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REBELDIA E OPORTUNISMO: UMA HISTÓRIA DO DIABO


QUEIROSIANO
doi: 10.4025/imagenseduc.v2i1.15809

Ana Marcia Alves Siqueira*


Universidade Federal do Ceará – UFC. ana.siqueira@ufc.br

Resumo: Eça de Queirós, conhecido como o mais representativo escritor do Realismo


português, – estilo que tem por postulado a análise do presente em recusa ao romântico
olhar para o passado – diversas vezes revisitou a Idade Média em sua produção, tanto no
tratamento de temáticas quanto no uso de gêneros literários medievais, como, por exemplo,
as Vidas de Santos, hagiografias publicadas na última década de vida do autor e chamada por
ele de neoflós-santorismo. Dentro desse amplo espectro de possibilidades, neste trabalho
buscaremos focalizar o diabo caracterizado na obra A Relíquia, objetivando discutir como
essa figura, prenhe de simbolismo e presente em diferentes obras do escritor, funciona
como pedra angular das críticas empreendidas por Eça à Igreja católica, a religião
institucionalizada e suas consequências perniciosas na conformação da sociedade
portuguesa. O Satanás queirosiano constitui uma reinterpretação da figura diabólica
medieval que funciona como um meio de enfatizar as críticas aos costumes,à arrogância e à
hipocrisia da sociedade portuguesa de oitocentos.
Palavras-chave: Eça de Queirós. Diabo. Releituras da Idade Média.

ABSTRACT: REBELLION AND OPPORTUNISM: A HISTORY OF


THE QUEIROSIAN DEVIL. Eça de Queirós, known as the most
representative writer of the Portuguese Realism, -style that postulates the analysis of the
present in refusal of the romantic look to the past – several times revisited the Middle
Ages in his production. Eça managed to do that in his works by the treatment of themes
and the use of medieval literary genres, such as the lives of the
Saints, hagiographies published in the last decade of his life which were called by
him Neoflam-santoro. Within this broad spectrum of possibilities, this paper seeks to focus
on the devil's work featured in A Relíquia (The Relic). It is aimed to discuss how the Devil’s
figure, full of symbolism and present in different works of the writer, works as the main
stone of his criticism towards the Catholic Church, the institutionalized religion and
its pernicious consequences on the conformation of Portuguese society. The Queirosian
Satan is a reinterpretation of the medieval diabolical figure that serves as a way of
emphasizing the criticism of manners, arrogance and hypocrisy of the Portuguese
society of eight hundred.
Keywords: Eça de Queirós. Devil. Rereading from the Middle Ages.

Eça e a Idade Média gêneros literários medievais. Vidas de Santos


(QUEIRÓS, 2002), obra hagiográfica publicada
Esse artigo tem por objetivo investigar na última década de vida do autor, e por ele
alguns aspectos da subversão da história do chamada de “neoflós-santorismo” em referência
Cristianismo e da recriação da figura diabólica a Flos Sactorum em lingoage portugues, é um exemplo
realizada por Eça de Queirós na obra A relíquia, desse procedimento. Este livro, mandado
bem como discutir a reapropriação da tradição imprimir por D. Manuel, em 1513, inaugurou a
medieval relativa ao Diabo. tradição hagiográfica portuguesa a partir da
Eça de Queirós, conhecido como o mais tradução do exemplar castelhano de La legenda de
representativo escritor do Realismo português, – los santos que, por sua vez, foi transladado do
estilo que postula a análise do presente em original latino de Jacobo de Voragine
recusa ao olhar voltado para o passado comum (ALMEIDA, 2005), do qual, porém, não restou
aos românticos – diversas vezes revisitou a Idade o manuscrito.
Média em sua produção; tanto no tratamento de Todavia, essa presença constante não
temáticas relacionadas à religiosidade, à nobreza, constitui uma incoerência na proposta de análise
à cavalaria, dentre outras, quanto no uso de da sociedade portuguesa efetuada pelo escritor,
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antes revela uma percepção clara de que somente conservadorismo clerical português, mas que
podemos criticar construtivamente, isto é, buscar deseja usufruir dos prazeres propostos pelos
a transformação da sociedade e do país a partir ideais progressistas do século XIX.
de um profundo conhecimento de sua história. Neste romance, a crítica constrói-se por
Jayme Batalha Reis, companheiro do autor na meio da paródia e do riso sarcástico
“Geração de 70”, dissertando sobre a revisitação possibilitados pelo sonho do protagonista e
da Idade Média encetada por Eça, explica-a narrador da história, Teodorico Raposo, que, em
segundo essa postura, essencial para a literatura, viagem pela Palestina, é transportado
visto que “durante esta gradualmente se fantasticamente para Jerusalém do tempo de
formaram as nações modernas da Europa, na Cristo.
sua íntima complexidade sentimental” (REIS, Embora a epígrafe da obra – “Sobre a nudez
[19--], p.21). O enfoque, portanto, é dirigido à forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”
conformação de Portugal em seus vários (QUEIRÓS, 1998, p.10) – sintetize a magistral
aspectos: humano, histórico, político, social e, união entre realismo e imaginação, história e
principalmente, nos aspectos relacionados à fantástico, a narração tem início com uma
sensibilidade da “alma portuguesa” e seu introdução em que a personagem afirma ter
imaginário. decidido compor o relato autobiográfico por
Obedecendo a esse objetivo crítico, a este encerrar “uma lição lúcida e forte”,
retomada do período medieval opera-se de considerando-se as aventuras vividas durante a
diferentes formas ao longo da produção do peregrinação à Palestina e a transformação desta
escritor: ora de modo mais evocativo e decorrente. E encerra reiterando a franqueza e
fantasioso, em consonância com o influxo verdade desta narração “onde a realidade sempre
romântico, ora funcionando como ponto de vive, ora embaraçada e tropeçando nas pesadas
partida para uma crítica demolidora realizada por roupagens da História, ora mais livre e saltando
meio da paródia e da sátira, ou então, como sob a caraça vistosa da Farsa!” (QUEIRÓS,
elogio do passado saudosista. Este último, 1998, p.12)
exemplificado na reescrita de Vidas de Santos A relativização da realidade entre a História
(QUEIRÓS, 2002) e nas palavras de Fradique e a Farsa funciona com meio de questionamento
Mendes – personagem, criado por Eça em do realismo materialista. Por vir contra esta
conjunto com Antero de Quental, e espécie de ordem estruturada, o sonho funciona como uma
heterônimo da geração de 70 – ao confessar que ruptura e um meio de questionamento diante da
“a saudade do velho Portugal era nele constante; complexidade da vida nunca totalmente
e considerava que por ter perdido esse tipo de apreendida pelo empirismo científico. A
civilização, o mundo ficara diminuído” imaginação criadora de Eça de Queirós utiliza
(QUEIRÓS, 1970, p.132). esse recurso para permitir o encontro entre o
Tendo em vista esse amplo espectro de protagonista e Satanás atendendo a um claro
possibilidades, aliado às pesquisas atualmente intuito pedagógico moralista.
desenvolvidas, analisaremos o Diabo1
caracterizado no romance A relíquia (QUEIRÓS, De Satã ao Diabo queirosiano
1998), objetivando discutir como essa figura,
prenhe de simbolismo e freqüente em outras O título do romance, A relíquia, sintetiza o
obras do escritor, funciona como pedra angular objetivo da viagem empreendida por Teodorico
das críticas empreendidas por ele à Igreja, à Raposo – trazer da Terra Santa uma relíquia para
religião institucionalizada e sua conseqüência na a milionária tia Patrocínio, a Titi preconceituosa
conformação da sociedade portuguesa. O foco e opressora para, assim, conquistar-lhe
recai especialmente sobre a média burguesia definitivamente a confiança e a herança.
acomodada às imposições exigidas pelo O sonho permite o encontro do
protagonista com Satã em um momento chave,
anterior à história do Diabo no imaginário
1 Neste estudo, utilizaremos como sinônimas as diversas ocidental. Destarte, a interessante conversa
nomeações dessa figura – Satã, Satanás, Diabo, Demônio, Lúcifer –
que compreende distinções e classes demoníacas específicas possibilita que o autor apresente sua versão da
tradicionalmente conhecidas e propagadas pela Igreja medieval. origem do Cristianismo para colocar em xeque a
Como nosso interesse diz respeito ao representante supremo do religiosidade portuguesa representada pela tia
Mal, conforme a óptica da instituição cristã que o elegeu oponente
primaz de Deus, a utilização de diferentes nomes não influencia a beata e o universo de parasitas a seu redor.
análise.
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Embora a imaginação criadora de Eça tenha significativa é a do Livro de Jó, retratando-o


