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Memorial

anónimo de queixas contra Matias de Albuquerque, Vice-rei da Índia


Bom ou mau governo? O leitor o dirá.

Nesta rubrica, em que temos divulgado uma síntese biográfica de grandes vultos da
História do nosso país, tendo em conta os parâmetros sociais e culturais da época em
que viveram, apresentamos hoje alguém cuja ação parece não se revestir das brilhantes
qualidades pessoais que outros mostraram possuir em prole da defesa do Império.
Referimo-nos a Matias de Albuquerque, 15º vice-rei da Índia portuguesa, documentado
entre 1545-1609.
Esta personagem, parente de Afonso de Albuquerque e casado com Filipa de Vilhena
sem descendência, foi um militar que serviu na Índia por mais de trinta anos,
combatendo e alcançando algumas vitórias (Mangalore, em 1566, e cerco de Goa, em
1571). Entre 1584 e 1588 foi capitão da fortaleza de Ormuz, tendo mandado proceder à
sua reparação e à construção de novas cisternas.
No entanto, apesar de ter deixado um parecer de administrador honesto, a carta que
abaixo consideramos, a ser verdadeiro o seu conteúdo traça dele um perfil duvidoso.
Trata-se de um documento existente na Torre do Tombo (Manuscritos da Livraria, 1112,
f. 87-89v.) em que são grafadas quarenta e cinco queixas que contra ele aponta alguém
que assina como “Mísera Índia”. O manuscrito traz como título Memorial anónimo de
queixas contra Matias de Albuquerque, Vice-rei da Índia, no final do seu termo de
governo e reporta uma série de comportamentos que, segundo se refere, não
favorecem nem os interesses do rei, nem os dos naturais das praças fortes portuguesas.
Fizemos dele uma adaptação para que possa ser mais facilmente compreendido pelo
leitor, considerando o fundamental. Após a leitura, ficam algumas indagações. O vice-
rei governou a Índia mais em proveito próprio do que do Reino? Os negócios ruinosos
que levaram à queda do Império Português tiveram como causa (entre outras) a má
gestão? Podemos ver no comportamento de Matias de Albuquerque aquilo a que hoje
chamamos corrupção? Deixo estas três questões, na certeza de que o leitor extrairá
outras. Segue-se a nossa tradução da carta, com algumas notas explicativas:
Senhor
Sou uma índia aflita governada por um tirano, a quem nem o siracusano dionísio (tirano
de Siracusa no século IV a. C.) chegou em maldade. Venho, por não achar quem me
valha, pôr-me aos pés de Vossa Mercê com esta carta, por não o poder fazer de um
modo melhor para que me ouça. E verá como sou tratada, porque se é possível que tal
possa ter remédio, só das mãos de Vossa Mercê me poderá vir. [...]
As coisas que Matias de Albuquerque me faz com o seu poder são as seguintes.
A primeira é tratar tudo o que é meu com a maior desumanidade possível, porque nem
para as de Deus, nem para as do rei, nem para as do povo tem humanidade. No serviço
de Deus tudo são hipocrisias, no de Sua Majestade artifícios e, no do povo, cruezas
nunca vistas sem razão.
Perguntem a Matias de Albuquerque, vice-rei que me governa, porque não trata o
serviço de Sua Majestade com clareza e verdade. E se disser que as certidões que leva o
mostrarão, bem podem não lhe valer, porque todas lhe foram passadas à força e de
muitas se retratarão os mesmo que lhas passaram. Perguntem-lhe mais porque
afrontou António Giralte, vedor da Fazenda Geral da Índia de Sua Majestade, que à vista
de muitos fidalgos ilustres chegou a meter no gamote (vasilha de madeira para retirar a
água dos porões) da sua mancha (embarcação asiática de um mastro e vela quadrada)
e a dar-lhe dez pescoçadas sem causa nem razão alguma. Perguntem-lhe mais o que
disse a Manuel de Medeiros, vedor da Fazenda de Cochim, que serve Sua Majestade
com zelo, que era muito pousão (lento) e que seria bom que não o fosse, para que não
lhe viesse a meter sovelas pelo traseiro. Perguntem-lhe o que aconteceu para que
muitas vezes acusasse o secretário deste Estado de não querer servir no cargo e de se
acolher aos padres de São Paulo. Perguntem porque persegue o chanceler de Sua
Majestade e verão que não há outra razão senão a de duvidar das provisões que passa
contra o Regimento no exercício do seu ofício, como manda o serviço de Sua Majestade;
porque afrontou publicamente na Relação os desembargadores, chamando-lhes nomes
vis e torpes, e verão que o motivo é por quererem fazer justiça, impedindo-os as mais
das vezes; porque persegue e maltrata os fidalgos e verão que o faz para se vingar com
