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TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL: garantia aos direitos


humanos ou uma afronta à soberania nacional?
International criminal court: guarantee the human rights or an affront to national sovereignty?

Juliana de Oliveira
Douglas Damião de Souza Antunes

Resumo: A presente pesquisa tem como propósito analisar se o Tribunal Penal Internacional (TPI),
instituído pelo Estatuto de Roma, incorporado à legislação brasileira através do Decreto n. 4.388,
de 25 de setembro de 2002, é uma forma encontrada pela comunidade internacional de garantir os
direitos humanos e a dignidade da pessoa humana ou se é um tribunal que afronta os ditames da
Constituição Federal, ferindo a soberania nacional brasileira.

Palavras-chave: Estatuto de Roma. Tribunal Penal Internacional. Soberania nacional. Direitos hu-
manos.

Abstract: This research aims to analyze whether the International Criminal Court (ICC), established
by the Rome Statute incorporated into Brazilian law through Decree No. 4.388 of September 25,
2002, it is a way found by the international community to ensure human rights and dignity of the hu-
man person or are an affront court that the dictates of the Constitution, injuring the Brazilian national
sovereignty.

Keywords: Rome Statute. International Criminal Court. National sovereignty. Human rights.

1. introdução
A presente pesquisa foi desenvolvida em três títulos. O primeiro irá tratar
de um conceito histórico de como e quais as razões do surgimento do Tribunal
Penal Internacional. O segundo estudará os atos desenvolvidos pelo Estado
brasileiro em relação ao Tribunal Penal Internacional, com intenção de imple-
mentar sua efetividade em relação a nosso ordenamento jurídico. Trataremos
no terceiro título especificamente sobre aspectos da legislação brasileira refe-
rentes ao Tribunal Penal Internacional. Dando sequência, serão elencadas algu-
mas divergências entre a legislação brasileira e o Estatuto de Roma, concluindo
os temas com alguns aspectos de extrema relevância em relação à soberania
nacional e à soberania do Estado. Finalmente, a conclusão será no seguinte
sentido: que a ideia do estabelecimento de uma corte internacional para o jul-
gamento de crimes graves contra o ser humano é válida. Porém, necessita de
ajustes em relação à legislação de alguns países-membros e em alguns pontos

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do Estatuto de Roma, tornando-os compatíveis sem ferir a soberania dos Esta-


dos.
Faz-se necessário salientar que é notório o fato de que a criminalidade
atualmente vivenciada não respeita fronteiras territoriais. Não obstante, quando
passamos por períodos de conflitos armados ou bélicos, muitas atrocidades são
cometidas pelos combatentes, mesmo levando em conta que tais atrocidades
sejam cometidas sob a alegação de se estar no cumprimento de ordens de su-
periores e hierárquicos, fatos estes que a história nos deixa claro com cicatrizes
permanentes presentes na comunidade internacional. Porém, após a realização
de tais atos, seus autores procuram se esquivar da correspondente responsa-
bilidade criminal permanecendo em seu território de origem, com amparo em
uma aposta arriscada de que, regra geral, o nacional não seria entregue para
julgamento em tribunal alienígena.
Partindo desse ponto de vista, a história nos revela que, desde a Segun-
da Guerra Mundial, verificou-se por parte de toda a comunidade internacional a
necessidade de instituição de um tribunal internacional para processamento e
julgamento de tais atos, e que tal tribunal agisse em caráter permanente, julgan-
do os crimes de guerra, dessa forma afastando-se eventuais arguições de ilegi-
timidade, diante da criação pelos próprios vencedores do conflito, como no caso
dos tribunais de Nuremberg e Tóquio, ambos tidos como tribunais de exceção.
Adicione-se à discussão o argumento de que a criação de tais tribunais poderia
configurar agressão ao princípio nulla poena sine lege, ou seja, não pode existir
pena sem a prévia cominação legal.
Além disso, há discussão relativa à natureza ex post facto de tribunais
específicos, isto é, criados depois do caso que será julgado, como a criação dos
tribunais ad hoc, ou seja, para o julgamento de um caso específico, como foi o
caso para a antiga Iugoslávia e Ruanda, bem como os anteriormente citados
tribunais de Nuremberg e Tóquio. Fica claro, dessa forma, que nessas circuns-
tâncias igualmente se afastaria a legitimidade para julgamento, até mesmo pelo
fato de terem sido criados pelo Conselho de Segurança da Organização das
Nações Unidas, sofrendo ainda forte influência dos interesses dos membros
permanentes do referido Conselho. Desse modo, era conferida competência
não prevista constitucionalmente a quaisquer órgãos julgadores, configurando
assim um tribunal ou juízo excepcional.
Essa influência histórica não poderia nos levar a outro caminho a não ser
a provocação da criação de um tribunal permanente por parte da comunidade
internacional para o julgamento de crimes contra a humanidade, dentre os quais

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estão incluídos e em destaque os crimes de guerra, genocídio e de agressão,


concretizado com o Tribunal Penal Internacional, por meio do Tratado de Roma,
de 17 de julho de 1998, que entrou em vigor em 11 de abril de 2002, estando
sediado em Haia, na Holanda.
Dentro desse contexto, o objetivo do presente trabalho é investigar, logi-
camente que em caráter não exaustivo, a possibilidade de aplicação de sanções
no âmbito do Tribunal Penal Internacional (TPI) em relação aos brasileiros na-
tos, caso fossem acusados de alguns dos crimes previstos para a jurisdição do
Tribunal Penal Internacional, examinando ainda o posicionamento atualmente
adotado pela doutrina pátria com base em nossa Constituição. E ainda avaliar
se o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional não fere a nossa legis-
lação, vindo dessa forma a ferir a soberania nacional brasileira, discorrendo
ainda sobre as incoerências ou contradições existentes entre o Estatuto e nossa
Constituição Federal.

