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Fonte: http://periodico.unnbubr/inde.uphp/rednnb/aricle/view/259//549/u Ace..

o em: 16 maio
5014u

REFERÊNCIA
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Dilemas e desafios da proteção internacional dos direitos
humanos no limiar do século XXI. Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília, n. 3,
p. 29-34, 1999. Disponível em: <http://periodicos.unb.br/index.php/redunb/article/view/3259/2849>.
Acesso em: 16 maio 2018.
Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília
Dilemas e Desafios da Proteção Internacional dos Direitos
Humanos no Limiar do Século XXI
Antônio Augusto Cançado Trindade
Professor Titular da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco
Juiz e Vice-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos

1. No próximo ano estará a Declaração Uni- rência, encontram-se os órgãos internacionais de pro-
versal de Direitos Humanos completando seu cinqüen- teção dos direitos humanos diante de dilemas e desa-
tenário, no limiar do novo século. Ao longo das cinco fios, próprios de nossos dias, que relacionaremos a se-
últimas décadas testemunhamos o processo histórico guir.
de gradual formação, consolidação, expansão e aper- 3. Cabe, de início, ter sempre presente que,
feiçoamento da proteção internacional dos direitos nas últimas décadas, graças à atuação daqueles ór-
humanos, conformando um direito de proteção dotado gãos, inúmeras vítimas têm sido socorridas. Até o iní-
de especificidade própria. Este processo partiu das cio dos anos noventa, no plano global (Nações Uni-
premissas de que os direitos humanos são inerentes ao das), por exemplo, mais de 350 mil denúncias reve-
ser humano, e como tais antecedendo a todas as for- lando um “quadro persistente de violações” de direitos
mas de organização política, e de que sua proteção humanos foram enviadas às Nações Unidas (sob o
não se esgota na ação do Estado. Ao longo deste meio chamado sistema extraconvencional da resolução
século, como respostas às necessidades de proteção, 1503 do ECOSOC). Sob o Pacto de Direitos Civis e
têm-se multiplicado os tratados e instrumentos de di- Políticos e seu [primeiro] Protocolo Facultativo, o
reitos humanos, a partir da Declaração Universal de Comitê de Direitos Humanos, tinha recebido, até abril
1948, tida como ponto de partida do processo de gene- de 1995, mais de 630 comunicações, e em 73% dos
ralização da proteção internacional dos direitos huma- casos examinados concluiu que haviam ocorrido vio-
nos. A realização deste I Congresso Brasileiro de E- lações de direitos humanos. O Comitê para a Elimina-
ducação em Direitos Humanos e Cidadania24 constitui ção de Todas as Formas de Discriminação Racial ti-
uma ocasião adequada para procedermos a um balan- nha examinado (sob a Convenção do mesmo nome), a
ço, baseado na experiência acumulada nesta área, dos seu turno, em suas duas primeiras décadas de opera-
dilemas e desafios da proteção internacional dos direi- ção, 810 relatórios (periódicos e complementares) dos
tos humanos no limiar do novo século. Estados Partes. E o Alto-Comissariado das Nações
2. A primeira Conferência Mundial de Direitos Unidas para os Refugiados (ACNUR), decorridas qua-
Humanos (Teerã, 1968) representou, de certo modo, a tro décadas de operação do sistema, cuida hoje de
gradual passagem da fase legislativa, de elaboração mais de 17 milhões de refugiados em todo o mundo25 ,
dos primeiros instrumentos internacionais de direitos sem falar no total ainda maior de deslocados internos.
