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OS CÓNEGOS E O MUNDO URBANO NA IDADE MÉDIA


(Os cónegos bracarenses, os homens e a cidade: uma relação de cumplicidade e conflito)
Maria Antonieta Moreira da Costa*

O objectivo desta investigação é reflectir sobre a reciprocidade da relação


eclesiásticos-leigos, convivendo próxima e assiduamente, na cidade de Braga, durante a
Baixa Idade Média. Como se posicionavam cónegos e cidadãos, uns e outros coexistindo, ao
longo dos séculos, no nortenho burgo bracarense? De que circunstâncias se revestia o seu
relacionamento? Que contornos tomavam as suas atitudes e comportamentos, face a um trato
diário inevitável, desejado ou não? Que pressões, que influências mútuas é possível distinguir
nos testemunhos que a história desta cidade, intencionalmente ou não, nos legou?

Façamos, primeiramente falar os vestígios arqueológicos e arquitectónicos. Partamos


da comparação do traçado romano de Bracara Augusta com a área da cidade medieval (figura
1).

Figura 1 - Braga Romana e Braga Medieval1

* Mestre em História e Cultura Medievais.


1
Braga Romana e Braga Medieval (Planta reproduzida de «O Salvamento de Bracara Augusta», por Henrique
M. Barreto Nunes, Lisboa, 1978, in Amadeu Alvarenga, «1750 – Um olhar sobre a cidade», Braga e a sua
Catedral, IX Centenário da Dedicação da Sé Catedral, 1089-1089, Caderno Informativo, Cabido Metropolitano
e Primacial de Braga, Braga, 1990, p. 139).
2

A muralha medieva, embora interceptando a urbe romana, delimita um território


urbano situado a nordeste do primitivo, sendo perfeitamente visível a posição central da sé
dentro do perímetro arredondado do novo burgo, comprovando que o casario urbano foi
nascendo à volta do templo cristão, como uma numerosa prole ao redor da mãe.
Impossibilitados pela lacuna documental de observar o aspecto físico da urbe nos vários
momentos da sua história medieval, podemos fazê-lo, no entanto, na Idade Moderna, por
intermédio de um desenho atribuído a Gaspar Álvares de Lousada (figura 2).

Figura 2 - Planta da cidade de Braga Medieval2

Embora dos finais do século XVI e sendo a mais antiga representação da cidade que
se conhece, esta planta poucas diferenças deverá apresentar em relação aos séculos
anteriores, fornecendo-nos um panorama citadino onde se pode observar a muralha com as
suas torres, 8 portas e dois postigos3. A história de Braga adquiriu uma outra vitalidade,
precisamente, a partir da época em que ganhou a dupla presença de uma catedral e de um
bispo. A vida da antiga urbe passou a pulsar em função deste templo, o qual se foi afirmando
a toda a comunidade quer solicitando esforços comuns, quer impondo regras, integrando,

2
Planta da cidade de Braga da autoria de Gaspar Álvares de Lousada, in Georgius Braun e Frans Hogenberg,
Civitates Orbis Terrarum, 1572-1618, A.D.B., Cartório da Mitra, Gav. dos Mapas.
3
José Marques, «Braga», in A.H. de Oliveira Marques e outros, Atlas das Cidades Medievais Portuguesas
(sécs. XII-XV), I, Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, Instituto Nacional de
Investigação Científica, Lisboa, 1990, p. 11.
3

paulatinamente, a cidade numa tipologia urbanística medieval que Pilar Martínez Taboada
designou de «cidade episcopal»4. Esta característica começou a evidenciar-se quando em 12
de Abril de 1112 o conde D. Henrique e sua mulher D. Teresa doaram o senhorio de Braga e
seus termos ao arcebispo D. Maurício Burdino, acto que o filho de ambos, Afonso Henriques,
confirmou em 1128 ao revoltar-se contra o governo de sua mãe, assegurando a colaboração
do bispo e inaugurando o início da nacionalidade5.

Inicialmente concebida em estilo românico, a catedral, mandada construir pelo bispo


D. Pedro, recebeu por ordem de S. Geraldo, a capela dedicada a S. Nicolau, junto ao lado
norte do transepto de três naves, com o fim de nela ser sepultado6. Investigações
arqueológicas permitem supor que da planta inicial fariam ainda parte uma cabeceira com
deambulatório, capelas radiais e um claustro que aparece mencionado, pela primeira vez, em
1110 e que seria, depois, alterado cerca de 1149, estando assim descrito: «de architectura
ghotica, com dois andares de columnas que formam arcos pequenos, contendo oitenta
columnas com capitéis lavrados cada um do seu feitio». Este novo claustro de forma
quadrangular, estava já escorado e bastante degradado nos finais do século XV podendo ruir,
motivo que levou, nessa época, à elaboração de um projecto para um novo espaço7, que
também já não corresponde ao actual, que data de 1817.
Tal como o claustro, o projecto inicial do templo viria também a ser alvo de
profundas transformações no tempo do arcebispado de D. Paio Mendes, para o reconstruir da
devastação provocada por um ataque de vandalismo, facto mencionado na carta de doação do
couto bracarense. Data dos finais da Idade Média, a construção das capelas funerárias da
Glória e dos Reis, respectivamente a mando de D. Gonçalo Pereira e D. Lourenço Vicente,
para aí repousarem na eternidade dos tempos. A galilé, dos finais do século XV, foi mandada
edificar por ordem de D. Jorge da Costa, sendo-lhe posteriormente acrescentadas as grades
da arcaria8.
Assim, sucessivamente aumentada e melhorada com diversas obras, levadas a cabo
por vários arcebispos através dos séculos, a catedral resulta, hoje, num conjunto com

