Você está na página 1de 2

MEMÓRIAS DE...

SANTA SENHORINHA DE BASTO

O espantoso prodígio que salvou o futuro D. Afonso II

Em plena escrita do romance ‘A Maldição de Afonso II’, a pesquisa sobre a


doença que se apoderou do futuro rei, ainda infante, levou-me a Santa
Senhorinha de Basto, uma freguesia situada na orla ocidental do concelho de
Cabeceiras de Basto, na fronteira com Celorico, contando menos de mil
habitantes.
Há pouco mais de oitocentos anos, andava D. Sancho I desesperado, sem saber
como acudir a uma estranha maleita do filho. Não havia Físico que soubesse, ao
certo, identificá-la e muito menos curá-la. Então, munido de grande fé na dita
Santa, para Terras de Basto se dirigiu, sendo delas tenente D. Gonçalo Mendes,
um dos validos que naquele reinado elevou bem alto a linhagem dos Sousa. Não
resulta concludente como é que o rei chegou ao conhecimento da Santa ou quem
o aconselhou. Mas o facto é que lá foi ajoelhar-se aos pés do seu túmulo e fazer-
lhe uma novena, prometendo-lhe a concessão de um couto, o qual delimitou por
seu próprio pé. Ora, como existe registo comprovativo dessa doação (Rerum
Memorabilium Ecclesiae Bracarensis – tomus primus, fl. 108, doc. 72), datado de
29 de maio de 1200, conseguimos saber que o infante fizera quinze anos e que
este será um milagre confirmado. Existe também um relato de Frei Leão de S.
Tomás (Beneditina Lusitana, t.II, 180a) em que se lê que, ainda durante a novena,
foram-lhe trazidas notícias de que o herdeiro havia melhorado e se encontrava
livre de perigo.
Na visita à igreja pude observar o túmulo sagrado, ainda embutido na parede a
meia altura, como narra a tradição. E foi assim que imaginei D. Sancho I nessa
peregrinação para salvação do seu primogénito varão: “Sob o toque das cornetas
reais, o rei desmontou e entrou no templo, dirigindo-se para a primeira capela
do lado do Evangelho. Aí estavam três túmulos: o da virgem consagrada
Senhorinha, o de São Gervásio, seu irmão, e o de Santa Godinha, sua tia, todos
guarnecidos de belas letras douradas. Levantado do solo, a meia altura, o
sarcófago da santa estava embutido na parede, rodeado de flores e ex-votos
levados pelos fiéis. Cumprindo a tradição, tal como um vulgar peregrino, o
monarca deitou-se sobre as lajes do chão e arrastou-se até debaixo do túmulo. O
mordomo-mor estendeu-lhe um graveto de pinheiro com que se pôs a esgravatar
os interstícios entre as pedras. Havia já um pequeno buraco resultante de muitas
das escavações anteriores. A terra que assim conseguiu foi apanhada para um
vaso e imediatamente mandada para Touguinhó. Os boticários elaborariam com
ela um polvorento remédio que haveria de curar o príncipe.” Desse modo terá o
futuro Afonso II escapado da morte, se bem que não se tivesse livrado do mal
que o perseguiu por toda a sua vida e sobre o qual não existe a certeza de que
tenha sido lepra ou outra, então, desconhecida doença que provocasse alterações
na pele.
Senhorinha terá nascido no ano de 924, talvez em Vieira do Minho, lugar de Attei
(ou Athey), povoação antiga sobre a ribeira de Baça, onde agora é Cunhas, local
de que a família detinha o senhorio. Era filha mais nova do conde Dom Avulfo,
conde de Vieira (e também de Viseu, segundo alguns), o 3º senhor da casa de
Sousa. Órfã à nascença, e porque já manifestava grande santidade, o pai
entregou-a aos cuidados da tia, Santa Godinha, que era abadessa do mosteiro
local da Ordem de São Bento.
Dizem que o seu nome era Domitila (ou Genoveva), mas que o pai lhe chamava
‘sua senhorinha’. Teria como irmão Gervásio, que parece ter seguido o caminho
da criminalidade, espoliando riquezas alheias, tendo sido reconduzido ao Bem
por interferência da devota irmã. Terá professado aos quinze anos e, quando a
tia morreu, substituiu-a na liderança do mosteiro. A partir daí, fala-se que
realizou muitos prodígios: fazer aparecer pão, transformar a água em vinho,
curar cegos, fazer calar as rãs que não a deixavam dormir... Faleceu a 22 de abril
de 952, com 58 anos de idade. No tempo em que o Sumo Pontífice não tinha
ainda chamado a si a autoridade de canonizar, foi elevada à santidade pelo
arcebispo de Braga, Dom Paio Mendes. As fontes acrescentam que foi sepultada
na igreja do mosteiro, entre os túmulos de Gervásio e de Godinha, mais ou menos
como ainda hoje se encontra. O seu túmulo transformou-se num centro de
peregrinação durante os séculos seguintes. D. Afonso III confirmou o couto e
ampliou os privilégios, como consta das Inquirições de 1258, e o rei D. Pedro,
estanciando em Valença do Minho a 15 de setembro de 1360, fez doação à igreja
do padroado que detinha em Santa Maria do Salto, no Barroso (PT-TT-CHR-E-
001-0001_m0096.TIF), tendo D. Inês de Castro erigido uma capela a S. Gervásio.
Hoje pouco lembrada, a não ser pelas gentes de Vieira e de Basto que todos os
anos a celebram a 22 de abril, a sua bonita e bem conservada igreja merece uma
visita. As fotos que acompanham este singelo artigo, foram tiradas durante a
minha visita.
©Maria Antonieta Costa, dezembro 2020

Você também pode gostar