a liberdade de colocar Teodorico Raposo e o como um dos filhos de Deus que a ele se
Diabo conversando amistosamente sem maiores apresenta e, ao ouvi-lo elogiar Jó, propõe retire-
explicações, nossa análise obrigatoriamente lhe todas as bênçãos para provar sua fidelidade.
necessita discutir alguns aspectos da construção O que lhe é outorgado pelo Senhor. Desta feita,
desta figura vista como representante síntese do observamos um discreto indício da separação do
Mal pela cultura ocidental. lado sombrio de Deus identificado à figura de
A história do Diabo confunde-se com a Satã. Todos os males e desgraças que caem sobre
história do Cristianismo e da Igreja católica; Jó são causadas por ele que, porém, ainda não é
porém, para compreendermos a riqueza do personalizado como o demonstra o uso do
simbolismo inerente a ele, necessitamos analisar artigo definido - o -. Conforme explica Nogueira
diferentes momentos de transformação da visão (2000, p.16-17):
sobre a figura diabólica ao longo de séculos.
Na obra em questão, Satanás é parecido Mas como a descrição dos tormentos de
fisicamente com o Diabo medieval – feio e Jó coloca o grande problema do Mal e da
horripilante com atributos antropomorfos dúvida, esse poema do sofrimento
tradicionais: “Depois, por trás de um penedo, contribuirá para conferir a Satã a sua
imortalidade. Gradualmente, Satã passa de
surgiu-nos um homem nu, colossal, tisnado, de
acusador a tentador, tornando-se o Diabo
cornos; os seus olhos reluziam vermelhos como por excelência, em sua tradução grega
vidros redondos de lanternas; e, com rabo Diábolos – isto é, aquele que leva o juízo –
infindável, ia fazendo no chão o rumor de uma que rapidamente transformará na entidade
cobra irritada que roja por folhas secas.” do Mal, no adversário de Deus.
(QUEIROS, 1998, p. 51).
A semelhança com a figura diabólica descrita De acusador e opositor, no Velho
em A Demanda do Santo Graal é clara: “...uũ Testamento, o Diabo foi ganhando importância
homem mais negro que o pez, e seus olhos e influência ao longo da evangelização,
vermelhos como as brasas [...]” (1944, v.1, funcionando como imagem síntese dos inimigos
p.144), assim como a referência aos chifres e ao da fé, das religiões e cultos a serem combatidos
rabo, a lembrar uma serpente, revelam o uso da pelos cristãos. Satanás é o grande adversário do
tradição medieval. Porém, antes de ser visto Cristianismo nascente, é o inimigo de Cristo e
como um ser horrível, o Diabo não era tão seus discípulos que corrompe corpos e almas e
assustador, na verdade, não há uma busca impedir a conquista da vida eterna no
personificação autônoma do Mal no Antigo paraíso. Como espírito contrário a Deus, ele não
Testamento. faz parte da corte celestial e é a origem dos
Satã, termo que significa acusador ou problemas e desgraças impostas ao homem. É
adversário, é um servo divino e desempenha a também o principal promotor da rebelião contra
função de acusar os homens ou de influenciá-los os dogmas cristãos ou insuflador do desvio da
com a permissão de Deus. Mas, a sobreposição doutrina, provocando sempre o distanciamento
de credos, advindos de sucessivos conflitos e entre a humanidade e Deus. Para Nogueira
invasões da Palestina, e a disputa entre o (2000, p. 22), este
politeísmo de diversos povos e o monoteísmo
judaico influenciaram o processo de assimilação [...] é o primeiro momento de glória de
de maligno a tudo que contrariasse a lei de Satã: a sua grandiosidade, negada pelo
Moisés. Nesse processo paulatino, os deuses das Antigo Testamento, será devidamente
nações inimigas, vistos como ídolos falsos, estabelecida pela literatura apócrifa e
passam a ser vistos como espíritos das trevas: posteriormente reconhecida pelos
Evangelhos e pelo Apocalipse de São
“pois os deuses das nações são demônios, mas o
João, onde Satanás assume lugar de
Senhor é o criador dos céus” (BÍBLIA, 1995, Sl príncipe das trevas, responsável pela
95, 5). perdição do gênero humano. Desenvolve-
Dentre as quatro passagens do Velho se uma distinção mais nítida entre anjos e
Testamento em que Satã2 aparece, a mais demônios, [...]

