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CENTRO DE ESTUDOS SUPERIORES

“SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS”

VINÍCIUS SANTOS DOS REIS

Curso: 1º ano de Teologia


Disciplina: História da Igreja Medieval
Docente: Prof. Dr. Pe. Robson Fernando Correa Leite

A Religiosidade na Idade Média

São José do Rio Preto – SP

2022
A Sociedade Cristã (Séculos XX – XIII)1

No limiar do ano mil, a literatura do ocidente conhece uma sociedade composta


por sacerdotes, guerreiros e camponeses, três categorias que se complementam
formando a sociedade, essa sociedade tripartite fica clara em Consolação de Boécio,
Aelfric e Wulfstan, do ano de 1030 temos o relato do bispo Adalbéron de Laon onde a
sociedade dividida em três classes, com funções muito bem definidas, aparece de
modo evidente: oratores, bellatores e laboratores.

A tripartição da sociedade remonta o início das sociedades indo-europeias, nos


séculos VIII e XI a aristocracia se compreende num contexto militar – cavaleiros,
desde o período carolíngio, os clérigos constituem uma classe que faz de tudo para
se distanciar do povo, refletindo esse aspecto na liturgia e arquitetura religiosa. Os
camponeses vivem em condição de servos.

Nos séculos V e XII conhece-se uma grande diversificação de classes, no


século X o bispo Rathier de Verona enumera em 19, mas a grande categorização
parte de dualismos: clérigos e leigos, ricos e pobres, livres e não livres, entre outros,
nesse aspecto uma minoria assume o monopólio enquanto a grande maioria se
submete.

É apenas na proximidade do ano mil que a tripartição se torna evidente e


operante, e remete a religião, poderio militar e o econômico, em um primeiro momento
essas classes representam uma harmonia social, para além de compreender que os
camponeses eram submetidos as duas classes, evidencia-se que o clero desejava
submeter as outras duas classes a si, inclusive os cavaleiros, essa disputa está no
âmago do conflito de poder entre a Igreja e o Império.

A idealização do cavaleiro cristão indica o triunfo da classe clerical, não é o


caso do ciclo arturiano, onde parece difícil encontrar um equilíbrio entre o poder do
clero e o dos cavaleiros e não tendendo a nenhum lado definitivo.

Os trabalhadores, laboratores, onde labor aparece remetendo a um sentido


econômico mistura-se com todos os demais camponeses, como testemunho literário,

1 LE GOFF, Jacques, A civilização do Ocidente medieval. Petrópolis, Editora Vozes, 2021.


1
temos o Capitular do Saxões, século VIII, onde a diferença entre substantia (herança)
e labor (adquirido) elucida a questão desta terceira classe.

O laborador, na literatura ociedental deste período, é aquele que produz, na


carta de Saint Vincent Mâcon aparecem como a elite do laboratores, de onde deriva
do francês a palavra lavradores, na França, essa sociedade tripartida dá origem aos
três estados: clero, nobreza e terceiro estado, situação que só será superada com o
advento da Revolução Francesa em 1789, onde triunfa o terceiro estado. A literatura
ocidental testemunha que estes trabalhadores estavam entre os mais pobres.

Para designar a tríplice divisão da sociedade da Idade Média, utiliza-se um


vocabulário diversificado de acordo com a intencionalidade, por exemplo, o termo
ordem quando utilizado, traz consigo uma visão religiosa, ao mesmo tempo poderia
significar um estatuto jurídico, assim como classe seria econômica, a tendência é a
utilização de “classes” tendo nela o sentido de “ordens”.

O surgimento de uma nova classe, os mercadores e usurários, essa nova faz


com que as outras sejam desestabilizadas, uma vez que ela se recusa a se submeter
as outras e obriga a trocar a terminologia “ordem” por “condição”, e por fim em
“estado”, é um tema recorrente na literatura dos séculos de XII à XIV, na literatura do
período vê-se a divisão desses estados segundo as condições sociais, num livro de
sermões alemão de 1220, temos a divisão da sociedade em 28 estados.

Essa sociedade cada vez mais hierarquizada, com raríssimas exceções,


identifica as grandes autoridades ao topo da hierarquia (Papa, bispos, governantes) e
os lavradores ao final, de modo que os que estão acima conduzem a vida dos que lhe
estão submetidos, nesse sentido ocorre uma fragmentação desta sociedade, sua
divisão a enfraqueceu, assim como se sucedeu a sociedade das três ordens: quebra-
se quando as instituições se distanciam entre si.

