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Encontro Anual da Anpocs;
Número e Título do GT.
Título do trabalho
A icnoclastia afrobrasileira na Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em
Porto Alegre.
José Carlos Gomes dos Anjos (UFRGS)
Introdução
É desse modo que respondo ao desafio de, por um lado, evitar o sociologismo
que reduz a um conjunto de fatores sociais as práticas que se apresentam como
religiosas, e, por outro lado, recuso o lugar de “autorizado” a efetuar um exercício de
proselitismo. Se o africanismo, aqui, for apreendido como um conjunto de
procedimentos de composição de mundos, o pesquisador, na forma do aprendiz de
feiticeiro, experimenta o procedimento diplomático de seus interpelantes, no modo de
misturar e separar porções cósmicas. Como o artista plástico, personagem conceitual de
Gilles Deleuze e Félix Guattari, vejo o devoto africanista como aquele que:
1. Primeiro ponto de controvérsia: a melancia
Dois dias depois, do mesmo ano, o mesmo jornal publicou outra matéria sobre a
Festa dos Navegantes dizendo que “aumentou de um modo considerável o número de
adeptos ao culto da melancia (...) que tem uma sahida fantástica” (Id. Ibid., p. 145).
No início dos anos 80, o pároco da Igreja tentou banir o consumo de melancia no
entorno da Igreja de N. S. dos Navegantes, onde ocorre a Festa propriamente dita,
alegando falta de higiene, resultante do consumo dessa fruta. Ora, isto desencadeou
forte polêmica, noticiada pelos jornais da época. Assim, em 25 de janeiro de 1983, o
jornal Correio do Povo falava em
Embora tal interdição perdure até hoje, a melancia continua sendo por
excelência o meio de desterritorialização da festa católica sob a tradição afro-brasileira.
Assim, em 2008 as melancias eram vistas e vendidas, menos nas barracas próximas da
igreja e mais em locais retirados dela, mas acessíveis a quem desejasse adquiri-las. Ou
seja, as melancias continuam a fazer parte do cenário da Festa de Nossa Senhora dos
Navegantes, embora nem tanto no espaço nobre do pátio da Igreja de Navegantes.
2. Segundo ponto de controvérsia: a procissão fluvial
As pessoas que se apinhavam, sobre na ponte móvel do rio Guaíba, por ocasião
da passagem do cortejo fluvial costumavam jogar flores, velas e papel picado, algumas
em homenagem a Nossa Senhora dos Navegantes, outras, à Iemanjá (Cavedon, 1992, p.
50). Poderíamos perguntar a cada devoto a quem no íntimo homenageavam. Porém,
nessas circunstâncias, o poder do contágio faz do cortejo de flores sobre o rio um rito
que de modo geral escapa em intensidade das fronteiras territoriais do catolicismo.
Uma tal concentração de energias constrói não apenas mundos, mas, também,
olhos de água que emanam das forças cósmicas em jogo e impõe perspectivas
impessoais. Que agenciamento de subjetivação enuncia, no mais consagrado espaço
político da cidade, como veremos, que o cortejo fluvial é a razão de ser da cidade e
anuncia pelo ritual o resgate das costas africanas dos negros castigados, se não uma
perspectiva emanada das águas? É essa intensidade desterritorializante que captura
o irmão católico Antônio Cechin, em sessão na Câmara Municipal de Porto Alegre,
realizada em 5 de novembro de 1999, quando assim descreve o cenário da procissão
fluvial:
As dezenas de barcos enfeitados com bandeirolas coloridas, seguindo
em cortejo atrás da nau Capitânia com a Santa, pela Avenida Mauá,
margeando o rio, sempre contemplando a beleza das águas, os devotos
com flores e outras oferendas, daqui e dali chegando na beira e jogando
às águas as ofertas, como sinal de suas preces, em direção à Santa
Padroeira.
Toda essa mobilização não chegou a surtir o efeito desejado sendo este um dos
pontos mais criticados, tanto por devotos em geral quanto por líderes religiosos,
sobretudo afro-brasileiros. Recordam os fiéis que ao longo de todos os anos em que
ocorreu a procissão fluvial, nunca houve um acidente mortal sequer. Sustentam, ainda,
que o rio Guaíba não tem ondas, assegurando a realização de uma procissão tranqüila.
