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GARMES, Hélder e SIQUEIRA, José Carlos. Cultura e memória na literatura portuguesa.

Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2009.

A gênese do mito de D. Sebastião

Domínio público.
Folha de rosto da edição de 1809
das Trovas do Bandarra.

As profecias que antecedem o mito


Com uma vela na mão, caminhando cabisbaixo, Antônio Gonçalves
Annes Bandarra é mais um que compõe uma imensa fila de homens e
mulheres com velas na mão, considerados infiéis pela Santa Igreja. Esta-
mos em 23 de outubro de 1541, em Lisboa, em meio a um auto-de-fé pro-
movido, a cerimônia pública em que eram proclamadas e também exe-
cutadas as sentenças da Santa Inquisição. Muitos dos que ali estão serão
queimados vivos em fogueiras. Caso admitam sua culpa e peçam perdão,
poderão ter o privilégio de ser asfixiados pelos carrascos antes de o fogo
ser aceso. Bandarra, felizmente, só precisa carregar sua vela e acompa-
nhar todo o auto-de-fé, pois sua culpa foi considerada amena: escrevera
algumas trovas de teor messiânico que envolviam lugares sagrados para
a santa igreja e isso, segundo aquela instituição, comprometia sua fideli-
dade à fé cristã.

Terminado o auto, Bandarra voltou para Trancoso, sua aldeia de origem,


e retomou sua atividade de sapateiro. Alguns anos depois, em 1545 ou
1556, não se sabe ao certo, morreu. Suas trovas, no entanto, permanecem
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vivas até hoje e cumpriram na história de Portugal um papel certamente jamais


imaginado pelo sapateiro de Trancoso.

Em seus versos, Bandarra profetizava a vinda de um rei que ganharia a simpa-


tia de todos os outros reis, uma vez que estes ficariam felizes em fazer dele seu
imperador. Sua missão seria a de expulsar definitivamente os mouros das terras
cristãs. Leia abaixo as estrofes 70, 71, 72 e 75 de suas trovas.
Portugal tem a bandeira Este Rei tão excelente,
Com cinco Quinas no meio, De quem tomei minha teima,
E segundo vejo, e creio, Não é de casa Goleima,
Este é a cabeceira, Mas de Reis primo e parente.
E porá sua cimeira, Vem de mui alta semente
Que em Calvário lhe foi dada, De todos quatro costados.
E será Rei de manada De Levante até ao Poente.
Que vem de longa carreira. Todos Reis de primos grados.

Este Rei tem tal nobreza, [...]


Qual eu nunca vi em Rei:
Este guarda bem a lei Já o Leão é experto
Da justiça, e da grandeza. Mui alerto.
Senhoreia Sua alteza Já acordou, anda caminho.
Todos os portos, e viagens, Tirará cedo do ninho
Porque é Rei das passagens O porco, é mui certo.
Do mar, e sua riqueza Fugirá para o Deserto.
Do Leão, o seu bramido
Demonstra que vai ferido
Desse bom Rei Encoberto.
(BANDARRA apud QUADROS, 2001, p. 25-26)

As trovas ainda profetizam que o novo monarca conquistará toda a África.


A designação de rei encoberto se faz porque a sua identidade ainda precisa ser
revelada, o que transforma as trovas em uma espécie de esfinge, de charada que
é preciso decifrar para se saber quem seria, de fato, o rei vindouro.

Mas podemos nos perguntar de onde Bandarra tirou tais profecias. Ele mesmo
nos responde nas duas últimas trovas do “Sonho terceiro”:
Muitos podem responder Logo quero responder,
e dizer: sem me deter:
Com que prova o sapateiro “Se lerdes as profecias
fazer isto verdadeiro, de Daniel e Jeremias,
ou como isto pode ser? por Esdras o podeis ver”. (BANDARRA apud
AZEVEDO, 1984, p. 11)

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Portanto, toda sua profecia está fundamentada nas escrituras sagradas (a


Bíblia), o que dava grande credibilidade aos seus escritos, uma vez que naquela
altura a Igreja desfrutava grande força em todas as instâncias e junto aos reinos.
A credibilidade das escrituras foi, por sinal, o que colocou Bandarra, como vimos,
de vela na mão em um auto-de-fé, pois o sapateiro em algum nível aventurou-se
onde não devia, já que interpretar tais textos era tarefa exclusiva dos sacerdotes,
segundo a Igreja de Roma.

