Disponível em: <http://www.abant.org.br/>.

3. VERDUN, R. Etnodesenvolvimento e mecanismos de fomento do desenvolvimento dos povos indígenas: a contribuição do


subprograma Projetos Demonstrativos (PDA). In: LIMA, A. C.; BARROSO, M. (Orgs.). Etnodesenvolvimento e políticas públicas: bases para
uma nova política indigenista. Rio de Janeiro: Contra capa/LACED, 2002.

4. STAVENHAGEM, R. Etnodesenvolvimento: uma dimensão ignorada do pensamento desenvolvimentista. In: Anuário Antropológico 84.
Rio de Janeiro, p. 11-44, 1985.

5. Ritmo Jamaicano difundido no Estado do Maranhão em meados da década de 1970.

UNIDADE III
3.1. Análises das relações entre turistas e culturas locais.
3.1.1. Leitura e Debate do Artigo: TURISMO E CULTURA LOCAL: RELAÇÃO POSSÍVEL?

Cleide de Fátima Galiza de Oliveira

Fundação Joaquim Nabuco(Recife-Brasil) cleide.galiza@fundaj.gov.br

RESUMO
A avassaladora engrenagem que impulsiona o turismo, principalmente nas pequenas comunidades,
produz mudanças significativas nos aspectos econômicos, culturais e sociais da população local passando por
questões comportamentais e transfigurações de paisagens, através do redesenho físico-espacial do lugar. São
transformações de mão dupla, ou seja, por um lado trazem benefícios e, por outro, provocam novos arranjos
sociais, algumas vezes, nocivos à população. Ao se considerar os efeitos positivos da atividade turística, pode-se
ressaltar os diferentes cenários que se formam com a introdução de novos valores e costumes através do
convívio com distintos idiomas, antes desconhecidos ou mesmo inexistentes no imaginário de grande parte da
população. A tomada de consciência da população é um dos benefícios trazidos pelo turismo. Ao se defrontarem
com outras culturas, os anfitriões percebem o quão diferentes são dos visitantes, seja do ponto de vista de
alguns hábitos, de distintos idiomas, de equipamentos trazidos por eles, de estilos que, claramente, distinguem-
se daqueles apresentados pelos locais. O encontro gera inquietações e reacende em segmentos da população a
disposição em preservar identidades e resgatar manifestações culturais “adormecidas”. A forma como a
população se organiza para se contrapor à invasão do turismo e fortalecer as raízes culturais é o principal
objetivo desse estudo.

Palavras-chave: turismo – cultura – comunidade litorânea – Nordeste Brasileiro

1. INTRODUÇÃO

A chegada do turismo em pequenas comunidades - cujas relações sociais são estreitas e


fundamentadas, em alguns casos, pela linha de parentesco, criando um ambiente familiar em que todos se
conhecem - possibilita a ampliação do conhecimento proporcionado pelos que vêm de fora. O visitante traz
consigo uma bagagem cultural que, por um lado, pode contrastar com a do anfitrião e, por outro, pode ser
elemento motivador para a descoberta das diferenças existentes entre “os do lugar” e os turistas.

A possibilidade de confronto gera, na população local, uma inquietação que se reverte em estímulo
para o resgate de manifestações culturais adormecidas, seguindo uma tendência de valorização do patrimônio
cultural das comunidades receptoras impulsionada pela presença do turismo o qual, segundo uma das diretrizes
apresentadas para a elaboração do código de conduta 1, deve ser considerado “um instrumento para preservar
as culturas locais e revitalizar os valores e as pressões da identidade étnica e comunitária”(MALDONADO, s.d,
p.7).

2. A COMUNIDADE PRAIEIRA DE PIPA →PROCESSO DE CHEGADA DO TURISMO

Pipa, em seus primórdios, vivia física e socialmente distanciada de outros lugares. A dificuldade de
locomoção e de comunicação limitava a interação dos seus moradores com habitantes de localidades mais
distantes e até com áreas circunvizinhas.

O município de Tibau do Sul, em que Pipa está inserida, tornou-se oficial em 1953. Em fins da década
de 70, do século passado, chegaram os primeiros automóveis, eram 13, num vaivém que mudou a paisagem do
pequeno município. Passadas algumas décadas, a praia passou a ser visitada por veranistas oriundos do próprio
Estado e de regiões fronteiriças. Posteriormente foi descoberta por turistas, apreciadores da natureza, em busca
de paisagens intocadas pelo homem, lugar ideal para a prática do “surf”, meditação, caminhada, descanso,
acampamento, constituindo-se quase uma fuga de um mundo conturbado, industrializado e urbanizado. São os
apreciadores de lugares remotos e praticantes do turismo ambiental que realizam
[...] viagens para áreas naturais relativamente pouco alteradas ou contaminadas com o objetivo específico
de estudar, admirar e desfrutar a paisagem, a flora, a fauna, da mesma forma que as manifestações
culturais (passadas e presentes), características dessas áreas (WILLIAMS, Apud TALAVERA,2003,p.36)

Colônia de pescadores, em sua origem, casa de veraneio, mar, céu azule sol compõem um cenário
ideal para os primeiros turistas vindos de fora do país, como suíços, italianos, argentinos. Inicialmente visitantes
temporários, para em seguida fixarem residência no lugar aprazível - o paraíso procurado e encontrado. Essa
mudança de condição implicaria no estabelecimento de novas formas de relação com a população local. Além
do impacto financeiro sobre as pessoas, cujo montante, a depender do bem negociado, possibilitava um
“enriquecimento” momentâneo, também provocava o deslocamento de moradores, que antes residiam em
áreas privilegiadas, próximos à praia e a um incipiente centro urbano, para áreas mais distantes, desprovidas de
serviços básicos de infraestrutura, e mais, com o passar do tempo, tornavam-se rapidamente descapitalizados,
estabelecendo-se novas relações de trabalho.

