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Análise de obras literárias

O velho da horta

Gil Vicente

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SumÁrio

1. MOMENTO social e HISTÓRICO..................................................... 7

2. Estilo literário da época............................................................ 8

3. O AUTOR.................................................................................................. 12

4. A OBRA..................................................................................................... 14

5. Exercícios ........................................................................................... 38
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O velho da horta

Gil Vicente
O velho da horta

1. MOMENTO social e HISTÓRICO

Por volta da segunda metade do século XIV, o sistema feudal entrou em


declínio. O surgimento de novas cidades, a ampliação do comércio e o aban-
dono gradativo das terras pelos colonos assinalaram o enfraquecimento dos
senhores feudais. A peste negra, que somente no ano de 1348 matou quase
metade da população da Europa, e a Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra
e França (1346 a 1450) contribuíram significativamente para a diminuição da
mão de obra no campo.
O declínio do sistema feudal favoreceu a centralização do poder nas
mãos de um único rei. Em Portugal, no reinado de D. João, o reflexo do mer-
cantilismo ocorreu sobretudo na expansão ultramarina, a partir de 1415, com
a tomada de Ceuta.
Durante o reinado de D. Manuel, o Venturoso, a expansão colonial impôs
Portugal como a grande nação da Terra, mas os vícios de uma nobreza absolu-
tamente avessa ao trabalho já traziam consigo os germes da decadência.
Já em meados do século XVI, durante o reinado de D. João III, o sistema
entrou em crise. Em 1580, dois anos após a morte de D. Sebastião, Portugal caiu
sob domínio espanhol.
O teatro de Gil Vicente retrata a sociedade portuguesa nas primeiras dé-
cadas do século XVI.
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2. Estilo literário da época

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Segundo a divisão da História Universal, de 1453 (tomada de Constantino-


pla pelos turcos) até 1789 (Revolução Francesa) vigoraram os Tempos Modernos,
período que, na história da arte, compreende Humanismo, Classicismo, Barroco
e Neoclassicismo.
Na história da Literatura Portuguesa, o Humanismo tem início em 1434, com
a nomeação de Fernão Lopes como guarda-mor da Torre do Tombo, e se estende
até 1527, quando retorna a Portugal o poeta Sá de Miranda, após um período de
seis anos na Itália, de onde trouxe as novas tendências da arte renascentista.
A passagem da Idade Média para os Tempos Modernos ocorreu mediante
uma transformação espiritual. A Idade Média foi teocêntrica, Deus e a teologia
cristã estavam em primeiro lugar. Todo conhecimento, acreditava-se, emanava
de Deus. O homem estava perdido em sua infinita ignorância e somente poderia
ser salvo mediante sua crença em Deus e na Igreja Católica. O Humanismo é
antropocêntrico, considera o homem como a “medida de todas as coisas”. O
homem é um ser que se constrói em conformidade com o seu esforço. Não se
nasce homem, torna-se homem.
A palavra humanismo é híbrida, meio latina e meio grega; compõe-se de
humano + ismo. Humano é adjetivo derivado de homem, que em latim é homo, e
tem a mesma raiz etimológica de húmus, que significa terra. Homem, portanto,
significa o ser que habita a terra, o ser terrestre.
Ismo significa sistema, movimento.
Os humanistas eram homens que se dedicavam a estudar as humanida-
des, ou seja, as línguas grega e latina, considerando-as como elemento-chave
de um novo mundo. Exatamente por se dedicarem ao estudo de outros autores
e de outras obras que não a Bíblia e os textos dos doutores da Igreja Católica
é que eles descobriram uma civilização considerada superior: a civilização
greco-romana.
Historicamente, o Humanismo prepara todo o terreno para o surgimento
da Renascença, na medida em que os estudiosos redescobriram a importância do
estudo do idioma grego e dos grandes autores latinos como fonte da construção
da identidade humana. Para os humanistas, o homem torna-se homem por in-
termédio da palavra. A linguagem distingue os homens dos animais e dos anjos,
porque os animais nem falam nem têm razão, e os anjos, embora sejam dotados
de razão, não falam. Lo spirito non ha voce, segundo Leonardo da Vinci.
Uma vez descobertos e estudados os textos antigos, cabia aos humanistas
preparar os textos para divulgação. É importante lembrar que um fator fun-
damental na divulgação dessas novas ideias foi a invenção da imprensa por
Gutenberg, em 1452. A Portugal o invento só chegou em 1494, mas a tempo de
propagar os estudos realizados pelos humanistas, sobretudo os italianos.
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O teatro medieval
A Idade Média criou um teatro essencialmente popular, completamente
diferente do teatro da Antiguidade greco-romana. Ele surgiu e se desenvolveu
vagarosamente, atingindo sua autonomia depois do século X, e chegou até a
Renascença, quando entrou em conflito com o teatro de imitação clássica.
O teatro medieval se divide em sacro e profano. Tem sua origem atrelada
às cerimônias litúrgicas, isto é, religiosas. Ele toma como referência a missa, em
razão do caráter teatral que essa cerimônia exige. O altar funciona como palco, o
sacerdote, como ator, e os fiéis, como plateia. Os temas mais comuns são a ceia de
Cristo e os mistérios da paixão.
Por volta do século X, a Igreja valorizou sobremaneira a dramatização de
passagens bíblicas. Na missa da Páscoa, no altar, como se fosse o Santo Sepulcro,
o sacerdote, fazendo o papel de um anjo, pergunta a dois clérigos, que repre-
sentam as santas mulheres, o que estão procurando. Elas respondem que estão
procurando por Jesus, e o anjo lhes diz que Ele não está mais ali, que ressuscitou.
Pouco a pouco, a cena se desenvolve.
Dessa maneira, no altar, ligado ao ritual da missa, surgiu o chamado drama
sacro, que, aos poucos, passou a ocupar todo o espaço do templo e a adquirir
maior liberdade em relação à cerimônia.
No interior das igrejas, por toda a Europa, representavam-se, em latim,
episódios da Bíblia e da vida dos santos. Os atores eram os clérigos, que re-
presentavam inclusive os papéis femininos. Aos poucos, porém, começavam a
ser incorporados ao drama sacro elementos incompatíveis com o ambiente da
Igreja, como a mistura da língua do povo com o latim e a introdução de algumas
passagens cômicas. Quando a ousadia passou dos limites, o papa Inocêncio III
proibiu a realização do drama sacro dentro da Igreja.
No século XII, o teatro passou a ser representado na entrada das igrejas e
nas praças públicas, e o latim foi substituído pela língua popular em conformi-
dade com o país. Na península Ibérica, passou a ser chamado de auto, palavra
de origem latina que significa ato, designando, assim, uma peça breve, curta.
O teatro sacro possui três modalidades: os mistérios, os milagres e as
moralidades.
Nos mistérios representam-se episódios da Bíblia; nos milagres, represen-
tam-se feitos sobrenaturais operados por Deus, por intermédio da Virgem e dos
santos; nas moralidades, as personagens representam conceitos abstratos, como
a Bondade, o Vício, as Virtudes etc.
O teatro profano (pro = fora e fanum = templo) surgiu como consequência
da descaracterização do drama sacro. O elemento cômico e realista, que antes
era limitado, sobrepôs-se aos elementos sacros, levando o gênero sacro à dege-
neração. A prova mais cabal dessa degeneração está no fato de o parlamento de
Paris proibir, no ano de 1548, as representações sacras.
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O teatro profano é cômico e possui as seguintes modalidades: arremedos,