A igreja se adequa a esta nova condição, nós observamos isso na publicação


do século XII “líber de aedificio Dei” onde nós vemos que toda a profissão encontra
na religião católica uma forma de vida segundo sua condição. A igreja então aceita a
ideia dos estados, mas impõe lhe distintos pecados. Este tema é recorrente na
literatura e clerical a partir do século 12, onde cada pecado específico atinge um
estado da sociedade. Nesse período também surge uma literatura homilética que se

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dirige a cada um dos estados. Este tema é recorrente nas ordens mendicantes. Mas
o reconhecimento, ou seja, o estabelecimento desses estados na igreja se dá quando
eles aparecem nos manuais de confissão. No século 13, o confessionário de Jean de
Friburgo organiza os pecados tal como cada estado da sociedade. O desenvolvimento
deste tema faz com que a sociedade cristã veja esses estados da sociedade como o
corpo humano, que tem diversos membros e uma cabeça que seriam os estados
maiores. Esta visão dualista reflete como se organizou a sociedade cristã na idade
média, onde a unidade era vista como algo bom e a diversidade como algo mal.

O Papa e o imperador representavam as duas potências na cristandade, eles


não tinham entendimento, estavam constantemente em desacordo. Essa rivalidade
refletia entre sacerdotes e guerreiros, no ocidente, a liderança papal nunca foi
contestada.

O Dictatus Papae de 1075, de Gregório VII coloca a soberania do papa em


relação a toda cristandade. O Imperador nunca foi figura hegemônica. Isso reflete-se
sobre as grandes vacâncias entre uma eleição imperial e outra, em contrapartida
temos os curtos períodos de vacância da sede papal.

Está aceitação do imperador como cabeça da cristandade, sempre foi mais


teórica, literatura deste período se tem canonistas dizendo que os reis da França e
Espanha não deviam submissão ao imperador. Já os papas deste período almejavam
ser uma espécie de rex sacerdos. Carlos Magno reclama para si o poder sacerdotal,
em uma espécie de novo Davi.

Os reis-imperadores buscam durante toda a idade média o reconhecimento de


um caráter religioso de sua função. Isso nós podemos observar na cerimônia de
coroação papal. Gui de Osnabruck diz que o rei participa do Ministério sacerdotal e o
uso do anel e do cetro nada mais são do que réplicas das insígnias papais.

Do lado do papal, os pontífices se apoiam na doação de Constantino para se


colocarem como soberanos em Roma, a partir do século XI, o papa usa a tiara, que
no século XIII, passa a possuir três coroas. Desde 1099 os papas são Coroados e,
desde Gregório VII são entronizados em Latrão.

A Reforma Gregoriana conseguiu libertar a Igreja do servilismo perante a ordem


laica, em contrapartida, a Igreja sempre ajudou os reis, se tem toda uma literatura

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escrita por sacerdotes que definem a função dos reis, por exemplo, Espelhos de
príncipes. Neste sentido: o rei defende a Igreja e a Igreja, sacraliza o poder, se o rei
se distancia desse ideal, a igreja o relembra de sua indignidade.

Em teorias as armas da igreja são as espirituais, contudo, São Bernardo em


um tratado dá ao Papa os dois gládios, as duas espadas, nessa linha se insere a teoria
das Luminárias, que, remontando o livro do Gênesis, diz que o Sol é o Papa que
ilumina a luminária menor, o imperador.

O Papa impede que o imperador absorva a função sacerdotal, de modo que os


2 gládios ou as 2 espadas permanecem em mãos separadas. Isso fica evidente na
controvérsia que envolve Filipe, o Belo e Bonifácio VIII. Ao final, resta aos 2 poderes
eliminarem suas rivalidades e pensar em meios de se ajudarem.

Na sociedade medieval a diversidade de línguas era vista como consequência


do pecado original, na Idade Média a diversidade de línguas é figurada na Torre de
Babel, de modo que para afastar essa confusão, os clérigos introduzem o uso do latim,
para de algum modo unificar a sociedade medieval.

