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Palavras-chave:

Gárgula, mulher, representação, pecados e luxúria

Gargoyle, woman, representation, sin and luxury

Resumo:
O nosso propósito é analisar algumas gárgulas dos séculos XV e XVI, que
representam a mulher, na sua relação com os pecados, em particular com a luxúria.
Daqui resulta uma importante vocação didáctica das mesmas, funcionando como
exempla, estabelecendo muitos pontos de contacto com um tipo de literatura edificante e
moralizadora. As gárgulas cumprem então funções pedagógicas e simbólicas
significativas, mantendo uma íntima relação discursiva com o seu público-alvo, motivos
mais que suficientes para a sua integração e legitimação em edifícios religiosos.

Abstract

This article aims to analyse some female gargoyles from the XV and XVI
centuries, in the religious buildings in Portugal, its relations with the sins, particularly
with luxury. There from, the gargoyles have an important didactic tendency, presenting
themselves as exempla, but also establishment some important relations with the
religious literature. The human gargoyles accomplish pedagogic and symbolic
functions, maintaining an intimate relation with its public, more than enough reasons to
its integration and justification in the churches and cathedrals.

1
Proposta de artigo para a Revista “As Faces de Eva” – Universidade Nova de Lisboa

A presença feminina nas gárgulas medievais

Notas introdutórias
Apresentam-se neste breve estudo algumas contribuições no intuito de
compreender a importância da representação da mulher nas gárgulas medievais
pertencentes a edificações religiosas.
As gárgulas têm uma função assaz significativa nos edifícios, pois canalizam e
escoam as águas pluviais, afastando-as das paredes e das fundações. Mas para além
desta função utilitária, a sua vocação artística e estética não deixa de nos seduzir, até
porque os temas escolhidos para nelas figurarem nos ajudam a construir uma ténue
imagem da mentalidade medieval e, neste caso, daquilo que se pensava acerca da
mulher. Um ponto importante: quer nas gárgulas enquanto obras de escultura realizadas
por artistas, quer nas diversas fontes textuais citadas, o ponto de vista é exclusivamente
masculino. Nunca é dada a palavra à mulher.
Vamos dividir este estudo em duas grandes partes: na primeira, mais breve,
vamos tecer considerações de circunscrição do trabalho em relação aos edifícios que as
exibem e na segunda parte vamos abordar alguns temas.

1. Âmbito e cronologia
O nosso estudo é constituído, actualmente, por um universo de setenta e quatro
casos de edifícios religiosos com gárgulas figurativas1, distribuídos pelo território
nacional continental2. Em termos cronológicos, a sua colocação data desde a segunda
metade do século XIII estendendo-se até ao século XVI, ao qual correspondem cerca de
¾ dos casos. Ora isto significa que, de modo inevitável, as gárgulas se articulem com a
questão da identidade artística do manuelino, quer através dos temas e das formas, quer
através questão da presença de mão-de-obra estrangeira a laborar em Portugal. Como

1
Número de edifícios com gárgulas que chegaram até nós, pois o nº podia ter sido muito superior. O
número de gárgulas que actualmente existem em cada edifício é muito discrepante, pois temos de atender
às mudanças, ampliações e restauros que cada um sofreu e que lhe alterou a feição inicial, com
consequências para as gárgulas. Assim, o número de gárgulas varia entre uma (por exemplo, a Igreja de
Santa Clara, no Porto) e um número elevado, superior à centena (Santa Maria da Vitória, Batalha,
Convento de Cristo, Tomar e Santa Maria de Belém).
2
Fica por realizar o seu estudo nos arquipélagos da Madeira e dos Açores, onde também marcaram com a
sua presença alguns edifícios religiosos. Lembramos também que este estudo envolve um edifício de
Olivença, à data território nacional.

2
podemos constatar, este enquadramento cronológico das gárgulas figurativas alonga-se
muito para além das doutrinas estéticas que caracterizaram o gótico: as gárgulas vão ter
uma presença muito significativa justamente na época da dissolução do mesmo,
caracterizada por um grande hibridismo artístico e estilístico. Como explicar este
fenómeno?
A sua colocação nos edifícios em Portugal não foi significativa no período de
introdução e desenvolvimento das formas góticas, devido ao modo de como o gótico
penetrou no nosso país, quer pela mão dos cistercienses, quer pelas ordens mendicantes.
Como se sabe, estas ordens impuseram no início da sua estada entre nós um
despojamento decorativo que estava de acordo com os princípios fundadores das
mesmas. A introdução das gárgulas nas edificações vai acontecer de forma tímida e
gradual até ao estaleiro da Batalha: todo o complexo conventual encontra-se pontuado
por gárgulas (em número superior à centena e meia) e constituiu uma experiência fulcral
para as edificações coevas e posteriores.
A sua presença nos edifícios religiosos, bastante expressiva no século XVI e em
particular na sua primeira metade deve-se, para além importância da Batalha, na maior
parte dos casos, à presença de artistas nómadas3 franco espanhóis (o que não exclui a
sua colocação através de mão de obra nacional) que as trouxeram na sua bagagem visual
e as inseriram nos edifícios como uma parte integrante de toda uma sobrecarga
decorativa que desenvolveu, grosso modo, todos os elementos decorativos herdados do
flamejante. Acontece deste modo uma co-existência de dois universos opostos em
termos formais, se encararmos as gárgulas como elementos decorativos herdeiros dos
bestiários, cujo apogeu na Europa se situou nos séculos XIII e XIV. Tal antagonismo
estético não se verifica em termos temáticos, como vamos ter oportunidade de ver.

2. Presença
Nos edifícios religiosos por nós estudados, verificámos que a colocação de
gárgulas pode cingir-se a locais específicos (capela-mor e/ou zona da cabeceira,
fachadas, torres, claustros) ou pontuar toda a edificação, como em Santa Maria da

3
A questão do “nomadismo artístico” foi introduzida na historiografia da arte em Portugal pela mão do
Professor João Barreira, acerca do qual realizámos a nossa tese de Mestrado em Teorias da Arte,
defendida em 2004. Desde essa altura que continuamos a investigar esta questão, mote para uma
comunicação apresentada no III Congresso Internacional de História da Arte da A.P.H.A. “O historiador
João Barreira, o manuelino e o conceito de “nomadismo artístico” in www.apha.pt/publicacoes.php,
questão que achamos fulcral para o estudo das gárgulas na época manuelina.

3
Vitória, Batalha. Outro dado é que ocasionalmente, as gárgulas figurativas aprecem
integradas em conjunto com gárgulas canhão, ou gárgulas tubo, como na Sé da Guarda.
Relativamente à presença de gárgulas em espaços monásticos e conventuais,
estruturámo-las em tabela, respeitante à sua distribuição nos edifícios e pelas diferentes
ordens religiosas. Um dado importante é o facto de a data da tabela não ser, na maioria
dos casos, a da fundação do edifício, mas a data onde decorreram as campanhas onde as
gárgulas foram colocadas:

Tipo de Ordem Religiosa Ramo Nome e local Data

Ordem de S. Bento Masc. Mosteiro de Cete, Paredes, Porto XVI


Vida Ordem de Cister Masc. Mosteiro de Sta. Maria, Alcobaça XVI
monástica Fem. Mosteiro de Sta. Maria de Almoster XVI
Ordem de S. Jerónimo Masc. Mosteiro de N. Sr.ª da Pena, Sintra XVI
Mosteiro de Sta. Maria de Belém XVI
Regrantes de Sto. Masc. Mosteiro de Sta. Cruz de Coimbra XVI
Vida canónica Agostinho Claustro da Manga, Coimbra XVI
Masc. Convento de S. Francisco, Guimarães XV
Franciscanos ou Convento de S. Francisco, Vila do Conde XVI
Vida Menoritas Convento de S. Francisco, Porto XVI
mendicante Convento de Sto. António dos Olivais, Coimbra XV
Convento de S. Francisco, Santarém XV
Convento de S. Francisco, Évora XV
Convento de S. Francisco, Estremoz XVI
Convento de S. Francisco, Montemor – o – XVI
Novo
Fem. Convento de Sta. Clara, Vila do Conde XIV/XVI
Convento de Sta. Clara, Porto XV
Convento da N. Sr.ª da Conceição, Beja XV
Convento da Madre de Deus, Xabregas XVI
Convento de Jesus, Setúbal XVI
Convento das Chagas de Cristo, Vila Viçosa XVI
Convento da N. Sr.ª da Assunção, Faro XVI
Dominicanos Masc. Convento de N. Sr.ª dos Mártires de Elvas XIII
Convento de Sta. Maria da Vitória, Batalha XV/XVI
Convento de S. Domingos, Guimarães XV
Eremitas de Sto. Masc. Convento de N. Sr.ª dos Anjos, Montemor-o- XVI
Agostinho Velho
Convento da N. Sr.ª da Graça, Évora XVI