momos e farsas. Arremedos são imitações cômicas de fatos ou pessoas; momos
são encenações carnavalescas, com personagens mascaradas que ridicularizam
os costumes; farsas são peças cômicas, de um só ato e enredo curto, com poucos
atores, ação rápida e irreverência.
A palavra farsa vem de farcire, que significa rechear. A farsa é um recheio,
pois, na sua origem, era um momento cômico e realista que se enxertava nos
dramas sacros, para descontrair o público. Algumas farsas de Gil Vicente são
chamadas de auto, porque em Portugal esta palavra designava qualquer repre-
sentação dramática.
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3. O AUTOR

Embora Gil Vicente tenha sido uma personalidade literária marcante no


século XVI, em Portugal, a vida dele é pouco conhecida. Sabemos que nasceu por
volta de 1465; encenou sua primeira peça, Auto da visitação (ou Monólogo do vaqueiro),
em 1502, nos aposentos da rainha D. Maria, por ocasião do nascimento do filho da
soberana, o futuro rei D. João III; colaborou com Garcia de Resende no Cancioneiro
geral (livro capital da poesia do período humanista na península Ibérica); usufruiu
de grande prestígio junto ao rei D. João III, o que lhe permitiu, no ano de 1531,
censurar e criticar, por meio de um discurso, os frades de Santarém que queriam
responsabilizar os judeus pela ocorrência de um terremoto.
Alguns estudiosos acreditam que Gil Vicente tenha exercido a função de
Mestre da Balança da Casa da Moeda, em razão de um documento datado de 4 de
fevereiro de 1513, e que tenha também exercido o ofício de ourives, atribuindo-lhe
a autoria de uma obra-prima da ourivesaria portuguesa – a Custódia de Belém
(1506). Foi casado duas vezes, teve cinco filhos e escreveu mais de quarenta pe-
ças teatrais: dezessete em português, onze em castelhano e dezesseis bilíngues.
Faleceu provavelmente em 1537, deixando inconcluso o trabalho de compilação
de suas obras. É considerado o fundador do teatro português.
No teatro vicentino, predominam os autos (peças teatrais de assunto predomi-
nantemente religioso, tratado de modo sério ou cômico, com a finalidade de divertir

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e moralizar o público) e as farsas (peças cômicas curtas, de um só ato, com enredo


extraído do cotidiano, também com a finalidade de divertir e moralizar a plateia).
Os primeiros autos de Gil Vicente revelam a influência do seu contem-
porâneo espanhol Juan del Encina. Pouco a pouco, entretanto, o seu teatro foi
evoluindo para além do quadro quase exclusivamente religioso e lírico de Juan
del Encina, chegando à crítica social e constituindo, no seu conjunto, um quadro
bastante característico da vida portuguesa do começo do século XVI.

Cronologia das obras


1502 – Auto da visitação (ou Monólogo do vaqueiro)
1504 – Auto de S. Martinho
1506 – Sermão perante a rainha D. Leonor
1509 – Auto da Índia; Auto pastoril castelhano
1510 – Auto dos reis magos; Auto da fé
1512 – Velho da horta
1513 – Auto dos quatro tempos; Auto da Sibila Cassandra
1514 – Exortação da guerra
1515 – Quem tem farelos; Auto da Mofina Mendes (ou Mistérios da Virgem)
1517 – Auto da barca do inferno
1518 – Auto da alma; Auto da barca do purgatório
1519 – Auto da barca da glória
1520 – Auto da fama
1521 – Cortes de Júpiter; Comédia de Rubena; Auto dos ciganos
1522 – D. Duardos
1523 – Farsa de Inês Pereira; Auto pastoril português; Auto de Amadis de Gaula
1524 – Comédia do viúvo; Frágua de amor; Auto dos físicos
1525 ou 26 – Templo de Apolo; Auto da feira
1527 – Nau de amores; Comédia sobre a divisa da cidade de Coimbra; Farsa dos almocreves;
Tragicomédia da serra da Estrela; Breve sumário da história de Deus seguido do
diálogo dos judeus sobre a ressurreição; Auto das fadas
1527 ou 28 – Auto da festa
1529 – Triunfo do inverno (e do verão)
1529 ou 30 – O clérigo da beira
1532 – Auto da Lusitânia
1533 – Romagem dos agravados
1534 – Auto da cananeia
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1535 – Floresta de enganos


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4. A OBRA

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O Velho da Horta
Figuras: um Velho; uma moça; um Parvo, criado do Velho; Mulher (do
Velho); Branca Gil (alcoviteira) [mulher que promove encontros amorosos] uma
Moça; um Alcaide [oficial de justiça] e quatro Beleguins [oficiais inferiores que
secundavam o Alcaide, dando ordens de prisão aos criminosos].