Surge um latim eclesiástico compreendido apenas pelos sacerdotes, utilizam


dele São Bernardo, Santo Anselmo, entre outros, contudo esbarra-se na identificação
que cada país tinha com sua própria língua, especialmente franceses e alemães, e os
grupos linguísticos, com seu nacionalismo arraigado acabam sendo associados aos
pecados e vícios.

Por fim, como observa-se na doutrina de Santo Agostinho e Santo Tomás de


Aquino, a diversidade de modo algum impede a salvação, pelo contrário, são
instrumentos úteis que conduzem cada qual ao seu modo.

A ideia de unanimidade foi recorrente na Idade Média, no século XIII temos o


canonista Huguccio ensinando que é vergonhoso não pertencer a maioria, dessa
maneira, o homem medieval estava ligado a uma série de grupos e deveria manter
obediência a uma série de pensamentos.

Dessa maneira, não há representação do homem em sua individualidade, toda


vez ele é inserido e expresso em algo coletivo, o senso de liberdade medieval era
pertencer a um senhor que fosse o mais poderoso.

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Em um primeiro estágio, o homem pertence ao seu grupo familiar, no caso dos
nobres, esse grupo constituído por linguagens sanguíneas era solicitado em caso de
necessidades, o grande objetivo era a manutenção de um patrimônio que fosse
comum, é desse modo que também surgem tensões, seja entre meios-irmãos, filhos
bastardos e em situações extremas, entre pais e filhos.

Entre os camponeses, a família habitava uma mesma casa e cultivava uma


propriedade comum, viviam um senso de comunidade, uma peça fundamental na
sociedade, mas não possuía uma expressão jurídica.

A mulher ocupava um lugar de insignificância da sociedade, era vista como a


causadora do pecado original e o cristianismo difundiu a ideia de São Paulo de que o
“esposo é a cabeça da mulher”, apenas a partir dos séculos XII e XIII, com o
desenvolvimento do culto à Virgem Maria, é que se muda de alguma forma a visão
sobre as mulheres, em suma a mulher camponesa era destinada para servir a casa e
ao marido.

As mulheres Nobres gozavam de um certo prestígio, isso se reflete na literatura


da época, as cruzadas serviram para aumentar o poder das mulheres, pois algumas
rosinhas tornaram-se verdadeiras governantes de seus países.

Quase não se encontram crianças nas representações artísticas da Idade


Média, nem sempre passavam por algum processo de educação simplesmente saíam
dos seios de suas mães e eram lançadas ao trabalho acreditava-se que a criança
sufocava mãe depois fazia com que ela ocupasse todo o seu tempo em favor delas e
depois ela adquiria autonomia e deixava o lar.

Outra forma de pertença do homem medieval é ao senhorio, ou seja, vassalo e


camponês, de modo que estes homens de poder detinham controle até sobre funções
públicas, como as questões jurídicas, também consistia numa relação e direitos e
deveres de um para com o outro.

A comunidade rural era de certa maneira opositora ao senhorio, nela vivia-se


uma espécie de comunitariedade, não significa que havia o senso de igualdade,
nessas comunidades algumas famílias possuíam certa proeminência.

Já nas comunidades urbanas temos a formação de confrarias e corporações,


se por um lado era instrumento de proteção para seus membros, tanto física,
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econômica e espiritual, por outro sujeitava aqueles com condições financeiras
menores, assim ambos formatos de comunidades contribuíram para a opressão do
indivíduo.

A cidade era ponto de atração como de repulsão na sociedade medieval,


apesar de que se entende que as grandes cidades do período medieval não eram
densas em população, outro ponto é a grande ligação que ela ainda possuía com o
campo.

Contudo, começa se desenvolver uma grande mentalidade urbana, de modo


que no século XIII, os grandes mercadores já não recorriam ao campo, mas gastavam
seus recursos dentro da cidade, outro ponto a se destacar é que o ingresso do
camponês na cidade, o livrava da servidão do senhorio rural.

Havia uma intensa luta de classes na sociedade medieval, a que mais se


destaca na literatura medieval é a de burgueses contra nobres, nisso desenvolvem-
se disputas, confrontos, entre outros. A que mais aparece na literatura medieval são
burgueses em disputas com eclesiásticos, onde os acessos de raiva de alguns
burgueses se justificam pelo comportamento de alguns prelados.