Para Urry (2001) é o “olhar coletivo do turista” que determina o sucesso do lugar. São as pessoas com
a sua presença nesses recantos que indicam que é ali onde se deve estar. Além da propagação feita pelos
visitantes, deve-se considerar que o turismo, por ser uma atividade com vistas ao lucro, conta com os meios
publicitários que realizam campanhas propagandísticas com o propósito de enaltecer, criar e vender “paraísos”
e “portos seguros” em várias partes do mundo. No entanto, a chegada do turismo em pequenas comunidades,
parece percorrer um caminho anunciado, haja vista estudos realizados em localidades litorâneas brasileiras, por
Oliveira e Medeiros(2005);Dias(s.d); Esmeraldo(2002); Oliveira(1998).

Alguns dados comparativos mostram a evolução das mudanças ocorridas no município capitaneado
pela praia de Pipa. Segundo o Secretário de Turismo de Tibau do Sul, o processo de chegada do turismo no
município vem ocorrendo, aproximadamente, há duas décadas, porém, a rápida ascensão é recente. Os
indicadores mais expressivos desse crescimento referem-se ao número de estabelecimentos de alimentação e
ao saneamento básico.

Quanto ao setor de restaurantes, nos primeiros momentos da descoberta e das investidas na praia,
ficava em torno de 25, hoje, essa marca já alcança 100 unidades alimentícias para uma população fixa, em todo
o município, de dez mil habitantes, concentrando-se no distrito de Pipa, três mil residentes. A população
flutuante, no auge dos eventos de reveillon, segundo o Secretário, chega a 15 mil visitantes.

O planejamento sanitário aparece como outro indicador do crescimento. Em 1998 foi elaborado o
Projeto de Saneamento de Pipa, o qual atenderia a quase totalidade do distrito, porém, após a implantação e
conclusão dos serviços, apenas 48% da área foi contemplada, numa demonstração da defasagem entre
planejamento e rápida ascensão da praia de Pipa.

A avassaladora engrenagem que impulsiona o turismo, principalmente nas pequenas comunidades,


produz mudanças significativas nos aspectos econômicos, culturais e sociais da população local passando por
questões comportamentais e transfigurações de paisagens, através do redesenho físico-espacial do lugar. São
transformações de mão dupla, ou seja, por um lado trazem benefícios e, por outro, provocam novos arranjos
sociais nocivos à população. Nesse sentido, URRY(2001, p.44) argumenta que

[...] muitos investimentos que resultaram do turismo (aeroportos, campos de golfe, hotéis de luxo etc)
beneficiarão muito pouco a massa da população nativa. Do mesmo modo, muita riqueza nativa que é
gerada será distribuída de maneira extremamente desigual e, assim, a maior parte dos países em
desenvolvimento obterá poucos benefícios (...) boa parte da mão-de-obra é relativamente mal preparada e
poderá muito bem reproduzir o caráter servil do antigo regime colonial.
3.TURISMO VERSUS POPULAÇÃO LOCAL: PERDAS EGANHOS

Ao se considerar os efeitos positivos da atividade turística, pode-se ressaltar os diferentes cenários que
se formam com a introdução de novos valores e costumes através do convívio com distintos idiomas, antes
desconhecidos ou mesmo inexistentes no imaginário de grande parte da população. A presença de hábitos
culturais diversificados em contraste com os locais, faz parte da nova ordem que se estabelece com a chegada
dos “diferentes”. Sob o ponto de vista econômico, o turismo proporciona uma diversidade de ocupações
gerando um leque de opções, nem sempre absorvido por todos. Antes o mercado de trabalho se restringia,
basicamente, às atividades comerciais de pequena monta e às ocupações agrícolas, pesqueiras e afins.

Por outro lado, a presença do turista, por sua própria condição de estranho ao lugar, cria, inicialmente,
relações de desconfiança, típico do confronto de dois mundos: o dos que chegam e o dos que recebem. O
desconforto se acentua quando se deparam situações econômicas díspares, em que os visitantes se originam e
regiões desenvolvidas e se encontram com uma população desprovida de infraestrutura básica, com pouca
escolaridade e precárias condições de saúde. Para SOARES (2005, p.2),

[...] a relação nativo/turista não é monolítica. Pelo contrário, o turista é a origem do conflito e da
oportunidade. Com ele chega o barulho, as drogas, a prostituição, assim como as possibilidades de
geração (sazonal) de renda com pequenos empreendimentos informais e postos de trabalho.

Essa dualidade é percebida pelos anfitriões. Os benefícios e prejuízos acarretados pelo turismo se
mesclam em suas falas. Reconhecem a importância da atividade sob o ponto de vista da economia do lugar,
mas, também, ressaltam as modificações na dinâmica e organização da sociedade.

Uma das mudanças significativas, com a presença do turismo, na comunidade de Pipa, diz respeito às
oportunidades de emprego. O mundo do trabalho é alterado e novas ocupações surgem sintonizadas com a
atividade turística. A tradicional pesca artesanal sofre mutações e é substituída, paulatinamente, por formas
mais sofisticadas de trabalho. Grande parte dos antigos trabalhadores pesqueiros não consegue acompanhar as
inovações tecnológicas e, por não estar preparada para o exercício de novas profissões, corre o risco de ficar
excluída da massa de oferta que a atividade turística proporciona.

Para os que conseguem ultrapassar a fronteira do despreparo, ocupações são criadas e reinventadas
como, por exemplo, o uso dos barcos de pesca para a realização de passeios turísticos. Trata-se de uma forma
de inserção em um mercado constituído por atividades diversificadas e especializadas, estas, quase sempre,
absorvidas pelo pessoal que vem de fora. Os nativos não são contemplados pela falta de escolaridade e pouca
qualificação e, consequentemente, quando convocados são inseridos em atividades com baixa remuneração.

A falta de capacidade, para ocupar os cargos melhores remunerados, exige uma reflexão da própria
situação do país com respeito não só ao acesso à escola, mas, sobretudo, à qualidade de ensino que daí resulta.
No caso específico de uma população que se defronta com novas e rápidas demandas e com tempo insuficiente
- o período de formação, com um bom preparo profissional se reveste de um processo a médio e longo prazo -
para atender às solicitações do mercado, gera não apenas o sentimento mas a real constatação da exclusão.