armas reais do que lhe fizeram noutros tempos em que não o satisfizeram; porque criou
inimizades com todos, desde pequenos a grandes, sem diferença, e dirá que não há
nenhum em que não tenha tocado na honra e fazenda; porque contra o parecer da
Relação tirou Ceilão a Mateus Pereira de Sampaio, sendo ele provido por Sua Majestade,
para o dar a Cosmo de Lafetá (filho de João Francisco Lafetá, abastado mercador
milanês) que o não era; porque não deixou entrar Dom Diogo Lobo em Malaca, mesmo
tendo sido aprovado na Relação para que entrasse antes de Pero Lopez; porque tirou a
António Godinho a costa de Melinde para a dar a Mateus Mendes contra sentença da
Relação; porque mandou tirar do tronco um soldado chamado António Calado que lá
estava por crimes exorbitantes de morte, depois da Relação pronunciar que nem sobre
fiança podia ser solto; porque defendeu que nenhuma embarcação fosse ao Reino de
Pegu, mas mandou lá uma sua com um criado dele, com trinta ou quarenta mil xarafins
(xerafim, antiga moeda de prata da antiga Índia Portuguesa), e dirá que o fez pois era o
melhor para ele do que para os outros; porque mandou em abril uma nau à China por
sua conta com o nome de João Monteiro e dirá que o fez porque não reparte o comércio
que este Estado tem; porque fechou Cambaia aos portugueses, porque não deixa nem
dá lugar aos vossos homens e ouvir-lhe-ão dizer “porque quero tomar tudo para mim”;
porque tem em Dio ministros que arrestam toda a boa peça que de qualquer parte chega
àquela alfândega e dirá que lhe parece que serão boas para as comerciar ele, em
Portugal; porque faz aqui os descontos dos seus oficiais para se mandar pagar deles em
Ormuz e dirá porque quer ganhar nisso de quinze a dezasseis por cento [...], porque para
si não há leis que não quebre em interesse próprio; [...]; porque deixou de fazer o
contrato do cobre que Manuel de Sousa tinha feito pelo que el-rei passou a pedir trinta
mil pardaos (moeda) [...]; porque quebra as provisões de Sua Majestade nada dando aos
capitães e capitão-mor que vieram do reino e as mandou fazer em nome de outro
capitão-mor, Dom Luís, tomando-lhe uma soma de pipas de vinho por cinco ou seis mil
pardaos, mais do que valiam, [...], e mandou fazer uma provisão em nome de outro de
dois mil em dinheiro [...], e nada dando a nenhum dos meus (dos que me servem) lhe
deu a ele tanto; [...]; perguntem-lhe os proveitos que deu a el-rei e aos homens e dirá
que o dos homens foi destruir os de Chaul (antiga cidade do Estado da Índia entre os
anos de 1521 e 1740) e Basaim (antiga província da Índia), o de Sua Majestade foi perder
a alfândega e mais rendimentos daquela fortaleza; porque não acudiu a evitar isto, e
dirá [...] que da primeira vez enganou o rei e os homens com o estado do tempo e da
segunda os desenganou [...]; porque proveu os trabalhos de Chaul com Cosmo de Lafetá,
mais protoso (que padece de hérnia) do que Rui Gonçalves e mais enfermo do que o
próprio hospital, quando tinha fidalgos em Goa de maior qualidade [...], experiência de
guerra [...]; [...]; porque fez capitão-mor de Malabar a Dom Jerónimo de Azevedo filho
de um clérigo boçal e néscio; [...]; porque dá os navios a soldados pobres que não têm
o que gastar neles e dirá que é para que se desarmem mais depressa e assim se acabe
tudo; porque os dá a meninos mestiços, que nunca viram guerra, e dirá que é para não
a fazerem, porque ele não veio cá fazer guerra aos inimigos, mas aos próprios naturais;
porque não dá os navios a fidalgos honrados e dirá porque lhes tem má vontade ou aos
seus parentes; [...] porque mete no Conselho dos quatro, com um fidalgo honrado como
António de Azevedo, um bêbado, um vilão de um abade, néscio e parvo [...]; porque faz
tudo ao contrário do que lhe aconselham.
Perguntem a este tirano porque se contenta com fazer-me todos estes males [...]. Diz
Matias de Albuquerque que as mentiras de um vice-rei têm mais força com Sua
Majestade do que as verdades de um povo. Se assim é, não me arrependo. E para
remédio desta situação só peço duas coisas: a primeira, que este tirano receba um
castigo exemplar; a segunda, que se faça uma provisão para tirar residência a todos os
que por diante me houverem de vir governar, a qual deve vir assinada pelo rei, para que
se entenda que aos bons fará mercês e aos outros com o cutelo, para lhes cortar a
cabeça. A mísera Índia
© Maria Antonieta Costa, junho, 2022

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