No campo aconteciam os embates mais severos, no âmago das lutas não


estavam apenas o desejo de melhores condições ou perdão de dívidas, mas a luta
pela sobrevivência, havia uma grande hostilidade pela figura do camponês, era visto
como que destinado ao inferno.

O próprio sistema jurídico vigente favorecia os senhores e desfavoreciam os


camponeses, vistos como animais selvagens, de modo que ações praticadas por
camponeses eram criminosas, quando praticada pelos senhores não eram
compreendidas como erradas.

O surgimento de uma nova classe no meio urbano, os patrícios, promove um


desbalanceamento nas outras classes, no meio urbano os ricos estão sempre opostos
aos pobres, e os chamados trabalhadores manuais acabaram se voltando contra
aqueles que os desprezavam, principalmente porque se observa que dos séculos XIII
ao XV, o trabalho e o trabalhador são reduzidos a uma mercadoria.

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Neste contexto as mulheres sofrem uma marginalização quase que dobrada,
frequentemente são meros objetos entre os homens de diferentes classes sociais,
trabalhando de modo exaustivo e justa remuneração.

Dentro desse contexto de diversas lutas de classes a Igreja aparece,


teoricamente, como a mantedora do equilíbrio, é evidente que a Igreja nunca
negligenciou sua dimensão caritativa, mas não se ignora o fato de que muitas vezes
tomou o partido opressor, um registro literário do século XII corrobora esse
entendimento por meio de uma autocrítica.

A realeza não distinguia da Igreja em sua posição, ambas agiam em íntima


colaboração, por vezes o monarca sente-se com medo das classes sociais, uma vez
que por seu comportamento se sente ameaçado por elas.

Surge nesse período as confrarias, que eram maneiras de dissociar a luta de


classes, nela vivem pessoas com interesses comuns ou estado de vida semelhantes,
por exemplo viúvas e virgens, assim como as classes etárias, onde o jovem era de
certo modo introduzido na estrutura de cavalaria, os anciãos não desempenham papel
preponderante na sociedade medieval, uma vez que a expectativa de vida era curta.

Na sociedade medieval eram diversos os locais de encontro dos indivíduos, a


igreja em primeiro plano era o centro de vida paroquial, nela se formava
espiritualmente e intelectualmente, os castelos são centros de vida os filhos dos
vassalos se encontram para algum aprendizado.

Os camponeses se encontravam nos moinhos, os burgueses nas praças de


mercado, a taverna consistia num local democrático de encontro, onde o próprio
senhor incentivava que se frequentassem, já que ele fornecia e taxava as bebidas.

Dentro do contexto de luta de classes, as heresias exerceram papel


preponderante, a adoção de certas heresias, como catarismo, por categorias sociais,
promoveram uma grande reviravolta na oposição a Igreja e a sociedade como um
todo.

Na ordem medieval a exclusão da sociedade era baseada em diversos fatores,


sob a influência dos canonistas, justamente quando a inquisição era instalada, a
heresia passa a constituir um grave crime.

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Contra os hereges judeus o IV Concílio de Latrão os obrigam a usar um sinal
distintivo, decidem colocar todos os leprosos em um único lugar tirando assim a sua
Liberdade. Porém a necessidade dos judeus de seus empréstimos faz com que
Papas. Abades e Governadores os protejam.

Mas a partir da primeira cruzada floresce uma espécie de antissemitismo,


durante a Idade Média, as pessoas possuídas eram confundidas com feiticeiras e
acabavam sofrendo retaliações, a partir do século XIII estabelece uma verdadeira
caça aos feiticeiros.

No que diz respeito a sodomia, carece de elucidação, uma vez que ela é
indulgente com quem está na alta sociedade, mas para os que estão nos níveis mais
baixos é considerado pecado contra a natureza. Por fim o verdadeiro excluído da
sociedade era o estrangeiro, pois ele não era súdito de nenhum rei ele não devia
obediência a ninguém, assim como aqueles que também não se encontravam em
lugar nenhum, também estes eram facilmente excluídos da sociedade medieval.

A Sociedade Medieval e Deus2

Para compreender a complexa relação que havia entre Deus e a sociedade


medieval, deve-se ter em vista como Deus era caracterizado pelo homem da Idade
Média, em primeiro ponto destaca-se que o Deus cristão se estabelece em uma
sociedade que saí da Idade Antiga e coloca-se no sistema feudal.