humanos (a exemplo dos dois Pactos das Nações Uni- 4. No plano regional, por exemplo, até o início
das de 1966), à fase de implementação de tais instru- desta década, no continente europeu, a Comissão Eu-
mentos. A segunda Conferência Mundial de Direitos ropéia de Direitos Humanos tinha decidido cerca de
Humanos (Viena, 1993) procedeu a uma reavaliação 15 mil reclamações individuais sob a Convenção Eu-
global da aplicação de tais instrumentos e das perspec- ropéia de Direitos Humanos, ao passo que a Corte Eu-
tivas para o novo século, abrindo campo ao exame do ropéia de Direitos Humanos totalizava 191 casos
processo de consolidação e aperfeiçoamento dos me- submetidos a seu exame, com 91 casos pendentes. No
canismos de proteção internacional dos direitos hu- continente americano, a Comissão Interamericana de
manos. Decorridos quatro anos desta última Confe- Direitos Humanos ultrapassava o total de 10 mil co-
municações examinadas, enquanto a Corte Interameri-
cana de Direitos Humanos, hoje com 14 pareceres e-
24
Este foi o texto de exposição do Autor no I Congresso
Brasileiro de Educação em Direitos Humanos e Cidadania,
25
patrocinado pela Rede Brasileira de Educação em Direitos Para um exame destes e outros dados, cf. A.A. CANÇADO
Humanos, e realizado no Salão Nobre da Faculdade de TRINDADE, Tratado de Direito Internacional dos Direitos
Direito da Universidade de São Paulo (USP), em 05 de Humanos, volume I, Porto Alegre, S.A. Fabris Ed., 1997,
maio de 1997. capítulo II, pp. 61 e seguintes.

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mitidos, passava a exercer regularmente sua compe- cos, e dos direitos econômicos, sociais e culturais.
tência contenciosa, contando hoje com onze casos Apesar da conclamação da Conferência de Viena, o
contenciosos pendentes. E, no continente africano, a Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e a
Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
examinava quase 40 reclamações ou comunicações Discriminação contra a Mulher, continuam até o pre-
sob a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Po- sente desprovidos de um sistema de petições ou de-
vos26 , algumas das quais já decididas. núncias internacionais. Os respectivos Projetos de
5. Graças aos esforços dos órgãos internacio- Protocolo nesse sentido se encontram virtualmente
nais de supervisão nos planos global e regional, lo- concluídos, mas ainda aguardam aprovação. Muitos
grou-se salvar muitas vidas, reparar muitos dos danos dos direitos consagrados nestes dois tratados de direi-
denunciados e comprovados, pôr fim a práticas admi- tos humanos são perfeitamente justiciáveis por meio
nistrativas violatórias dos direitos garantidos, alterar do sistema de petições individuais, e urge que se po-
medidas legislativas impugnadas, adotar programas nha um fim à referida disparidade de procedimentos.
educativos e outras medidas positivas por parte dos 8. É inadmissível que continuem a ser negli-
governos. Não obstante todos estes resultados, estes genciados em nossa parte do mundo, como o têm sido
órgãos de supervisão internacionais defrontam-se hoje nas últimas décadas, os direitos econômicos, sociais e
com grandes problemas, gerados em parte pelas modi- culturais. O descaso com estes últimos é triste reflexo
ficações do cenário internacional, pela própria expan- de sociedades marcadas por gritantes injustiças e dis-
são e sofisticação de seu âmbito de atuação, pelos paridades sociais. Não pode haver Estado de Direito
continuados atentados aos direitos humanos em nume- em meio a políticas públicas que geram a humilhação
rosos países, pelas novas e múltiplas formas de viola- do desemprego e o empobrecimento de segmentos ca-
ção dos direitos humanos que deles requerem capaci- da vez mais vastos da população, acarretando a dene-
dade de readaptação e maior agilidade, e pela mani- gação da totalidade dos direitos humanos em tantos
festa falta de recursos humanos e materiais para de- países. Não faz sentido levar às últimas conseqüências
sempenhar com eficácia seu labor. o princípio da não-discriminação em relação aos direi-
6. Os tratados de direitos humanos das Nações tos civis e políticos, e tolerar ao mesmo tempo a dis-
Unidas têm, com efeito, constituído a espinha dorsal criminação como “inevitável” em relação aos direitos
do sistema universal de proteção dos direitos huma- econômicos e sociais. A pobreza crônica não é uma
nos, devendo ser abordados não de forma isolada ou fatalidade, mas materialização atroz da crueldade hu-
compartimentalizada, mas relacionados uns aos ou- mana. Os Estados são responsáveis pela observância
tros. Decorridos quatro anos desde a realização da II da totalidade dos direitos humanos, inclusive os eco-
Conferência Mundial de Direitos Humanos, estamos nômicos e sociais. Não há como dissociar o econômi-
longe de lograr a chamada “ratificação universal” das co do social e do político e do cultural.
