Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O Nordeste brasileiro, por ter sido a primeira região colonizada a prosperar, teria recebido
da metrópole modelos sócio-econômico-culturais ainda muito próximos dos medievais.
Juntamente com estes modelos, veio a ideologia dominante que se balizava em uma profunda
religiosidade e ultrapassava diferentes dicotomias, como, por exemplo, aquela existente entre a
cultura oficial dos grupos dominantes, em processo avançado de formalização e de escrita, e a da
cultura produzida pela camada popular ainda predominantemente oral com suas técnicas,
estruturas, temas, personagens e intérpretes próprios. Circunstâncias específicas da região –
isolamento, latifúndios, distanciamento do poder administrativo, organização patriarcal, seca,
banditismo – levaram ao congelamento desses modelos e propiciaram a identificação do viver e
do sentir sertanejo, de seu imaginário, com o imaginário medieval.
Para Maria Isaura Queiroz, a épica de Carlos Magno e os doze pares de França, muito
popularizada pelo cordel, foi a matriz para a épica do cangaço, na qual Antônio Silvino e
Lampião são relacionados ao chefe supremo que conduziu seus pares por incontáveis aventuras
no sertão brasileiro. Em uma sociedade de criadores de gado, como a do sertão nordestino1, o
ideal do cavaleiro andante e o gosto por aventuras e torneios tendem a perdurar e, por isso, ainda
são correntes, além da épica carolíngia, as histórias de Amadis de Gaula, da princesa Magalona e
outras. Os habitantes do semi-árido julgam encontrar nessas lendas a imagem ideal da ordem
social em que vivem, e os grandes latifundiários, chefes de extensas parentelas, de um certo
modo, consideram-se “pequenos Carlos Magno, rodeados de seus pares” (1977, p.38).
A identificação do sertanejo com uma imagem idealizada do contexto medieval, segundo
a autora, está profundamente ligada às questões sócio-econômicas. Mas, se situarmos tal
fenômeno cultural somente nesse plano, não compreenderemos plenamente o seu significado.
Não alcançaremos a sensibilidade dos cantadores e de seu público. Não penetraremos na alma
coletiva sertaneja. Para tanto, é preciso analisar as raízes míticas que alimentaram a alma
1
Roger BASTIDE (1964) denomina a organização social e econômica do pastoreio desenvolvida no sertão
nordestino como “civilização do couro” em oposição à “civilização do açúcar” que se desenvolveu na zona da mata e
litoral.
2
por tanto tempo quanto foi socialmente e tecnicamente – o sopro desta voz,
desta palavra viva, presença e calor [...] É o que testemunha, à sua maneira e no
seu setor, a literatura de cordel. A voz que engendra, e à qual ela, hoje ainda, e
em toda ocasião retorna, constituída o lugar fundador da consciência do grupo.
No meio de uma natureza brutal e hostil, a voz, o canto estendiam a área dos
corpos até o fundo das sombras onde levava o eco. [...] Os colonos levavam nas
suas barcaças uma imagem arquetípica, difusa tanto em toda a Eurásia como
também na África negra: aquela do cantador cego, vagando de aldeia em aldeia,
trazendo consigo poemas inspirados. (Apud PELOSO, 1996, p.50).
Esses cantadores eram a voz coletiva, a voz do povo, de seus anseios, problemas,
angústias, sonhos e desejos; conformam, pois, um registro das preocupações e acontecimentos de
uma época em que a poesia popular costumava registrar os acontecimentos notáveis em suas
diversas manifestações, no romance, na xácara ou mesmo em composições menos extensas.
No Nordeste, como no Portugal medieval, a literatura popular constitui um canal de
perpetuação de longínquas histórias e também um instrumento de que a sociedade se utiliza para
narrar o acontecido, de maneira semelhante ao jornal. Desse amálgama entre o antigo e o novo,
cristalizando tradições e lançando novos elementos, compõe-se os textos produzidos pela “voz
popular” sertaneja que, em alguns momentos, em vez de cantar as proezas de conhecidos
cavaleiros andantes como Amadis ou Rolando, registram as andanças que realiza o homem
comum da região: o vaqueiro, o valentão, o líder revolucionário ou o bandoleiro conhecido como
cangaceiro.