Ordens Ordem Militar do Templo Masc. Convento da Ordem de Cristo, Tomar XV/XVI
Militares / Ordem de Cristo

Da observação da tabela constatamos que, à excepção do mosteiro cisterciense


de Almoster, só nos edifícios destinados ao ramo feminino dos menoritas se verifica
uma certa tendência para a colocação de gárgulas figurativas. Já a representação da
mulher nas gárgulas verifica-se nos seguintes edifícios:

4
- Sés:
- Braga (galilé e cabeceira);
- Guarda (fachadas laterais);
- Espaços Monásticos:
- Cister: Santa Maria de Alcobaça (fachada principal e claustro);
Santa Maria de Almoster (Capela da Nossa Senhora da Piedade);
- Regrantes de Santo Agostinho: Santa Cruz de Coimbra (claustro);
- Espaços Conventuais:
- Dominicanos: Santa Maria da Vitória, Batalha (todo o complexo conventual);
- Franciscanos: São Francisco de Guimarães (cabeceira);
Santa Clara, Porto (ao lado da porta);
Nossa Senhora da Conceição, Beja (fachada SE);
- Igrejas matrizes ou paroquiais:
- Igreja Matriz de Cela Nova, Alcobaça (fachadas laterais);
- Nossa Senhora do Pópulo, Caldas da Rainha (toda a edificação);
- Matriz de Torre de Moncorvo (toda a edificação).
- Igreja Matriz do Alvito (transepto).
Estes dados são muito indicativos: dizem-nos que uma percentagem muito
modesta de edifícios, cerca de 20 %, exibe gárgulas mulher. E na maior parte dos casos,
cada edifício tem uma ou duas gárgulas mulher: as excepções são Santa Maria da
Vitória e Matriz de Torre de Moncorvo. Portanto, não se pode dizer, ao contrário do
Bestiário, que a mulher seja um tema muito presente nas gárgulas. No entanto, a
presença feminina faz-se sentir em todos os tipos de edifícios religiosos, desde sés, a
espaços monásticos e conventuais, a igrejas. Outro dado é que somente em três edifícios
que albergam público feminino (um cisterciense, Santa Maria de Almoster e dois
menorita, Santa Clara do Porto e Nossa Senhora da Conceição de Beja), têm gárgulas
mulher. E embora não caiba neste estudo, a gárgula mulher também marcou com a sua
presença, a arquitectura militar, mais concretamente na Torre de Menagem do Castelo
de Estremoz.

3. Temas
Por questões de extensão, vamos analisar somente algumas destas
representações e articulá-las com o tipo de mentalidade que as produziu e legitimou, ou
seja, vamos tentar produzir uma imagem, embora ténue, acerca das representações da

5
mulher. A mulher aparece figurada na arte medieval e tardo medieval, no nosso país, em
três grandes áreas:
- A mulher como Virgem Maria (imagens de vulto para altares, tímpanos, capitéis,
retábulos e iluminuras). Aqui o seu significado é exclusivamente religioso.
- A mulher que pertence a um grupo social destacado, membro da família real, quer
como rainha, ou infanta, ou dama da corte (representada nas iluminuras, nos jacentes
dos túmulos). O seu significado é social.4
- Por fim, uma área dividida em dois grandes sectores: por um lado, a mulher pecadora,
mas arrependida, que depois do pecado leva uma vida exemplar (o modelo medieval
preferido de santa). Por outro, a mulher enquanto descendente de Eva: tentadora e
pecadora (aqui também se inserem algumas representações mitológicas, como as
Sereias e Hárpias).
É evidente que estas representações, que estruturam e integram as mulheres em
termos religiosos e socais não tinham correspondência directa com a realidade, com o
quotidiano medieval, mas sim com um modelo de vida idealizado, que se queria
moralizado (e por isso utópico), instituído pela igreja e pelos seus membros. A
sociedade medieval era profundamente hierarquizada e machista, desde a nobreza, ao
clero e ao povo. Os artistas que produziram as gárgulas são geralmente membros do
povo, logo as vivências populares também vão estar reflectidas nas gárgulas, bem como
o tipo de modelo para a mulher.
No que diz respeito às fontes escritas, este estudo centrou a sua atenção em dois
grandes tipos de textos: o texto religioso (que vai desde o discurso produzido pelas
diferentes ordens religiosas, ao discurso penitencial5, passando por um tipo de texto
moralizante e doutrinal como o “Orto do Esposo”6 e o “Castelo Perigoso”7) e as fontes

4
Embora com diferenças significativas, tanto a Rainha Santa Isabel como a Rainha D. Leonor (esposa de
D. João II) tomaram o hábito após a morte dos maridos e dedicaram-se a uma vida devota e de protecção
aos desfavorecidos. Ambas aparecem representadas com indumentária franciscana (a primeira no seu
túmulo, em Santa Clara-a-Nova e a segunda no Painel das “Chegada das Relíquias de Santa Auta”, no
Museu Nacional de Arte Antiga).
5
Neste âmbito consultámos o Penitencial de Martim Pérez (Introdução, leitura e notas por Mário
Martins), Lisboa, 1957. É uma obra datada do século XV, onde são dadas breves explicações acerca dos
pecados e respectivas penas a aplicar. Existia um exemplar na Biblioteca de Alcobaça (B.N. Alc 213) e D.
Duarte possuía dois exemplares.
6
Orto do Esposo. Texto inédito do fim do século XIV ou começo do XV (Edição critica de Bertil Maler
com introdução, anotações e glossário). Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1956, 2 volumes. A
biblioteca de Alcobaça possuía dois exemplares, actualmente na Biblioteca Nacional (Alc. 198 e Alc.
212).
7
Esta obra é também designada por Tratados Cartusianos por ser constituída por 7 tratados. Castelo
Perigoso. (Edição critica de Elsa Maria Branco da Silva). Lisboa: Edições Colibri, 2001. O Castelo é uma
versão portuguesa da obra de Frei Roberto, Chastel Périlleux. Na Biblioteca de Alcobaça existiam dois

6
documentais laicas como as cantigas de escárnio e maldizer,8 os provérbios populares9
e, embora tardio, faremos também algumas referências a Gil Vicente pelo peso que a
medievalidade ainda tem nos seus textos. Mas atenção: gárgulas e textos não podem ser
entendidos como tendo uma correlação absoluta e directa, mas como fenómenos que
evidenciam um tipo de mentalidade com muitos aspectos em comum.
Se nos focarmos no conceito medieval de adequação, as gárgulas, devido à sua
função (escoar águas e impurezas) e à sua posição marginal no edifício, não poderiam
ser filhas de Maria, mas de Eva. Ninguém se lembraria de colocar a Virgem Maria de
boca escancarada, sentada num contraforte! Até porque quem se dedicar à observação
das gárgulas, constata inevitavelmente a presença explícita de alguns temas ligados ao
universo sexual. Posto isto, cabe perguntar porque permitia igreja e os seus membros
tais representações, à primeira vista menos próprias para um espaço sagrado?
Contradizem um controlo iconográfico rigoroso e apertado, ou tal fiscalização só
assentava nas áreas mais nobres e destacadas do edifício? Ou, outra hipótese: funcionam
como modelo cujo fim é pedagógico, como exempla? Depois de justificada a integração
e legitimação dos temas, perguntamos pelo tipo de tema: podemos detectar nas gárgulas
estereótipos temáticos relativamente a um modelo de apresentação do feminino? Em
caso afirmativo, esses estereótipos provêm de representações sociais e religiosas no que
concerne ao comportamento feminino? Vamos tentar responder a todas estas questões e
de que modo se interligam com as fontes escritas, quer laicas, quer religiosas.

3.1. Representação do corpo para luxúria e a redenção possível


Comecemos por observar o núcleo de Santa Maria da Vitória, um dos mais
significativos pelo número considerável de gárgulas mulher (tem cerca de dez
representações femininas, menos de metade das representações masculinas, estimadas
em cerca de vinte e oito). As gárgulas do Convento da Batalha têm, na sua maioria e no
que diz respeito às representações homem/mulher, um carácter inédito entre nós, quer
em termos formais, quer em termos temáticos. Denotam familiaridade com alguns
conceitos e temas eruditos e com modelos da escultura francesa dos séculos XII e XIII,
como vamos ter oportunidade de ver. Temos então as seguintes gárgulas, todas inseridas

exemplares (Alc. 199, do século XV e Alc. 214, mais tardio, ou do final do século XV ou inícios século
XVI).
8
Orlando Neves, Cantigas obscenas de escárnio e maldizer. Lisboa: Editorial Notícias, 2004
9
José Mattoso, Fragmentos de uma composição medieval. O Essencial sobre a formação da
nacionalidade. O essencial sobre a cultura medieval portuguesa. O essencial sobre os provérbios
medievais portugueses. Lisboa: Círculo de Leitores, Colecção Obras Completas, n.º 6, 2001

7
nas Capelas Imperfeitas (finais do século XV, inícios do século XVI), duas gárgulas
mulher: uma nua mas de toucado, sentada, exibindo a sua vagina, com ambos os braços
partidos. A outra gárgula mulher também está nua, sentada, de longos cabelos, tal como
a anterior exibe também a sua vagina, mas de mãos postas a rezar, Fig. 1.