4
Pilar Martínez Taboada, «Desarrollo urbanístico de las ciudades episcopales: Siguenza en la Edad Media», La
Ciudad Hispânica, II, Editorial de la Universidad Complutense, Madrid, 1985, pp. 957-972.
5
José Marques, «O Senhorio de Braga, no século XV – Principais documentos para o seu estudo», Bracara
Augusta, XLVI, Câmara Municipal de Braga, Braga, p. 10.
6
Manuela Cunha e Manuela Martinez, «A Catedral», Braga e a sua Catedral, IX Centenário da Dedicação da
Sé Catedral, 1089-1089, Caderno Informativo, Cabido Metropolitano e Primacial de Braga, Braga, 1990, p. 20.
7
Manuel de Aguiar Barreiros, A catedral de Santa Maria de Braga, ed. facsimilada incluída nas comemorações
do IX Centenário da Dedicação da Catedral de Santa Maria de Braga, Sólivros de Portugal, Braga, 1989, p.95.
8
Manuela Cunha e Manuela Martinez, art. cit., pp. 25, 39 e 43.
4

características de todos os períodos existentes na arquitectura portuguesa até ao século XIX.


À catedral, primeiro elemento da cidade episcopal, juntaram-se, a seu tempo, outros
edifícios: o palácio episcopal, imponente construção, que ainda hoje conserva traços
arquitectónicos do século XIV e cuja torre foi mandada edificar pelo arcebispo D. Fernando
da Guerra9, e as habitações dos cónegos. Aqui convém equacionar a questão da residência.
Se, por um lado, deduzimos que existiam cónegos residentes pois numa bula datada de 1247,
Inocêncio IV autoriza o mestre-escola e futuro arcebispo Martinho Geraldes a acumular
outros benefícios, referindo-se-lhe como «non residenti» (o que deixa adivinhar a existência
de uns e outros)10, por outro lado, não é possível quantificá-los e muito menos perceber
quanto tempo estariam obrigados a tal, porque os estatutos nada dizem a este respeito. No
entanto, à semelhança de outras catedrais, existiam meios de fuga que proporcionavam o seu
afastamento periódico: as dispensas especiais e a possibilidade de acumulação, pois embora o
IV Concílio de Latrão proibisse a detenção de duas dignidades na mesma igreja, bem como
dois benefícios com cura de almas, tal não se verificava relativamente ao usufruto de
benefícios em dioceses diferentes11. A multiplicação de serviços eclesiásticos era, portanto,
usual, o que dividia a presença dos clérigos pelas igrejas em que acumulavam,
depreendendo-se, no entanto, que estariam obrigados à residência apenas em um dos locais.
De qualquer modo, os trabalhos que até agora se têm debruçado sobre este assunto, embora
não tendo chegado a conclusões definidas, permitem determinar que, ao longo dos anos, as
entidades eclesiásticas presentes nas sés ou colegiadas, em momentos de decisão e
actividades fundamentais, são sempre as mesmas12. Assim julgamos acontecer também em
na sé bracarense onde, ao longo de toda a Idade Média, é possível constatar um número
considerável de capitulares a acumular com a de Braga outras conezias em Guimarães, Porto,
Lamego, Viseu, Guarda, Coimbra, Lisboa, Silves, Astorga, Mondonhedo e mesmo Meaux,
na França. Particularmente entre 1325 e 1374, existia no cabido uma série razoável de
cónegos forasteiros, nomeadamente franceses, estando alguns deles sujeitos ao estatuto de
acumulação, pelo que viajariam frequentemente entre os locais dos seus benefícios,
afastando-se do convívio bracarense. Para detectar o número de capitulares efectivamente
presentes no cabido ano a ano, três recentes trabalhos sobre a canónica bracarense, balizados

9
José Marques, Braga Medieval, Oficinas Gráficas da Livraria Cruz, Braga, 1983, p. 56. Esta construção teve
lugar entre 1422 e 1436.
10
Maria Antonieta Moreira da Costa, O Cabido de Braga na Segunda metade da Centúria de Duzentos (1245-
1278), dissertação de Mestrado intitulada apresentada à Universidade do Minho, Braga, 2000, p. 46.
11
Hermínia Maria Vasconcelos Alves Vilar, As Dimensões de um Pode, A Diocese de Évora na Idade Média,
Editorial Estampa, Lisboa, 1999, p. 176.
12
Ana Maria Rodrigues, «Os cónegos na Sociedade Urbana Medieval».
5

entre 1245 e 1374, estudaram a frequência com que os capitulares aparecem mencionados
nos manuscritos13. Feita a leitura dos gráficos que os referidos estudos apresentam,
encontrámos um máximo de dezoito indivíduos efectivamente presentes em alguns anos não
consecutivos. Ora, tendo em conta que o número de conezias em Braga deveria ser de trinta e
seis, no referido período, concluímos a ausência permanente de metade ou mais de metade
dos eclesiásticos na catedral. Embora de valor relativo, estes gráficos permitem fundamentar
o grande absentismo dos titulares da catedral por longos períodos, o que se deverá, sobretudo
à acumulação de outros benefícios.
Ora, sabendo então que o número de efectivos poderia rondar a metade do
determinado, convém conhecer a evolução dos locais por onde se fixaram as suas moradas,
para melhor entendermos o grau de contiguidade entre clérigos e leigos. Após os primeiros e
curtos tempos da existência de refeitório e dormitório comuns, em que os capitulares
habitavam um espaço residencial então situado «na axila formada pelo braço norte do
transepto e o corpo da igreja»14, as suas moradas passaram a fixar-se em casas arrendadas ao
cabido ou em habitações próprias, localizadas nas ruas em torno da sé, sobretudo na rua do
Souto, que não era zona de residência exclusivamente eclesiástica, pois também os leigos aí
adquiriam habitações próprias. Eclesiásticos e leigos misturavam-se nesse espaço,
convertendo as artérias urbanas em centros de sociabilidade privilegiados. A par das
referências a estas moradas, encontrámos, relativa à segunda metade do século XIII, uma
indicação curiosa que nos fala de uma «casa dos cónegos» na cividade velha15. Seria esta
casa ainda um vestígio da antiga vida em comum? Estaria ela, ainda neste século, habitada
por cónegos cujas possibilidades económicas não permitiam a compra de habitação própria,
vivendo assim numa casa do cabido e pagando o seu alojamento? Ou tratar-se-ia da casa em
que deveriam habitar os cónegos obrigados à residência? Nada sabemos a este respeito, mas
poderia ter as funções de dormitório e refeitório comuns, à semelhança da cidade francesa de
Narbonne, onde parece ter existido um imóvel com designação análoga16. Ou, estar destinado
a reuniões, como acontecia bem mais perto de Braga, em Évora, com um edifício designado