O fato é que as profecias de Bandarra foram retomadas sistematicamente no


decorrer da história literária de Portugal e se ligaram de modo indelével à figura
de D. Sebastião, gerando o mito sebastianista.

O mito

Domínio público.
O rei D. Sebastião (1554-1578) foi o
último rei da dinastia de Avis-Beja. Sua his-
tória é relativamente simples: único filho de
D. João Manuel, que morrera antes mesmo
de o filho nascer, tornou-se rei com apenas
três anos de idade, tendo sua avó e um tio
assumido a regência do trono enquanto ele
era ainda uma criança. Cresceu com o estig-
ma de ser o único a poder perpetuar a sua
dinastia e, em função disso, ganhou o codi-
nome de o Desejado. D. Sebastião, rei de Portugal.

Os reis que antecederam seu pai, D. Manuel e D. João III, portanto seu avô e
seu bisavô, reinaram no período áureo dos descobrimentos, quando Vasco da
Gama desvendou o caminho marítimo para as Índias, os portugueses chegaram
ao Brasil, a China e ao Japão. Enfim, os seus antepassados diretos viveram reina-
dos de glória e fartura.

Quando finalmente – em 1568, aos 14 anos de idade – D. Sebastião assumiu


o trono, a situação política e econômica de Portugal não era mais a mesma: o co-
mércio marítimo com a África e com o Oriente já começava a sofrer com o cons-
tante ataque de piratas e com uma incipiente concorrência de outras nações eu-
ropeias, como a Espanha, a Inglaterra e a França, que também investiam pesado
nas técnicas de navegação.

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Particularmente, D. Sebastião era muito ligado à Igreja de Roma. Sob a influ-


ência de seu aio Aleixo de Meneses e de seu mestre, o padre Luis Gonçalves da
Câmara, incorporou o espírito da Contrarreforma que grassava após o Concílio de
Trento (1545-1563). Via nos hereges o maior mal para o mundo cristão e, portan-
to, para o progresso do reino português. Tinha como principal projeto político o
combate aos mouros, em especial àqueles que se encontravam no norte da África,
do outro lado do mar Mediterrâneo. Nesse momento, os portugueses manti-
nham algumas possessões na costa africana, como Ceuta (conquistada em 1415)
ou Tanger (tomada em 1471), mas haviam perdido, entre outras, Alcácer Ceguer
(1549) e Arzila (1550), e perderiam Mazagão em 1569. É bom lembrar que o com-
bate aos muçulmanos na África não tinha só motivação religiosa, já que estava
ligado também aos avanços turcos e árabes no oceano Índico, que colocavam
em causa a presença portuguesa na Índia: garantir as posições na costa norte-
-africana era uma forma de compensar as possíveis perdas no Índico.

D. Sebastião concebeu uma grande expedição que em 1578 enfrentou os


exércitos muçulmanos em Marrocos, mais especificamente em Alcácer Quibir,
sofrendo estrondosa derrota. Nessa batalha, morreu o jovem rei D. Sebastião,
aos 24 anos de idade. Seu tio, o cardeal Henrique de Évora (1512-1580), assumiu
o trono, mas não pôde permanecer no posto e, na lógica do processo sucessó-
rio, a coroa foi entregue ao rei da Espanha, D. Filipe II (1527-1598), e Portugal,
portanto, perdia sua autonomia de Estado e passava a fazer parte do reino espa-
nhol. Tal situação perdurou até que em 1640, a partir de um golpe de Estado, os
portugueses conseguiram reaver sua autonomia e colocar no trono uma nova
dinastia, a dos Braganças, na figura de D. João IV, duque de Bragança.