Fig. 1

Temos outra gárgula mulher, representada nua e sentada, exibindo igualmente o


seu sexo, mas de mãos cruzadas sobre o peito e de face disforme, com grande boca e
nariz, quase monstruosa. E por fim nova gárgula, sentada, com um vestido que deixa
que se vejam os seios nus, com turbante na cabeça. Neste propósito, o facto de ter um
turbante identifica-a, do ponto de vista iconográfico, com uma moura: “A mulher que
faz Salomão ajoelhar diante da estátua do ídolo é frequentemente representada usando
um turbante na cabeça: é uma sarracena e portanto, uma inimiga do povo de Deus.”10
Mas no “Orto do Esposo” o seu autor faz uma referência interessante sobre o
que São Jerónimo diz sobre as mulheres: “Ella faz a sabeundas a saya ou a camisa
u s logares, por tal que pareça algu a cousa do corpo.”11
Vejamos outros edifícios religiosos onde aparece representado o corpo feminino
como um corpo para luxúria: na Igreja Nossa Senhora do Pópulo, Caldas da Rainha
(século XVI) temos uma gárgula mulher, nua, com uma mão pousada na púbis,
apresenta uma cabeça disforme e assustadora (nariz dilatado, boca enorme), Fig. 2. Esta
gárgula lembra-nos uma figura feminina, “de feições negróides”12 que se pode observar
no painel “Inferno” do Museu Nacional de Arte Antiga, Fig. 3, cuja datação ainda é
controversa13.

10
Mário Pilosi A Mulher, a Luxúria e a Igreja na Idade Média. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, pág. 30
11
Orto do Esposo, pág. 307
12
Maria José Palla, A palavra e a imagem. Ensaios sobre Gil Vicente e a pintura quinhentista. Lisboa:
Editorial Estampa, 1996, pág. 192
13
Dagoberto Markl faz referência ao seguinte, importante para a datação da obra: as moedas que estão
representadas no quadro foram cunhadas nos reinados de D. Afonso V, D. Manuel e D. João III, o que faz

8
Figs. 2 e 3
No Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra (século XVI) temos também uma
gárgula mulher, nua, sentada de pernas cruzadas, de grandes seios pendurados. Uma
mão está pousada no joelho, a outra sobre os órgãos sexuais. Está sentada de pernas
cruzadas. O seu rosto lembra o de uma negra, com grandes narinas e boca aberta e sem
cabelo: será a representação de uma escrava?
Os portugueses já conheciam povos de outras etnias muito antes do século XVI.
No entanto, é nos finais de quatrocentos e inícios de quinhentos que as representações
de negros começam a ser comuns nas artes plásticas (pintura, iluminura e escultura). Em
relação à escravatura, é instituída a partir de 1441, mas é na primeira metade do século
XVI que o comércio de escravos atinge um valor considerável. Esta apropriação da
negra, do outro, também como metáfora da luxúria deslocou o centro das atenções
religiosas da mulher europeia para outras etnias. Na Batalha existem várias gárgulas
negros, mas nenhuma do sexo feminino.
Na igreja Matriz de Torre de Moncorvo (segunda metade do século XVI)
podemos observar três gárgulas mulher que, apesar dos prejuízos da erosão, esboçam
atitudes lascivas. São figuras femininas que com uma das mãos mexem nos seios e com
a outra nos órgãos sexuais, exibindo a boca aberta.
A partir da leitura de textos produzidos pelo clero (penitenciais, sermonários,
manuais de confessores, textos moralizantes, etc.) verificamos que, de modo geral, na
Idade Média está instaurada uma atitude negativa para com a mulher, pouco ou nada
condescendente com o seu corpo e com a sua vida sexual. Esta tendência tinha como
fim evitar desvios comportamentais como a masturbação, a prática sexual fora do
casamento (quer na virgindade, em situações de viuvez e em particular no adultério)

com que o leque cronológico da obra seja amplo, conforme História da Arte em Portugal – O
Renascimento. Lisboa: Alfa, 1988, págs. 25 a 27

9
com penas fortemente penalizadoras para a mulher. Mesmo a actividade sexual
integrada na legitimidade conjugal tem, para a mulher medieval, um único fim: a
reprodução. A igreja tomou para si, gradualmente, o domínio exclusivo e normativo da
sexualidade. Mas não deu igualdade de opção e de conduta aos dois intervenientes,
homem e mulher. Privilegiou o primeiro, permitindo-lhe quase tudo (desde que sem
exageros) e apagou a mulher, privando-a do prazer e da liberdade pessoal.
A igreja incita o homem a acautelar comportamentos luxuriosos e a cultivar a
castidade, mas também lhe diz que para o fazer, tem de evitar a mulher. Se não o
conseguir, então que se case. Em relação à mulher, está condenada à priori só por sê-lo,
pois a mulher é vista, desde o Génesis, como um instrumento diabólico: é ela quem
entra em diálogo com a serpente, é ela que come a maçã e diz a Adão para o fazer
também14. Instaura assim a ligação entre a gula e a luxúria. Curiosamente, em paralelo,
a Idade Média vai valorizar um modelo de santa que havia levado uma vida moralmente
condenável, de desordem sexual, mas que depois se arrepende, se converte, passando a
funcionar como um modelo e um exemplo de fé.
Tudo isto interfere com a noção de corpo no feminino: a igreja quer o controle
dos corpos, mas em particular o da mulher. Basta desfolhar um manual de confessor15
para de imediato percebermos, através do esmiuçar da vida quotidiana, em particular a
feminina, que o intuito é o controle de todas as acções e o domínio de comportamentos
e das vontades.
No âmbito da literatura moralizante e edificadora, temos o já referido “Orto do
Esposo” onde a associação entre gula e luxúria está presente e lembra-nos novamente a
atitude das gárgulas, nuas e de boca escancarada, comportamentos a evitar: “Nom em
16
A guargantuyce
(gula) e a luxúria foram, segundo o autor anónimo, a origem do pecado original e é
destes dois pecados capitais que “ s
home s.17 No “Orto” é expressa a ideia de que a convivência dos homens com as
mulheres induz à luxúria e o leitor é remetido para as palavras de Santo Ambrósio, que

14
No “Orto”, o autor comenta que Eva conseguiu enganar Adão, Sansão, David e Salomão, por isso
quanto não fará ao homem comum.
15
Um manual de confessor do século XII, bastante exemplificativo, é o “Decretum” redigido por
Burchardo de Worms e citado por Georges Duby, As Damas do século XII. 3. Eva e os Padres. Lisboa:
Teorema, 1996, pág. 19 e seguintes. No caso do já citado Penitencial de Martim Pérez, não existem
diferenças entre os pecados masculinos e os femininos.
16
Orto do Esposo, pág. 16
17
Orto do Esposo, pág. 154

10
chama as mulheres de “Porta do diaboo, carreyra de maldade, ferida de escorpiam e
geeraçõ .”18
A atitude das gárgulas é uma postura sedutora, pela nudez e exibição clara dos
órgãos sexuais, para enfatizar bem a ideia do pecado: “A lingoa della soa castidade e
todo o seu corpo demonstra luxúria”19 É esse comportamento luxurioso que as gárgulas
referidas ilustram, mas também o caminho para o processo de arrependimento: uma das
gárgulas de Nossa Senhora da Vitória tem as mãos postas. Por sua vez, a nudez está
associada à impudicícia: a mulher deve ter vergonha da sua nudez, pois quando não a
tem constitui um dos “
sem vergonça”20
Assim sendo, a representação da mulher como um corpo para a luxúria abarca
um número considerável de casos. Estas gárgulas funcionam como exemplos, modelos
apresentados às mulheres em geral e em particular às mulheres perdidas ou às que estão
no mau caminho, como forma de motivar a sua recuperação. A mulher é induzida a
confessar-se: “per vergonha de confessar achamos em livros muytas gentes,
espiçialmente molheres condanadas e perdidas.”21 E atesta a importância da
preocupação da igreja e da sociedade em geral com um pecado considerado muito grave
e que domina as atenções em relação à mulher. Este apelo à confissão é uma constante
na literatura religiosa do século XV.