seis “Convenções centrais” (core Conventions) das 9. Urge despojar este tema de toda retórica, e
Nações Unidas (os dois Pactos de Direitos Humanos, passar a tratar os direitos econômicos, sociais e cultu-
as Convenções sobre a Eliminação de Todas as For- rais como verdadeiros direitos que são. Só se pode
mas de Discriminação - Racial e contra a Mulher, - a conceber a promoção e proteção dos direitos humanos
Convenção contra a Tortura, e a Convenção sobre os a partir de uma concepção integral dos mesmos, a-
Direitos da Criança), - “ratificação universal” esta brangendo todos em conjunto (os direitos civis, políti-
propugnada pela Conferência de Viena para o final de cos, econômicos, sociais e culturais). A visão atomi-
século que já vivemos. Ademais, encontram-se estas zada ou fragmentada dos direitos humanos leva inevi-
Convenções crivadas de reservas, muitas das quais, tavelmente a distorções, tentando postergar a realiza-
em nosso entender, manifestamente incompatíveis ção dos direitos econômicos e sociais a um amanhã
com seu objeto e propósito. Urge, com efeito, proce- indefinido. A prevalecer o atual quadro de deteriora-
der a uma ampla revisão do atual sistema de reservas a ção das condições de vida da população, a afligir hoje
tratados multilaterais consagrado nas duas Conven- tantos países, poderão ver-se ameaçadas inclusive as
ções de Viena sobre Direito dos Tratados (de 1969 e conquistas dos últimos anos no campo dos direitos ci-
1986), sistema este, a nosso modo de ver, inteiramente vis e políticos. Impõe-se, pois, uma concepção neces-
inadequado aos tratados de direitos humanos. sariamente integral de todos os direitos humanos.
7. A despeito da aceitação virtualmente uni- 10. Uma das grandes conquistas da proteção
versal da tese da indivisibilidade dos direitos huma- internacional dos direitos humanos, em perspectiva
nos, persiste a disparidade entre os métodos de im- histórica, é sem dúvida o acesso dos indivíduos às ins-
plementação internacional dos direitos civis e políti- tâncias internacionais de proteção e o reconhecimento
de sua capacidade processual internacional em casos
26
Cf. ibid., pp. 62-63. de violações dos direitos humanos. Urge que se reco-

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nheça o acesso direto dos indivíduos àquelas instân- sica e determinante de propósito, a proteção do ser
cias (sobretudo as judiciais), a exemplo do estipulado humano.
no Protocolo n. 9 à Convenção Européia de Direitos 13. É inegável que, no presente domínio de
Humanos (1990). Concede este último um determina- proteção, muito se tem avançado nos últimos anos,
do tipo de locus standi aos indivíduos ante a Corte Eu- sobretudo na “jurisdicionalização” dos direitos huma-
ropéia de Direitos Humanos (em casos admissíveis nos, para a qual têm contribuído de modo especial os
que já foram objeto da elaboração de um relatório por sistemas regionais europeu e interamericano de prote-
parte da Comissão Européia de Direitos Humanos). ção, dotados que são de tribunais permanentes de di-
11. O passo seguinte, a ser dado no século reitos humanos, - as Cortes Européia e Interamericana
XXI, consistiria na garantia da igualdade processual de Direitos Humanos, respectivamente. No entanto,
(equality of arms/égalité des armes) entre os indiví- ainda resta um longo caminho a percorrer. Há que
duos demandantes e os Estados demandados, na vin- promover a chamada “ratificação universal” dos trata-
dicação dos direitos humanos protegidos27 . Ao insis- dos de direitos humanos - propugnada pelas duas Con-
tirmos não só na personalidade jurídica, mas igual- ferências Mundiais de Direitos Humanos (Teerã,
mente na plena capacidade jurídica dos seres humanos 1968, e Viena, 1993), - contribuindo assim a que se
no plano internacional, estamos sendo fiéis às origens assegure que a universalidade dos direitos humanos
históricas de nossa disciplina, o direito internacional venha a prevalecer nos planos não só conceitual mas
(droit des gens), o que não raro passa despercebido também operacional (a não-seletividade).