Argumento
Esta seguinte farsa é o seu argumento que um homem honrado e muito rico, já
velho, tinha uma horta: e andando uma manhã por ela espairecendo, sendo o seu hor-
telão fora, veio uma moça de muito bom parecer buscar hortaliça, e o velho em tanta
maneira se enamorou dela que, por via de uma alcoviteira, gastou toda a sua fazenda.
A alcoviteira foi açoitada, e a moça casou honradamente. Entra logo o velho rezando
pela horta. Foi representada ao mui sereníssimo rei D. Manuel, o primeiro desse nome.
Era do Senhor de MDXII.
Cena 1: É a abertura da peça. Numa mistura de latim com português,
surge o Velho rezando mecanicamente, revelando toda sua crença e ignorância.
A entrada do Velho produz um efeito cômico, porque evidencia que as suas
intenções são antes materiais que espirituais.
Velho: Pater noster criador, [ Pai Nosso, criador
Qui es in coelis, poderoso, [que estais no céu, poderoso]
Santificetur, Senhor, [seja santificado, Senhor]
nomen tuum vencedor, [ o teu nome vencedor]
nos céu e terra piedoso.
Adveniat a tua graça, [venha a tua graça]
regnum tuum sem mais guerra; [o teu reino]
voluntas tua se faça [a tua vontade]
sicut in coelo et in terra. [assim no céu como na terra]
Panem nostrum, que comemos, [ o pão nosso]
cotidianum teu é; [de cada dia]
escusá-lo não podemos;
inda que o não mereceremos
tu das nobis hodie. [tu nos dás hoje]
Dimitte nobis, Senhor, [perdoai, Senhor, os nossos erros]
debita nossos errores,
sicut et nos, por teu amor, [assim como nós]
dimittimus qualquer error, [perdoamos os erros]
aos nossos devedores.
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Gil Vicente

Et ne nos, Deus, te pedimos, [e não nos]


inducas, por nenhum modo, [deixes]
in tentationem caímos [cair em tentação]
porque fracos nos sentimos
formados de triste lodo.
Sed libera nossa fraqueza, [mas livra-nos]
nos a malo nesta vida; [dos males]
Amen, por tua grandeza,
e nos livre tua alteza
da tristeza sem medida.

Na sequência, surge uma Moça, jovem e bela, e o Velho sente renascer em


seu corpo o amor pela beleza e pela juventude. Repare que a fala do Velho é
marcada por expressões típicas (vale dizer, por clichês) dos poetas humanistas.
Parece que o intuito de Gil Vicente era o de fazer rir o público não só pelas ati-
tudes do Velho, mas também pela linguagem que este emprega. As palavras e
expressões com que ele se reporta à Moça o caracterizam como um conquistador
barato. Imagine, hoje, alguém chegando para uma moça numa boate ou num bar
dizendo-lhe: – Oi! Você vem sempre aqui?
Entra a Moça na horta e diz o Velho:
Senhora, benza-vos Deus,

Moça: Deus vos mantenha, senhor.


Velho: Onde se criou tal flor?
Eu diria que nos céus. [Repare na “cantada”do Velho.]
Moça: Mas no chão. [Repare como a Moça procura “dispensar” o Velho.]
Velho: Pois damas se acharão
que não são vosso sapato! [Que não chegam aos vossos pés.]
Moça: Ai! Como isso é tão vão,
e como as lisonjas são de barato! [Como os elogios são falsos.]
Velho: Que buscais vós cá, donzela,
senhora, meu coração? [Repare a insistência do Velho.]
Moça: Vinha ao vosso hortelão, [A moça procura se fazer de desentendida.]
por cheiros para a panela.
Velho: E a isso vinde vós, meu paraíso.
Minha senhora, e não a al? [E não desejais algo mais?
Repare nas insinuações dele.]

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Moça: Vistes vós! Segundo isso,


nenhum velho não tem siso [Nenhum velho tem juízo.]
natural.
Velho: Ó meus olhinhos garridos,
mina rosa, meu arminho! [Minha rosa, minha “coisa fofa”]
Moça: Onde é vosso ratinho? [Onde está vosso hortelão.]
Não tem os cheiros colhidos?
Velho: Tão depressa
vinde vós, minha condensa, [Continuam as “cantadas”.
Agora ele a chama de condessa.]
meu amor, meu coração!
Moça: Jesus! Jesus!
Que coisa é essa?
E que prática tão avessa
da razão! [Ela deixa claro que o rejeita, dizendo que ele está “louco”.]
Velho: Falai, falai doutra maneira!
Mandai-me dar a hortaliça.
Grão fogo de amor me atiça,
ó minha alma verdadeira!
Moça: E essa tosse?
Amores de sobreposse
serão os da vossa idade;
o tempo vos tirou a posse. [Repare como a Moça o ridiculariza.]
Velho: Mas amo que se moço
fosse com a metade. [Amo como se fosse jovem, como se tivesse
metade da idade atual.]
Moça: E qual será a desastrada
que atende vosso amor? [E quem “cai” numa “cantada”dessas?]
Velho: Oh minha alma e minha dor,
quem vos tivesse furtada!
Moça: Que prazer! [“Que bonito!” Trata-se de uma ironia, pois
ela não vê graça alguma na fala do Velho.]
Quem vos isso ouvir dizer
cuidará que estais vivo,
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ou que estais para viver!


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Gil Vicente

Velho: Vivo não no quero ser,


mas cativo!
Moça: Vossa alma não é lembrada
que vos despede esta vida?
Velho: Vós sois minha despedida,
minha morte antecipada.
Moça: Que galante! Que rosa! Que diamante!
Que preciosa perla fina! [“Que gracinha!”. Mais uma ironia da Moça.]
Velho: Oh fortuna triunfante!
Quem meteu um velho amante
com menina!
O maior risco da vida
e mais perigoso é amar,
que morrer é acabar
e amor não tem saída,
e pois penado,
ainda que amado,
vive qualquer amador;
que fará o desamado,
e sendo desesperado
de favor?
Moça: Ora, dá-lhe lá favores!
Velhice, como te enganas!
Velho: Essas palavras ufanas [Quanto mais me “dispensa”, mais eu te amo.]
acendem mais os amores.
Moça: Bom homem,
estais às escuras!
Não vos vedes como estais? [Hoje, seria algo como: “Caia na real”,
“você está um lixo”.]
Velho: Vós me cegais com tristuras,
mas vejo as desaventuras [Infelicidades]
que me dais.