Porém, uma procissão fluvial “paralela” é realizada há nove anos no mesmo dia
e horário em que é celebrada a procissão terrestre. Trata-se de uma promoção conjunta
da Associação dos Pescadores da Ilha da Pintada e da Fundação do Esporte e Lazer do
Estado do Rio Grande do Sul, órgão vinculado à Secretaria de Turismo do Estado, que,
neste ano de 2008, contou com o patrocínio do Banco Itaú. Trata-se de uma procissão
que junta dezenas de embarcações, cerca de 130, segundo informações prestadas por
Henrique Licht, que partem da Ilha da Pintada, passam pela Usina do Gasômetro, pelo
cais e finaliza no Parque Náutico do Estado, próximo à Ponte do Guaíba, a dezenas de
metros da Igreja dos Navegantes. Neste local é celebrado um culto ecumênico. Neste
ano de 2008 um pai-de-santo, um pastor evangélico e um frei católico, participaram do
ritual. Na procissão fluvial viu-se um barco lotado de fiéis das religiões afro-brasileiras,
todos vestidos com suas indumentárias religiosas. Neste dia, houve a distribuição
gratuita de um caminhão cheio de melancias para os participantes da festa.
Nota-se que a iniciativa do barco portando as duas imagens das Santas postado
no centro do Mercado Público evidencia, de um lado, a cosmopolítica existente em
torno das duas deusas do mar em Porto Alegre; e, de outro lado, revela que uma tradição
não pode ser assim tão facilmente aniquilada.
O fato da maior parte dos devotos aceitarem a procissão terrestre ainda não
significa uma situação de paz, se não se equacionar a questão dos modos de “habitar o
mundo”. No que lhes concerne, a cidade sem a procissão fluvial é menos cidade,
reclamam parte dos devotos.
Essa Santa, o próprio nome dela diz: Nossa Senhora dos Navegantes! Só
que ela navega a pé, navega por terra, então de navegantes ela também
está perdendo essa característica. Tiraram da santa. Porque ela fazia
sempre o trajeto por água e tiraram e colocaram por terra. Por quais
motivos eu não sei. Eles alegam que desde que teve aquele acidente com
o Bateau Mouche no Rio, mas eles poderiam perfeitamente colocar só a
santa por água e as pessoas irem receber a Santa lá nos Navegantes, lá
na igreja. Ela faz todo o percurso por terra. Eu acompanhei a santa até
esse período em que ela ia por água. Eu sempre acompanhava. Quando
ela passou a seguir por terra eu sempre acompanhei por terra. Mas eu
sei que não é a forma original de quando ela começou. Então, isso é
uma coisa que já mudou bastante (Pai Dinajara, maio de 2008).
O que não pode ser encadeado na série de onde emana o respeito religioso cai no
fundo indiferenciado do profano. É o caso da embriaguez e das danças de sedução
amorosa, em que o desvio da atenção impede o encadeamento de ícones que encarnam a
presença como o alvo do regime religioso de enunciação.
Se o que está em jogo é a presença, diríamos que esse é um traço comum aos
regimes religiosos de enunciação do sagrado. O que torna diferenciado o regime afro-
brasileiro de associações iconográficas é o modo como a rostificação2 se cola a
posteriori sobre um fluxo de ícones impessoais como pedras, folhas, águas, trovões e
raios.
1
“Considerados em seu conjunto, estes desenvolvem ou esboçam um modelo ordenado em que as
qualidades e os elementos naturais se opõem e se respondem uns aos outros, por mais que cada figura
singular, em virtude de sua ambiguidade e de sua riqueza, pareça desmentir a simplicidade do quadro
conjunto ou das oposições em termos de conjunto” (Augé, 1998, p.26).
2
Opomos a forma sagrada – ocutá – pela qual os afro-brasileiros desterritorializam os rostos e as
paisagens sagradas, ao modo como o catolicismo rebate o rosto de homens e mulheres europeus sobre a
forma do sagrado de modo a constituir um território fechado: “uma organização de rosto, parede branca-
buracos-negros, face-olhos, ou face vista de perfil e olhos oblíquos (esta semiótica da rostidade tem por
correlato a organização da paisagem: rostificação de todo o corpo e a paisagificação de todos os meios,
ponto central europeu o Cristo). (Deleuze e Guattari, 1997, p. 101).
precisamos da folha, da água, da terra, da luz. Então nós nunca vamos
atacar isto, pois fazem parte da necessidade básica da existência do
homem dentro do mundo e essa cultura não é de agora; ela tem 150
milhões de anos (sic). (Pai-de-santo Áureo Rodrigues, janeiro de 2008).