D. Sebastião foi, portanto, o último rei antes do período de 60 anos em que,


com sua autonomia perdida, Portugal esteve sob domínio da Espanha. Segundo
a tradição, seu corpo não foi encontrado depois da batalha de Alcácer Quibir, o
que passou a ser motivo de especulação popular. Hoje, qualquer um pode visitar
seu túmulo no Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa, mas muitos ainda dizem que
o corpo ali sepultado não é o de D. Sebastião. Porém, o que interessa saber é que,
nos anos que se seguiram à batalha, surgiram boatos de que ele não tinha morri-
do e que voltaria para restabelecer a autonomia portuguesa. É desse modo que
a história do suposto desaparecimento desse rei se agrega às profecias que Ban-
darra fizera anos antes. D. Sebastião passa a ser o rei de que falava o sapateiro de
Trancoso, isto é, o Encoberto, aquele que viria para salvar a pátria portuguesa do
jugo espanhol, que passava o ocupar o lugar do mouro dos textos de Bandarra.

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Além do codinome de Desejado, agora D. Sebastião também passava a ser


considerado o Encoberto.

O quinto império e a deposição de D. Sebastião


Após os 60 anos de perda de autonomia (anos que ficaram conhecidos como
período Filipino em razão de os reis da Espanha dessa época terem sempre o
mesmo nome de Filipe), Portugal retomou sua identidade pátria na figura de João
IV (1604-1656), que reinou de 1640 até sua morte, em 1656. Sua primeira atitude
foi reorganizar as forças militares e reforçar as fronteiras, além de atuar diploma-
ticamente no intuito de se fazer reconhecer junto às cortes da Europa. Também
procurou negociar acordos financeiros e militares, bem como retomar as rédeas
dos espaços coloniais na Ásia, África e América. Ao lado do esforço de recolocar
em suas mãos o destino do reino, cumpria a tarefa de se fazer legitimar no plano
das cortes. Nesse esforço, muitos daqueles que o apoiaram passaram a ver em sua
figura o novo Encoberto, depondo D. Sebastião desse trono simbólico.

É nesse contexto messiânico que, após a morte de D. João IV, será esperada
sua ressurreição. Na obra do padre Antônio Vieira intitulada De Profecia e Inquisi-
ção, na parte II das “Profecias”, subintitulada “Esperanças de Portugal, quinto im-
pério do mundo, primeira e segunda vida de el-rei D. João o quarto. Escritas por
Gonsalianes Bandarra, e comentadas pelo padre Antônio Vieira da Companhia
de Jesus, e remetidas pelo dito ao bispo do Japão, o Padre André Fernandes”,
assim se diz:

Leiam os curiosos todas as profecias do Bandarra, assim as que contêm os sucessos já passados,
como as que prometem os futuros, e em todas elas não acharão diferença individuante, sinal ou
qualidade pessoal alguma de monarca profetizado, mais que estas que aqui fielmente temos
referido, as quais todas são tão próprias da pessoa d’el-rei D. João o quarto, e lhe quadram todas
tão naturalmente, e sem violência, que bem se está vendo que a ele tinha diante dos olhos,
e não a outro, quem com cores tão vivas, e tão suas o retratava. Com que fica evidentemente
mostrado e demonstrado, que o senhor rei D. João o quarto que está na sepultura, é o rei fatal,
de que em todas as suas profecias fala Bandarra, assim das que já se cumpriram, como das que
hão de suceder ainda. E este mesmo rei está hoje morto e sepultado, e não é amor e saudade,
senão razão e obrigação do entendimento, crer e esperar que há de ressuscitar. (VIEIRA, 2009)

O que temos aqui é uma clara interpretação das profecias de Bandarra não
mais associadas a D. Sebastião e sim a D. João IV. Vieira será um dos grandes de-
fensores da ideia de que seria D. João IV e não D. Sebastião que retornaria para
instituir o quinto império. Este seria o último dos impérios na terra antes do juízo

