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Uma Justiça Penal Internacional

sem os Estados Unidos da América


Filipe Lobo d’Avila
Auditor do Curso de Defesa Nacional 2003/2004

Resumo Abstract
As sociedades e as nações dos nossos dias estão violen- Today’s nations and societies are violently confronted with
tamente confrontadas com questões de genocídio, lim- questions of genocides, ethnic pursuits and war crimes.
peza étnica e crimes de guerra. One of the answers given by the international community
Uma das respostas da comunidade internacional tra- was the creation of the first permanent International
duziu-se na criação do primeiro Tribunal Penal Interna- Criminal Court (ICC). Its creation revealed the contradiction
cional com carácter permanente, cuja criação ficou mar- between an old sovereignty / state control and a new
cada pela contradição entre um velho Soberanismo/ Community / Universalism.
/Estatismo e um novo Comunitarismo/Universalismo. The refusal by the United States of America to sign the Rome
A não ratificação do Estatuto de Roma pelos Estados Statute and its controversial position over that matter raised
Unidos da América e a sua posição controversa suscitou an inflamed international debate over the following questions:
um acesso debate internacional, centrado nas seguintes “Is there a future to the international penal justice if the USA
questões: are not involved?”
“Terá futuro uma Justiça Penal Internacional sem os “Is the international penal justice worth it without the
Estados Unidos da América?” USA?”
“Vale ou não vale a pena uma Justiça Penal Internacional What are the main arguments of the American choice, what
sem os Estados Unidos da América?” are its effects, what is its strategy anti-ICC and, most of all,
Quais os argumentos principais da escolha americana, what are the consequences of such a decision in the modern
quais os seus efeitos, a sua estratégia anti-TPI e, sobretu- international context driven by new and different threats?
do, as consequências desta decisão no actual contexto Have the United States of America lost their role of
internacional de novas e diferentes ameaças? central-state in security and world defence?
Terão perdido os Estados Unidos da América o seu papel The creation of the International Penal Court appears as a
de Estado-central na Segurança e Defesa Mundial? positive initiative within the International Legal History
Conclui-se, assim, procurando-se desmistificar alguns as well as a decisive contribute for the implementation
dos argumentos anti-TPI, que a criação deste Tribunal of an universal penal jurisdiction. Regardless of the presence
representa uma lufada de ar fresco na História do Direito or absence of the United States of America, it secures the
Internacional e um contributo decisivo para a imple- respect of International Law, as well as the defence of
mentação de uma jurisdição penal universal, seja no Humanity and of Cultural Legacy, common representative of
quadro de adesão ou não adesão dos Estados Unidos da the past, of the present and of the future.
América, assumindo-se, simultaneamente, que só o res-
peito dos Estados pelo Direito Internacional permi-
tirá assegurar a Defesa da Humanidade e a Defesa do
Património Cultural comum representativo do passado,
do presente e do futuro.

Primavera 2006
N.º 113 - 3.ª Série 37
pp. 37-65
Uma Justiça Penal Internacional sem os Estados Unidos da América

1. Introdução

São praticamente quinhentos os quilómetros que separam as cidades de Nurem-


berga e de Haia. Na primeira realizou-se o famoso julgamento de Nuremberga que
levou ao banco dos réus alguns dos mais altos responsáveis do III Reich, na segunda,
entre outras, instalou-se recentemente o Tribunal Penal Internacional.
São também cerca de cinquenta os anos que separam estes dois factos da História
do Direito Internacional e da Humanidade.
Cinquenta anos em que mais de duzentos e cinquenta conflitos emergiram por
todos os cantos do globo e em que mais de oitenta e seis milhões de cidadãos, sobre-
tudo, mulheres e crianças, morreram em resultado desses conflitos. Mais de cento e
setenta milhões de pessoas foram espoliadas dos seus direitos, propriedades e, princi-
palmente, da sua dignidade e esperança. A maioria das vítimas foram, simplesmente,
esquecidas e poucos dos responsáveis foram apresentados à Justiça.
Por isso mesmo, a constituição de um Tribunal Penal Internacional, com carácter
permanente, acaba por constituir uma lufada de ar fresco digna de registo na história
da Justiça Penal Internacional, em que vítimas podem confiar e, sobretudo, em que
agressores podem ser punidos.
Foram muitos os países que aderiram a este projecto antigo, pese embora a relu-
tância de alguns, e em particular, dos Estados Unidos da América.
O propósito do presente artigo é o de dar a conhecer alguns dos aspectos essenciais
do Estatuto do Tribunal Penal Internacional e, simultaneamente, tentar compreender
a posição controversa e, por vezes, contraditória dos Estados Unidos da América, en-
quanto Estado que sempre assumiu um papel central na Segurança e Defesa Mundial
e enquanto Estado sujeito de Direito Internacional.
A este propósito, importa começar por chamar à colação, a título introdutório, a velha
máxima de Radbruch, assente no princípio de que “não é por ser soberano que um Estado
se torna sujeito de direito internacional, é por ser sujeito de direito internacional que se torna
soberano”.
A soberania dos Estados leva-nos, porém, à conjugação de outros dois princípios –
“o princípio de que cumpre a cada Estado determinar a competência positiva do seu sistema
jurídico-penal, entendido como manifestação da sua soberania – e o princípio da necessária
coexistência entre os diferentes ordenamentos penais dos vários Estados” 1.

1 Maria Leonor Assunção, “Âmbito de aplicação espacial da lei penal de Macau. Problemas afins”, in Revista
Jurídica de Macau, Vol. 4, 1997, n.º 2, p. 85.

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Ora, é nesta dialéctica constante entre estes dois princípios que surge o Tribunal
Penal Internacional (TPI), no seio da contradição entre um velho Soberanismo/Estatismo
e um novo Comunitarismo/Universalismo e com a consciência de que só com res-
peito pelo Direito Internacional é que se consegue assegurar a defesa da Humanidade
e do património cultural comum representativo do passado, do presente e do futuro.

2. Antecedentes

O último século viu certamente alguns dos piores cenários de violência da história
da humanidade. Em regra, primou o esquecimento das vítimas e a irresponsabilização
dos autores materiais desses crimes.
Por estas razões, muitos têm sido aqueles que têm advogado, com maior ou menor
veemência, a falência do Direito Internacional e posto em evidência a crise da Socie-
dade Internacional2.
Contudo, esta tendência fatalista foi fortemente abalada com a aprovação do Esta-
tuto de Roma e, consequentemente, com a criação do Tribunal Penal Internacional
(TPI). Este Tribunal Penal Internacional tem sido descrito como uma das instituições
globais mais poderosas a ser criada desde o nascimento da Organização das Nações
Unidas, e com uma relevância de tal ordem que, para alguns, ultrapassa mesmo a
própria importância da Carta das Nações Unidas.
Pese embora o exagero natural daqueles que são os seus principais entusiastas,
é certo que a aprovação do Estatuto de Roma (que criou o Tribunal Penal Internacional)
é, sem dúvida, um dos marcos mais relevantes das últimas décadas no desenvolvi-
mento do Direito Internacional.
Foram várias as circunstâncias que também contribuíram para que este resultado,
cujos antecedentes remontam a mais de cinquenta anos, pudesse ser alcançado.
O fim da guerra fria permitiu uma maior flexibilidade nos alinhamentos ideoló-
gicos. A globalização e a interdependência acentuaram a necessidade de maior coor-
denação, cooperação e normatividade em diversas áreas do Direito Internacional,
inclusivamente, como protecção contra a actuação ilícita de actores não estaduais.
Por outro lado, as tendências de fragmentação causadas pelo fim da guerra
fria levaram à erupção de múltiplos conflitos étnicos, raciais, religiosos e políticos,

2 A este propósito ver “Oração de Sapiência” proferida na Sessão de Abertura solene do ano lectivo no Ins-
tituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, em 22 de Janeiro de 1990.