13
Maria Antonieta Moreira da Costa, ob.cit., Maria Justiniana Pinheiro Maciel Lima, O Cabido de Braga no
Tempo de D. Dinis, (1278-1325), Dissertação de Mestrado em História e Cultura Medievais, apresentada à
Universidade do Minho, Braga, 1998 e João Carlos Taveira Ribeiro, A Instituição Capitular Bracarense no
século XIV (1325-1374) – Organização e Relações, Dissertação de Mestrado em História e Cultura Medievais,
apresentada à Universidade do Minho, Braga, 1998.
14
O Bispo D. Pedro e a Organização da Diocese de Braga, I, 2ª edição, Irmandade de S. Bento da Porta
Aberta, Braga, 1997, p. 323.
15
Maria Antonieta Moreira da Costa, ob.cit., p. 17.
16
Yves Esquieu, Quartier Cathédral. Une cité dans la ville, Desclée de Brouwer, Paris, 1994, pp. 56-57.
6

a cóniga17. De qualquer modo, em Braga não existia um «quartier canonical» como os de


Lyon, Béziers ou Toulouse, onde se proibia a residência a leigos e cujos claustros, quais
fortificações, se isolavam quase completamente da restante cidade através de altas muralhas,
e se defendiam do exterior com os mesmos muros ou aproveitando os recursos naturais,
especialmente os rios18. Os capitulares não viviam, pois, segregados do século.
Movimentavam-se no mesmo âmbito espacial que os leigos.
A esta vizinhança, que por si só produz intimidade, vem juntar-se um outro dado: a
origem geográfica dos cónegos. Partindo dos trabalhos já acima citados e reportando-nos
ainda aos estudos de José Marques sobre a arquidiocese de Braga, em que refere a origem
geográfica dos minoristas bracarenses entre 1430 e 146819, os dados recolhidos, sendo
parciais, apontam, como lugar de proveniência para um grande número de candidatos à
clerezia bracarense, a própria cidade e as localidades pertencentes à diocese. Era, portanto,
frequente esta convivência, quando grande parte dos eclesiásticos eram filhos da nobreza
regional e de proprietários rurais, privando quotidianamente com familiares, amigos,
inimigos e vizinhos. É provável que esta abertura do bairro canonical ao meio, estivesse não
apenas relacionada com o enraizamento dos cónegos à sua terra natal mas também com o
facto de a catedral não precisar de se defender das investidas de algum outro senhor, pois a
cidade de Braga constituía um couto pertencente ao arcebispo e ao cabido.

E como senhorio eclesiástico que era, Braga dependia em tudo da autoridade e ordens
dos seus senhores: os arcebispos. No entanto, o total poder arcebispal sobre o couto de Braga
viria a tornar-se parcial em consequência de uma norma do II Concílio de Latrão de 1139 que
determinava que, o património de qualquer catedral, deveria ser dividido em duas mesas,
atribuindo-se o valor de dois terços ao prelado e o restante ao seu corpo capitular. Deste
modo, a partir de 1145, D. João Peculiar procederia à cisão dos bens da catedral e D.
Godinho, acrescentaria à mesa capitular, anos mais tarde, a terça do couto de Braga, pelo que
a canónica passou a usufruir também de rendas e de direitos sobre a sua parte na cidade20.
Assim, excluindo uma quebra entre os anos de 1402 e 147221 em que o couto voltou para a

17
Hermínia Maria Vasconcelos Alves Vilar, ob. cit., p. 117.
18
Maria Antonieta Moreira da Costa, ob.cit., p. 16.
19
José Marques, A Arquidiocese de Braga no século XV, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1988, p.
976.
20
Cristina Maria Peixoto de Carvalho, O Património do Cabido da Sé de Braga nos finais do século XIV,
Dissertação de Mestrado em História e Cultura Medievais apresentada à Universidade do Minho, Universidade
do Minho, Braga, 1998, p. 10. D. Ordonho Álvares faz a doação ao cabido do direito de padroado que tem na
igreja de Santa Maria de Palmeira «pela pobreza da vossa mesa» (A.D.B., Gav. 1ª das Igrjas, nº 14).
21
José Marques, «O Castelo de Braga», Mínia, 2ª série, Ano VIII, nº 8, Braga, 1986, p. 15.
7

jurisdição da coroa, estavam criadas as condições para que os arcebispos, ou os seus vigários
e o cabido passassem a comandar os destinos bracarenses.
Competia aos arcebispos ou a quem as suas vezes fizesse a nomeação do alcaide e
demais funcionários administrativos e a defesa da população bracarense, levando a cabo a
construção e manutenção das portas da cidade, das vias de comunicação e das fortificações.
O contrato de restituição do senhorio da Monarquia para a Igreja também nos permite saber,
por exemplo, que «na cidade de Braga e seu castelo os arcebispos poderiam pôr juizes,
ouvidores, alcaides, tabeliães, meirinhos, escrivães e oficiais e removê-los como fazia El
rei», que «nenhuma pessoa nobre poderia morar em Braga e seu território contra a vontade
dos arcebispos» e «que permaneceria íntegro o privilégio dos moradores de Braga de não
pagarem portagem»22.
O cabido, pelo seu lado, beneficiava, sobretudo, das rendas que a sua posição de co-
proprietário da cidade lhe permitia auferir. O livro do tombo do cabido, datado da segunda
metade do século XIV enumera várias cobranças a favor da canónica, que recebia um terço
de todos os direitos senhoriais de transacção, judiciais, militares ou outros23. Estes proventos,
fariam parte do vasto capital que lhe permitiria adquirir, ao logo dos tempos, entre outros
bens, numerosas propriedades dentro de muros. Nos finais do século XIV, pertenciam ao
cabido 319 imóveis urbanos, incluindo diversos tipos de casas, pardieiros, três fornos, uma
adega e uma cavalariça24, numa flagrante demonstração de um considerável património, para
não mencionar as inúmeras propriedades rurais (herdades, casais, leiras e moinhos) que, ao
longo dos tempos foram adquirindo nos termos da cidade e em toda a diocese. No século XV,
a instituição detinha 259 foreiros urbanos, pagando um foro anual que no total somava 465
galinhas e 85 capões25.