4. A PAISAGEM NATURAL E OS REFLEXOS DO TURISMO

Um dos principais atrativos da praia de Pipa diz respeito à beleza proporcionada pela paisagem natural
existente. “Sua costa é delimitada por 16 Km de falésias vegetadas ou não e por dunas com remanescentes de
Mata Atlântica” (SANTOS, 2002,p.36). Os “descobridores” desse recanto do litoral brasileiro se sentiam atraídos
pela diversidade ali encontrada e acima de tudo pela preservação do ambiente oferecido pela natureza.
A chegada do turista com maior poder aquisitivo, cria expectativas e gera especulações imobiliárias,
uma vez que há interesse em investimentos no local e, nem sempre, a disposição em injetar recursos na praia
está relacionada à preservação do ambiente natural encontrado. O que se observa, empiricamente, é o
surgimento de edificações, ocupando grandes áreas incrustadas na mata ou no seu entorno, “distorcendo” a
paisagem como se fora pigmentos de vegetação em meio aos paredões de cimento.

O conflito existente entre a necessidade já demandada pelo crescente turismo e a questão da


preservação, é real. As estradas surgem atropelando tudo o que é natural na região, provocando certa
indignação nos defensores de um planejamento coordenado e participativo, ao serem surpreendidos por novos
e constantes empreendimentos.

A visão dualística da população local sobre o turismo e suas repercussões, ora visto como um grande
negócio para a região, e, em outros momentos, elevado ao grau de depredador, demonstra a complexidade em
que se reveste essa atividade econômica. Os nativos, no decorrer do processo, observam as oportunidades de
melhoria de vida que se acercam, mesmo conscientes de quão diferentes e desiguais são as opções que se
apresentam para eles em comparação com as apresentadas aos que vêm de fora com alto poder aquisitivo. Em
busca da inserção nessa “mina de ouro”, que parece ser o turismo, comportam-se igualmente aos que chegam,
considerados aproveitadores de uma situação estabelecida. Talvez desinformados e já explorados em situações
anteriores, não resistem à “tentação” do lucro imediato, mesmo que este seja proveniente da Mata Atlântica,
parte integrante dos bens naturais apontados por 78,65% dos turistas que visitam a praia de Pipa, como motivo
maior de sua permanência na localidade (SANTOS, 2002, p.55). A transfiguração da paisagem, por motivos
distintos de outros depredadores, também é praticada pelos nativos.

Com o intuito de garantir a própria sobrevivência, há uma tendência em alguns segmentos


responsáveis pelo incremento da atividade turística, em desenvolver práticas compatíveis com a conservação do
patrimônio material e imaterial dos lugares a serem visitados. Essa proposta visa manter o interesse dos
viajantes pelos destinos apregoados como “paraísos históricos e ecológicos” e, assim, preservar o lucrativo
mercado e absorver, cada vez mais, uma parcela de consumidores conscientes e preocupados com o planeta.
Por outro lado, caso não haja empenho em conservar a paisagem e seu entorno, o destino perderá a força de
atração e o turismo perderá investimentos (COSTA, 2006, p.).

Essa nova tendência foi observada nos portais governamentais divulgadores dos principais destinos
turísticos do Nordeste brasileiro, fruto de uma pesquisa realizada por Leal (2006). Nas páginas virtuais, foi
constatada a crescente valorização dos aspectos ambientais, ressaltando-se a preocupação com os
ecossistemas, numa demonstração do significativo papel dos recursos naturais na escolha, pelo turista, do
destino a ser visitado. A autora ainda considera a atitude como parte da lógica capitalista, que apresenta por um
lado, um discurso politicamente correto e por outro, amplia o seu espaço mercadológico.

As modificações na paisagem urbana geram um sentimento de progresso e, ao mesmo tempo,


desperta nos moradores a consciência de não terem participado desse crescimento. Alguns percebem que o não
engajamento em movimentos e discussões em prol de outra Pipa pode alijá-los de possíveis mudanças que
ainda estão por vir. Os antropólogos argumentam que as relações entre turistas e locais são assimétricas e ainda
fazem referência as diferentes situações em que se encontram o anfitrião e o visitante: um trabalha para
satisfazer o tempo livre do outro, porém afirmam que “isso não implica que a população local-residente aceite
passivamente um papel vindo de fora” (TALAVERA, 2003, p.51).

5. EM BUSCA DA CULTURA PERDIDA: ESTRATÉGIAS EAÇÕES


A tomada de consciência da população é um dos benefícios trazidos pelo turismo. Ao se defrontarem
com outras culturas, os anfitriões percebem o quão diferentes são dos visitantes, seja do ponto de vista de
alguns hábitos, de distintos idiomas, de equipamentos trazidos por eles, de estilos que, claramente, distinguem-
se daqueles apresentados pelos locais. Com a passagem do tempo, o que inicialmente pareceria prazeroso em
ver, por estar revestido de novas formas de organização, passa a inquietar pelo fato de ocupar espaços antes
reservados aos nativos.

Alguns segmentos da população passam a questionar essa “ocupação” e procuram, ainda de forma
incipiente, mecanismos de ação para recuperar o que parece estar perdido. Percebem que antigos hábitos
locais, que se constituíam importantes traços culturais da comunidade estão “adormecidos” e que esses
costumes, forma de ser, estilo de vida, etc, são elementos que se configuram como um fator de originalidade,
fundamental para garantir a atratividade do lugar. A retomada dessas questões coloca em discussão o processo
de aculturação já vivenciado pela população local. Do ponto de vista das relações sociais em que os grupos se
envolvem, interagem e realizam trocas, o encontro, entre turista e anfitrião, revela a impossibilidade de
isolamento de um e de outro, haja vista que ocorre em menor ou maior grau a assimilação, uma vez que o
contato cultual é parte integrante desse processo, gerando distintas variações de impactos. Para Talavera
(2003), a oportunidade desse encontro pode servir de preparo para a minimização de preconceitos, conflitos e
tensões.