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na maioria dos casos não-internacionais e propiciadores de catástrofes humanitárias


e massacres, ameaçando a ordem jurídica e pondo em causa a própria Paz e Segu-
rança internacionais. Tudo isto contribuiu para um reforço das posições dos Estados,
de outros actores internacionais e das opiniões públicas no sentido de um maior com-
promisso com a capacidade sancionatória do Direito Internacional.
Esta consciência surgiu de tal ordem que a comunidade internacional saltou di-
versas etapas e criou, num curto espaço de tempo, os Tribunais Criminais ad hoc
para a antiga Jugoslávia (no ano de 1993) e para o Ruanda (ano de 1994). Pese embora
a criação destes Tribunais não tenha sido determinada por qualquer Tratado Interna-
cional, como aconteceu com o Tribunal Penal Internacional (TPI), mas por meras
decisões do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ao abrigo do Capítulo VII da
Carta das Nações Unidas), as suas normas e determinações não deixavam de se consi-
derar obrigatórias para os respectivos Estados.
Não sendo objectivo do presente artigo uma análise dos antecedentes jurídicos do
TPI, pelo menos aqueles mais distantes (Tratados de Versalhes e Sèvres, subsequentes
à I Guerra Mundial), mencionarei, ainda que de forma muito sintética, os antecedentes
mais recentes, decorrentes da II Guerra Mundial.
As atrocidades cometidas durante a II Guerra Mundial levaram ao estabelecimento
de dois Tribunais Militares Internacionais (os Tribunais de Nuremberga e de Tóquio),
destinados a processar e julgar os principais responsáveis, na Alemanha e no Japão,
pelos crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
Apesar de serem reconhecidas algumas imperfeições, estes Tribunais contribuíram
significativamente para a conformação de alguns princípios básicos da responsabi-
lidade penal internacional, nomeadamente, para a afirmação da responsabilidade
por crimes definidos pelo Direito Internacional (independentemente da lei interna),
para o não reconhecimento de imunidades de jurisdição para crimes definidos pelo
Direito Internacional e, bem assim, para o não reconhecimento de ordens superiores
como exclusão de responsabilidade.
A Assembleia Geral da ONU ao aprovar, assim, em 1946, a Resolução n.º 95, e ao
declarar o Direito de Nuremberga parte do Direito Internacional Geral, afirmou o prin-
cípio geral que a humanidade, cujos interesses e valores essenciais são violados e
ameaçados, é, em última instância, titular do direito de assegurar a repressão dos
crimes de genocídio. Gerou-se3, pois, a expectativa de criação de um tribunal penal

3 Convenção sobre o Genocídio, aprovada em 1948.

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internacional, capaz de promover a punição dos crimes internacionais na ausência


ou incapacidade dos sistemas judiciários nacionais.
Várias razões, essencialmente de carácter político, fizeram com que estas expec-
tativas não se concretizassem ao longo dos tempos.

3. Os Tribunais Penais Internacionais AD HOC

Só no início dos anos noventa é que o assunto – nascimento de um Tribunal Penal


Internacional – voltou à ordem do dia nas Nações Unidas. E logo por iniciativa de
um pequeno país.
Na verdade, por iniciativa de Trinidad e Tobago, a Assembleia Geral das Nações
Unidas voltou a recomendar à Comissão de Direito Internacional, no ano de 1990, a
elaboração de um projecto de Estatuto para o referido Tribunal.
O ritmo dos trabalhos seria, então, influenciado pela decisão do Conselho de Segu-
rança de criar tribunais criminais internacionais ad hoc para julgar crimes de guerra
e genocídio cometidos na antiga Jugoslávia (1993) e no Ruanda (1994). O Tribunal
Internacional para o Julgamento dos Crimes contra a Humanidade cometidos no Terri-
tório do Ruanda e cometidos por Cidadãos Ruandeses no Território dos Estados
Vizinhos seria criado pela Resolução n.º 955 de 1994 e o Tribunal Internacional para
o julgamento dos crimes contra a humanidade cometidos no território da antiga Jugos-
lávia seria criado pela Resolução n.º 808 de 1993.
Estas decisões do Conselho de Segurança, de grande relevância e dignas de apoio
internacional, tornaram patente o vazio jurídico decorrente da inexistência de uma ins-
tância internacional independente, capaz de julgar os responsáveis pelos crimes mais
graves de interesse internacional.
Os dois tribunais, constituídos por um órgão político da ONU, como é o Conselho
de Segurança, tiveram, é certo, indiscutível legitimidade jurídica, mas a sua juris-
dição e características essenciais basearam-se, sobretudo, na natureza e nas circuns-
tâncias especiais de determinados conflitos regionais. Foram Tribunais criados “à la
carte”, ou seja, para responder a uma determinada situação concreta, de impacto
regional, e para levar perante a justiça responsáveis perfeitamente identificados.
Ora, se é certo que o papel do Tribunal Penal Internacional ad hoc para a antiga
Jugoslávia está bem presente no nosso quotidiano e nas consciências europeias, mais
que não seja pelo julgamento do antigo Presidente Slobodan Milosevic e pela conde-

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nação do General Radislav Krstic, já o papel do Tribunal Penal Internacional ad hoc


do Ruanda é desconhecido e até ignorado.
Com efeito, foi neste Tribunal que se realizou o primeiro julgamento internacional
de responsáveis acusados da prática do crime de genocídio.
O Conselho de Segurança, reconhecendo que violações sérias do Direito Humani-
tário estavam a ser cometidas no Ruanda, criou, através da Resolução n.º 955 de
8 de Novembro de 1994, o Tribunal Penal Internacional ad hoc do Ruanda. O objec-
tivo era simples: pretendia-se contribuir para o processo nacional de reconciliação
daquele país e, simultaneamente, fomentar a manutenção da paz na região. Localizado
em Arusha, na Tanzânia, este Tribunal foi criado para julgar pessoas responsáveis
por crimes de genocídio e outros tipos de crimes contra o Direito Humanitário, prati-
cados no território do Ruanda (e países vizinhos) entre 1 de Janeiro e 1 de Dezembro
de 19944, tendo alcançado a sua primeira condenação na data de 28 de Novembro de
19955.
Há, desde logo, um facto que não se pode deixar de referir e que assume uma
enorme importância. Entre as pessoas condenadas por este Tribunal incluía-se Jean
Kambada, o Primeiro Ministro do Governo do Ruanda durante o período dos massacres
e genocídios. Tratou-se do primeiro chefe de governo a ser acusado e, consequente-
mente, condenado pela prática do crime de genocídio. Esta condenação veio permitir
e tornou evidente que a lei penal internacional se aplica às mais altas instâncias e
às mais altas individualidades6, independentemente do seu cargo, categoria, posto ou
patente. O Tribunal Internacional para a antiga Jugoslávia também veio confirmar
esta tendência e evolução do direito internacional.
Estes Tribunais fomentaram o estabelecimento de regras para a criação de um Tribunal
Penal Internacional, permanente, composto por juízes de diferentes sistemas legais, reco-
nheceram o crime de violação como um crime contra a humanidade e como um instru-
mento de genocídio, determinaram que actores não estaduais também se têm que
reger pela lei internacional e, finalmente, afirmaram que líderes civis também podem
ser responsabilizados do ponto de vista penal.

4 Refira-se que, do ponto de vista material, o TPI do Ruanda pode julgar crimes cometidos por cidadãos do
Ruanda no seu território e no território dos países vizinhos, bem como não cidadãos por crimes praticados
no Ruanda.
5 Oito pessoas acusadas acabaram por ser condenadas.
6 Há mesmo quem refira que com esta condenação se começaram a criar as condições para se acusar outros
Chefes de Estado (Augusto Pinochet e Slobodan Milosevic).

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Por outro lado, a experiência da criação de Tribunais ad hoc revelou-se bastante


dispendiosa e a morosidade nos seus processos de criação permitiu, em determinados
momentos, que algumas provas fossem destruídas e que os responsáveis pela prática
de crimes continuassem impunes.

4. O Tribunal Penal Internacional

Decorridos mais de cinquenta anos desde que as Nações Unidas reconheceram


a necessidade de se estabelecer um Tribunal Penal Internacional7, só no dia 11 de Abril
de 2002, com a ratificação de 76 países, é que nasceu o primeiro Tribunal Penal Interna-
cional (TPI), com carácter permanente.
Após intensas negociações8 que decorreram em Roma, o Tratado foi aprovado em
17 de Julho de 1998 por 120 países, num momento considerado tão marcante como a
própria aprovação da Carta das Nações Unidas. Apenas sete países votaram contra
a aprovação do Tratado – China, Yemen, Qatar, Líbia, Israel, Iraque e os Estados Unidos
da América.
Note-se que um dos maiores entraves à criação do TPI foi os Estados Unidos da
América (que até ao momento presente não procedeu à ratificação do Tratado de Roma).
Tanto o partido Republicano (que tinha vindo a apresentar sucessivas emendas ao
“Foreign Relations Authorization Act” para proibir qualquer tipo de colaboração com
esta ideia) como o Presidente Bush, sempre foram adversários da ideia de submeter
a julgamento – por uma justiça internacional – nacionais americanos.
Independentemente do posicionamento americano, o momento de criação do
TPI foi definido pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, como um
passo fundamental9. Acrescentava o Secretário-Geral das Nações Unidas “esperamos
que, ao punir os culpados, o TPI dê consolo às vítimas sobreviventes e às comunidades que
foram visadas pelos seus actos. E, o que é mais importante, esperamos que dissuada futuros

7 “Recognizing that at all periods of history genocide has inflicted great losses on humanity; and being
convinced that, in order to liberate mankind from such an odious scourge, international co-operation is
required”, Resolução da Assembleia Geral n.º 260, de 9 de Dezembro de 1948.
8 As negociações foram bastante árduas. Pode-se referir, a título de exemplo, as negociações quanto à questão
da definição dos crimes sobre os quais o Tribunal viria a ter competência ou mesmo a questão da
complementaridade do TPI face aos sistemas nacionais.
9 “Giant step forward in the march towards universal human rights and the rule of law”.