2Sanford (1988, p. 37) explica que há somente quatro referências a pós-exílio: no Livro de Zacarias (ZC 3, 1-2), em Crônicas (Cr 21,
Satanás como um ser sobrenatural. Todas constantes nos livros 1), em Salmos (Sl 109, 6-7) e no Livro de Jó ( Jó 1, 6-12).
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diabos armados de chicotes, dragões, água


Não há uma versão exclusiva para a origem e piche ferventes, fogo e gelo, infinitas
do Diabo, entretanto, Link (1998) aponta dois torturas. Eis o inferno: livre campo à
fatos importantes para a construção da fantasia, livre curso a todas as crenças
tradicionais.
explicação sobre a origem do Mal e do Diabo. O
primeiro está ligado ao uso da palavra grega
Contudo, Muchembled (2001) atenta para o
dáimon, que significava um espírito mediador
fato de que a construção teológica da figura
entre homens e deuses ou um espírito perverso,
diabólica definiu-se rapidamente sem ocasionar
a tradução desta palavra, atribuída aos
conseqüências sociais e culturais de grande
apologistas alexandrinos helenizados dos séculos
amplitude. A questão demológica ficou restrita
II e III d.C., originou o termo demônio
aos círculos eruditos da Igreja. Embora as
entendido como um anjo mal, isto é, um anjo
caído. O outro fato diz respeito à interpretação práticas populares ligadas ao domínio da magia
ou de ritos pagãos fossem denunciadas e
de uma passagem do Livro de Isaías que dará
origem ao mito da queda: “Como caíste do céu, reprovadas nos rituais de penitência, não
ó estrela d’alva, filho da aurora! Como foste sofreram perseguição sistemática:
atirado à terra, vencedor das nações” (BIBLIA,
O silêncio ou a relativa indiferença dos
1995, Isaías 14, 12). eruditos e dos teólogos a respeito das
Segundo o autor, O Livro de Isaías devia estar tradições mágicas populares, até o século
se referindo a um tirano rei babilônico morto ou XII, faz crer que a Igreja Católica não se
vencido; é também provável que esta história sentia, em absoluto, agredida pelas
tenha surgido de um mito cananeu. convicções supersticiosas do povo, e
Posteriormente a expressão “estrela da manhã” muito menos por uma eventual contra-
foi atribuída ao Diabo e um novo epíteto nasceu: religão satânica, que seria denunciada com
Lúcifer. De acordo com esse pensamento, a furor três séculos depois.
identificação “resolvia o incômodo problema da (MUCHEMBLED, 2001, p.21)
natureza do Diabo”. (LINK, 1998, p.29).
Destarte, a queda de Lúcifer respalda as A inexistência de uma tradição pictórica
narrativas do Gênesis, explica o pecado original, anterior e a diversidade de fontes textuais
a perda do Paraíso e a redenção pelo sacrifício referindo-se indistintamente a Diabo, Satã,
de Jesus Cristo, corroborando a explicação da Satanás, Lúcifer e Demônio explicam a ausência
origem do Mal dada por Santo Agostinho em O de uma imagem unificada do Diabo. Na
livre arbítrio (1995). Assim como o Diabo estratégia de desqualificação dos cultos pagãos, o
escolheu rebelar-se contra Deus, fazendo uso do que não podia ser assimilado, porque era
livre-arbítrio, Adão e Eva e, posteriormente toda considerado contrário aos dogmas cristãos, foi
a humanidade, puderam escolher desobedecer a repelido como ímpio e demoníaco. Satanás vai
Deus. Lúcifer, como o pai da desobediência, põe ganhando importância e recebendo uma
em pauta a questão chave para a salvação da caracterização horripilante emprestada de
alma: a livre opção dada a cada ser humano entre diferentes atributos de deuses pagãos: as patas de
o Bem e o Mal. bode, o corpo peludo, o rabo, o falo descomunal
Diante de tal perigo, os membros da Igreja, e a lascívia incontrolável do deus grego Pã, além
buscando fortalecer a instituição ao longo da dos cornos também atribuídos ao deus celta
Idade Média, criaram uma diversificada exegese Cernunnos.
sobre as tentações, artimanhas e armadilhas As práticas pagãs subsistiram, porém,
impostas pelo inimigo, sempre à espreita para especialmente no meio campônio, onde
levar o homem ao inferno. O que transformou o permanece uma visão generalizada sobre o
mundo em um verdadeiro campo de batalha Diabo quase semelhante ao “homem e que,
imerso em um clima de medo e terror. como este, podia ser ludibriado e vencido”
A partir do século IX, conforme explica (MUCHEMBLED, 2001, p.14). Nessa
Nogueira (2000, p. 77): concepção ele não é tão cruel como se diz,
porque, segundo o dito popular: “o diabo faz
O horror diabólico domina as consciências medo e faz rir” (NOGUEIRA, 2000, p.45).
cristãs. Nas igrejas, pregam-se as penas Por volta dos séculos XII e XIII, a
infernais. A fantasia dos eclesiásticos deve eliminação de uma clara separação entre o
chocar, provocar terror: lagos de enxofre, humano e o animal levou o homem a temer mais