A literatura popular funciona, portanto, como um reflexo da mentalidade coletiva, em cujo
meio nasce e vive, é retrato de seu temperamento, predileções e gostos, que fixa o processo de
compreensão, do raciocínio e do julgamento da coletividade sobre um dado assunto. Por isso
Cascudo explica que a persistência de uma tradição ou de narrativas, no plano psicológico, é
resultante da identidade emocional dos leitores para com os assuntos temas. Daí a identificação
com as histórias tradicionais, porque cada uma delas, no plano psicológico trata de questões
universais sobre o ser humano e sua condição:
4
Como o sertanejo, durante séculos, enfrentou o cotidiano violento de lutas contra o índio e
a natureza ou contra os adversários políticos ou vizinhos de terras, ele aprendeu a admirar o
homem valente. A justiça lenta e distante, substituída pelas armas e bandos, que cada proprietário
podia manter, propiciou uma série de lutas ferozes. Dessas lutas, tiroteios, assaltos, tocaias e
cercos a fazendas, que se defendiam como castelos, nasceram os registros poéticos, as gestas
anônimas da valentia e destemor de índole sanguinária e violenta. Daí que o essencial na figura
do herói, nesse contexto, é a coragem pessoal, o desassombro, o arrojo e a intrepidez de enfrentar
um ou vários adversários sem hesitação.
A poética de exaltação guerreira, de elogio ao destemido, ao sem-lei, está presente em
todos os povos, fato que também influenciou para que o sertão não diferencie o cangaceiro do
homem valente. Para o sertanejo a função criminosa é acidental. “Raramente sentimos, nos versos
entusiastas, um vislumbre de crítica ou de reproche à selvageria do assassino.” (CASCUDO,
1984, p.161).
A valorização das façanhas e a aceitação da violência como algo inerente ao cotidiano,
aliado à apreciação das histórias de cavalaria e heroísmo, possibilitaram que os protagonistas
desses romances, xácaras e novelas fossem identificados, no sertão, aos cangaceiros, dentre os
quais Cabeleira é o exemplo mais antigo de nossa tradição. Isso porque havia uma identificação
entre a imagem ideal presente nessas histórias e o contexto (sócio-econômico-cultural) em que o
sertanejo se encontrava inserido. Cada um se via na situação de um desbravador, como um
cavaleiro destemido e valente que deveria lutar para defender seu “reino” – que corresponderia,
nesse contexto, à sua propriedade ou a propriedade de seu protetor ou sua própria honra.
Uma proeminente gama de fatores contribuiu, portanto, para que o Nordeste se
convertesse no abrigo das tradições da cultura oral que acabaram por se desdobrar na
permanência de uma arraigada tradição de cordel e cantorias. A região oferecia uma ambiência
social – em muito forjada pelo colonizador português – altamente vulnerável à penetração desse
5
tipo de comunicação literária, pelo qual se difunde a poesia popular, mediante cantorias ou
difusão de folhetos escritos. Tendo como referencial arquetípico a vasta rede de romances, gestas
e folhetos advindos da Península Ibérica, essa produção acabou se adaptando ao ambiente
nordestino ao assumir traços e coloração locais. Trata-se de um transplante cultural que encontra
receptividade por parte de um ambiente favorável que, a partir de então, depura e filtra o material
recebido, adequando-o a um rol de demandas sócio-culturais específicas.
Ocorrem, desse modo, curiosos mecanismos de substituição: os reis das antigas estórias
são substituídos pelos senhores de engenho ou grandes proprietários de terras e gado, os
cavaleiros e heróis guerreiros são substituídos por valentões, capangas ou cangaceiros e os heróis
ladinos e astutos surgem na forma de “amarelinhos”, como João Grilo.
O bandido é apresentado como uma figura ambígua que se revela ora como um ser
marginal, sanguinário e violento, um inimigo a ser temido, ora como uma espécie de justiceiro, de
símbolo da resistência aos chefes políticos locais, igualmente violentos. Nessa segunda
concepção, discutida por Hobsbawn, (1975), a figura do cangaceiro avulta como uma espécie de
herói, que dá ao opressor e aos que se colocam a serviço deste, a paga ao pouco caso para com o
sofrimento do pobre.