Muito além do congraçamento colocado por Talavera, o encontro entre visitante e visitado pode gerar
inquietações em segmentos da população local, que se auto apoiam e buscam reacender tradições e resgatar
manifestações culturais “adormecidas”, como uma forma de recuperar a identidade sufocada pelos que vêm de
fora, como afirma uma moradora, “conseguir que eles [os anfitriões] entendam que têm o mesmo valor de um
europeu, ou de qualquer outro que chegue aqui”. Para Oliveira ( 2006, p.7),o turismo pode a vir a estimular e
renovar alguns aspectos das manifestações culturais que, de uma forma ou de outra, estão sendo transfiguradas
devido às forças de desenvolvimento do mundo globalizado.

Parte da comunidade de Pipa manifesta-se de forma isolada ou compartilhada no sentido de recuperar


“aquela praia, que um dia foi uma vila de pescador”. A partir desse sentimento, algumas estratégias e ações são
colocadas em prática, com ou sem a participação do poder público. Destacam-se o Projeto Pipa Sabe, com seus
desdobramentos, o Núcleo Ecológico de Pipa, iniciativas isoladas de educadoras e nativos, como também
algumas propostas culturais do governo municipal.

O Pipa-Sabe, trata-se de um projeto de rede, criado em 2003, com parceria inicial da Universidade de
São Paulo (USP), idealizadora e estimuladora do trabalho. Posteriormente, vieram outros colaboradores como o
Ministério da Cultura, a Casa Civil, o Ministério das Telecomunicações e a Prefeitura do Município de Tibau do
Sul.

Em princípio, o objetivo principal consistia em realizar a inclusão digital, porém, uma das responsáveis
pelo Projeto – moradora preocupada com a perda de identidade dos nativos - propôs a ampliação e sugeriu um
trabalho de resgate da cultural local, através da inclusão social. Essa necessidade, segundo ela, advém da ideia
deque “uma casa não se constrói do telhado”. O Pipa-Sabe abrange outros componentes, como o Tele Centro e
o Educa Pipa, que em conjunto com o Núcleo Ecológico de Pipa (NEP), desenvolve aulas de Educação Ambiental.

O Tele Centro2, trata da inclusão sócio digital, através de aulas de introdução à informática e acesso à
internet para a população. Ocupa uma sala, cedida pela Prefeitura, onde funciona uma pequena biblioteca com
livros e revistas, distribuídos em estantes improvisadas. Conta ainda com antigos computadores, doados tanto
pela iniciativa privada, quanto pela pública. O serviço de internet, através da banda larga, funciona com antena
doada pelo Ministério das Telecomunicações e com sinais provenientes de um satélite de Israel.

Os jovens, responsáveis por seu gerenciamento, estão empenhados em resgatar a cultura local e
consideram esse espaço um ponto estratégico para envolver e “contaminar” outros nativos e trazer de volta as
raízes como o forró, o zambê, a capoeira, a lapinha e outras manifestações. A participação no Tele Centro vai
além das aulas de informática. As discussões internas do grupo ampliam a visão de mundo e desenvolvem o
olhar crítico, sobre a realidade.

A relação turista e população local nem sempre se reveste de contato em que a neutralidade
prevaleça. A interconexão possibilita a troca de emoções, costumes, hábitos entre os dois lados. Porém, há um
momento em que é percebida, pelos nativos, a predominância cultural dos que vêm de fora, exercendo,
inclusive, influência nos moradores.

Ao atingir esse estágio as referências sócio-culturais-ambientais da população tornam-se difusas. O


Pipa-Sabe vai além da proposta de resgatar a cultura local, ele também estimula e direciona para novas
profissões, distintas daquelas tradicionalmente exercidas na comunidade. A responsável pelo Projeto relata,
surpresa e recompensada, uma das falas de um dos seus integrantes ao afirmar que o trabalho desenvolvido
mudou a sua vida e que o transformou em outra pessoa. Atividades como vídeo-comentarista, editor de
telejornal, montadores de tele centros fazem parte, hoje, do elenco de ocupações possíveis de serem exercidas
por um grupo de jovens de Pipa. O desenvolvimento natural das sociedades, talvez levaria a esse patamar, mas
a rápida chegada do turismo provavelmente apressou o mundo para esses moradores.

Um dos grandes atrativos de Pipa é a natureza, através do mar, floresta, falésia, rios. Com os
constantes investimentos no setor imobiliário, surgem grandes edificações avançando sobre as matas.
Condomínios de casas estão sendo construídos em espaços antes reservados à vegetação primitiva, modificando
a paisagem natural. As transformações vão surgindo e segmentos da população local, ao tomar consciência das
mudanças provocadas pelo incremento da atividade turística, esboçam reação e parte em busca de adesões
para dar início a contenção dos avanços na natureza.

Moradores, nativos ou não, simpatizantes da comunidade e igualmente preocupados com a


especulação imobiliária, com a devastação departe da floresta, além da crescente produção de lixo, gerando
poluição e problemas de saúde pública, partem para a discussão em torno do que fazer para controlar os riscos
ambientais, advindos dessas questões. Surge, então, em 1999, como estratégia de ação e combate aos danos, o
Núcleo Ecológico da Pipa (NEP), constituindo-se na primeira organização não governamental da comunidade.

O voluntarismo ainda é uma prática que campeia a ação dos integrantes do Núcleo, em virtude dos
afazeres pessoais dos seus componentes, da dificuldade de angariar recursos financeiros, além de uma questão
de cunho operacional que é a inexistência de uma sede que congregue os encontros e sirva de referência para a
ONG. Desse modo, as reuniões são itinerantes, na casa de amigos. Daí surgem as iniciativas, as ações, a busca
por parcerias. Apesar dos esforços e aparente amadorismo, algumas atividades são postas em prática,
congregando a comunidade.