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criminosos de guerra e contribua para que esteja mais perto o dia em que nenhum governo,
nenhum Estado, nenhuma junta e nenhum exército poderão violar impunemente os direitos
humanos” 10.
O Tribunal Penal Internacional é, assim, um tribunal permanente com jurisdição
para julgar indivíduos que cometam qualquer tipo de violação de direito internacional
– crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio – quando, por qualquer
razão, as nações não possam ou não desejem fazê-lo.
Ao contrário do que os estatutos dos dois tribunais ad hoc estabeleciam – uma
competência concorrente entre os Tribunais nacionais e as duas instâncias internacionais11,
expressamente sujeita à primazia do direito internacional, o que significava que,
a qualquer momento do procedimento, o Tribunal Internacional podia formalmente
requerer aos tribunais nacionais para lhe deferir a competência do julgamento – o TPI
apenas será chamado a intervir subsidiariamente, quando os Estados demonstrarem
não querer actuar ou se revelarem genuinamente incapazes de organizar, eles próprios,
a acção penal.
Assim, convém sublinhar que o TPI não tem primazia sobre os tribunais nacionais,
apenas actuando na sua ausência deliberada ou em caso de incapacidade absoluta.
Por outro lado, este Tribunal, ao contrário do Tribunal Internacional de Justiça de
Haia, em que só os Estados podem dar origem a processos – e entre Estados –, tem
legitimidade para julgar pessoas.
O TPI é composto por 18 juízes, um gabinete independente do procurador, e uma
secretaria. Os juízes e procuradores são eleitos pelos representantes dos Estados membros
do TPI na Assembleia dos Estados-membros, os quais têm legitimidade para desqua-
lificar ou remover do cargo os juízes que não cumpram os elevados níveis de rigor e
qualidade exigidos pelo Estatuto.
Os casos podem ser submetidos ao TPI por uma de quatro vias possíveis:
– Um país que ratificou o Estatuto envia o processo ao Tribunal;
– Um país que aceitou a jurisdição do TPI envia o processo;

10 Kofi Annan, Secretário-Geral das Nações Unidas.


11 Muito embora o Conselho de Segurança tivesse encontrado, no terreno, diferentes situações: ao passo que
os tribunais nacionais dos Estados sucessores da antiga Jugoslávia continuavam a funcionar (embora as
investigações efectivas não se iniciassem, havendo mesmo a preocupação séria de que, a ocorrerem, servis-
sem sobretudo para proteger os arguidos respectivos), no Ruanda, o sistema nacional de justiça encontrava-se,
ele próprio, dizimado pelo genocídio.

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– O Conselho de Segurança envia o processo (sujeito ao veto dos Estados Unidos);


ou
– O Procurador inicia o processo ele próprio, sendo que uma comissão composta
por três juízes tem que decidir se existe base legal para que possa ser conside-
rado à luz do Tratado de Roma.

O envio do processo para o TPI não garante, por si só, que o Tribunal venha a
ter jurisdição. Depois do envio, uma comissão de juízes avaliará da competência do
Tribunal.
O Tribunal só analisará processos sobre crimes ocorridos em território de um Estado
que tenha ratificado o tratado, sobre crimes cometidos por cidadãos de Estados que
tenham ratificado o tratado ou se forem enviados pelo próprio Conselho de Segurança.
Assim, a actuação do TPI é, reconhecidamente, muito limitada. Além disso, o TPI não
pode dar seguimento a processos que já tenham sido julgados ou que estejam a ser
investigados num outro país sob a sua jurisdição.
Em certos países assolados por colapsos sociais e políticos, os tribunais internos
são manifestamente incapazes de tratar este tipo de crimes ou providenciar julga-
mentos justos. Além disso, a natureza dos movimentos internacionais tem feito com
que seja indispensável a colaboração dos Estados para capturar e condenar os crimi-
nosos. Alguns Estados – considerados competentes para julgar crimes de guerra e
perpetradores de crimes em massa – têm-se confrontado com diversos e complexos
problemas políticos para o fazer. Nestes casos, o TPI apresenta-se como uma verdadeira
alternativa.
A comunidade internacional está, assim, decidida a velar para que os autores de
graves violações do Direito Internacional Humanitário, independentemente do lugar
onde essas violações foram cometidas, sejam castigados. É um velho sonho das Nações
Unidas que hoje, pouco a pouco, começa a concretizar-se. Abre-se, assim, o caminho
para um sistema integral de repressão dos crimes graves de Direito Internacional me-
diante a progressiva consolidação de um sistema internacional de protecção ao ser
humano.
O grande desafio do próximo milénio12 será o de garantir a segurança a todos os
seres humanos, ou seja, a segurança de não ser assassinado, de não desaparecer, de

12 Sadako Ogata, Antiga Alta Comissária da ONU para os Refugiados.

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não ser torturado, de não ser objecto de práticas políticas autoritárias – como, por
exemplo, a limpeza étnica –, a segurança alimentar, a segurança contra a doença,
para não falar da segurança de poder exercer os direitos civis e políticos previstos
nos instrumentos internacionais, especificamente, no Pacto Internacional relativo
aos Direitos Civis e Políticos de 1967. Portanto, o desafio é o de garantir a segurança
efectiva dos indivíduos. Não haverá segurança dos Estados se não houver segurança
dos cidadãos.
Hoje em dia ouvimos com frequência que o mundo em que vivemos é tão peri-
goso quanto assustado. Os movimentos de refugiados e outras formas de mobilidade
forçada são indicadores do estado de segurança em que vivemos. Num mundo onde
existem cerca de catorze milhões e meio de refugiados não se deveria demorar muito
tempo a justificar a enorme importância que reveste a criação de um Tribunal Penal
Internacional. Um Tribunal Internacional com jurisdição universal que fomente e conso-
lide uma verdadeira Justiça Penal Internacional é, em qualquer circunstância, indepen-
dentemente dos aderentes, um marco com o seu peso na história.
Cumpre salientar, e ao contrário dos tribunais penais ad hoc até hoje criados, que
o Estatuto de Roma de 1998 criou um Tribunal Penal Internacional permanente,
com jurisdição para o futuro em relação a certos tipos de crimes particularmente graves,
nomeadamente, crimes de genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e
crimes de agressão.
Como primeiro tribunal internacional permanente e independente, com capacidade
para julgar indivíduos, o TPI é, reconhecidamente, um enorme passo no sentido de
assegurar que as mais grosseiras violações dos direitos humanos não permaneçam
impunes.
Os seus principais aspectos são:

• O Tribunal Penal Internacional tem um mandato para julgar pessoas, e não Estados,
e para as responsabilizar pela prática dos crimes mais graves de alcance interna-
cional.

• É consagrado expressamente o princípio da complementaridade, cujo objectivo


é o de assegurar que o TPI exerça o seu papel sem interferir indevidamente com
os sistemas judiciais nacionais, a quem continua a incumbir a responsabilidade
de investigar os crimes. Ao contrário dos tribunais ad hoc, que são concorrentes,
o TPI tem carácter excepcional e complementar, e a sua jurisdição só se aplicará
nos casos em que claramente se verifique a incapacidade ou falta de regulamentação

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dos Estados para dar seguimento ao processo. Em última análise é o TPI quem
tem competência da sua própria competência, ou seja, é a ele somente que
cabe decidir quando é que os tribunais nacionais de certo país estão ou não em
condições de exercer os seus poderes de forma credível.
• O Estatuto contém uma lista tipificada dos delitos sujeitos à jurisdição do Tri-
bunal, constituindo, assim, um verdadeiro código criminal internacional.
• A definição dos mecanismos de estabelecimento e exercício da jurisdição do TPI
foi, certamente, a questão de maior complexidade jurídica e política na nego-
ciação do Estatuto de Roma. Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo
12.º do Estatuto, foi consagrado o princípio da competência automática, i.é.,
“o Estado que se torne Parte no Estatuto aceitará a jurisdição do Tribunal relativamente
aos crimes a que se refere o artigo 5.º”, ficando, assim, afastadas as vias alternativas
que previam a possibilidade de condicionar a aceitação da jurisdição a cláusulas
facultativas.

Este Tribunal foi criado no dia 11 de Abril de 2002, com a ratificação de 76 países.
Entre os signatários incluíam-se dezoito dos dezanove membros da NATO, bem como a
Rússia.
O TPI contou, ainda, com o apoio dos aliados dos Estados Unidos da América, pese
embora a posição ambígua assumida pelos Estados Unidos da América. Aliás, a este
propósito, importa referir que, não obstante a Administração Clinton, em final de manda-
to, ter assinado o Tratado13 – a 31 de Dezembro de 2000 –, a Administração Bush veio
anular esta adesão em Maio de 2002, poucos meses antes da entrada em vigor do Tratado
(1 de Julho de 2002).

5. A Intervenção no Iraque e o TPI

A intervenção militar da coligação americano-britânica no Iraque despoletou acesos


debates por toda a Europa, provocando, mesmo, embora temporariamente, uma fractura

13 O Presidente Clinton assinou o tratado algumas horas antes da data-limite. Contudo, indicou que nem o
submeteria à aprovação por parte do Senado nem recomendaria ao seu sucessor que o fizesse enquanto o
tratado se encontrasse na sua forma actual.