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final, um império cristão que teria em Portugal seu cerne e na figura de D. João
IV, seu rei. E assim argumenta, no mesmo texto acima citado, contra a hipótese
de ser D. Sebastião o rei encoberto:

E já que falamos ou tocamos nestas velhices que tanto duram, só digo a vossa senhoria que
o Bandarra não falou uma só palavra em el-rei D. Sebastião, antes todas as suas desfazem
esta esperança; porque o rei que descreve é todo composto de propriedades contrárias que
implicam totalmente com el-rei D. Sebastião, e senão façamos outra individuação às avessas
da passada.

El-rei de que tratamos chama-lhe Bandarra, rei novo: el-rei D. Sebastião é rei tão velho que
nascido de três anos começou a ser rei. Diz Bandarra que o seu nome é João. El-Rei D. Sebastião
tem outro nome muito diferente. Este rei chama-lhe Bandarra infante: el-rei D. Sebastião nunca
foi infante, porque nasceu príncipe. Este rei diz Bandarra que é bem andante e feliz: el-rei D.
Sebastião infelicíssimo, e a causa de todas as nossas infelicidades. A este diz Bandarra saia, saia:
a el-rei D. Sebastião dizia todo o povo e reino não saia, não saia. Este rei diz Bandarra que não é
de casta goleima ou da casa de Áustria: el-rei D. Sebastião tinha todo o sangue de Carlos V. Este
rei diz Bandarra que é só primo e parente de reis: el-rei D. Sebastião era neto de reis por seus
pais, e de imperadores por sua mãe. Este rei diz Bandarra, que tem um irmão bom capitão: el-rei
D. Sebastião nem teve, e não pode ter irmão; porque nem o príncipe D. João, seu pai, nem a
princesa D. Joana, sua mãe, tiveram outro filho. Este diz Bandarra que é das terras da comarca:
el-rei D. Sebastião não é da comarca, porque nasceu em Lisboa. Este rei diz Bandarra que havia
de ter guerra com Castela no princípio do seu reinado: el-rei D. Sebastião nunca teve guerra com
Castela. Este rei diz Bandarra que da justiça se preza: el-rei D. Sebastião prezava-se das forças e
valentia. Este rei diz Bandarra, que até certo tempo lhe não hão de dar a mão os pontífices. El-rei
D. Sebastião teve grandes favores dos pontífices do seu tempo Paulo IV, Pios IV e V. Este rei
diz Bandarra que lhe não achou nenhum senão: el-rei D. Sebastião se não fora a África não nos
perdera: veja-se se foi grande senão. Finalmente, porque nos não cansemos mais em prova de
coisa tão clara, tirado somente ser el-rei D. Sebastião semente d’el-Rei D. Fernando, nenhuma coisa
diz Bandarra em todos os textos dos sinais ou qualidades do rei que descreve que possam
acomodar, nem de muito longe a el-rei D. Sebastião. (VIEIRA, 2009)

Ainda irá concluir notando que os sebastianistas chamam de profecias a


“papéis fingidos e modernos, feitos ao som do tempo, e desfeitos pelo mesmo
tempo, que em tudo tem mostrado o contrário” (VIEIRA, 2009). D. Sebastião é,
portanto, deposto do lugar do Encoberto e ali Vieira coloca D. João IV. Houve cer-
tamente razões históricas para que isso assim se desse. Segundo João Francisco
Marques, o messianismo atribuído à figura de D. João IV não foi uma invenção de
Vieira, mas sim algo recorrente em vários oradores daquele período.

Durante o próprio reinado de D. João IV, sua ação já era tomada de forma
profética, como se tudo que fizesse já estivesse escrito. Esse rei que trouxe de
volta a soberania portuguesa sempre esteve envolto em uma perspectiva his-
tórica de viés utópico segundo a qual Portugal cumpriria um grande destino na
cristandade.