O NEP se constitui em um dos coparticipantes da “Semana do Meio Ambiente do Município de Tibau


do Sul” realizada anualmente em que são oferecidas oficinas de reciclagem, exibição de filmes, palestras, coleta
seletiva nas praias, essa em parceria com o Projeto Educa Pipa, que desenvolve um trabalho de Educação
Ambiental, envolvendo crianças das escolas da comunidade. O trabalho da ONG ultrapassou barreiras locais e
“ganhou o mundo” através da inclusão digital. A criação de uma página virtual, embora apresente algumas
limitações de ordem informativa, oferece visibilidade à problemática da sustentabilidade em suas várias
dimensões e coloca o NEP , Pipa e os efeitos do turismo, na agenda de debates.

Apesar das dificuldades, o NEP representa a persistência diante de uma questão de grande dimensão
em que os atores envolvidos – os que ameaçam e os que defendem - travam uma luta entre desiguais, com
interesses e prioridades distintas.

6.INICIATIVAS INDIVIDUAIS - EM BUSCA DAS RAÍZES

Partindo do princípio de que “o turismo é um forte encorajador da consciência em relação ao


ambiente e do senso de identidade cultural dos residentes”(OLIVEIRA,2006,p.6), observam-se iniciativas
individuais em prol da cultura local. A sensibilidade e a percepção da necessidade de resgatar manifestações
tradicionais estão presentes nos moradores que buscam o fortalecimento de suas raízes. Nessa perspectiva,
cidadãos preocupados em manter os legados de gerações passadas, investem no trabalho com a população
jovem. Para revitalizar o Zambê - tradicional dança de coco – foram convocados amigos e membros infantis da
família. Os instrumentos confeccionados pelos próprios participantes, constituem-se, basicamente, de dois paus
furados grandes e um pequeno, feitos de madeira cajarana e couro de gado cru, lata, pandeiro maracá,
triângulo. Os tocadores são escolhidos de acordo com a sua capacidade rítmica avalizada pelo responsável pelo
grupo. Algumas apresentações públicas são realizadas, esporadicamente, representando embriões de
valorização da cultura. A persistência em desenvolver um trabalho dessa natureza, com o intuito maior de
manter as raízes faz com que o responsável pelo resgate, insista em arregimentar apenas nativos, porque,
segundo ele, “se for o caso de botar um de fora, aí vai embora, aí já dá uma furada [mexe com a composição do
grupo] no conjunto”.

Apesar de insistir na presença da população local em seu trabalho, o responsável pela formação,
organização e motivação do jovem, reconhece que o turismo introduz novos hábitos e insere na sociedade
elementos até então inexistentes no imaginário da juventude. As novas formas de expressão somam-se às
antigas e “a partir daí vai começando outra coisa”, comenta o nativo, numa recomposição de sons e danças com
a contribuição dos que chegam e com a incorporação das idiossincrasias locais.

Embora seja eminente a possibilidade de aculturação, o fortalecimento das raízes é perseguido,


também, por uma educadora que, na escola, desenvolve um trabalho, com alunos mirins, com o intuito de
resgatar “muita coisa que estava adormecida”. Para recuperar “falas” utilizadas no drama, espécie de teatro
cantado, foi “buscando pelas pessoas mais velhas e passando [os versos] para um caderno” e, com a certeza de
alcançar os objetivos, pensava firmemente: “vou resgatar e conseguir”.

6.1 E o poder público?

A instância governamental, representada aqui pela Secretaria de Turismo, criada há poucos anos,
embora o processo de avanço do turismo no município já aconteça há mais de uma década, segundo seu
dirigente, enfrenta obstáculos de diversa ordem para a consecução e implantação de medidas necessárias a fim
de tornar a atividade turística rentável e compatível com os interesses da população. Para o representante da
Secretaria, os principais entraves para o desenvolvimento do turismo consistem na lentidão do poder público,
na falta de qualificação e capacitação do pessoal, na desarticulação com outros pontos turísticos que ficam no
entorno e em áreas fronteiriças de Pipa e na concorrência com o capital privado.

A ingerência de recursos externos à Secretaria, essencialmente de portugueses, é um fato. Os


empreendimentos, de modo geral, nem sempre são compatíveis com os interesses locais. A exclusão daí
advinda é motivada, principalmente, pelo despreparo da população, cuja escolaridade insuficiente não a habilita
para realizar negociações exitosas com os investidores externos. Apesar das condições objetivas existentes, tem
se discutido a eficiência de políticas participativas, em que os diversos atores interagem em busca de
alternativas, fazendo com que projetos e programas voltados para o turismo deixem de ser uma ameaça e
tornem-se vetores de benefícios e bem-estar para a população local.

Esta é, inclusive, uma das atribuições da Rede de Turismo Sustentável (REDTURS) que busca
compatibilizar a capacidade econômica do turismo com a dinâmica social e a preservação da cultura e dos
recursos naturais. Nessa perspectiva, o poder público municipal reconhece que a sustentabilidade do turismo
depende da organização e participação comunitária, mas considera que a desqualificação profissional é um dos
entraves, entre outros tão significativos, para a inserção dos moradores. Por essa deficiência, os nativos perdem
a oportunidade de ocupar postos de trabalho elevados, gerando certo tipo de exclusão, apesar de existir muitas
pessoas empregadas em função do turismo. Para o representante municipal, “o turismo, nesse sentido, é
fantástico, o que falta é sentar e planejar”.

Enquanto as condições ideais para o desenvolvimento do turismo não se concretizam, a instância


governamental, responsável pelo seu planejamento e execução parte para um trabalho miúdo, fragmentado,
com a justificativa de que o poder público é mais lento do que a iniciativa privada. Entre as ações desenvolvidas,
destacam-se aquelas destinadas ao resgate e valorização da cultura local, reconhecida como importante
elemento de atratividade do turismo. Um das iniciativas pontuais diz respeito ao Festival de Gastronomia ,
organizado com o intuito de recuperar e inserir elementos regionais na composição dos pratos, uma vez que a
culinária internacional tem forte presença na praia de Pipa, reconfigurando o caráter gastronômico local.
Produtos, com forte relação identitária com nativos, como a macaxeira, a carne de sol e o coco, foram
reintroduzidos no cardápio para tornar a cozinha de Pipa mais brasileira e, assim, resguardar importantes
elementos da cultura local.