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profunda entre países europeus. Houve mesmo quem chegasse a pôr em causa o futuro
das relações transatlânticas e a coesão europeia.
Muito recentemente, o Presidente dos Estados Unidos da América, George W. Bush,
voltou a insistir na ligação entre o terrorismo, armas de destruição maciça e o Regime
Iraquiano de Saddam Hussein. Fê-lo durante uma deslocação ao Tennesee, no quadro
da campanha eleitoral, ao visitar os laboratórios de Oak Ridge, onde estão armazenados
os componentes de armas nucleares resultantes da decisão do Coronel Khaddafi de
desmantelar o programa de armas de destruição maciça da Líbia.
Bush afirmava que “Apesar de não termos encontrado armas de destruição maciça,
tivemos razão em ir para o Iraque”. E justificou “Porque depusemos um inimigo declarado da
América, que tinha capacidade para produzir armas de assassínio em massa e podia ter passado
essa capacidade para os terroristas que a querem adquirir. No mundo depois do 11 de
Setembro, esse era um risco que não podíamos correr”. “A América e o mundo estão mais
seguros”.
O discurso político oficial é conhecido e, atrevo-me a dizer, compreendido. Contudo,
a pretensa ilegitimidade da intervenção militar americana e a consequente responsabili-
dade dos agentes políticos, diplomáticos e militares foi, e continua a ser, claramente
apontada por alguns sectores americanos e europeus. Para alguns, sobretudo dos países
que integram a coligação americano-britânica, esta agiu no interesse da humanidade e, em
particular, no interesse dos iraquianos.
Para outros, a coligação americano-britânica tornou-se responsável, à luz do direito
internacional, pela prática de crimes internacionais. Reforçam ainda que a qualificação
de agressão como crimes contra a paz não deixa dúvidas e que a prática de crimes
de guerra e de crimes contra a humanidade também pode ser facilmente demonstrada.
É reconhecido que a intervenção americano-britânica dividiu aliados europeus,
radicalizou discursos políticos, acentuou rivalidades e agitou as consciências de toda
a humanidade.
No entanto, é também certo que as opiniões públicas europeias tendem hoje a preo-
cupar-se mais com o pós-guerra e com o julgamento de Saddam do que propriamente em
discutir a legalidade da intervenção militar. Aquilo que hoje releva é o pós-guerra do
“Iraque libertado”. Um pós-guerra que não se deve limitar à ajuda humanitária e à
reconstrução do Iraque, já que o momento também deve ser de Justiça; Justiça ao povo
iraquiano e Justiça à comunidade internacional.
Por isso mesmo, na sequência da captura de Saddam Hussein, a pergunta que
desde logo se colocou era a de se saber como é que os crimes praticados no passado em

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solo iraquiano poderiam vir a ser responsabilizados e punidos? Que tipo de Tribunal
poderia assegurar o julgamento de Saddam? Um tribunal iraquiano, com procuradores
e juízes iraquianos? Um Tribunal internacional ad hoc formalmente criado pelo Con-
selho de Segurança das Nações Unidas (à semelhança do que se passou para a an-
tiga Jugoslávia e Ruanda), sendo certo que o Conselho de Segurança não sancionou
a intervenção militar? Um Tribunal misto, com uma componente doméstica e outra
internacional?
A opção é hoje conhecida. O ditador foi entregue à autoridade iraquiana para que
fosse julgado no país. Em face das circunstâncias, esta foi, provavelmente, a melhor
opção.
Contudo, não obstante a opção adoptada, é importante referir que o Tribunal Penal
Internacional não era, e continua a não ser, uma opção credível para julgar Saddam e os
seus colaboradores, o que se deve, em parte, ao facto da jurisdição do Tribunal Penal
Internacional, tal como vem definida no Estatuto de Roma, não ter efeitos retroactivos,
isto é, não se aplicar aos actos praticados em data anterior à sua entrada em vigor, ou seja,
em Julho de 2002.
Ora, se é certo, ou praticamente certo, que esta impossibilidade jurídica faria, à
primeira vista, com que os crimes praticados pelo regime iraquiano não pudessem
ser julgados pelo Tribunal Penal Internacional, o mesmo já não acontece quanto aos
“eventuais” crimes praticados, em solo iraquiano, pelas forças da coligação.
Trata-se de uma questão particularmente complexa, quer do ponto de vista diplomá-
tico, quer do ponto de vista jurídico-político, e que passa, necessariamente, por se saber se
o Tribunal Penal Internacional pode julgar cidadãos americanos, independentemente
dos Estados Unidos da América não terem aderido ao compromisso de Roma.
Os cidadãos americanos detidos no estrangeiro pela prática de um crime estão,
obviamente, sujeitos à jurisdição desses mesmos Estados. Aliás, o julgamento de um
cidadão americano por um Tribunal de outro país não é algo de absolutamente extraor-
dinário.
No entanto, a posição dos Estados Unidos da América relativamente ao Tribunal Penal
Internacional e à discussão havida sobre a definição do crime de agressão (e que o próprio
Estatuto não conseguiu responder na sua plenitude) demonstra claramente o melindre
do assunto.
A posição oficial dos Estados Unidos da América face ao TPI não deixa de ser para-
digmática tendo em conta o seu passado de liderança na promoção da aplicação da lei,
de liderança na criação dos tribunais de Nuremberga, do Extremo Oriente, e dos tri-

50
Uma Justiça Penal Internacional sem os Estados Unidos da América

bunais criminais internacionais para a antiga Jugoslávia e para o Ruanda e, bem assim,
do intenso trabalho desenvolvido pelo governo americano no sentido de garantir que
os acusados pelo TPI recebessem um julgamento justo.
A lista exaustiva das protecções/direitos do Tratado de Roma está de acordo com
as que constam da Constituição (Bill of Rights) Americana. O Tratado de Roma deter-
mina os direitos dos acusados de acordo com as garantias salvaguardadas na “Covenant
on Civil and Political Rights” e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de que
fazem parte os EUA. Incluem a presunção de inocência, o direito de ser representado,
o princípio do contraditório e o direito a receber um julgamento célere.
Além disso, o TPI só interviria quando os EUA não conduzissem todos os esforços
para investigar o caso concreto. A complementaridade do Tribunal é expressamente
consagrada, já que se define claramente no Estatuto quais são as situações de incapacidade
e falta de vontade dos Estados. Assim, em termos práticos, seria muito pouco provável
que o sistema judicial americano não quisesse ou fosse considerado incapaz para julgar
um determinado caso.
Acresce, ainda, que a discussão havida sobre a definição do crime de agressão
não ajudou à pacificação e harmonização das diferentes posições.
O artigo 5.º do Estatuto do TPI define os crimes da competência do Tribunal,
restringindo-os “aos crimes mais graves que afectam a comunidade internacional no seu con-
junto”, ou seja, o crime de genocídio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra
e o crime de agressão. É curioso, no entanto, que nos termos do n.º 2 “o Tribunal só
poderá exercer a sua competência em relação ao crime de agressão desde que, nos termos dos
artigos 121.º e 123.º, seja aprovada uma disposição em que se defina o crime e se enunciem as
condições em que o Tribunal terá competência relativamente a este crime. Tal disposição deve ser
compatível com as disposições pertinentes da Carta das Nações Unidas”.
Esta norma significa, no essencial, que o Tribunal Penal Internacional não tem, ainda,
competência para reprimir o crime de agressão, o que se compreende tendo em conta
que alguns Estados ocidentais (e, em primeira linha, os Estados Unidos da América)
estão mais frequentemente na posição de “agressor do que de agredido”. Esta foi tam-
bém uma das razões principais para que alguns Estados do sul, nomeadamente, a
maioria dos Estados Árabes, recusassem ratificar o Estatuto do Tribunal, alegando jus-
tamente esta lacuna quanto ao crime de agressão.
A posição americana ficou claramente clarificada, em Maio de 2002, com o discurso
de Marc Grossman, Sub-Secretário dos Negócios Estrangeiros. Nesse discurso, Grossman,
para além de enunciar os valores americanos (a justiça e promoção da aplicação da lei,

51
Filipe Lobo d’Avila

a punição daqueles que cometem crimes contra a comunidade internacional e a cons-


trução de sistemas judiciais internos fortes, bem como a promoção da liberdade hu-
mana), referia que os Estados Unidos da América concluíam que o TPI não reconhecia
estes princípios essenciais.
E explicava as razões americanas acrescentando que:
• o TPI minimiza o papel do Conselho de Segurança das Nações Unidas na manu-
tenção da paz internacional e segurança;
• a ausência de “checks and balances” já que o Estatuto de Roma cria um sistema
de prossecução penal sem controlo;
• o TPI está fundado numa base defeituosa. Essas imperfeições potenciam per-
seguições de natureza política;

Grossman acrescentava, ainda, que “em conformidade com a Convenção de Viena sobre
a Lei dos Tratados, o presidente Bush concluiu que os Estados Unidos não podem mais fazer
parte desse processo. Por forma a tornar as nossas objecções claras e para não criar falsas
expectativas sobre o papel dos EUA no Tribunal, o Presidente acredita que não tem outra
alternativa senão informar a ONU, enquanto depositário do tratado, da nossa intenção de não
fazer parte do Estatuto de Roma. Esta manhã, de acordo com as instruções do Presidente,
notificámos o Secretário-Geral das Nações Unidas na sua qualidade de depositário. (...) A decisão
de tomar essa resolução, rara mas não inédita, não foi tomada com ligeireza. Após anos de tra-
balho para corrigir as imperfeições deste tratado, e tendo sido as nossas propostas desprezadas,
não nos resta outra alternativa”, concluiu.