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ainda a parte bestial de si mesmo e, por mais amplo que servir à doutrina religiosa.
conseguinte, buscar controlá-la mais Segundo alerta Muchembled (2001, p. 32):
eficazmente. (MUCHEMBLED, 2001, p.19).
Outrossim, a deformidade e a feiúra atribuídas Produzir a imagem do Mal por meio do
ao Diabo revelam o horror à sua figura que que se poderia chamar de imaginário
afasta o homem da salvação. O processo mental coletivo de uma sociedade é algo sempre
em questão fundamenta-se na importância dada estreitamente ligado aos valores mais
atuantes nesta mesma sociedade. [...] O
ao sentimento de culpa, sobretudo daqueles que
aumento do poder de Lúcifer não é
não conseguiam sufocar completamente a consequência unicamente de mutações
animalidade interior existente em cada um. religiosas. Ele traduz um movimento de
Concomitantemente ao avanço da conjunto da civilização ocidental, uma
cristianização, firmaram-se o poder clerical e a germinação de poderosos símbolos
união Estado-Igreja; a noção da luta entre o Bem constitutivos de uma identidade coletiva
e o Mal se legitimou, culminando na divisão do nova [...]
mundo em dois reinos, dos adeptos do Bem que
cultivavam as virtudes e dos seguidores do Mal, No campo literário, além de textos
praticantes dos vícios. doutrinários e exemplares, muito difundidos
Satã tornou-se uma obsessão no momento anteriormente, surge, no período moderno, uma
em que a Europa procurava maior coerência literatura especializada, os “livros do Diabo” que
religiosa e criava novos sistemas políticos. O desempenham a função de denunciar os vícios e
controle de todas as camadas da sociedade exigiu pecados do tempo e advertir os homens contra
a construção de uma doutrina angustiante e as práticas demoníacas. Variadas obras retratam
terrível para tornar o Diabo temido pelas Satanás como um ser maligno, mas que podia ser
populações habituadas a uma imagem mais ludibriado; por outro lado, em meados de
humana e até cômico-grotesca, resultante da seiscentos, surge a lenda de Fausto adensando a
mescla com os cultos aos deuses agrários. A questão do pacto demoníaco. Mefistófeles é um
partir do século XV, iniciou-se a construção de Diabo astuto e inteligente que, longe de ser
uma demologia que culminará, nos séculos XVI enganado, triunfa sobre o homem utilizando-se
e XVII, na produção de “um arquétipo humano de argumentação sagaz e do apelo aos sentidos.
do Mal absoluto, encarnado na feiticeira” O intuito moralista de revelar uma lição,
(MUCHEMBLED, 2001, p.50). Essa obsessão anunciado pelo narrador-protagonista de A
por Satanás atinge um grau absurdo, torna-se relíquia sugere que o episódio do encontro com
quase uma histeria coletiva, ocasionando a morte Satã assemelha-se aos “livros do Diabo”.
de milhares de pessoas nas fogueiras da Contudo, devido à ironia satírica subversiva, a
Inquisição. forma incomum do representante do Mal não
A importância alcançada pela figura provoca medo nem no protagonista, nem nas
demoníaca, no imaginário ocidental no período, amantes que o acompanham. Pelo contrário,
reflete a fenômeno de se atribuir à história do desperta o ciúme e a indignação de Teodorico,
Diabo a dimensão de um mito cósmico porque uma delas lançava “olhadelas oblíquas a
explicativo, fruto da necessidade de respostas potência de seus músculos”, enquanto ele,
que dessem um sentido à vida e dirigissem os “impudentemente”, pusera-se a marchar ao lado
comportamentos diante da angústia instaurada das personagens. (QUEIRÓS, 1998, p. 51).
por fenômenos inéditos; como o choque entre Aqui a ambiguidade e a sutileza da fala de
Reforma e Contra-Reforma, gerador de uma Raposo despertam o riso, tanto pela indignação
guerra acirrada de perseguições, e a descoberta da personagem ao desejar pudor nas atitudes
de um novo continente povoado por diferentes diabólicas, quanto porque o termo
habitantes com costumes e línguas estranhas. “impudentemente” sugere que não somente o
As normatizações sobre Além, Inferno, Céu, corpo, mas também o pênis tinha proporções
Bem e Mal tiveram a função de direcionar o avantajadas. A ideia está presente na tradição e
modo como se deveria viver e agir e, em funciona como símile da luxúria desenfreada e
especial, como as relações de poder deveriam da inclinação à obscenidade atribuídas ao Diabo.
acontecer. A união entre Igreja e Estado indica Nessa cena, porém, o efeito de riso é provocado
que a Inquisição desempenhou um papel muito pelo despeito e ciúme da personagem ao se
sentir preterido. Vinga-se, pois, questionando o

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comportamento lascivo e insaciável de Amélia: A partir de oitocentos, o campo do saber


