TITO LIVIO

BIBLIOTECA PAUMAPE DE HISTÓRIA TITO LfVIO

Dirigida por Paulo Matos Peixoto

1. HISTOR IA DE ROMA - 6 volumes

Por Tito Lívio
2 . ATENTADOS POLfTICOS
Por Paulo Matos Peixoto
3 . AN(BAL. O pai da estratégia
Por Paulo Matos Peixoto
,
HISTORIA
DE ROMA
Introdução, tradução e notas ele
PAULO MATOS PEIXOTO

Segundo Volume

PAUmAPE
 Título original

AB URBE CONDITA LIBRT

Primeira ecliçiiu fNDICE

Livro VI 9
Livro V II 73
Livro VII I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
Livro IX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203
Livro X . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 281
Resumos dos Livros XI a XX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 357
Livro XXI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 365
Editoração
Regina Di Stasi
Domingos Fusco
Gilson César Cardoso de Sousa

1989
Direitos para esta edição reservados pela
EDITORA PAUMAPE S.A.
Rua Bento Freitas, 362 - 2 .0 andar- CEP: 01220
Fones: 258-3162 - 258-344 7
São Paulo-SP - Brasil · 7
 L I V R O VI

Interregno. I . Em cinco livros expus os

Criação de dias nefastos. feitos realizados pelo povo ro-
mano desde a fundação de Ro-
ma até sua conquista, história que abrange primeiro o domínio
i dos reis e, em seguida, o dos cônsules, dos ditadores, dos decên-
viros e dos tribunos consulares. Relatei as guerras no exterior e
as discórdias civis. ~ uma história demasiado obscura, em parte \
por sua antiguidade, que a toma semelhante aos objetos difíceis
de perceber a grande distância, em parte pela insuficiência e
raridade de documentos escritos na época, única testemunha
fiel dos feitos passados, uma vez que até os documentos regis-
trados nos comentários dos pontífices e outros monumentos pú-
blicos e privados foram na maior parte destruídos no incêndio
da cidade. A partir deste ponto, relatarei com maior clareza e
segurança os acontecimentos ocorridos após o ressurgimento da
cidade que, por assim dizer. nasceu novamente com mais vigor
e fecundidade .
No início, Roma se manteve com o auxílio daquele mesmo
cidadão, Marco Fúria 1, que ajudara a reerguê-la, pois não lhe
foi permitido abdicar a ditadura antes do fim do ano. Tampouco
se julgou conveniente confiar a presidência das eleições do ano
seguinte aos tribunos que' se achavam em exercício por ocasião
da tomada de Roma, preferindo-se recorrer ao interregno.
Enquanto os cidadãos entregavam-se infatigavelmente aos
trabalhos de reconstrução da cidade 2 , Quinto Fábio, logo após

] I . Marco Fúrio Camllo.

2 . Após o incêndio da cidade pelos gaulesc:s.

9
 TITO LfV I O
sua exoneração do cargo, foi citado por Caio Márcio, tribuno
da plebe. Este o acusava de ter violado o direito dos povos
quando, ao ser enviado como legado em missão de paz, comba-
tera contra os gauleses. Mas ele escapou a esse julgamento por
uma morte tão oportuna que muitos a consideraram voluntária.
O interregno começou com Públio Comélio Cipião, se-
guindo-se-lhe Marco Fúrio Camilo, designado pela segunda vez.
Camilo elegeu para tribunos militares com autoridade consular
Lúcio Valério Publícola, pela segunda vez, Lúcio Virgínio,
Públio Comélio, Aulo Mânlio, Lúcio Emílio e Lúcio Postúmio.
Ao tomarem posse dos cargos logo após o interregno, os
tribunos começaram por consultar o Senado sobre questões
religiosas. Antes de tudo, mandaram proceder a uma busca
a fim de descobrir os tratados e as leis, entre as quais a das
Doze Tábuas, e certas leis reais. Algumas delas foram divul-
gadas, mas as que se referiam às coisas sagradas não foram
reveladas, sobretudo pelos pontífices, a fim de manter a mul-
tidão submissa à religião. Em seguida passaram a discutir os
dias nefastos 3 • O décimo quinto dia antes das calendas de
agosto 4 , assinalado por duplo desastre- o massacre dos Fábios
em Cremera e a vergonhosa derrota dos romanos às margens
do Alia foi chamado, em virtude desse último revés. dia do
Alia - , ficando decidido que nenhuma atividade pública ou
privada poderia realizar-se naquele dia. Segundo certos histo-
riadores, como no dia seguinte aos idos de julho o tribuno
militar Sulpício realizara sem êxito um sacrifício, não obtendo
os favores dos deuses, e três dias depois entregava o exército
romano aos golpes do inimigo, foi decretada também uma pausa
3 . Primeiramente, os dias eram divididos em fastos e nefastos,
permitidos e proibidos, isto é, dias destinados ao trabalho e dias desti·
nados ao descanso. Nos dias nefastos eram fechados os tribunais e proi·
bida qualquer atividade pública.
4 . Assim como julho era designado Quintilis (c f. Livro 11, n.•
26) , agosto era designado Sextilis (o sexto mês) e foi em homenagem
a Augusto que passou a chamar-se Augustus, agosto.
lO
HlSTORIA DE ROMA
nos ofícios religiosos no dia seguinte aos idos, supersttçao que
se estendeu ao dia seguinte às calendas e às nonas 5 •
Vitória de Camilo 2. Os tribunos não pude-
sobre os volscos e os équos. ram ocupar-se por muito tem-
po e com tranqüilidade dos
projetos relativos ao soerguimento da república após tão gra-
ve desastre. De um lado os volscos, velhos inimigos, haviam
empunhado armas para suprimir o nome de Roma; por outro
lado, segundo informações de mercadores, os chefes de todos os
povos da Etrúria, reunidos no templo de Voltuna, tramavam uma
guerra. Além disso, sobreviera nova ameaça com a defecção dos
latinos e dos hérnicos que, após a batalha do lago Regilo, num
espaço de cem anos aproximadamente, jamais haviam traído sua
fidelidade e amizade para com o povo romano. Assim pois, cer-
cados por tantos perigos, todos compreenderam que o povo
romano era vítima não só do ódio de seus inimigos como tam-
bém do desprezo de seus aliados. Decidiram então confiar a
defesa da república aos auspícios do mesmo cidadão que a
reconquistara uma vez, e nomearam ditador Marco Fúrio Camilo.
O ditador nomeou Caio Servílio Ahala comandante da
cavalaria. Depois de ordenar o fechamento dos tribunais, re-
crutou os jovens, e até mesmo os veteranos a quem ainda
restavam forças prestaram juramento e formaram centúrias 8 .
Depois de recrutar e armar o exército, dividiu-o em três
regimentos: o primeiro deveria marchar contra o território
veiense na Etrúria, e o segundo recebeu ordens para acampar
diante de Roma. Foram prepostos os tribunos militares Aulo
5 . Além dos dias Castos e nefastos, havia dias parcialmente fas tos.
em que durante algumas horas podia-se tratar apenas de assuntos judiciais.
Chamavam-se também dias religiosos aqueles que, tendo sido assinalados
por alguma calamidade, o pontífice os declarava re/igiosi, infausti, atri,
como o "dia do Alia", por exemplo. Durante esses dias era proibido ofe-
recer sacriHcios e empreender qualquer negócio.
6 . Isto é, engajaram-se na infantaria. Os cavaleiros eram divididos
em decúrias.
li

