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antes revela uma percepção clara de que somente conservadorismo clerical português, mas que
podemos criticar construtivamente, isto é, buscar deseja usufruir dos prazeres propostos pelos
a transformação da sociedade e do país a partir ideais progressistas do século XIX.
de um profundo conhecimento de sua história. Neste romance, a crítica constrói-se por
Jayme Batalha Reis, companheiro do autor na meio da paródia e do riso sarcástico
“Geração de 70”, dissertando sobre a revisitação possibilitados pelo sonho do protagonista e
da Idade Média encetada por Eça, explica-a narrador da história, Teodorico Raposo, que, em
segundo essa postura, essencial para a literatura, viagem pela Palestina, é transportado
visto que “durante esta gradualmente se fantasticamente para Jerusalém do tempo de
formaram as nações modernas da Europa, na Cristo.
sua íntima complexidade sentimental” (REIS, Embora a epígrafe da obra – “Sobre a nudez
[19--], p.21). O enfoque, portanto, é dirigido à forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”
conformação de Portugal em seus vários (QUEIRÓS, 1998, p.10) – sintetize a magistral
aspectos: humano, histórico, político, social e, união entre realismo e imaginação, história e
principalmente, nos aspectos relacionados à fantástico, a narração tem início com uma
sensibilidade da “alma portuguesa” e seu introdução em que a personagem afirma ter
imaginário. decidido compor o relato autobiográfico por
Obedecendo a esse objetivo crítico, a este encerrar “uma lição lúcida e forte”,
retomada do período medieval opera-se de considerando-se as aventuras vividas durante a
diferentes formas ao longo da produção do peregrinação à Palestina e a transformação desta
escritor: ora de modo mais evocativo e decorrente. E encerra reiterando a franqueza e
fantasioso, em consonância com o influxo verdade desta narração “onde a realidade sempre
romântico, ora funcionando como ponto de vive, ora embaraçada e tropeçando nas pesadas
partida para uma crítica demolidora realizada por roupagens da História, ora mais livre e saltando
meio da paródia e da sátira, ou então, como sob a caraça vistosa da Farsa!” (QUEIRÓS,
elogio do passado saudosista. Este último, 1998, p.12)
exemplificado na reescrita de Vidas de Santos A relativização da realidade entre a História
(QUEIRÓS, 2002) e nas palavras de Fradique e a Farsa funciona com meio de questionamento
Mendes – personagem, criado por Eça em do realismo materialista. Por vir contra esta
conjunto com Antero de Quental, e espécie de ordem estruturada, o sonho funciona como uma
heterônimo da geração de 70 – ao confessar que ruptura e um meio de questionamento diante da
“a saudade do velho Portugal era nele constante; complexidade da vida nunca totalmente
e considerava que por ter perdido esse tipo de apreendida pelo empirismo científico. A
civilização, o mundo ficara diminuído” imaginação criadora de Eça de Queirós utiliza
(QUEIRÓS, 1970, p.132). esse recurso para permitir o encontro entre o
Tendo em vista esse amplo espectro de protagonista e Satanás atendendo a um claro
possibilidades, aliado às pesquisas atualmente intuito pedagógico moralista.
desenvolvidas, analisaremos o Diabo1
caracterizado no romance A relíquia (QUEIRÓS, De Satã ao Diabo queirosiano
1998), objetivando discutir como essa figura,
prenhe de simbolismo e freqüente em outras O título do romance, A relíquia, sintetiza o
obras do escritor, funciona como pedra angular objetivo da viagem empreendida por Teodorico
das críticas empreendidas por ele à Igreja, à Raposo – trazer da Terra Santa uma relíquia para
religião institucionalizada e sua conseqüência na a milionária tia Patrocínio, a Titi preconceituosa
conformação da sociedade portuguesa. O foco e opressora para, assim, conquistar-lhe
recai especialmente sobre a média burguesia definitivamente a confiança e a herança.
acomodada às imposições exigidas pelo O sonho permite o encontro do
protagonista com Satã em um momento chave,
anterior à história do Diabo no imaginário
1 Neste estudo, utilizaremos como sinônimas as diversas ocidental. Destarte, a interessante conversa
nomeações dessa figura – Satã, Satanás, Diabo, Demônio, Lúcifer –
que compreende distinções e classes demoníacas específicas possibilita que o autor apresente sua versão da
tradicionalmente conhecidas e propagadas pela Igreja medieval. origem do Cristianismo para colocar em xeque a
Como nosso interesse diz respeito ao representante supremo do religiosidade portuguesa representada pela tia
Mal, conforme a óptica da instituição cristã que o elegeu oponente
primaz de Deus, a utilização de diferentes nomes não influencia a beata e o universo de parasitas a seu redor.
análise.
SIQUEIRA, A. M. A. Imagens da Educação, v. 2, n. 1, p. 39-49, 2012.
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2Sanford (1988, p. 37) explica que há somente quatro referências a pós-exílio: no Livro de Zacarias (ZC 3, 1-2), em Crônicas (Cr 21,
Satanás como um ser sobrenatural. Todas constantes nos livros 1), em Salmos (Sl 109, 6-7) e no Livro de Jó ( Jó 1, 6-12).