3.1.1. A representação da mulher e a questão do público-alvo:


Neste capítulo vamos tentar demonstrar que os mesteirais, ou se quisermos usar
um termo actual, os escultores de gárgulas levavam sempre em linha de conta o tipo de
público que estava em contacto quotidiano com as gárgulas, articulando decerto as
intenções do mecenas com o tipo de mensagem inerente a cada ordem religiosa, a partir
de informações transmitidas pelos seus membros. Para o evidenciar, vamos analisar três
situações: São Francisco de Guimarães, Santa Maria de Alcobaça e Santa Maria de
Almoster.
Na cabeceira da Igreja de São Francisco de Guimarães temos, para além de
outras gárgulas, uma gárgula frade e uma gárgula mulher: esta exibe os seios nus.

18
Orto do Esposo, pág. 306
19
Orto do Esposo, pág. 307
20
Orto do Esposo, págs. 115 e 116
21
Castelo Perigoso. Edição critica de Elsa Maria Branco da Silva. Lisboa: Edições Colibri, 2001, pág. 96

11
Constitui uma metáfora da luxúria e, em articulação com o frade, representa os perigos
da carne, tentações a que também ele está sujeito.
O grande teólogo franciscano São Boaventura já havia alertado para os três
grandes perigos do mundo: “a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a
soberba da vida. É nestes três objectos que toda a tentação tem a sua origem, procedam
quer do mundo, da carne ou do diabo.”22 Talvez por este motivo o escultor tenha
destacado propositadamente os olhos do frade e da mulher.
No claustro do Mosteiro de Alcobaça, datada da primeira metade do século XVI,
temos uma gárgula híbrida entre um corpo de mulher, com grandes seios e orelhas de
cão (embora com nariz humano) que manipula os mamilos com as mãos. Parece
evidenciar um tipo de provocação sexual explícita.

Fig. 4

Esta gárgula claustral não tem uma face feminina, mas de animal (diferente da
deformação facial que se observa na gárgula de Nossa Senhora do Pópulo e na gárgula
da Batalha). Esse lado animal foi premeditado e intencional por parte do escultor para
destacar o lado bestial da luxúria feminina, que lhe parece anular a humanidade. Para o
mesteiral, esta leitura devia ser a interpretação feita pelos monges, pois um tipo de vida
dominado por pecados como a luxúria e a gula, segundo São Basílio, aproxima o
homem dos animais: “o delectaçom corporal,
obedeecendo aas luxuryas e as guargantuyces, emtõ he cõparado aas animalias brutas
e fecto semelhante a ellas.”23
Também nos “Castelo Perigoso” é referido que a origem da luxúria está nos
gestos, nas palavras e nos sinais que as mulheres fazem e que, aqueles que pecam

22
São Boaventura, Obras de San Buenaventura –Brevilóquio. Madrid: Católica, Biblioteca de Autores
Cristianos, 1949, pág. 295
23
Orto do Esposo, pág. 97

12
“serom no Dia do Juízo como bestas.”24 Esta passagem está integrada num capítulo
quem tem como título “da luxuria e de como este pecado he mais grave fecto em os
religiosos e religiosas.”25Para ilustrar estas ideias, o mesteiral esculpiu-lhe um grande
nariz, de narinas enroladas, boca aberta e língua de fora e uniu, engrossou e prolongou
as sobrancelhas.
Neste âmbito é importante enfatizar o triângulo constituído pelo artista, pela
obra e pelo público-alvo. Este último deve estar familiarizado com determinadas ideias
ou conceitos para descodificar a obra e dar-lhe um sentido, tal como os sermões eram
estruturados de modo a servir o seu público-alvo26, igual ou maior responsabilidade
assume a imagem. Ao colocar as gárgulas no exterior, amplia-se e diversifica-se o
público-alvo. As gárgulas vão adquirir funções semânticas que estão de acordo com os
seus destinatários e por isso, as gárgulas claustrais podem ter temáticas diferentes das
gárgulas do exterior dos edifícios. A sua colocação nos claustros faz com que tenham
um tipo muito específico de público, ou seja, os monges, que vão fazer uma leitura
diferente da interpretação popular.
Para a gárgula do claustro, uma interpretação possível pode ter tido origem no
conhecimento do texto de Guilherme, Abade de São Thierry, um dos biógrafos de
Bernardo de Claraval (1091 – 1153). Guilherme relata um episódio em que uma mulher
tenta seduzir Bernardo: “...por instigação do demónio, puseram-lhe no leito uma
rapariga nua. Ao senti-la, com toda a calma, afastou-se da parte da cama que ocupava,
voltou-se para o outro lado e adormeceu. A desgraçada durante algum tempo deixou-se
estar e esperava; depois começou a apalpar e a excitar...”27 Ora a biblioteca de
Alcobaça possuía justamente dois exemplares da “Vida de São Bernardo”, um datado
do século XIII (BN Alc. 372) e o outro do século XV (BN Alc. 200).
Cabe agora perguntar pelo impacto da presença das gárgulas nos claustros.
Desviariam a atenção dos monges e dos frades, atrairiam muito ou pouco os seus
olhares no intervalo das leituras? Bernardo de Claraval na “Apologia ad Guilhelmum
Abbatem” legou um importante testemunho, embora não seja a partir de gárgulas, mas
sim de capitéis esculpidos onde estão representados uma grande variedade de bestas e

24
Castelo Perigoso, pág. 109
25
Castelo Perigoso, pág. 107
26
Acerca do público-alvo para os sermões ver Patrícia Anne Odber de Baubeta, Igreja, Pecado e Sátira
Social na Idade Média Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1992, pág. 119 e
seguintes
27
AA. VV. S. Bernardo e Alcobaça (inclui a Vita Prima, de Guilherme, Abade de S. Thierry, traduzida
por P. Augusto de Cima, OBS). Alcobaça: 2005, pág. 41

13
de híbridos: “De resto, nos claustro, diante dos irmãos a fazer leituras que faz aquela
ridícula monstruosidade, aquela disforme beleza (deformis formositas) e bela
disformidade (formosa deformitas)?28 (...) Tão grande e tão admirável aparece por toda
a parte a variedade das formas que mais apetece ler nos mármores que nos códices.”29
Também o “Castelo Perigoso” aconselha o monge a desviar os olhares:
“Espiçialmente no moesteiro, deve homem guardar seus olhos e oolhar a terra em
sinall d’humilldade e vergonha”30
São Bernardo deixou bem claro que sim, que os monges se sentiam atraídos
pelas formas inusitadas que a escultura românica havia produzido. Aceitar a sua
colocação no claustro alcobacense, local de importantes actividades inerentes à vida
monástica, pressupõe que as ideias rigoristas de São Bernardo acerca da perturbação
que a contemplação de imagens produz haviam perdido alguma da sua pertinência,
como o atesta uma visitação efectuada em 1484 por Frei Pedro Serrano, em que o
mesmo não se cansa de “redigir normas e conselhos para restaurar em Alcobaça os
antigos e virtuosos princípios de Cister.”31 Essa perda de actualidade de alguns dos
seus princípios poderá ter estado na origem da crise e declínio na cabeça da Ordem de
Cister em Portugal e prender-se-ia com o facto de “em 1475, a vida interna da abadia
de Alcobaça entrou em decadência (...). Aquando da visita do abade de Claraval, em
1532, apesar dos esforços desenvolvidos, o estado do mosteiro ainda era preocupante.
A ausência de disciplina monástica, a falta de recurso dos monges e o estado de
degradação dos edifícios eram evidentes.”32
As gárgulas que podemos observar em Alcobaça (quatro na fachada e cerca de
trinta e seis no claustro D. Dinis) resultam da intervenção manuelina, ocorrida no
primeiro quartel do século XVI, ou seja, contemporâneas do período de crise monástica.
28
A “deformis formositas” ou feia beleza decorre da fruição da deformidade que pode ser observada em
algumas esculturas, ou seja, é assim que S. Bernardo classifica a experiência estética que decorre da
observação de imagens que sofreram um processo de desfiguração, de alteração formal. Esta feia beleza
refere-se a algo que é entendido como belo, um tipo de belo deformado, mas que S. Bernardo conclui da
experiência estética que é feio. Já a bela fealdade ou “formosa deformitas” reporta-se a um tipo de feio
tão fascinante, que é belo, ou seja, a sua fealdade (deforme) está bem representada
29
S. Bernardo de Claraval: “Apologia para Guilherme, Abade”. Tradução e notas de Geraldo J. A.
Coelho Dias. Mediaevalia – Textos e Estudos. Nº 11 e 12. Porto: Fundação Engenheiro António de
Almeida, 1997, pág. 67. Também em Alcobaça existia um exemplar da “Apologia”, datada do século XIII
(BN Alc.168)
30
Castelo Perigoso, pág. 169
31
Saúl António Gomes “A religião dos clérigos: vivências espirituais, elaboração doutrinal e transmissão
cultural” in Carlos Moreira Azevedo (dir.) História Religiosa de Portugal. Volume 1 Formação e Limites
da Cristandade. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, pág. 370
32
Bernardo Vasconcelos e Sousa (dir.) Isabel Castro Pina, Mª Filomena Andrade e Mª Leonor Ferraz de
Oliveira Silva Santos: Ordens Religiosas em Portugal – das Origens a Trento – Guia Histórico. Lisboa:
Livros Horizonte, 2005, pág. 103

