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Siqueira, Ana Marcia Alves .

Relações de Poder nos Livros de


Linhagens Portugueses. In: Zierer, Adriana; Feitosa, Márcia Manir
Miguel. (Org.). Literatura e História Antiga e Medieval. 1ed.São Luís:
EDUFMA, 2011, v. 1, p. 89-104.

RELAÇÕES DE PODER NOS LIVROS DE LINHAGENS


PORTUGUESES
Ana Marcia Alves Siqueira

A partir da afirmação de Bloch (1982, p.125) de que “em toda a


literatura, uma sociedade contempla sempre sua própria imagem”,
discutiremos o florescimento dos Livros de Linhagens1 portugueses,
durante os séculos XIII e XIV, ao mesmo tempo em que se verifica a
decadência do gênero em outros países europeus.
A riqueza das fontes genealógicas medievais portuguesas e sua
singularidade no panorama da literatura congênere européia foram
analisadas por Mattoso (1981) considerando-se a estrutura do
parentesco entre a nobreza e a articulação desta aos fatos da história
política do reino. O historiador coloca como cerne da questão a tensão
entre a afirmação do poder da Coroa portuguesa e as prerrogativas do
poder senhorial, chamando a atenção para diversas conjunturas em que
esta oposição se fez sentir de forma aberta ou latente.
Nessa perspectiva, buscaremos delinear como esses nobiliários,
constituídos como importantes espaços para a projeção social, serviram
à luta pela apropriação do poder e do prestígio, favorecendo,
consequentemente, a propagação do gênero e a mescla deste com
narrativas de cunho literário.


Professora adjunta do Curso de de Letras da Universidade Federal do Ceará.
As primeiras genealogias de que se têm notícias são de origem
celta ou germânica, pois são raras ou inexistentes em países em que
persistiram tradições romanas. Estes textos mais antigos acentuam
miticamente o caráter sagrado das famílias reais ligando-as pelo sangue
aos deuses germânicos ou aos patriarcas do Velho Testamento.
Provavelmente, derivam de um gênero oral de cultivo da memória dos
antepassados familiares.
Após o século XI, no contexto europeu, surgem genealogias de
casas principescas, que vão se formando de acordo com o modelo
régio. Esta imitação e busca de prestígio por meio de correlação
hereditária com as linhagens reais entra em desuso no fim do século
XII, por conta da rivalidade entre algumas casas nobres e o poder real.
Nos séculos XIII e XIV, quando nobres com suficiente poder político
passam a publicar suas próprias genealogias, o âmbito destas se alarga
e se multiplicam as referências a esposas, filhos, filhas e até parentes
colaterais.
É nesse período que ocorre a contaminação entre genealogias e
crônicas. Entretanto, estas fontes genealógicas européias constituem
textos curtos e objetivos, de caráter estereotipado, vistos, por isso,
como um “gênero menor” (GENICOT, 1998). Em contraposição, as
genealogias portuguesas – ou ibéricas – compostas entre os séculos
XIII e XIV, conforme se afirmou, constituem um caso singular por
apresentarem diversificada riqueza de informação, fruto da mescla
entre a modalidade genealógica propriamente dita e a presença de
narrativas de conteúdo e teores diversos usadas em diferentes
estratégias de manipulação da memória linhagística.