Na óptica americana, os trabalhos desenvolvidos deram origem a um resultado


imperfeito.
Em primeiro lugar porque o TPI é uma instituição de autoridade não controlada.
Grossman aproveitou para relembrar que nos Estados Unidos da América, a governação
é baseada no princípio de que, segundo palavras de John Adams, “o poder nunca deve ser
assumido sem uma verificação”. O poder não controlado conduz ao abuso, mesmo com as
boas intenções de quem o estabelece. Com a pressa de se criar um tribunal independente
e poderoso em Roma, assistiu-se a uma recusa de restringir o poder do Tribunal de forma
razoável e coerente. Lamentava, ainda, que as propostas apresentadas pelos Estados
Unidos da América no sentido de instituir “checks and balances” no seio do tribunal
tivessem sido rejeitadas.

52
Uma Justiça Penal Internacional sem os Estados Unidos da América

Em segundo lugar, o Tratado aprovado em Roma dilui a autoridade do Conselho


de Segurança das Nações Unidas e afasta-se do sistema que os fundadores da Carta
das Nações Unidas visionaram.
Em terceiro lugar cria, um crime de “agressão” que ainda deverá ser definido e
densificado (confere autoridade ao TPI para decidir nesta matéria e deixa o procurador
investigar esse tipo de crime).
Em quarto lugar, o Tratado põe em risco a soberania dos EUA. O TPI reclama
autoridade para deter e julgar cidadãos americanos, apesar dos representantes eleitos
democraticamente pelo povo americano não se terem vinculado às disposições do Tra-
tado. Os Estados Unidos da América nunca reconheceram esse direito a uma orga-
nização internacional, salvo com seu consentimento ou ao abrigo de um mandato do
Conselho de Segurança da ONU.
Quinto, a estrutura actual do TPI desvaloriza os direitos democráticos dos cidadãos
americanos e pode subverter os elementos fundamentais da Carta da ONU, particular-
mente o direito à autodefesa.
Sexto, cria o risco do Tribunal patrocinar perseguições politizadas: os EUA, na
sua função de ajudar a preservar a paz internacional e segurança, têm que garantir
que os soldados e funcionários do governo americano não fiquem sujeitos a perse-
guições e inquéritos políticos. Para Grossman, a América, “tomou, perante o mundo,
um compromisso de grande porte no sentido de defender a liberdade e aniquilar o terror”, pelo
que não pode permitir que o TPI possa vir usurpar essa missão vital. Apesar da sua
oposição, os EUA mantiveram o seu envolvimento e compromisso. Durante dois anos
canalizaram esforços para ajudar a formar o tribunal e para garantir as salvaguardas
necessárias para prevenir a politização do processo. Os responsáveis americanos condu-
ziram negociações com o intuito de garantir muitas das preocupações que, na sua
perspectiva, poderiam “salvar” o Tratado. Grossman concluiu esse discurso afirmando
que “a melhor maneira de prevenir o genocídio, crimes contra a humanidade, e crimes de
guerra é através da disseminação da democracia, transparência e princípio de direito. As nações
com governos responsáveis e democráticos não maltratam o seu próprio povo nem fazem
guerra contra o terror. Um mundo composto por democracias com autonomia de governo é a
nossa melhor esperança.”
É interessante verificar que este pensamento não constitui uma descontinuidade
no pensamento americano; em 1996 já era acolhido pela administração americana.
Strobe Talbott, então Secretário de Estado Adjunto, escrevia em Novembro de 1996
na Revista Foreign Affairs que “num mundo cada vez mais interdependente, os Americanos

53
Filipe Lobo d’Avila

têm participação crescente na forma como os restantes países se governam, ou deixam de go-
vernar. Quanto mais alargada e próxima for a comunidade de nações que optam por formas
democráticas de governação, mais seguros e prósperos serão os americanos, por ser claramente
mais provável que as democracias mantenham os seus compromissos internacionais, menos
provável que sigam a via do terrorismo ou dos atentados ao meio ambiente e que façam guerra
entre si”. Acrescentava ainda que “esta proposição constituía a essência das razões de segu-
rança nacional para apoiar vigorosamente, promover e, quando necessário, defender a demo-
cracia nesses países”.
Se é conhecido o discurso oficial e os actos e decisões subsequentes – em particular,
a intervenção militar no Iraque – é também certo que os Estados Unidos da América,
apercebendo-se que a entrada em vigor do Estatuto do Tribunal Penal Internacional
seria uma realidade, acabaram por delinear uma estratégia de acção assente na celebração
de acordos bilaterais com outros Estados.
Esta estratégia, ainda em curso presentemente, é motivo de profundas preocu-
pações, principalmente para os apoiantes ideológicos da doutrina da jurisdição uni-
versal e do TPI. A doutrina da jurisdição universal pretende submeter a política
internacional a procedimentos judiciais, afirmando que há crimes de tal modo mons-
truosos que os seus perpetradores não podem escapar à justiça através da evocação
de doutrinas de soberania ou da natureza sacrossanta das fronteiras nacionais. Os de-
fensores desta tese, com o objectivo de criminalizar determinados tipos de acções mili-
tares e políticas14 e, bem assim, com o objectivo de humanizar as relações internacionais,
acabaram por ter uma forte influência no substrato intelectual e jurídico do Tribunal Penal
Internacional.
Os Estados Unidos, prosseguindo uma estratégia bem definida, lançaram uma pro-
posta com vista à celebração de acordos bilaterais, segundo os quais os actuais ou an-
tigos membros do governo, funcionários, pessoal militar ou mesmo cidadãos não deviam
ser obrigados, salvo expresso consentimento desse Estado, a entregar-se ao TPI. Já foram
assinados pelo menos dois acordos bilaterais deste género. O primeiro com Israel
(não-membro do TPI) e o segundo com a Roménia (membro do TPI).
A este propósito, importa referir que nos termos do Artigo 98.º (2) do Estatuto
de Roma “o Tribunal não pode dar seguimento à execução de um pedido de entrega por força

14 Alguns autores criticam os defensores desta doutrina afirmando que acabam por cair num erro grosseiro –
desconfiar dos próprios Estados, já que pretendem colocar os governos sob a supervisão de magistrados e
do sistema judicial.

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Uma Justiça Penal Internacional sem os Estados Unidos da América

do qual o Estado requerido seja obrigado a actuar de forma incompatível com as suas obrigações
relativamente a acordos internacionais, à luz dos quais o consentimento do Estado de envio é
necessário para que um indivíduo com a nacionalidade desse Estado seja entregue ao Tribunal, a
menos que o Tribunal consiga obter previamente a cooperação do Estado de envio para consentir a
entrega”. Esta norma poderia significar que estes acordos bilaterais “patrocinados” pelos
Estados Unidos constituíam verdadeiras situações de excepção à jurisdição do TPI.
Tratou-se de questão amplamente discutida a nível internacional, tendo sido esgrimidos
múltiplos argumentos jurídicos.
No essencial, a questão passa muito pelo entendimento que se retira da expressão
“Estado de envio”. Trata-se de facto de um “termo técnico” extraído directamente dos
acordos designados de “Status of Forces Agreements”(SOFA), isto é, acordos interna-
cionais ao abrigo dos quais membros do exército enviados para outro Estado (designado
de Estado de acolhimento “host state”) pelo “Estado de envio” se consideram, no âmbito
da jurisdição criminal do Estado de acolhimento, isentos.
Esses acordos – SOFAs – são normalmente utilizados pelos Estados Unidos da América
e por outros países que dispõem de forças estacionadas no estrangeiro ao abrigo de
coligações ou operações de manutenção da paz.
Assim, face ao recurso a esta terminologia específica, poderia sustentar-se que o Artigo
98.º (2) teria sido criado apenas para ser aplicado a esses SOFAs e não a quaisquer outros
acordos bilaterais, pelo que só os membros de uma força militar estacionada no estran-
geiro, no quadro de uma missão militar, poderiam ser abrangidos pelos acordos previstos
no Artigo 98.º (2).
De facto, qualquer interpretação mais ampla da noção de acordos internacionais
do Artigo 98.º(2) não parece ser de acolher. Os acordos bilaterais propostos pelos EUA
não constituem SOFAs, já que pretendem abranger todos os cidadãos americanos, e
não apenas os membros das suas forças armadas que, aparentemente, não estão relaciona-
das com qualquer missão militar. Consequentemente, e numa perspectiva estritamente
jurídica, é de concluir que esses acordos bilaterais não estarão abrangidos pelo disposto
no Artigo 98.º (2) do Estatuto de Roma.
Seguindo esta linha de raciocínio, é de sublinhar que a própria Comissão Europeia
veio defender que a celebração de um acordo bilateral com este conteúdo e objecto, entre
um Estado-membro do Estatuto e os EUA, constituiria uma violação aos princípios e
objecto do próprio Estatuto, em particular, do princípio de pacta sunt servanda (boa fé
contratual).