TITO UVIO
Mãnlio, para comandar este último, e Lúcio Emílio, para chefiar
as tropas que iriam combater os etruscos. O terceiro regimento,
tendo à frente o próprio Camilo, marchou contra os volscos
e próximo a Lanúvio- no local chamado " Junto a Mécio"-
iniciou o assalto ao acampamento.
Os volscos haviam iniciado a guerra por desprezo aos
romanos. Ao saberem que Camilo comandava o exército, aco-
vardaram-se a tal ponto que se cercaram por uma trincheira e
uma paliçada feita com árvores derrubadas, para impedir a
penetração do inimigo em suas fortificações. Por casualidade,
o vento soprava com tal violência na direção do inimigo, que
o incêndio abriu caminho aos soldados. As chamas que atingiam
o acampamento, o calor, a fumaça e o crepitar da lenha verde
lançaram o pânico contra os inimigos.
Os romanos despenderam menor esforço para franquear
a trincheira, apesar de estar guarnecida de soldados, e invadir
o acampamento do que em atravessar as ramagens consumidas
pelo incêndio.
Depois de desbaratar, massacrar o inimigo e tomar-lhe
o acampamento de assalto, o ditador entregou os despojos
aos soldados, o que lhes agradou tanto mais quanto não o
esperavam de um general tão pouco dado a essas prodigalidades.
Em segunda Camilo perseguiu os fugitivos , devastou o território
dos volscos, forçando-os à rendição, ao cabo de uma luta que
durara setenta anos.
Vitorioso contra os volscos, o ditador marchou contra
os équos, que também se preparavam para a guerra. Esmagou
seu exército em Bolas e além de investir contra o acampamento
atacou-lhes também a cidade, tomando-a no primeiro assalto.
Libertação de Sútrio. 3 . No setor em que as operações
foram chefiadas por Camilo, a sor-
te favoreceu os romanos. Entretanto, nos outros regimentos o
terror dominava. Quase toda a Etrúria em armas sitiava a cida-
de de Sútrio, aliada do povo romano. Emissários dirigiram-se ao
Senado implorando auxílio em sua desgraça . e conseguiram um
12
HISTORIA DE ROMA
decreto que ordenava ao ditador levar imediatamente socorro
aos sutrinos. Contudo, a situação dos sitiados não lhes permitiu
esperar pelo auxílio que tardava. Pouco numerosos, extenuados
pelas fadigas, vigílias e ferimentos que pesavam sempre sobre
os mesmos homens. os habitantes de Sútrio entregaram a cidade
ao inimigo.
Sem armas, levando apenas as vestes do corpo, os sutrinos
preparavam-se para abandonar seus penates, quando apareceu
Camilo com o exército romano. A multidão aflita caiu-lhe aos
pés. Depois de ouvir os discursos dos chefes, provocados pela
extrema necessidade, as queixas das mulheres e das crianças,
que eles arrastavam consigo para o exflio, mandou os sutrinos
pouparem seus lamentos. Ele se encarregaria de levar o luto
e as lágrimas aos etruscos. Ordenou às tropas que depusessem
as bagagens, levando consigo apenas as armas , e aos sutrinos,
que permanecessem naquele local onde deixou uma pequena
guarnição.
Partiu então para Sútrio com uma tropa ligeira e, como
havia previsto e costuma suceder após a vitória, encontrou uma
desordem completa : nenhuma sentinela diante das muralhas.
as portas abertas, os vencedores espalhados pelas casas do
inimigo entregues à pilhagem. Pela segunda vez no mesmo dia,
Sútrio foi capturada. Os etruscos vencedores foram trucidados,
por sua vez, por um inimigo inesperado, sem terem tempo se-
quer de se agrupar e pegar em armas. Quando corriam dispersos
para as portas da cidade, na tentativa de alcançar o campo,
encontraram-nas fechadas, pois tal havia sido a primeira ordem
do ditador. Uns pegavam suas armas, outros, que por acaso
o ataque surpreendera armados, chamavam seus companheiros
excitando-os ao combate. O desespero do inimjgo teria talvez
reacendido a luta se os arautos espalhados pela cidade não
houvessem transmitido a ordem de que depusessem as armas.
Seriam poupados os que obedecessem e massacrados os que
conservassem as armas. Aqueles que se obstinavam em lutar co-
mo última esperança de salvação. depois que lhes foi dada a pro-
13
 TITO UVIO
me sa de conservarem a vida, largaram a esmo as armas, ado-
tando a única atitude que a sorte lhes dava como garantia, e
entregaram-se ao inimigo.
Para manter sob vigilância aquela grande multidão, tive-
ram de dividi-la . Antes do anoitecer, a praça foi devolvida aos
sutrinos sem ter sofrido maiores danos pela guerra , pois ao
invés de ter sido tomada à força ela capitul ara.
Guerra com os équos. 4. Camilo reentrou em
Tomada de Cortuosa e Contenebra. Roma em triunfo, vi-
torioso em três guer-
ras sucessivas. Dentre os prisioneiros que marchavam à frente de
seu carro os etruscos eram sem dúvida os mais numerosos .
A soma apurada com a venda dos prisioneiros em hasta
pública 7 foi tão grande, que não só deu para pagar o ouro
cedido pelas matronas, como também para mandar confec-
cionar três taças de ouro, gravadas com o nome de Camilo.
Segundo consta, foram depositadas no santuário de Júpiter aos
pés de juno, antes do incêndio do Capitólio.
Naquele ano os veienses. ca penates e fa liscos. que durante
essas guerras haviam aderido aos romanos, receberam o direito
de cidadania c a posse de novas terras. Um senadoconsulto
obrigou o regresso daqueles que. por preguiça de ·r eedificar
suas casas em Roma , se haviam refugiado em Véios e ocupado
as casas vazias. No início, houve uma tentativa de desobediência
a essa ordem, mas o Senado fixou uma data, ameaçando com
a pena capital todos os que até aquele dia não tivessem retornado
a Roma . Todos aqueles homens. que reunidos se mostravam
tão audaciosos, foram obrigados a obedecer quando a ameaça
os atingiu pessoalmente. Desse modo a população de Roma
aumentou e, em conseqüência, ergueram-se construções por toda
parte. O Estado ajudava nas despesas e os edis fiscalizavam
7 . Sub hasta. Literalmente, ao pé da lança. Era a forma tradicional
de indicar a venda de despojos ou de prisioneiros de guerra.
14
HISTORIA DE ROMA
a obras como se fossem públicas. Motivados pelo desejo de
usufruir de suas casas, os próprios particulares apressavam-se
em concluir os trabalhos e no espaço de um ano estava pronta
uma nova cidade.
No final daquele ano procedeu-se à eleição dos tribunos
militares com autoridade consular. Foram eleitos Tito Oüíncio
Cincinato, Quinto Servílio fidenate, pela quinta vez, Lúcio
Júlio Juno, Lúcio Aquílio Corvo, Lúcio Lucrécio Tricipitino e
Sérvio Sulpício Rufo.
Movidos pelo ódio, os tribunos comandaram um exército
con tra os équos não para guerrear, pois eles se consideravam
vencidos, mas para devastar seus territórios, a fim de não lhes
deixar forças suficientes para novos planos. Outro exército foi
enviado ao território tarqüiniense, onde foram tomadas de
assalto e destruídas as cidades etruscas de Cortuosa e de Conte-
nebra.
Comra Cortuosa não houve sequer combate: atacada de
improviso, foi capturada ao primeiro grito de guerra, ao pri-
meiro ataque , e sua praça saqueada e incendiada. Contenebra
ainda sustentou o ataque durante alguns dias, e seus habitantes
só foram subjugados após uma luta ininterrupta de dia e de
noite. O exército romano fora dividido em seis corpos que se
revezavam de seis em seis horas . Os sitiados, pouco numerosos,
tinham que enfrentá-los sempre com os mesmos soldados já
cansados de e nfrentar uma luta contínua. Cederam afinal e
e ntrega ram a cidade aos roma nos.
Os tribunos achavam conveniente entregar os despojos
ao Estado. Mas tardaram tanto em divulgar suas ordens que.
enquanto se decidiam, os soldados apoderaram-se dos despojos,
e teria sido impossível reavê-los sem provocar-lhes indignação.
No mesmo ano, para que a cidade não se expandisse
apenas com a multiplicação de casas particulares, reconstruiu-se
o Capitólio sobre alicerces de pedra de cantaria , obra digna
de ser vista mesmo diante da atual magnificência de nossa
cidade.
15
 TITO UVJO
Interregno. 5 . Enquanto os cidadãos se achavam ocupa-
dos na construção de suas casas, os tribunos
da plebe procuravam atrair a plebe a suas assembléias, agitan-
do o problema da lei agrária. Acenavam-lhe com a esperança
da partilha do território do Pontino, cuja posse Camilo lhes
havia assegurado após a derrota dos volscos. Queixavam-se de
que aquelas terras estavam mais ameaçadas pelos nobres do que
outrora pelos próprios volscos. Estes, pelo menos, não podiam
realizar incursões além das que .lhes permitiam suas forças e
suas armas. Os nobres caminhavam para a posse daquele terri-
tório público e não haveria mais lugar para a plebe a não ser
que fosse dividido antes que dele se apoderassem.
Os tribunos quase não abalaram a plebe, que pouco com-
parecia ao Fórum, ocupada em suas construções. Achava-se
exaurida pelas despesas e por isso mesmo desinteressada de
terras que não teria recursos para explorar.
Numa cidade impregnada de sentimentos religiosos, onde
os próprios chefes eram dominados pela superstição, em seguida
ao recente desastre recorreu-se a um interregno para renovar
os auspícios. Os inter-reis foram sucessivamente Marco Mânlio
Capitolino, Sérvio Sulpfcio Camerino e Lúcio Valério Potito.
Este último presidiu à eleição dos tribunos militares com auto-
ridade consular, proclamando tribunos Lúcio Papírio, Caio Cor-
nélio, Caio Sérgio, Lúcio Emflio, pela segunda vez, Lúcio Me-
nênio e Lúcio Valério Publícola, pela terceira vez. Todos toma-
ram posse de seus cargos no final do interregno.
Naquele ano Tito Qüfncio, duúnviro encarregado das ceri-
mônias sagradas, dedicou o templo prometido a Marte durante
a guerra com os gauleses. Foram criadas quatro tribos, forma-
das de cidadãos novos: a Estelatina, a Tromentina, a Sabatina e
a Arniense, que completaram o número de vinte e cinco tribos.
Prestígio de Camilo 6 . Em relação ao território do Pon-
entre seus pares. tino, o tribuno da plebe Lúcio Sicí-
nio movia uma campanha diante de
uma multidão cada vez mais numerosa, mais agitada e ansiosa
por terras do que outrora. No senado mencionou-se também a
16
HISTORIA DE ROMA
p !.Sibilidade de uma guerra com os latinos e os ~érnicos, mlls
·orno a Etrúria empunhara armas, a preocupaçao com uma
ftUCrra mais importante fez adiar o projeto. .
O governo voltou às mãos de Camilo, na ~uahdade de
Jribuno militar com autoridade consular. Seus cmco colegas
foram Sérvio Cornélio Maluginense, Quinto Servílio Fidenate,
pela sexta vez, Lúcio Qüíncio Cincinato, Lúcio Horácio Pulvilo
c Públio Valério.
No início do ano, a atenção dos romanos se desviou da
guerra com os etruscos. Uma coluna de f~gitivos do terri~ório
do Pontino irrompeu na cidade com a notícta de que os anctates
estavam em armas e que os povos latinos haviam mandado suas
tropas para aquela guerra. Diziam eles que não se tratava _de
uma decisão oficial, mas que não podiam impedir os voluntános
de combater onde bem entendessem.
Os romanos já haviam aprendido a não menosprezar qual-
quer inimigo. Assim, os senadores agradeceram aos deuses por
achar-se Camilo no poder. Ver-se-iam obrigados a nomeá-lo
ditador caso estivesse retirado à vida particular. Por outro
lado, seus colegas reconheciam que o comando supremo ~a
república, quando surgia qualquer ameaça de guerra, . d~v1a
concentrar-se nas mãos de um só homem. Estavam dectdtdos
a submeter sua autoridade à de Camilo e certos de que nada
perderiam de sua majestade ao fazer essa concessão ao prestígio
de tão ilustre cidadão.
Os tribunos foram elogiados pelo Senado e o próprio
Camilo, perturbado, agradeceu-lhes. Disse _qu~ grande era o
encargo que lhe atribuía o povo romano , po1s Já fora nomeado
quatro vezes ditador. Grande era também sua responsabilidade
perante 0 Senado, quando esse órgão do Esta~o fo":'ula~a ~obre
ele tais julgamentos, e maior ainda pela constderaçao tao hson-
jeira de seus colegas. Assim, se fosse possível aumentar seus
trabalhos e vigílias, envidaria todos os esforços para ultrapas-
sar-se a si mesmo, a fim de que a opinião unânime d~ seus
concidadãos, tão elevada a seu respeito, permanecesse ·~alte­
rada. Em relação à guerra e aos anciates, tratava-se mats de
17
 TITO UVIO
ameaça do que de verdadeiro perigo. Contudo, julgava que
nada se deveria desprezar, embora nada houvesse a temer. A
cidade de Roma estava cercada pela inveja e pelo ódio de
seus vizinhos. Assim sendo, era necessário mais de um chefe
e mais de um exército para levar a termo os negócios da
república.
"Contigo, Lúcio Valéria, desejo partilhar o comando e
os planos desta guerra. Quero que me ajudes a conduzir as
legiões contra o inimigo anciate. A ti, Quinto Servílio, confio
o segundo exército, bem-equipado e treinado, para acampar
perto de Roma, atento a qualquer movimento, seja por parte
da Etrúria, como acaba de fazer, seja por parte dos latinos
e dos hérnicos que agora nos preocupam. Estou certo de que
agirás de acordo com a dignidade de teu pai, de teu avô,
de ti mesmo e de teus seis tribunatos. Lúcio Qüíncio deverá
proceder à criação de um terceiro exército formado de inválidos
e veteranos para montar guarda à cidade e às muralhas. Lúcio
Horácio deverá providenciar armas defensivas e ofensivas o
abastecimento de trigo, enfim, todo o material necessário ~m
tempo de guerra. A ti, Sérvio Cornélio, nós, teus colegas, te
nomeamos presidente deste conselho público, guardião das ceri-
mônias religiosas, dos comícios, das leis e de todos os interesses
da cidade".
Todos aceitaram e prometeram desempenhar com zelo seus
encargos.
Escolhido para compartilhar o comando com Marco Fúrio,
Valéria acrescentou que o consideraria como ditador e a si
próprio como comandante da cavalaria. A opinião formada pelo
Senado sobre aquele chefe único era a esperança do êxito da
guerra. Os senadores exclamaram com entusiasmo que essa
esperança era válida na guerra e na paz, bem como no conjunto
da administração pública. O Estado jamais necessitaria de um
ditador enquanto tivesse tais magistrados no poder, unidos pelos
mesmos sentimentos, dispostos tanto a obedecer quanto a co-
mandar, e mais inclinados a colocar sua glória a serviço de
todos do que a atrair sobre si a glória dos outros.
18
HISTóRIA DE ROMA
I 11urtaçio de Camilo 1 . Depois de proclamar o recesso
dos tribunais e realizar o alistamen-
""!I soldados. to, Fúrio e Valéria partiram para
~ntlico . Além do exército dos volscos se formando ~e solda-
!111-, de uma nova geração, os anciates haviam reunt~o uma
lllultidão de jovens latinos e hérnicos oriundos de .n~ç~es que
111110
paz duradoura conservara intactas. Esse novo m•m•go que
vinho aliar-se ao antigo abalou os ânimos dos soldados romanos.
)uondo Camilo já se ocupava em organizar as linhas de bata-
lho, os centuriões vieram anunciar-lhe que os soldados es.tavam
p · rturbados, que haviam empunhado as armas sem entusiasmo,
que tinham saído do acampamento hesi~~mtes e de . ~á vontade.
Além do mais, tinham ouvido comentános de que mam comba-
1 ·r um contra cem, e mesmo se aquela multidão. não possuísse
urmas mal conseguiriam enfrentá-la, quanto ma1s estando ar-
moda. .
Ao ouvir essas palavras, Camilo montou a cavalo e ?•~nte
dos insígnias, voltado para seu exército, percorreu as flle1ras
dizendo:
"Que significa essa tristeza, soldados? Por que essa estra-
nha hesitação? Acaso desconheceis o inimigo, a mim e a vós
mesmos? Acaso o inimigo representa outra coisa a não ser
um eterno motivo de bravura e de glória para vós? Vós, ao
contrário sob meu comando (para não falar na captura de
Falérios ~ de Véios}, depois da captura de nossa pátria, do
massacre das legiões gaulesas, conseguistes uma tríplice vitória
e um tríplice triunfo contra esses mesmos volscos e équos .e
contra a Etrúria. Quanto a mim, acaso não me reconheceiS
como chefe porque não estou diante de vós pa.ra vos da~ o sinal
de combate na qualidade de ditador, mas de tnbuno? Nao tenho
necessidade de ter sobre vós o poder supremo, do mesmo modo
que não vos convém ver em mim a não ser o homem que sempre
fui, pois a ditadura nunca me deu coragem, do mesmo modo
que 0 exflio não pôde arrebatá-la. Continuamos a ser os mesmos,
e uma vez que trazemos a esta guerra as mesmas qualidades
que possuíamos nas lutas precedentes, esperemos que esta gu.erra
venha a ter o mesmo desfecho. Logo que for dado o smal,
19
 TITO UVIO
cada um fará o que aprendeu e está acostumado a fazer. Vós
vencereis. eles fugirão ''.
Vitória sobre os anciates. 8 . Dado o sinal de ataque, Ca-
Tomada de Sátrico. milo desmontou do cavalo e ar-
rastou com ele o porta-estan-
darte mais próximo na direção do inimigo, gritando: "Soldado,
avante com tua insígnia! " Quando viram o próprio Camilo, ape-