“Porca, até te serve o diabo?” (QUEIRÓS, 1998, não pode mais dar lugar a uma reflexão
p.51). homogênea e uniforme para a vida e a
Satanás, no entanto, é descrito com um individualidade, que começa a ser desvendada
temperamento tranqüilo e atrapalhado, em em seus aspectos e limites. O sentimento de
oposição à sua imagem assustadora. Consoante a inconformismo diante da sociedade faz com que
religiosidade popular portuguesa (ESPÍRITO os artistas manifestem uma atitude de revolta e
SANTO, 1990), que o descreve como um ser rebeldia contra todos os tipos de valores, quer
não muito perigoso e um tanto tolo, o Diabo sociais, quer estéticos. Este posicionamento,
queirosiano atrapalha-se com seus cornos considerado um aspecto fundamental do
descomunais enganchados nos galhos das Romantismo, caracteriza-se como um protesto
árvores, além de apresentar o rústico hábito de universal e genérico contra o que representa um
escarrar antes de falar. Ele também revela uma limite ou uma regra e revela uma das faces do
postura de injustiçado, explicitada ao longo da satanismo.
conversa desenvolvida diante da ascensão de O interesse pelo Mal faz com que poetas,
Cristo que, na narrativa, contrariando os escritores e teóricos passem a discutir o
Evangelhos, ocorre logo após a morte de Jesus. problema sob diferentes aspectos, embora o
A construção da imagem do Diabo como foco predominante desse questionamento se
um ser injustiçado mais próximo do humano volte para Lúcifer, figura emblemática e
tem início com o século XVIII. A diversidade de fascinante pela rebeldia e altivez. Os românticos
obras artísticas reveladoras das transformações buscam o Diabo, que passa do estatuto de
da concepção do Mal aumenta à medida que o crença religiosa para o de símbolo literário,
debate sobre as questões diabólicas intensifica- porque este possibilita ao indivíduo a liberdade
se, ao longo de setecentos. O progresso das de ação, escapando de tudo que seja
ciências permite que filósofos, artistas, convencional, de todas as injunções impostas
pensadores e até alguns religiosos manifestem pela sociedade.
dúvidas em relação a existência concreta do De acordo com Praz (1996, p.93), o
Diabo. Entretanto, Satã não desaparece sob a Santanás de Paraíso Perdido funciona como
égide do racionalismo, mas, desde o final do modelo para uma série de personagens
século XVII, perdera sua influência no terreno caracterizadas como o herói do Mal ou facínora
das práticas sociais para reinar no mundo dos ambíguo, porque Milton lhe conferiu “todo o
mitos e símbolos. Em resumo: fascínio do rebelde indômito que antes pertencia
à figura do Prometeu, de Ésquilo...”. O herói
O diabo não desaparece com a Revolução satânico de Byron, misterioso, incompreendido e
Francesa, nem mesmo sob os violentos grandioso em sua rebeldia é a referência mais
golpes da razão, da ciência e da importante ao lado do magistral Mefistófeles
industrialização. Sua imagem continua a criado por Goethe em sua versão de Fausto
assombrar o imaginário ocidental, mas ela
(2004).
deixa de ter por referência exclusivamente
o dogma religioso para ligar-se a diversos Nesta peça, Goethe une a visão do
movimentos intelectuais, culturais e sociais demoníaco e o questionamento sobre o Mal à
europeus dos séculos XIX e XX. busca do conhecimento e à vontade de domínio
(MUCHEMBLED, 2001, p. 239). sobre natureza, revelando uma proximidade
entre Mefistófeles e o homem. Os diálogos da
A transformação da imagem diabólica peça refletem preocupações de intelectuais de
horrível e assustadora tem início com o oitocentos: críticos à ciência, à religião, as
Romantismo. No século XIX, o Mal, sintetizado alegrias terrenas, à liberdade. Mas a mensagem
em Satanás, deixa definitivamente de ser não se restringe ao Romantismo; em
representado como essa figura externa ao concordância com o decadentismo, Mefistófeles
homem, passando a ser um símbolo que é uma força contestadora servindo aos interesses
representa uma face da interioridade humana. do final do século XIX, assim como Fausto,
Assim, em vez de sentir culpa, medo ou simboliza a luta pelo desejo individual e pela
remorso, o indivíduo acredita sinceramente no responsabilidade decorrente.
seu direito ao prazer, não teme, portanto, Segundo Nogueira (2000, p.104),
rebelar-se.

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O Romantismo transformará Satã no artistas e dos intelectuais torturados para


símbolo do espírito livre, da vida alegre, tornar-se um grande suporte da
não contra uma lei moral, mas segundo publicidade, um produto de apelo capaz de
uma lei natural, contrária à aversão por desencadear reflexos pavlovianos de
este mundo pregada pela Igreja. Satanás prazer.
significa liberdade, progresso, ciência e
vida. [...] Amigo do homem e inimigo de Nesse contexto, emerge a criatividade de
Deus, que estabeleceu a ordem como um Eça de Queirós, que faz uso da concepção de
tirano, condenando ao sofrimento, à um Diabo humanizado e condenado ao
humilhação e à morte todos aqueles que
sofrimento, acrescentando as questões da busca
tinham por única culpa o desejo de
conhecer, Lúcifer está ao lado do homem, imediatista pelo prazer, explicitada no culto do
uma vez que, como homem, ele é demônio interior, e as propostas críticas da
condenado ao sofrimento. Geração de 703, grupo do qual o autor
participou ativamente.
Na profusão de obras sobre o Diabo
destaca-se a ideia de uma criatura esmagada pela O Diabo queirosiano é mais humano que se
tirania divina. Ele é um ser injustiçado que está imagina
mais próximo do humano. Sob a influência de
Byron, Baudelaire e Sade esta imagem se A narrativa subverte, pois, a versão oficial
difundiu em toda a Europa (PRAZ, 1996). Em sobre o dogma fundamental da fé cristã. A
suma, a imagem terrível e assustadora do Satanás heresia aprofunda-se ainda em conseqüência de a
medieval, símbolo dos desejos malignos narração do acontecimento ser feita pelo próprio
duramente combatidos em prol da salvação do Diabo que, por sua vez, não demonstra
mundo cristão, foi invertida gradativamente e nenhuma preocupação com o fato:
condensada em um símbolo mundano visto de
forma positiva por uma sociedade que questiona O diabo, depois de escarrar, murmurou,
os dogmas religiosos. travando-me da manga: ‘A do meio é a de
Jesus, filho de José, a quem também
Após os românticos reabilitarem as paixões
chamam o Cristo; e chegamos a tempo
humanas e a energia inebriante da liberdade, para saborar a Ascensão’. Com efeito! A
Satanás torna-se paulatinamente mais apreciado, cruz do meio, a do Cristo, desarraigada do
à proporção que o ser humano, sob os influxos outeiro, como um arbusto que o vento
do cientificismo, deixa de desconfiar de si arranca, começou a elevar-se, lentamente,
mesmo, de seu lado obscuro. O homem engrossando, atravancando o céu. E logo
valorizando o individualismo passa a se analisar de todo o espaço voaram bandos de anjos,
com prazer, sem recusar ou negar seus aspectos a sustê-la, apressados como pombas
anteriormente chamados animalescos. O que era quando acodem ao grão; [...] Subitamente
diabólico agora traduz a liberdade de espírito e tudo desapareceu. E o diabo, olhando para
mim, pensativo: ‘Consummatum est,
de idéias, o desfrute da vida, dos prazeres
amigo! Mais outro deus! Mais outra
terrenos e da modernidade, em uma clara religião! E esta vai espalhar em terra e céu
oposição à sacralidade da pureza do corpo um inenarrável tédio.’” (QUEIRÓS, 1998,
exigida pela Igreja como único meio de salvação p. 52).
da alma. Os dogmas religiosos deixam de ser
imperativos em favor de uma interpretação Eça constrói um mundo carnavalizado,
individual de cunho mais simbólico e segundo os preceitos de Bakhtin (1987), a
psicológico. Conforme conclui Muchembled história é invertida em relação à
(2001, p. 300):