Ações pontuais, sem sistematização e continuidade, vêm sendo realizadas através de convênios com a
Prefeitura Municipal, Fundações e Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio as Micro e Pequenas Empresas). São
atividades de diversa ordem, passando por cursos de capacitação profissional a apresentações do zambê, dança
tradicional marcada pelo ritmo do coco, organizado e patrocinado por instituição privada. Manifestações
culturais como o pastoril, a lapinha e o drama, também fazem parte do processo de resgate das raízes culturais
da população local.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O turismo representa uma atividade econômica, reconhecidamente capaz de gerar empregos e


propiciar o crescimento de regiões vocacionadas ou criadas para atrair viajantes. No entanto, no primeiro
momento, a população se sente contemplada com o vaivém dos visitantes de regiões circunvizinhas e de
estrangeiros. Numa etapa seguinte, os anfitriões passam a tomar consciência e percebem o quão diferentes são
dos que chegam, seja do ponto de vista de alguns hábitos, de distintos idiomas e de estilos que, claramente,
distinguem-se daqueles apresentados pelos locais.

O encontro gera inquietações e reacende a disposição em resgatar manifestações culturais


adormecidas. Sob esse aspecto, o turismo se revela estimulador da população, que parte em busca de formas
de organização para fortalecer as raízes e assegurar a sua inserção na dinâmica gerada por essa atividade
econômica. Nesse sentido, Oliveira (2006, p.4) comenta que “quando uma sociedade se comprometer com a
defesa e a valorização de sua cultura e identidade, passando a reconhecer sua história coletiva e driblando as
dificuldades existentes no local, a criatividade social emergida será peça chave para que se encontre subsídios
para desenvolver alternativas que promovam benefícios locais”.
O reconhecimento de suas raízes culturais é de vital importância se conjugado à preparação da
população no sentido de oferecer estrutura e meios suficientes que permitam a sua inserção nas instâncias
decisórias que dizem respeito a melhoria das condições de vida e ao bem-estar social.

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA, Irene Oliveira da. Turismo no arquipélago de Marajó: construindo competitividade com
sustentabilidade.31/8/2006www.etur.com.br acesso: 13/9/2006

DIAS, Suzana. Turismo no litoral produz impactos.www.comciencia.br/reportagens/litoral/creditos.shtml

ESMERALDO, Luiz Régis Azevedo. Jangadeiros e Pescadores. Os dilemas do turismo em Canoa Quebrada, Aracati
– CE. Fortaleza, CE: Ed. SENAC Nacional, 2002.

Notas:

1. Foram delineadas diretrizes para a elaboração do “Código de conduta do turismo rural comunitário na América Latina” provenientes
de Encontros Consultivo Regional de REDTURS – Rede de Turismo Sustentável, criada pela OIT – Organização Internacional do Trabalho,
realizados no Panamá, em 2005 e na Bolívia, em 2007(MALDONADO, s.d. p.7)
2. O Tele Centro , criado no primeiro trimestre de 2004, possui quase 500 pessoas cadastradas que fazem uso do computador e da
biblioteca. A maior parte, em torno de 70%, é originária de Pipa. O público é constituído basicamente de jovens e crianças. Quanto à
procura por livros, 90% dos empréstimos são praticados por mulheres que preferem romances, enquanto os jovens , quando fazem a sua
consulta, optam por obra de ficção e biografia.(Fonte: entrevista de um dos integrantes em maio/2006)

3.2. A experiência turística na cultura contemporânea.

3.2.1. Reportagem: OS FENOMENOS DO TURISMO CONTEMPORÂNEO

Secuna Baldé

secbalde@hotmail.com

07 de Dezembro de 2009

Devido aos grandes desafios na prática do desenvolvimento sustentável para construção de um


mundo melhor, as empresas privadas, governos, sociedade civil e organizações não governamentais lutam a
cada dia pela melhoria de vida das populações e para a preservação do meio ambiente.

O século XX trouxe novas tecnologias: aviões e metrôs mais velozes e confortáveis, computadores,
robôs e comunicações por satélite que transformaram o modo das pessoas viverem, trabalharem e se
divertirem. A tecnologia proporciona o desenvolvimento do turismo de massa através do aumento do tempo de
lazer, renda adicional e melhoria dos transportes.

Hoje, restam poucas dúvidas que o turismo continuará a ser um dos setores de crescimento mais
dinâmicos da economia global. Apesar de recessões, revoltas políticas, guerras, terrorismos e incertezas quanto
ao preço e a disponibilidade do petróleo, o turismo internacional ainda se constitui como o maior item isolado
de receita do comércio exterior mundial.

O turismo envolve milhões de pessoas que almejam por desfrutar novos lugares e ambientes, em
busca de experiências significativas. Este movimento tem levado agências de viagem, redes de hotéis,
transportes urbanos, bares, casinos e boates em todo mundo proporcionando faturamentos milionários. Muitas
nações dependem da dinâmica dessa atividade como principal fonte de geração de renda, emprego,
crescimento do setor privado e aperfeiçoamento da infraestrutura.

Como aponta Vininha F. Carvalho, para que isso ocorra de uma maneira saudável, é necessário que o
fenômeno turístico configure no cotidiano, afim de melhor eleger os oito fenômenos do turismo
contemporâneo.

Competência: capacidade de mobilizar, desenvolver e aplicar conhecimentos, disposições e atitudes na


execução do trabalho e na solução de problemas para gerar os resultados esperados. Um hábil administrador
nos inúmeros campos profissionais, no convívio com as equipes multidisciplinares, sabe pedir o apoio de áreas
afins, buscando entender o turismo em sua totalidade histórica e humanista.