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Por outro lado, em comum com as demais modalidades
genealógicas européias, os Livros de linhagens portugueses
desempenham um papel de primeira ordem na preservação da memória
familiar, notadamente no seio da nobreza senhorial. Organizar uma lista
de antepassados, de familiares e contraparentes, de relações entre um
fidalgo e os heróis ou traidores familiares que o precederam, era inseri-
lo em um vasto sistema de valores e contravalores. Através dos
nobiliários, os diversos indivíduos pertencentes à nobreza viam-se
oportunamente inseridos em uma rede de alianças e solidariedades, e ao
mesmo tempo em um sistema de rivalidades que contrapunha
indivíduos e famílias através de ódios e antipatias ancestrais herdadas
tão concretamente como propriedades ou brasões.
As linhagens, e através delas as genealogias que as registravam
na escrita, conferiam aos membros da nobreza um traço fundamental de
sua ‘identidade’, explicitando-lhe seus espaços de inclusão ou de
exclusão social, as suas conexões com o mundo social e histórico, e,
principalmente, a sua inserção em uma complexa rede de
entrecruzamentos familiares e linhagísticos.
A análise dos prólogos dos três nobiliários portugueses revela que
o objetivo de seus autores ia além da enumeração genealógica. Cada
um, em seu contexto, irá refletir tanto as questões políticas presentes no
momento de composição, como também estratégias de projeção de
algumas linhagens, dentro da luta de representações travada entre as
diferentes forças sociais da sociedade medieval portuguesa.
Do chamado Livro Velho de Linhagens, composto provavelmente
entre 1270 e 1290, apenas restou uma pequena parte: cerca de um terço
da versão original completa. Esta obra veio a lume em uma conjuntura

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de ofensiva anti-senhorial por parte de D. Dinis, a qual suscitou reações
e protestos da nobreza.
Neste quadro, a elaboração do Livro Velho procura fixar a
memória e as relações de parentesco das linhagens com existência
secular, anterior à formação do Reino português e da casa real: Sousa,
Maia, Bragança, Baião e Riba Douro.
O propósito da obra é identificar as cinco linhagens, indicadas
como as principais responsáveis pela conquista do reino, que, segundo
o prólogo, “andaram a la guera a filhar o reino de Portugal” e tem,
portanto, direito a “armar e criar”, isto é, a ter clientela vassálica e força
armada capaz de exercer a soberania sobre este território
(HERCULANO, 1865, p.143).
Ao enumerar as gerações das cinco famílias às quais se atribuía a
independência do Reino e sublinhar o papel fundador destas, bem como
os laços de solidariedade familiar entre os seus membros, o Livro Velho
de Linhagens incentiva a oposição às iniciativas anti-senhorias da
Coroa portuguesa. Apoiando-se no direito de conquista, a obra atribui
às famílias uma situação social privilegiada e, por conseguinte, a toda a
linhagem também relacionada em seu texto, destacando, principalmente
que os “filhos – d´algo” possuíam prerrogativas próprias (Cf. KRUSS,
1994). Ou seja, a proposição da obra, assim como a organização da
matéria genealógica desta, constrói uma ideologia legitimatória das
linhagens senhoriais em oposição à realeza, que praticamente não é
citada.
A partir da comparação com o Liber Regum, genealogia redigida
em Narrava no final do século XII, Miranda (2008) demonstra como o
Livro Velho de Linhagens representa um discurso ideológico que visa à

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representação do passado com o propósito de integrar as mais
importantes linhagens portuguesas em um contexto ibérico de
reconquista, e não apenas regional ou nacional. Constrói, portanto, uma
“reclamação de legitimidade que tem na conquista da terra o seu maior
fundamento” (MIRANDA, 2008).
Da mesma forma, o Livro do Deão, concluído por volta de 1340,
possui um prólogo, no qual os objetivos de sua composição são
enunciados. Embora não seja tão sintético na formulação da mesma
idéia defendida pelo Livro Velho, além dos propósitos claramente
genealógicos, observa-se o interesse de manipulação de poderio e
prestígio: assinalar as mais importantes linhagens, para conhecimento
de reis e demais poderosos.
Ao fazer remontar as origens da nobreza de Portugal a
personalidades que haviam vivido no reinado de Afonso VI de Leão e
Castela (1071-1109), a obra também sublinha a anterioridade destas
linhagens; portanto, a sua primazia face à Coroa portuguesa (Cf.
KRUSS, 1994).
Por outro lado, o prólogo também destaca a importância das
informações acerca dos laços familiares existentes entre os membros da
nobreza para que se evitassem casamentos entre parentes, já que a
Igreja proibia o matrimônio até ao quarto grau de parentesco.
Finalmente, as linhagens nobres deveriam saber quais as igrejas e
mosteiros a que se encontravam ligadas para poderem reclamar os
direitos e os bens que lhes pertenciam.
Oferece mais elementos para o exame da questão o Livro de
Linhagens do Conde D. Pedro, assim designado porque seu editor foi
Pedro Afonso, terceiro conde de Barcelos e filho bastardo do rei Dinis.