Depois que ela começou a ir pela terra descaracterizou tudo. Daí uma
boa parte dos religiosos abandonou. Muitos vão porque não tem
condições. Ele segue ali sabendo que está homenageando Iemanjá. Mas
ele faz a procissão acompanhando a santa, por respeito, e depois vai lá
na água largar o seu presente. Porque toda a água do rio desemboca no
mar e quem não tem condição econômica, e a nossa religião é feita de
pessoas que não tem muita riqueza, então eles fazem o recolhimento e
largam na beira do rio, entregando pra Iemanjá seus presentes. (Pai-de-
santo Áureo Rodrigues, janeiro de 2008).
3
Segundo Vallado (2005, p. 33), originalmente o culto a Iemanjá também era realizado “à beira do rio
Ogum em Abeocutá, na África”. Teria sido no Brasil que o culto se transferiu para o mar. Não seria
carente de ironia o fato de em Porto Alegre, por conta da pobreza de meios dos devotos, o culto se
associar à procissão a Nossa Senhora dos Navegantes, na intensidade criada em torno do Guaíba, águas
doces de novo.
branco, a emergência da vontade de degustação que se estende na impessoalidade das
barracas de venda de melancias. Esse estado de possibilidade de experimentação do ser
indexa tudo em volta como doçura.
É no se fazer com as águas aos joelhos que homens e mulheres agradam à rainha
e fazem dos pequenos barquinhos portadores de destinos. Sob a cangica os pedidos num
pedaço de papel; sobre a cangica branca, o mel, a cocada. Antes de soltar os pequenos
barcos à sétima onda, esfregando os sabonetes da oferenda, os pedidos são relembrados,
o orixá segue às águas como um destino favorável.
A doçura que ela traz no coração é a fruta dela. Toda casa de Iemanjá,
ou filho de Iemanjá, no dia dois de fevereiro come um pedacinho, se não
quer comer, uma canjica branca, com coco, uma melancia, um peixe,
uma cocada. (Pai Jorge de Yemanjá, maio de 2008).
Sublinhar o que realmente importa no que se apresenta não se faz aqui como
evocação de algo que poderia ter sido. É o ente como a intensidade de um sabonete que
se faz presença daquilo que na impessoalidade do acontecimento é simplesmente a
doçura feminina: aqui e agora o modo da presença do ser. O ser capturado numa
expressão que dispensa o verbo. O odor, a textura, o gosto no modo como o ser apenas
se oferece. Oferenda, a mediação do ser, argumento da presença.
O pensamento não é aqui apenas uma atividade mental que antecede, precede ou
monitora a ação. O pensamento é também a intensidade do que é, seu vetor moral e a
força que garante a consecução como destino. A melhor explicitação do regime próprio
de temporalização da ação na religiosidade afro-brasileira aparece em Márcio Goldman
(2008) quando nos apresenta o Candomblé como a arte da atualização de virtualidades.
Para Goldman, se o candomblé também é uma forma de arte, não é apenas porque exige
talentos e dons especiais, mas também porque cria objetos, pessoas e deuses. É no trato
que sofre o tempo nessa forma de arte, que se exibe a singularidade de uma ontologia
em que os objetos de arte já existem antes de serem criados. A criação é aqui na verdade
a apresentação das virtualidades que as atualizações dominantes contêm.
Em outras versões, o orixá pode estar atrás do santo católico resguardado pela
estátua. Nos novos portais da religiosidade afro-brasileira que se desdobram pela
internet, é comum uma narrativa iconoclasta em que a Igreja Católica aparece zelando
naturalmente pela conversão dos escravos africanos e estes, mesmo batizados, mantêm
rituais e ícones africanos sob a prática da religião católica.
Eles [os orixás] vieram através dos escravos. Os escravos não podiam
praticar a religião africana porque eram governados pelos portugueses;
então eles usavam o santo católico, inclusive para esconder o ocutá. O
orixá dentro do santo, porque naquele tempo tinha muitos santos feito de
madeira. Então os santos eram ocos por dentro, por baixo, ali dentro
eles escondiam o ocutá, a feitura do orixá. (Pai Dinajara, maio de
2008).