Nem sempre, porém, a dualidade do bandido, criminoso cruel e cavaleiro de honra,
soluciona-se em uma exclusão ou contradição. O poeta popular sertanejo dispõe de um rol de
características herdadas que lhe autorizam valorizar ambos os aspectos da alma desta figura. Por
exemplo, é comum o recurso de se usar o arrependimento e até a conversão aos bons ideais.
Nesses casos, as histórias se identificam com o exemplo de Roberto do Diabo, narrativa de
origem francesa (século XIII) muito popular em Portugal e no sertão brasileiro desde a
colonização, foi inclusive transposta para o cordel, em 1938, por João Martins de Ataíde.
Nesta obra os aspectos cavaleirescos – ação guerreira, aventura, valentia – são
secundários porque importa a história interior, a narrativa dramática de uma conversão através da
tomada de consciência do mal e do conseqüente arrependimento. O objetivo não é o
entretenimento, mas aquele dos exempla, os escritos de inspiração edificante na fronteira entre o
sagrado e o profano, que acolhem a façanha cavaleiresca com o intuito de exprimir uma lição de
alta espiritualidade.
6
Dessa forma, as trovas sobre Cabeleira – primeiro cangaceiro da tradição oral sertaneja –
assim como as cantorias sobre outros bandidos, que viveram ao longo dos séculos XIX e XX,
estão relacionadas a um tema caro à Idade Média e ao sertanejo: a luta sem trégua entre o Bem e o
Mal como meio de exaltação das virtudes guerreiras. Nesse sentido, a representação da valentia e
da bravura, ligada aos valores tradicionais, fornece uma lógica à ação do bandido e oblitera as
motivações criminosas, imprimindo uma aura épica à sua figura.
Isto é, como o gosto pelas novelas e romances tradicionais foi determinante para a
construção de um modelo de herói sertanejo, no ciclo do cangaço, a coragem e o destemor são as
qualidades fundamentais, mas há sempre um “escudo ético” a justificar as atitudes do cangaceiro.
Para que essa figura se identifique com o herói é necessário que tenha um fundo de bondade e
justifique “suas maldades”, como na história de Roberto do Diabo – era a valentia a serviço do
mal por culpa da mãe que fizera um pacto com o diabo – depois do arrependimento e da
penitência, ele se tornou um paladino de Deus. Cabeleira se converteu em um bandido por
imposição do pai, porém, assim como Roberto, ele se arrependeu e se penitenciou salvando sua
alma.
Segundo o historiador Fernandes Gama, Cabeleira e seu pai foram processados e
condenados pela Junta de Justiça a morrerem enforcados, em janeiro de 1786; o que foi cumprido
quatro dias após a prisão. Ainda de acordo com os registros históricos, os condenados “subiram
ao patíbulo, dando mostras de grande contricção, e arrependimento de seus delictos.”(1977,
p.358) Esse sentimento de arrependimento foi registrado pela poética popular:
As quadras constituem uma advertência, um exemplo para aqueles que não sabem “seus
filhos ensinar”, refletem as preocupações do povo sobre o fenômeno do banditismo, mas também
se referem à certeza do castigo divino após uma vida de crimes.
A palavra tem poder de persuasão e representação de autoridade, configura-se como
arsenal sonoro de um corpo populacional inapto a participar de outros modos de comunicação.
Seus depositários são aqueles elementos eleitos e cristalizados pela tradição, sancionados e
respeitados pela sociedade: os mais velhos, os pregadores, os chefes e os santos. E de maneira
especial, os poetas, portadores e veiculadores de valores sociais, fornecem um alicerce moral para
as sucessivas construções e reconstruções da memória coletiva.
A palavra carrega em si esse simbolismo universal:
difunde: a voz é a expressão da alma humana em suas mais nobres aspirações coletivas, em seus
mais caros princípios sociais. Ela é o retrato interior de uma comunidade.
A antigüidade e indelével presença de diversas trovas, postulando um intuito moralizador
sobre um problema tão premente da realidade sertaneja, através dos séculos de sua colonização,
sensibilizaram Franklin Távora, que mergulhado na riqueza de nossa tradição de origem ibérica,
trouxe à luz, em sua obra, aspectos mais profundos e belos subjacentes à figura do herói-bandido.
Cabeleira é resultado da mescla entre essa figura dúbia e a temática da eterna luta entre o bem e o
mal travada em um ambiente que remete aos sofrimentos impostos pelo purgatório: seca, fome,
miséria, sofrimento, revolta, castigo e arrependimento.