Com o tempo, a presença do clero da catedral ia-se impondo em cada rua, cada viela,
cada beco, cada canto do velho burgo, mas o contacto primário terá sido através do
indispensável acompanhamento das famílias bracarenses que, durante séculos, a comunidade
de cónegos levou a cabo com o culto solene e a recitação das horas canónicas. Em dias
festivos, integravam-se ainda nas procissões e nas orações colectivas26, mas também estavam

22
J. Augusto Ferreira, Fastos Episcopais da Igreja Primacial de Braga (séc. III- séc. XX), Tomo II, ed. da Mitra
Bracarense, Braga, 1931, pp. 305-306.
23
Cristina Maria Peixoto de Carvalho, ob. cit., pp. 117-122.
24
Id., Ib., p. 33.
25
José Marques, A Arquidiocese de Braga no século XV, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1988, pp.
420-421.
26
Maria Justiniana Pinheiro Maciel Lima, ob. cit., p. 43.
8

presentes nas horas de desespero através do culto funerário, presidindo às exéquias fúnebres,
nunca desleixando o seu ministério. Noutras horas de aperto, quando, nos finais de 1348, a
Peste Negra se abateu sobre a cidade, e perante o elevado número de baixas verificadas nos
efectivos capitulares, o então arcebispo D. Gonçalo Pereira, tratou de garantir à população as
suas necessidades espirituais e religiosas, conferindo dignidades e benefícios eclesiásticos a
indivíduos que, pela sua condição nobre, reuniam poder e conhecimentos para ajudar a
ultrapassar os obstáculos27.
No campo da solidariedade transparece um magnânimo espírito de benemerência.
Praticamente todos os seus familiares, amigos e servidores são lembrados nas suas últimas
vontades. Legavam-lhes propriedades, dinheiro, livros, cereais, vinho, roupas de cama,
roupas pessoais, arcas e outros bens móveis. Auxiliavam os mais pobres nas despesas do seu
casamento28.
Solidários para com os pedintes, também não esqueciam os leprosos, sobretudo das
cidades de Braga e de Guimarães, a quem legavam algum dinheiro para lhes ser directamente
distribuído29. Outro alvo da sua caridade eram os hospitais, as gafarias e as albergarias. Em
testamento de 1278, o arcediago de Neiva Pedro Garcia indicou uma soma pecuniária
destinada a construir uma. O deão Domingos Domingues fundou, entre os finais do século
XIII e primeiro quartel do século XIV, o hospital de S. Bartolomeu sito na Rua da Corredoira,
legando-lhe ainda roupas, leitos, duas casas e uma quantia de cinco libras30.
É também digno de menção todo o apoio dos eclesiásticos às confrarias. Estas
instituições pautaram-se pelo exercício de um duplo auxílio aos bracarenses, tanto no plano
espiritual como no material. Na segunda metade do século XIII, detectámos a presença de
várias, sobretudo citadas nos testamentos, com a atribuição de alguns legados em dinheiro: S.
Francisco, S. Tiago, Santos do Paraíso, S. João da Rua Nova, S. Martinho de Dume, S. Pedro
e S. Mamede de Este31; e Rocamador, Corpo de Deus e S. João do Souto, já no século XV32.
Sabemos que a do Corpo de Deus era composta por irmãos leigos e clérigos seculares,
embora fosse gerida pelos primeiros, e que a de S. João do Souto obedecia à jurisdição
arquiepiscopal, estando a seu cargo a organização e divulgação das festas de S. João, que

27
José Marques, Braga Medieval, …, p. 51.
28
Maria Antonieta Moreira da Costa, ob. cit., p. 152 (O cónego D. Gomes Domingues deixou vinte morabitinos
para o casamento de Domingos Esteves, seu cliente).
29
Maria Antonieta Moreira da Costa, ob. cit., p. 23.
30
Sobre as instituições de assistência e sobre outros actos de caridade do clero bracarense ver Elisa Domingues
Costa Carvalho, A Morte do Alto Clero Bracarense (séculos XII-XV), Dissertação de Mestrado em História e
Cultura Medievais apresentada à Universidade do Minho, Braga, 1999, pp. 243-254.
31
Maria Antonieta Moreira da Costa, ob. cit., p. 23.
32
José Marques, Braga Medieval, pp. 55-56 e 200.
9

ainda actualmente constituem as principais festas concelhias33. Devemos parcialmente aos


cónegos a origem dos actuais festejos do S. João de Braga.
Os habitantes sabiam premiar estes esforços e, ao longo dos séculos, doaram somas
pecuniárias ou propriedades aos elementos da canónica e nomearam-nos seus executores
testamentários. Distinguimos algumas doações inter-vivos que referem, vagamente, as razões
que motivaram o acto. Na doação da herdade da Portela feita por João Sobrinho e a mulher
Domingas ao cónego Martinho Peres de Portocarreiro, regista-se que a sua finalidade é
recompensar o bem que o cónego lhes fez34.