dos adeptos de um positivismo jurídico cego e dege- 14. Para isto, é necessário que tal ratificação
nerado. universal seja também integral, ou seja, sem reservas
12. Dada a multiplicidade dos mecanismos in- e com a aceitação das cláusulas facultativas, tais co-
ternacionais contemporâneos de proteção dos direitos mo, nos tratados que as contêm, as que consagram o
humanos, a necessidade de uma coordenação mais a- direito de petição individual, e as que dispõem sobre a
dequada entre os mesmos tem-se erigido como uma jurisdição obrigatória dos órgãos de supervisão inter-
das prioridades dos órgãos de proteção internacional nacional. Atualmente, todos os 40 Estados Partes na
neste final de século. O termo “coordenação” parece Convenção Européia de Direitos Humanos, além de
vir sendo normalmente empregado de modo um tanto aceitarem o direito de petição individual, reconhecem
indiferenciado, sem uma definição clara do que preci- a jurisdição obrigatória da Corte Européia de Direitos
samente significa; não obstante, pode assumir um sen- Humanos, o que é alentador. Em contrapartida, no to-
tido diferente em relação a cada um dos métodos de cante à Convenção Americana sobre Direitos Huma-
proteção dos direitos humanos em particular. Assim, nos (em que o direito de petição individual é de acei-
em relação ao sistema de petições, a “coordenação” tação automática pelos Estados Partes), lamentavel-
pode significar as providências para evitar o conflito mente não mais que 17 dos 25 Estados Partes reco-
de jurisdição, a duplicação de procedimentos e a in- nhecem hoje a jurisdição obrigatória da Corte Intera-
terpretação conflitiva de dispositivos correspondentes mericana de Direitos Humanos em matéria contencio-
de instrumentos internacionais coexistentes pelos ór- sa.
gãos de supervisão. No tocante ao sistema de relató- 15. O século XX, que marcha célere para seu
rios, a “coordenação” pode significar a consolidação ocaso, deixará uma trágica marca: nunca, como neste
de diretrizes uniformes (concernentes à forma e ao século, se verificou tanto progresso na ciência e tecno-
conteúdo) e a racionalização e padronização dos rela- logia, acompanhado paradoxalmente de tanta destrui-
tórios dos Estados Partes sob os tratados de direitos ção e crueldade. Apesar de todos os avanços registra-
humanos. E com respeito ao sistema de investigações dos nas últimas décadas na proteção internacional dos
(determinação dos fatos), pode ela significar o inter- direitos humanos, têm persistido violações graves e
câmbio regular de informações e as consultas recípro- maciças destes últimos. Às violações “tradicionais”,
cas entre os órgãos internacionais em questão28. A em particular de alguns direitos civis e políticos (co-
multiplicidade de instrumentos internacionais no pre- mo as liberdades de pensamento, expressão e infor-
sente domínio faz-se acompanhar de sua unidade bá- mação, e o devido processo legal), que continuam a
ocorrer, infelizmente têm se somado graves discrimi-
nações (contra membros de minorias e outros grupos
27
A.A. CANÇADO TRINDADE, Tratado de Direito vulneráveis, de base étnica, nacional, religiosa e lin-
Internacional…, op. cit. supra, pp. 84-85. güística), além de violações de direitos fundamentais e
28
Para um amplo estudo, cf. A.A. CANÇADO TRINDADE, do direito internacional humanitário.
