Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Domínio público.
Folha de rosto da edição de 1809
das Trovas do Bandarra.
Mas podemos nos perguntar de onde Bandarra tirou tais profecias. Ele mesmo
nos responde nas duas últimas trovas do “Sonho terceiro”:
Muitos podem responder Logo quero responder,
e dizer: sem me deter:
Com que prova o sapateiro “Se lerdes as profecias
fazer isto verdadeiro, de Daniel e Jeremias,
ou como isto pode ser? por Esdras o podeis ver”. (BANDARRA apud
AZEVEDO, 1984, p. 11)
58
A gênese do mito de D. Sebastião
O mito
Domínio público.
O rei D. Sebastião (1554-1578) foi o
último rei da dinastia de Avis-Beja. Sua his-
tória é relativamente simples: único filho de
D. João Manuel, que morrera antes mesmo
de o filho nascer, tornou-se rei com apenas
três anos de idade, tendo sua avó e um tio
assumido a regência do trono enquanto ele
era ainda uma criança. Cresceu com o estig-
ma de ser o único a poder perpetuar a sua
dinastia e, em função disso, ganhou o codi-
nome de o Desejado. D. Sebastião, rei de Portugal.
Os reis que antecederam seu pai, D. Manuel e D. João III, portanto seu avô e
seu bisavô, reinaram no período áureo dos descobrimentos, quando Vasco da
Gama desvendou o caminho marítimo para as Índias, os portugueses chegaram
ao Brasil, a China e ao Japão. Enfim, os seus antepassados diretos viveram reina-
dos de glória e fartura.
59
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
60
A gênese do mito de D. Sebastião
É nesse contexto messiânico que, após a morte de D. João IV, será esperada
sua ressurreição. Na obra do padre Antônio Vieira intitulada De Profecia e Inquisi-
ção, na parte II das “Profecias”, subintitulada “Esperanças de Portugal, quinto im-
pério do mundo, primeira e segunda vida de el-rei D. João o quarto. Escritas por
Gonsalianes Bandarra, e comentadas pelo padre Antônio Vieira da Companhia
de Jesus, e remetidas pelo dito ao bispo do Japão, o Padre André Fernandes”,
assim se diz:
Leiam os curiosos todas as profecias do Bandarra, assim as que contêm os sucessos já passados,
como as que prometem os futuros, e em todas elas não acharão diferença individuante, sinal ou
qualidade pessoal alguma de monarca profetizado, mais que estas que aqui fielmente temos
referido, as quais todas são tão próprias da pessoa d’el-rei D. João o quarto, e lhe quadram todas
tão naturalmente, e sem violência, que bem se está vendo que a ele tinha diante dos olhos,
e não a outro, quem com cores tão vivas, e tão suas o retratava. Com que fica evidentemente
mostrado e demonstrado, que o senhor rei D. João o quarto que está na sepultura, é o rei fatal,
de que em todas as suas profecias fala Bandarra, assim das que já se cumpriram, como das que
hão de suceder ainda. E este mesmo rei está hoje morto e sepultado, e não é amor e saudade,
senão razão e obrigação do entendimento, crer e esperar que há de ressuscitar. (VIEIRA, 2009)
O que temos aqui é uma clara interpretação das profecias de Bandarra não
mais associadas a D. Sebastião e sim a D. João IV. Vieira será um dos grandes de-
fensores da ideia de que seria D. João IV e não D. Sebastião que retornaria para
instituir o quinto império. Este seria o último dos impérios na terra antes do juízo
61
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
final, um império cristão que teria em Portugal seu cerne e na figura de D. João
IV, seu rei. E assim argumenta, no mesmo texto acima citado, contra a hipótese
de ser D. Sebastião o rei encoberto:
E já que falamos ou tocamos nestas velhices que tanto duram, só digo a vossa senhoria que
o Bandarra não falou uma só palavra em el-rei D. Sebastião, antes todas as suas desfazem
esta esperança; porque o rei que descreve é todo composto de propriedades contrárias que
implicam totalmente com el-rei D. Sebastião, e senão façamos outra individuação às avessas
da passada.
El-rei de que tratamos chama-lhe Bandarra, rei novo: el-rei D. Sebastião é rei tão velho que
nascido de três anos começou a ser rei. Diz Bandarra que o seu nome é João. El-Rei D. Sebastião
tem outro nome muito diferente. Este rei chama-lhe Bandarra infante: el-rei D. Sebastião nunca
foi infante, porque nasceu príncipe. Este rei diz Bandarra que é bem andante e feliz: el-rei D.