sar de enfraquecido pela idade avançada, marchar contra o inj-
migo, os romanos precipitaram-se atrás dele aos gritos de " Siga-
mos o general!" Dizem que Camilo mandou atirar a insígnia
nas fileiras inimigas e desafiou os soldados da vanguarda a irem
buscá-la. Foi o começo da derrocada dos anciates. O terror con-
tagiou não só a primeira linha mas também as tropas de reser-
va. Não era apenas o ardor dos soldados incentivados com a
presença de seu general que aterrorizava os volscos. Nada lhes
parecia mais terrfvel do que a visão do próprio Camilo. Onde
quer que se apresentasse, arrastava infalivelmente consigo a
vitória. O fato se tornou ainda mais evidente quando, ao ver
que a ala esquerda levava desvantagem, Camilo bruscamente
montou a cavalo, apesar de seu escudo de infante, galopou até
aquele ponto e restabeleceu o combate, apontando aos soldados
as demais alas vitoriosas.
A vitória já pendia a favor dos romanos, mas o grande
número de inimjgos constituía obstáculo a sua própria fuga .
Por outro lado, o massacre de tal multidão exigiria demais dos
soldados já extenuados. Súbito desabou violenta tempestade
que interrom peu os últimos lances da vitória, pois já não se
tratava propriamente de um combate. Foi dado o sinal de reti-
rada e naquela noite a guerra terminou sem qualquer esforço
por parte dos romanos. Latinos e hémicos abandonaram os
volscos e regressaram a seus territórios com o resultado mere-
cido por sua pérfida intenção.
Vendo-se abandonados pelos povos com os quais haviam
contado para retomar as hostilidades, os volscos abandonaram
o acampamento e encerraram-se nas muralhas de Sátrico. Camilo
começou por cercá-los com trincheiras e por construir terraplenos
20
HISTORIA D E ROMA
Jl ll a atacá-los. Mas ao verificar que os inimigos não se arris-
~uvam a sair para perturbar-lhe o trabalho, concluiu que lhes
tultuva coragem e era inútil portanto esperar por ~ma demo-
' ulla vitória. Aconselhou então aos soldados a que nao se esgo-
tu:. em em trabalhos pesados, como acontecera no cerco de
·io . pois a vitória já lhes estava nas mãos. E com suas tropas
~ h ·in de ardor atacou e escalou as muralhas de todos os lados,
,_.
1
mou a praça. Os volscos depuseram as armas e se renderam.
Libertação de Sútrio. 9 . Entretanto o general pensava
numa conquista mais importante: a
de Ancio , capital dos volscos, donde partira a ini~iativa _da últi-
ma guerra. Mas como era impossível tomar uma c1dade tao forte
,em grande aparato bélico, Camilo passo~ o comando do exér-
·ito a seu colega e regressou a Roma a ftm de convencer o Se-
nado a destruir Ãncio. No momento em que expunha seus... pr?'
• (os deuses. creio eu, estavam interessados ~a permanencta
1 105
do Estado anciate por mais algum tempo), embatxador~s ~e- Ne-
petc e Sútrio vieram pedir auxílio contra os etruscos, mststmdo
nu urgência da remessa de tropas. Desse modo, a fortuna afastou
de Ancio os golpes de Camilo. , .
As duas cidades estavam situadas diante da Etruna e
constituíam daquele lado verdadeiras barreiras e portas para .
Roma. Por esse motivo, os etruscos preocupavam-se em tomá-las
cada vez que tramavam nova investida contra . Roma.' e os
romanos em recuperá-las e conservá-las. Em vtsta d:ss~, o
Senado preferiu convencer Camilo a esquecer-s~ do Ancto e
·ncarregar-se da guerra contra os et_rusco~, conftando-lhe, por
decreto, as legiões urbanas que havtam s1do comandadas po_r
Qüíncio. Embora preferisse o exército experimentado e habi-
tuado a suas ordens que se encontrava no país dos volsco_s.
Camilo não recusou , pedindo apenas que lhe desse~ Val~~to
para com ele repartir o comando. O ~enado e~tão. env1ou Oum-
cio c Horácio para substituírem Valéno no ternt~rto _dos vol:c~s.
Fúrio e VaJério partiram de Roma em dtreçao a Sutno.
o nde já encontraram uma parte da cidade tomada pelos etruscos.
Na outra parte. os habitantes haviam interceptado as ruas e
21
 TITO LCVIO
tentavam defender-se dos ataques do inimigo. A aproximação
do Exército romano e a fama do nome de Camilo, tão difundido
entre inimigos e aliados, sustentaram por um momento a situação
periclitante de Sútrio, dando tempo para prestar-lhes auxílio.
Dividindo o exército, Camilo deu ordem a seu colega para que
contornasse a cidade com suas tropas e se dirigisse ao lugar
ocupado pelo inimigo, atacando-lhe as muralhas naquele ponto.
Sua esperança não era propriamente tomar a cidade por uma
escalada, mas afastar o inimigo da outra parte para aliviar
os habitantes já cansados de lutar, e ao mesmo tempo apro-
veitar-se da ocasião para atravessar as muralhas do inimigo
sem travar combate. As duas medidas foram tomadas simul-
taneamente dos dois lados, e os etruscos se viram envolvidos
por dupla ameaça: o violento ataque a suas muralhas e a
presença do inimigo na cidade.
Como por acaso houvesse uma porta que não se achava
bloqueada, precipitaram-se em pânico, numa só coluna, por
aquela saída. Foi grande a chacina dos fugitivos na cidade e
nos campos. Os soldados de Fúria trucidaram inúmeros entre
as muralhas, e os de Valéria tiveram ainda mais facilidade em
persegui-los. Até o cair da noite, quando a escuridão impediu-
lhes divisá-los, não cessaram o massacre.
Depois que Sútrio foi retomada e devolvida aos aliados.
o exército romano dirigiu-se a Nepete. que se havia rendido
incondicionalmente aos etruscos.
Retomada de Nepete IO. Tudo levava a crer que seria
aos etruscos mais diffcil a reconquista de Nepe-
te, não só porque se achava total-
mente em poder do inimigo, como também fora entregue pela
traição de uma parte dos nepesinos. Achou-se conveniente man-
dar advertir a seus chefes que se separassem dos etruscos e
mantivessem eles próprios fidelidade ao tratado, como agora
exigiam dos romanos . Ao receberem a resposta de que nada
podiam fazer uma vez que os etruscos controlavam as muralhas
e as portas, os romanos começaram a atemorizar os habitantes
devastando seus territórios. Em seguida. como a fidelidad~ ao
22
HISTORIA DE ROMA
tratado de rendição lhes fosse mais sagrada do que a fidelidade
u aliança. as tropas romanas se aproximaram das muralhas, en-
cheram as trincheiras com feixes de lenha colhidos nos campos.
upoiaram as escadas e ao primeiro grito de guerra. ao primeiro
ussalto, a praça foi tomada.
Os nepesinos receberam ordem de depor as armas e foram
avisados de que seriam poupados os que se achassem desarmados.
Os etruscos, todavia, com armas ou sem elas, foram trucidados .
e os nepesinos responsáveis pela capitulação tiveram suas cabe-
ças decepadas. A multidão inocente recebeu de volta seus bens
c sua cidade, na qual os romanos deixaram uma guarnição. Após
a reconquista das duas cidades aliadas, os tribunos , cobertos de
glória, reconduziram a Roma o exército vitorioso.
Naquele mesmo ano, os romanos exigiram que latinos e
hérnicos informassem o motivo por que nos últimos anos não
tinham enviado suas tropas, de acordo com os termos do
tratado. Uma delegação numerosa das duas nações respondeu
que não fora por culpa do Estado ou por decisão pública que
uma parte da juventude havia servido nas fileiras dos volscos.
Eles haviam sido punidos por sua iniciativa criminosa, pois
nenhum deles voltara à pátria. Por outro lado, fora pelo temor
constante que lhes inspiravam os volscos que não tinham envia-
do seus soldados. calamidade que pesava sobre eles e guerras
sobre guerras não haviam conseguido debelar. Apresentada ao
Senado, essa resposta teria sido suficiente para uma declaração
de guerra. mas o momento não lhe pareceu oportuno.
Projetos sediciosos de I I . o ano seguinte, foram tri-
Marco Mânlio Capitolino. bunos com autoridade consu-
lar Aulo Mãnlio, Públio Cor-
nélio, Tito e Lúcio Qü íncio Capitolino, Lúcio Papírio Cursor e
Caio Sérgio, os dois últimos pela segunda vez. Eclodiu no exte-
rior uma violenta guerra e no interior uma sedição mais violenta
ainda . A ameaça de guerra provinha dos volscos, apoiados pela
defecção dos lati nos e dos hérnicos. A sedição partia de quem
menos se poderia esperar. de um homem de família patricia c
que gozava de excelente reputação: Marco Mânlio Capitolino.
.,-
.. l
 TITO LIVJO
Este cidadão orgulhoso, que desprezava os demais chefes, inve-
java apenas um deles, Marco Fúrio Camilo, famoso por suas
honrarias e por suas virtudes. Via com despeito que só ele se
achava à frente da vida pública, à frente dos exércitos. Camilo
já se erguera tanto sobre os demais, dizia ele, que não conside-
rava os magistrados criados sob os mesmos auspfcios como seus
colegas, mas como seus minitros. Contudo, a rigor, Marco Fúrio
não teria podido recuperar a pátria assediada se ele, Mânlio, não
tivesse antes salvo o Capitólio e a cidadela. Camilo só havia ata-
cado os gauleses quando eles estavam prestes a receber o ouro,
e a esperança de paz lhes havia enfraquecido o ânimo. Ele,
Mânlio, abatera-os quando já empunhavam armas e estavam
prestes a tomar a cidadela. Camilo devia parte de sua glória a
todos os toldados que com ele haviam combatido, mas à vitória
dele, Mânlio, nenhum dos mortais se havia associado.
Com o espírito perturbado por essas idéias e predisposto,
além disso, à cólera e à violência, ao sentir que não gozava de
tão grande prestígio entre os patrícios quanto julgava merecer,
tornou-se o primeiro patrício partidário do povo e pôs-se em
contato com os magistrados da plebe. Acusando os patrícios,
conseguiu aliciar a plebe, preferindo a popularidade à prudência
e a celebridade à boa reputação. Não contente com as leis
agrárias, que sempre constituíram o motivo principal das sedi-
ções dos tribunos da plebe, começou a minar a fidelidade aos
compromissos. Não havia piores torturas do que as dívidas,
dizia ele. Elas não só ameaçam o devedor com a miséria e a
vergonha, mas também fazem pesar sobre homens livres o terror
do flagelo e das cadeias.
Muitas dívidas haviam sido contraídas para as despesas
da reconstrução das casas, funestas até para os ricos. Por esse
motivo a guerra contra os volscos, grave por si mesma e ainda
mais perigosa pela defecção dos latinos e dos hémicos, foi
apresentada como pretexto para recorrer-se a uma autoridade
mais forte. Mas foram sobretudo os planos revolucionários de
Mânlio que levaram o Senado a nomear um ditador, escolhendo
1
Aulo Cornélio Cosso, que por sua vez nomeou Tito Qüíncio
Capitolino comandante da cavalaria.
24
HJSTORIA DE ROMA
12 . O ditador percebia que a luta
Oiscuno de
seria mais acirrada no interior do
Aulo Comélio Cosso.
que no exterior. Entretanto, fosse
porque a guerra exigisse uma ação rápida, fosse _por~ue julgasse
que a vitória e o triunfo consolidariam a própna. dtt~dura, de-
pois de fazer o recrutamento, marchou sobre o temtóno do Po~­
tino, onde ouvira dizer que o exército dos volscos devena
reunir-se.
Não duvido que o leitor, além do cansaço experimentado
ao ler tantos livros sobre essas guerras intermináveis contra
os volscos, se pergunte o que a mim mesmo me s_urpr~endeu
ao examinar minuciosamente os documentos dos htstonadores
mais próximos da época, isto é, como puderam os v_olscos e
os équos, tantas vezes vencidos, levantar no_v os exér~ttos? Os
antigos silenciam sobre a matéria. Que podena eu entao propor
senão uma 0 inião, como cada leitor poderá formar a_ sua
através de suas pr prias conjecturas? t. provável que nos !~ter­
valos entre duas guerras, como atualmente ocorre nos ahsta-
mentos romanos, os volscos se tenham servido de nova clas:e
de jovens para iniciar a guerra. t. provável também que nao
recrutassem sempre seus exércitos entre os mesmos povos, . em-
bora fosse sempre a mesma nação que fizesse a gue~ra. t. amda
provável que houvesse uma multidão de homens hvres nessas
regiões onde, atualmente, existe uma pequena escola de soldados,
e que sem os escravos romanos estariam desertas . Contudo, como
afirmam todos os autores, o exército dos volscos era na verda_de
imenso apesar dos últimos golpes descarregados sob os ausp~ctos
e
0
co~ando de Camilo. A eles se haviam unido os latmos.
os hérnicos, certos circeienses e mesmo os colonos romanos de
Velitras.
Naquele dia o ditador l.!;tabeleceu seu ~cam~amento. No
dia seguinte, depois de ter tom ado os auspíctos, tmolado uma
vítima e implorado os favores dos deuses, ao alvorecer, quando
foi dado 0 sinal de combate e os soldados já empunhavam as
armas segundo as ordens que haviam recebi~o, o ditador apre·
sentou-se alegremente diante das tropas e dtsse:
25
 TITO uvro
"Soldados, a vitória é nossa, se é verdade que os deuses
e seus vates vêem no futuro. Assim, como convém a homens
confiantes numa vitória infalível, e que vão encontrar-se com
inimigos inferiores, deponhamos aos pés nossos dardos e arme-
mos nossos braços apenas com a espada. Gostaria mesmo que
não avançásseis, mas que esperásseis o ataque do inimigo com
toda a firmeza . Depois que eles tiverem lançado seus dardos
inúteis e se atirarem sobre vós que estareis imóveis, então,
quando vossas espadas faiscarem, lembrai-vos de que os deuses
protegem Roma, os deuses que nos enviaram ao combate sob
a proteção de felizes augúrios. Tu, Tito Qüíncio, procurarás
conter a cavalaria, atento ao inicio da luta. Quando vires os
dois exércitos frente a frente, leva os cavaleiros a semear o
pânico nas fileiras inimigas que estarão enfrentando outra difi-
culdade e dispersa os combatentes com uma carga cerrada".
Os cavaleiros e os infantes combateram como Cornéüo
havia ordenado. Assim, o general não falhou a suas legiões,
nem a fortuna ao general.
Vitória dos romanos 13 . A multidão de inimigos con-
sobre os volscos. fiando apenas no número de com-
batentes, ao avaliar de relance os
dois exércitos atirou-se temerariamente ao combate e temeraria-
mente o abandonou.
Depois de lançar o grito de guerra, atirar seus dardos e
atacar com alguma violência no início, não pôde resistir às
espadas, à luta corpo a corpo, nem ao semblante de seus adver-
sários, onde transparecia o ardor belicoso. Suas linhas de frente
foram repelidas e a desordem atingiu as tropas de reserva. A
cavalaria, por sua vez, contribuiu para espalhar o terror. Em
vários pontos foram rompidas as fileiras e todo o exército se
movimentou como vagas num mar agitado. Finalmente, com
a queda dos primeiros combatentes, quando todos perceberam
que o massacre também os atingiria, começou a debandada e
os romanos lançaram-se no encalço de seus adversários.
Enquanto fugiam armados em grupos compactos, somente
a infantaria pôde persegui-los. Mas quando os romanos perce-
26
HISTORIA DE ROMA
beram que os soldados inimigos abandonavam as armas e fu-
giam dispersos pelos campos, lançaram atrás deles os esqua-
drões de cavalaria, com ordem de não se deterem com a ma-
tança de indivíduos isolados e de não darem tempo a que
grosso das tropas se evadisse. Era suficiente barrar-lhes a
0
retirada lançando-lhes dardos, espalhando o terror entre eles,
e cavalgar em torno da coluna de fugitivos para mantê-l~s reu-
nidos até que a infantaria pudesse alcançá-los e extermmá-los
devidamente. .
A fuga e a perseguição não terminaram antes do anottecer.
No mesmo dia foi capturado e saqueado o acampamento dos
volscos, e todos os despojos. exceto os homens livres, foram
distribuídos aos soldados. .
A maior parte dos prisioneiros eram latinos ou hérntcos,
não homens da plebe que se pudesse crer terem comba_tido como
mercenários. Entre eles havia diversos chefes da J~v~nt_ude.
prova manifesta da ajuda oficial prestada ~os volscos tntmtgos.
Foram também reconhecidos alguns circetenses e colo~os de
Velitras. Todos eles foram enviados a Roma e quando mterro-
gados pelos principais senadores revelaram claramenr: a mesma
coisa que haviam dito ao ditador, isto é, a defecçao de seus
respectivos povos.
Revolta de Marco Minlio 14 . o ditador mantinha o exér-
cito em seus quartéis na cer-
contra os patrícios.
teza de que 0 Senado iria or-
denar a guerra contra aqueles povos. Mas u~a ameaça inte:~:
I
maior obrigou-o a regressar a Roma. Progres~tvament~, prep -
va-se uma sedição mais temível que as antenores devtdo à ;at~­
goria de seu autor. Já não eram apenas os discursos de Manlto
que deviam ser considerados, mas seus atos aparen~ement_e favo-
ráveis ao povo, que aumentavam a desordem pela mtençao com
que se realizavam.
Ao ver um centurião famoso por seus feitos militares ser
condenado como insolvente e levado à prisão, ~ânlio ac?rreu
ao Fórum com seus comparsas e libertou-o. Depots de voc1ferar
27
 TITO LlVIO
contra o orgulho dos patrícios, a crueldade dos usurários, a
miséria da plebe, as virtudes e infortúnios daquele homem ,