Criatividade: Capacidade para promover a integração com o meio ambiente, criando situações onde o
turista possa experimentar a natureza de forma prazerosa, além de dispor de conhecimento, que permita
informar sobre cultura, história, flora, fauna, clima, particularidades, curiosidades da região e promovendo,
assim, a educação ambiental, através de técnicas de interpretação da natureza, correlacionando com hábitos
urbanos, evitando impacto ambiental acima do suporte de carga permitido.

Segurança: é necessário saber promover o bem estar e garantir a integridade física dos turistas,
combinando com o grupo regras de convívio, viabilizar atividades de entretenimento, lazer e integração, criar
relações positivas, manter a motivação e interesse na programação, dimensionar os passeios, escaladas e
paradas, observar sinais de desgaste, recomendar alimentação e vestuário adequados às atividades, indicar
locais para banhos, necessidades fisiológicas.

Organização: Elaboração do roteiro de maneira criteriosa, confirmando os serviços de apoio,


garantindo a possibilidade de comunicação, providenciando transporte especial, garantindo o cumprimento da
programação, providenciando alimentação de parada / percurso e acomodação, providenciando materiais e
equipamentos necessários, manter em ordem a pasta com documentação da agência, ficha médica e termo de
responsabilidade aceitando as condições do roteiro, informar chegada, elaborar relatório e registrar ocorrências
orientar o preparo de refeições, o que pode incluir: indicar procedimentos de higiene e segurança alimentar.

Planejamento: Divulgação de opções de interesse turístico, sugerir outros roteiros, recomendar


pontos de compras e passeios adicionais. Orientar motorista, indicando roteiros, horários e pontos de parada,
alertar sobre aspectos de segurança, conforto e velocidade adequada ao passeio. Ajustar roteiros, o que pode
incluir: alterar atividades e programação considerando as vias de acesso e as condições climáticas, segurança e
horários, redefinir trajeto e pontos de parada.

Assegurar a satisfação dos clientes, o que pode incluir: observar a satisfação dos turistas, receber
reclamações e sugestões, solucionar problemas e conflitos, indicar melhores posições para fotos e filmagens,
apoiar pessoas com necessidades especiais, idosas e crianças, estabelecendo paradas especiais.

Dominar roteiros de excursões em ambiente não urbano, o que pode incluir: demonstrar capacidade
para conduzir grupos de turistas por percursos que incluam: recepção, traslado e pernoite.

Seriedade: As competências necessárias ao alcance dos resultados esperados devem ser avaliadas
através dos seguintes conhecimentos, habilidades e atitudes: conhecer flora, fauna, ecologia, geografia física,
limites para suporte de carga. Conhecer cartas e mapas, escalas, curvas de nível e técnica de orientação com uso
de bússola. Conhecer a legislação ambiental e técnicas de condução de grupo em ambiente natural,
condicionamento físico e dimensionamento de esforço. Ser ético ao recomendar pontos de compras ou passeios
adicionais.

Empreendedorismo: Estudos realizados identificaram a capacitação como uma necessidade imediata


no atual cenário do turismo. É necessário conhecer as técnicas de entretenimento, lazer, integração e estratégia
de solução de conflitos. Conhecer técnicas de vendas. Ser uma pessoa líder e controlada, prática, dinâmica e
ativa.

Ser empático e expressivo na comunicação, argumentar com lógica de maneira clara e articulada, sem
vícios de linguagem. Ser uma pessoa tranquila e segura que mantém o equilíbrio emocional para administrar
situações constrangedoras ou de emergência. Criar alternativas de emprego e de oportunidades de renda para
as comunidades locais.

Profissionalismo: Sólida formação crítica, permitindo que a pessoa entenda politicamente a formação
de sua categoria enquanto organização política e sindical. E saiba lutar por um turismo autossustentável que
preserve o ecossistema e os interesses nacionais no campo econômico, cultural e político. Apoiando a
conservação das áreas visitadas através da geração de benefícios econômicos para as comunidades hospedeiras.

Neste processo de escolha dos Oito Fenômenos do Turismo Contemporâneo, esclareço que turismo
legítimo é aquele que apresenta um compromisso com a conservação ambiental e cultural e com o
desenvolvimento social das comunidades envolvidas, consiste numa alternativa promissora para o
desenvolvimento sustentável da região.

É preciso dimensionar o conhecimento e o potencial turístico da região, através do levantamento de


potenciais atrativos, diagnóstico e análise técnica empresarial dos atrativos naturais e culturais, de maneira
responsável e construtiva; é necessário saber" globalizar, regionalizando".

UNIDADE IV
4.1. Alguns Roteiros Afros
4.1.1. Bahia – afro: A cultura que resiste – Viver Afro em Salvador

Itinerário Temático: Mãe África (Museu Afro brasileiro); Homens de fé (Igreja Nossa Senhora do
Rosário dos Pretos e Irmandade do Rosário dos Homens Pretos); A fé entre os homens (Sociedade protetora dos
desvalidos); O segredo das “bolas de fogo” (Memorial das baianas) e Viver Afro (As ruas e os moradores de uma
comunidade quilombola urbana; Wa-jeun (almoço com samba de viola) e Terreiro de candomblé (apresentação
de capoeira).

4.1.2. Caminhos dos Orixás (roteiros comercializados pela agência de viagem Afrotours)

Os roteiros comercializados pela Afrotour são denominados de Caminhos dos Orixás e abrangem tours
históricos e sociais afro-religiosos. Nesses tours, a agência oferece sighteseeing dos pontos turísticos da cidade,
com visitas a alguns terreiros afro-religiosos, durante o dia. Além disso, a agência oferece a possibilidade de
participação em cerimônia religiosa na parte da noite.

- Caminhos de Xangô: Visita ao Ilê Axé Opô Afonjá, para participar de uma pequena cerimonia, o
Amalá de Xangô.