2. Tribunal Penal Internacional


O Tribunal Penal Internacional (TPI) foi instituído logo após a Segunda
Guerra Mundial, nascido de uma demanda internacional visando à extinção dos
tribunais de exceção para julgamento de crimes contra a humanidade e de guer-
ra, para fins de evitar julgamentos parciais, como foi o proferido pelo Tribunal de
Nuremberg em relação aos crimes nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
De acordo com Cerqueira (2005), com o final da Segunda Guerra Mundial,
levando em consideração os frutos gerados pela extrema violência e tendo em
vista as atrocidades cometidas durante esse sangrento conflito, a comunidade
internacional sentiu a necessidade latente da criação de um tribunal autônomo
e prévio, que fosse imparcial e em caráter permanente, que detivesse poderes
não só para investigar, bem como para processar e julgar indivíduos acusados
de cometer crimes que afetassem de alguma forma toda a humanidade, mesmo
levando em consideração que tais crimes fossem cometidos por nacionais den-
tro dos seus próprios territórios, ou seja, dentro da própria jurisdição.
Richter (2006) afirma que nascia então o polêmico conceito de que a
proteção aos direitos humanos não deve se restringir ao arbítrio de um único Es-
tado, ou seja, não deve se reservar apenas aos limites da competência nacional
ou à jurisdição doméstica exclusivamente de um Estado, porque supostamente
revela tema relevante de legítimo interesse de toda a comunidade internacional,
tudo isso em prol de uma esperança de realização de justiça e de combate à im-
punidade, tendo em vista, sem sombra de dúvidas, manter a segurança jurídica

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de toda a comunidade internacional mesmo em momentos difíceis e delicados,


como se apresenta no momento de uma guerra.
É possível observar, ainda, que a ideia da criação do TPI, com tais ca-
racterísticas, traria também dois conceitos novos ao ordenamento jurídico inter-
nacional. Segundo Cerqueira (2005), o primeiro seria a revisão da noção tra-
dicional tida até o momento da criação dessa corte de soberania absoluta do
Estado, a qual passaria a sofrer um processo de relativização e flexibilização na
gerência dos seus assuntos internos, para dessa forma garantir a existência de
direitos humanos internacionais e universais. O segundo conceito apresentado
seria o da proteção global, pois cidadãos de quaisquer Estados teriam um am-
paro jurídico na comunidade internacional de que os seus direitos básicos se-
riam protegidos tanto em seus países como em qualquer outra parte do planeta.
Cabe salientar, ainda, segundo entendimento defendido por Oliveira Neto
(2014), que a palavra ou conceito de soberania exprime uma ideia de poder
supremo, pois essa palavra, que deriva do latim, traz para nós a noção de um
sujeito que não se sujeitaria à autoridade nacional de nenhum outro Estado.
Porém, são encontradas atualmente definições diversas e teorias que envolvem
o léxico soberania numa verdadeira variante polissêmica. Na atual doutrina que
rege as relações internacionais, a soberania pode ser encarada enquanto con-
junto de regras personificadas pelos Estados. Essas normas constituem e regu-
lam a independência externa e a autoridade nacional dos Estados, bem como
não significa dizer que o TPI teria de alguma forma soberania sobre os Estados,
o que, caso fosse afirmado, não passaria de uma falácia.
Partindo desse ponto de vista e levando em consideração tais concei-
tos ora mencionados, surgem as primeiras tentativas de estabelecimento de
cortes internacionais, que foram concretizadas com as criações dos Tribunais
Militares de Nuremberg, de 1945/1946, criados após a Segunda Guerra Mundial
(especificamente para julgar líderes que tiveram envolvimentos com atrocida-
des nazistas) e o Tribunal de Tóquio, de 1946, para o julgamento dos crimes
de conspiração, de guerra, contra a paz e contra a humanidade, cometidos,
respectivamente, pelos nazistas e pelos japoneses durante a Segunda Guerra
Mundial. A criação desses tribunais criou revolta por parte dos indiciados como
réus pelos tribunais e foi muito polêmica, pois até então existia uma corrente de
pensamento que defendia que somente Estados, e não indivíduos, poderiam
ser julgados por tais crimes, gerando sem sombra de dúvida uma instabilidade
jurídica à época dos fatos.
A ideia defendida por essa corrente de pensamento não prevaleceu,

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conforme nos mostra de forma categórica a história, pois em Nuremberg, por