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O velho da horta

Moça: Não vedes que sois já morto


e andais contra a natura? [A Moça insinua que ele já viveu demais.
Algumas mulheres diriam hoje:
“você já está com um pé na cova”.]
Velho: Oh flor da mor formosura!
Quem vos trouxe a este meu horto?
Ai de mim!
Porque, logo que vos vi,
cegou minha alma,
e a vida está tão fora de si
que, partindo-vos daqui,
é partida.
Moça: Já perto sois de morrer.
Donde nasce esta sandice [Falta de juízo]
que, quanto mais na velhice,
amais os velhos viver?
E mais querida,
quando estais mais de partida,
é a vida que leixais? [Deixais.]
Velho: Tanto sois mais homicida,
que, quando amo mais a vida,
ma tirais.
Porque meu tempo d’agora
val vinte anos dos passados;
pois os moços namorados
a mocidade os escora. [Ampara.]
Mas um velho, em idade de conselho,
de menina namorado...
Oh minha alma e meu espelho!
Moça: Oh miolo de coelho
mal assado! [Mais um deboche da Moça.
Ela insinua que ele não tem nada na cabeça.]
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Velho: Quanto for mais avisado


quem de amor vive penando,
terá menos siso amando,
porque é mais namorado.
Em conclusão:
que amor não quer razão,
nem contrato, nem cautela,
nem preito, nem condição,
mas penar de coração
sem querela.
Moça: Hulos desses namorados? [Onde há desses namorados?]
Desinçada é a terra deles! [A terra já está livre deles.]
Olho mau se meteu neles!
Namorados de cruzados, [O que querem é o seu dinheiro,
isso sim!... isso sim!..]
Velho: Senhora, eis-me eu aqui,
que não sei senão amar.
Oh meu rosto de alfeni! [Delicado]
Que em hora má eu vos vi.
Neste pomar
Moça: Que velho tão sem sossego!
Velho: Que garridice me viste? [O que você achou mais bonito em mim?]
Moça: Mas dizei, que me sentiste,
remelado, meio cego?
Velho: Mas de todo,
por mui namorado modo,
me tendes, minha senhora,
já cego de todo em todo. [Estou completamente cego de amor.]
Moça: Bem está, quando tal lodo
se namora. [A Moça o ofende, chama-o de “lodo”;
algo como “lixo”, “sujo”.]
Velho: Quanto mais estais avessa,
mais certo vos quero bem.
Moça: O vosso hortelão não vem?
Quero-me ir, que estou com pressa.
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O velho da horta

Velho: Que fermosa! [Bonita]


Toda a minha horta é vossa.
Moça: Não quero tanta franqueza.
Velho: Não pra me serdes piedosa,
porque, quanto mais graciosa,
sois crueza.
Cortai tudo, é permitido,
senhora, se sois servida.
Seja a horta destruída,
pois seu dono é destruído.
Moça: Mana minha!
Julgais que sou a daninha? [Julgais que sou capaz de
destruir-lhe toda a horta?]
Porque não posso esperar,
colherei alguma coisinha,
somente por ir asinha [Ir embora depressa.]
e não tardar.
Velho: Colhei, rosa, dessas rosas!
Minhas flores, colhei flores!
Quisera que esses amores
foram perlas preciosas
e de rubis
o caminho por onde is,
e a horta de ouro tal,
com lavores mui sutis,
pois que Deus fazer-vos quis
angelical.
Ditoso é o jardim
que está em vosso poder.
Podeis, senhora, fazer dele
o que fazeis de mim.
Moça: Que folgura!
Que pomar e que verdura!
Que fonte tão esmerada!
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Gil Vicente

Velho: N’água olhai vossa figura:


vereis minha sepultura
ser chegada. [O Velho pretende despertar sentimento de culpa
na Moça, dizendo que a rejeição dela o levará à morte.]
Canta a Moça:
“Cual es la niña [Qual a moça]
que coge las flores [que colhe flores]
sino tiene amores? [se não tem amores?]

Cogia la niña [Colhia a moça]


la rosa florida: [a rosa florida]
El hortelanico [o hortelão]
prendas le pedia [prendas lhe pedia]
sino tienes amores.” [se não tem amores.]

Assim cantando, colheu a Moça da horta o que vinha buscar e, acabado, diz:
Eis aqui o que colhi;
vede o que vos hei de dar.
Velho: Que me haveis vós de pagar,
pois que me levais a mi?
Oh coitado!
Que amor me tem entregado
e em vosso poder me fino,
como pássaro em mão dado
de um menino!
Moça: Senhor, com vossa mercê.
Velho: Por eu não ficar sem a vossa,
queria de vós uma rosa.
Moça: Uma rosa? Para quê?
Velho: Porque são
colhidas de vossa mão,
deixar-me-eis alguma vida,

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O velho da horta

não isente de paixão


mas será consolação
na partida. [Já que a Moça não lhe dá amor, o Velho lhe pede ao menos
uma rosa. Repare que a rosa converte-se aqui no símbolo
do que o Velho deseja, isto é, o corpo da Moça. Já que não
pode tê-lo de fato, deseja ter algo que, na sua imaginação,
o represente.]
Moça: Isso é por me deter,
Ora tomai, e acabar!
Tomou o Velho a mão:
Jesus! E quereis brincar?
Que galante e que prazer!
Velho: Já me deixais?
Eu não vos esqueço mais
e nem fico só comigo.
Oh martírios infernais!
Não sei por que me matais,
nem o que digo.