55
Filipe Lobo d’Avila

6. O TPI e a Carta das Nações Unidas

O Sub-Secretário americano Grossman afirmou, a certa altura, que o TPI violava


claramente a Carta da ONU, já que diluía e diminuía a responsabilidade do Conselho
de Segurança das Nações Unidas em questões de segurança e manutenção da paz.
Insurge-se pelo facto de não ter sido conferida autoridade absoluta para impedir
o Procurador do TPI de instaurar uma investigação judicial e, simultaneamente, pelo
facto do Estatuto incluir os crimes de agressão na sua jurisdição.
Sem pretender levar a questão para um plano distante da estrita análise jurídica,
não se pode escamotear o facto do Conselho de Segurança e do TPI terem duas funções
completamente distintas que em momento algum conflituam.
A responsabilidade do Conselho de Segurança para manter a paz e segurança é
uma função política e não judicial. Já o TPI não tem autoridade para julgar a natureza
política de um acto ou as motivações de um determinado Estado que conduza a deter-
minadas situações. O TPI só poderá julgar indivíduos acusados de cometer um crime
definido no Estatuto. No caso de crimes contra a Humanidade e genocídio, não é sequer
condição prévia que os actos tenham ocorrido durante um conflito armado (e assim
não necessitem de estar associados a uma ameaça à paz internacional e segurança).
No entanto, é preciso ter em conta que o Estatuto autoriza o Conselho de Segu-
rança (actuando ao abrigo do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas), e em determi-
nadas circunstâncias previstas no artigo 16.º, a suspender processos judiciais por
um período anual e a renovar essa resolução por períodos indefinidos. Este é, na verdade,
ao contrário do que foi referido pelo responsável americano (e unicamente numa pers-
pectiva jurídica), o poder de controlo sobre a actividade do Procurador e que, em parte,
os EUA alegam não estar consagrado no Estatuto de Roma.
Por outro lado, o facto de alguns opositores do TPI, incluindo Grossman, alegarem
incessantemente que o Procurador tem autoridade para investigar e julgar pessoas
que cometeram “crimes de agressão” (a crítica relativa à indefinição do crime de agres-
são merece acolhimento), não corresponde totalmente à verdade. Até ao crime de agressão
vir a ser definido, por comum acordo, pela Assembleia dos Estados-membros (segundo
o Estatuto não pode ocorrer durante pelo menos 7 anos), ninguém poderá vir a ser
investigado ou julgado por esse crime (Artigo 5.º, sec.2).
Aliás, sobre a conformidade da definição do crime de agressão com a Carta das Nações
Unidas, o Estatuto é perfeitamente claro, isto é, o estatuto do TPI diz explicitamente
que qualquer definição deverá ser coerente com os requisitos estabelecidos na Carta

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Uma Justiça Penal Internacional sem os Estados Unidos da América

das Nações Unidas. Ora, também é certo que actualmente existem várias opiniões di-
vergentes sobre como o crime deve ser definido e sobre quais serão as condições segundo
as quais o Tribunal deve exercer a sua jurisdição, o que também tem contribuído
para algumas divergências relativamente à questão da “responsabilidade primária” do
Conselho de Segurança em matéria de manutenção da paz e segurança, designadamente,
em saber se faz sentido que essa autoridade seja exclusiva. Trata-se de uma questão
complexa e bastante controversa, que continuará a ser amplamente debatida nos próximos
anos.

7. O TPI e a Soberania dos Estados Unidos da América

O TPI é levado a deferir inquéritos processuais para um nível nacional a não ser
que considere que o Estado não manifesta capacidade ou vontade de proceder à investi-
gação.
Não obstante, ao deixar-se esta decisão para o TPI, o Estatuto autoriza o Tribunal a
rever e rejeitar as decisões de um Estado, não aplicando as decisões de um tribunal
nacional soberano. Este é, aliás, um dos argumentos mais utilizados pelos Estados que
se opõem ao TPI. No entanto, como qualquer outro tratado, o TPI não pode em nenhum
caso obrigar Estados que não tenham ratificado o Estatuto.
Outro dos aspectos relevantes que, por vezes, propositadamente ou negligentemente,
é esquecido ou ignorado, e que importa reforçar, é de que o TPI não tem jurisdição
sobre Estados ou Governos, mas só sobre pessoas. E é também facto assente que os Estados
não têm qualquer obrigação em colaborar com o Tribunal (a menos que tenham ratificado
o tratado e aceite a sua jurisdição).
Assim, até os EUA ratificarem o Estatuto, não existe qualquer obrigação de deter
cidadãos americanos que permaneçam nos EUA, nem qualquer obrigação de os entregar
ao TPI para julgamento. Essa obrigação só existe – e esta é a única excepção – se o Conselho
de Segurança remeter um caso concreto ao Tribunal, o que só aconteceria, como atrás
referi, com o consentimento expresso dos EUA (direito de veto (art.º12)).
Por outro lado, é importante ter em conta que todos os Estados têm o direito de legislar
e fazer respeitar a lei no seu próprio país, incluindo a capacidade de julgar estrangeiros
que cometam crimes no seu território ou extraditar criminosos para Estados terceiros.
Não se trata, em absoluto, de nada inovador, pelo contrário, é aceite universalmente,
incluindo pelos Estados Unidos da América. É incontestável que um americano que

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Filipe Lobo d’Avila

se desloque a França e que aí cometa um crime, possa vir a ser julgado em França ao
abrigo da lei francesa. Ora, a partir do momento em que o TPI começou a funcionar,
e no caso de sérias atrocidades, a França tem ainda a opção de autorizar o TPI a julgar
essa pessoa (em vez de ser ela própria a fazê-lo). Como membro do Estatuto, a França
partilha essa autoridade judicial com o TPI. Ainda recentemente, um cidadão francês
chamado Zacarias Massaoui foi acusado de conspiração nos planos do 11 de Setembro
por um Tribunal na Virgínia. O crime de que foi acusado ocorreu nos Estados Unidos
da América, e mesmo sendo de nacionalidade francesa, a França não questionou a
autoridade dos EUA para o julgar.
A jurisdição do TPI está baseada no princípio fundamental da complementa-
ridade (não tendo maior ou menor autoridade para julgar cidadãos americanos do que
o próprio Estado). Pode-se mesmo dizer que o TPI não substitui os Tribunais Nacionais.
O TPI existe como solução de recurso, só actuando se os Tribunais nacionais não o fizerem,
por sua própria incapacidade ou por manifesta falta de vontade.
É também de salientar que os EUA não só reconhecem o direito dos Estados de
transferirem a sua jurisdição para tribunais internacionais, como também tem tido um
papel instrumental na criação desses mesmos Tribunais (Tribunais Criminais Interna-
cionais para a antiga Jugoslávia e Ruanda).

8. Preferência pela Jurisdição Nacional

A grande dificuldade na posição dos Estados Unidos da América relativamente ao


Tribunal Penal Internacional e, mais concretamente, relativamente à jurisdição deste
Tribunal Internacional, passa pela convicção americana de que existem alternativas mais
viáveis. Estes mecanismos alternativos, do ponto de vista americano, são as instituições
judiciais internas, bem como os tribunais ad hoc futuramente criados pelo Conselho de
Segurança das Nações Unidas.
Ora, a filosofia subjacente ao TPI está em perfeita sintonia com a existência de
alternativas judiciais. O TPI é mesmo um Tribunal de última instância.
No entanto, e como demonstra a história, os tribunais internos – e os próprios sistemas
judiciais – de países divididos por guerras são frequentemente incapazes de resolver
os tipos de crimes que o TPI prevê e pune. Aliás, as atrocidades previstas e punidas
pelo Estatuto do TPI surgem frequentemente da desintegração dos próprios Estados
e da fragmentação das suas instituições da lei e ordem.

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Uma Justiça Penal Internacional sem os Estados Unidos da América

Acresce que não podemos afastar a hipótese de alguns Estados, tecnicamente aptos
e dotados de plenos recursos para efectuarem estes julgamentos, preferirem uma juris-
dição internacional à sua jurisdição nacional.
Já a hipótese de criação de tribunais ad hoc não parece ser uma alternativa viável
a médio prazo. Um dos factos que incentivou a criação do TPI foi, sem dúvida, a cha-
mada “fadiga dos tribunais” sentida pelo Conselho de Segurança.
Não parece plausível que os membros permanentes do Conselho de Segurança,
nem outros membros das Nações Unidas (que ratificaram o Estatuto do TPI), pro-
movam ou queiram criar tribunais dispendiosos e que, no essencial, concorrem direc-
tamente com o TPI.