exemplo, 12 pessoas foram condenadas à forca, três à prisão perpétua e qua-
tro a penas de prisão, que iam de 10 a 20 anos, mesmo que tal tribunal tenha
sido instalado de maneira a configurar um tribunal de exceção e presidido pelos
ganhadores do confronto bélico, ou seja, ganhadores julgando perdedores do
conflito.
Em 1993 e 1994, segundo Gasparin Jr. (2009), foram instituídos dois tri-
bunais especiais para punir as graves violações ao direito internacional huma-
nitário, ocorridas respectivamente na ex-Iugoslávia e em Ruanda. Essas duas
cortes, diferentemente dos moldes apresentados nos tribunais de Nuremberg e
Tóquio, não eram compostas por militares, mas exclusivamente por magistra-
dos. Diferenciavam-se ainda dos dois primeiros por não admitirem a pena de
morte.
Essas quatro cortes precursoras do Tribunal Penal Internacional possu-
íam ainda um caráter ad hoc, ou seja, eram provisórias e criadas para um fim
específico.
Dessa forma, foi então lançada, no início da década de 1990, no seio da
Organização das Nações Unidas (ONU), a semente do Tribunal Penal Inter-
nacional. A ideia principal era instituir uma corte de direitos humanos que não
apresentasse vinculação a Estados ou a demandas específicas, agindo assim
de forma imparcial, permanente e sem sofrer influências estatais.
Mesmo levando em consideração que a iniciativa da criação do TPI tenha
surgido no seio da ONU, a cuja Comissão de Direito Internacional coube o papel
de redigir o primeiro projeto de estatuto dessa corte, houve a preocupação em
se preservar sua desvinculação desse organismo internacional. Tal medida teria
o intuito de afastar qualquer risco de influência política em relação ao tribunal
penal na condução dos processos e no resultado dos julgamentos por crimes
contra a humanidade, de agressão, genocídio e guerra. A isenção que se procu-
rou construir em torno do novo tribunal lhe credenciaria a exercer controle mais
rígido e eficiente sobre artifícios voltados à eliminação de provas, intimidação de
testemunhas e fuga de acusados.
A partir dessas diretrizes básicas, seguindo a linha de raciocínio de Cer-
queira (2005), processou-se então a Conferência Diplomática de Plenipotenciá-
rios das Nações Unidas, realizada na cidade de Roma, na Itália, em 17 de julho
de 1998, que resultou na aprovação do seu estatuto – Estatuto de Roma do
Tribunal Penal Internacional, ou simplesmente Estatuto de Roma. Essa data re-
presenta, assim, o marco de criação de uma corte internacional, supranacional

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e permanente de defesa dos direitos humanos.


A nova corte, sediada em Haia, na Holanda, passou a ter competência
para julgar os chamados crimes contra a humanidade, os crimes de guerra, de
genocídio e de agressão. Traz com sua criação um avanço importante, pois é
a primeira vez na história das relações internacionais que se consegue obter o
necessário consenso para levar a julgamento, por uma corte internacional per-
manente, não só políticos ou chefes militares, mas também se tornaria possível
levar a julgamento pessoas comuns pela prática de delitos da mais alta gravida-
de, que até o momento de sua criação, salvo raras exceções, ficavam impunes,
especialmente em razão do princípio da soberania, levando em conta que até
o momento indivíduos não eram julgados por tais atos, e sim quem respondia
era o Estado.
O Estatuto de Roma entrou em vigor em 1º de julho de 2002, após ser
ratificado por 60 países, fato que conferiu ao TPI personalidade jurídica inter-
nacional e capacidade para atuar de forma complementar ao sistema jurídico
interno dos Estados-parte. Em função do limite imposto ao seu exercício jurisdi-
cional, essência do princípio da complementaridade, essa corte só poderá agir
caso seja constatada a falta de interesse, de condições materiais, ou ainda irre-
gularidades na consecução do processo e julgamento do acusado pela Justiça
de seu país.
Até novembro de 2003, 92 dos quase 130 países que haviam assinado o
Estatuto de Roma à época também já haviam procedido à ratificação dessa con-
venção multilateral, aval necessário para que se submetam à jurisdição do TPI.
O Estatuto de Roma é composto por 128 artigos, distribuídos por 13 ca-
pítulos, define local de funcionamento, composição, estrutura administrativa e
forma de financiamento do TPI, competência, critérios para admissibilidade de
causas e normas jurídicas aplicáveis, ritos processuais sobre o inquérito e a
ação penal, penas e suas formas de execução, procedimentos relativos a recur-
so e revisão de pena, assim como regras de cooperação internacional e auxílio
judiciário.
Cabe salientar que a estrutura apresentada por essa corte internacional
de direitos humanos conta com uma Câmara de Julgamento Preliminar, uma
Câmara de Primeira Instância, uma Câmara de Apelações, a Procuradoria e a
Secretaria. Enquanto a Câmara de Julgamento Preliminar acompanha a fase
de apuração e levantamento de provas sobre o delito denunciado, a Câmara
de Primeira Instância trata de instaurar o processo, caso a acusação seja pro-
cedente.

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O Estatuto de Roma define que a escolha de juízes e do procurador do


TPI deverá ser realizada pela assembleia dos Estados-parte, e os candidatos
devem contar com reconhecida idoneidade moral, competência e experiência
na área penal. Se aos magistrados cabe o julgamento das causas, ao procura-
dor reserva-se a atribuição de receber as denúncias e decidir pelo seu acolhi-
mento e pela abertura das investigações.
A instalação do Tribunal Penal Internacional ocorreu no dia 11 de março
de 2003 com a posse de seus 18 magistrados.
Segundo nos relata Cerqueira (2005), dentre o corpo de juízes do tribunal
figurava a brasileira Sylvia Helena de Figueiredo Steiner, que foi indicada pelo
então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Formada e mes-
tre em direito penal pela USP, e na condição de desembargadora do Tribunal
Regional Federal da 3ª Região, onde já tinha atuação destacada na área de di-
reitos humanos, Steiner integrou o grupo de trabalho encarregado de elaborar o
anteprojeto de lei necessário para adaptar a legislação brasileira ao Estatuto de
Roma. Naquela mesma ocasião, foi eleito o presidente do tribunal, sendo este
o juiz canadense Philippe Kirsch, procedendo-se, no dia 21 de abril de 2003,
à escolha do advogado argentino Luis Moreno Ocampo como seu procurador.
No tocante ao funcionamento desse tribunal, é relevante esclarecer que
seu alcance investigativo se limita à apuração de crimes praticados, após a
vigência do Estatuto de Roma, nos territórios, a bordo de navio ou aeronave
nacional, ou por cidadãos dos Estados que aderiram ao tratado.
Vale ressaltar ainda a imprescritibilidade dos delitos sob sua alçada, que
podem ser denunciados por um dos Estados, pelo Conselho de Segurança da
ONU, por vítimas e organizações não governamentais (ONGs).