declarou : " Inútil teria sido eu ter salvo com minhas próprias
mãos o Capitólio e a cidadela se consentisse que um cidadão.
um companheiro de armas, fosse reduzido à escravidão e ao
cárcere como um prisioneiro dos gauleses vencedores".
Pagou publicamente a soma devida ao credor e liberou
pela moeda e a balança 8 o centurião, que se retirou rogando
aos deuses e aos homens que dessem graças a Marco Mãnlio,
seu libertador, pai da plebe romana. Imediatamente cercado
por uma turba agitada, ele próprio aumentava a agitação exi-
bindo as cicatrizes recebidas nas guerras contra Véios, contra
os gauleses e outras de que participara. Enquanto se achava
em campanha , dizia ele, e procurava reerguer seus penates
derrubados, embora tivesse pago inúmeras vezes o valor de
sua dívida , os juros aumentavam cada vez mais e a usura
terminara por esmagá-lo. Se ainda podia ver a luz do dia,
o Fórum , os semblantes de seus concidadãos, devia-o exclusiva-
mente a Marco Mãnlio, de quem recebera beneffcios paternais.
Por esse motivo dedicava-lhe o que lhe restava de força, de
vida e de sangue. Todos os laços que até então o haviam
prendido à pátria e a seus penates públicos e privados, daquele
momento em diante o prenderiam somente àquele único homem.
Como a plebe instigada por essas palavras já estivesse
dominada por aquele único homem, ele recorreu a outro meio
mais eficiente para estabelecer a confusão. Sua propriedade em
território veiense, a mais importante de seu patrimônio, ele
a teria levado a leilão " para não permitir que nenhum de vós,
quirites, enquanto me restarem bens, venha a ser condenado
por dívidas e preso por seu credor".
8 . A venda pela " moeda e a balança" consistia no seguinte: o pe-
sador público, na presença de cinco cidadãos romanos como testemunhas,
apresentava a balança. O comprador, que levava uma moeda de bronze,
pronunciava uma fórmula que cjeclarava a compra. Batia em seguida com
a moeda na balança e a entregava ao vendedor como garantia da compra.
Esse costume originou-se na época em que os romanos ai nda pesavam o
cobre por não possuírem moedas.
28
HISTORIA DE ROMA
Essas palavras inflamaram de tal modo os ânimos que
todos pareciam dispostos a seguir, por meios lícitos ou ilícitos,
aquele defensor da liberdade. Em sua própria casa, Mânlio
dirigia-se aos seus em tom de orador de comícios, acusando
os senadores. Sem preocupação de distinguir o verdadeiro do
falso , afirmava que os tesouros do ouro gaulês haviam sido
escondidos pelos patrícios, que já não se contentavam em
possuir as terras do Estado, mas queriam também desviar o
dinheiro dos cofres públicos. Que se essas riquezas fossem
descobertas seria possível libertar a plebe de suas dívidas.
Quando esses fatos foram revelados, a plebe esperançosa
considerou um crime indigno ter dado, por uma contribuição
imposta, todo seu ouro para resgatar a cidade do domínio gaulês
e esse mesmo ouro, reconquistado ao inimigo, tornar-se proprie-
dade de alguns poucos.
A plebe perseguia Mânlio com perguntas para saber onde
estava escondido um roubo tão importante. E como ele protelava
a resposta dizendo que revelaria o segredo em ocasião mais
oportuna, as atenções se fixaram nesse assunto e os demais
foram desprezados. Era evidente que nem o reconhecimento
da plebe, caso a denúncia fosse verdadeira, nem sua indignação,
caso fosse falsa, seriam moderadas.
Debate entre Aulo Comélio 15 . A situação permanecia
e Marco Minlio. em suspenso quando o dita-
dor, que se achava em cam-
panha, foi convocado e regressou a Roma. No dia segu~nte, _de-
pois de reunir o Senado e inteirar-se das intenções dos crdadaos,
recomendou aos senadores que não se afastassem dele. Cercado
por um número grande de senadores, mandou colocar sua ca-
deira na assembléia e em seguida enviou um viador a Marco
Mânlio.
Ao receber o chamado do ditador, Mânlio avisou a seus
partidários de que a luta iria começar e apresentou-se no
tribunal acompanhado de numerosa multidão. De um lado os
senadores. do outro, a plebe , todos tinham os olhos fixos em
29
 TITO UVIO
seus chefes e mantinham-se como em linha de batalha. Quando
se fez silêncio, o ditador tomou a palavra :
" Oxalá eu e os senadores romanos possamos entender-nos
em todos os assuntos com o povo, do mesmo modo como estou
convencido de que nos entenderemos no que te diz respeito e no
que tenho de investigar sobre ti. Vejo que deste aos teus con-
cidadãos a esperança de poderem , sem trair seus compromissos,
pagar suas dívidas com os tesouros arrebatados aos gauleses
e escondidos pelos principais patrfcios. Tanto não me oponho
a isso, Marco Mânlio, que, ao contrário, te exorto a que libertes
a plebe romana de suas dívidas e arranques a presa clandestina
desses homens que ocultam os tesouros públicos. Se não o
fizeres, ou porque tu mesmo tens parte nesse negócio, ou
porque tua denúncia carece de fundamento , mandar-te-ei prender
e não suportarei mais que continues a excitar esta multidão
com esperanças falazes" .
Mânlio replicou que não se tinha enganado. Não se havia
eleito um ditador contra os volscos, tantas vezes inimigos quan-
tas conviesse ao Senado, nem contra os latinos e os hérnicos,
arrastados à guerra por falsas acusações, mas contra ele próprio
e a plebe romana . Ao abandonarem agora aquela guerra que
não passara de pretexto, lançavam-se contra ele. O ditador já
se proclamara protetor dos usurários e contra a plebe. E para
desgraçá-lo, acusavam-no como a um criminoso pelo prestígio
que conquistara entre a massa . E acrescentou: " O que te ofende,
Aula Cornélio, e a vós, senadores, é ver essa multidão agrupada
em redor de mim? Por que não a afastais de mim com vossos
benefícios, intercedendo, arrebatando vossos concidadãos às
prisões, impedindo que sejam condenados por dívidas e escra-
vizados por -"se us credores, sustentando-os em suas necessidades
com o supérfluo de vossas riquezas? Mas por que hei de exortar-
vos a sacrificar vossos bens? Contentai-vos com o capital, perdoai
os juros acumulados por vossa usura e minha escolta não será
mais numerosa do que a de qualquer um de vós. Mas por que
somente eu me ocupo da sorte de meus concidadãos? Nada tenho
a responder, do mesmo modo que não teria se me perguntásseis
por que sozinho também salvei o Capitólio e a cidadela. Naquela
30
HISTORIA DE ROMA
ocasião prestei o serviço que me cabia à coletividade, do mesmo
modo que agora o presto a indivíduos isolados. No que se
refere aos tesouros arrebatados aos gauleses, esse assunto tão
simples por sua natureza vossa pergunta vem tomar difícil.
Por que me perguntais o que sabeis? Por que me mandais
sacudir o que se oculta nas dobras de vossas togas, ao invés
de mostrardes, vós mesmos, se houve fraude ou não? Quanto
mais me pressionais para que descubra vossa esperteza, mais eu
receio que tenhais iludido até aos mais perspicazes. Assim , não
sou eu quem deve revelar vossas falcatruas , mas vós é que
deveis esclarecê-las··.
Prisão de Marco Mânlio. 16 . O ditador ordenou-lhe
Descontentamento da plebe. que dispensasse os subterfú-
gios e pressionou-o a que pro-
vasse a verdade de suas afirmações ou confessasse o crime
de ter caluniado os senadores, atraindo sobre eles a hostili-
dade do povo por conta de um roubo inexistente. Mânlio decla-
rou que se recusava a falar para atender a um capricho de seus
adversários e o ditador lhe de u ordem de prisão. Detido pelo
viador ele exclamou : " Grande e excelente Júpiter, Juno Rainha,
Minerva e todos os outros deuses e deusas que habitais o Capi-
tólio e a cidadela , permitireis que vosso soldado e defensor seja
assim maltratado por seus inimigos? Estas mãos com que expul-
sei os gauleses de vossos santuários serão presas em cadeias?"
Ninguém suportava ver e ouvir tamanha indignidade. Mas \
o Estado se impusera como de.ver supremo a o~ediêocia à auto-
ridade, e contra o poder do d1tador, nem os tnbunos da plebe,
nem a própria plebe ousavam levantar os olhos ou abrir a boca.
Depois que Mânlio foi encarcerado, grande parte da plebe,
segundo consta, trocou de vestes. Muitos homens deixaram cres-
cer os cabelos e a barba, e uma multidão desolada mantinha-se
no vestíbulo da prisão.
O ditador triunfou na luta contra os volscos , mas seu
triunfo lhe atraiu mais ódio do que alegria. Murmurava-se que
ele o havia conquistado na cidade e não no exército, na luta
31
 TITO LfVIO
contra um cidadão e não contra o inimigo. Para satisfazer seu
orgulho só faltara conduzir Mânlio diante de seu carro.
A revolta estava prestes a eclodir. Para apaziguá-la, o
Senado tornou-se subitamente generoso sem que ninguém o
pedisse. Espontaneamente, ordenou a partida de dois mil colonos
romanos para Sátrico, recebendo cada um duas jeiras e meia
de terras. Mas esse remédio não fez senão acirrar ainda mais
os ânimos, porque essa dádiva insignificante concedida a poucos
cidadãos foi interpretada como o preço pago pela traição a
Mânlio.
Os partidários de Mânlio eram cada dia mais numerosos
com suas vestes de luto e seu aspecto de acusados. Após o
triunfo e a abdicação do ditador, removida a ameaça da dita-
dura, o povo livre do terror recomeçou a manifestar seus senti-
mentos.
Libertação de Marco Mânlio. 17 . Já se ouviam algumas
vozes censurando aberta-
mente o povo pelo costume de levar seus defensores até a bei-
ra do abismo e em seguida abandoná-los no momento de pe-
rigo. Assim sucedera a E~púrio Cássio, que convidara o povo
a partilhar das terras, assim a Es úrio Méli , que tentara com
seus próprios recursos salvar seus concidadãos da fome. Do
mesmo modo, Marco Mânlio, que restituíra a liberdade e a espe-
rança a grande parte dos cidadãos, fora entregue a seus inimi-
gos. A plebe engordava seus partidários para que fossem dego-
lados. Havia merecido Mânlio, um ex-cônsul, aquele tratamento
por não ter obedecido a uma ordem do ditador? Mesmo supon-
do-se que ele tivesse mentido antes e não soubesse depois o que
responder, alguma vez já se punira com o cárcere um escravo por
ter mentido? Ninguém conservara a lembrança daquela noite
que quase fora a última, a noite eterna para o nome de Roma?
E o espetáculo do exército gaulês escalando a rocha Tarpéia?
Teriam visto o próprio Marco Mânlio quando, empunhando suas
armas, coberto de suor e sangue, quase arrebatou o próprio Jú-
piter das mãos do inimigo? Achavam por acaso que meia libra
de farinha fora suficiente para recompensar o salvador da pá-
32
HISTóRIA DE ROMA
tria? E aquele que haviam quase elevado aos céus, que pelo
menos por seu cognome (Capitolino) haviam igualado a Júpiter,
seria agora abandonado, encerrado nas trevas de um calabouço,
condenado a viver entregue aos caprichos de um verdugo?
Quando um só homem bastou para defendê-los a todos, seria
po sível que todos juntos não pudessem servir de auxílio a esse
único homem?
A multidão nem mesmo à noite abandonava o local, amea-
çando derrubar as portas da prisão, quando um senadoconsulto
restituiu a liberdade a Mânlio e concedeu ao povo o que ele
estava disposto a arrebatar. Essa medida , longe de acalmar a
sedição, deu-lhe um chefe.
Naqueles mesmos dias, latinos e hérnicos, juntamente com
os colonos circeienses e os de Yelitras, que procuravam justi-
ficar sua participação na guerra dos volscos e pedir seus prisio-
neiros para castigá-los conforme suas leis, receberam enérgica
resposta de Roma , sobretudo os colonos porque, sendo cidadãos
romanos, haviam concebido o nefando projeto de lutar contra
sua pátria. Além de negar-lhes os prisioneiros, o Senado impôs-
lhes uma humilhação que havia poupado aos aliados: ordenou-
lhes que saíssem quanto antes da cidade e se afastassem da
presença do povo romano. Receavam que por serem eles cida-
dãos romanos, o direito dos povos estabelecido para os estran·
geiros já não os protegesse.
Discurso de Marco Mânlio 18 . Com o recrudescimento
à plebe. da sedição de Mânlio, no fim
do ano realizaram-se as elei-
ções, sendo nomeados tribunos militares com autoridade con-
sular Sérvio Cornélio Maluginense, Públio Valéria Potito, Sér-
vio Sulpício Rufo, Caio Papírio Crasso e Tito Qüíncio Cin-
cinato, todos pela segunda vez, e Marco Fúrio Camilo, pela
quinta vez.
No começo desse ano, a paz conseguida no exterior foi
muito oportuna tanto para os patrícios quanto para os plebeus.
Para a plebe porque, não sendo convocada para o serviço mili-
tar, concebia a esperança de destruir a usura com o auxílio
33
 TITO LfVIO
de seu poderoso chefe. Para os ·patrícios porque nenhuma
ameaça externa desviaria sua atenção da tarefa de sanar os
males da cidade. Assim, pois, os dois partidos se haviam levan-
tado com mais ardor que nunca e a luta já se aproximava.
Convocando a plebe para reunir-se em sua casa, Mânlio
discutia seus projetos dia e noite com os chefes da revolução,
com maior orgulho e cólera do que outrora, pois o recente
ultraje acirrara o ódio naquele espírito pouco afeito às ofensas.
Orgulhava-se porque o ditador não havia ousado tratá-lo como
Qüíncio Cincinato tratara a Espúrio Mélio, porque a revolta
causada por sua prisão havia levado o ditador a abdicar a
ditadura e nem o próprio Senado pudera sustentá-lo.
Ao mesmo tempo envaidecido e irritado com a situação,
Mânlio excitava ainda mais os ânimos já inflamados da plebe:
"Até quando ignorareis vossas forças que a natureza nem às
feras permitiu ignorar? Contai ao menos quantos sois e quantos
adversários tendes. Assim como antes éreis muitos clientes em
torno de um só patrono, assim sereis agora muitos contra um
s~ inimigo. Ainda q~e nesta lut~ fôsseis um contra um, acre-
I
dato que combatetíeas com maas ardor por vossa liberdade
do que eles por sua dominação. Mostrai somente a guerra, e
tereis a paz. Quando virem que estais dispostos a empregar
a força, eles próprios abdicarão de seus direitos :!! preciso que
unidos todos ousem fazer alguma coisa ou sofra cada um todas
as afrontas. Até quando tereis os olhos fixos em mim? :!! certo
que nunca faltarei a nenhum de vós, mas vigiai para que minha
sorte não me falte. Eu próprio, vosso defensor, deixei de existir
quando pareceu conveniente a meus inimigos e vós todos, reu-
nidos, vistes algemado aquele mesmo que arrebatara as algemas
a cada um de vós. O que esperar se nossos adversários ousarem
dar mais um passo contra mim? Deverei esperar o destino de
Cássio ou de Mélio 9 ? Fazeis bem em repelir o mau presságio
dizendo que os deuses o impedirão. Mas por minha causa jamais
eles descerão dos céus. Faço votos para que eles vos dêem
a coragem de impedi-lo, como deram valor a mim. com as armas
9 . Cf.livros 11, cap. 41: e IV, cap. 14.
34
HISTóRIA DE ROMA
e a toga, para defender-vos contra inimigo~ bárbaros., ~ontra
orgulhosos concidadãos. :!! assim tão mesquanho o espmto ~e
tão grande povo que vos contentareis sempre com a proteçao
de vossos inimigos e jamais vos atrevereis a combater os patrí-
cios a não ser para fixar os limites do poder que poderão ter
sob;e vós? Isto não é próprio de vossa natureza, mas já estais
dominados pelo hábito. Por que mostrais tanto valor contra
o estrangeiro a ponto de vos parecer justo exercer domínio
sobre ele? Porque contra ele estais acostumados a lutar pela
supremacia, ao passo que contra os patrícios só vos habituastes
a tentar e não a defender vossa liberdade. Entretanto, quaisquer
que tenham sido vossos chefes, como quer que tenhais agido,
tudo o que até agora exigistes, por mais importante que fosse,
conseguistes obter ou pela violência ou por vossa fortuna. E
chegada a hora de maiores empreendimentos. Tentai ao men~~
experimentar vossa boa sorte e a mim mes~o, que esper?. Ja
ter sido aprovado. Tereis menos trabalho em ampor aos patnc1os
quem os governe do que tivestes para impor-lhes homens que
se opuseram a eles quando eram senhores absolutos. E preciso
eliminar ditaduras e consulados para que a plebe romana possa
erguer a cabeça. Portanto, manifestai-vos e impedi a conde-
nação por dívidas. Quanto a mim , declaro-me patrono da plebe,
título que me conferem meu zelo e minha fidelidade. Quanto
a vós, se derdes a vosso chefe um título que seja o sinal de seu
poder e de sua honorabilidade, tereis alguém mais poderoso
para conseguir o que desejais".
Foi a partir de então, diz-se, que Mânlio começou a agir
para obter o trono. Mas a tradição não diz claramente com
quem ele tramara nem até onde chegaram seus planos.
Reação do Senado. 19 . Por outro lado, o Senado con-
siderou perigosa ameaça à liberdade
aquelas reuniões numa casa particular, por acaso situada ~a