“Co-existence and Co-ordination of Mechanisms of
16. As próprias formas de violações dos direi-
International Protection of Human Rights (At Global and
Regional Levels)”, 202 Recueil des Cours de l'Académie de tos humanos têm se diversificado. O que não dizer,
Droit International - Haia (1987) pp. 13-435. por exemplo, das violações perpetradas por organis-

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mos financeiros e detentores do poder econômico, so em relação ao trabalho no campo da proteção inter-
que, mediante decisões tomadas na frieza dos escritó- nacional dos direitos humanos.
rios, condenam milhares de seres humanos ao empo- 19. Os órgãos internacionais de proteção de-
brecimento, se não à pobreza extrema e à fome? O vem buscar bases e métodos adicionais de ação para
que não dizer das violações perpetradas por grupos fazer frente às novas formas de violações dos direitos
clandestinos de extermínio, sem indícios aparentes da humanos. A impunidade, por exemplo, verdadeira
presença do Estado? O que não dizer das violações chaga que corrói a crença nas instituições públicas, é
perpetradas pelos detentores do poder das comunica- um obstáculo que ainda não conseguiram transpor. É
ções? O que não dizer das violações ocasionadas pelo certo que as Comissões da Verdade, instituídas nos úl-
próprio progresso científico-tecnológico? O que não timos anos em diversos países, com mandatos e resul-
dizer das violações perpetradas pelo recrudescimento tados de investigações os mais variáveis, constituem
dos fundamentalismos e ideologias religiosas? O que uma iniciativa positiva no combate a este mal, mas a-
não dizer das violações decorrentes da corrupção e inda persiste uma falta de compreensão do alcance das
impunidade? obrigações internacionais de proteção. Estas últimas
17. Cumpre conceber novas formas de prote- vinculam não só os governos (como equivocada e co-
ção do ser humano ante a atual diversificação das fon- mumente se supõe), mas os Estados (todos os seus
tes de violações de seus direitos. O atual paradigma de poderes, órgãos e agentes); é chegado o tempo de pre-
proteção (do indivíduo vis-à-vis o poder público) cor- cisar o alcance das obrigações legislativas e judiciais
re o risco de tornar-se insuficiente e anacrônico, por dos Estados Partes em tratados de direitos humanos,
não se mostrar equipado para fazer frente a tais viola- de modo a combater com mais eficácia a impunidade.
ções, entendendo-se que, mesmo nestes casos, perma- 20. Há, ademais, que impulsionar os atuais es-
nece o Estado responsável por omissão, por não to- forços, no seio das Nações Unidas, tendentes ao esta-
mar medidas positivas de proteção. Tem, assim, sua belecimento de uma jurisdição penal internacional de
razão de ser, a preocupação corrente dos órgãos inter- caráter permanente. Da mesma forma, há que desen-
nacionais de proteção, no tocante às violações conti- volver a jurisprudência internacional - ainda em seus
nuadas de direitos humanos, em desenvolver medidas primórdios - sobre as reparações devidas às vítimas de
tanto de prevenção como de seguimento, tendentes a violações comprovadas de direitos humanos. O termo
cristalizar um sistema de monitoramento contínuo dos “reparações” não é juridicamente sinônimo de “inde-
direitos humanos em todos os países, consoante os nizações”: o primeiro é o gênero, o segundo a espécie.
mesmos critérios. No presente domínio de proteção, as reparações abar-
18. A par da visão integral dos direitos huma- cam, a par das indenizações devidas às vítimas - à luz
nos no plano conceitual, os esforços correntes em prol do princípio geral do neminem laedere, a restitutio in
do estabelecimento e consolidação do monitoramento integrum (restabelecimento da situação anterior da ví-
contínuo da situação dos direitos humanos em todo o tima, sempre que possível), a reabilitação, a satisfação
mundo constituem, em última análise, a resposta, no e, significativamente, a garantia da não-repetição dos
plano processual, ao reconhecimento obtido na Confe- atos ou omissões violatórios (o dever de prevenção).