A insinuação do vazio interior da sacralidade católica mais do que se contrapõe à
alternativa de se adorar ícones compactos como as pedras de que emanam as forças
sagradas dos afro-brasileiros. Sob a teoria esboçada pelo pai de santo, o catolicismo
aparece como a forma que transporta e traveste o que é o sagrado na sua efetividade.
Sob essa perspectiva visualizamos que as práticas sincréticas em torno de Nossa
Senhora dos Navegantes em Porto Alegre ressoam no interior das doutrinas católicas de
modo a destruir seus fundamentos icônicos. Se tomarmos a postura iconoclasta como a
oposição ao culto de ícones seria, aparentemente, contra-intuitivo que um modo de
existência em que as pessoas são constituídas de modo tão associado a ícones possa ser
percebido como iconoclasta. Mas não seria iconoclasta a postura de inserir uma pedra
no interior de uma estátua como se a coisa a adorar não pudesse ser essa forma humana
do catolicismo? O que passa a ser essa pedra interior se não o que a imagem católica
não é, nunca poderia vir a ser, por ser apenas uma estátua? E se a pedra interior
naturaliza o sagrado, na extensão da idéia de que os orixás são forças da natureza, esse
argumento não destrói as formas demasiado humanas da estátua católica? Em lugar ou
em comum com a estátua que busca forma humana, o que se passa a sacralizar quando
um santo católico carrega um orixá nas entranhas?
Eu nasci no dia de São Pedro e São Paulo, o homem das chaves do céu.
Eu sou devoto a São Pedro e a São Paulo, porque eu nasci no dia deles.
Hoje eu sou da mãe deles, que a mãe de São Pedro é a Iemanjá ou Nossa
Senhora dos Navegantes, que é a mesma coisa.
A articulação possessiva do ser de São Pedro como devoto sugere aqui mais do que
uma relação eletiva. O modo como o devoto acontece como pessoa é feito pela
associação com as chaves do céu como intensidade. Nas múltiplas formas como a
intensidade pode ser transportada e religada, a mãe é a Iemanjá; sob as vibrações de
certos ícones ou em outras intensidades é a Nossa Senhora dos Navegantes. Assim
como o devoto é filho de São Pedro ou da Iemanjá, conforme o dia, sua intensidade
singular.
Acontece que ao se deixar levar pelo modo como o ser do sagrado se faz
constitutivo na pessoa, este devoto que se apresenta como católico e irmão de sangue de
uma batuqueira, apresenta o próprio corpo como a forma que carrega por dentro as
intensidades compactas de sacralidades transportadas por essa forma humana que é a
pessoa. Como o santo católico vazio da narrativa acima que se deixa ocupar por um
orixá que, sendo de madeira permite que uma pedra lhe escave as entranhas, assim esse
devoto que oscila entre o catolicismo e o batuque carrega na interioridade a imanência
do sagrado. Situado no terreno da diplomacia afro-brasileira, a lógica concreta das
coisas percorre irresistivelmente todos os corpos batizados, impondo-lhes a iconoclastia
interna da série ontológica que recusa o verbo.
Não apenas a narrativa auto-biográfica se faz indexar pela presença das intensidades
que esse regime de enunciação destaca, mas a presença do ser enquanto pessoa tocada
pela participação da festa sagrada, o regime de existência em que o devoto se coloca já é
o da sacralização das séries não-humanas. Pouco importa que esse fiel seja do
catolicismo ou da religiosidade afro-brasileira, a força da “transparência do mal”, diriam
os evangélicos.
Está aqui a raiz do principal erro do estudo sobre a procissão a nosa senhora dos
navegantes em que quantificamos o número de pessoas que associavam a data à Iemanjá
(Oro e Anjos 2010). Não o poderíamos ter feito se não sob a ontologia que totaliza
pessoas como unidades fechadas em torno de posições. Mas e se as pessoas forem
multiplicidades corroídas por terem as entranhas já pouco católicas mesmo quando só
reconhecem no discurso explícito a Virgem? Não nos corrói a todos esse princípio de
suspeita de que algo mais do que humano compõe nossas entranhas carnais (e não
apenas nosso ser espiritual)?
Conclusão