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Figura de grande destaque da cultura erudita do seu tempo, o conde D.
Pedro é também autor da Crônica Geral de Espanha, de 1344, além de
poeta e compilador de poesias trovadorescas.
O Livro de Linhagens, escrito entre 1340 e 1344, apresenta
semelhanças de conteúdo e de estrutura com o Livro do Deão, podendo
até mesmo ser uma versão mais desenvolvida deste. Entretanto,
diferencia-se dos dois anteriores, primeiro, por não se limitar à nobreza
portuguesa, pretendendo tratar, de acordo com o prólogo, os “nobres
fidalgos de Espanha” (HERCULANO, 1865, p. 258); segundo, por
estabelecer uma clara distinção entre as genealogias reais e as de casas
nobres. Fato significativo por delinear uma reação estratégica da
realeza, a partir da iniciativa de um filho de rei.
O prólogo tem início com a defesa da necessidade de se
reforçarem os laços de solidariedade entre todos os nobres da Espanha:
a partir da união em torno da coroa os nobres deveriam se unir contra
os inimigos comuns (mouros), pois quem assim não procedia, não
cumpria a ordem cósmica criada por Deus:
E vendo as escrituras com grande estudo e em como
falavam de outros grandes feitos, compuge este livro por
ganhar o seu amor e por meter amor e amizade antre os
nobres fidalgos da Espanha (...) por serem de um coraçom
de haverem de seus enmigos que som em estruimento da fe
de Jesu Cristo, ca, pois eles vem de um linhagem e sejam
no quarto ou no quinto grau ou dali acima, nom devem
poer deferença antre si. (HERCULANO, 1865, p.258)

Em seguida, o Conde D. Pedro enumera um conjunto de razões


de caráter genealógico que dirigem seu trabalho, começando pela
necessidade de os membros da aristocracia conhecerem as linhagens –
inclusive ramos colaterais – das quais descendem, tanto para a

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realização de casamentos de acordo com as normas da Igreja, quanto
para que os nobres saibam de quais mosteiros são naturais e
benfeitores. Enuncia ainda a necessidade de identificar fidalgos e ações
heróicas, realizadas ao longo da Reconquista cristã da Península
Ibérica, para que os reis reconheçam, com merecimento, os
descendentes daqueles que conquistaram a terra aos mouros.
Por fim, através de uma longa enumeração, estabelece uma
relação entre a casa real portuguesa e as linhagens dos reis do mundo
antigo e do medieval, com o intuito de destacar as diferenças sociais,
entre nobreza e casa real:
E por esta materia ser mais crara e os nobres fidalgos
saberem por grã parte das linhagens dos reis e emperadores
e dos feitos em breve que forom e passarom nas outras
terras do começo do mundo, u os seus avos forom a
demandar suas aventuiras por que eles ganharom nome e
os que dele decenderom, por algumas nobrezas que ali
fezerom, falaremos primeiro do linhagem dos homens e
dos reis de Jerusalem, des Adão (...) e das conquistas que
fezerom os reis de Síria e el-rei Farão (...) e como d'i levou
Vaspasiano pera Roma os novecentos mil judeus; e dos
Godos como entrarom a Espanha e o tempo que em ela
viverom, (...) E de como destes juízes decenderom os reis
de Castela, de uma parte, e da outra, os reis de Navarra.
Des i falaremos dos reis de Navarra e dos de Aragom e dos
de França e donde decenderom os reis de Portugal.
(HERCULANO, 1865, p.258)