própria cidadela. Grande parte dos sena~or~s declarou ~ue se~1a
necessário um Servílio Ahala capaz de por f1m àquelas d1ssensoes
internas com o extermínio de um único cidadão, ao invés de
irritar ainda mais a plebe com a prisão de um inimigo público.
35
 TITO UVJO
A decisão adotada, embora mais suave na forma , teria contudo
a mesma força. Ficou decidido que os magistrados zelariam para
que a república não sofresse qualquer prejuízo, em decorrência
da perniciosa conspiração de Mânlio.
Os tribunos consulares e os tribunos da plebe (pois todos
~sses magistrados, ao perceberem que seu poder se extinguiria
JUntamente com a liberdade de todos, haviam apoiado o Senado)
deliberaram sobre o que convinha fazer. Como ~guém ocor-
resse outro meio a não ser a violência e a morte, e compreen-
dessem que a violência teria por conseqüência uma terrível luta
os tribunos da plebe Marco Menênio e Quinto Publílio tomara~
a palavra:
. " Por que, disseram eles, transformarmos em luta de patrí-
CIOS e plebeus o que deveria ser a luta da cidade contra um
único cidadão nocivo? Por que atacarmos a plebe por causa
desse homem, quando é muito mais garantido fazer que a
própria plebe o ataque, a fim de que ele se desgrace por suas
próprias forças? Pretendemos citá-lo perante os tribunais. Nada
é menos popular do que a realeza. Quando a multidão com-
preender que não combatemos contra ela, quando os defensores
se converterem em juízes, quando aparecerem acusadores ple-
beus e virem um patrício acusado pelo crime de aspirar à rea-
leza, ninguém estará disposto a lutar senão por sua própria
liberdade" .
Condenação e suplício 20. Com a aprovação de todos,
de Marco Mânlio. Mânlio foi citado em juízo. A ple-
be ficou abalada logo que soube
da ocorrência e sobretudo quando viu o acusado coberto de
andrajos, sem um senador a seu lado, sem parentes ou amigos
e: fi~alm.ente, sem seus irmãos Aulo e Tito Mânlio. Até aquele
d1a Jamats acontecera em semelhante situação que parentes do
acusado deixassem de mudar as vestes. Quando Ápio Cláudio
fora preso, Caio Cláudio, seu inimigo pessoal, e toda a família
Cláudia vestiram trajes de luto. Agora todos se uniam para
oprimir um amigo do povo, por ter sido ele o primeiro patrício
a aderir à plebe.
36
HISTCRIA DE ROMA
As acusações apresentadas pelos acusadores contra o acusa-
do no dia do julgamento (além de se referirem às reuniões do
povo, aos discursos sediciosos, às prodigaliàades e à falsa
denúncia). sobretudo aquelas que se relacionavam com o crime
de aspirar à realeza , não encontrei em nenhum historiador. Mas
não tenho dúvidas de que foram bastante graves, visto que
a hesitação do povo em decidir pela condenação foi determinada
mais pelo local do julgamento do que pela própria causa . Esse
fato parece-me digno de nota, para que os homens saibam
quantas e quão nobres ações, quando movidas pela vergonhosa
paixão de reinar , podem ser privadas de recompensa c to/
nadas odiosas.
Diz-se que Mânlio apresentou cerca de quatrocentos ho-
mens cujas dívidas havia pago sem qualquer interesse, impe-
dindo que seus bens fossem vendidos ou sua pessoa reduzida
à escravidão. Não contente de rememorar as honrarias rece-
bidas na guerra, apresentou provas dignas de serem vistas: os
despojos de trinta inimigos mortos por ele e quarenta prêmios
recebidos de seus generais, entre os quais duas coroas murais e
oito cívicas. Além disso, apresentou os cidadãos que havia salvo
do inimigo, entre os quais Caio Servílio, comandante da cava-
laria, nomeado por ele em sua ausência.
Após ter rememorado seus feitos na guerra numa linguagem
magnífica e digna da grandeza dos feitos, desnudou o peito
marcado de cicatrizes recebidas na guerra. Em seguida, com
os olhos fixos no Capitólio, invocou em socorro de sua desgraça
Júpiter e os outros deuses. Suplicou-lhes que, naquele momento
crítico de sua vida, dessem ao povo romano os sentimentos
que lhe haviam inspirado quando protegera a cidadela e o
Capitólio, para salvar o povo romano. Finalmente, rogou aos
juízes, juntos e separadamente, que contemplassem o Capitólio
e a cidadela e se voltassem para os deuses imortais antes de
julgá-lo.
Como o povo fora convocado para reunir-se por centúrias
no Campo de Marte e o acusado, estendendo as mãos em direção
ao Capitólio, afastava-se dos homens para invocar os deuses,
os tribunos compreenderam que. se não desviassem a atenção
 TITO UVIO
da massa das coisas que lhe relembravam tantas glórias, nunca
poderiam convencer aqueles espíritos imbuídos de gratidão
do crime cometido por Mânlio. Por esse motivo, o julgamento
foi adiado, e convocou-se o povo para um encontro no bosque
sagrado de Petelino, depois da porta Flumentana, donde não
se avistava o Capitólio. Nesse local o crime ficou patenteado
e aqueles homens inflexíveis pronunciaram uma sentença fatal.
que os próprios juízes consideraram cruel .' Há quem diga que
foram os duúnviros, nomeados para investigar sobre o crime
de alta traição, que condenaram Mânlio. Os tribunos man-
daram precipitá-lo da rocha Tarpéia, e o mesmo local ser-
viu para o mesmo homem de monumento de glória e de cas-
tigo supremo.
- Depois de sua morte Mânlio foi desonrado duas vezes: uma
de caráter público, quando se propôs ao povo que impedisse
qualquer patrício de habitar a cidadela ou o Capitólio, porque
sua casa situava-se no local onde hoje se ergue o templo e a
oficina de Moneta; outra de caráter doméstico, quando a família
Mânlio resolveu que a partir de então nenhum de seus membros
receberia o nome de Marco Mânlio.
Este foi o fim de um varão digno de memória se não
tivesse nascido numa cidade livre.
Depois de passado o perigo, o povo lamentou a sorte de
Mânlio, recordando-se apenas de suas qualidades. Além disso ,
sobreveio uma peste sem que fossem descobertas as origens
de tal calamidade, e muitos acreditaram que se tratava de um
castigo pelo suplício de Mânlio. Diziam eles que o Capitólio
fora violado com o sangue de seu sa lvador e os deuses não
haviam aprovado o castigo aplicado, diante de seus olhos, àquele
que havia arrebatado seus templos das mãos do inimigo.
Preparativos de guerra. 21 . Em conseqüência da peste
a colheita foi escassa e, ao divul-
gar-se a notícia desses dois flagelos, no ano seguinte eclodiu a
guerra em diversas frentes . Eram tribunos militares com autori-
dade consular Lúcio Valério, pela quarta vez, Aulo Mânlio,
38
HISTORIA DE ROMA
Sérvio Sulpício, Lúcio Lucrécio e Lúcio Emílio. todos pela ter-
ceira vez, e Marco Trebônio.
Além dos volscos, que o destino parecia ter escolhido para
exercitar eternamente o soldado romano, das colônias de Circéios
e de Velitras, que há algum tempo vinham tramando sua de-
fecção, do Lácio sempre suspeito, os lanuvinos, povo até então
fidelíssimo mas que se tornara nosso novo inimigo, revoltaram-
se subitamente.
Ao julgarem que os lanuvinos agiam dessa maneira por
desprezo a Roma , que por muito tempo deixara impune a traição
dos veliternos, seus concidadãos, os senadores decidiram propor
ao povo, na primeira ocasião, uma declaração de guerra contra
eles. A fim de melhor preparar a plebe para essa campanha,
nomearam quinquéviros para dividirem o território do Pontino
e triúnviros para levarem colonos para Nepete. Propuseram en-
tão ao povo a declaração de guerra, e todas as tribos votaram
a favor da declaração, apesar da oposição dos tribunos da
plebe.
Os preparativos de guerra foram executados naq~ele ano,
mas a peste que grassava impediu a marcha do exérctto. Esse
impedimento daria tempo aos colonos de apelar par~ o Senado,
e grande número dentre eles estaria inclinado a envtar ~ Roma
uma embaixada de suplicantes, se o temor de alguns parttculares
não houvesse, como sempre, colocado seus interesses aci~a. do
interesse público. Por receio de serem apontados como os umcos
responsáveis pela defecção e entregues como expiação à cólera
dos romanos, os instigadores desviaram as colônias ~e suas
intenções pacíficas. Não só impediram o envio de embatxadores
ao Senado como também incitaram grande parte da plebe a
sair para ~aquear o território romano. Esse novo ultraje elimi-
nava qualquer esperança de paz.
Naquele ano falou-se pela primeira vez na defecção dos
prenestinos. Diante das provas apresentada.s c~ntra e~es pe.los
tusculanos gabinos e labicanos. cujos terntónos havtam stdo
invadidos, ' o Senado respondeu com tanta calma que dei xava
transparecer que não dava crédito àquelas acusações por não
desejar que fossem verdadeira .
 TITO UVIO
Guerra com os volscos 22 . No ano seguinte, Espú-
sob o comando de Camilo. rio e Lúcio Papírio, novos tri-
bunos militares com autorida-
de consular, conduziram as legiões até Velitras, deixando seus
qu_atro colega~ Sérvio Cornélio Maluginense, tribuno pela ter-
ceira vez, Qumto Servílio, Caio Sulpício e Lúcio Emílio, tri-
b~~os pela quarta vez, encarregados de proteger a cidade e de
v1g1ar qualquer movimento que se fizesse anunciar dos lados da
Etrúria, donde tudo se podia esperar.
Contra um exército auxiliar de prenestinos quase mais
numeroso do que a própria multidão de colonos houve em
Velit~as um combate tão favorável aos romanos que ~ vizjnhança
da , c~dade c_o~correu para a fuga prematura do inimigo e foi
o umco refug10 após a debandada.
Os tribun~s absti_veram-se de atacar a cidade não só porque
o result~do _sena du~1doso como também porque julgavam que
a colôma nao devena ser destruída. A carta que enviaram ao
Senado em Roma, com as notícias da vitória, era mais violenta
contra o inimigo prenestino do que contra o veliterno. Assim ,
por um senadoconsulto e o voto do povo foi declarada guerra
aos prenestinos.
No ano seguinte, aliados aos volscos, os prenestinos toma-
ram de_assalto Sátrico, colônia do povo romano, obstinadamente
defend1da pelos colonos, e praticaram após a vitória toda a sorte
de crueldade contra seus prisioneiros. Não podendo tolerar a
ofensa, os romanos nomearam Marco Fúrio tribuno mmtar pela
sexta ve~, . dan~~lhe ~o.r colegas Aulo e Lúcio Postúmio Regi-
lense, Luc10 Funo, Luc1o Lucrécio e Marco Fábio Ambusto.
A guerra contra os volscos foi confiada em caráter extra-
ordinário a Marco Fúrio. Para seu auxiliar a sorte escolheu
o t~ib~no Lú~io Fúrio, que trouxe poucos benefícios para a
repub!Jca e fot causa de grandes elogios a Camilo. Este, como
g~neral, restabeleceu uma situação comprometida pela teme-
ndade ~e seu colega: e como cidadão privado, valeu-se desse
erro ma1s para conqUistar seu colega do que propriamente para
se cobri r de glória.
40
HISTóRIA DE ROMA
Camilo já se achava em idade avançada e preparava-se
para pronunciar o juramento habitual nos comícios para isentar-
se do serviço militar, mas o povo, de comum acordo, não
consentiu . Um coração viril batia ainda naquele peito robusto.
Estava ainda muito forte , com todos os sentidos perfeitos, e
se já não se ocupava dos problemas políticos, a guerra o levava
a agir.
Depois de mobilizar quatro legiões, cada uma formada
de quatro mil homens 10, convocou o exército para, no dia
seguinte, formar diante da porta Esquilina, e marchou para
Sátrico.
Confiantes em suas tropas numericamente superiores, os
conquistadores da colônia os esperavam sem o menor temor.
Ao perceberem a aproximação dos romanos, imediatamente orga-
nizaram-se em fileiras , dispostos a travar o combate decisivo
sem demora. Assim, a habilidade de um chefe único, no qual
tanto confiavam, de nada valeria aos romanos por serem pouco
numerosos.
Imprudência de Lúcio Fúrio. 23 . O mesmo ardor ani-
mava o exército romano e
seu outro chefe. A sorte que resultaria daquela luta iminente
era retardada apenas pela prudência e o poder de um único ho-
mem que, ao prolongar a guerra, procurava aliar a ciência à
força. O inimigo pressionava cada vez mais. Já não se conten-
tava em manobrar suas fileiras diante do acampamento, mas
avançava até o meio da planície e levava suas insígnias quase até
a trincheira romana, exibindo orgulhosa confiança em suas for-
ças. Os soldados romanos mal conseguiam suportá-lo, e menos
ainda um dos tribunos mmtares, Lúcio Fúria, ardoroso pela
idade e temperamento, enfatuado pelas esperanças da tropa e
pela insegurança do êxito. Excitava ainda mais o ardor pessoal
dos soldados atacando a autoridade de seu colega no único
10. Formada no início por mil homens, como indica a própria pa·
lavra miles (soldados), a legião romana passou depois a ser constituída
por três e quatro mil homens. No império atingiu uma cifra mais elevada.
41
 TITO LfVIO
ponto possível, isto é, na idade. Repetia que a guerra devia ser
confiava aos jovens, pois do mesmo modo que o corpo, os senti-
mentos fortificavam-se e enfraqueciam-se. Assim, o mais ardente
guerreiro transformava-se num contemporizador. O homem que
costumava logo à sua chegada tomar de assalto acampamentos
e cidades, agora permanecia atrás de suas trincheiras perdendo
tempo. Que esperava com isso? Aumentar suas forças ou dimi-
nuir as do inimigo? Em que ocasião? Em que momento? Qual
o local propício para armar uma emboscada? Os planos de um
ancião eram tímidos e morosos. Camilo, pessoalmente, já estava
saturado de uma longa vida e de tantas glórias. Por que deixar
envelhecer com o corpo desse único mortal as forças de uma
cidade que deveria ser imortal?
Com esses arrazoados Lúcio Fúrio conseguira atrair todo
o exército e, como todas as fileiras exigissem o combate, dirigiu-
se a CamHo dizendo: " Marco Fúrio, não podemos conter o ardor
dos soldados. O inimigo cuja coragem aumentamos com a nossa
hesitação, insulta-nos com uma insolência que já não podemos
tolerar. Cede à vontade de todos e deixa-te vencer em teu ponto
de vista, para seres mais depressa vencedor no combate"~
A essas palavras Camilo respondeu que até aquele dia, nas
guerras travadas exclusivamente sob seus auspícios, nem ele
nem o povo romano queixara-se de suas resoluções ou de sua
fortuna. Agora , entretanto, sabia que tinha um colega igual a
ele em direitos e poderes, superior pelo vigor da idade. Quanto
ao exército, estava acostumado a comandá-lo e não a ser coman-
dado por ele. Mas não podia opor-se à vontade de seu colega.
Fizesse pois, com a ajuda dos deuses, o que julgasse útil à
república. De sua parte, pedia apenas, em atenção a sua idade,
não ser colocado na linha de frente , embora estivesse disposto
a executar todos os encargos de um ancião na guerra. A única
prece que dirigia aos deuses imortais era que um desastre não
viesse justificar a prudência de seu conselho.
Nem os homens escutaram tão sensata advertência, nem
os deuses ouviram preces tão piedosas. O responsável pela
decisão dispôs a linha de frente, enquanto Camilo fortificava
as tropas de reserva e instalava uma sólida guarn ição diante
42
HISTóRIA DE ROMA
do acampamento. Depois subiu a uma colina, onde permaneceu
como espectador, atento aos resultados de uma decisão que não
fora sua.
Fracasso de Lúcio Fúrio. 24 . Ao primeiro entrechoque
Vitória de Camilo. das armas, os inimigos recua-
ram, não por temor, mas por
astúcia. Em sua retaguarda, entre o exército e o acampamento,
havia uma suave encosta onde foram deixadas algumas valen-
tes coortes armadas e dispostas em linha de batalha. Uma vez
travado o combate, elas deveriam irromper quando os roma-
nos se aproximassem das trincheiras. Ao perseguirem em desor-
dem 0 inimigo que recuava, os romanos foram atraídos àquela
posição desvantajosa, favorecendo desse modo a manobra do
inimigo. O terror apossou-se dos vence~ores, e a presen7a . do
novo inimigo e a inclinação do terreno ftzeram recuar as ftletr~s
romanas. As tropas de reserva dos volscos que acabavam de satr
do acampamento precipitaram-se sobre eles. Por sua vez, os que
haviam retrocedido simulando uma fuga retornaram ao combate.
Os soldados romanos já não batiam simplesmente em retirada,
mas, esquecendo seu ardor recente e sua velha dignidade, faziam
meia-volta e em fuga desordenada procuravam alcançar o acam-
pamento.
Foi então que Camilo, com o auxílio dos que o rodeavam ,
montou a cavalo, avançou com suas tropas de reserva a_o e_n·
contro dos fugitivos e gritou: "Era este o combate que extgíets,
soldados? Qual é o homem ou o deus que pretendeis acusar?
Primeiro, uma imprudência, agora, a covardia! Seguistes outro
chefe. Pois bem, segui agora Camilo e sede vencedores, como
sempre o fostes sob meu comando! Por que fixais os olhos na
trincheira e no acampamento? Nenhum de vós entrará senão
como vencedor".
Primeiro, a vergonha fez parar os desertores. Em ~e~u~da ,
ao verem as insígnias e as fileiras voltarem-se contra o lnt~rugo.