2.1 Estatuto de Roma: tratado constitutivo do Tribunal Penal Internacional


O Tribunal Penal Internacional (TPI) foi instituído pelo Estatuto de Roma,
em 1998, cujas discussões de criação iniciaram-se logo após o fim da Segunda
Guerra Mundial, para fins de evitar a submissão dos agentes de guerra à juris-
dição de tribunais de exceção, como o que ocorreu com os soldados nazistas
no Tribunal de Nuremberg, os quais foram julgados com uma única finalidade:
a condenação!
Para uma melhor compreensão do Estatuto de Roma, faz-se necessária
a exposição de um trecho do Estatuto, que traz a seguinte redação:
Os Estados Partes no presente Estatuto. Conscientes de que todos os povos es-
tão unidos por laços comuns e de que suas culturas foram construídas sobre uma

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herança que partilham e preocupados com o fato deste delicado mosaico poder
vir a quebrar-se a qualquer instante, tendo presente que, no decurso deste século,
milhões de crianças, homens e mulheres têm sido vítimas de atrocidades inimagi-
náveis que chocam profundamente a consciência da humanidade, reconhecendo
que crimes de uma tal gravidade constituem uma ameaça à paz, à segurança e ao
bem-estar da humanidade, afirmando que os crimes de maior gravidade, que afe-
tam a comunidade internacional no seu conjunto, não devem ficar impunes e que
a sua repressão deve ser efetivamente assegurada através da adoção de medidas
em nível nacional e do reforço da cooperação internacional, decididos a pôr fim à
impunidade dos autores desses crimes e a contribuir assim para a prevenção de
tais crimes [...]. Determinados em perseguir este objetivo e no interesse das gera-
ções presentes e vindouras, a criar um Tribunal Penal Internacional com caráter
permanente e independente, no âmbito do sistema das Nações Unidas, e com
jurisdição sobre os crimes de maior gravidade que afetem a comunidade interna-
cional no seu conjunto, sublinhando que o Tribunal Penal Internacional, criado pelo
presente Estatuto, será complementar às jurisdições penais nacionais, decididos a
garantir o respeito duradouro pela efetivação da justiça internacional [...].

O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional enuncia de forma


clara no capítulo I, artigo 4º, o REGIME JURÍDICO E PODERES DO TRIBU-
NAL, informando que o TPI terá personalidade jurídica de âmbito internacional.
Possuirá, ainda, poderes necessários ao desempenho das suas atribuições e
ao alcance dos seus objetivos, assim como poderá atuar, nos termos do seu
estatuto, no território de qualquer Estado-parte ou no território de qualquer outro
Estado, mediante acordo especial com o mesmo.
No seu capítulo II, COMPETÊNCIA, ADMISSIBILIDADE E DIREITO
APLICÁVEL, artigo 5º, CRIMES DA COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL, o Estatuto
de Roma estabelece que a competência do Tribunal Penal Internacional será
restrita aos crimes mais graves, que afetem a comunidade internacional como
um todo, sendo estes: crime de genocídio, contra a humanidade, de guerra e
agressão.
No capítulo VII, AS PENAS, artigo 77, PENAS APLICÁVEIS, o Estatuto
estabelece que o TPI pode impor ao criminoso condenado por um dos crimes
previstos no seu artigo 5° as seguintes penas: pena de prisão por um número
determinado de anos, até o limite máximo de 30 anos, e pena de prisão per-
pétua, em casos de elevada gravidade do fato e se as condições pessoais do
condenado assim demandarem.
Nesse sentido, conclui-se que os crimes de competência do TPI são os
praticados contra a humanidade, de guerra, agressão e de genocídio.

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3. Brasil no Tribunal Penal Internacional