14
Segundo Viterbo, as obras da “crasta primeira”, embora com a supervisão de João de
Castilho, foram realizadas por Mestre Nicolau e Castilho recomenda o seu início para
1520.33
Para Sicardo de Cremona, o claustro “simboliza o paraíso celeste”34, imagem do
jardim do Éden e da alma, sítio onde a mesma se acolhe e “se abriga da confusão de
pensamentos carnais e unicamente se entrega à meditação de temas celestiais.”35 Como
sabemos, a leitura de códices era, de modo geral, realizada no claustro, como o atestam
vários testemunhos. Mas a leitura e reflexão não eram as únicas funções do claustro:
também neste espaço se ensina, se escreve, se copia, se redige documentação variada,
funcionando também como scriptorium36 e, para Cister, como espaço de procissão.37
São Bernardo verifica uma inutilidade didáctica presente na obra de arte quando
o seu público é o monge (e por esse motivo considera improfícua a presença de
iluminuras nos manuscritos cistercienses) articulando já o problema da obra e seu
público-alvo. E como justifica essa ineficácia didáctica? Porque este tipo de imagens,
em vez de terem um efeito educador, atraem os olhares, distraem o monge, perturbam a
sua mente com pensamentos menos próprios...Ou seja, o feio e o grotesco têm um poder
sedutor que o belo não tem.
No entanto, através do texto também pressentimos um duplo sentimento,
contraditório, que tem origem na classificação de “ridícula monstruosidade”. O uso
destes termos pode dar ao leitor a ideia que o objectivo de Bernardo era depreciar as
obras dos artistas, que produzem tais monstros, mas por outro lado, enaltece-as em
seguida através da “admirável feia beleza”. Mas os textos de Bernardo de Claraval
revelam uma riqueza estética e critica muito significativa: ao descrever os capitéis
esculpidos, Bernardo revela-nos que a obra de arte é para si uma fonte complexa de

33
Sousa Viterbo, Dicionário histórico e documental dos arquitectos, engenheiros e construtores
portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1988, vol. 1, págs. 188 e 189
34
Sicardo de Cremona, “Mitrale” citado por Jéssica Jaques Pi, La estética del románico y el gótico.
Madrid: A. Machado Libros, 2003, pág. 186
35
Op. Cit, págs. 186 e 187
36
Conforme assim o indica o Costumeiro do Mosteiro de Pombeiro: “Deinde sedeant post refectionem in
cluastro et uacent lectioni cantentque et scribant et gramatici exeant legere” fols. 50 v-51r citado por
José Mattoso, Religião e cultura na Idade Média Portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, Colecção
Obras Completas, n.º 9, 2001, pág. 229
37
Como afirma Catarina Villamariz “Na ordem de Cister, as procissões faziam-se todas no claustro, uma
vez que a regra não permitia procissões dentro do espaço da igreja.” A autora aponta ainda um outro
factor de aproveitamento do espaço claustral: sepultamento dos monges (o que também se verifica nos
claustros catedralícios, quer com figuras religiosas proeminentes, quer com leigos, como se pode ver na
Sé de Lisboa). Catarina P. Oliveira Madureira Villamariz: Claustros góticos portugueses – sécs. XIII a
XV. Lisboa: Dissertação de Mestrado em História da Arte apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 1997, pág. 24

15
experiências pessoais. E faz mesmo uma leitura sociológica das obras que lhe provocam
tais experiências estéticas, questionando o que é que aquele tipo de obra (pergunta pela
forma e pelo tema) faz ali, naquele espaço, ou seja, ele pergunta pela liberdade artística
e pela adequação e conveniência das esculturas dos capitéis ao lugar. E ainda nos fala da
recepção da obra pelo público-alvo (neste caso os monges), embora não lhe agrade o
comportamento demonstrado, em que “apetece ler mais nos mármores do que nos
códices...” e de certeza que haveria lugar para exercícios de interpretação “dos
mármores” e que decerto que ocupavam muitas horas dos monges...
Deste modo, estas gárgulas de Alcobaça, cuja associação à luxúria e a sua
condenação constitui-se como um aviso aos monges sobre a mulher, revestem-se de
uma importância didáctica fundamental, mas não deixam de entrar em choque com as
doutrinas de São Bernardo. Espelham uma preocupação em termos temáticos: já que
não se consegue que os monges deixem de olhar para as imagens, pelo menos ao fazê-lo
edificam a mente e constroem ligações com os textos da biblioteca alcobacense já
referidos.
Ainda neste capítulo e sobre a dialéctica homem/mulher, o claustro de Alcobaça
apresenta uma leitura ainda mais complexa se atentarmos nas representações
masculinas. Citámos um trecho do “Orto” que dizia que a luxúria faz com que o homem
se assemelhe aos animais e de como o escultor explorou, nas representações femininas o
lado bestial. Ora, quer nas quatro gárgulas da fachada, quer nas do claustro, temos
algumas representações de animais e seres híbridos que exibem o seu pénis. Em
articulação com as gárgulas mulher, completam um quadro de alertas bem enfatizado
para os perigos da luxúria, que faz com que o lado animal do ser humano se sobreponha
ao racional. Mas também contra os perigos da homossexualidade: uma das gárgulas
homem está, enquanto faz o pino, de cabeça para baixo, a exibir o seu ânus (orifício por
onde escoa as águas dos telhados). No “Penitencial de Martim Pérez”, a penitência para
a sodomia é pesada mas entre religiosos é bastante pior: se for um bispo, são 14 anos, se
for clérigo são 12 anos de penitência, diácono 8, clérigo de ordens menores 7 e leigos 5
anos.38
Esta questão do público-alvo também está intimamente relacionada com mais
dois núcleos: um é a Batalha, onde são as gárgulas do exterior que tomam atitudes
pedagógicas em relação aos pecados, ao passo que as gárgulas claustrais, herdeiras do

38
Op. Cit. págs. 43 e 44

16
bestiário, não têm esta importância. O outro núcleo é o Mosteiro de Santa Maria de
Almoster, do ramo feminino dos cistercienses. As duas gárgulas que exibe situam-se no
exterior da Capela dedicada à Nossa Senhora da Piedade, localizada à direita da porta.
Não possuímos dados para a sua datação, mas a partir da análise da sua abóbada,
artesoada, característica de uma larga percentagem de edificações do período manuelino
e a partir do levantamento feito por Mário Chicó,39 parece-nos correcto situar a sua
construção no início do século XVI, opinião que compartilhamos com Francisco
Manuel Teixeira.40 Diz este autor, a partir da observação das gárgulas: “duas figuras
licenciosas que se integram nas representações medievais classificadas como obscena
(sic), devem pertencer à centúria de quinhentos.”41
Uma das duas gárgulas é um híbrido: parece um leão, mas na nossa opinião não
foi importante para o escultor representar um animal em concreto, mas um qualquer,
apesar de uma tentativa de esculpir uma juba, pois o interesse da representação reside na
exibição do seu pénis erecto. A outra é uma figura humana, de pernas abertas, exibindo
o ânus, mas sem braços e com a cabeça encaixada entre as pernas. A sua face é cheia, de
dentes espaçados, parece esboçar um sorriso irónico. Denota familiaridade com as
gárgulas rabos-ao-léu da Matriz de Caminha, da Sé de Braga e do claustro de Alcobaça.
No entanto, enquanto que nas outras gárgulas o corpo é representado como se estivesse
a fazer o pino, ou seja, a fronte da figura está virada para baixo, para o observador, aqui
a tem a cabeça entre as pernas e assim exibe o orifício anal.
Estas duas gárgulas revelam uma incontornável influência das gárgulas de Santa
Maria de Alcobaça, o que também indica a sua realização posterior a 1520. Constituem-
se como um exempla moralizante para as freiras, mas, por outro lado também
afincadamente teimam em lembrar-lhes os pecados da carne, de uma forma muito
directa e irónica.