Sebastião infelicíssimo, e a causa de todas as nossas infelicidades. A este diz Bandarra saia, saia:
a el-rei D. Sebastião dizia todo o povo e reino não saia, não saia. Este rei diz Bandarra que não é
de casta goleima ou da casa de Áustria: el-rei D. Sebastião tinha todo o sangue de Carlos V. Este
rei diz Bandarra que é só primo e parente de reis: el-rei D. Sebastião era neto de reis por seus
pais, e de imperadores por sua mãe. Este rei diz Bandarra, que tem um irmão bom capitão: el-rei
D. Sebastião nem teve, e não pode ter irmão; porque nem o príncipe D. João, seu pai, nem a
princesa D. Joana, sua mãe, tiveram outro filho. Este diz Bandarra que é das terras da comarca:
el-rei D. Sebastião não é da comarca, porque nasceu em Lisboa. Este rei diz Bandarra que havia
de ter guerra com Castela no princípio do seu reinado: el-rei D. Sebastião nunca teve guerra com
Castela. Este rei diz Bandarra que da justiça se preza: el-rei D. Sebastião prezava-se das forças e
valentia. Este rei diz Bandarra, que até certo tempo lhe não hão de dar a mão os pontífices. El-rei
D. Sebastião teve grandes favores dos pontífices do seu tempo Paulo IV, Pios IV e V. Este rei
diz Bandarra que lhe não achou nenhum senão: el-rei D. Sebastião se não fora a África não nos
perdera: veja-se se foi grande senão. Finalmente, porque nos não cansemos mais em prova de
coisa tão clara, tirado somente ser el-rei D. Sebastião semente d’el-Rei D. Fernando, nenhuma coisa
diz Bandarra em todos os textos dos sinais ou qualidades do rei que descreve que possam
acomodar, nem de muito longe a el-rei D. Sebastião. (VIEIRA, 2009)
Durante o próprio reinado de D. João IV, sua ação já era tomada de forma
profética, como se tudo que fizesse já estivesse escrito. Esse rei que trouxe de
volta a soberania portuguesa sempre esteve envolto em uma perspectiva his-
tórica de viés utópico segundo a qual Portugal cumpriria um grande destino na
cristandade.
62
A gênese do mito de D. Sebastião
Para João Francisco Marques, a “utopia era, pois, um poderoso motor para
impulsionar a mística da luta pela consolidação da recuperada autonomia. Na
verdade, o advento do quinto império seria o corolário da guerra contra Castela e
do reatar da expansão ultramarina de quinhentos” (MARQUES, 2009).
O fato é que no plano simbólico D. Sebastião é deposto por Vieira, mas conti-
nuará a ter seus defensores e cultuadores que, especialmente nos séculos XIX e
XX, irão revitalizar o mito. Poetas como João de Lemos (1819-1890), Luis Augusto
Palmeirim (1825-1893), Guerra Junqueiro (1850-1923), Luís de Magalhães (1859-
1935), António Nobre (1867-1900), Afonso Lopes Vieira (1878-1946), Teixeira de
Pascoaes (1877-1952), Antônio Sardinha (1888-1925) e Fernando Pessoa (1888-
1935), entre outros, retomarão o mito de D. Sebastião, identificando ali um ar-
quétipo privilegiado para promover uma espécie de renascimento da cultura e
da identidade portuguesas.
Vale notar que também no Brasil o mito de D. Sebastião foi cultivado, geral-
mente ligado a vários movimentos messiânicos ocorridos no país. Ainda hoje,
muitos escritores portugueses e mesmo brasileiros retomam literariamente o
mito de D. Sebastião em abordagens em geral bastante originais.
Esse é um mecanismo que muito tem a ver com a história de Portugal, pois
grande e imperialista no século XVI, aquela nação perdeu seu lugar de prestígio
no cenário europeu e passou a ocupar um lugar cultural e economicamente pe-
riférico no continente a partir dos séculos XVII e XVIII, assim permanecendo até
sua inserção no que hoje conhecemos como União Europeia.
Portanto, durante o século XIX e por quase todo o século XX, as elites de Por-
tugal estiveram à margem dos grandes acontecimentos do continente, sempre
63
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Texto complementar
O texto abaixo, de autoria do cordelista Luar do Conselheiro (Aidner Mendez
Neves), vem demonstrar como o sebastianismo ainda vive no imaginário da lite-
ratura de cordel brasileira. Antecedendo o texto, aparece a seguinte nota:
64
A gênese do mito de D. Sebastião
65
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
66
A gênese do mito de D. Sebastião
67
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
68
A gênese do mito de D. Sebastião
Dicas de estudo
QUADROS, Antônio. Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista. Lisboa: Guima-
rães Editores, 2001.
Estudos literários
1. Que relação podemos estabelecer entre as profecias de Bandarra e o mito
sebastianista?
69
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
2. Por que o padre Antônio Vieira rejeita D. Sebastião como o Encoberto e coloca
D. João IV em seu lugar?
70
A gênese do mito de D. Sebastião
71