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Para João Francisco Marques, a “utopia era, pois, um poderoso motor para
impulsionar a mística da luta pela consolidação da recuperada autonomia. Na
verdade, o advento do quinto império seria o corolário da guerra contra Castela e
do reatar da expansão ultramarina de quinhentos” (MARQUES, 2009).

O fato é que no plano simbólico D. Sebastião é deposto por Vieira, mas conti-
nuará a ter seus defensores e cultuadores que, especialmente nos séculos XIX e
XX, irão revitalizar o mito. Poetas como João de Lemos (1819-1890), Luis Augusto
Palmeirim (1825-1893), Guerra Junqueiro (1850-1923), Luís de Magalhães (1859-
1935), António Nobre (1867-1900), Afonso Lopes Vieira (1878-1946), Teixeira de
Pascoaes (1877-1952), Antônio Sardinha (1888-1925) e Fernando Pessoa (1888-
1935), entre outros, retomarão o mito de D. Sebastião, identificando ali um ar-
quétipo privilegiado para promover uma espécie de renascimento da cultura e
da identidade portuguesas.

Vale notar que também no Brasil o mito de D. Sebastião foi cultivado, geral-
mente ligado a vários movimentos messiânicos ocorridos no país. Ainda hoje,
muitos escritores portugueses e mesmo brasileiros retomam literariamente o
mito de D. Sebastião em abordagens em geral bastante originais.

O sentido do mito na cultura portuguesa


Como é fácil constatar, o mito sebastianista fundamenta-se em uma longa
tradição que, como vimos, remonta às profecias do sapateiro Bandarra. O mito
do rei encoberto é tão forte que pode mesmo ver substituída sua figura histórica
central (no caso, D. Sebastião) por uma outra que o momento histórico exige
(como ocorreu com D. João IV) sem que isso afete a estrutura do mito, isto é, a do
rei encoberto, que está escondido, ou desaparecido, ou morto, e que retornará,
que ressuscitará para instaurar então um império definitivo, português e cristão,
restaurando o que foi um dia perdido (a autonomia, a riqueza, a glória etc.).

Esse é um mecanismo que muito tem a ver com a história de Portugal, pois
grande e imperialista no século XVI, aquela nação perdeu seu lugar de prestígio
no cenário europeu e passou a ocupar um lugar cultural e economicamente pe-
riférico no continente a partir dos séculos XVII e XVIII, assim permanecendo até
sua inserção no que hoje conhecemos como União Europeia.

Portanto, durante o século XIX e por quase todo o século XX, as elites de Por-
tugal estiveram à margem dos grandes acontecimentos do continente, sempre

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se sentindo inferiorizadas em relação àquelas atuantes nos países europeus


mais proeminentes, como Inglaterra, França e Alemanha. Isso alimentou o mito
sebastianista, que apostava no fadado retorno da glória portuguesa vivida no
Renascimento. Neste aspecto, o mito cumpriu o importante papel de resolver no
plano simbólico e artístico aquilo que não tinha solução no plano da realidade
prática, econômica e social.

Ao avaliar o mito sebastianista, Antônio Quadros conclui que:


a figura histórica do rei foi sempre um pretexto, foi apenas um meio de canalização e
projeção não só de uma profecia mítica onde se juntaram em partes iguais o messianismo
hebraico-português, o cristianismo messiânico-encarnacionista e os velhos arcanos céltico-
-bretões, como também, e cumulativamente, as aspirações nacionais e populares, quer a um
nível onírico, quer a um nível sociopolítico. [...] O sebastianismo é um dado profundo, é um
arquétipo, é uma realidade psíquica e mítica do nosso povo e da nossa cultura. (QUADROS,
2001, p. 24)

Texto complementar
O texto abaixo, de autoria do cordelista Luar do Conselheiro (Aidner Mendez
Neves), vem demonstrar como o sebastianismo ainda vive no imaginário da lite-
ratura de cordel brasileira. Antecedendo o texto, aparece a seguinte nota:

A obra: Nesta obra o autor retrata um assunto polêmico, pedra funda-


mental das revoltas no nordeste O sebastianismo. Depois de anos de pesqui-
sa e muita dificuldade, por conta de ser uma ordem mística e secreta, Luar
trás à tona sob forma de cordel um pouco desta tradição que deu fama a
estes sertões.
O sebastianismo no sertão
(CONSELHEIRO, 2009)

Vou contar sobre uma ordem,


Secreta e misteriosa
Nascida em Portugal,
Que chegou a terra nossa
Espalhou-se por todo o mundo
e resgatou lá do fundo
A esperança milagrosa.