seu general, famoso por tantos triunfos, venerável por sua tdade
avançada, expor-se na linha de frente, no ponto em ~ue a l~ta
seria mais acirrada e maior o perigo, censuraram-se a SI própnos
43
 TITO I.IVIO
e a seus companheiros, encorajando-se reciprocamente, de modo
que seus gritos entusiastas percorreram todas as fileiras.
O outro tribuno também não faltou ao seu dever. En-
quanto Camilo procurava restabelecer as fileiras da infantaria,
enviou seu colega ao encontro da cavalaria. Sem acusar os cava-
leiros, pois não se sentia com autoridade para tanto, uma vez
que ele próprio também compartilhara do erro, substituiu o
tom de comando pelo de súplica, pediu a cada um separada-
mente e a todos em conjunto que o perdoassem pelo fracasso
daquele dia e o eximissem de acusações : " Apesar da oposição
e da proibição de meu colega, preferi associar-me à imprudência
de todos a seguir a sabedoria de um só homem . Camilo, seja
qual for vosso destino, terá sua glória assegurada . Quanto a
mim, se o combate não se restabelecer (o que seria terrível des-
graça), sofrerei juntamente com todos vós a infelicidade, mas
arcarei sozinho com a infâmia".
Em meio àquelas fileiras flutuantes , o que pareceu mais
eficiente foi abandonar os cavalos e avançar a pé contra o
inimigo. Distinguindo-se por suas armas e sua coragem, os
cavaleiros dirigiram-se para o local onde perceberam que a
infantaria estava sendo mais castigada. Em momento algum o
ardor dos chefes e dos soldados arrefeceu naquela luta deci·
siva. O êxito correspondeu ao esforço e à coragem dos soldados.
Os volscos se dispersaram, agora em fuga verdadeira, pelo mes-
mo caminho que haviam percorrido em sua fuga simulada, pere-
cendo grande número deles no combate e na fuga, e os demais
no acampamento, que foi tomado no mesmo ataque. Contudo,
houve mais prisioneiros do que mortos.
Reação pacifica dos 25 . Ao recensear os prisioneiros, fo-
tusculanos. ram identificados vários tusculanos.
Separando-os dos demais, os solda-
dos conduziram-nos à presença dos tribunos e, ao serem inter-
rogados, confessaram que haviam empunhado armas por deter-
minação de seu governo. Movido pelo temor de uma guerra tão
próxima , Camilo declarou que levaria imediatamente aqueles
prisioneiros a Roma . a fim de que o Senado toma sse conheci-
44
IIIST ORIA DE ROMA
menta da traição dos tusculanos. Seu colega , se estivesse de
acordo, assumiria naquela ocasião o comando do acampamento
e do exército.
Um só dia bastara a Lúcio Fúria para não impor sua
opinião à de outros mais experientes. Entretanto, .nem ele p~ó­
prio, nem qualquer soldado do exército, acred!tava Cam1lo
disposto a aceitar calmamente o erro que hav1a exposto. a
república a cair num verdadeiro abism~. Tanto. no exérc1t0
quanto em Roma, a opinião geral a respe1t0 dos d1versos lances
da campanha contra os volscos era que o frac~sso. e a fuga
deviam imputar-se a Lúcio Fúria, e as honras da v1tóna a Marco
Fúria.
Depois que os prisioneiros foram apresentados ao Senado,
os senadores compreenderam que era necessário declarar guerra
aos tusculanos, e confiaram o comando da luta a Camilo. Para
dirigir as operações Camilo solicitou um auxiliar. Livre de
escolher entre seus colegas aquele que preferisse, contra a
expectativa geral ele escolheu Lúcio Fúrio. Com essa atitude,
atenuou o fracasso de seu colega e aumentou consideravelmente
seu prestígio.
Não houve, todavia , guerra com os tusculanos. Por uma
atitude obstinadamente pacífica, repeliram as forças de Ro~a ,
0 que não teriam conseguido pelas armas. Quando o exérc1t.o
romano invadiu-lhes o território , ninguém abandonou os loca1s
próximos ao trajeto das tropas nem interrompeu os tr?bal~os
da lavoura . Abertas as portas da cidade, numerosos c1d~daos
togados saíram para receber os generais romanos , e da c1dade
e dos campos trouxeram víveres para o exército.
Camilo estabeleceu o acampamento diante das portas da
cidade, desejando saber se a atitude pacífica qu~ verificar.a no
campo correspondia à da cidade. Entrou em Tusculo e VIU .as
portas das casas abertas, as tabernas expondo suas mercadonas
ao público os operários atentos às suas tarefas e as escolas
repercutindo as vozes dos alunos aprenden~o suas lições. As
ruas estavam cheias de gente, mulheres e cnanças que peram-
bulavam em todas as direções. Em parte alguma observou algo
que se assemelhasse ao medo ou ao espanto. Camilo olhava em
45
 TITO UVIO
tomo, procurando algum indício de guerra, mas não encontrou
vestígio de um objeto retirado ou colocado propositalmente.
Tudo estava tão calmo e pacífico que era difícil acreditar que
rumores de guerra tivessem chegado até aquela cidade.
Entendjmentos entre
Túsculo e Roma.
26 . Vencido pela paciência dos ini-
migos , Camilo ordenou-lhes que con-
vocassem o Senado e declarou : " Tus-
culanos, fostes os únicos que encontrastes as verdadeiras armas,
as verdadeiras forças para proteger-vos contra a cólera dos
romanos. Ide ao Senado em Roma , e os senadores julgarão
se antes merecestes o castigo ou agora mereceis o perdão. Não
reivindicarei o reconhecimento por um benefício que deve ser
~e carát:r público. Quanto a mim, deixo-vos a liberdade para
Intercede-lo. O Senado dará às vossas sú plicas a acolhida que
lhe convier".
Quando os tusculanos chegaram a Roma e os senadores
viram, no vestíbulo da cúria, aqueles aliados, outrora fi éis e
agora aflitos, ficaram enternecidos e mandaram chamá-los em
termos mais amistosos que hostis. O ditador tusculano tomou
a p.atavra : " Senadores, nós a quem declarastes e fizestes guerra,
ass1m como nos vedes agora apresentando-nos no vestíbulo de
vossa cúria, do mesmo modo saímos armados e preparados ao
encontro de vossos generais e de vossas legiões. Esta foi e será
s:mpre nossa atitude e a de nosso povo, a não ser que um
d1a recebamos armas de vossas mãos para lutar por vós. Agra·
decemos a vossos chefes e a vossos exércitos por terem acredi-
tado mais em seus olhos do que em seus ouvidos, e não terem
agido com hostilidade contra um povo que nada tinha de hostil.
A paz que nós respeitamos também a imploramos de vós e
rogamos que leveis a guerra aos povos que a desejarem. 'se
tivermos de experimentar o poder de vossas armas contra nós
preferimos experimentá-lo desarmados. Tais são nossas inten:
ções. Praza aos deuses imortais que nos sejam tão proveitosas
quanto são sinceras! Quanto às ofensas que vos levaram a de-
clarar-nos guerra, embora seja inútil contestar com palavras 0
que já foi desmentido pelos fatos. julgamos que não nos seria
46
HISTóRIA D E ROMA
perigoso confessá-las depois de tão evidente arrependimento,
mesmo que fossem verdadeiras. Possa alguém vos trair enquanto
permanecerdes dignos de receber tais satisfações I"
Foram estas aproximadamente as palavras pronunciadas
, -
pelos tusculanos, que obtiveram imediatamente a paz e, logo
depois _o direito de cidadania. As legiões romanas foram reti-
radas de Túsculo.
Sedição da plebe 27 . Após se ter destacado por sua
por motivo prudência e coragem na guerra contra
de dívidas. os volscos, por sua boa sorte na expedi-
ção contra Túsculo, e nessas duas guer-
ras por sua pac1encia e excepcional tolerância para com seu
colega, Camilo abandonou seu cargo.
Para o ano seguinte foram eleitos tribunos militares Lúcio
e Públio Valéria, Lúcio pela quarta vez e Públio pela terceira,
Caio Sérgio, também tribuno pela terceira vez, Lúcio Menênio,
pela segunda , Públio Papírio e Sérgio Cornélio Maluginense.
Naquele ano houve também necessidade de censores, sobretudo
por causa de incertos rumores sobre dívidas.
Além dos tribunos da plebe que, por má-fé, exageravam
o montante da dívida , havia os que o diminuíam , por interesse
em atribuir a situação dos devedores antes à desonestidade que
ao estado de sua fortuna. Foram nomeados censores Caio Sul-
pício Camerino e Espúrio Postúmio Regilense. Entretanto, logo
depois de iniciadas suas fun ções, elas foram interrompidas com
a morte de Postúmio, pois um escrúpulo religioso impedia a
nomeação de um novo colega para censo r. Assim , Sulpício ab-
dicou de sua magistratura e outros censores foram nomeados.
Mas uma irregularidade nas eleições impediu-os de exercer o
cargo. Pareceu então sacrilégio tentar uma terceira eleição, como
se os deuses não aprovassem a censura naquele ano .
Os tribunos da plebe declaravam que não se devia tolerar
aquela burla. Os senadores esquivavam-se de apresentar as listas
oficiais, que revelariam a fortuna de cada um. Não queriam
revelar ao povo o montante das dívidas, que demonstraria que
uma parte dos cidadãos era devorada pela outra. Enquanto
47
 TITO LIVIO
~ isso. lançnvam o povo endividado contra novos inimigos, e
1\procuravam a guerra indistintamente e por toda parte. Con-
duziam as legiões de Ãncio a Sátrico, de Sátrico a Velitras e
1 de Velitras a Túsculo. No momento ameaçavam latinos, hérnicos
e prenestinos, mais por ódio aos concidadãos do que ao inimigo,
a fim de manter a plebe em armas, não deixar-lhe tempo sequer
para respirar em Roma, nem pensar na liberdade ou ass\stir
às reuniões públicas, onde pudesse ouvir a voz dos tribunos
tratar da solução para o problema das dívidas e do término
de tantas injustiças. Se a plebe ainda se recordava da liberdade
de seus antepassados, não permitiria fosse adjudicado por dívidas
qualquer cidadão romano, nem que fosse realizado recruta-
mento antes de ser examinado o problema das dívidas e estu-
dados os meios de reduzi-las. Cada um tomaria consciência do
que lhe pertencia e do que pertencia ao outro, e saberia se
ainda possuía um corpo livre ou teria de entregá-lo aos chicotes.
O prêmio oferecido à sedição provocou-a imediatamente.
No momento em que a multidão de devedores era adjudicada
a seus credores, surgiu a notícia de uma guerra contra os prenes-
tinos, e os senadores decidiram recrutar novas legiões. Secun-
dado pelos tribunos, o povo opôs-se a que se realizassem essas
duas medidas simultâneas. Os tribunos não consentiam no alis-
tamento dos cidadãos sentenciados, e os jovens se recusavam
a inscrever-se. No momento, os senadores preocupavam-se menos
em fazer valer os direitos dos credores do que em fazer o alis-
tamento. Conforme se anunciava, os inimigos, partindo de Pre-
neste, já se haviam estabelecido no território de Gábios. A
notícia, ao invés de acalmar os tribunos da plebe, serviu para
excitá-los ainda mais na luta que haviam encetado. Nada pôde
debelar a sedição em Roma a não ser a guerra. quando chegou,
por assim dizer, até suas muralhas.
Ameaça dos prenestinos. 28. Quando os prenestinos sou-
beram que não havia exército ar-
regimentado em Roma nem general nomeado, e que patrícios
e plebeus estavam em luta uns contra os outros, seus chefes.
aproveitando-se da ocasião. avançaram rapidamente com seus
48
HISTORIA DE ROMA
exércitos, devastaram o território romano e levaram suas tropas
até a porta Colina. Imensa foi a agitação na cidade. Com
gritos de "às armas!" o povo correu para as muralhas e para
as portas da cidade, abandonando a sedição para se ocupar com
a guerra. Nomeou ditador Tito Qüíncio Cincinato, e este, por
sua vez, nomeou Auto Semprônio Atratino comandante da ca-
valaria.
Quando o inimigo teve conhecimento desse fato - ial era
o terror que inspirava aquele magistrado - afastou-se das mu-
ralhas, e os jovens romanos , obedecendo ao edito, apresentaram-
se sem resistência.
Enquanto em Roma o exército era arregimentado, os ini-
migos estabeleceram acampamento não muito longe do rio Alia.
Devastando grande extensão do território, vangloriavam-se de
ter estabelecido acampamento em posição fatal para a cidade
de Roma . Agora eles iriam ver os romanos apavorados e em
fuga como na guerra contra os gauleses. Se os romanos temi~m
aquele dia a ponto de o terem assinalado como nefasto e desig-
nado com o nome do local, muito mais do que o " dia do Alia"
deveriam temer o próprio Alia, que lhes recordava tão grande
calamidade. Teriam presente com certeza a imagem ameaçadora
dos gauleses e pensariam ouvir seus gritos terríveis.
Revolvendo esses pensamentos vãos sobre fatos igualmente
vãos, os prenestinos haviam depositado suas esperanças na sorte
daquele local. Os romanos, ao contrário, onde quer que encon-
trassem os latinos como inimigos, sabiam muito bem que eram
os mesmos que após terem sido vencidos no lago Regilo eles
haviam mantido em paz e sujeição durante cem anos. Aquele
local, que lhes recordava um fracasso , serviria antes de estímulo
para apagarem a lembrança de sua desonra e não para ame-
drontá-los por existir uma terra onde não pudessem vencer.
Ainda mais: se os próprios gauleses se apresentassem naquele
local os romanos lutariam como haviam lutado em Roma pela
reco~quista de sua pátria, como no dia seguinte em Gábios.
onde haviam conseguido que não sobrevivesse um só dos gau-
leses que haviam atravessado as muralhas de Roma. para anun-
ciar aos compatriotas sua vitória ou sua derrota.
49
 TITO UVIO
Captura de nove cidades 29 . Tais eram as disposições
por Tito Qüíncio. dos dois exércitos ao aproxima-
rem-se do Áli&. Ao divisar o
inimigo em linha de batalha, o ditador disse: " Não vês, Aulo
Semprônio, que eles confiaram na fortuna do local ao estabele-
cer-se às margens do Alia? Não lhes deram os deuses imor-
tais presente mais valioso, nem auxílio maior. Tu, que confias
em tuas armas e na coragem dos cavaleiros, concita-os e ataca
o centro das fileiras. Quando suas linhas estiverem desbarata-
das, eu avançarei com as insígnias de nossas legiões. Ajudai-nos,
deuses testemunhas dos juramentos, e vingai-nos daqueles que
vos ultrajaram e colocaram-se sob vosso patrocínio para nos
trair".
Os prenestinos não puderam resistir nem à cavalaria, nem
à infantaria. Ao primeiro encontro, ao primeiro grito de guerra,
suas fileiras foram desbaratadas. Não podendo enfrentar o
ataque em parte alguma, debandaram dispersos, movidos pelo
pânico, ultrapassaram o acampamento, e só se detiveram ao
avistar Preneste.
Após a debandada que os dispersara, escolheram uma po-
sição que trataram de fortificar apressadamente, temendo que
o inimigo lhes incendiasse os campos, caso se abrigassem atrás
de suas muralhas, e depois da devastação partisse para o cerco
da cidade. Mas quando os romanos vencedores se aproximaram,
depois de saquearem o acampamento do Alia, os prenestinos
se viram forçados a abandonar também aquela trincheira. Jul-
gando não haver proteção fora de suas muralhas, os habitantes
se refugiaram em Preneste.
Além dessa cidade, havia mais oito com a denominação
de prenestinas. A guerra foi travada em todas essas cidades, que
foram capturadas sem grandes lutas. O exército romano dirigiu-
se então a Velitras, que também foi ca~turada, e em segu ida
regressou a Preneste, principal centro de operações. A cidade
foi reconquistada sem violência, uma vez que se rendeu. Depois
de sair vencedor numa batalha campal, de ter tomado de assalto
dois acampamentos e nove cidades inimigas e de ter conseguido
a rendição de Preneste, Tito Qüíncio regressou a Roma e, em
50
HISTóRIA DE ROMA
triunfo, conduziu ao Capitólio a estátua de Júpiter Imperador,
que havia trazido de Preneste. A estátua foi consagrada entre
o santuário de Júpiter e o de Minerva. Em memória dos feitos
gloriosos de Qü(ncio, ioi colocada na base da estátua uma placa
com uma inscrição mais ou menos nestes termos : "Júpiter e \
todos os deuses permitiram q~e o ~itador Tito Qüí~cio :~pt~­
rasse nove cidades". No vigéstmo dta de sua nomeaçao Qumcto
abdicou da ditadura.
Fracasso dos Minlios. 30. Em seguida foram eleit~s tri-\
Coragem dos soldados. bunos militares com autondade
consular, igualando-se o número
de atricios e de plel>eus. Como patrícios foram nomeados Pú-
blio e Caio Mânlio e Lúcio Júlio, e como plebeus Caio Sextílio,
Marco Albínio e Lúcio Antístio. Os Mânlios, superiores aos ple-
beus por sua origem e a Júlio por seu prestígio, receberam o
comando da guerra contra os volscos, em caráter extraordinário,
sem que tivesse havido sorteio ou qualquer ajuste entre seus
colegas. Mas em breve eles próprios e os senadores arrepende-
ram-se dessa designação.
Antes de fazer o reconhecimento do terreno, os Mânlios
enviaram as coortes para se abastecerem de provisões. Diante
da falsa notícia de que se achavam cercados, eles acorreram
em seu auxílio, sem terem ao menos detido o mensageiro (um
inimigo latino disfarçado em soldado romano para enganá-los)
e caíram numa emboscada.
Enquanto os romanos, em posição desvantajosa , conse-