Compreender o sistema feudal abre caminho para a compreensão de Deus


nesse período, neste sistema temos a figura de senhores que cobram pela posse da
terra, a base em sua maioria é camponesa, até o século XI não era livre, neste interim
surgem dois governos: um urbano que assume papel estatal, e a partir do século XII
constitui as monarquias e outro religioso, que é a Igreja.

Os senhores controlam as vidas dos camponeses e a Igreja controla a relação


com Deus, isso evidencia-se até na composição do Sacro Império Germânico, onde o
imperado sentia-se como intermediário entre o povo e Deus, é nesse contexto que se
insere a figura de Deus, é por isso que nesse período ele é conhecido pela alcunha

2 LE GOFF Jacques, O Deus da idade média. 6ª edição, Rio de Janeiro, civilização brasileira, 2021.
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de Senhor, o Senhor dos senhores, ele já não recebe um nome como no judaísmo e
islamismo, sua potência é ligada ao fato de Ele ser rei.

Isso evidencia-se pela representação de Deus, na arte medieval, como um


soberano, essa representação causou algumas controvérsias, a idealização na arte
como uma mão que sai das nuvens, evocava o domínio e o comando do sistema
feudal: a mão que ordena, mas é fato que no decorrer da Idade Média, esse Deus
assume cada vez mais aspectos de bondade – O Bom Deus.

Quando olhamos para a Santíssima Trindade, vemos que Deus Pai acaba
assumindo aspecto dominante, justamente pela ideia majestática que se arraigou a
Ele, uma figura sentada, com papel de decisão, um juiz, já a figura de Deus Filho,
apesar da temática gloriosa da segunda vinda como Juiz, é representada,
principalmente a partir do século XI, como humilde e sofredor: O Cristo Crucificado.

Nesse contexto é que a justiça divina ganha espaço, pois acreditava-se que
assim como Deus permite a desordem, também Ele vem restabelecer, insere-se então
uma visão de Deus ligada à justiça e a paz, utilizam-se de meios controversos, provas
e combates, para designar se uma pessoa é inocente ou não, algo que é suprimido
no início do século XIII, quando se desenvolvem métodos judiciários mais justos.

A virtude da paz também é frequentemente associada a Deus, para tanto a


Igreja se empenha em um grande movimento de pacificação, o que resulta em
períodos pacíficos, a chamada paz de Deus, assim os príncipes e reis assumem o
lugar de Deus na promoção da paz, e vemos os governantes encarnando esse papel,
desde o Rei São Luís, até Guilherme, o conquistador.

Ao mesmo tempo, a figura de Deus também foi utilizada para a legitimação do


poder, o rei se colocava como imago Dei – imagem de Deus, as representações dos
grandes reis do Antigo Testamento nas fachadas de Catedrais, faziam com que o
povo, de modo inconsciente, enxergasse nele os seus reis.

A sacralização das figurais reais não eram consenso entre todos, uma fonte de
contestação são os sermões, onde os sacerdotes, por meio da interpretação da
Sagrada Escritura, fazem verdadeiras críticas, com uso inclusive do Primeiro Livro de
Samuel, ao poder real constituído.

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A Igreja e o sistema feudal estavam profundamente unidos, tanto que a queda
do feudalismo provoca abalos na Igreja, de algum modo, passou-se a ideia de que
Deus era o ápice e o fiador de todo sistema feudal.

Duas figuras maiores, o Espírito Santo e a Virgem Maria3

O Espírito Santo assume um grande papel na sociedade medieval, entre os


sacerdotes e no centro das disputas teológicas e o colocava cada vez mais na
sociedade, especialmente retomando a temática dos sete dons, esse tema remonta o
profeta Isaías, e no desenvolvimento teológico é retomado principalmente por Santo
Agostinho.

O Santo Bispo de Hipona faz uma inversão na listagem dos dons, aparecendo
a Sabedoria como em primeiro lugar, desse modo o entendimento passa a ser de que
Deus é o doador dos dons e o seu Temor (que passa a ser o sétimo dom) é uma
consequência. Entretanto, Santo Agostinho fixa-se no dom da Ciência, de modo que
assim entende-se que o saber não é um simples privilégio de alguns, essencialmente
clérigos, mas um dom Deus que o concede a quem pede.

É dessa maneira que Ele é introduzido na vida social, adequado as novas as


novas atividades da sociedade feudal, sendo colocado com papel superior em
determinadas atividades e até nas confrarias e locais de atendimento ao público.