9. O TPI e o Direito dos Estados de usar a Força em Defesa dos Interesses Morais
e de Segurança

A administração americana afirmou também que o facto do Procurador e Juízes


do TPI poderem deferir decisões “políticas” sem consentimento dos próprios países,
traria consequências indesejáveis. A consequência óbvia seria a existência de um efeito
“de gelo” na intenção dos Estados de usar a força, quer nos casos de legítima defesa,
quer nos casos de operações humanitárias. Ora, nesta perspectiva, estaríamos perante
um sério entrave à soberania dos Estados.
Os defensores do TPI afirmam também que o Tribunal não tem autoridade para
fazer juízos relativamente a decisões respeitantes a questões de segurança dos países.
O tribunal só pode investigar políticas estatais no sentido de se certificar se essas mesmas
políticas conduzem à prática de crimes previstos e punidos pelo Estatuto do TPI.
Além disso, o Tribunal não poderá julgar a legalidade do uso da força por parte de
um líder – seja em legítima defesa – ao abrigo da Carta das Nações Unidas – seja com
o intuito de desenvolver uma acção humanitária – até que o crime de agressão seja
definido.
Assim, perante a incapacidade do Tribunal em ajuizar a responsabilidade de um
indivíduo que tenha cometido um acto de força qualificado como crime de agressão, é, na
opinião dos defensores da doutrina da jurisdição universal e do próprio TPI, incon-
cebível que líderes políticos hesitem em actuar em auto-defesa ou legítima defesa
por causa da existência do TPI. É claro e assente que um Estado que acredita estar em
perigo, deve fazer tudo para se proteger.

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Filipe Lobo d’Avila

Mais ainda, se um Estado se defender de outro Estado contra um ataque ou desen-


volva uma intervenção humanitária com o objectivo de proteger uma população consi-
derada vulnerável, esse mesmo Estado poderá sempre defender os seus líderes de
eventuais acusações de agressão invocando para tal o consentimento do Estado em perigo,
ou mesmo do Conselho de Segurança.

10. Pressões Políticas

Um dos receios americanos consistia, em parte, na eventual motivação política que


o TPI podia corporizar contra os líderes americanos e as suas forças armadas.
Importa desde logo trazer à colação que uma das mais importantes salvaguardas
contra perseguições de natureza política é o próprio princípio da complemen-
taridade inerente ao funcionamento do Tribunal. Como referi anteriormente,
este princípio significa que o TPI deverá deferir e remeter a instauração de processos
para os tribunais internos, caso o Estado em causa tenha um sistema judicial
que cumpre as disposições legais e actue de boa fé. Assim, de acordo com este prin-
cípio, os EUA mesmo não sendo membro do Estatuto, tem sempre o direito de
instaurar inquéritos sobre cidadãos americanos e removê-los da jurisdição do Tri-
bunal Internacional.
No entanto, é certo que não há ainda hoje forma de demonstrar à priori que o Tribunal
não enverede pelo pior cenário traçado pelos Estados Unidos da América.
Não obstante tratar-se de um juízo subjectivo, sou da opinião que as tentativas de
mau uso do Tribunal – por motivos políticos –, seriam experiências votadas ao fracasso.
Em primeiro lugar, porque os membros do TPI são países que fazem cumprir a lei,
incluindo os aliados dos EUA e da NATO; por outro lado, nenhum país considerado
“inimigo” dos EUA ratificou o tratado, e é muito pouco provável que o venha a
fazer, já que isso significaria assumir a jurisdição de um Tribunal sobre crimes come-
tidos no seu território ou pelos seus cidadãos. Por exemplo, se o anterior regime ira-
quiano ainda subsistisse (e aderisse ao TPI) e continuasse o genocídio contra os curdos,
seria muito provável que o Tribunal pudesse julgar (ou pretendesse julgar) Saddam
Hussein.
Em segundo lugar, é preciso notar que cada Estado tem um único voto na Assembleia
dos Estados-membros, pelo que mesmo que a associação ao Tribunal tivesse unicamente
finalidades políticas, o seu uso seria praticamente inatingível. As decisões tomadas

60
Uma Justiça Penal Internacional sem os Estados Unidos da América

pela Assembleia, em função do assunto em causa, requerem pelo menos a aprovação


por uma maioria simples.
Finalmente, os requisitos da representação regional do estatuto do TPI asseguram
que os órgãos do Tribunal sejam afastados de quaisquer pressões políticas.
Na eventualidade de um “abuso de poder” poder ocorrer, não controlado, o TPI correria
o sério risco, na minha opinião, de perder a sua melhor valência, ou seja, a sua reputação
de imparcialidade. A única fonte de poder do TPI reside na autoridade moral que
vai conquistando à medida que adquire maturidade enquanto instituição respeitada.
Os Estados só poderão vir a reconhecer a validade das deliberações do TPI se acredi-
tarem na sua legitimidade para actuar, sendo certo que o Tribunal não conseguirá
sobreviver sem essa legitimidade.

11. A Constituição Americana e o TPI

O Estatuto de Roma (ER) é o espelho da Constituição americana. Garante aos indi-


víduos acusados de crimes, bem como às suas vítimas, praticamente todos os direitos
e garantias que estão consagrados na Constituição Americana.
No essencial, apenas não é consagrado no Estatuto de Roma o julgamento por
júri previsto na Constituição Americana. E essa ausência justifica-se pelo facto de ser pra-
ticamente impraticável que se consiga fazer uma lista de jurados para julgar casos como
Slobodan Milosevic (genocídio do Kosovo, 1999) ou Pol Pot (Cambodja, 1979).
Assim:
• São escassas as protecções garantidas a cidadãos americanos que sejam acusados
de crimes no estrangeiro. Esses cidadãos estão sujeitos a julgamentos em sis-
temas judiciais estrangeiros, sendo que, na sua larga maioria, também não per-
mitem julgamentos por júri;
• Os EUA assinaram tratados de extradição que autorizam americanos a serem
julgados fora do país sem julgamento por júri.
• Mesmo nos EUA, os seus funcionários não têm garantias de poderem ter julga-
mentos por júri ao abrigo do Conselho de Guerra.

A tudo isto, acresce que a população americana apoiou mais fortemente o TPI do
que o seu próprio governo. Uma sondagem realizada em Março de 2000 indicava que

61
Filipe Lobo d’Avila

ESTATUTO ROMA CONSTITUIÇÃO AMERICANA

Presunção de Inocência ”O princípio de que existe uma presunção de inocência em


”Toda a pessoa se presume inocente até prova da sua culpabi- abono do acusado é lei irrevogável, axiomática e elementar, e
lidade perante o Tribunal” (art. 66) o seu fundamento subjaz (…)

Julgamento rápido e público Em todos os processos criminais, o acusado terá direito a um


“O arguido tem direito a ser ouvido em audiência pública … julgamento rápido e público,… (VIª Emenda)
a ser julgado sem atrasos indevidos” (art. 67-1º)

Direito de ser representado Em todos os processos criminais, o acusado terá direito…


O arguido tem direito a …comunicar livre e confidencial- fazer comparecer por meios legais testemunhas da defesa e de
mente com um defensor da sua escolha (art. 67 b) ser defendido por um Advogado

Direito de guardar silêncio O arguido tem direito a …nem a declarar-se culpado, e a


“O arguido tem direito a não depor contra si próprio, nem a guardar silêncio…” art. 67.g)
declarar-se culpado, e a guardar silêncio…” art. 67.g)

Privilégio contra auto-incriminação “Ninguém … será obrigado em qualquer processo criminal a


“Ninguém …será obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo” (Vª. Emenda)
confessar nem testemunhar” (art.º 54-1), 67-1)g)

Direito à declaração escrita das acusações Em todos os processos criminais, o arguido terá direito…
O arguido tem acesso a uma “cópia do documento especifi- a ser informado sobre a natureza e a causa da acusação…”
cando os factos constantes da acusação…” (art.º61-3) (VIª Emenda)

Direito de inquirir as testemunhas de acusação Em todos os processos criminais, o arguido terá direito… ser
O arguido tem o direito de inquirir ou fazer inquirir as teste- confrontado com as testemunhas de acusação
munhas de acusação (art.67e)

Direito a obter a comparência das testemunhas de defesa e a Em todos os processos criminais, o arguido terá direito … obter
inquirição destas meios para obter testemunhas em sua defesa” (VIª. Emenda)

Proibição contra crimes Ex-Post Facto Cf. Bill of Attainder – art.º 1


“Nenhuma pessoa será considerada criminalmente responsável,
…a menos que a sua conduta constitua, no momento em que tiver
lugar, um crime da competência do Tribunal”. (art.º 22)