É assim que, além das referências aos reis dos vários reinos da
Península Ibérica, surgem igualmente famílias nobres de Castela, de
Leão e da Galiza, numa perspectiva que aponta, segundo Kruss (1994),
para uma concepção unitária da nobreza hispânica.
Dessa forma, o prólogo, após relacionar a realeza portuguesa aos
reis da antiguidade cristã, justificando assim a superioridade

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inquestionável da casa real, utiliza a valorização das famílias nobres –
recurso já usado pelas linhagens nobres nas genealogias anteriores –
para realização de seu propósito maior, fartamente manifestado ao
longo da obra, de reforçar os laços de solidariedade entre a nobreza
hispânica. Preocupação esta desencadeada pela necessidade de se trazer
a ordem, a unidade e a regeneração a uma Espanha devastada pelas
guerras da Reconquista.
Cada um dos prólogos destes nobiliários busca despertar a
solidariedade entre os membros da nobreza, já que o rei também é um
nobre. Todavia, dependendo do patrocinador ou organizador da obra,
esse argumento é usado em nome de interesses próprios à nobreza ou à
casa real.
Por meio dos Livros de Linhagens, cujas narrativas são anônimas,
o compiladoreditor controla a inclusão ou exclusão das famílias
nobres, ou membros destas, que terão lugar na obra. Certamente, para
um fidalgo ávido de prestígio social, ser ou não ignorado, ou não ter a
sua linhagem mencionada nas páginas de uma genealogia, era uma
grande ofensa, somente superada pela situação vergonhosa de ser
lembrado como traidor ou covarde, como o marido traído que não se
vinga da desonra, ou como o indivíduo ambicioso que engana a sua
própria parentela.
Decidir a inserção e a qualidade de inserção das linhagens e seus
membros aos nobiliários constituíam a prerrogativa de poder definir o
perfil da nobreza, sua hierarquia e prestígio ou de, pelo menos,
interferir ativamente nesse processo.
Em Portugal, as fontes genealógicas acompanham e comentam os
diversos conflitos políticos e territoriais que caracterizaram o longo

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período de afirmação da primeira dinastia portuguesa, principalmente
nos reinados de Sancho II, Afonso III, D. Dinis e Afonso IV. São
conflitos senhoriais que envolvem todas as camadas sociais (realeza,
nobreza, clero, camponeses e população urbana) e se justificam no fato
de a aristocracia sentir dificuldade em se adaptar ao novo modelo
econômico baseado nas trocas, na moeda e no lucro, e nas tensas
relações com o poder régio, devido ao processo centralizador.
Acrescentam-se ainda as complicações e disputas causadas pela
ascensão de uma nova nobreza ligada à Reconquista, às cidades e às
ordens militares.
Foi, portanto, nesse período conturbado, em que parecia ser
iminente a substituição dos antigos valores, que surgem e se proliferam
os nobiliários. Visto que a narrativa genealógica torna-se crucial não
apenas para identificar cada grupo de parentesco, mas também para lhe
conferir um prestígio específico.
Compilam-se, então, as antigas genealogias das famílias que
teriam lutado pela conquista do reino de Portugal. Através delas, a
nobreza ascendente procura encontrar suas origens. Julga-se herdeira
das antigas famílias consideradas anteriores à própria fundação do reino
de Portugal, isto é, mais antigas que a família régia. Assim, os conflitos
reais prolongam-se em conflitos simbólicos ligados às várias tentativas
de apropriação política do passado de diferentes formas.
Enquanto o Livro Velho de Linhagens e o Livro do Deão revelam
uma clara relação com a nobreza e o interesse em defender suas
prerrogativas, o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, posterior aos
outros dois, revela a sobreposição de interesses: por um lado, afirma a
supremacia das casas reais (fundamentada na continuidade de casas