No contexto material, tanto quanto sabemos, o cabido afirmou-se como a mais forte e
importante entidade «empregadora» e estimuladora das actividades económicas. Numa
cidade em que o mar estava ausente, a população vivia do artesanato, do comércio e dos
serviços, entre os quais os da catedral, que empregava muitos clérigos, proporcionando o seu
sustento e o das suas famílias. Pelos testamentos dos eclesiásticos, onde constatámos que
possuíam casas, herdades, casais e quintas bem apetrechados de equipamentos e de objectos
preciosos, ajuizámos o quão seriam importantes as suas encomendas para o desenvolvimento
dos diversos mesteres e em particular o dos ourives, uma vez que a ourivesaria, aqui
especialmente desenvolvida no campo da arte sacra, ainda hoje tem tradição na cidade. Entre
os pertences dos cónegos surgem pois, frequentemente mencionados, várias alfaias agrícolas
como grades, arados, enxadas, foices, foicinhas de erva e serras; objectos de carácter
utilitário para guardar os géneros como cubas, arcas, masseiras e tulhas; utensílios de cozinha
como grelhas, caldeiras e bacios, almofarizes de cobre, escudelas e talhadores; e ainda jóias e
vasos de ouro ou prata como fialas para guardar relíquias de santos, cálices, crucifixos
adornados com pedras preciosas, cifos e ainda anéis. No tocante ao vestuário surgem
referências a panos de Arras e a brunetas, talvez trazidas de Douai, destinadas à confecção do
seu vestuário composto por saias, capas, tabardos, garnachas e sobrepeliz, entre outros.
Livros, certamente raros, como as Decretais, o Inforciatum ou o Código de Justiniano, talvez
conseguidos em Paris ou Bolonha, atestam o intercâmbio cultural com alguns dos principais
centros urbanos da Europa medieval35.
Além de darem que fazer a muitos vizinhos, os cónegos compravam e vendiam
propriedades urbanas, para não mencionar as rurais. Realizavam empréstimos, vendas de

33
Id., Ib., p. 56.
34
Maria Antonieta Moreira da Costa, ob. cit., p. 121.
35
Maria Antonieta Moreira da Costa, ob. cit., pp. 121-126.
10

rendas e hipotecas que, apesar de proibidos, certamente lhes proporcionavam boas formas de
investimentos financeiros e forneciam aos necessitados os meios para saírem de apuros e se
meterem noutros, pois os contratos continham cláusulas que certificavam que as dívidas
deviam ser pagas36. Asseguravam ainda a sobrevivência de muitos, arrendando-lhes ou
emprazando-lhes as suas propriedades situadas nos termos da cidade ou mais
longinquamente, nas freguesias da diocese, o que demonstra, em muitos casos a sua ligação
às origens. Eis alguns exemplos das suas actividades económicas: grande comprador de
propriedades urbanas e rurais foi, na segunda metade do século XIII, o cónego Pedro Pais37;
na mesma época, o cónego Martinho Peres de Portocarreiro realizou várias vendas de rendas
e penhores imobiliários38; João Vicente, arcediago do Barroso, referenciado entre 1303 e
1325, «tinha negócios de pão, de gado e de feltros»39; Durão Esteves, cónego referenciado
entre 1325 e 1346, é um caso bem representativo da variedade de transacções em que os
capitulares se imiscuíam, pois adquiriu diverso tipo de propriedades, realizou trocas, recebeu
doações, «efectuou prazos e desfez escambos»40. Algumas destas actividades, embora
referentes ao campo, agitariam também a vida na cidade, uma vez que as escrituras dos actos
eram realizadas pelos tabeliães bracarenses, trazendo ao espaço urbano gentes diversas para
tratarem dos seus negócios com os capitulares.

Senhores abastados, as suas casas, para além de núcleos de consumo são centros de
relações de poder e solidariedade. Rodeiam-se de sobrinhos, a quem protegem e educam, na
mira de se fazerem substituir, um dia, por um familiar, na instituição a que pertencem. Têm
clérigos de suas casas. Têm seus homens e escudeiros. Contratam criados, mancebas e
mancebos e serventes. Rodeiam-se de clientes. Possuem escravos. Nomeadamente os
arcebispos, conseguem favores para os que se encontram sob a alçada da sua protecção. Um
documento de 1274 dá-nos conta de uma regalia usufruída pelos foreiros do arcebispo, ao
declarar que estavam isentos de ir à anúduva nos castelos do rei, como os queriam obrigar os
meirinhos e juízes de Entre Douro e Minho41. Mencionemos também os quarenta e quatro
indivíduos agraciados com privilégios pela coroa no ano de 1439, em pleno arcebispado de D.
Fernando da Guerra e numa época em que o prelado não detinha a tutela do senhorio. Na sua

36
A prática do penhor imobiliário foi vedada aos eclesiásticos no Concílio de Tours em 1163 (cfr. Mário J. de
Almeida Costa, art. cit., p. 46).
37
Maria Antonieta Moreira da Costa, ob. cit., p. 61.
38
Id., Ib., p. 120.
39
Maria Justiniana Pinheiro Maciel Lima, ob. cit.,, p. 175.
40
João Carlos Taveira Ribeiro, ob. cit., pp. 168-169.
41
Maria Antonieta Moreira da Costa, ob.cit., p. 160.
11

maioria constituídos por isenções, estes privilégios faziam a felicidade do alveitar, dos
alfaiates, dos barbeiros, dos azeméis, do cozinheiro, do homem das jeiras, do homem do
forno, do ourives e dos pedreiros, todos do senhor arcebispo. E citando Maria da Conceição
Falcão, diremos que «também a este nível se enxerga a potestade coesora e firme da Igreja
bracarense no ordenamento das clivagens sócio-políticas da comunidade urbana»42. Por
vezes, da intimidade destas relações nascem envolvimentos mais ousados, dando lugar a
filiação ilegítima, a qual tentarão também colocar na senda de um lugar ao sol no cabido.