O Brasil assinou o Tratado de Roma em 7 de fevereiro de 2000, deposi-
tando o instrumento de ratificação em 20 de junho de 2002, logo após a apro-
vação do texto do Estatuto de Roma pelo Congresso Nacional, fato que ocorreu
em 06 de junho de 2002, através do Decreto Legislativo n. 112/2002.
Segundo Gasparin Jr. (2009), a Portaria n. 1.036, de 2001, do Ministério
da Justiça, criou um Grupo de Trabalho composto por 11 membros, represen-
tantes das seguintes organizações: Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Mi-
nistério Público Militar, Consultoria Jurídica do Ministério das Relações Exterio-
res, Ministério Público Federal, Advocacia-Geral da União, Consultoria Jurídica
do Ministério da Justiça, Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, Secretaria
de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Tribunal Regional Federal
da 3ª Região, com o propósito de apresentar uma proposta de adaptação da
legislação brasileira ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, e
ainda com o intuito de possibilitar o exercício da jurisdição primária pelo Estado
brasileiro e levando em conta também a ideia de viabilizar a cooperação com o
Tribunal Penal Internacional.
Em 2002, esse Grupo de Trabalho anteriormente formado elaborou um
anteprojeto de lei, com o propósito de ser enviado ao Congresso Nacional, de-
finindo assim os detalhes pertinentes nesse caso em relação aos crimes de
genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes contra a
administração da justiça do Tribunal Penal Internacional.
Cerqueira (2005) ressalta que o Decreto Legislativo n. 112, de 06 de ju-
nho de 2002, aprovou o texto do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacio-
nal. Tal decreto declara que estão sujeitos à aprovação do Congresso Nacional
brasileiro quaisquer atos que possam resultar em revisão do referido estatuto,
assim como quaisquer ajustes complementares que, nos termos do inciso I, do
artigo 49, da Constituição Federal, por ventura acarretem encargos ou compro-
missos contrários aos interesses nacionais. Essa ressalva se entendeu neces-
sária para fins de garantir o não ferimento à soberania nacional, tendo em vista
que o texto legal do Estatuto de Roma e a legislação brasileira apresentam em
alguns pontos discrepâncias.
Contudo e considerando que o Congresso Nacional aprovou o texto do
Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, por meio do Decreto Legisla-
tivo n. 112, de 6 de junho de 2002, o presidente da República promulgou através
do Decreto Presidencial n. 4.388, de 25 de setembro de 2002, o Estatuto de
Roma do Tribunal Penal Internacional.

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Nota-se ainda que os diversos pontos do Estatuto de Roma do Tribunal


Penal Internacional foram amplamente avaliados por autoridades e especialis-
tas da área jurídica, bem como tais incongruências ou divergências foram sub-
metidas à aprovação dos Poderes Legislativo e Executivo brasileiros.

3.1 Submissão do Brasil à jurisdição do tpi


A Constituição Federal, no seu Título I, DOS PRINCÍPIOS FUNDAMEN-
TAIS, artigo 1°, enuncia que a República Federativa do Brasil tem como funda-
mentos, dentre outros, a soberania e a dignidade da pessoa humana. No seu
artigo 4º, especifica que o Brasil é regido, nas suas relações internacionais,
pelos princípios da prevalência dos direitos humanos.
Já no Título II, DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS, capí-
tulo I, DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS, artigo 5º, a
Constituição Federal brasileira define que constitui crime inafiançável e impres-
critível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitu-
cional e o Estado Democrático; e que no Brasil não serão aplicadas penas de
caráter perpétuo.
O artigo 5º estabelece ainda que nenhum brasileiro será extraditado, sal-
vo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização,
ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas
afins, na forma da lei.
No art. 5º, § 4º, da Constituição Federal, o Brasil incorporou às suas
normas constitucionais a sua submissão à jurisdição do TPI, afirmando que o
Brasil se submeterá à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, ao qual tenha
manifestado adesão, inclusive autorizando a entrega de cidadãos brasileiros
para serem julgados pelo TPI quando da prática dos crimes de guerra, contra a
humanidade, genocídio e agressão.
Levando em consideração o exposto na Constituição Federal de 1988,
pode-se afirmar que nossa Constituição reflete, sem sombra de dúvidas, uma
ampla preocupação voltada para a garantia dos direitos humanos, assegurados
de forma irrestrita aos cidadãos brasileiros.
Dessa forma, é cabível considerar, ainda, constitucionais a entrega de
cidadãos brasileiros e a aplicação da pena de prisão perpétua, propostas pelo
texto do Estatuto de Roma. Deve-se ainda considerar que a Constituição Fe-
deral não deixa dúvidas quanto à imprescritibilidade dos crimes de sujeição ao
TPI.

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3.1.1 Legislação Brasileira versus Estatuto de Roma


Os principais pontos de discordância entre a legislação vigente no Brasil
e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional são, segundo Cerqueira
(2005): a) a aplicação da pena de prisão perpétua a eventuais crimes cometidos
por cidadãos brasileiros, penalidade esta prevista nesse Estatuto e veemente-
mente proibida pela nossa Constituição. Aceitar tal fato e deixar que um nacio-
nal seja por esse tribunal condenado a tal pena seria o mesmo que passar por
cima de nossa constituinte atualmente em vigor; b) a extradição de brasileiros
para serem julgados pelo Tribunal Penal Internacional, em Haia, Holanda, o
que por sua vez configuraria a entrega de um nacional para ser julgado em um
tribunal alienígena, ferindo dessa forma nossa legislação; e c) também pode ser
considerado ponto de contradição entre as duas legislações em questão, pois
a nossa Constituição também proíbe essa prática. Todos os crimes listados no
Estatuto de Roma não prescrevem, e a Constituição brasileira deixa bem claro,
de forma taxativa, quais seriam os crimes imprescritíveis no Brasil, mostran-
do-se mais uma vez que alguns pontos das leis analisadas são simplesmente
incompatíveis entre si.
Existe ainda a questão da imunidade, porém nesse ponto há o entendi-
mento de que a Constituição não garante explicitamente a imunidade de chefes
de Estado a crimes contra a humanidade, como dispõe o art. 4º, no tocante à
prevalência dos direitos humanos, não colidindo com o art. 27 do Estatuto, que
aplica penas aos chefes de Estado no exercício de sua capacidade funcional.
Dessa maneira, podemos observar que, para que a legislação brasileira
seja adequada aos interesses da Corte Internacional, devemos realizar uma
reforma constitucional, a fim de dar um total respaldo e segurança jurídica para
quem por ventura venha a ser julgado pelo TPI; do contrário, ou segue-se o Es-
tatuto de Roma e atropela-se a Constituição ou cumpre-se o previsto na Consti-
tuição e fere-se o acordo internacional assinado por meio do Estatuto de Roma.
Há de se convir que tal fato (deixar de lado o que prevê a Constituição),
segundo Bastos (2001), não se torna possível, uma vez que se trata de cláusu-
las pétreas, que não podem ser suprimidas ou revistas, nem mesmo por emen-
das constitucionais, pois a Constituição Federal, no seu artigo 60, § 4°, inciso I,
II, II e IV, os quais estabelecem que não será objeto de deliberação a proposta
de emenda que tente abolir a forma federativa do Estado brasileiro, o voto di-
reto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e os direitos e
garantias individuais dos brasileiros.
Nesse caso o que resta saber, segundo afirmação de Cerqueira (2005),