Cena 2: O criado do Velho, o Parvo, vem lhe trazer um recado da esposa,


o de que a comida, o almoço, já está na mesa. Mas o Velho não tem apetite e
ordena ao criado que lhe traga a viola, pois pretendia cantar as dores do amor
não correspondido. O criado o adverte de que, se não comer, poderá morrer. O
Velho despreza suas advertências e o manda embora. O criado reclama, pois
desejava comer, o que aconteceria logo após ser servido o amo. Por isso, retira-se
esbravejando e desejando ser criado de um amo mais ajuizado.
Vem um Parvo, criado do Velho, e diz:
Dono, dizia minha dona
que fazeis vós cá té à noite?
Velho: Vai-te! Queres que t’açoite?
Oh! Dou ao demo a intrujona [Mando a impostora ao diabo. Repare
que o Velho reporta-se à esposa como se
ela não fosse a legítima senhora de seu coração.]
sem saber!
Parvo: Diz que fosseis vós comer
e não demoreis aqui.
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Gil Vicente

Velho: Não quero comer, nem beber.


Parvo: Pois que haver cá de fazer?
Velho: Vai-te daí!
Parvo: Dono, veio lá meu tio,
estava minha dona, então ela,
metendo lume à panela [Levando a panela ao fogo.]
o fogo logo subiu.
Velho: Oh Senhora!
Como sei que estais agora
sem saber minha saudade.
Oh! Senhora matadora,
meu coração vos adora
de vontade!
Parvo: Raivou tanto! Resmungou!
Oh pesar ora da vida!
Está a panela cozida, minha dona não jantou.
Não quereis?
Velho: Não hei de comer desta vez,
nem quero comer bocado. [Não quero comer, estou sem fome.]
Parvo: E se vós, dono, morreis?
Então depois não falareis senão finado.
Então na terra nego jazer, [Não terás quem o enterre.]
então, finar dono, estendido. [Ficarás estendido na terra.]
Velho: Antes não fora eu nascido,
ou acabasse de viver!
Parvo: Assim, por Deus!
Então tanta pulga em vós,
tanta bichoca nos olhos,
ali, cos finado, sós,
e comer-vos-ão a vós
os piolhos.
Comer-vos-ão as cigarras
e os sapos! Morrei! Morrei! [Repare as advertências do Parvo.
Ele pretende convencer seu amo a comer.]
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O velho da horta

Velho: Deus me faz já mercê [Deus me faria um favor]


de me soltar as amarras. [Se já me levasse agora]
Vai saltando!
Aqui te fico esperando;
traze a viola, e veremos.
Parvo: Ah! Corpo de São Fernando!
Estão os outros jantando,
e cantaremos?!...
Velho: Fora eu do teu teor, [Fora eu como tu]
por não se sentir esta praga [E não sentiria essa praga]
de fogo, que não se apaga, [De amor, que não se apaga]
nem abranda tanta dor!
Hei de morrer.
Parvo: Minha dona quer comer;
Vinde, infeliz, que ela brada!
Olhai! Eu fui lhe dizer
dessa rosa e do tanger,
e está raivada!
Velho: Vai tu, filho Joane,
e dize que logo vou,
que não há tempo que cá estou.
Parvo: Ireis vós para o Sanhoane! [Ireis vós para São João, ou seja,
para o céu.]
Pelo céu sagrado, que meu dono está danado!
Viu ele o demo no ramo.
Se ele fosse namorado,
logo eu vou buscar outro amo.

Cena 3: A Mulher do Velho vai até a horta e percebe que seu marido está
apaixonado por outra mulher, tão logo vê a rosa e a viola. A Mulher adverte
o marido, dizendo que está na hora de ele criar juízo, pois já está na casa dos
sessenta anos. Ocorre uma discussão, o marido ofende a esposa e, em seguida,
pega a viola e começa a cantar.
Vem a Mulher do Velho e diz:
Hui! Que sina desastrada!
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Fernandeanes, que é isto? [Fernandeanes é o nome do Velho.]


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Gil Vicente
Velho: Oh pesar do anticristo.
Oh velha destemperada!
Vistes ora?
Mulher: E esta dama onde mora?
Hui! Infeliz dos meus dias!
Vinde jantar em má hora:
por que vos meter agora
em musiquias? [Em músicas, em tocar viola]
Velho: Pelo corpo de São Roque,
vai para o demo a gulosa!
Mulher: Quem vos pôs aí essa rosa?
Má forca que vos enforque!
Velho: Não maçar! [Não enche.]
Fareis bem de vos tornar
porque estou tão sem sentido;
não cureis de me falar,
que não se pode evitar
ser perdido!
Mulher: Agora com ervas novas
vos tornastes garanhão!... [Repare a ironia da mulher. Hoje, seria algo como:
Então o burro velho quer comer capim novo!]
Velho: Não sei que é, nem que não,
que hei de vir a fazer trovas.
Velho: Que peçonha!
Havei, infeliz, vergonha
ao cabo de sessenta anos,
que sondes vós carantonha. [Com essa cara feia]
Velho: Amores de quem me sonha
tantos danos!
Mulher: Já vós estais em idade
de mudardes os costumes.
Velho: Pois que me pedis ciúmes,
eu vo-los farei de verdade.
Mulher: Olhai a peça!

26
O velho da horta

Velho: Que o demo em nada me empeça,


senão morrer de namorado.
Mulher: Está a cair da tripeça [Está caindo de um banco com três pés, isto
é, já não consegue ficar nem sentado.]
e tem rosa na cabeça
e embeiçado!... [E faz beicinho de apaixonado!...]
Velho: Deixar-me ser namorado,
porque o sou muito em extremo!
Mulher: Mas vos tome inda o demo,
   se vos já não tem tomado!
Velho: Dona torta,
acertar por esta porta,
Velha mal-aventurada!
Saia, infeliz, desta horta!
Mulher: Hui, meu Deus, que serei morta,
  ou espancada!
Velho: Estas velhas são pecados,
Santa Maria vai com a praga!
Quanto mais homem as afaga,
tanto mais são endiabradas!
(Canta)

...........................................................................................................................................