No domínio da cultura, salientamos três vectores fundamentais: a escola da catedral,


a influência cultural dos cónegos e o estímulo à criação artística através das obras
encomendadas. Quanto à escola da sé que, segundo Avelino de Jesus da Costa terá sido a
mais antiga entre todas as suas congéneres no país, facto que não está ainda suficientemente
provado, era dotada de uma biblioteca que foi melhorada, sucessivamente, por D. João
Peculiar e D. Fernando da Guerra43. O seu funcionamento era assegurado pela dignidade do
mestre-escola44. Os escolares que, em número razoável aparecem referidos na
documentação, atestam a sua perenidade, pelo menos até ao século XV, quando a total falta
de referências sobre ela faz crer que a sua importância fosse então diminuta ou tivesse já
desaparecido45. No entanto, o nível de ensino devia ser de boa qualidade, pois alguns
cónegos incentivavam os seus parentes, discípulos e protegidos a frequentarem-na e
aproveitarem com ela46.
Se, por um lado, a escola formava os futuros clérigos, os membros capitulares sempre
foram focos difusores de conhecimentos, nomeadamente de ordem jurídica. Pelos seus

42
Maria da Conceição Falcão Ferreira, «O arcebispo de Braga, a sua Igreja e os privilegiados da Coroa», Actas
do Congresso Internacional no IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga, II/1, Universidade Católica
Portuguesa, Faculdade de Teologia de Braga, Cabido Metropolitano e Primacial de Braga, Braga, 1990, pp.
515-556.
43
Avelino de Jesus da Costa refere o seguinte documento: «vobis Petro episcopo et omnibus clericis
habitantibus in sede Bracare (…) una cum illos puerulos» (Avelino de J. da Costa, O Bispo D. Pedro …, I,
pp.45-47). Rómulo de Carvalho refere-se a uma outra opinião do teólogo francês Jean Launoy, o qual situa o
aparecimento desta escola em tempos mais recuados, tendo sido fundada pelo bispo Martinho cerca de 572,
aparecendo ainda mencionada numa carta de Inocêncio III. O autor esclarece, em nota de rodapé, não só a sua
fonte (Obras Completas do Cardeal Saraiva), como transcreve o texto da dita carta papal (Rómulo de Carvalho,
História do ensino em Portugal, desde a fundação da nacionalidade até ao fim do regime de Salazar-Caetano,
col. Manuais universitários, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1986, pp. 17 e 18). Sobre a biblioteca ver
Avelino de J. da Costa, «A biblioteca e o tesouro …», p. 11; José Marques, A Arquidiocese de Braga ..., p. 335;
J. Augusto Ferreira, Fastos Episcopais …, II, p. 295
44
A primeira referência a esta dignidade data do século XII (Avelino de J. da Costa, O Bispo D. Pedro …, I).
45
José Marques, A Arquidiocese de Braga …, p. 335.
46
Eis um exemplo do que afirmámos recolhido do testamento de João Paris: «Item mando Andrée (sic)
supradicto quinquaginta morabitinos si volverit ipsos expendere bene sint decet in scolis secundum
provisionem fratis Petri consanguinei sui» (Maria Antonieta Costa, ob. cit., p. 89).
12

legados verificámos que detinham livros dos mais qualificados autores. Outros documentos
revelam-nos a sua formação superior, o que proporcionava a sua contratação como
procuradores dos leigos nos seus pleitos com a justiça eclesiástica. A cultura religiosa
colocava-se assim ao serviço da comunidade cristã.
Para lá de foco de difusão cultural, a catedral atraiu grande variedade de artistas
especializados em cantaria, ourivesaria, estatuária, pintura, talha, paramentaria, etc.. Um
interessante aspecto é o de que ao tempo de D. Fernando da Guerra, época positivamente
marcada pelo Humanismo, o paço episcopal aparece mencionado nas fontes como a «Corte
de Braga», o que aponta para a sua caracterização como agente promotor e protector da
cultura renascentista47. Outro exemplo é o de D. Jorge da Costa a quem se imputa a
utilização pioneira da imprensa com objectivos pastorais, pois mandou imprimir, no último
quartel do século XV, três importantíssimas obras religiosas: o Sacramental, o Tratado de
Confissão e o Breviário48.

Prelados e cónegos terão marcado também o desenvolvimento urbanístico da cidade.


Inscrevem-se neste âmbito as diversas obras de construção e recuperação da muralha e do
castelo. Da cidadela, mandada iniciar cerca de 1332 pelo arcebispo D. Gonçalo Pereira49,
referem-se as primeiras reparações custeadas e levadas a cabo pelo arcebispo D. Lourenço
Vicente e pelo cabido em 1380, após o saque e destruição a que as tropas de Henrique II de
Castela submeteram a cidade em 1369, em resposta à invasão da Galiza pelo exército
português a mando de D. Fernando, seduzido pela possibilidade de vir a ocupar o trono
castelhano50. Estas obras defensivas não ficaram, contudo, concluídas, pois em 1398, o
arcebispo D. Martinho Pires de Oliveira obteve de D. João I licença para as continuar51. Nos
setenta anos em que a jurisdição da cidade passou para as mãos da coroa, os trabalhos não
foram concluídos, registando-se alguns problemas operacionais devido à incapacidade de
gestão dos oficiais régios e à falta de verbas pois, no contrato de transição de poderes de
senhorio temporal para a jurisdição real, as fontes de receita mantinham-se nas mãos dos
arcebispos52. Tais circunstâncias levaram Afonso V a desistir da posse da cidade, voltando a