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é se a soberania nacional brasileira estaria sendo ou não ferida caso o Tribunal


Penal Internacional decidisse pedir a entrega de um nacional brasileiro para
então ser julgado por aquela corte, bem como o que ocorreria em um eventu-
al caso de condenação de um réu brasileiro à prisão perpétua e ainda se um
suposto criminoso brasileiro fosse indiciado pelo TPI por crimes já prescritos
pelas nossas leis vigentes, mas ainda em vigor, à luz do que prevê o Estatuto
de Roma do Tribunal Penal Internacional.
Faz-se necessário ainda ressaltar que o Brasil vem participando ativa-
mente de missões de paz da Organização das Nações Unidas, com envio signi-
ficativo de tropas e mantendo ainda contingentes militares expressivos em pa-
íses com instáveis situações políticas, como Angola, Moçambique, Timor Leste
e mais recentemente e de forma mais assídua o Haiti. Por muitas vezes, devido
à instabilidade que reina em tal território, as tropas brasileiras são obrigadas,
para o cumprimento da missão que lhes foi imposta, inevitavelmente a entrar
em combate e confronto real, o que poderia, posteriormente ao fato, ensejar a
possibilidade de julgamento pelo Tribunal Penal Internacional caso algum mili-
tar brasileiro fosse denunciado por algum dos crimes previstos no Estatuto de
Roma.
Nesse caso, os militares enviados para tais missões se deparam, en-
quanto brasileiros e tendo em vista esse aumento de projeção no cenário inter-
nacional, com um panorama cada vez maior de exposição, sujeitos a ser con-
frontados com as normas do Estatuto de Roma, que estabelece que qualquer
suposta vítima pode denunciar um eventual crime para ser investigado pelo
Tribunal Penal Internacional.
Há de se considerar que até hoje nenhum brasileiro foi denunciado ao
TPI. Porém, o que não pode ser deixado de lado é que, se o fosse, ficaríamos
em uma situação extremamente difícil caso uma suposta vítima denunciasse
um militar brasileiro, membro do nosso contingente nas Forças de Paz da ONU,
alegando o cometimento de um dos crimes de jurisdição previstos no Estatuto
de Roma.
Para Cerqueira (2005), esses conflitos entre legislação interna e Estatuto
de Roma não são exclusividade do Estado brasileiro. Existem alguns países
que, por sua vez, contam com grande influência no cenário internacional e tam-
bém consideram inconstitucionais alguns pontos do Estatuto de Roma, do Tri-
bunal Penal Internacional. Tal resistência é notória no panorama da comunidade
internacional, pois países como Estados Unidos e Rússia resistem a ratificar o
Estatuto de Roma e países como China e Israel sequer o assinaram, não reco-

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Tribunal Penal Internacional: garantia aos direitos humanos ou uma afronta à soberania nacional? 85

nhecendo assim a legitimidade do TPI, demonstrando ainda, dessa forma, que


o TPI ainda é um bebê, que vive um processo de amadurecimento institucional
e de formação de jurisprudência.
Os Estados Unidos da América, por exemplo, alegam que os combaten-
tes de suas Forças Armadas podem ser vítimas de processos influenciados e
politicamente motivados e, no intuito de proteger seus nacionais, já assinaram
tratados bilaterais com mais de 20 países, concedendo aos cidadãos america-
nos imunidade contra ordens de prisão do Tribunal Penal Internacional com o
intuito de proteger e de certa forma fornecer uma segurança jurídica para os
seus nacionais que se encontram em território estrangeiro a serviço de seu país,
garantindo dessa forma o bom cumprimento da missão.

4. Tribunal Penal Internacional e a relativização da soberania nacional


O Estado, por meio de sua soberania, possui jurisdição sobre seus na-
cionais e estrangeiros que estão em seu território. No entanto, quando o Estado
brasileiro entrega um nacional, nacionalizado ou estrangeiro ao TPI para julga-
mento por um crime de competência daquele tribunal, abre mão de sua sobera-
nia, mesmo que parcialmente.
A soberania nacional está estampada no art. 1º, inciso I, da Constituição
Federal como fundamento da República Federativa do Brasil, tão relevante é o
seu conteúdo.
Ao longo da história da humanidade, o conceito de soberania sempre
esteve associado a poder. Nos Estados absolutistas, esse poder era exercido
de forma irrestrita pelos seus soberanos. De acordo com Bonavides (2001, p.
125), o assunto “soberania” foi tratado pela primeira vez, no âmbito teórico, pelo
publicista francês Jean Bodin (1530-1596) na obra Os seis livros da república
(Les six livre de la republique), editado em 1576. Dessa forma, pode-se afirmar
que as bases do absolutismo foram estabelecidas na França, no século XVI,
tendo como um dos seus principais ideólogos Jean Bodin (1530-1596), o qual
afirmava que “a soberania do rei é originária, ilimitada, absoluta, perpétua e
irresponsável, em face de qualquer outro poder temporal ou espiritual”, conce-
bendo também que a soberania é um elemento essencial do conceito de Esta-
do, enfatizando que não pode haver Estado sem soberania.
Na obra de Justiniano (Corpus iuris civilis, publicada entre 529 e 534 d.C)
a palavra soberania aparece como is qui nullius populi potestti est subiectus, ou
seja, “aquele que não está sujeito ao poder de nenhum outro povo”. Tal conceito
foi trazido por Norberto Bobbio em seu livro Estado, governo e sociedade, tra-