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reais antigas), por outro defende e a necessidade de união entre as casas
nobres em torno do rei, destacando também a necessidade de o rei
reconhecer os privilégios de seus vassalos.
Por isso, este nobiliário apresenta narrativas heróicas e edificantes
sobre a dinastia de Borgonha e também faz o aproveitamento da
tradição já existente sobre diversas linhagens constantes das
genealogias anteriores. Tradição que tanto pode ter sido criada por
patrocínio da própria linhagem como pode ter sido manipulada por
encomenda de linhagens rivais.
A propósito, as aristocracias nobiliárquicas passaram a
desenvolver e patrocinar iniciativas que exaltassem a linhagem,
resultando, conseqüentemente, em uma fixação e até mesmo criação de
um passado familiar repleto de feitos e heróis. Em decorrência desse
processo, pelo mérito e fama conseguidos, os membros destas famílias
acabavam por se igualar ao poder ou prestígio de reis, príncipes e
nobres rivais. Isso porque o prestígio não se ligava apenas aos sinais
exteriores de poder (riqueza, vestuário, cargos), mas também a aspectos
simbólicos relacionados à importância dos seus ascendentes.
Outro fator concorrente para essa sobreposição de interesses
observada diz respeito às reformulações, já que este Livro de Linhagens
sofreu, ao longo do século XIV, não somente sucessivos acréscimos,
mas complexas refundições (Cf. SARAIVA, 1971 e MATTOSO,
1999), dentre as quais se destaca aquela centrada na linhagem
MaiaPereira, registrada no título XXI.
As interferências nos nobiliários podiam se apresentar de modos
diversificados, constituindo desde comentários sobre o valor ou a falta

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de valor deste ou daquele nobre, até trechos mais longos, chegando
mesmo a narrativas de extensões consideráveis.
Conforme dissemos, estas narrativas estão presentes nas três
genealogias portuguesas, delineando a prática corrente de se alternar o
‘registro familiar restrito’ com relatos de menor ou maior dimensão e
de naturezas diversas, segundo os interesses do compiladoreditor. Há
ainda casos em que um refundidor posterior interpola comentários ou
novos segmentos narrativos em uma narrativa já estabelecida no
documento original. Constituindo-se, assim, o próprio texto linhagístico
um espaço para múltiplos enfrentamentos sociais e tensões implícitas.
A divulgação dessas tradições linhagísticas realizou-se pela
mobilização de clérigos, trovadores e jograis que fixaram por escrito,
ou criaram integralmente, textos fundadores de origens familiares dessa
nobreza, localizando o tempo mítico de sua fundação tão longínquo
quanto possível e tão insólito, fantástico e valoroso que causasse
admiração, respeito, temor e ficasse na lembrança. Segundo Kruss
(1985), esse processo denota o:
desejo de uma ancestralidade que justifique direitos e
privilégios contemporâneos e o alardear do poder dum
grupo familiar por cujo sangue perpassam os carismas
definidores do estado nobre. E que elucide, por um jogo de
vaticínios e profecias premonitórios, o êxito e decadência
da família, salvaguardando uma memória que poderá ser
anexada por linhagens aparentadas, iludindo a banalidade
explicativa e aviltante dos factores conjunturais: guerras,
rapinas, pilhagens, negócio, sorte, recompensas régias,
traições, lutas privadas, ausência de varonia, esgotamento
biológico. (Kruss, 1985, p. 6)

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A tarefa era realizada com interesse pelos executantes
mobilizados por diferentes motivos: os clérigos, normalmente,
pertenciam a instituições religiosas protegidas pela linhagem. Dessa
forma, retribuíam a proteção e garantiam mais doações. Os trovadores,
não raro, eram de ramos secundários e empobrecidos da família,
lucravam, pois, de várias formas: louvavam o passado da linhagem que
lhes era comum, solicitavam, com isso, favores do chefe da família e
ainda cultivavam a nostalgia de um passado melhor e mais poderoso
que sua atual condição. Os jograis, artistas errantes, que se colocavam a
serviço dos poderosos, conseguiam benefícios e recompensas, além dos
aplausos em suas apresentações.
De modo geral, a utilização desse processo se realizou de duas
formas: algumas famílias situavam sua origem num parentesco, real ou
fictício, com membros das casas imperiais ou régias do Ocidente,
cuidando de projetar o seu início em dinastias extintas para assumir o
respectivo passado ou, em tempos anteriores à fundação das linhagens
reinantes, com o objetivo de se sobreporem a elas em antiguidade e
poder, compensando assim a situação coetânea.
Uma das narrativas que grande influência exercerá sobre outras
genealogias – a Lenda de Gaia – atribui a origem da linhagem dos
senhores da Maia a Alboazar Ramirez, filho da união entre o rei
Ramiro de Leão e a irmã do rei mouro de Gaia: Alboazar, que havia
raptado a esposa legítima de Ramiro, provocando, assim, o rapto de sua
irmã como vingança:
Este he o linhagem dos mui nobres e muy honrados ricos-
homens, e filhos-dalgo da Maya, em como elles vem
direitamente do muito alto e mui nobre rey D. Ramiro; e