Assim o Espírito Santo, na sociedade medieval, não apenas se faz presente no


batismo dos grandes reis, mas está na vida profissional dos indivíduos, isso é o que
contribui para sua popularidade, essa questão perpassa também o discurso teológico,
ou seja, os sermões, assim como também faz parte das grandes disputas acadêmicas
deste período.

Quanto a disputa sobre o que seria maior: dons ou virtudes, Santo Tomás
encerra a questão colocando os dons em primeiro lugar, pois eles agem
sobrenaturalmente, enquanto a virtude por meio da faculdade humana, assim o
Espírito Santo ocupa papel de superioridade. É nesse sentido que se fala de uma
flexibilização do monoteísmo, Deus continua sendo único, mas delega seus poderes
entres Divinas Pessoas.

3 Ibid
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É nesse sentido que surge nesse período a obra de Gioacchino da Fiore, onde
Deus é dividido entre os períodos históricos, sendo o tempo do Antigo Testamento a
Idade do Pai, o tempo da Igreja, a Idade do Filho e o tempo presente, e momento final,
a Idade do Espírito Santo, uma espécie de milenarismo que identificou Frederico II
como anticristo, e acreditava que o Espírito Santo conduziria a uma sociedade de
iguais.

Entre 1200 e 1400 as formas de representar a Trindade variaram, seja como O


Trono da Graça, onde o Pai está sentado, o Filho crucificado e o Espírito como pomba,
em posição relativa, como figurado no salmo 110 (109), o Pai e o Filho no mesmo
trono e o Espírito entre ambos, exaltando a Paternidade, e Deus Pai sustenta o Filho,
o Espírito Santo ausente, em posição triândrica, um mesmo corpo, mas com três
cabeça.

Do século XIV para o século XV aparecem dois tipos de representação: “A


Trindade sofredora”, com Deus Pai sustentando Deus Filho crucificado e o Espírito
Santo como pomba, acima, e a “A Trindade gloriosa” onde se encontra junto dos três
a figura de Maria, que é coroada pelas três pessoas, simbolizando a divinização da
Mãe de Deus.

Da mesma forma que na flexibilização do monoteísmo visualizamos uma


especialização, assim também ocorre com as demais devoções, a difusão de um Deus
que é bom traz consigo a concepção de um Deus que nos guarda, para isso se utiliza
da figura do anjo da guarda, cabe perguntar quem, então, viabilizaria uma relação de
Deus com os homens, é então que a figura de Maria é introduzida nessa situação.

Conforme as necessidades e os problemas foram surgindo, a sociedade


medieval precisava de novas extensões da manifestação de Deus, segundo sua
necessidade, as infelicidades, por exemplo, fazem com que o povo se identifique com
o Deus sofredor, ao Cristo da Paixão, é por isso que nesse período ocorre a exaltação
da figura da Virgem Maria, e como dito anteriormente, do Espírito Santo. Mas longe
de pensar que a devoção mariana exaltou a mulher, o que se sucedeu foi a elevação
de Maria, a devoção a Nossa Senhora serviu para promover as crianças.

A criança não tinha espaço na sociedade medieval, é equivocado dizer que as


crianças não eram objetos de afeição de seus pais, mas é notório que a criança foi

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promovida extraordinariamente, isso fica muito evidente na iconografia, onde a figura
do Menino Jesus passa a ser destacada.

Entre os séculos XIV e XV duas outras imagens de Deus se sobressaem, a


peste faz evocar aquela face divina tal como na invasão dos mongóis, a do Deus da
cólera, o Deus da punição, em contraste com o “Bom” Deus, ambas imagens serão
alternadas ao longo da história.

Rumo a uma nova revolução do espírito4

No âmago de toda história, certamente encontramos a história do espírito


humano, o homem é a grande testemunha das grandes transformações pelas quais a
sociedade é submetida. Dois grandes homens podem ser tomados como testemunhas
das transformações na Europa dos séculos XIV e XV.

Leon Battista degli Alberti (1404) veio de uma família de notários e cambistas,
quando seu pai morreu, a família queria que administrasse os negócios, como recusou
para se dedicar aos estudos, teve sua renda financeira retirada, em 1428 se licencia
em Direito Canônico, serviu na corte do Papa Eugênio IV, período que se interessa
pela arquitetura da Roma antiga, empreendendo restaurações.