Protecção contra Caso julgado …ninguém tem o direito de ser pelo mesmo crime condenado
“Ninguém que tenha sido julgado por outro tribunal…pode duas vezes em sua vida ou saúde (Vª.Emenda)
ser julgado pelo Tribunal.” (art.º 20)

Liberdade de mandado de detenção e notificação Nenhum mandado será expedido a não ser que exista funda-
O Juizo de instrução pode …emitir mandados de detenção… mentos de culpabilidade confirmados por juramento ou decla-
se existirem motivos suficientes para crer que essa pessoa ração…” (IVª Emenda)
cometeu um crime de competência do Tribunal…e a detenção
dessa pessoa se mostre necessária” (art.º 58 )

Direito de comparência em tribunal …o direito do arguido estar presente em cada fase do julga-
O arguido tem de estar presente durante o julgamento. (art. 20) mento”

Exclusão da Prova obtida ilegalmente “Se a prova for obtida por violação do disposto na Emenda IV,
”Não serão admitidas as provas obtidas contra a integridade o seu uso judicial é automaticamente excluído do processo
do processo ou resulte em grave prejuízo deste” (art.º 69-7) criminal contra a vítima…”

Proibição de julgamentos in absentia No caso de o arguido se ausentar da audiência durante o


O arguido deverá estar presente durante o julgamento” (art.º 63) julgamento, o tribunal poderá actuar do mesmo modo como se
estivesse presente

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Uma Justiça Penal Internacional sem os Estados Unidos da América

73% dos americanos aprovavam fortemente a eventual detenção de líderes políticos e


chefes de governo nos casos de lhes serem imputados certos crimes graves e,
consequentemente, que fossem julgados pelo TPI (e se considerados culpados punidos).
Estes crimes incluíam, por exemplo, a violação dos direitos humanos.
A sondagem indicava também que 66% da população americana acreditava que
a constituição de uma nova instituição para julgar criminosos de guerra contribuía
para a consolidação da defesa dos direitos humanos.

12. Conclusões

A posição americana é, como podemos constatar, controversa e aparentemente


divergente do seu passado histórico. Na verdade, os EUA estiveram profundamente
envolvidos nas negociações do Estatuto de Roma (sendo mesmo de referir que um
advogado do Exército pertencendo ao Departamento de Defesa Americano conduziu
algumas das negociações mais relevantes, nomeadamente, as relativas aos crimes que
o Tribunal poderia vir a julgar), que instituiu o TPI, assim como nas reuniões sucessivas.
Pode-se mesmo afirmar que o TPI terá sido “fabricado nos EUA”.
Depois do Presidente Clinton ter assinado o Estatuto de Roma a 31 de Dezembro
de 2000 (apesar de nunca ter sido apoiado pela sua administração) e de em Maio de 2002,
Bush ter anulado esse compromisso, através do famoso anúncio do sub-secretário
Mark Grossman, a tensão aumentou significativamente nas relações dos Estados Unidos
com os Países Aliados. Bastaria constatar que em toda a história das Nações Unidas,
nunca a assinatura de um Tratado tinha sido anulada por qualquer país. O acto de Bush
foi visto pelos europeus como um movimento isolacionista em prol dos interesses dos
EUA, afastando-se das tradicionais preocupações americanas de defesa dos direitos
humanos.
Esta decisão abriu um precedente bastante negativo, e que não será de menos-
prezar – o efeito multiplicador da decisão, isto é, poderia (e pode ainda) levar alguns
países a não assinar Tratados cujos compromissos estão perfeitamente assumidos.
No Congresso americano, a oposição ao TPI foi liderada pelo Senador Jesse Helms
(R-NC) e pelo seu representante Tom DeLay. Helms e DeLay, entre outros, propuseram
numerosas “emendas anti-TPI” a leis que suspenderam a dotação de fundos para o
envolvimento americano no Tribunal, suspendendo, também, o apoio militar a países
que ratificaram o Estatuto de Roma (incluindo a Suiça, a Argentina e a Nova Zelândia),

63
Filipe Lobo d’Avila

e autorizando o uso da força para libertar um americano do Tribunal ao abrigo do


“American Servicemembers Protection Act”.
Finalmente, os EUA lançaram também um ataque ao TPI no seio do Conselho de
Segurança da Nações Unidas requerendo imunidade para os seus “peacemakers” em
missões da ONU, primeiro em Timor-Leste e, posteriormente, na Bósnia. Os EUA vetaram
ainda a extensão do mandato da Nações Unidas para a missão de manutenção de paz
na Bósnia, na sequência da recusa de garantia de imunidade por parte do Conselho
de Segurança.
Assim, a 12 Julho de 2002, os EUA conseguiram obter uma resolução, apesar da
resistência de países pró-TPI através da qual se autorizava o Conselho de Segurança
a deferir determinados casos da jurisdição do TPI por um período de 12 meses. A reso-
lução foi conseguida após semanas de duras negociações entre países-membros do TPI,
incluindo a União Europeia, o México e o Canadá. Na resolução final, o Conselho de
Segurança exprime a intenção de renovar a resolução anual pelo prazo que for necessário.
A resolução aplica-se a casos envolvendo “peacemakers” “em operações estabelecidas
ou autorizadas para missões no Afeganistão, e destina-se a casos contra cidadãos de países que
não fazem parte do Estatuto de Roma” (como os EUA).
Hoje, a Assembleia Geral das Nações Unidas continua a discutir, em Nova Iorque,
a futura composição do Conselho de Segurança – discussão que se arrasta há mais de
dez anos –, e as atenções mundiais concentram-se no próximo Debate Geral sobre as
questões mais preocupantes para a comunidade internacional.
O relatório de Kofi Annan sobre a situação internacional é considerado pela imprensa
estrangeira e portuguesa como bastante sombrio. O secretário-geral analisa um a um os
conflitos que se alastram no mapa mundial e amiúde sublinha a impotência da organização
mundial perante o agudizar dos problemas. Kofi Annan destaca em especial a luta con-
tra o terrorismo mundial e a contínua e permanente ameaça de utilização de armas de
destruição maciça, fenómenos «que lançaram uma sombra sobre toda a Terra», diz o
secretário-geral.
Por outro lado, a questão do acordo que regulará as relações entre a ONU e o novo
Tribunal Penal Internacional também tem assumido papel de grande destaque, princi-
palmente, na recente 59.º sessão do plenário mundial. Aliás, foi mesmo o manifesto
pretexto para os Estados Unidos da América actualizarem a respectiva posição face
ao Estatuto de Roma.
Os Estados Unidos da América, através do seu representante, o embaixador John
Danforth, declararam que Washington respeitaria o direito dos Estados em tornarem-

64
Uma Justiça Penal Internacional sem os Estados Unidos da América

-se partes do Estatuto de Roma, mas reclamou que também deveria ser respeitado o direito
daqueles que pretendiam não aderir.
Segundo Danforth, os Estados Unidos da América «recusam ver as suas tropas e os seus
cidadãos submetidos ao estatuto de um tribunal que poderá ser usado com fins políticos e que carece
de um mandato do Conselho de Segurança».
Grande parte dos argumentos utilizados pela oposição ao TPI, sobretudo de alguns
politólogos americanos, é resultado de alguns mitos e de algumas concepções que,
mais que não seja do ponto de vista jurídico, não são correctas e não correspondem
totalmente à verdade.
Por outro lado, também se reconhece que a auto-exclusão dos Estados Unidos da
América deste processo não é benéfica para os próprios interesses americanos, nem,
obviamente, para os interesses da comunidade internacional.
Conclui-se, pois, que uma Justiça Penal Internacional sem os Estados Unidos da
América valerá sempre a pena, pese embora se reconheça, de igual forma, que não terá
o impacto que merece, e que o mundo de hoje reivindica.
Reconhece-se, simultaneamente, que o TPI acaba por defender valores e princí-
pios fundamentais – sobretudo, os princípios de justiça, responsabilidade e liberdade –
que são partilhados por todos os americanos e que, após um século de violência, é este
o Tribunal que está na linha da frente de um movimento global de protecção e preser-
vação dos direitos humanos individuais.
É certo que a história também nos ensinou que foram as forças aliadas, sobre-
tudo americanas, a libertar os presos dos campos de concentração nazi. Contribuíram
para o fim das atrocidades cometidas ao longo da 2ª Guerra Mundial. Contudo, é tam-
bém certo que os Tribunais de Tóquio e de Nuremberga não conduziram à criação de
um Tribunal de Guerra permanente e que as consequências desse fracasso são por
demais evidentes, entre outros casos, na história recente da Serra Leoa, do Ruanda,
de Timor Leste, da antiga Jugoslávia e do próprio Iraque.
Vivemos num mundo em que nações e sociedades são violentamente confron-
tadas com questões de genocídio, limpeza étnica, violação em massa e crimes de guerra.
Vivemos, pois, num mundo em que a criação de um Tribunal Penal Internacional é
um passo de gigante, sendo certo que a sua plena consolidação constituirá, certamente,
uma lufada de ar fresco no desenvolvimento de uma justiça penal internacional, que é,
nos nossos dias, absolutamente indispensável.

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