rência Mundial de Direitos Humanos de Viena em 21. Para contribuir a assegurar a proteção do
1993 da legitimidade da preocupação de toda a comu- ser humano em todas e quaisquer circunstâncias, mui-
nidade internacional com as violações de direitos hu- to se vem impulsionando, em nossos dias, as conver-
manos em toda parte e a qualquer momento, sendo es- gências entre o direito internacional dos direitos hu-
te um grande desafio a defrontar o movimento inter- manos, o direito internacional humanitário e o direito
nacional dos direitos humanos no limiar do século internacional dos refugiados. Tais convergências, mo-
XXI29. Para enfrentá-lo, os órgãos internacionais de tivadas em grande parte pelas próprias necessidades
proteção necessitarão contar com consideráveis recur- de proteção, têm se manifestado nos planos normati-
sos - humanos e materiais - adicionais: os atuais re- vo, hermenêutico e operacional, tendendo a fortalecer
cursos - no plano global, menos de 1% do orçamento o grau da proteção devida à pessoa humana. Face à
regular das Nações Unidas - refletem um quase desca- proliferação dos atuais e violentos conflitos internos
em tantas partes do mundo, já não se pode invocar a
vacatio legis levando à total falta de proteção de tan-
29
A.A. CANÇADO TRINDADE, “A Proteção Internacional tas vítimas inocentes. A visão compartimentalizada
dos Direitos Humanos ao Final do Século XX”, in A das três grandes vertentes da proteção internacional da
Proteção Nacional e Internacional dos Direitos Humanos pessoa humana encontra-se hoje definitivamente supe-
(Seminário de Brasília de 1994, orgs. Benedito Domingos
rada; a doutrina e a prática contemporâneas admitem a
Mariano e Fermino Fechio Filho), São Paulo,
FIDEH/Centro Santos Dias de Direitos Humanos, 1995, pp. aplicação simultânea ou concomitante das normas de
112-115. proteção das referidas três vertentes, em benefício do

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ser humano, destinatário das mesmas. Passamos da órgãos subsidiários de investigação dos estados ou
compartimentalização às convergências. Cabe seguir medidas de emergência pública prolongados31.
avançando decididamente nesta direção30. 24. As iniciativas no plano internacional não
22. Os órgãos de supervisão internacional têm, podem se dissociar da adoção e do aperfeiçoamento
ao longo dos anos, aprendido a atuar também em dis- das medidas nacionais de implementação, porquanto
túrbios internos, estados de sítio e situações de emer- destas últimas - estamos convencidos - depende em
gência em geral. Graças à evolução da melhor doutri- grande parte a evolução da própria proteção interna-
na contemporânea, hoje se reconhece que as derroga- cional dos direitos humanos. A responsabilidade pri-
ções e limitações permissíveis ao exercício dos direi- mária pela observância dos direitos humanos recai nos
tos protegidos, isto é, as previstas nos próprios trata- Estados, e os próprios tratados de direitos humanos a-
dos de direitos humanos, devem cumprir certos requi- tribuem importantes funções de proteção aos órgãos
sitos básicos. Podem estes resumir-se nos seguintes: dos Estados. Ao ratificarem tais tratados, os Estados
tais derrogações e limitações devem ser previstas em Partes contraem a obrigação geral de adequar seu or-
lei (aprovada por um congresso democraticamente e- denamento jurídico interno à normativa internacional
leito), ser restritivamente interpretadas, limitar-se a si- de proteção32, a par das obrigações específicas relati-
tuações em que sejam absolutamente necessárias vas a cada um dos direitos protegidos.
(princípio da proporcionalidade às exigências das si- 25. No presente domínio de proteção, o direito
tuações), ser aplicadas no interesse geral da coletivi- internacional e o direito interno se mostram, assim,
dade (ordre public, fim legítimo), ser compatíveis em constante interação. É a própria proteção interna-
com o objeto e propósito dos tratados de direitos hu- cional que requer medidas nacionais de implementa-
manos, ser notificadas aos demais Estados Partes nes- ção dos tratados de direitos humanos, assim como o
tes tratados, ser consistentes com outras obrigações in- fortalecimento das instituições nacionais vinculadas à
ternacionais do Estado em questão, ser aplicadas de vigência plena dos direitos humanos e do Estado de
modo não-discriminatório e não-arbitrário, ser limita- Direito. De tudo isto se pode depreender a premência
das no tempo. da consolidação de obrigações erga omnes de prote-
23. Em qualquer hipótese, ficam excetuados ção, consoante uma concepção necessariamente inte-
os direitos inderrogáveis (como o direito à vida, o di- gral dos direitos humanos.