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duzido por Marco Aurélio Nogueira (1992).


A partir da Revolução Francesa, com o fim do absolutismo e a conse-
quente consolidação dos Estados liberais modernos, o poder do soberano foi
transferido para o Estado.
O pensador francês Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1836) estabeleceu
a doutrina da Soberania da Nação, afirmando: “em toda Nação livre – e toda Na-
ção deve ser livre – só há uma forma de acabar com as diferenças que se pro-
duzem com respeito à Constituição. Não é aos notáveis que se deve recorrer, é
à própria Nação”. Foi com essa posição que Sieyès concebeu, racionalmente, o
princípio da Soberania da Nação como instrumento de legitimação para a insti-
tuição do Estado Constitucional Moderno (SIEYÈS, 1986, p. 113).
Nascia ainda, da Escola Clássica Francesa, a Teoria da Soberania Nacio-
nal, que teve o filósofo Jean-Jacques Rousseau como o seu principal teórico.
Essa teoria baseia-se no princípio de que a nação é a fonte única do poder. O
governante só o exerce legitimamente se houver o consentimento nacional.
O conceito de soberania na Escola Clássica Francesa, segundo Dallari
(2003), envolve ainda as seguintes características: a) a soberania é una, pois
não admite a existência de mais de uma autoridade soberana dentro de um
mesmo território; b) a soberania é indivisível. O poder soberano pode delegar
suas atribuições e dividir competências, como por exemplo no caso dos Pode-
res Legislativo, Executivo e Judiciário, mas não admite em hipótese alguma a
divisão da sua soberania; c) a soberania é inalienável, ou seja, não pode ser
transferida a terceiros. O poder soberano é legitimado pelo corpo social (enti-
dade coletiva possuidora de vontade própria), que, por sua vez, é constituído
pelo somatório das vontades dos seus componentes. Os representantes desse
corpo social devem exercer o poder de soberania baseados na Constituição e
nas leis; d) a soberania é imprescritível. Não é limitada pelo tempo. Não se pode
conceber soberania por apenas um certo período de tempo.
A Teoria da Soberania do Estado nasceu nas escolas alemã e austría-
ca, tendo como principais ideólogos Georg Jellinek (1851-1911) e Hans Kelsen
(1881-1973). A referida teoria baseia-se na ideia de que a única fonte de direito
é o Estado. Os principais pontos defendidos por Jellinek e Kelsen foram: a) a
soberania é de natureza estritamente jurídica. É um direito exclusivo do Estado
e é de caráter absoluto, isto é, não admite limitações de qualquer espécie; b)
soberania é a capacidade de autodeterminação do Estado, sendo esta o seu re-
quisito básico; c) toda forma de coação estatal é legítima, pois sintetiza o direito
de expressão da vontade soberana do Estado.

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Nas três teorias mencionadas, Princípio da Soberania da Nação, Teoria


da Soberania Nacional e Teoria da Soberania do Estado, o conceito de sobera-
nia está associado à autodeterminação, à não ingerência externa e ao respeito
incondicional às leis e à Constituição, sendo de competência exclusiva do Esta-
do o trato dos seus assuntos internos.
Para Miranda (2009), na doutrina jusinternacionalista o princípio geral da
liberdade, reconhecido como poder que decorre da autodeterminação dos po-
vos, aparece como corolário próprio da soberania, e por esse motivo apresenta-
se como um direito popular e não estatal.
E, seguindo nessa mesma ideia, segundo o entendimento de Kelsen
(1998), é através da noção de capacidade dos Estados no ordenamento inter-
nacional que estes podem vir a ser titulares de demasiadas situações jurídicas
que essa ordem prevê, sendo-lhes atribuído o caráter de independência, que
indica a possibilidade de fazer tudo aquilo que não for proibido na ordem exter-
na, assim exercendo semelhante característica inerente ao indivíduo em sua
capacidade de gozo e de exercício no direito interno vigente.
Nos termos da Declaração dos Princípios do Direito Internacional (1970)
da ONU, segundo Cançado Trindade (2003), a ideia de soberania pressupõe o
entendimento de que os Estados são juridicamente iguais sob o direito interna-
cional, gozam de plena soberania e tem o dever de respeitar os demais. Além
de encontrar suas integridades territoriais e independências políticas resguarda-
das, estão livres na escolha de seus sistemas de organização e devem cumprir
com suas obrigações internacionais, procurando viver em harmonia.
Cabe frisar que, segundo Acquaviva (1999), a soberania por toda a his-
tória tem estado intrinsecamente ligada à noção de poder, cuja definição de
origem, do latim potis, pode traduzir-se em “contrair posse” e remete à possi-
bilidade, potência, potencialidade para a realização de algo, de forma que não
é reconhecida como ação, mas sim potência. Não obstante, não ser tida como
o próprio poder é considerado um aspecto ou característica deste e por vezes
também reconhecido como atributo do princípio de independência e de onicom-
petência do Estado moderno.
No que se refere à submissão do Estado brasileiro à jurisdição do TPI,
prevista no art. 5º, § 4º, da Constituição Federal, precisamos analisar com caute-
la, pois o Brasil não dispensou a sua soberania ao ratificar o Estatuto de Roma.
O Estatuto de Roma adotou o princípio da complementaridade. Esse di-
ploma legal fundamentou em seu preâmbulo “[...] que o Tribunal Penal Interna-
cional, criado pelo presente Estatuto, será complementar às jurisdições penais