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este rey D. Ramiro seve casado com huma rainha, e fege
nella rey D. Ordonho; e pois lha filhou rey Abencadão que
era mouro, e foilha filhar em Salvaterra (...) e entom
baptisou Ortiga, e casou com ella, e louvoulho toda sa
corte muito, e poslhe nome D. Aldara, e fege nella hum
filho, e quando naceo poslhe o padre o nome Albozar, e
disse entom o padre, que lhe punha este nome porque seria
padre e senhor de muito boa fidalguia (...) (HERCULANO,
1865, p.180).
Embora realmente tenha havido o rei Ramiro I (770-850) e o rei
Ramiro II (900-965), não é possível afirmar que a lenda tenha respaldo
histórico. A narrativa comporta, portanto, dois níveis: um que
corresponde aos indivíduos cuja existência histórica é comprovada por
fontes documentais (a extensa maioria dos nobres listados nas
genealogias), e outro, restrito aos níveis mais recuados das linhagens,
resultantes da combinação de elementos reais com personalidades e
circunstâncias somente testemunhadas pela própria genealogia ou
originadas em fontes literárias.
A partir dessa mescla com elementos míticos e literários, estes
relatos genealógico-narrativos tornam-se cada vez mais extensos e ricos
em significados simbólicos, porque a estratégia de lendarização, nesse
contexto, reflete o interesse da nobreza que irá reproduzir o processo
em diferentes obras2.
A segunda forma de utilização desse processo ocorre quando a
linhagem se desvincula totalmente das tradições históricas ocidentais.
Renuncia, assim, ao exame erudito das ascendências remotas,
recorrendo a um processo inverso ao da mitificação dos heróis

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históricos através da historicização de figuras míticas recolhidas em
lendas e contos de origem folclórica adaptados às suas novas funções.
Enquadram-se nessa segunda forma uma série de relatos
genealógicos cujo esquema narrativo foi trabalhado, primeiramente, por
Dumézil, a respeito de genealogias francesas, denominando-as “contos
melusianos” devido ao nome da personagem mítica: Melusine.
Kruss (1985, p.7) resume estas narrativas da seguinte forma:
um ser sobrenatural une-se a um mortal e concede-lhe o
seu amor em troca da promessa do respeito a um interdito,
levando a respectiva transgressão ao desaparecimento do
ser superior. Amplamente atestados na cultura folclórica
universal, tais contos aparecem registados na literatura do
Ocidente medieval nos séculos XII e XIII, mais
precisamente entre 1170-1210, surgindo em obras
produzidas por autores associados à corte plantageneta.
A narrativa de D. Diego Lopes e a Dama pé de cabra, constante
no Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, é exemplo desse
procedimento que narra a ascensão e a riqueza da família Lopes de
Haro:
Este dom Diego Lopez era muy boo monteyro, e
estando huum dia em sa armada e atemdemdo quamdo
verria o porco ouuyo cantar muyta alta voz huuma molher
em çima de huuma pena: e el foy pera la e vioa seer muy
fermosa e muy bem vistida, e namorousse logo della muy
fortemente e preguntoulhe quem era: e ella lhe disse que
era huuma molher de muito alto linhagem, e ell lhe disse
que pois era molher d'alto linhagem que casaria com ella se
ella quisesse, ca elle era senhor naquella terra toda: e ella
lhe disse que o faria se lhe prometesse que numca sse
santificasse, e elle lho outorgou, e ella foisse logo com
elle. E esta dona era muy fermosa e muy bem feita em todo
seu corpo saluamdo que auia huum pee forcado como pee
de cabra. E viuerom gram tempo e ouueram dous filhos, e