SIQUEIRA, A. M. A. Imagens da Educação, v. 2, n. 1, p. 39-49, 2012.
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ainda a parte bestial de si mesmo e, por mais amplo que servir à doutrina religiosa.
conseguinte, buscar controlá-la mais Segundo alerta Muchembled (2001, p. 32):
eficazmente. (MUCHEMBLED, 2001, p.19).
Outrossim, a deformidade e a feiúra atribuídas Produzir a imagem do Mal por meio do
ao Diabo revelam o horror à sua figura que que se poderia chamar de imaginário
afasta o homem da salvação. O processo mental coletivo de uma sociedade é algo sempre
em questão fundamenta-se na importância dada estreitamente ligado aos valores mais
atuantes nesta mesma sociedade. [...] O
ao sentimento de culpa, sobretudo daqueles que
aumento do poder de Lúcifer não é
não conseguiam sufocar completamente a consequência unicamente de mutações
animalidade interior existente em cada um. religiosas. Ele traduz um movimento de
Concomitantemente ao avanço da conjunto da civilização ocidental, uma
cristianização, firmaram-se o poder clerical e a germinação de poderosos símbolos
união Estado-Igreja; a noção da luta entre o Bem constitutivos de uma identidade coletiva
e o Mal se legitimou, culminando na divisão do nova [...]
mundo em dois reinos, dos adeptos do Bem que
cultivavam as virtudes e dos seguidores do Mal, No campo literário, além de textos
praticantes dos vícios. doutrinários e exemplares, muito difundidos
Satã tornou-se uma obsessão no momento anteriormente, surge, no período moderno, uma
em que a Europa procurava maior coerência literatura especializada, os “livros do Diabo” que
religiosa e criava novos sistemas políticos. O desempenham a função de denunciar os vícios e
controle de todas as camadas da sociedade exigiu pecados do tempo e advertir os homens contra
a construção de uma doutrina angustiante e as práticas demoníacas. Variadas obras retratam
terrível para tornar o Diabo temido pelas Satanás como um ser maligno, mas que podia ser
populações habituadas a uma imagem mais ludibriado; por outro lado, em meados de
humana e até cômico-grotesca, resultante da seiscentos, surge a lenda de Fausto adensando a
mescla com os cultos aos deuses agrários. A questão do pacto demoníaco. Mefistófeles é um
partir do século XV, iniciou-se a construção de Diabo astuto e inteligente que, longe de ser
uma demologia que culminará, nos séculos XVI enganado, triunfa sobre o homem utilizando-se
e XVII, na produção de “um arquétipo humano de argumentação sagaz e do apelo aos sentidos.
do Mal absoluto, encarnado na feiticeira” O intuito moralista de revelar uma lição,
(MUCHEMBLED, 2001, p.50). Essa obsessão anunciado pelo narrador-protagonista de A
por Satanás atinge um grau absurdo, torna-se relíquia sugere que o episódio do encontro com
quase uma histeria coletiva, ocasionando a morte Satã assemelha-se aos “livros do Diabo”.
de milhares de pessoas nas fogueiras da Contudo, devido à ironia satírica subversiva, a
Inquisição. forma incomum do representante do Mal não
A importância alcançada pela figura provoca medo nem no protagonista, nem nas
demoníaca, no imaginário ocidental no período, amantes que o acompanham. Pelo contrário,
reflete a fenômeno de se atribuir à história do desperta o ciúme e a indignação de Teodorico,
Diabo a dimensão de um mito cósmico porque uma delas lançava “olhadelas oblíquas a
explicativo, fruto da necessidade de respostas potência de seus músculos”, enquanto ele,
que dessem um sentido à vida e dirigissem os “impudentemente”, pusera-se a marchar ao lado
comportamentos diante da angústia instaurada das personagens. (QUEIRÓS, 1998, p. 51).
por fenômenos inéditos; como o choque entre Aqui a ambiguidade e a sutileza da fala de
Reforma e Contra-Reforma, gerador de uma Raposo despertam o riso, tanto pela indignação
guerra acirrada de perseguições, e a descoberta da personagem ao desejar pudor nas atitudes
de um novo continente povoado por diferentes diabólicas, quanto porque o termo
habitantes com costumes e línguas estranhas. “impudentemente” sugere que não somente o
As normatizações sobre Além, Inferno, Céu, corpo, mas também o pênis tinha proporções
Bem e Mal tiveram a função de direcionar o avantajadas. A ideia está presente na tradição e
modo como se deveria viver e agir e, em funciona como símile da luxúria desenfreada e
especial, como as relações de poder deveriam da inclinação à obscenidade atribuídas ao Diabo.
acontecer. A união entre Igreja e Estado indica Nessa cena, porém, o efeito de riso é provocado
que a Inquisição desempenhou um papel muito pelo despeito e ciúme da personagem ao se
sentir preterido. Vinga-se, pois, questionando o
1996.