47
José Marques, A Arquidiocese de Braga …, p. 192.
48
José Marques, O Arcebispo D. Jorge da Costa e os Primórdios da Imprensa em Portugal, Biblioteca Pública
de Braga, Braga, 1958, pp. 13 e 25 .
49
Eduardo Pires de Oliveira, Estudos Bracarenses: 1 – Alterações Toponímicas (1380-1980), Aspa, Braga,
1982, Apêndice, p. 117.
50
José Marques, Braga na Crise de 1383-1385, Braga, 1985, pp. 8-9.
51
José Marques, «O Castelo de Braga», …, p. 12.
52
José Marques, «O Senhorio de Braga …», …, p. 30.
13

entregá-la em 1472 nas mãos dos seus anteriores senhores eclesiásticos. Esta atitude régia
demonstra, cabalmente, que a monarquia concluiu que a Igreja velava melhor do que o
Estado pela organização e administração da cidade. Cremos que para esta decisão pesou, para
além da libertação de encargos para a coroa que esta entrega aos arcebispos significava, o
zelo e dedicação que estes punham na sua jurisdição. Assim, em 1477 ainda se processava a
construção da torre da muralha junto à porta de S. Tiago, para ajuda da qual se cobrou uma
sisa53. Do «novo castelum», como aparece mencionado nos princípios do século XIV, o que
demonstra que existia um outro anteriormente,54 apenas resta hoje a torre de menagem.
Outra actuação do arcebispo D. Fernando da Guerra digna de destaque foi o esforço
por ele desenvolvido para tentar manter a cidade abastecida de água, apesar de ser o único
arcebispo que não foi senhor da cidade. «Fontes, tanques e lavadouros estavam arruinados e
secos, mercê da incúria e do desleixo dos “recebedores das obras da cidade” que durante os
anos de 1428-33 não entregavam dinheiro destinado às obras de abastecimento da água»55.
Ao encontrarmos, entre as últimas disposições de dignidades e cónegos, ofertas
pecuniárias destinadas à conservação de pontes em localidades da diocese, como as Pontes de
Cavez, do Porto, de Parada e de Barcelos56, é possível que tenham existido iguais exemplos,
em vida, com o objectivo de melhorar as infra-estruturas urbanas.
Se por um lado, a catedral desempenhava papel de relevo na construção e manutenção
dos edifícios urbanos, também nos parece que determinava, com mão férrea, a localização
dos bairros de gentes marginais. Assim aconteceu com os judeus que se sabe terem existido
em Braga desde o século XIV57 e que habitavam em casas arrendadas ao cabido «numa rua
vizinha da sé», o que foi chamado de judiaria velha58. Ora, se durante o pontificado de D.
Fernando da Guerra, clero, judeus e leigos coexistiram pacificamente, adentro da apertada
área citadina, o mesmo parece não ter-se verificado desde os primeiros indícios de fim de
vida do arcebispo. Com efeito, em Maio de 1466, judeus e cabido firmaram um contrato em
que os primeiros aceitavam transferir as suas habitações para um local mais afastado da
catedral, perto da igreja de S. Tiago da Cividade, o que determinou o aparecimento da
Judiaria Nova, também constituída por edifícios propriedade da canónica59. A judiaria velha

53
José Marques, «O Castelo de Braga», …, p. 15.
54
Id., Ib., p. 9.
55
José Marques, Braga Medieval, …, p. 86.
56
Elisa Maria Domingues da Costa Carvalho, ob. cit., p. 253.
57
José Losa, «Subsídios para o Estudo dos Judeus de Braga no século XV», separata das Actas do Congresso
Histórico de Guimarães e sua Colegiada, Guimarães, 1982, p. 96.
58
Id., Ib., p. 103.
59
Id., Ib..
14

veio a ser, de seguida, ocupado por cristãos e gente do cabido, e é curioso observar que os
judeus vieram a instalar-se em anteriores residências de capitulares e vice-versa, sendo de
assinalar que o cónego Diogo Viana ocupou a casa que tinha servido de sinagoga,
aparentemente sem quaisquer preconceitos ou escrúpulos, pois não há notícias de obras de
remodelação60. Esta mudança daria origem a uma queixa ao cabido feita pelo porcionário
João Sobrinho, capelão da dita igreja de S. Tiago, porque haviam diminuído as ofertas,
oblações e dízimos pessoais em conformidade com a redução do número de cristãos da
paróquia, pelo que pretendia que se obrigasse os actuais moradores a cumprir com as mesmas
obrigações dos anteriores. Esta petição não foi contestada e chegou-se a um acordo entre as
partes, o que demonstra um acatar das decisões capitulares e um prenúncio de tentativa de
bom entendimento da parte dos semitas61. Posteriormente, outros acontecimentos provam que
as relações entre eclesiásticos, cristãos e judeus começaram a deteriorar-se, o que não admira
se as inserirmos no quadro de perturbação anti-semita da época, expressa nas perseguições e
aviltamentos feitos às comunidades judaicas tanto na vizinha Espanha como por cá. Em
Braga, mencionemos os discursos agitadores proferidos pelo pregador Mestre Paulo,
instigando a população a sacudir, para fora dos muros, a vizinhança judaica, o que está na
base de uma outra queixa, mas desta vez dirigida pela comuna a D. Afonso V62. De salientar,
ainda, as intenções de algumas medidas sinodais de 1477 como, por exemplo, a de proibir
aos cristãos de morar, comer ou beber com judeus, de participar nas suas festas familiares e
de entrar na judiaria, excepção feita às parteiras, na altura devida63. Apesar de tudo, parece, a
julgar pela ausência de indícios documentais, que a situação em Braga, nunca terá tomado as
violentas proporções que, na mesma época, marcaram as judiarias de outras urbes
portuguesas.