3.1.2. O “Hortus Deliciarum”: modelo de representação da pecadora?


Neste capítulo vamos analisar três gárgulas cuja iconografia é inédita entre nós e
que resultam do conhecimento, directo ou indirecto, de uma fonte erudita, como o é o

39
Mário Tavares Chicó, A Arquitectura Gótica em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 1981
40
Francisco Manuel de Almeida Correia Teixeira, O Mosteiro de Santa Maria de Almoster. Lisboa:
Dissertação de Mestrado em História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa, 1990, 1 volume, pág. 85
41
Op.Cit. pág. 85

17
“Hortus Deliciarum”42, uma compilação de variados textos, com iluminuras, da autoria
da abadessa Herrad de Landsberg (1125/30 – 1195). As gárgulas pertencem ao Mosteiro
da Batalha (finais século XV/início XVI): uma está no gigante do portal principal e as
outras duas na fachada lateral sul. A gárgula da porta principal é uma mulher,
representada de meio corpo, com cabelo hirsuto e puxado para cima e grande nariz
pontiagudo, que manipula com as mãos os seios nus e articula-se com mais outras duas
gárgulas homens com o mesmo artifício em relação à representação do cabelo.
Estas gárgulas simbolizam, a partir do “Hortus”, a luxúria e o pecado. Nas
miniaturas referentes ao combate entre os vícios e as virtudes (Fol. 202v) podemos
entrever este artifício, do cabelo arrepiado para cima, a par de um nariz grande e
espetado, que imediatamente distingue as mulheres e homens pecadores das outras
figuras. Nas representações do Inferno (Fol. 255r), ao Diabo é aplicado o mesmo
estereótipo do cabelo eriçado e do nariz agudo. Esta “desordem” do penteado é
entendida como um símbolo do pecado e do demoníaco.

Fig. 5 “Hortus Deliciarum”


Esta diferenciação plástica no que concerne aos cabelos das figuras também
pode ser observada em alguns capitéis das igrejas de Vézelay e de Autun, ambas da
zona da Borgonha e ambas do século XII. Diz-nos Pilosi, a partir de um capitel da Sé de
Autun cuja figura feminina exibe o tal penteado que: “a cabeleira hirsuta da mulher faz
compreender rapidamente a sua posição de cúmplice de Satanás ou de ser diabólico.”43
Estas gárgulas foram introduzidas por via do “nomadismo artístico”, ou seja,
através da presença de artistas familiarizados, em termos plásticos, com as

42
Herrad of Hohenbourg, Hortus Deliciarum. Rosalie Green (Dir.) Michael Evans, Christine Bischoff e
Michael Curschmann. Com contribuições de T. Julian Brown and Kenneth Levy. Londres: Instituto
Warburg e Universidade de Londres e Leiden: E. J. Brill, 1979, 2 volumes
O manuscrito do Hortus foi conservado na Biblioteca de Estrasburgo até 1870, data em que um
irreparável incêndio originado por um bombardeamento o destruiu. Esta e outras edições são
“reconstituições” do texto e das suas ilustrações a partir de fragmentos da obra e de significativos estudos
realizados por eruditos antes da sua destruição (Bastard e Christian M. Engelhardt). Esses estudos
incluem cópias das miniaturas.
43
Mário Pilosi, A Mulher, a Luxúria e a Igreja na Idade Média. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, pág. 42

18
representações do manuscrito e/ou dos capitéis, ou ainda com outros modelos de
representação que usam o artifício do cabelo arrepiado como elemento identificador da
prática da luxúria e divisório entre os pecadores e os não pecadores. Sabemos pela lista
de mesteirais que por lá laboraram artistas franceses e alemães e através de um estudo
realizado por Maria Dolores Sampedro44 acerca de uma identificação iconográfica de
um capitel do Convento de São Francisco de Guimarães (estaleiro influenciado pela
Batalha) que representa a Avareza, confirma que a fonte usada tenha mesmo sido as
iluminuras do “Hortus”.

3.2. Peccata carnalia e as freiras


Temos dois casos de gárgulas freira, embora com diferenças entre si.
Comecemos pelo Convento de Nossa Senhora da Vitória, Batalha (finais século XV/
inicio século XVI), em que a nossa gárgula freira está de manto e mãos postas a rezar,
mas nua dos ombros para baixo, de pernas cruzadas e filactéria. Na Igreja da Nossa
Senhora da Conceição, Beja (finais séc. XV), a gárgula freira enverga o hábito, está
também de mãos postas, olhos fechados, mas com as vestes arregaçadas de modo a
exibir uma cabeça de bebé, igualmente de mãos postas. Pode ler-se como uma metáfora
do acto de dar à luz “escondida” do mundo?
Temos ainda um outro caso de gárgula que parece representar um parto, em
Santa Clara do Porto, embora o estado de sujidade da gárgula não nos permita dizer se é
uma freira ou não. É uma figura híbrida, misto entre mulher e animal, que segura com
as duas mãos um pequeno livro (missal?), com patas e garras em vez de pés. Exibe um
adorno em torno do pescoço e tem a boca esticada e bem aberta.
Parece-nos que quer num caso, quer noutro, a atitude destas gárgulas reflecte
diferenças entre as gárgulas já analisadas, que ilustravam a luxúria de uma forma
inequívoca. As outras gárgulas exibiam claramente os órgãos sexuais e os seios,
situação que não se observa nestas gárgulas, com muito mais recato. O problema das
freiras também se centra no corpo, mas no “encontro e relação” que o corpo estabelece
com o mundo exterior ao convento. Fica no entanto a questão se a sua integração na
vida religiosa lhe proporciona um tipo de protecção diferente contra a luxúria no que diz
respeito à mudança e ao arrependimento.

44
Maria Dolores Fraga Sampedro, S. Francisco de Guimarães: análisis de su programa iconográfico a
luz de los textos de S. Buenaventura. In Revista de Guimarães, nº 104, 1994, pág. 169

19
Podemos pensar nestas gárgulas como uma crítica à conduta dos membros do
clero face às orientações religiosas recebidas, ou como uma sátira em relação aos
comportamentos de “freiras louçãs”45? A investigadora Patrícia Baubeta refere que
existem vários “exemplos de freiras ou abadessas grávidas nas literaturas medievais
galaico-portuguesas. Este tópico era um lugar comum dos exempla medievais e
histórias de milagres.”46
Este tipo de gárgulas insere-se também no mesmo espírito dos exempla, contidos
nos sermonários e textos como o “Orto do Esposo”. Este ultimo texto tem como
protagonistas muitos clérigos e religiosas, embora atribuindo-lhes diferentes papéis: ou
são vítimas de uma situação de sedução (geralmente, o sexo masculino é o mais
tentado), ou são referidos porque actuaram em defesa das suas virtudes ou em actos de
arrependimento sincero face aos pecados cometidos. O facto de ser o frade ou a freira os
alvos da crítica, mas também os protagonistas da mudança, torna a narrativa mais
edificante e mais apelativa, pois os membros do clero funcionam como testemunhos
preciosos de que a modificação de comportamentos é possível e desejável. O mais
importante não é o pecado ou a gravidez que dele resulta, mas o arrependimento, a
confissão e o caminho da salvação. A igreja destaca assim a importância dos pecadores
arrependidos. E em termos formais estas gárgulas traduzem bem essa ideia.
Ainda acerca do “Orto” temos um exemplo que relata a história de uma abadessa
grávida que é salva pela Virgem47 mas também faz um aviso em relação às mulheres
religiosas: “E nõ deue home meos temer as molheres por seere religiosas, porque,
quãto som mais religiosas, tanto mais toste (a teste) son tentadas e so semelha[n]ça de
piedade jaz escondida a luxuria”48
Também no “Castelo Perigoso” temos exemplas do mesmo género: “
monja nobre de linhagem e de grande santidade foi assi pollo imiigo enguanada, e [h ]
.”49 E como não ousava confessar-se, morreu em

45
Garcia de Resende, Cancioneiro Geral – Antologia. (Selecção, organização, introdução e notas de
Maria Ema Tarracha Ferreira). Lisboa: Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, pág. 206
46
Op. Cit. pág. 49
47
A abadessa engravida e as monjas apresentaram queixa dela ao bispo. Este foi então visitar o mosteiro.
Enquanto isso a abadessa pôs-se a chorar e a rezar à Virgem: esta apareceu-lhe e com a ajuda de dois
anjos, desembaraçou-a do filho e deu-o a criar a um ermitão. Não deixa de avisar a abadessa que por hora
a tinha livrado do pecado, mas alertou-a para o futuro e desapareceu. Entretanto o bispo achou a abadessa
perante a imagem da Virgem e como a não encontrou prenhe, pediu-lhe perdão. A abadessa, ao ver tanta
humildade, confessou-se ao bispo e este foi ter com o ermitão e passados sete anos tomou o menino para
sua companhia, conforme Orto do Esposo, págs. 321 e 322
48
Orto do Esposo, pág. 307
49
Castelo Perigoso, pág. 97