guiam resistir devido apenas à coragem de seus soldados, que
matavam e se deixavam matar, o inimigo atacou o acampamento
romano situado no outro lado da planície. Em ambos os pontos
a situação foi comprometida pela temeridade e falta de tática
de seus generais. A coragem e a firmeza dos soldados foi a
sorte do povo romano, pois mesmo sem chefes eles conseguiram
resistir.
Quando esses acontecimentos foram anunciados em Roma,
o primeiro pensamento foi nomear um ditador. Mas depois que
correu a notícia de que os volscos permaneciam tranqüilos e
51
 TITO LIVIO
tudo indicava que não sabiam aproveitar-se da vitória e da
ocasião, o Senado ordenou o regresso do exército e de seus
generais. Reinou sossego na cidade, pelo menos no que dizia
respeito aos volscos. Mas no fim do ano essa paz foi perturbada
quando os prenestinos se revoltaram depois de terem sublevado
os latinos.
No mesmo ano alistaram-se novos colonos para Sécia.
que se queixava da falta de habitantes. Em meio aos in-
sucessos militares, Roma teve como consolo a paz interna.
conseguida graças ao prestígio e à majestade dos tribunos
militares plebeus.
Devastação do território 3 1. No início do ano seguinte
dos volscos. eclodiu violenta revolta, quan-
do eram tribunos militares com
autoridade consular Espúrio Fúrio, Qui nto Serv11io, pela segunda
vez, Lúcio Menênio, pela terceira, Públio Clélio, Marco Horácio
e Lúcio Gegânio. A matéria e o motivo da sedição eram as dívi-
das , e para procederem ao seu arrolamento Espúrio Servflio
Prisco e Quinto Clélio Sículo foram nomeados censores, embora
nada pudessem fazer por causa da guerra . No início apareceram
mensageiros alarmados, e logo depois camponeses em fuga com
a notícia de que legiões dos volscos haviam penetrado em terri-
tório romano e devastado o campo em diversos pontos. Nessa
si tuação crítica, a ameaça externa não foi suficiente para conter
as discórdias civis. O poder tribunício opôs-se com maior violên-
cia ainda ao recrutamento até conseguir dos patrícios a promessa
de que, enquanto durasse a guerra, ninguém pagaria tributo nem
seria citado em juízo por dívidas. Depois que a plebe conseguiu
esse alívio, ninguém mais ofereceu obstáculos ao recrutamento.
Arregimentadas novas legiões, ficou decidido que dois exér-
citos marchariam contra o território dos volscos e seriam coman-
dados separadamente: Espúrio Fúrio e Marco Horácio tomariam
a direita, pela orla marítima, até Ãncio, e Quinto Servílio e Lúcio
Gegânio , a esquerda, pelo lado das montanhas até Ecetra.
ão se apresentando o inimigo a nenhum dos dois exér-
citos. os romanos entregaram-se à pilhagem . não de modo seme-
52
HI STóRIA DF ROMA
Jhante ao dos volscos, que, confiantes na discórdia do inimi~o
c temendo seu valor, agiam em meio à desordem e à confusao
como verdadeiros salteadores, mas a uma pilhagem executad~
por um exército em seu pleno direito, movido por cólera legi-
tima que o tempo tornava ainda mais terrível. . ,
Temerosos de que naquela ocasião o exérc1to sa1sse __de
Roma, os volscos haviam restringido suas incursões às reg10es
fronteiriças. Os romanos. ao contrário. preferiram permane~er
em território inimigo, a fim de atraí-lo ao combate. Ass1m ,
somente depois de terem incendiado todas as casas espalhada,s
pelo campo e algumas aldeias, sem deixar uma só árvore frull-
fera ou terra semeada que pudesse dar esperança de colheita ,
depois de terem arrebanhado homens e animais enco~trados
fora das muralhas. os dois exércitos foram reconduz1dos R
Roma .
Vitória sobre latinos 32 . Terminada a guerra, extinguiu-
e vo1scos. se o curso prazo concedido aos de-
vedores para que respirassem , e eles
voltaram a ser perseguidos. A esperança de diminuir as antigas
dívidas era remota . O povo foi obrigado a contrair outras,
a fim de pagar um tributo estabelecido pelos censores, para
a construção de uma muralha de pedras de cantaria. A plebe
foi forçada a arcar com esse ônus, uma vez que os tribunos
da plebe não tinham nenhum alistamento a impedir. ~
Sob a pressão dos poderosos foram eleitos apenas tribunos
militares patrícios: Lúcio Emílio, Públio Valério , pela quarta
vez, Caio Vetúrio, Sérvio Sulpício, Lúcio e Caio Qüfncio Cinci-
nato . Sob a mesma pressão, conseguiu-se. sem que ninguém
e opusesse, fazer os jovens prestar juramento e organizar três
exércitos para rechaçar os latinos e os volscos . cujas legiões
reunidas acampavam perto de Sátrico. O primeiro para guardar
a cidade, o segundo para poder enfrentar algum ataque repen-
tino , caso se verificasse algum movimento de qualquer lado.
c 0 · terceiro , que era de todos o mais forte, marchou contra
Sátrico sob o comando de Públio Valério e Lúcio Emílio.
'j)
 TITO UVI O
Ao encontrar na planície o exército inimigo organizado em
linha de batalha, os romanos o atacaram imediatamente. Mas
no momento em que os romanos combatiam com grandes espe-
ranças, embora ainda não fosse muito certa a vitória, violenta
tempestade interrompeu a luta. No dia seguinte recomeçou o
combate, e durante algum tempo, principalmente as legiões lati-
nas, que por sua longa aliança com Roma estavam habituadas
à disciplina militar dos romanos, resistiram com valor e sorte
iguais. Mas um ataque da cavalaria desorganizou-lhes as fileiras
e, em meio à confusão, a infantaria avançou com suas insígnias.
Quanto mais avançava o exército romano, mais recuavam os
inimigos. E uma vez que a sorte da batalha se inclinou para
o lado dos romanos, não foi mais possível resistir à sua violência.
Os inimigos desbaratados, ao invés de se refugiarem em seu
acampamento, refugiaram-se em Sátrica a duas milhas de dis-
tância do local, sendo massacrados, sobretudo pela cavalaria .
Seu acampamento foi tomado e saqueado.
. Na noite que se seguiu ao combate, numa marcha que
mats se assemelhava a uma fuga , os sobreviventes partiram de
Sátrico para Âncio. Embora o exército romano os seguisse de
perto, o medo foi mais ligeiro do que a cólera, e os inimigos
atravessaram suas muralhas antes que os romanos pudessem
atacá-los e impedir o avanço de sua retaguarda. o exérci to
romano aproveitou alguns dias para devastar o território, uma
vez que não possuía aparato bélico suficiente para assa ltar as
muralhas. O inimigo, por sua vez, não se achava em condições
de correr os riscos de um combate.
Guerra com os latinos. 33 . Sobreveio então uma desa-
Retomada de Túsculo. vença entre os anciates e os lati-
nos. Vencidos por tan tos males
c subjugados por; uma guerra na qual haviam nascido e enve-
lhecido, os ancia tes pensavam em render-se, ao passo que os
latinos, saindo de uma paz duradoura e de uma recente revolta.
sentiam-se ainda mais estimulados a perseverar na guerra. A
disputa se encerrou quando todos reconheceram que nenhum
54
HISTORIA DF. ROMA
dos dois povos tinha o direito de impedir o outro de realizar
seus intentos . Os latinos se retiraram para não se comprome-
terem num tratado de paz que consideravam desonroso.
Livres dos incômodos juízes de seus projetos pacíficos,
os anciates entregaram sua cidade e seus territórios aos romanos.
A cólera e o ódio dos lati nos, que não tinham conseguido
prejudicar os romanos com a guerra nem manter os volscos em
armas, eclodiu com tal violência que incendiaram Sátrico. seu
primeiro refúgio após a derrota. A não ser o templo de Mãe
Matuta 11 , não restou uma só casa naquela cidade, onde lança-
ram tochas em todos os edifícios sagrados e profanos. Diz-se
que não se detiveram por escrúpulos religiosos ou por temor
dos deuses, mas porque ouviram uma voz horrenda no interior
do templo, com ameaças fata is caso não afastassem do santuário
suas tochas sacrílegas.
Inflamados pela mesma cólera, seu ímpeto levou-os a Tús-
culo, por ódio aos tusculanos, que haviam abandonado a aliança
comum dos latinos e se tornaram, não só aliados dos romanos.
mas também seus concidadãos. Atacando de improviso a cidade,
cujas portas estavam abertas, ca pturaram-na ao primeiro grito
de guerra , à exceção da cidadela. Os habitantes refugiaram-se
na fortaleza com suas mulheres e filhos, e enviaram mensageiros
a Roma para informar o Senado sobre sua desgraça.
Com uma prontidão digna da lealdade do povo romano, um
exérci to marchou em direção a Túsculo, sob o comando dos
tribunos militares Lúcio Qüíncio e Sérvio Sulpício. Encontraram
fechadas as portas de Túsculo e os latinos, transformados ao
mesmo tempo em sitiantes e sitiados, tiveram , de um lado. que
defender as muralhas de Túsculo, e de outro. que atnca r n
fortaleza: ao mesmo tempo ameaçar c temer.
tt . Há várias inrcrprcraçõcs: I: orne sob o qual )uno tinha um
altar em Roma . no mercado das plantas. 2.• Divindade romana, a mesma
Leucótoe ou Leucótca grega. 3.• Antiga divindade itálica que protegia os
nascimentos c representava a luz da manhã, a luz matutina . Foi idcntifi-
c::lda com a Auror;1
-.,
 TITO LCVIO
A chegada dos romanos havia mudado os sentimentos dos
dois adversários. Os tusculanos de um temor imenso haviam
passado à maior alegria, ao passo que os latinos, ao invés da
confiança, da quase certeza de em breve apossar-se da cidadela,
uma vez que haviam capturado a cidade, alimentavam agora
precária esperança de salvação. Da cidade la os tusculanos er-
gueram um grande clamor que foi respondido por um grito
ainda maior da parte do exército romano. Os latinos se viram
atacados pelos dois lados e não puderam sustentar o ataque dos
tusculanos que se precipitavam da cidadela, nem puderam repelir
os romanos que já escalavam as muralhas e tentavam romper
a barreira das portas. Primeiro, com o auxílio de escadas, foram
tomadas as muralhas e, em seguida, arrombadas as trancas das
portas. Rechaçados por dois inimigos, na frente e na retaguarda,
não tendo mais forças para combater nem local onde se refugiar,
os inimigos foram exterminados até o último homem. Uma vez
retomada Túsculo ao inimigo, o exército regressou a Roma .
Projetos de Marco Fábio Ambusto 34. Naquele ano,
em favor da plebe. quanto mais as vi-
tórias militares ga-
rantiam a paz no exterior, tanto mais se multiplicavam em Ro-
ma, dia a dia, as violências dos patrícios e a miséria da plebe.
Queriam obrigá-la a pagar suas dívidas. mas a impossibilitavam
de pagá-las. Como já não tinham recursos de que dispor , os deve-
dores pagavam com sua honra e seu corpo. Condenados e adjudi-
cados, satisfaziam aos credores libertando-se do compromisso
através do castigo. Em conseqüência, os plebeus, dos mais humil-
des aos principais cidadãos da plebe, haviam chegado a tal pon-
to de dependência e submissão, que nem sequer solicitavam ou
queriam desempenhar as magistraturas plebéias, quanto mais
disputar aos patrícios o tribunato militar pelo qual haviam luta-
do tantas vezes. Não havia um só homem suficientemente ousa-
do e empreendedor para arriscar-se a tanto . A posse de um
cargo, exercido durante alguns anos pela plebe, parecia usur-
pada para sempre pelos patrícios. Entretanto, para que nenhum
dos dois partidos pudesse alegrar-se excessivamente, sobreveio,
56
HISTóRIA DE ROMA
como sempre acontece, uma pequena causa que produziu um
grande efeito.
Marco Fábio Ambusto, homem de prestígio entre os de
sua classe e também junto à plebe, que sabia que ele não . a
desprezava, possuía duas filhas casadas, a mais velha cc:m ~érv10
Sulpício e a mais nova com Caio Licínio Estola, varao Ilustre
mas de origem pleb~ia. Pel~ fato . de não ter menosprezado essa/
aliança Fábio anganara a stmpatta da plebe.
Quis a sorte que um dia as duas irmãs estivessem reunidas
em casa de Sérvio Sulpício, tribuno militar, passando o tempo
em conversas como habitualmente faziam , quando Sulpício, ao
regressar a c~sa vindo do Fórum, mandou que o _Hctor, como
de costume, batesse à porta com a verga. Ao ouvtr o barulho
a mais jovem das Fábias, que ignorava o costume, ficou assus-
tada. Sua irmã riu-se, espantada com a ignorância da outra.
Esse riso ofendeu profundamente a suscetibilidade feminina,
sempre prestes a comover-se diante de fatos os mais insigni-
ficantes. A presença daqueles homens , que escoltavam o tribuno
e se informavam sobre seus desejos , levou-a a considerar o casa-
mento de sua irmã feliz e a arrepender-se do seu, creio eu que
movida pelos maus sentimentos que todos nós experimentamos
de não querer ser menos do que nossos parentes.
Ao encontrá-la, por acaso, ainda perturbada por essa re-
cente mágoa , seu pai perguntou-lhe: " O que tens?" Embora
procurasse dissimular a causa de seu sofrimento, que ~em era
lisonjeiro para sua irmã, nem honroso para seu mando, ele
conseguiu , interrogando-a carinhosamente, arranca~-!he a .con-
fissão de que seu desgosto era motivado pela .umao destg~al
que a colocara numa casa onde nem as honranas, nem .as to-
fluências, poderiam penetrar. Ambusto consolou sua ft~ha e
exortou-a a ter coragem. Dentro de algum tempo ela ven~ e~
sua casa as mesmas honrarias que vira em casa de sua trma .
Começou então a fazer planos com seu genro, d~pois de ter
conseguido a adesão de Lúcio Séxtio, jovem _mutto em~reen­
dedor, que não se projetara ainda porque nao descendta de
família patricia.
57
 TITO UVIO
O posição de Séxtio e Licínio 35. A ocasião parecia opor-
à nomeação de tuna para sublevar a plebe
magistrados curuis. onerada de dívidas, pois, a
não ser colocando plebeus
no poder supremo, o povo não poderia esperar alívio para
esse mal. Era necessário, por conseguinte, prepararem-se com
ess~ objetivo. ~om esforços e empreendimentos os plebeus já
havta~ dado tao grande passo que, se tivessem perseverança,
podenam chegar ao ponto mais alto e igualar-se aos patrícios
tanto em dignidades como em valor. No momento resolveram
candidatar-se ao tribunato da plebe, para depois de alcançar
aquela magistratura terem acesso a outras dignidades.
No~eados tribunos, Caio Licfnio e Lúcio Séxtio propu-
seram lets totalmente contrárias aos interesses dos patrícios e
a favor d~ plebe. A primeira sobre dívidas, exigindo que uma
vez deduztdo do montante os juros já pagos, o devedor pudesse
saldar o restante em parcelas iguais durante três anos. A se-
g~nda_ sobre a extensão. das propriedades, proibindo a qualquer
ctdadao a posse de mats de quinhentas jeiras de terra. A ter-
ceira proibindo a eleição de tribunos militares e obrigando
a que , d~n~tre. os dois cônsules eleitos, um fosse da plebe. Todas
Ieram extgenctas sumamente graves, que não podiam ser satis-
feitas sem lutas violentíssimas.
Ao verem questionadas ao mesmo tempo todas as coisas
que mais excitam a ambição dos homens, como ~ro riedade
o d_in ~ro e -~s honrarias, os patrícios aterrorizados , depois d~
mutta dtscussao em reuniões públicas e privadas, não encontra-
ram out~o. remédio a não ser a oposição tribunícia, já tantas
v~zes uttltzada nas lutas anteriores, conseguindo de alguns
trtbunos que combatessem os projetos de seus colegas.
Q~ando Licínio e Séxtio chamavam as tribos para votar,
esse~ tnbunos, cercados por uma guarda de patrícios, impediam
a lettura dos projetos de lei, bem como as demais formalidades
usadas nas votações populares. Depois de terem inutilmente
convocado várias assembléias, quando já se consideravam derro-
tadas todas as propostas, Séxtio tomou a palavra: "Muito bem.
Uma vez que tanto vos agrada o poder da intercessão. com essa
58
HISTOR I A DE ROMA
mesma arma protegeremos a plebe. Vamos, senadores, anunciai
as eleições de tribunos militares! Eu farei com que não aprecieis
mais a paJavra "veto", que agora ouvis com tanto prazer quando
nossos colegas a pronunciam em coro".
Não eram vãs aquelas ameaças. Não houve mais eleições,
a não ser para edis e tribunos da plebe. Reeleitos tribunos da
plebe, Licínio e Séxtio não mais permitiram a nomeação de
nenhum magistrado curul. Como o povo reelegia sempre os
dois tribunos e eles impediam a eleição de tribunos militares,
Roma permaneceu sem esses magistrados durante cinco anos.
AuxíUo aos tusculanos 36. Felizmente não havia
contra os velitemos. ameaça de guerra. Apenas
Lutas entre patrícios e plebeus: os colonos veliternos, exul-
problema das dívidas. tantes com a inércia de
Roma , que na ocasião não
possuía um exército, fizeram algumas incursões em território
romano e ousaram atacar Túsculo.
Diante dessa notícia e do pedido de socorro dos tusculanos,
antigos aliados e novos concidadãos, não só os patrícios mas
também a plebe experimentaram profundo sentimento de humi-
lhação. Com a permissão dos tribunos da plebe, um inter-rei
presidiu às eleições, nas quais foram eleitos tribunos militares