O demônio interior moldou-se, assim, 3 A Geração de 70 nomeou um grupo revolucionário de jovens


pelo narcisismo de seu hóspede, o que acadêmicos de Coimbra – Antero de Quental, Eça de Queirós,
Oliveira Martins, Ramalho Ortigão e outros – que se reunia para
inverteu os códigos estabelecidos, a eles discutir livros, idéias e formas de renovação da vida cultural e
unindo o gosto sulfuroso do pecado e do política portuguesa. Terminada a Universidade, o grupo continua
prazer perverso da transgressão. Depois suas reuniões, em Lisboa, organizando as Conferências do Casino,
das fulgurantes experiências de Baudelaire, série de palestras que discutia o atraso cultural e os problemas do
país e proponha reformas às instituições. Balizavam-se pela defesa
Satã se transformou suavemente, de uma maior integração com a cultura européia. Cf.
burguesmente, deixando o universo dos (MACHADO, 1981).

SIQUEIRA, A. M. A. Imagens da Educação, v. 2, n. 1, p. 39-49, 2012.


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convencionalidade. A ironia queirosiana subverte subversiva, o Diabo é o patrono da alegria, do


a versão dos Evangelhos imiscuindo no texto prazer e do sabor da vida, proibidos pela nova
uma leitura, às avessas, da origem do religião.
Cristianismo conhecida e aceita. Satã, o vencido Na Antiguidade, os homens personificavam
no registro oficial, constrói sua versão da história as manifestações do Bem ou do Mal em seres ou
sem nenhum temor, pelo contrário, Jesus é visto deuses mitológicos. Na mitologia grego-latina,
como mais um deus, fundador de outra religião não há nenhuma divindade que represente
que espalhará o tédio pela terra. exclusivamente um destes conceitos. Os deuses
O ataque à doutrina cristã dirige-se podiam agir para o Bem ou para o Mal,
explicitamente à prática exclusivista que não dependendo das motivações. Já na mitologia
admite nenhuma outra crença impondo o tédio; celta, embora não haja a representação exclusiva
por outro lado, a indiferença do Diabo e a de um espírito do Mal, antagonista de um deus
qualificação de Jesus como “mais um” negam a criador, há deuses ambíguos, como Cernunnos e
idéia principal da ascensão de Cristo: de que seu Loki, que se aproximam da figura diabólica
sacrifício e ressurreição simbolizam a derrota de cristã. Segundo Messadié (2001, p. 148),
Lúcifer. Cernunnos é o deus celta
A intenção da conversa é evocar a tradição
religiosa para recontá-la de modo oposto. Assim, [...] cujo nome significa “o Cornudo”,
burlescamente, Satã continua sua narração estava certamente associado com os
descrevendo os cultos pagãos como prazerosos e Infernos, mas era também, como
alegres, tendo em vista que os deuses estavam Proserpina, deusa dos Infernos, o deus da
fertilidade, da sorte e das colheitas. Se ele
mais próximos dos homens:
era um diabo, esse deus de todos os
cervos, aos quais o nosso próprio Diabo
E logo, levando-me pela colina abaixo, o deve os seus cornos, era também um bom
diabo rompeu a contar-me animadamente diabo em certas alturas.
os cultos, as festas, as religiões que
floresciam na sua mocidade. Toda esta
costa do grande verde, então, desde Biblos Ou seja, os deuses de diversas religiões
até Cartago, desde Elêusis até Mênfis, anteriores ao Cristianismo possuem atribuições
estava atulhada de deuses. Uns positivas e negativas concomitantemente. A
deslumbravam pela perfeição de sua visão dualista é rara em mitologias antigas; de
beleza, outros pela complicação de sua um modo geral, podemos dizer que, nestas, os
ferocidade. Mas todos se misturavam à seres mitológicos e deuses são representações do
vida humana, divinizando-a; viajavam em Bem e do Mal, por isso, não há a necessidade de
carros triunfais, respiravam flores, bebiam criação de uma figura diabólica representante
vinhos, defloravam virgens adormecidas. suprema do Mal.
[...]
Além de valorizar esse aspecto das religiões
Mas aparecera este carpinteiro de Galiléia,
e logo tudo acabara! A face humana chamadas pagãs, é interessante notar a sutileza
tornava-se para sempre pálida, cheia de do discurso do Diabo ao atribuir a
mortificação; uma cruz escura, esmagando responsabilidade pela opressão à religião
a terra, secava o esplendor das rosas, tirava institucionalizada. É a cruz escura que esmaga a
o sabor aos beijos; e era grata ao deus terra. A crítica dirige-se à Igreja católica que
novo a fealdade das formas. (QUEIRÓS, transformou a mensagem libertadora e solidária
1998, p.52-53). do Novo Testamento em uma doutrina da
opressão. A galeria de personagens oprimidas
O discurso desenvolvido afirma que o em suas atitudes pela repressora tia Patrocínio é
Cristianismo, com sua ortodoxia exclusivista e uma pequena amostra do que ocorre também
vigilante, estabeleceu uma religião triste e em outras obras.
mortificadora, ao exigir a continência, a A narração instaura uma simpatia imediata
abstenção dos prazeres e o sofrimento dos entre Teodorico e Satanás, a afinidade entre os
homens. A cruz escura (símbolo da religião) dois é ressaltada pelo vocativo “amigo” usado
secou a beleza das formas, das rosas e o sabor pelo Diabo enquanto conversam. Por sua vez,
dos beijos – tudo que causava gozo ou alegria Raposo sente necessidade de confortar o
passou a ser visto como pecaminoso e príncipe maléfico:
demoníaco. Ou seja, nesta explanação

