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Humanismo
Contexto O Humanismo foi um movimento artístico e
Os agentes do
discurso
e o público
Quando o Humanismo chega a Portugal, a produção
poética passa por uma crise. Entre 1350 e 1450 não se tem
notícia da circulação de textos poéticos no país. Nesse
período Portugal viveu o apogeu da crônica
historiográfica e da prosa doutrinária.
O ressurgimento da poesia, então separada da música,
Portugal
Trilogia das
barcas
[...]
Vem um Corregedor, carregado de feitos*, e, chegando à barca do Inferno, com sua vara na mão, diz:
CORREGEDOR Hou da barca!
DIABO Que quereis?
CORREGEDOR Está aqui o senhor juiz!
DIABO Oh amador de perdiz,
quantos feitos que trazeis!
CORREGEDOR No meu ar conhecereis Este texto é um trecho do Auto da barca do
que sem gostos trago cá. inferno, de Gil Vicente.
DIABO Como o direito vai lá? Na cena, há duas barcas, uma comandada pelo
CORREGEDOR Nestes feitos o vereis. Diabo e outra por um Anjo, nas quais serão
DIABO Ora, pois, entrai, veremos conduzidos ao destino final aqueles que
que diz aí nesse papel... acabaram de deixar a vida na Terra. No trecho,
CORREGEDOR E aonde vai o batel? o Corregedor e o Procurador chegam à barca
DIABO No Inferno vos poremos. do inferno.
CORREGEDOR Como? À terra dos demos
há de ir um corregedor?
DIABO Santo descorregedor,
embarcai, e remaremos!
CORREGEDOR Hou! Videtis qui petatis
* Vede o que reclamais?
Super jure majestatis
Acaso vosso poder está acima
tem vosso mando vigor?*
do direito de majestade?
DIABO Quando éreis ouvidor
Nonne accepistis rapina? *
*Acaso não recebestes propina?
Pois ireis pela bolina
onde nossa mercê for*...
• Senhor, lembra-te de mim!
Oh! Que isca esse papel
para um fogo que eu sei!
• Já não é tempo, Bacharel!/Embarcai
CORREGEDOR Domine, memento mei! *
neste batel/
DIABO Non est tempus, Bacharel!
Imbarquemini in batel
Porque sentenciastes com malícia.
quia judicastis malitia.*
CORREGEDOR Semper ego justitia
fecit, e bem por nível.*
* Eu sempre fiz justiça com equidade.
DIABO E as peitas* dos judeus
• presentes oferecidos como suborno
que a vossa mulher levava?
CORREGEDOR Isso eu não o tomava,
* Não são pecados meus,
eram lá percalços seus.
minha mulher é que pecava.
Não são peccatus meus,
* para onde determinamos
peccavit uxore mea. *
DIABO Et vobis quoque cum ea,
não temuisistis Deus.* E tu pecavas com ela, e não temia a Deus.
A largo modo acquiristis * Enriqueceste a valer à custa do
sanguinis laboratorum, sangue dos trabalhadores, ignorantes
ignorantis peccatorum. pecadores, sem atendê-los sequer.
Ut quid eos non audistis?* * Vós, Arrais, acaso ouvistes que dádivas
CORREGEDOR Vós, Arrais, nonne legistis removem montanhas? Não se aplica a
que dar quebra os penedos? lei quando se ganha algo.
Os direitos estão quedos,
si aliquid tradidistis... *
DIABO Ora, entrai nos negros fados!
Ireis ao lago dos cães
e vereis os escrivães
como estão tão prosperados.
[...]
Estando o Corregedor nesta prática com o Arrais infernal, chegou um Procurador
carregado de livros, e diz o Corregedor ao Procurador:
CORREGEDOR Oh Senhor Procurador!
PROCURADOR Beijo-vo-las mãos, Juiz!
Que diz esse Arrais? Que diz?
DIABO Que sereis bom remador.
Entrai, bacharel doutor,
e ireis dando na bomba*. Bomba que elimina água do interior do barco.
PROCURADOR E este barqueiro zomba?
Brincais de zombador?
Essa gente que aí está
para onde a levais?
DIABO Para as penas infernais.
PROCURADOR Dix! Não vou eu para lá!
Outro navio está cá
muito melhor assombrado.
DIABO Ora estás bem arrumado!
Entra, infeliz de hora-má!
CORREGEDOR Confessaste-vos, doutor?
PROCURADOR Bacharel sou... Dou-me ao demo!
Não cuidei que era extremo,
nem de morte minha dor.
E vós, senhor Corregedor?
CORREGEDOR Eu muito bem me confessei,
mas tudo quanto roubei
encobri ao confessor...
PROCURADOR Porque, se o não tornais*,
não vos querem absolver,
• Restituís
e é muito mau devolver
depois que o apanhais.
DIABO Pois porque não embarcais?
CORREGEDOR Quia esperamus in Deo.* * Porque esperamos em Deus.
DIABO Imbarquemini in barco meo... * * Embarcai em meu barco...
Para que sperastis* mais? * esperais
3. No Auto da barca do inferno, as almas passam por um julgamento antes de embarcarem em direção ao
seu destino final. Nesse julgamento, o Diabo desempenha, simultaneamente, as funções de acusador e de
juiz, enquanto as almas defendem a própria causa.
a. O Diabo faz três acusações ao Corregedor. Quais são elas?
b. Na sua opinião, a argumentação que o Corregedor utiliza para se defender confirma ou desmente as
acusações do Diabo? Justifique sua resposta.
c. Diante dos argumentos do Corregedor, qual é o veredicto do Diabo?
4. O julgamento das almas, as condenações e o ato da confissão são elementos característicos da concepção
de mundo cristã e da religiosidade dominantes na cultura medieval.
a. Nesse contexto, qual é a provável consequência de o Procurador não ter se confessado antes de morrer?
b. O Corregedor, ao confessar-se antes de morrer, não revelou o que roubara durante a vida. O que o levou
a proceder assim?
c. O que esse procedimento do Corregedor revela a respeito do caráter dele?
5. O teatro de Gil Vicente se expressa em linguagem poética. É composto em versos, nos quais rimas,
ironias, eufemismos, antíteses e neologismos (criação de uma expressão ou de uma palavra nova)
constituem recursos para a construção de uma sátira mordaz, focada na crítica aos vícios humanos.
a. No trecho lido, o Diabo se refere ironicamente ao corregedor como “amador de perdiz”. Por que ele usa
essa expressão?
b. O Diabo chama o Corregedor de “descorregedor”. Qual é o significado desse neologismo na cena?
c. Eufemismo é o emprego de uma palavra ou de uma expressão no lugar de outra que é considerada
desagradável, com o fim de causar menos impacto, como, por exemplo, o uso de descansar no lugar de
morrer. No trecho lido, que eufemismo o Diabo emprega para se referir ao inferno?
d. O teatro de Gil Vicente faz uso das métricas mais utilizadas na poesia medieval.
Faça a escansão de alguns versos do trecho lido e identifique o tipo de verso empregado pelo dramaturgo
nesse auto.
6. O Auto da barca do inferno é um auto de moralidade, ou seja, é uma peça em que a dramatização visa
ensinar preceitos morais por meio da crítica aos vícios, hábitos e costumes.
a. Qual é a crítica feita por Gil Vicente na cena lida?
b. Na sua opinião, os problemas denunciados e criticados na cena se limitam à sociedade portuguesa do
século XVI ou ainda ocorrem na atualidade? Justifique sua resposta.