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A gênese do mito de D. Sebastião

É aquela velha história, Mas é claro que o sultão,


Do retorno do Salvador Inimigo Lusitano
Vindo num cavalo branco, Teve ódio e revolta
Com papel de Redentor Contra o rei soberano
Tirando o povo da desgraça, Organizou seus soldados,
Da pobreza e da pirraça O destino era selado
Do prefeito e do Doutor. Pelos povos muçulmanos.

Certo rei de Portugal, Vinte mil Lusitanos,


Por nome Dom Sebastião Contra cem mil fortes mouros,
Era jovem, destemido, Estava claro de quem
Guerreiro e bom cristão Seria arrancado o couro,
Brigador e bom nas armas, Lá em Alcácer Quibir,
Organizando cruzadas Viria o nosso rei sucumbir
Lutava com o coração. Como na arena, um touro.

A bandeira Lusitana Mas o mistério cobre o cerco,


Tremulava em todo canto Do povo de Alá
O império já cobria, O rei Dom Sebastião
Quase todo o mediterrâneo Desapareceu por lá
Mas pra Dom Sebastião, Não se encontrou o corpo,
Era quase obsessão Dele vivo ou dele morto
Cobrir a África com seu manto. Tava o mistério no ar.

Por muitas brigas internas, No reino de Portugal,


Lá dos sultões Marroquinos Choravam senhores e senhoras
Foi chamado o nosso rei, O reinado sem herdeiros
Para apaziguar os meninos Ia para mãos espanholas
Armou uma expedição, Pra consolo da dinastia,
Vinte mil soldados na mão, Só mesmo a profecia
E pôs-se logo a caminho. Do retorno é que consola.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

E é desta profecia, Mostraram a esse povo


Que vou lhes falar agora O que a Bíblia falava
Que mudou completamente Não tem jeito, estava escrito.
O rumo de nossa história Tava errado quem roubava.
Briga de rei e sultão, Como na Maçonaria,
Inspirou nosso sertão Injetava ideologia
À insurreição e glória. Quando de Cristo falava.

A profecia do retorno, Logo, logo o sentimento.


Do rei Dom Sebastião De revolta com razão
Virou mito, crença e credo. Fez-se bandeira de luta
E quase religião O rei Dom Sebastião
Ideal nacionalista, Que sumiu numa peleja,
Transformou-se em comunista Defendendo a Santa Igreja
Quando chegou ao sertão. E o mandamento cristão.

O sertanejo acostumado, De Deus a revolucionário,


À injustiça e pobreza Jesus Cristo passou
Esperava o retorno O rei Dom Sebastião
De um líder com grandeza Tornava-se o redentor,
Pois pra um povo sofrer tanto, Só faltava o povo agora,
Deve haver em algum canto Se inflamar de fé e glória
Alguém que os proteja. E guerrear com o malfeitor.

Logo os sebastianistas A primeira insurreição


Chegaram ao nosso nordeste Deu-se lá em Pernambuco
Encontraram sofrimento, Silvestre José dos Santos,
Fé, fome, e peste. Que diziam ser maluco
Descobriram nos sertões Na Serra do Rodeador
Povos, populações Esperava o Redentor
Esperando quem viesse. E fez guerra contra o Impuro.

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A gênese do mito de D. Sebastião

Este fato aconteceu O desespero desta gente,


Em mil oitocentos e dezessete Que vive à própria sorte
Quando muita gente foi Fez ouvir a voz do mestre
Ajudar Mestre Silvestre Que dizia firme e forte:
Todos de arma na mão, Vem morar na imensidão,
Fazendo revolução Com o rei Dom Sebastião
Contra o opressor do agreste. Vamos se entregar à morte.