SIQUEIRA, A. M. A. Imagens da Educação, v. 2, n. 1, p. 39-49, 2012.


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Julgando Lúcifer entristecido, eu da história cristã, Eça de Queirós retoma o


procurava consolá-lo: ‘Deixe estar, ainda combate à instituição religiosa realizada pela
há de haver no mundo muito orgulho, Geração de 70, que considerava a Igreja católica
muita prostituição, muito sangue, muito uma das causas da decadência dos povos
furor! Não lamente as fogueiras do
peninsulares, ao lado da Monarquia absolutista e
Moloque. Há de ter fogueiras de judeus.’ E
ele espantado: ‘Eu? Uns ou outros, que me da política colonialista. Além de reuniões em que
importa, Raposo? Eles passam, eu fico! discutia um programa de combate ao atraso
(QUEIRÓS, 1998, p.53) institucional e cultural de Portugal, o grupo
organizou as conferências do Cassino,
A desconstrução absoluta da derrota do Mal, verdadeiro manifesto de suas idéias apesar da
proposta pelo ressureição, é revelada na apresentação individual de cada palestrante.
afirmação da eternidade do Diabo diante dos A conferência proferida por Antero de
outros deuses: “Eles passam, eu fico!”. A Quental, “Causas da decadência dos povos
afirmação peremptória revela o amalgama peninsulares nos últimos três séculos”, em maio
construtor da visão subjacente ao Diabo de 1871, aponta idéias semelhantes às expostas
queirosiano que relativiza a versão da religião pelo Diabo sobre a religião cristã. A principal
cristã para valorizar o humano em detrimento do considera que o Catolicismo modificado pelo
divino. Concílio de Trento (1545-1463), a Contra-
Nesse diálogo, Satã, lamentando os Reforma e a Inquisição, aliados, transformaram
sofrimentos impostos aos homens, solidariza-se o Cristianismo em uma religião opressora que
e humaniza-se por se sentir vítima do mesmo induz a atrofia da consciência individual,
despotismo: a recusa ao direito de escolha, ao enquanto a Monarquia absoluta constituía a
desejo de trilhar um caminho diferente do pré- ruína das liberdades sociais.
determinado. A propósito, a fala de Teodorico A propósito, Antero de Quental, espécie de
Raposo completa a crítica à impossibilidade de mentor dos jovens dessa geração propunha
liberdade ao relativizar o Bem e o Mal, quando como solução dos problemas a valorização dos
ferinamente lembra os horrores das fogueiras ideais oitocentistas (QUENTAL, 1980, p. 157):
inquisitoriais, que, em Portugal, tiveram uma
especial preferência pela perseguição aos judeus. Oponhamos ao catolicismo (...) a ardente
O trecho coloca em debate as críticas aos afirmação da alma nova, a consciência
livre, a contemplação directa do divino
princípios repressores do Cristianismo, que
pelo humano (...), a filosofia, a ciência, e a
foram combatidos pela Geração de 70 e crença no progresso, na renovação
incomodaram diversos intelectuais do século incessante da humanidade pelos recursos
XIX: a necessidade de abstenção dos prazeres inesgotáveis do seu pensamento, sempre
terrenos, o questionamento sobre o valor de inspirado.
uma vida de penitências e abnegações diante de
relativização das verdades absolutas advindas das A escolha da Geração de 70 e de Eça de
descobertas científicas e do pensamento Queirós é o livre pensamento e o direito à
decadentista finessecular. liberdade individual, representados, no romance,
A conversa entre Teodorico e o Diabo tem pela figura diabólica. Assim, nessa perspectiva, a
ecos das conversas entre Fausto e Mefistófeles; afirmação de eternidade e invencibilidade de
questionamentos sobre o direito ao Lúcifer está diretamente relacionada à sua
conhecimento, ao prazer e, especialmente, sobre humanização, enquanto expressão dos desejos e
o direito de uma instituição religiosa impor questionamentos humanos. Não somente Satã
limites ao homem. Essa descrença nos tem como característica a rebeldia e a
fundamentos dos dogmas cristãos tem como insatisfação diante de leis fechadas e coercivas.
fulcro o questionamento da autoridade, da Não faltam exemplos na história a explicitar que
influência e do poder exercido pela Igreja. sempre haverá insatisfeitos com este ou aquele
Por não reconhecer esse direito, o Diabo de sistema religioso, político ou social. Assim como
A relíquia sente-se injustiçado. Ele encarna o não são raros os defensores dos direitos e
espírito de oitocentos: defensor dos ideais desejos individuais, do livre espírito e da
individualistas e incrédulo diante das liberdade. Sob essa óptica, o Diabo permanece
delimitações doutrinárias e sociais. A partir dessa enquanto existir o homem e seus anseios.
figura altamente polissêmica, o primeiro rebelde
SIQUEIRA, A. M. A. Imagens da Educação, v. 2, n. 1, p. 39-49, 2012.
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Considerações finais que não pratica a verdadeira fé. Segundo essa