reito a não ser submetido a tortura ou escravidão, o di- 26. Enfim, ao voltar os olhos tanto para trás
reito a não ser incriminado mediante aplicação retroa- como para frente, apercebemo-nos de que efetivamen-
tiva das penas), que não admitem qualquer restrição. te houve, nestas cinco décadas de experiência acumu-
Do mesmo modo, impõe-se a intangibilidade das ga- lada nesta área, um claro progresso, sobretudo na ju-
rantias judiciais em matéria de direitos humanos (e- risdicionalização da proteção internacional dos direi-
xercitadas consoante os princípios do devido processo tos humanos, mas, ainda assim, também nos damos
legal), mesmo em estados de emergência. O ônus da conta de que este progresso não tem sido linear. Tem
prova do cumprimento de todos estes requisitos recai havido momentos históricos de avanços, mas lamen-
naturalmente no Estado que invoca a situação de e-
mergência pública em questão. Em casos não previs-
tos ou regulamentados pelos tratados de direitos hu-
31
manos e de direito humanitário, impõem-se os princí- A.A. CANÇADO TRINDADE, A Proteção Internacional dos
pios do direito internacional humanitário, os princí- Direitos Humanos - Fundamentos Jurídicos e Instrumentos
pios de humanidade e os imperativos da consciência Básicos, São Paulo, Ed. Saraiva, 1991, pp. 16-17.
32
pública. Aos órgãos de supervisão internacional está No tocante ao direito brasileiro, cf. A.A. CANÇADO
TRINDADE (Editor), A Incorporação das Normas
reservada a tarefa de verificar e assegurar o fiel cum-
Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos no
primento desses requisitos pelos Estados que invocam Direito Brasileiro (Seminários de Brasília e Fortaleza de
estados de sítio ou emergência, mediante, e.g., a ob- 1993), 2a. edição, Brasília/San José,
tenção de informações mais detalhadas a respeito e IIDH/CICV/ACNUR/CUE/ASDI, 1996, pp. 7-845; A.A.
sua mais ampla divulgação (inclusive das providên- CANÇADO TRINDADE (Editor), A Proteção dos Direitos
cias tomadas), e a designação de relatores especiais ou Humanos nos Planos Nacional e Internacional:
Perspectivas Brasileiras, San José/Brasília, IIDH/Fund. F.
Naumann, 1991, pp. 1-357; FLÁVIA PIOVESAN, Direitos
Humanos e o Direito Constitucional Internacional, São
30
A.A. CANÇADO TRINDADE, GÉRARD PEYTRIGNET E JAIME Paulo, Max Limonad, 1996, pp. 11-332; CELSO D. DE
RUIZ DE SANTIAGO, As Três Vertentes da Proteção ALBUQUERQUE MELLO, Direito Constitucional
Internacional dos Direitos da Pessoa Humana, San Internacional, Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 1994, pp. 165-
José/Brasília, IIDH/CICV/ACNUR, 1996, pp. 117-121. 191.

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tavelmente também de retrocessos, quando não deve-
ria haver aqui espaço para retrocessos.
27. Neste final de século, resta, certamente,
um longo caminho a percorrer, tarefa para toda a vida.
Uma fiel ilustração dos obstáculos que enfrenta a luta
em prol da proteção internacional dos direitos huma-
nos reside, a nosso ver, no mito do Sísifo, nas imorre-
douras reflexões de um dos maiores escritores deste
século, Albert Camus. É um trabalho que simplesmen-
te não tem fim. Trata-se, em última análise, de perse-
verar no ideal da construção de uma cultura universal
de observância dos direitos humanos, do qual espera-
mos nos aproximar ainda mais, no decorrer do século
XXI, graças ao labor das gerações vindouras que não
hesitarão em abraçar a nossa causa.

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