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huum ouue nome Enheguez Guerra, e a outra foy molher e
ouue nome dona__. (HERCULANO, 1865, p. 258)

Assim, quando um dia ao jantar o nobre se espanta com uma luta


entre cães, esquece-se da promessa e se benze, provocando o
desaparecimento:
E dom Diego Lopes quamdo esto uyo teueo por millagre e
synousse e disse «samta Maria vall, quem vio numca tall
cousa!» E ssa molher quamdo o vyo assy sinar lamçou
maão na filha e no filho, e dom Diego Lopez trauou do
filho e nom lho quis leixar filhar: e ella rrecudio com a
filha por huuma freesta do paaço e foysse pera as
montanhas em guisa que a nom virom mais nem a filha.
(HERCULANO, 1865, p. 258)
Como normalmente esses seres sobrenaturais representavam, na
concepção medieval, uma ambigüidade em relação à religião cristã,
essa aliança também servia para justificar o desaparecimento ou a
decadência da família: no caso de D. Diego, ele foi preso pelos mouros
como um castigo de Deus por ter feito aliança com uma “mulher
maligna”.
Entretanto, o filho Enheguez Guerra resolve procurar a mãe
misteriosa para ajudá-lo a libertar o pai com seus poderes. A terrível
Dama o presenteia com um cavalo fantástico que lhe garantirá a vitória
em todas as batalhas, justificando assim a importância da linhagem:
... e ella lhe disse «filho Enheguez Guerra, vem a mym ca
bem sey eu ao que ueens:» e ell foy pera ella e ella lhe
disse «veens a preguntar como tiraras teu padre da
prisom.» Emtom chamou huum cauallo que amdaua solto
pello momte que avia nome Pardallo e chamouo per seu
nome: e ella meteo huum freo ao cauallo que tiinha, e
disselhe que nom fezesse força pollo dessellar nem pollo
desemfrear nem por lhe dar de comer nem de beuer nem de
ferrar: e disselhe que este cauallo lhe duraria em toda sa
vida, e que nunca emtraria em lide que nom vemçesse
delle. (...) E assi foy. (HERCULANO, 1865, p.259)

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A interessante narrativa exemplifica o motivo da singularidade
dos Livros de Linhagens portugueses em relação aos congêneres de
outros países europeus. No contexto ibérico, os textos genealógicos
trazem em seu bojo estratégias diversas utilizadas como meio de
apropriação do poder e do prestígio. Adquirem um significado especial,
por isso, em vez do processo de decadência, verifica-se o seu
desenvolvimento.
Todavia, mesclam-se a estes procedimentos outros aspectos que
contribuíram para o enriquecimento literário dessas fontes em Portugal.
Embora o objetivo primeiro desses nobiliários seja a genealogia das
casas nobres, na sua configuração atual, constituem compilações de
textos de origens variadas: a criação jogralesca, a épica dos cantares, os
ensaios dos primeiros romances; todo o universo da literatura oral ou
escrita que floresceu desde o início do século XIII nas cortes nobres e
reais deixou ali seus vestígios, em especial no Livro de Linhagens do
Conde D. Pedro.
Ainda não se pode apresentar hipóteses seguras a respeito do
processo de criação e transmissão desse material literário, entretanto, a
constatação de que as narrativas de fundo mítico presentes no
Nobiliário do Conde D Pedro (D. Froom e a independência da Biscaia;
D. Diego Lopes e a Dama Pé de Cabra; Eñeguez Guerra e o cavalo
Pardalo; D. Froião e D. Marinha) não são de origem portuguesa, mas
biscaína, e a presença de conteúdo fantástico mais intenso sugerem
contatos com a tradição celta. Segundo Mattoso (1983), esta influência
se justifica tanto pelo modo como o sobrenatural interfere na vida
humana, quanto pelas concepções mágicas que pressupõem.