E não era só com a comuna judaica que evoluíam contendas. Numa relação tão
intensa, como a que temos vindo a descrever, seria de admirar que não surgissem, também,
desajustamentos entre capitulares e leigos. No entanto, ao contrário do que concerne à
diocese, para a área urbana verifica-se uma notória ausência de exemplos, à excepção do
grande conflito ocorrido próximo de meados do século XIV, ao tempo de D. Gonçalo Pereira.
Partindo da tentativa do corregedor de Entre Douro e Minho, Afonso Domingues, de retirar a

60
José Losa, ob. cit., p. 100.
61
José Marques, Braga Medieval, …, p. 101-103.
62
Sobre este assunto ver Humberto Baquero Moreno, As pregações de mestre Paulo contra os judeus
bracarenses nos fins do século XV», sep. da revista Bracara Augusta, XXX, Janeiro-Junho, Braga, 1976.
63
José Marques, Braga Medieval, p. 112.
15

jurisdição cível e crime ao prelado, a questão acabou por opor arcebispo e concelho que, a
instâncias do corregedor, mandou fabricar selo próprio64. Não tendo cedido, e usando as suas
armas mais poderosas, entre as quais a excomunhão, o arcebispo logrou reafirmar a sua
autoridade senhorial e manter a jurisdição bracarense. Relativamente a ofensas feitas aos
eclesiásticos, as mais frequentes diziam respeito aos furtos de dinheiro da catedral ou das suas
capelas ou de outros valores do tesouro, ao não pagamento de rendas por parte dos foreiros da
sé e ao facto de tanto o rendeiro da tesouraria como o tangedor dos sinos não quererem
pernoitar na igreja, como mandava o seu ofício65. Nestes casos, a sanção que pendia sobre os
transgressores era, na generalidade, a excomunhão. Também Martinho Anes Barosas, cónego
referenciado entre 1301 e 1325, entrou em contencioso com o cavaleiro de Urgeses Lourenço
Anes, porque este lhe «mandava filhar a palha no seu casal»66. Outras disputas existiram
tendo por base a posse de propriedades e o direito de padroado, mas os exemplos detectados
não se referem propriamente ao território da cidade.
Quanto às queixas dos leigos, e que estes dirigiam ao monarca, a maioria centrava-se
nos agravos de que se sentiam vítimas por parte dos arcebispos e dos colectores do papa e na
pesada pena de excomunhão que sobre eles era, frequentemente, lançada67. Durante a
governação da coroa, pode realçar-se o contencioso de que se revestiu o direito que assistia
ao prelado de ficar com a porção que desejasse do abastecimento de carne e peixe, dividindo-
se o sobrante em três partes: uma para o cabido e duas para o concelho. A câmara não aceitou
esta decisão régia contestando-a forte e frequentemente durante anos68.
Assim, viver em Braga, não significava só aproveitar as vantagens que a situação de
senhorio eclesiástico poderia oferecer, mas também submeter-se às regras episcopais,
agradáveis ou não.

64
Maria Helena da Cruz Coelho, «O Arcebispo D. Gonçalo Pereira: Um querer, um agir», Actas do Congresso
Internacional no IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga, II/1, Universidade Católica Portuguesa,
Faculdade de Teologia de Braga, Cabido Metropolitano e Primacial de Braga, Braga, 1990, pp. 389-424.
65
João Carlos Taveira Ribeiro, ob. cit., pp. 108 -109.
66
A.D.B., Gav. das Propriedades Particulares, nº 825.
67
João Carlos Taveira Ribeiro, ob. cit., pp. 109-110.
68
José Marques, A Arquidiocese de Braga …, p. 123.
16

Questionávamo-nos, no início desta exposição, acerca das interferências que a


presença dos cónegos poderia exercer na vida da população urbana de Braga? Um olhar
atento sobre as fontes permitiu-nos conhecer algumas das facetas que envolviam a relação
dos capitulares com o meio urbano. Parcamente povoada durante toda a Baixa Idade Média,
como permitem comprovar os números apresentados por José Marques,69 falha de burgueses
predominantes70, Braga era facilmente controlável e manipulável. Aqui, a vida respirou
constantemente uma densa e envolvente atmosfera de clerezia. Cónegos e leigos, apesar de
representarem dois mundos bem diferenciados, conviviam no espaço urbano alimentando
relações de cumplicidade e conflito.
Setenta anos de governação real deram a Braga uma câmara de homens bons, dignos
e humildes mercadores e mesteirais que, embora politicamente inexperientes, se aplicaram a
todos os esforços e lutas mas não lograram derrubar a falta de meios humanos, financeiros e
legais. Fracassou o objectivo de aumentar, em muito, os habitantes. Ruiu o propósito de dar
vida a uma câmara coesa, ilustre e independente71. Em vão o velho burgo tentou quebrar os
ancestrais grilhões que o união ao mundo eclesiástico.
Séculos de governação eclesiástica colocaram Braga na dependência da mitra e do
cabido, cujas inúmeras rendas constituíam o capital valioso para a sua sobrevivência e
autonomia. Séculos de dominação da catedral depuseram-na sob uma influência clerical a
todos os níveis, onde se inclui o monopólio religioso, pois a canónica impediu aí a fixação
dos pregadores franciscanos e dominicanos.
Quer tivessem sido nobres ou plebeus, os cónegos de Braga tornaram-se importantes
peças no xadrez político, económico, social e cultural da época, não apenas na própria
cidade, onde a pressão sobre o século seria, sem dúvida, mais directa e mais forte, mas ainda
junto do rei ou do papado, tanto pelo seu poder e influência familiar, como pelo seu prestígio
de homens cultos e informados. Apesar de se poderem tecer vários pontos de vista, positivos
ou negativos, sobre a responsabilidade da catedral nos destinos da cidade, face às diversas
vicissitudes que os manuscritos nos transmitem, quer queiramos ou não, foram o saber, a
competência e a dedicação destes homens importantes que moldaram, durante séculos, uma
das mais carismáticas cidades episcopais da Europa.

69
José Marques, «O Castelo de Braga», ..., p. 20.
70
Sobre o período de governação real ocorrido entre 1402 e 1472 ver Armindo de Sousa, «A governação de
Braga no século XV (1302-1472)», Actas do Congresso Internacional no IX Centenário da Dedicação da Sé de
Braga, II/1, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Teologia de Braga, Cabido Metropolitano e
Primacial de Braga, Braga, 1990, pp. 589-616.
71
Armindo de Sousa, art. cit..
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