Cena 4: Surge a alcoviteira Branca Gil. Esta reforça os desejos do Velho, dizen-
do-lhe que o amor não tem idade. Promete ajudar o Velho a conquistar a Moça.
Entra Branca Gil, Alcoviteira, e diz:
Mantenha Deus vossa Mercê.
Velho: Olá! Venhais em boa hora!
Ah! Santa Maria! Senhora.
Como logo Deus provê!
Alcoviteira: Certo, oh fadas!
     Mas venho por misturadas,
     e muito depressa ainda.
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27
Gil Vicente
Velho: Misturadas preparadas,
que hão de fazer bem guisadas
vossa vinda!
Justamente nestes dias,
em tempo contra a razão,
veio amor, sem intenção,
e fez de mim outro Macias
tão penado,
que de muito namorado
creio que culpareis
porque tomei tal cuidado;
e do velho destampado [Zombarás de um velho sem juízo.]
zombareis.
Alcoviteira: Mas, antes, senhor agora
na velhice anda o amor;
o de idade de amador
por acaso se namora;
e na corte
nenhum mancebo de sorte
não ama como soía. [Não ama como se costumava amar
antigamente.]
Tudo vai em zombaria!
Nunca morrem desta morte
nenhum dia.
E folgo ora de ver
vossa mercê namorado,
que o homem bem criado
até à morte o há de ser,
por direito.
Não por modo contrafeito,
mas firme, sem ir atrás,
que a todo homem perfeito
mandou Deus no seu preceito:
amarás.

28
O velho da horta

Velho: Isso é o que sempre brado,


Branca Gil, e não me vai,
que eu não daria um real
por homem desnamorado.
Porém, amiga,
se nesta minha fadiga
vós não sois medianeira, [Repare que o Velho sabe qual é o ofício de
Branca Gil: ela, em troco de dinheiro, “ajei-
ta” encontros amorosos.]
não sei que maneira siga,
nem que faça, nem que diga,
nem que queira.

Alcoviteira: Ando agora tão ditosa


(louvores a Virgem Maria!),
que logro mais do que queria
pela minha vida e vossa.
De antemão,
faço uma esconjuração
c’um dente de negra morta,
antes que entre pela porta
qualquer duro coração
que a exorta. [Repare a forma cômica como
Branca Gil agradece à Virgem por
encontrar um velho tolo e apaixonado.]
Dizede-me: quem é ela?

Velho: Vive junto com a Sé.


Alcoviteira: Já! Já! Já! Bem sei quem é!
É bonita como estrela,
uma rosinha de abril,
uma frescura de maio,
tão manhosa, tão sutil!...

[O Velho não resiste e desmaia. Imagina possuir a Moça por intermédio de


Branca Gil, o que foi a causa de seu desmaio. Branca Gil aproveita o desmaio do
Velho e, de forma bastante cômica, invoca a ajuda de determinados “santos” de sua
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29
Gil Vicente

devoção (alguns na verdade nada tinham de santo), pedindo a ajuda deles na tarefa
de aproximar o casal. O plano de Branca Gil é tirar dinheiro do Velho, alegando
conhecer a Moça.]
Velho: Acudi-me Branca Gil,
que desmaio.
Esmorece o Velho, e a Alcoviteira começa a ladainha:
Ó precioso Santo Areliano,
mártir bem-aventurado,
Tu que foste marteirado [Martirizado]
neste mundo cento e um ano;
Ó São Garcia
Moniz, tu que hoje em dia
Fazes milagres dobrados,
dá-lhe esforço e alegria,
Pois que és da companhia
dos penados! [Almas penadas]
Ó Apóstolo São João Fogaça,
tu que sabes a verdade,
Pela tua piedade,
que tanto mal não se faça!
Ó Senhor
Tristão da Cunha, confessor,
Ó mártir Simão de Sousa,
pelo vosso santo amor.
Livrai o velho pecador
de tal cousa!
Ó Santo Martim Afonso
de Melo, tão namorado.
Dá remédio a este coitado,
e eu te direi um responso [Cantos ou rezas na Igreja Católica]
com devoção!
Eu prometo uma oração,
todo dia, em quatro meses,
Por que lhe deis força,
então, meu senhor São Dom João
de Meneses!
30
O velho da horta

Ó mártir Santo Amador


Gonçalo da Silva, vós,
que sois o melhor de nós,
porfioso em amador [Insistente amador, isto é, grande amante.]
tão despachado,
chamai o martirizado
Dom Jorge de Eça a conselho!
Dois casados num cuidado,
socorrei a este coitado
deste velho!
Arcanjo São Comendador
Mor de Avis, mui inflamado,
Que antes que fosseis nado, [Nascido]
fostes santo no amor!

...........................................................................................................................................

Cena 5: Branca Gil coloca em ação seu plano: tirar dinheiro do Velho. Diz
precisar de dinheiro para convencer a Moça a aproximar-se dele.
Velho: Óh! Coitado!
Ai triste desatinado!
Ainda torno a viver?
Cuidei que já era livrado. [Cuidei que já estivesse morto.]
Alcoviteira: Que esforço de namorado
e que prazer!
Que hora foi aquela!
Velho: Que remédio me dais vós?
Alcoviteira: Vivereis, prazendo a Deus,
e casar-vos-ei com ela.
Velho: É vento isso!
Alcoviteira: Assim seja o paraíso.
Que isso não é tão extremo!
Não curedes vós de riso,
que eu farei tão de improviso
como o demo.
E também doutra maneira
se eu me quiser trabalhar.
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Gil Vicente

Velho: Ide-lhe, logo, falar


e fazei com que me queira,
pois pereço;
e dizei-lhe que lhe peço
se lembre que tal fiquei
estimado em pouco preço,
e, se tanto mal mereço,
não no sei!
E, se tenho esta vontade,
não deve ela s’agastar;
antes deve de folgar
ver-nos morto nesta idade.
E, se reclama
que sendo tão linda dama
por ser velho me aborrece,
dizei-lhe: é um mal quem desama [Quem não ama age mal.]
porque minh’alma que a ama
não envelhece.
Alcoviteira: Sus! Nome de Jesus Cristo!
Olhai-me pela cestinha.
Velho: Tornai logo, fada minha,
que eu pagarei bem isto.