20
pecado, como ela própria contou à abadessa. O autor ainda contrapõe dois textos: um de
uma monja devota, que preferiu perder os olhos do que a sua virtude e a história de uma
freira muito formosa que se deixa possuir.50
Desvios e transgressões são reprovados, em primeira instância, pelo próprio
clero: “Ninguém critica mais fortemente o clero prevaricador que o próprio clero.”51
Ou seja, a própria instituição reforça permanentemente a ideia de um clero moralizador,
mas também moralizado e as críticas apontadas têm por objectivo resolver e modificar
comportamentos e não para denegrir e desabonar a igreja e os seus membros: “O facto
da Igreja ter continuado a legislar contra certos abusos e a proibir certos tipos de
actividade sugere que o desejo de um clero disciplinado e de boa moral continuava a
ser fundamental.”52
O descurar de deveres inerentes à vida religiosa, tem, nestes casos,
consequências morais e físicas. Mas essa transgressão pode muito bem ter tido origem
no processo de recrutamento dos seus membros, mais discriminatória para a mulher: ou
o casamento ou o convento. Se esta última opção lhe dava um tipo de vida mais
monótona, por outro lado compensava pela ausência da maternidade, pois as mulheres
casadas, devido à sua fecundidade, passavam uma parte significativa das suas vidas
grávidas. O convento como fuga para o casamento não tem nada a ver com a vocação
necessária para a vida religiosa, até porque a vocação pode surgir tardiamente, depois de
uma vida mundana.
No “Libro de buen amor”53 cujo discurso é bastante ambíguo, oscilando entre
um espírito de ironia e critica e um forte sentimento religioso, diz o seu autor, a
propósito da luxúria e da penitência que um frade estava a infligir a Don Carnal:
“nom guardaste casadas nin á mongas profesas
por cumplir tu furnicio fazíes grandes promessas”54
Mais adiante, a personagem Trotaconventos aconselha o Arcipreste a amar uma
monja55 e as vantagens que daí advêm.

50
Castelo Perigoso, págs. 110 e 111
51
Op. Cit. pág. 267
52
Op. Cit. pág. 268
53
Juan Ruiz, Libro de buen amor. Madrid: Edição Espasa – Calpe, 9ª edição, 1962. Segundo Patrícia
Baubeta, foram encontrados fragmentos de uma transcrição portuguesa do “Libro”, do século XIV, na
Biblioteca Municipal do Porto e um exemplar entre os livros de D. Duarte, conforme Patrícia Anne Odber
de Baubeta, Op. Cit. pág. 13
54
Op. Cit. pág. 117.
55
Op. Cit. págs. 131 e seguintes

21
No testamento de Beatriz Galvoa, a fundadora de uma comunidade religiosa
constituída por mulheres leigas, está bem patente a ideia do perigo que determinadas
leituras podem ter junto das mulheres e ainda mais quando associada à convivência com
os homens. Vamos transcrever um trecho, apesar da sua extensão: “Item nom consentam

soubesse d antes nom Reze per liuro per sy nem com as outras pobres, saluo se for

Relegiom pera lhe leer liuro que he aazo de gram perigos e mal.”56
Mas não é só o texto religioso a dar o mote para as gárgulas, pois também
colocámos a hipótese de as gárgulas freira poderem ser analisadas sobre outro ponto de
vista no que respeita à sua interpretação, sob um ponto de vista satírico, num certo
espírito de continuidade em relação às cantigas de escárnio e maldizer e que também
está presente no teatro vicentino57.
Chamamos a atenção para o facto de nas cantigas de escárnio e maldizer a vida
sexual activa dos membros masculinos do clero não é condenada, embora exposta, ao
contrário daquilo que se passa com as mulheres: as freiras são ridicularizadas pela sua
lascívia e experiência. Os trovadores Afonso Eanes de Coton e Fernando d’Esquio
redigiram duas cantigas obscenas de escárnio e maldizer que nos dão uma visão curiosa
acerca das religiosas e das suas vidas, embora sejam cantigas do século XIII. A primeira
fala-nos de uma abadessa muito experimentada e a segunda cantiga faz referência a
instrumentos de masturbação usados nos conventos:
“Abadessa, oí dizer / que érades mui sabedor /(...) / Ca me fazen en sabedor / De
vós que avedes bom sem / De foder e de todo bem; / Ensinade-me mais”58

“A vós, Dona abadessa / de min, Don Fernand’Esquio, / estas doas vos envio
/por que sei que sodes essa / dona que as merecedes: / quatro caralhos franceses, / e
dous aa prioressa.”59

56
Citado por João Luís Inglês Fontes, “A Pobre Vida no Feminino: o Caso das Galvoas de Évora” in O
Corpo e o Gesto na Civilização Medieval. Lisboa: Edições Colibri, 2006, pág. 177
57
Gil Vicente também tece bastantes críticas ao clero, em particular às ordens mendicantes. Em obras
como a “Farsa dos Físicos” de 1512, o “Auto da Barca do Inferno” de 1517, a “Comédia de Rubena” de
1521 e por último, o “Auto da Feira” de 1527, as situações giram quase sempre em torno da exposição e
critica de hábitos e costumes sexuais do clero e na contradição de que os mesmos pregam uma coisa e
vivem outra.
58
Afonso Eanes do Coton citado por Orlando Neves, Cantigas obscenas de escárnio e maldizer. Lisboa:
Editorial Notícias, 2004, pág. 22

22
Na opinião de Mattoso: “Os jograis revelam também uma efectiva atracção por
temas em que o sexo se alia à religião. Não só para troçarem de clérigos e de freiras
que pregam a castidade e são os primeiros a infringi-la, mas também para deixarem
escapar expressões ou referências a situações blasfematórias. Era, talvez, uma forma
de vingança contra uma Igreja excessivamente repressiva do impulso sexual e pouco
condescendente para com formas mais populares de religiosidade.”60

3.3. O quotidiano feminino


As actividades desenvolvidas pelo povo no quotidiano foi um tema bastante
explorado na iluminura centro-europeia medieval e tardo medieval. Ao invés, tais temas
não vão ter tanta popularidade nas gárgulas, resumindo-se a casos muito pontuais, como
a matança do porco, na Matriz de Vila do Conde. Mais uma vez, no Convento de Nossa
Senhora da Vitória, Batalha (séculos XV/XVI) temos uma gárgula mulher que segura
um fuso na mão esquerda (tem a outra mão partida) e está sentada (parece-nos uma
cópia de restauro). Os trabalhos domésticos da exclusiva responsabilidade da mulher
como o fiar, tecer, coser, bordar são valorizados socialmente, cultivados no seio das
famílias, que os transmitem geracionalmente.
Esse enaltecimento destas actividades acontece porque, para além da sua
vocação utilitária, a sociedade medieval encarava-as como ocupações que mobilizavam
as mulheres para um tipo de actividade ocupacional que tendia a anular os maus
pensamentos, neutralizando-os.61 O “Castelo Perigoso” alerta para o pecado da
preguiça: “Per preguiça caae homem em oçyosidade, que he causa de muytos malles,
porque quando hom
.”62
Esta figuração da mulher insere-se no mesmo espírito tradicional que os
provérbios populares, que valorizam a boa esposa, a mulher recatada no seu lar e ciente
das suas responsabilidades e afazeres: “A mulher que muito mira, pouco fia.”63 Não
esqueçamos que a preguiça também é um pecado grave, por esse motivo a mulher

59
Fernand’Esquio citado por Orlando Neves, Op. Cit. pág. 43
60
José Mattoso, Naquele Tempo – Ensaios de História Medieval. Lisboa: Círculo de Leitores, Colecção
Obras Completas, n.º 1, 2001, pág. 36
61
Christiane Klapich – Zuber, “A Mulher e a Família” in Jacques Le Goff (dir.), O Homem Medieval.
Lisboa: Editorial Presença, 1989
62
Castelo Perigoso, pág. 103
63
José Mattoso, Fragmentos de uma composição medieval. O Essencial sobre a formação da
nacionalidade. O essencial sobre a cultura medieval portuguesa. O essencial sobre os provérbios
medievais portugueses. Lisboa: Círculo de Leitores, Colecção Obras Completas, n.º 6, 2001, pág.313

23
diligente e zelosa é enaltecida. A gárgula retrata a mulher numa actividade quotidiana,
indispensável para a economia doméstica, mas sem confundir territórios, pois a Idade
Média também nos deixou um adágio que nos fala da inversão de papéis entre homem e
mulher, o que perturba a ordem estabelecida: “Mal vai a casa onde a roca manda a
espada.”64
Manuela Braga diz, acerca da representação da mulher com a roca e o fuso nos
cadeirais “Tradicionalmente, a castidade feminina era representada pela imagem de
uma jovem sentada a fiar com a roca e o fuso.”65 Um tipo de cenários das cantigas de
amigo acontece em contexto doméstico, onde a rapariga se encontra a fiar, atestando a
sua boa índole.66
No teatro vicentino, o acto de fiar é encarado pelo autor como uma actividade
detestada pela mulher, atitude muito bem expressa por Inês Pereira, que apelida o lavrar
de “cativeiro” revelando bem a ideia de servidão e clausura que lhe estão associados:
“Renego deste lavrar / e do primeiro que o usou. / Ao diabo eu o dou /Que tão mau é de
aturar”67

3.4. A jogralesa ou soldadeira


Já aqui nos referimos às cantigas de escárnio e maldizer como importante fonte
textual para a compreensão e interpretação de certos temas. A propósito da próxima
gárgula vamos estabelecer novamente uma ponte entre este corpus literário e as
gárgulas, em particular nas cantigas obscenas, onde as jogralesas são as mais criticadas,
quer pelo seu desejo sexual, pela experiência, quer por aspectos mais burlescos ou
grotescos. Mais uma vez em Nossa Senhora da Vitória (século XIV), nas Capelas
Imperfeitas, temos uma gárgula mulher, representada até ao joelho, que enverga um
vestido e parece tanger uma viola pequena. Como está de boca aberta, parece entoar
uma cantiga: é uma representação de uma jogralesa ou soldadeira e articula-se com uma
outra gárgula que representa um jogral, também a tanger uma viola.