Revista da Faculdade de Direito da FMP – nº 10, 2015, p. 73-90


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nacionais” (MAIA, 2001, p. 76).


O princípio da complementaridade estabelece que o TPI somente julgará
indivíduos quando o tribunal nacional de um Estado não puder ou não quiser fa-
zê-lo, ou seja, não poderá julgar os crimes previstos em sua competência caso
a jurisdição interna de um país o faça.
Os Estados que participaram da Conferência de Plenipotência das Na-
ções Unidas já haviam acordado que o TPI não teria prioridade de jurisdição em
relação à jurisdição nacional, proclamando assim o princípio da complementari-
dade no Estatuto de Roma (CORREIA, 2004).
Esse princípio fora adotado pelo Estatuto como forma de garantir a sobe-
rania estatal – poder de não subordinação a outro sujeito internacional do qual
dependa para desempenhar suas competências –, pois o Estado pode avocar
para si a qualquer tempo a autoridade jurisdicional, assumida pelo TPI, inician-
do a investigação e processamento do indivíduo de forma efetiva. Essa foi uma
das principais motivações para que os Estados ratificassem o Estatuto de Roma
(REZEK, 2002).
Fica claro dessa forma, acompanhando a raciocínio de Gasparin Jr.
(2009), que a ratificação brasileira do Estatuto de Roma e a aprovação do De-
creto Legislativo n. 112/02 e do Decreto Presidencial n. 4.388/02, depois de
passar por uma exaustiva análise da pauta em questão pelo Grupo de Traba-
lho composto por especialistas e autoridades da área jurídica, refletem uma
tendência do Brasil em assumir uma postura politicamente correta no cenário
internacional, a despeito da discussão da possível inconstitucionalidade de cer-
tos pontos do Estatuto de Roma e de uma discussão mais profunda sobre a
questão do ferimento da soberania nacional.

5. Conclusão
Em linhas gerais, é possível, de forma contundente, citar que segura-
mente a criação do Tribunal Penal Internacional com caráter independente e
permanente, com o seu Estatuto reconhecido por vários Estados, representa
um grande avanço da humanidade e por que não dizer um enorme ganho para
toda a comunidade internacional de uma forma geral, na tentativa de garantir a
valoração dos direitos humanos em caráter universal e do combate à impunida-
de, com relação aos crimes de genocídio, contra a humanidade, dos crimes de
guerra e de agressão.
O conceito de complementaridade do TPI, por sua vez, garante aos Esta-
dos o direito de investigar, processar e julgar os indivíduos que venham a come-

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Tribunal Penal Internacional: garantia aos direitos humanos ou uma afronta à soberania nacional? 89

ter tais crimes, legando tão somente ao TPI o poder de atuar apenas nos casos
em que os Estados apresentem falta de interesse, de condições materiais, ou
ainda irregularidades na consecução do processo e julgamento do acusado pela
Justiça do seu país. Porém, não pode ser deixado de lado o fato de que a defini-
ção clara da falta de interesse e irregularidade é extremamente difícil, podendo
inclusive levar a ingerências da Corte Internacional em assuntos de interesse
exclusivo do Estado.
O Estatuto de Roma, do Tribunal Penal Internacional, como está escrito
hoje, possui diversos pontos conflitantes com a legislação de diversos países,
dentre eles o Brasil. Os pontos de contradição ou incoerência em face da nossa
legislação dizem respeito à aplicação da pena de prisão perpétua, à extradição
de nacionais e à imprescritibilidade de crimes. Por hora, presume-se que even-
tuais decisões e sentenças no que se refere a esses três assuntos poderiam
contrariar a Constituição Federal brasileira, caracterizando uma intromissão do
TPI em assuntos internos do Brasil, ferindo assim a nossa soberania e gerando
uma insegurança jurídica para todos os cidadãos protegidos por nossa carta
magma.
Pode-se concluir, então, que a ideia do estabelecimento de uma corte
internacional para o julgamento de crimes graves contra o ser humano é válida
e representa um enorme ganho e um avanço na área jurídica para toda a comu-
nidade internacional. Porém, não se deve esquecer que ajustes na legislação de
alguns países-membros e em alguns pontos do Estatuto de Roma, tornando-os
compatíveis, são necessários e não só podem como devem ser feitos. Assim,
é possível enfatizar que só assim o Tribunal Penal Internacional poderá fazer
justiça de forma universal em prol dos direitos humanos, sem ferir a soberania
de nenhum dos Estados que fazem parte dessa organização internacional.
Nesse sentido, quando o Brasil passou a submeter-se à jurisdição penal
do TPI, nada mais fez do que seguir a “moda internacional” de cooperação entre
os povos e de vedação de submissão aos tribunais de exceção, bem como de
garantia dos direitos humanos e preservação da dignidade da pessoa humana.

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