A obra, partindo das temáticas delineadas pelas trovas populares, recria a história do
criminoso, unindo toda a riqueza presente no imaginário sertanejo. José Gomes sintetiza a
dicotomia existente entre os aspectos constituintes desse herói sertanejo: por um lado, o bandido
é admirado por representar a valentia e a rebelião contra o anonimato, a submissão e a miséria. É
também admirado porque o cangaço representa o único meio de alcançar a liberdade e o poder de
mandar, mas juntamente com o desejo de autonomia, apresenta-se a consciência de que esta
insubmissão e toda a violência dela oriunda acarretará um castigo. A ameaça (de sofrimento e
castigo) está explícita nas quadras, não apenas o castigo imposto pelos homens (a morte por
enforcamento), mas também os sofrimentos após a morte (“Que lá no outro mundo/ eu irei
penar”).
Por isso, o romance de Távora mostra a possibilidade de mudança do final do herói a
partir do arrependimento – processo aceito pela crença religiosa e pela predisposição psicológica
do sertanejo, embora não aceita pela lei. Cabeleira foi julgado e condenado pelos homens, mas
antes foi redimido pelo arrependimento e penitência, escapando, assim, da pena após sua morte.
A história, estrutura como um exemplo, chama a atenção para a importância da educação e
da religião na construção de um homem, pois valente e audaz, ele poderia ter se tornado um herói
se o caminho imposto pelo pai fosse outro. Assim, o herói-bandido desperta a solidariedade
porque foi vítima do pai. Ele é temido por suas atrocidades, mas também desperta simpatia por
não ter escolhido o mau caminho por vontade própria. Justificativa que remete ao inexorável
destino para o qual é conduzido o herói trágico – porém, de acordo com a crença cristã, tanto
9
Roberto quanto Cabeleira têm a possibilidade de expiar seus crimes e obter o perdão para a vida
eterna.
Outro exemplo dessa temática muito conhecido pelo sertanejo é a “Cantiga do Vilela”
(1926) conta a história do bandido Vilela, que mesmo coberto de crimes, assassinatos e violência,
fez penitência – durante quarenta anos, viveu no mato, de lá tirando o seu sustento – e assim,
morreu santo.
Essa cantiga apresenta ainda uma outra semelhança com a obra de Franklin Távora e a
história de Roberto do Diabo: uma mulher como o instrumento que leva ao arrependimento do
bandido. Nos versos, a esposa implora para que Vilela não mate o Alferes que tentava prendê-lo.
Após atender o pedido, ele resolve abandonar o lar para cumprir penitência:
Esses versos são citados por Cascudo (1953, p.31) como um exemplo da disposição do
sertanejo em perdoar a violência, no entanto, consideramos que a temática delineada revela uma
verdade mais profunda ligada a presença de substratos do imaginário medieval no imaginário
sertanejo. A história de Cabeleira, como dissemos, chama a atenção para a importância da
educação, do exemplo moral, do direcionamento dos filhos para o caminho da retidão moral e do
10
bem, entretanto, assim como a Cantiga do Vilela e a história de Roberto do Diabo, também revela
a crença inabalável na misericórdia divina, na possibilidade de salvação através da contrição e da
penitência. Mesmo o mais cruel assassino pode se salvar se o arrependimento for sincero e a
penitência cumprida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BASTIDE, Roger.1964. Brasil Terra de Contrastes. 2ª ed. São Paulo: Difel.
CASCUDO, Luís da Câmara.1953. Cinco livros do povo. Rio de Janeiro:José Olympio.
CASCUDO, Vaqueiros e cantadores. 1984. Belo Horizonte/ Itatiaia, São Paulo: Edusp.
HOBSBAWN, Eric. J. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense, 1975.
MOTA, Lenardo. 1987. Cantadores. Poesia e linguagem do sertão cearense. Belo Horizonte:
Itatiaia.
QUEIROZ, Maria Isaura P.1977. Os cangaceiros. São Paulo: Duas Cidades.
PELOSO, Silvano.1996. O canto e a memória. São Paulo: Ática.
ZUMTHOR, Paul. 1993. A letra e a voz. Trad. Amalio Pinheiro e Jerusa P. Ferreira. São Paulo:
Companhia das Letras.