64
José Mattoso, Fragmentos de uma composição medieval, pág. 315
65
Maria Manuela Braga, “A Marginália satírica nos cadeirais do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e da
Sé do Funchal”. In Medievalista, Ano 1, nº 1, 2005 (Revista do Instituto de Estudos Medievais da
Faculdade de Ciências Socais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, consultável em:
www.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA1/index.htm
66
António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora, 1979,
pág. 52
67
Op. Cit. pág. 123

24
Em relação à gárgula, as soldadeiras68 ou jogralesas eram mulheres mais ou
menos nómadas que cantavam, dançavam e tocavam, cujas vidas estavam recheadas de
episódios indecorosos, embora nunca se confundindo com as prostitutas. Podiam
frequentar as cortes (quer a régia, quer as senhoriais) e acompanhavam os jograis ou
segréis. Nas cantigas de escárnio e maldizer, as jogralesas não são enaltecidas pelas suas
qualidades artísticas, mas por aspectos da sua vida sexual e por outros episódios
caricatos. Segundo Mattoso: “os jograis e soldadeiras formariam o grupo mais
insensível à moral clerical.”69 O par jogral e jogralesa são um tema comum na escultura
do românico, embora o instrumento musical seja vulgarmente uma viola de arco, o que
não é o caso70.
No “Orto do Esposo” o homem é aconselhado a tapar os ouvidos, pois é através
dele que se ouvem as coisas vãs e as mentiras71, as falas dos louvaminheiros e os
cantares femininos: “deue o home tenperar e afastar seu ouuydo dos cantares louçããos
e da fala das molheres, ca a molher cantadeyra he capellãã do diaboo.”72

Conclusões/Notas finais

Analisámos aqui a presença feminina nas gárgulas em edifícios religiosos,


circunscritas aos séculos XV e XVI. O número reduzido de vezes em que a mulher
aparece representada é só por si um dado significativo, pois situa a mulher numa escala
de importância em relação aos temas presentes nas gárgulas. Assim, em geral, o
bestiário domina as representações, seguido pelo homem. A mulher está em último
lugar. Esta relação é um contributo imprescindível para a elaboração de uma dialéctica
homem/mulher em contexto tardo-medieval, quer do ponto de vista social, quer
artístico.
Não nos parece que a presença de gárgulas tenha sido condenada ou
secundarizada pela igreja ou pelos seus membros. Nem tão pouco as gárgulas
correspondem à ideia de fuga do controlo iconográfico, de marginália. Bem pelo
contrário: como vimos, uma boa percentagem de gárgulas funciona como exempla,

68
O termo soldadeira provém do seu pagamento, dito soldo.
69
José Mattoso, Naquele Tempo – Ensaios de História Medieval. Lisboa: Círculo de Leitores, Colecção
Obras Completas, n.º 1, 2001, pág. 20
70
Luís Correia de Sousa, “A Iconografia musical na escultura Românica em Portugal”. In Medievalista,
Ano 1, nº 1, 2005: www.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA1/index.htm
71
Orto do Esposo, pág. 158
72
Orto do Esposo, pág. 161

25
tendo uma grande importância pedagógica e significativa na leitura simbólica do
edifício como um todo, em perfeita actualização com o espírito da época.
Em termos temáticos, analisámos 19 casos em que 14 são representações da
mulher enquanto presentificação da luxúria: a luxúria foi o único pecado representado (a
mulher com o fuso parece representar uma virtude, por oposição à preguiça).
Perguntámos pela confirmação de alguns temas associados à mulher.
Verificámos que a ligação entre a luxúria e a mulher se constituem como um estereótipo
face às representações no feminino. As gárgulas que representam a luxúria pertencem
então a uma noção estereotipada que a sociedade tem da sua condição e que decorre, em
larga margem, de um modelo social. Na sua origem estão vários factores: preconceitos
de ordem sexual, preconceitos de ordem moral e acerca do papel da mulher no
quotidiano. Na maioria os preconceitos decorreram de mitificações acerca do seu corpo,
que geraram outras mitificações. Tudo isto suscitou representações sociais que
mantiveram alguma estabilidade em termos cronológicos.
As gárgulas analisadas também reflectem como as diferenciações sociais se
interligam com representações plásticas mais ou menos rígidas, produzindo modelos.
Esses modelos não só decorrem mas também produzem um processo de construção da
identidade social que diferenciou os dois sexos e construiu sistemas simbólicos comuns,
mas com diferenças. Esta visão é decorrente em larga margem, do conceito que os
membros do clero têm da mulher: um dos textos mais analisados por nós neste breve
estudo foi o “Orto do Esposo”, que espelha bem a relação entre a vida de clausura dos
monges, ascética e rigorista, em paralelo com uma repúdia à mulher e ao seu corpo,
encarnação do demónio e do pecado. Ao rejeitar o corpo e a carne, o monge rejeita a sua
ligação com o outro, em particular com o feminino, não se coibindo de lhe negar
alguma dignidade. E o facto do clero negar e rejeitar a mulher não faz com que ela se
afaste do seu discurso, mas pelo contrário: a mulher está sempre presente, ou por
encarnar o pecado, ou por se constituir como uma pecadora arrependida e no caminho
da salvação.
O principal tema é, sem dúvida, a mulher pecadora: que tenta o homem, que o
seduz. Até aqui está justificada a sua ausência da grande maioria dos espaços
monásticos masculinos, mas também justifica a sua presença fugaz nos mesmos. E dos
femininos? Só em Santa Clara do Porto, Nossa Senhora da Conceição, em Beja e em
Santa Maria de Almoster coincide o tema da mulher com o espaço conventual do ramo
feminino. Pensariam os religiosos e os artistas que os exempla femininos eram

26
prescindíveis, ou porque as freiras deles não precisam, ou porque os achavam inúteis,
não fazendo chegar a sua mensagem? Cremos que a resposta está na freira que dá à luz
e na sua postura, de mãos postas: constitui um modelo de arrependimento do pecado e,
por isso, de grande eficácia pedagógica junto do seu público-alvo, constituído pelo povo
e pelas freiras. Outra ideia que as gárgulas enfatizam é a confissão: a sua exibição para a
comunidade constitui uma metáfora da confissão. A confissão é imprescindível para
todos os crentes: ao fazê-lo e ao receber a penitência devida fica-se emendado (desde
que se cumpra a penitência, claro).
Falámos aqui de algumas fontes escritas e de que modos tiveram influência nas
temáticas escolhidas para as gárgulas. Mas não encaremos as gárgulas como um reflexo
formal tout court dos mesmos: digamos que as gárgulas têm muitos aspectos em comum
com os textos, o que mostra uma permanência, em termos culturais, de um ou mais
modelos para a mulher, difundidos entre o meio religioso e o contexto laico dos artistas
que as produziram.
As fontes textuais laicas, como as cantigas de escárnio e maldizer deram-nos
uma outra visão da mulher, não oposta, mas complementar, pois a sua vocação
luxuriosa não é condenada enquanto pecado, mas pelo lado burlesco ou caricato. E
lembremo-nos que a Idade Média é uma época onde se verifica em muitos aspectos,
uma diferença significativa entre a teoria e a prática, entre aquilo que a igreja apresenta
como modelo a seguir e aquilo que acontece no quotidiano.
Concluímos com uma observação Mattoso, acerca da norma e da prática, que
“podem conviver na mesma sociedade e para o mesmo grupo social o discurso que
condena a carne e faz da mulher o instrumento privilegiado do demónio, e o discurso
trovadoresco, que faz a apologia do sexo nas cantigas de escárnio e cultiva o erotismo
nas de amor e de amigo.”73

73
José Mattoso, Naquele Tempo – Ensaios de História Medieval. Lisboa: Círculo de Leitores, Colecção
Obras Completas, n.º 1, 2001, pág. 23

27

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