Vai-se a Alcoviteira, e fica o Velho tangendo e cantando a cantiga seguinte:


Pues tengo razón, señora, [Pois tenho razão, senhora.]

...........................................................................................................................................

Vem a Alcoviteira e diz o Velho:


Venhais em boa hora, amiga!
Alcoviteira: Já ela fica de bom jeito;
mas, para isto andar direito,
é razão que vo-lo diga:
eu já, senhor meu, não posso,
sem gastardes bem do vosso,
vencer uma moça tal.
[Repare a esperteza de Branca Gil: ciente do amor do Velho, ela vai tirando
o dinheiro dele.]
32
O velho da horta

Velho: Eu lhe pagarei em grosso.


Alcoviteira: Aí está o feito nosso, [Eis o nosso negócio]
e não em al. [E não outra coisa]
Perca-se toda a fazenda, [Perca-se todo o dinheiro]
por salvardes vossa vida!
Velho: Seja ela disso servida,
que escusada é mais contenda. [Porque eu dispenso outros cuidados,
isto é, o Velho não deseja outra coisa
senão amar a Moça.]
Alcoviteira: Deus vos ajude,
e vos dê mais saúde,
que assim o haveis de fazer,
que viola nem alaúde
nem quantos amores pude
não quer ver.
Falou-me lá num brial [Falou-me lá de um tecido.]
de seda e uns trocados...
Velho: Eis aqui trinta cruzados,
Que lhe façam mui real!
Cena 6: O Velho pega a viola e põe-se a cantar. Branca Gil retorna e diz que
a Moça está apaixonada por ele. Percebendo que assim inflama o ego do Velho,
ela, então, pede-lhe mais dinheiro.
Enquanto a Alcoviteira vai, o Velho torna a prosseguir o seu cantar e tanger
e, acabado, torna ela e diz:
Está tão saudosa de vós
que se perde a coitadinha!
Há mister uma saiazinha [Tem necessidade de uma saia]
e três onças de retroz. [e um corte de tecido de seda]
Velho: Tomai.
Alcoviteira: A benção de vosso pai.
(Bom namorado é o tal!)
pois gastais, descansai.
Namorados de ai ai
Ai! Não valem real!
Ui! Tal fora, se me fora!
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Sabeis vós que me esquecia?


33
Gil Vicente

Uma amiga me vendia


um broche de uma senhora.
Com um rubi para o colo,
de marfi, lavrado de mil lavores,
por cem cruzados.
Velho: Ei-los aí!
Isto, má hora, isto si são amores!
Vai-se, e o Velho torna a prosseguir a sua música e, acabada, torna a
Alcoviteira e diz:
Dei, má-hora, uma topada.
Trago as sapatas rompidas
destas vindas, destas idas,
e enfim não ganho nada.
Velho: Eis aqui
dez cruzados para ti.
Alcoviteira: Começo com boa estreia!
Cena 7: Um Alcaide e quatro Beleguins determinam a prisão de Branca Gil,
adiantando que ela será castigada publicamente. Ela tenta desafiá-los, mas em
vão. O Velho percebe que não tem mais chances de conquistar a Moça.
Vem um Alcaide com quatro Beleguins, e diz:
Dona, levantai-vos daí!
Alcoviteira: Que quereis vós assim?
Alcaide: À cadeia!
Velho: Senhores, homens de bem,
escutem vossas senhorias.
Alcaide: Deixai essas cortesias!
Alcoviteira: Não hei medo de ninguém, [Repare como Branca Gil
não teme os policiais.]
viste ora!
Alcaide: Levantai-vos daí, senhora,
   daí ao demo esse rezar!
   Quem vos fez tão rezadora?
Alcoviteira: Deixar-me ora, na má-hora,
aqui acabar.
Alcaide: Vinde da parte de el-Rei!
34
O velho da horta

Alcoviteira: Muita vida seja a sua.


Não me leveis pela rua;
deixar-me vós, que eu me irei.
Beleguins: Sus! Andar!
Alcoviteira: Onde me quereis levar,
ou quem me manda prender?
Nunca havedes de acabar
de me prender e soltar?
Não há poder!
Alcaide: Nada se pode fazer.
Alcoviteira: Está já a carocha aviada?!... [Carocha era a carapuça com que se
cobria a cabeça, vestimenta típica das
prostitutas. Repare a familiaridade
que Branca Gil tem com a situação de
condenada. Certamente não era a primeira
vez que passava por isso – nem seria a última.]
Três vezes fui já açoitada,
e, enfim, hei de viver.
Levam-na presa e fica o Velho dizendo:
Oh! Que má-hora!
Ah! Santa Maria! Senhora!
Já não posso livrar bem.
Cada passo se empiora!
Oh! Triste quem se namora
de alguém!

Cena 8: Por intermédio de uma outra Mocinha, o Velho fica sabendo que
a Moça estava se casando e que Branca Gil fora exilada.
Vem uma Mocinha à horta e diz:
Vedes aqui o dinheiro?
Manda-me cá minha tia,
que, assim como no outro dia,
lhe mandeis a couve e o cheiro.
Está pasmado?
Velho: Mas estou desatinado.
Mocinha: Estais doente, ou que haveis?
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35
Gil Vicente

Velho: Ai! Não sei! Desconsolado,


que nasci desventurado!
Mocinha: Não choreis!
     Mais mal fadada vai aquela!
Velho: Quem?
Mocinha: Branca Gil.
Velho: Como?
Mocinha: Com cem açoites no lombo,
uma carocha por capela, [Uma carapuça como grinalda]
e atenção!
Leva tão bom coração,
como se fosse em folia.
Que pancadas que lhe dão!
Velho: E o triste do pregão
porque dizia:
Moça:
“Por mui grande alcoviteira
e para sempre degredada”,
vai tão desavergonhada,
como ia a feiticeira.
E, quando estava,
uma moça que passava
na rua, para ir casar,
e a coitada que chegava
a folia começava
de cantar:
“ua moça tão fermosa [Uma moça tão bonita]
que vivia ali à Sé...”
Velho: Oh coitado! A minha é!
Mocinha: Agora, má hora é vossa!
Vossa é a treva.
Mas ela o noivo leva.
Vai tão leda, tão contente, [Leda = alegre]
uns cabelos como Eva;
por certo que não se atreva
toda a gente!
O Noivo, moço polido,

36
O velho da horta

não tirava os olhos dela,


e ela dele. Oh que estrela!
É ele um par bem escolhido!