No Nordeste o opressor O suicídio coletivo


Sempre esteve no poder, Que aconteceu por lá
Por isso era difícil, Foi a mais cruel imagem,
Lutar pra sobreviver, Da injustiça do lugar
Quem criar comunidade, Pois lá no alto sertão
Com justiça e igualdade, Verdadeira insurreição
Se prepare pra morrer. Foi morrer pra não matar.

A segunda insurreição, A terceira insurreição,


Foi no sertão do Pajeú Foi valente e mais famosa,
Entre o sertão da Paraíba É cantada e declamada,
E a terra do Maracatu Em verso, canção e prosa,
Em mil oitocentos e trinta e Foi no sertão da Bahia,
cinco, Onde guerra e poesia
O soberano era bem vindo Fizeram-se bala e trova.
Em terras de Céu Azul.
Falo da guerra de Canudos,
O Beato João Antônio, O reduto Monarquista,
Líder desta comunidade, Tinha Crente, rezador,
Viu as pedras encantadas, Xamã e sebastianista
Lá pertinho da cidade Bom Antônio Conselheiro,
Conclamou o povo todo Cearense, catingueiro
Para correr num sufoco. Pregava guerra na missa.
Pra morar na eternidade.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Foram quatro as batalhas, Com comandante ou com mestre


Que houve na Terra Santa Todas elas ocorreram
O exército brasileiro, Por que os povos careceram,
Não poupou velho ou criança, Do que ainda carecem.
Lutando com fé em Cristo,
Pelo pasto coletivo, Povo oprimido é pólvora,
Tendo Antônio como esperança. Com fome é dinamite,
Nem o preto, nem o branco,
Guerra má, sem precedentes, Nem o caboclo resiste
Neste meu sertão amado Pois na hora da verdade,
Foi a guerra de Canudos, João Diabo vira Abade,
Dos guerreiros encourados, E corre mesmo é pro rifle.
No final sem esperança,
Um velho, dois adulto e uma A história do retorno
criança. Do rei Dom Sebastião,
Contra cinco mil soldados. Ainda corre calada
No meio deste sertão,
Observem a resistência, Num cochicho, numa prosa,
De todas as formas de luta, Os cabra valente da roça
Logo, logo, são esmagadas, Tramando revolução.
De forma absoluta E se um dia ao acaso,
Aqui eu me contradigo, Pegares a Bíblia pra ler,
Pois ainda resta um grito, Vai ver que todos têm,
E permanece na labuta. O mesmo direito de viver,
Peço-lhe tome cuidado,
Todas as insurreições, O governo tá no encalço
Que houve no Nordeste, De quem a Cristo obedecer.
Políticas ou messiânicas,

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Dicas de estudo
QUADROS, Antônio. Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista. Lisboa: Guima-
rães Editores, 2001.

Uma boa forma de aprofundar os estudos sobre as origens e o sentido do se-


bastianismo é ler esse, em que o crítico Antônio Quadros delineia um panorama
do sebastianismo em Portugal e no Brasil.

LOURENÇO, Eduardo. Psicanálise mítica do destino português. In: _____. O Labi-


rinto da Saudade. 3. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1988, p. 17-64).

Outra forma de aprofundar a reflexão é ler esse texto do crítico e filósofo


Eduardo Lourenço, que não trata especificamente do tema do sebastianismo,
mas faz uma leitura em que o mito tem papel central.

Estudos literários
1. Que relação podemos estabelecer entre as profecias de Bandarra e o mito
sebastianista?

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

2. Por que o padre Antônio Vieira rejeita D. Sebastião como o Encoberto e coloca
D. João IV em seu lugar?

3. Que vínculo podemos estabelecer entre o mito do sebastianismo e a cultura


portuguesa?

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A gênese do mito de D. Sebastião

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