- Caminho de Oxalá: Turismo pelas principais casas de axé de Salvador, em função da proximidade –
CasaBranca, Ilê Axé Oxumaré e o Gantois -, visitando seus museus e projetos sociais e sentindo o poder dessa
magia da fé de origem africana. Esse tour acontece sempre à tarde, em qualquer dia da semana.

- Caminho de Oxum: Panorâmico da periferia: conhecendo as margens da cidade, a agência apresenta,


em primeira mão, um roteiro do contexto de distancia do centro da cidade à periferia, revelando uma atmosfera
diferente e incomum no turismo, com um percurso que começa na Feira de São Joaquim até a Ribeira, com
visita à Igreja do Senhor do Bonfim.

- Caminho de Iemanjá: Sightseeing de todas as praias, lagos e lagoas dos 20 km da Orla Marítima de
Salvador: Barra, Rio Vermelho, Lagoa do Abaeté, Itapuã. Introduzindo, entre outras, a história do Jardim de Alá,
Praia de Itapuã, as festividades celebradas em cada lugar, os parques, e toda energia da Bahia, terra de mar e
águas.

- Caminho de Ogum: Passeio pela área tombada como Patrimônio Histórico da Humanidade, como o
Mercado Modelo, Elevador Lacerda e Pelourinho, até Santo Antônio Além do Carmo, com visita à Igreja do
Rosário dos Pretos.

- Caminho de Omulu: Toda segunda feira, com visita à Igreja de São Lázaro. Visitação aos principais
pontos históricos geográficos da Barra, terminando no Rio Vermelho, onde se podem degustar os mais famosos
acarajés da Bahia.

- Caminho da Baía de Todos os Santos: Opções para visita a costa da Bahia: Costa dos Coqueiros,
Costa do Dendê, Costa do Cacau, Costa do Descobrimento, Costa das Baleias e, é claro, a Baía de Todos-os-
Santos (passeio de escuna)

4.2. Gastronomia de matriz africana


A culinária conhecida como a mais tipicamente baiana tem origem africana e foi herdada das
civilizações sudanesas. Entretanto, no Recôncavo Baiano encontramos diversos pratos originários da civilização
bantu, a exemplo da maniçoba. Os escravos oriundos das civilizações islamizadas também deixaram sua marca,
como o famoso arroz-de-huassá.
A base da chamada culinária afro baiana é o dendê ou óleo de palma. Misturado a outros temperos e
condimentos, como gengibre, amendoim e castanha, e cozidos no leite de coco, esses alimentos constituem-se
em atrativos à parte da cultura africana na Bahia.

4.2.1. O dendê

O dendê é a memória, ação, produção, criação e recriação de um patrimônio de base africana,


absorvido e reinventado, principalmente na Bahia. Nesse cenário, o fruto assume uma marca registrada que
identifica a procedência da culinária.

4.2.2. Culinária Afro-baiana

A culinária baiana é bastante popular, delícias como acarajé, vatapá, caruru, cocadas e quindins
ganharam fama internacional e conquistaram admiradores em todo o mundo. Também é um exemplo de
preservação das influencias culturais africanas no país.

Sua criação e suas receitas começaram em torno do século XVI, quando as negras trazidas da África
foram levadas para trabalharem nas cozinhas da casa grande dos senhores de escravos. Ali elas começaram a
misturar novos ingredientes europeus como açúcar, sal, alho e limão, além das carnes de boi e frango, com
banana, amendoim, inhame, feijão e milho, já bastante consumidos pelos índios. Adaptaram as comidas dos
orixás aos novos ingredientes e produtos e, desta maneira, surgiram muitos dos pratos hoje tão apreciados.

A culinária da Bahia mais conhecida é aquela produzida no Recôncavo e em todo litoral do estado,
praticamente composta de pratos de origem africana, diferenciados pelo tempero mais forte à base de azeite-
de-dendê, leite de coco, gengibre, pimenta de várias qualidades e muitos outros elementos que não utilizados
nos demais estados do Brasil. (Bahia, Secretaria de Turismo. Superintendência de Serviços Turísticos – Suset.
Turismo Étnico-Afro na Bahia/A Secretaria. – Salvador: Fundação Pedro Calmon, 2009.)

Referencias para montagem do Material

Secretaria de Educação. Folclore, Cultura e Patrimônio Histórico. Curso Técnico em Turismo. Escola Estadual de
Educação Profissional. Ceará.

Grunewald, Rodrigo de Azevedo. Turismo e Etnicidade. Horizontes Antropologicos, UFCG. Ano 9, nº 20, Porto
Alegre, 2003.

Araujo, Ubiratan C. Conexão Atlântica: História, Memória e Identidade publicado dia 16/02/2011 no site
www.palmares.gov.br.

Ferretti, Mundicarmo. Turismo Religioso Popular: tradição e mudança na Festa do Divino Espírito Santo do
Maranhão. Trabalho apresentado no 12º Congresso de Folclore. Mesa Redonda 01 e publicado na Comissão
Maranhense de Folclore, nº 36, 2006.

Vatin, Xavier. O desenvolvimento do Turismo Étnico na Bahia: o caso da cidade de Cachoeira. Trabalho
apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada em junho de 2008 na cidade de Porto
Seguro/BA.

Silva, Rosijane Evangelista e Carvalho, Karoliny Diniz. Turismo Étnico em Comunidades Quilombolas para o
etnodesenvolvimento em Filipa (Maranhão). Turismo e Sociedade, v. 03, p. 203-219, Curitiba, 2010.
Bahia, Secretaria de Turismo. Superintendência de Serviços Turísticos – Suset. Turismo Étnico-Afro na Bahia/A
Secretaria. – Salvador: Fundação Pedro Calmon, 2009.

http://www.palmares.gov.br/?page_id=7738

http://www.gpmina.ufma.br/pastas/doc/Turismo e religiosidade.pdf

http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/foruns_de_pesquisa/trabalhos/FP%2005/
Xavier%20Vatin.pdf

Você também pode gostar