concepção pessimista, Deus está distante da
O Satanás desta obra é uma projeção do humanidade, porque a Igreja não exige a crença,
protagonista, de sua interioridade que reclama da mas o rito, apartado de seu sentido profundo em
opressão imposta pela Igreja católica, do poder favor do interesse econômico e político.
coercivo que gera o comportamento hipócrita,
visto que o homem (Teodorico Raposo) não crê, REFERÊNCIAS
mas quer parecer crer para agradar e alcançar a
herança. AGOSTINHO. O livre-arbítrio. São Paulo:
O Diabo representa, portanto, os anseios de Paulus, 1995.
prazer e satisfação individual defendidos pelo
século XIX e pelo narrador-protagonista. ALMEIDA, Fr. A. J. de. Imagens de Papel. O
Todavia, como toda imagem invertida tem seu Flos Sanctorum em linguagem português, de
oposto complementar, a crítica de Eça também 1513, e as edições quinhentistas do de Fr. Diogo
atinge a média burguesia portuguesa na figura do do Rosário - A problemática da sua ilustração
protagonista que segue os ritos cristãos por xilográfica. 2005. Tese (Doutorado em História
necessidade e interesse, mas não crê em Deus. da Arte). Faculdade de Letras da Universidade
Ele reflete essa classe desejosa de poder e do Porto, Porto, 2005. Disponível em:
conforto, caracterizada pela esperteza e pela http://flossanctorum.blogspot.com/2007/11/s-
adulação ao poder econômico e às instituições nicolau-no-flos-sanctorum-de-1513.html.
mais influentes, como a Igreja.
Teodorico Raposo admira o Diabo, símbolo BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade
da rebeldia, porque é acomodado e oportunista, Média e no Renascimento: o contexto de
não tem coragem de se rebelar e enfrentar as François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Unb,
conseqüências de ser expulso da rica casa da tia 1987.
para um inferno de necessidades e trabalhos. A BÍBLIA. A Bíblia de Jerusalém. 7. ed. São
hipocrisia é, portanto, a única escolha possível. Paulo: Paulus, 1995.
Dessa forma, o nome funciona, como uma
síntese dessa classe: Teodorico, de origem ESPÍRITO SANTO, M. A Religião Popular
teutônica, significa senhor do povo – o Portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvim, 1990.
português mediano; e Raposo, símbolo da
astúcia e esperteza. GOETHE, J. W. von. Fausto. São Paulo:
Ironicamente, a responsabilidade desse Editora 34, 2004.
contexto recai sobre a instituição que
transformou a mensagem de Cristo em opressão. LINK, L. O diabo: a máscara sem rosto. São
Por isso o sonho, onde acontece o amistoso Paulo: Companhia das Letras, 1998.
diálogo, termina com a irrupção da terrível
representante portuguesa da Igreja católica: MACHADO, Á. M. A geração de 70: uma
revolução cultural e literária. 2. ed. Lisboa:
Assim, despercebido, a conversar com Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1981.
Satanás, achei-me no Campo de Santana.
E tendo parado, enquanto ele MAGNE, A (Ed.). Demanda do Santo Graal.
desvencilhava os cornos dos ramos de Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944. 3 v.
uma das árvores, ouvi de repente ao meu
lado um berro: “Olha o Teodorico com o MESSADIÉ, G. História geral do diabo.
Porco-Sujo!” Voltei-me. Era a Titi! A Titi, Lisboa: Europa-América, LDA, 2001.
lívida, terrível, erguendo, para espancar, o
seu livro de missa! Coberto de suor, MUCHEMBLED, R. Uma história do diabo:
acordei. (QUEIRÓS, 1998, p. 53). séculos XII-XX. Rio de Janeiro: Bom Texto,
2001.
A obra não propõe o elogio do Diabo; ela
revela uma necessidade premente de denunciar a NOGUEIRA, C. R. F. O diabo no imaginário
hipocrisia da sociedade portuguesa, onde a cristão. Bauru: EDUSC, 2000.
Igreja, uma das instituições mais influentes,
pactua com a burguesia individualista e hipócrita PRAZ, M. A carne, a morte e o diabo na
literatura romântica. Campinas: Unicamp,
SIQUEIRA, A. M. A. Imagens da Educação, v. 2, n. 1, p. 39-49, 2012.
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1996.

QUEIRÓS, E. de. Vidas de santos. Rio de


Janeiro: Casa da Palavra, 2002.

______. A relíquia. Rio de Janeiro: Ediouro,


1998.

______. Obra completa. Rio de Janeiro:


Aguillar, 1970. 2 v.

QUENTAL, A. de. 2ª Conferência: Causas da


Decadência dos Povos Peninsulares. In:
MEDINA, J. Eça de Queiroz e a Geração de
70. Lisboa: Moraes, 1980, p. 157-158.

REIS, J. B. Introdução. In: QUEIRÓS, E. de.


Prosas bárbaras. Porto: Lello & Irmão, [19--],
p.5-53.

SANFORD, J. A. Mal: o lado sombrio da


realidade. São Paulo: Paulus, 1988.

Recebido em: 13 de novembro de 2011.


Aceito em: 21 de dezembro de 2011.

SIQUEIRA, A. M. A. Imagens da Educação, v. 2, n. 1, p. 39-49, 2012.

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