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Delineia-se, portanto, outra particularidade da genealogia
portuguesa: a localização desse florescimento de textos genealógicos
numa região meridional que, segundo divisões consagradas, está mais
ligada à tradição romana que à germânica. E, por fim, é o único caso de
enumeração de todas as famílias do reino ou até, como acontece no
Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, de vários reinos. Tal fato,
aliado ao conhecimento da influência provençal na poesia trovadoresca
em Portugal, aponta para a necessidade de um estudo cuidadoso sobre
as influências e contatos entre as culturas celta, portuguesa e a galega.
Em resumo, no contexto português, esses textos genealógicos
são manifestações claras e coerentes da consciência de classe dos
fidalgos que para se apropriar de prestígio utilizaram recursos diversos,
tais como a lendarização e a mitificação. Mostram ainda que a história
dos povos se constrói não somente com fatos, mas também com a
imaginação e com o desejo de engrandecer, de diferenciar, tão próprios
da natureza humana.
A literatura genealógica, assim como a poesia trovadoresca, é
expressão de uma enorme pujança e vitalidade da classe nobre
portuguesa. Por isso, o texto literário e seus congêneres têm despertado
a atenção de diferentes pesquisadores das ciências humanas: constituem
riquíssima fonte para a compreensão do imaginário, isto é, do modo de
viver e de sentir do homem, em nosso caso, do homem medieval.

REFERÊNCIAS
BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1982.

17
FERREIRA, Maria do Rosário. D. Pedro de Barcelos e a representação
do passado Ibérico. In: Seminário Medieval de Literatura, Pensamento
e Sociedade. Texto disponível em: www.seminariomedieval.com/MR
FERREIRA_D._Pedro_de_Barcelos_e_a_representa%E7%E3o_do_pas
sado.pdf . Acesso em 04 de março de2009.
GÉNICOT, L. Les Généalogies. 2ª ed. Turnhout: Brepols, 1998
(Typologie des sources du Moyen Age Occidental, no.15).
HERCULANO, Alexandre (Ed.). Portugaliae Monumenta Historica.
Scriptores. Lisboa: Academia Real das Ciências, 1865.
KRUSS, Luís. A morte das fadas: a lenda da Dama pé de cabra. In: Ler
História. Lisboa, n0. 6, p.3-34, 1985.
__________. A Concepção Nobiliárquica do Espaço Ibérico (1280-
1380). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian JNICT, 1994.
MATTOSO, José e PIEL, Joseph (Org). Portugaliae Monumenta
Historica. Nova Série, vol. I Livros Velhos de Linhagens. vol. II Livro
de Linhagens do Conde D. Pedro. Lisboa: Academia de Ciências de
Lisboa, 1980.
MATTOSO, José. A nobreza medieval portuguesas. A família e o
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________. Narrativas dos Livros de Linhagens. Lisboa: Imprensa
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18
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refindição do Livro do Conde D. Pedro. Boletim de Filologia. Lisboa,
n0 22, p. 1-16, 1971.

1
São três as genealogias portuguesas: Livro Velho de Linhagens (LV), Livro do Deão
(LD) e o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro (LL). Embora a edição mais recente
seja a de Mattoso e Piel (1980), utilizaremos a edição do Portugalia Monumenta
Histórica, coligida por de Herculano (1865), que reúne os três nobiliário no volume
Scriptores.
2
A comparação entre a Lenda de Gaia constante no Livro Velho de Linhagens e a
apresentada pelo Livro de Linhagens do Conde D. Pedro revela tanto a modificação
de algumas personalidades envolvidas na criação da linhagem quanto o
engrandecimento do conteúdo mítico servindo a uma estratégia de poder. Para mais
informações a respeito ver MIRANDA (2008) e FERREIRA ( )

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