Com a eleição de Nicolau V, passa a dedicar-se a arquitetura, desenvolveu


uma vasta obra matemática, seus trabalhos de engenharia obtiveram grande impacto,
ao final dedicou-se as pesquisas científicas e Filosofia, morre em 25 de abril de 1472.

Leonardo da Vinci (1452) filho de um notário, com o auxílio dos Médici estudou
pintura, segue para Milão onde serve Ludovico, o Mouro, como engenheiro e pintor,
colaborando com as catedrais de Milão, Pavia e o castelo de Milão, período que pinta
a Santa Ceia em Santa Maria delle Grazie.

Com a invasão de Milão parte para a França, a serviço de Francisco I, onde


morre em 2 de maio de 1519, sua obra é ampla e expressa conhecimentos em pintura,
engenharia e anatomia.

Ambos se ligam diretamente com a economia de seu tempo, seja pela origem
familiar, como pelo trabalho desenvolvido, assim se combina tanto a ciência, como a

4WOLFF Philippe, Outono da idade média ou primavera dos novos tempos?. São Paulo, edições 70,
1986.
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arte e o pensamento. Aliás, são estes homens de negócios que exercem o poder
político e tornam as cidades cada vez mais proeminentes, tornam-se cada vez mais
sedentarizados dirigindo seus impérios.

Nesses chamados “homens da cidade”, desenvolve-se cada vez mais o gosto


pelos estudos, e cada vez mais se separam da Igreja, a própria visão de mundo
aparece diferente, passaram por um grande aperfeiçoamento, valorizar as
informações na tomada de decisões e negócios.

Há um gosto por representações que fossem exatas, com utilização de


equipamentos para dar exatidão, desenvolve-se um sistema de horas iguais aos dos
relógios das cidades, querem conhecer a anatomia do corpo humano, a forma do
mundo, e são essencialmente capitalistas, preocupam-se apenas com meios de obter
riquezas.

Deve se levar em conta que os homens e mulheres da Idade Média passaram


por uma série de situações catastróficas, como a peste, de modo que a morte era um
tema iminente na sociedade, com isso observa-se que nesse período passa a ocorrer
uma evolução da arte tumular, representando ora a opulência e ora a finitude da vida.

Junto com a evolução tumular, temos o desenvolvimento do testamento, a partir


do século XII, ele não apenas se recomenda a Deus, aos santos e indica sua
sepultura, mas dá todas as providências para seu funeral, indicações e execução dos
desejos, de modo que a grande distribuição de bens para fins piedosos, indica uma
espécie de freio na acumulação de riquezas.

Um grande problema moral desse período é o da usura, a Igreja preconizava


uma moral tradicional, esse grande embate estará presente em toda Idade Média e
aparece nas correspondências epistolares e sermões desse período.

Nesse período também surge duas atitudes religiosas e morais, uma


tradicional, onde a religião é vivida por meio de práticas exteriores, e outra é a
indulgência, onde não se obtém o perdão dos pecados, mas a satisfação pelos
pecados perdoados.

Surge a concepção de que a vida religiosa é, em certo sentido, superior a vida


laica, é nesse espírito que surgem as confrarias, já no século XIV tem grande impulso

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uma interiorização do sentimento religioso, chamada de Devotio moderna, um grande
representante é a obre Imitação de Cristo de Thomas a Kempis (século XV).

Nesse novo movimento, as mulheres têm papel importante, mas destacam-se


três nomes: Leonardo Bruni, secretário da chancelaria pontifical, escreveu História do
Povo Florentino, sociólogo, recusou a nomeação de bispo. Nicolas de Cues, doutor
em Direito, discutiu a supremacia papal e a Doação de Constantino, critica uma
religião sem livre invenção, Lorenzo Valla, ordenou-se padre, tornou-se secretário de
Afonso V, acreditava num “epicurismo cristão”, também atacou a veracidade da
Doação de Constantino.

Referências Bibliográficas

LE GOFF, Jacques. O Deus da idade média. 6ª edição, Rio de Janeiro,


civilização brasileira, 2021.

LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval. Petrópolis, Editora


Vozes, 2021.

WOLFF, Philippe. Outono da idade média ou primavera dos novos tempos?.


São Paulo, edições 70, 1986.

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