Nesta última fala, o Velho, consciente do erro que cometeu, lamenta agora
sua condição: pobre, sem a Moça e sem o respeito da família. Neste triste encer-
ramento, Gil Vicente parece querer ensinar ao público que o amor é privilégio
dos jovens; que a primavera não pode florescer no outono, ou seja, a paixão amo-
rosa deve ser vivenciada na juventude e não na velhice, caso contrário o homem
passa a agir de forma tola e inconveniente. Eis o caráter moralista da peça, pois
Gil Vicente ridiculariza o que considera um vício (o amor na velhice por uma
jovem) para valorizar a virtude (um homem idoso deve valorizar e respeitar sua
mulher e seus filhos).
Velho: Ó roubado,
da vaidade enganado,
da vida e da fazenda!
Ó velho, siso enleado!
Quem te meteu desastrado
em tal contenda?
Se os jovens amores,
os mais têm fins desastrados,
que farão as cãs lançadas
no conto dos amadores?
Que sentias,
triste velho,
em fim dos dias?
Se a ti mesmo contemplaras,
souberas que não vias,
e acertaras.
Quero-me ir buscar a morte,
pois que tanto mal busquei.
Quatro filhas que criei
eu as pus em pobre sorte.
Vou morrer.
Elas hão de padecer,
porque não lhes deixo nada;
de quanta riqueza e haver
fui sem razão despender,
mal gastada.
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Gil Vicente

5. Exercícios
Leia os diálogos abaixo da peça O velho da horta,
de Gil Vicente.
Mocinha – Estás doente, ou que haveis?
Velho – Ai! Não sei, Desconsolado,
Que nasci desventurado!
Mocinha – Não choreis!
Mais mal falada vai aquela!
Velho – Quem?
Mocinha – Branca Gil.
Velho – Como?
Mocinha – Com cent’açoutes no lombo,
 E uma carocha por capela.*
 E ter mão;
 Leva tão bom coração,**
 Como se fosse em folia.
 Ó que grandes que lhos dão!***

* Carocha – cobertura para a cabeça, própria das alcoviteiras; por capela – por grinalda.
** Caminha tão corajosa.
*** Ó que grandes açoites que lhes dão!
1.
a) A qual desventura refere-se o Velho neste diálogo com a Mocinha?
b) A que se deve o castigo imposto a Branca Gil?
c) Diante do castigo, Branca Gil adota uma atitude paradoxal. Por quê?

Texto para a questão 2


................................................................
Branca Gil: Dizede-me: quem é ela?
Velho: Vive junto com a Sé.
Alcoviteira: Já! Já! Já! Bem sei quem é!
É bonita como estrela,
uma rosinha de abril,
uma frescura de maio,
tão manhosa, tão sutil!...
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O velho da horta

Velho: Acudi-me Branca Gil,


que desmaio.
2.
a) Por que o Velho desmaia? E por que tal cena é cômica?
b) De forma astuciosa, a fala de Branca Gil realça os desejos amorosos do Velho.
Em que consiste a astúcia da Alcoviteira?

Texto para as questões 03 e 04


...................................................
Velho: Se os jovens amores,
os mais têm fins desastrados,
que farão as cãs lançadas
no conto dos amadores?

3.
No fragmento acima, transcrito da última fala do Velho, podemos concluir:
a) Os amores da juventude sempre acabam bem.
b) Poucos amores na juventude terminam mal.
c) Poucos amores na juventude terminam bem.
d) Os idosos têm mais sorte no amor.
e) O amor na velhice é um mal necessário.
4.
No texto transcrito, a palavra que permite identificar uma pessoa mais idosa é:
a) amores. d) cãs.
b) fins. e) amadores.
c) desastrados.
5.
Sobre o teatro de Gil Vicente, é correto afirmar que:
a) não tem como objetivo a moralização dos costumes.
b) foi todo escrito em português.
c) segue fielmente o modelo do teatro clássico grego.
d) apresenta um rico painel da sociedade portuguesa do início do século XVI.
e) apresenta personagens e situações fora do contexto social de sua época.
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Gil Vicente

GABARITO
1.
a) O Velho refere-se à frustração por não ter tinuará a exercer a mesma função. O castigo,
realizado satisfatoriamente os seus desejos então, em certo sentido, perde a razão, pois
pela Moça. não significa a correção da personagem.
b) Literalmente, “alcoviteira” é a proprietária 2.
de um prostíbulo. Na peça, Branca Gil é a) O Velho desmaia porque entrevê na fala
encarregada (mediante pagamento) de arru- de Branca Gil a possibilidade de realização
mar o encontro do Velho com a Moça. Abu- do seu desejo pela Moça. A cena torna-se
sando da ingenuidade do arrebatamento cômica porque o Velho sucumbe ante a ima-
amoroso do Velho, a alcoviteira vislumbra ginação de ter consigo a Moça, o que nos faz
nisso a possibilidade de ganhar dinheiro imaginar o que poderia suceder-lhe se ele
com da situação. Como ela tira proveito da realmente conseguisse realizar seu desejo.
boa-fé dos outros, é (socialmente) castigada b) A astúcia consiste em realçar as qualidades
pelos policiais. da Moça, comparando-a a uma “estrela”, a
c) A atitude de Branca Gil torna-se paradoxal uma “rosinha de abril”, a “uma frescurinha
na medida em que é açoitada por ser alcovi- de maio”. Tais comparações evidenciam a
teira, mas se mantém impassível e até indi- juventude e o frescor da beleza da Moça e
ferente a isso, “pois caminha tão corajosa”. induzem o Velho a imaginar as delícias do
Esse tipo de comportamento fica evidente prazer amoroso com tal criatura.
na peça, pois, após o castigo, a mulher con- 3. C 4. D 5. D

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