Lúcio Fúrio, Auto Mânlio, Sérvio Sulpício, Sérvio Comélio,
Públio e Caio Valério.
A plebe, porém, não se mostrou tão obediente ao recru-
tamento quanto às eleições. Somente depois de um grande
esforço para recrutar um exército, os tribunos partiram para
Túsculo e não só rechaçaram o inimigo daquela cidade como o
perseguiram até suas próprias muralhas. Sitiaram então Velitras,
com violência maior do que a dos veliternos quando sitiaram
Túsculo. Contudo, os tribunos que empreenderam o cerco não
puderam capturar a cidade, visto que novos tribunos militares
haviam sido nomeados: Quinto Servílio, Caio Vetúrio, Auto e
Marco Cornélio, Quinto Qüfncio e Marco Fábio. Esses tribunos,
todavia, nada fizeram de memorável em Velitras.
59
 TITO uvro
Em Roma a situação se tornava cada vez mais cnllca
Alé~ de .séxtio e Licfnio, autores dos projetos de lei e qu~
h~vaam sado reeleitos tribunos da plebe pela oitava vez 0
tnbuno militar Fábio, sogro de EstoJo, autor daquelas J~is.
apresent~va-se co~o seu verdadeiro mentor. Dos oito membros
d~ colég10 dos tnbunos da plebe que se opunham às leis, já
nao restavam mais do que cinco. E estes mesmos, como geral-
mente a~onrec~ ~os que se afastam de sua classe, enleados e
ento~pecados, l~":llavam-se em sua oposição a repetir palavras
alheaas como hçao que lhes era ensinada. Diziam que grande
par~e da plebe se achava ausente servindo ao exército em
Vehtras, e por esse motivo as eleições deviam ser adiadas até
a volta dos soldados, para que toda a plebe pudesse votar sobre
assunto de seu interesse.
. Séxti~ . e Licín.io, com uma parte de seus colegas, e o
tnbun~ militar Fábao, que graças a tantos anos de experiência
se havaam tomado peritos na arte de conduzir os ânimos da
plebe, levavam à presença do povo os principais patrícios e
cumulavam-nos de perguntas sobre cada um dos projetos a~re­
sen.tados ao. povo. Ousariam eles exigir o direito de possuir
~a•s. de_ qumhentas jeiras de terra, quando aos plebeus eram
d astnbuadas apenas duas jeiras? Pretenderiam possuir cada um
os bens de cerca de trezentos cidadãos, quando 0 terreno do
plebeu l~e dava lugar suficiente apenas para erguer sua casa
ou seu tumulo? Agradava-lhes ver o povo esmagado pela usura
quando o pagamento do capital deveria libertá-lo, e obrigad~
a :nt~egar seu corpo aos açoites e aos suplícios? E os devedores
adJu~acados serem diariamente tocados do Fórum como reba-
nhos . E as casas .dos nobres repletas de prisioneiros, de tal
modo que onde habatava um patrício existia um cárcere privado?
Lutas entre patrícios
37. Depois de bradarem contra es-
e plebeus:
sas indignidades lamentáveis dian-
demanda do consulado.
te de ouvintes que experimenta-
. . . vam grande receio por sua pró-
pna pessoa e mdagnação maior do que os próprios tribunos,
declararam eles que os patrícios jamais poriam limites à con-
60
Hl TOR I A DF ROMA
quista de terras do Estado, nem ao massacre do povo pela
usura, enquanto a plebe não conseguisse nomear um cônsul ple-
beu, guardião de sua liberdade.
Os tribunos da plebe já eram desprezados porque seu
poder fora abalado pela oposição interna. Não se podia fala
em igualdade de direitos enquanto o poder supremo estivesse
nas mãos dos patrícios, e em mão dos plebeus apenas o direito
de defesa. Se a plebe não participasse do poder supremo jamais
teria igualdade de direitos na república. Não havia quem jul-
gasse suficiente o fato de os plebeus apresentarem seus candi-
datos ao consulado. A menos que se tornasse obrigatório que
um dos cônsules fosse da plebe, jamais haveria cônsul plebeu .
Porventura o povo já se havia esquecido de que, em
quarenta e quatro anos, depois de aprovada a nomeação de
tribunos militares em substituição aos cônsules, a fim de per-
mitir também aos plebeus o acesso à dignidade suprema, ne-
nhum cidadão da plebe fora nomeado tribuno militar? Como
crer que agora, havendo apenas dois postos, os patrícios con-
sentiriam em conceder à plebe sua parte de honra , quando
estavam acostumados a ocupar os oito lugares de tribunos mili-
tares? E lhe permitiriam o ingresso no consulado quando por
tanto tempo lhe haviam negado o tribunato? Era preciso obter
através de uma lei o que não se pudera obter por favor nas
eleições. Era preciso colocar fora da luta um dos dois cargos
de cônsul , a fim de que a plebe pudesse pleiteá-lo, uma vez
que, se a concorrência fosse livre. a recompensa caberia sempre
aos mais poderosos.
Já não se podia dizer o que se costumava alegar, isto é,
que não havia na plebe homens capazes de exercer as magis-
traturas cu ruis . Por acaso houvera maiores erros ou fraquezas
na administração da república desde o tribunato de Públio
Licínio Calvo, primeiro tribuno militar plebeu, do que durante
aqueles anos em que somente se elegiam patrícios para tribunos
militares? Ao contrário , alguns patrícios haviam sido conde-
nados após seu tribunato, mas nenhum plebeu o fora. Há alguns
anos também vinham sendo eleitos questores plebeus, do mesmo
modo que tribunos militares. sem que o povo romano tivesse
61
 TITO UVIO
queixas contra nenhum de les. À plebe faltava apenas o con'su-
lado, que era a cidadela, o sustentáculo de sua liberdade. Se
conseguisse conquistá-la, o povo romano poderia crer que os
reis realmente haviam sido expulsos de Roma e a liberdade
havia sido assegurada. A partir desse dia, os plebeus gozariam
de todas as vantagens que constituíam a superioridade dos
patrícios : autoridade, honras, glória militar, linhagem e no-
breza t!, grandes beneffcios de que eles próprios poderiam
usufruir e, mai s ainda, deixa r a seus filhos .
Quando os tribunos perceberam que discursos desse gênero
eram bem-acol hidos, apresentaram novo projeto de lei que
substituía os duúnviros , responsáveis pelas cerimônias sacras,
por decênviros, escolhidos parte entre os plebeus e parte entre
os patrícios. Mas os comícios em que se deveriam discutir todos
esses projetos foram transferidos para depois da chega da do
exército que sitiava Velitras.
Continuação das lutas entre 38. Transcorreu um ano sem
patrícios e plebeus: que as legiões regressassem
intervenção de Camilo. de Yelitras. Por esse motivo
a discussão da lei foi suspen-
sa c transferida aos novos tribunos militares. Os tribunos da
plebe continuavam os mesmos, pelo menos os dois autores dos
projetos de lei, que o povo se obstinava em reeleger.
Para tribunos militares foram eleitos Tito Qüíncio, Sérvio
Cornélio, Sérvio Sulpício, Espúrio Servílio. Lúcio Papírio e
Lúcio Yetúrio.
Logo no início do ano , foi travado o último debate sobre
os projetos de lei. Como seus autores haviam convocado as
tribos sem se preocupar com a oposição de seus colegas, os
senadores atemorizados apelaram para os dois únicos recursos
de que dispunham : o poder supremo e o mais importante dos
12 . O plebeu que conseguia, pela primeira vez em sua famllia, uma
magistratura curul era chamado auctor generis e transmitia a seus des-
cendentes o jus imaginum e a nob reza.
62
HISTóRIA D F. ROMA
cidadãos. Resolveram nomear um ditador e escolheram Marco
Fúrio Camilo, que elegeu Lúcio Emílio comandante da cava-
laria.
Diante das medidas extremas tomadas pelos seus adversá-
rios, os autores da lei, por sua vez, armaram-se de grande cora-
gem em defesa da causa do povo. Depois de convocarem a
assembléia da plebe, chamaram as tribos para votar.
Escoltado por uma mult idão de patrícios, o di tador irritado
e ameaçador ocupou seu lugar no recinto. Iniciou-se o debate
entre os tribunos da plebe que apresentavam a lei e os que
se opunham a ela. Mas se a oposição triunfava do ponto de
vista do direito, era vencida pela simpatia que inspiravam as
leis e seus próprios autores. Assim, quando as primeiras tribos
votaram "como pedes", Camilo tomou a palavra :
" Uma vez que agora, ó quirites , obedeceis aos caprichos
dos tribunos e não à sua soberania, e que o direito de oposição,
outrora conquistado pela retirada da plebe, vós o destruís pela
violência do mesmo modo pelo qual o adquiristes, não só no
interesse de toda a república mas também no vosso, eu, vosso
ditador, apoiarei esta oposição, e, se vós procurais abrir mão
de vossos direitos, eu os protegerei . Portanto , se Caio Licínio
e Lúcio Séxtio cederem diante da oposição de seus colegas,
não interferirei com a minha magistratura patrícia nesta assem-
bléia popular. Mas se, apesar da o posição, eles pretenderem
impor suas leis como se estivessem numa cidade capturada. não
consenti rei que o poder tribunício destrua-se a si mesmo"·
Desprezando essas palavras, os tribunos da plebe prosse-
guiram sem delongas a votação. Arrebatado pela cólera, Camilo
ordenou aos Jictores que dispersassem a multidão, ameaçando ,
caso resistissem, convocar toda a juventude para o serviço mili-
tar e afastar o exército imediatamente de Roma. Conseguiu in-
cutir grande temor à plebe, mas a luta entre os chefes. ao invés
de amortecer, tornou-se mais acesa.
Antes que a decisão pendesse para um dos dois partidos,
Camilo abdicou de sua magistratura, ou porque tivesse sido
eleito irregularmente. segu ndo certos autores. ou porque os
63
,,
TITO UVIO
tribunos ~a plebe tivessem proposto, e a plebe aprovado, a
condenaçao de Marco Fúrio ao pagamento de uma multa de
quinhentos mil asses, caso exercesse atos de ditador. Parece-me,
entretanto, que ele se assustou muito mais com os auspícios do
que com aquela proposta sem precedentes, como se pode deduzir
d~ c~ráte~ d~quele homem e de sua substituição imediata por
Publro Manho como ditador (para que nomear outro ditador
para su.stentar uma luta. na qual Marco Fúrio fora vencido?) .
A_lém drsso, no ano segurnte o próprio Marco Fúrio foi nomeado
drtador, _e certam~nt~ ter-se-ia recusado a reassumir um poder
que se trvesse anrqurlado em suas mãos no ano anterior. Por
outro lado , ao mesmo tempo em que teria sido proposta a multa
de que falamos , ele poderia ou resistir àquela lei que visava
a quebrantar sua autoridade, como bem 0 percebia, ou deixar
p~ssar todas as outras que haviam dado origem a esta última.
I Frnalmente, porque em todos os tempos até nossa época quando
lutavam as forças tribunícias e as consulares, a ditadur~ sempre
I se manteve acima das contendas.
Nomeação do plebeu
39 . Entre a abdicação do
Caio Licínio para comandante primeiro ditador e a posse
da cavalaria.
de Mânlio, os tribunos, co-
mo se estivessem num in-
terregno, aproveitaram-se para convocar uma assembléia do po-
vo, onde foi possível verificar quais os projetos de lei preferi-
dos pel.a plebe, quais os preferidos por seus autores . Quanto à
usura e à distribuição de terras, as propostas eram aprovadas,
mas. quanto ao consulado plebeu, eram rejeitadas. Ter-se-ia vo-
ta_do de maneira diferente sobre cada um desses projetos se os
trrbunos não tivessem declarado que a plebe deveria votá-los a
todos em conjunto.
O ditador Públio Mânlio fez pender a decisão em favor
~a ple_be nomeando comandante da cavalaria Caio Licínio an-
trgo tnbuno militar e oriundo da plebe. Suponho que os patr,ícios
tenham relutado em aceitá-lo. mas o ditador desculpava-se junto
64
HISTóRIA DE ROMA
aos senadores, alegando seu parentesco próximo com Licínio, e
negando que a dignidade de comandante da cavalaria fosse
superior à de tribuno consular.
Quando foram anunciadas as eleições para tribunos da
plebe, Licínio e Séxtio afirmaram não pretender continuar no
cargo, e agindo desse modo incitaram a plebe a outorgar-lhes
o que desejavam, apesar de o dissimularem. Diziam que há
nove anos se encontravam em seu posto, como em campo de
batalha, lutando contra os nobres e expostos aos maiores perigos,
sem qualquer recompensa pública. Com eles envelheceram as
leis que haviam proposto e todo o vigor do poder tribunício.
Seus projetos haviam sido combatidos primeiro pela oposição
dos colegas, depois pelo afastamento da juventude com a guerra
contra Velitras e, finalmente, com a ameaça da ditadura recaindo
sobre eles. Agora que já não havia obstáculos nem de seus
colegas, nem de guerras, nem do ditador, que chegara a pres-
sagiar o consulado à plebe nomeando um plebeu comandante
da cavalaria, era o próprio povo quem se prejudicava a si
próprio e a seus interesses. A plebe, se o quisesse, poderia ter
imediatamente a cidade e o Fórum livres de credores e as
terras livres de proprietários ilegítimos. Quando reconhecerá
esses benefícios com a gratidão que merecem, se ao aceitar as
leis que a favorecem retiram a esperança de honrarias àqueles
que as propuseram? Não seria digno da generosidade do povo
romano reivindicar o alívio para suas dívidas e a posse das
terras usurpadas pelos poderosos e deixar seus velhos tribunos,
que lhe conseguiram tais vantagens, sem honrarias ou ao menos
esperança de alcançá-las. Era preciso que a plebe primeiro deci-
disse o que queria para depois declarar sua vontade nas eleições
dos tribunos. Se pretendia votar em conjunto as proposições que
lhe foram apresentadas, havia razão para reeleger os mesmos
tribunos da plebe, pois garantiriam a aprovação das leis pro-
postas. Mas se queriam aceitar apenas o que atendia aos inte-
resses privados de cada um, eles não tinham o menor interesse
em manter-se num cargo que os fazia tão odiados. Não teriam
o tribunato, mas a plebe também não teria as leis por eles apre-
sentadas.
65
 TITO LIVIO
Discurso de 40 . Com a intenção de contestar
Ápio Cláudio Crasso. esse discurso dos tribunos, <;!lia at~
tude indi a emudecera de espant
os demais senadores, diz-se que Ápio Cláudio Crasso, neto do
decênviro, movido mais pelo ódio e pela cólera do que pela
esperança, numa tentativa de dissuadir a plebe pronunciou urp
discurso mais ou menos nestes termos:
"Não seria um fato novo nem inesperado para mim, quirites,
que se me dirigissem agora as censuras que constantemente são
dirigidas à minha família por tribunos sediciosos. Desde sua
origem, a família Cláudia na república nunca se interessou a
não ser pela majestade dos patrícios e sempre se opôs aos inte-
resses da plebe. Uma dessas censuras, não a nego nem contesto.
Desde que fomos aceitos como cidadãos e patrícios, temos envi-
dado todos os nossos esforços para que se pudesse dizer que
realmente contribuímos para aumentar e não para diminuir a
majestade daquelas famílias entre as quais nos quisestes colocar.
Quanto à outra, em meu nome e no nome de meus antepassados,
ousarei afirmar, quirites, que jamais, a não ser que os atos
praticados no interesse de toda a república sejam considerados
prejudiciais ao povo. como se este habitasse outra cidade, nem
em nossas relações particulares, nem em nossos cargos preju-
d icamos deliberadamente o povo, e não poderíeis citar com
veracidade um só ato, uma só pa lavra contrária a vossos inte-
resses, embora, talvez, contra vossos desejos.
" Mesmo que eu não pertencesse à família Cláudia e à
classe patrfcia, e fosse um romano qualquer, desde que tivesse
nascido de pai e mãe livres, vivendo numa cidade livre, poderia
silenciar que esse Lúcio Séxtio e esse Caio Licínio, tribunos
perpétuos, se os deuses o consentirem, se tenham permitido
tantos direitos durante os nove anos em que reinaram, a ponto
de declarar que não vos deixarão votar livremente nem nas elei-
ções nem em relação às leis? Um deles diz: "~ sob condição
que vós nos reelegereis tribunos pela décima vez". Que quer
dizer isto senão que desprezamos o que outros ambicionam e
somente com grandes-- vantagens o aceitaremos? Mas qual é
essa vantagem que nos obrigará a ter-vos sempre como tribunos
66
HISTóRIA DE ROMA
da plebe? Ao que ele responde: ·· t que nossas propostas, quer
vos agradem ou não, quer sejam úteis ou inúteis. deveis aceitá-las
em conjunto".
"Eu vos suplico, ó tribunos Tarqüínios, imaginai em meu
lugar um cidadão qualquer que no meio da assem~lé~a vos
bradasse: "Com vossa permissão, seja-nos dado o d1re1to de
escolher entre vossos projetos de lei aqueles que julgamos
benéficos para nós e repelir os demais". "Não é permitido, res-
ponderia. Votarias favoravelmente as leis sobre as dívidas, sobre
as terras, assuntos que vos interessam a todos , e não aconteceria
em Roma o prodígio de ver-se cônsules Lúcio Séxtio e eu, Caio
Licínio, pois tu te indignas e repeles essa idéia . Ou se aceita
tudo, ou nada proponho". Seria o mesmo que oferecer veneno
misturado com alimento a um homem faminto, forçando-o a
privar-se de um elemento vital ou a ingerir um elemento mortal.
Se esta cidade fosse livre, não haveria inúmeros homens a
clamar-te constantemente: "Fora daqui com teus tribunatos e
tuas propostas!" Então! Se tu não propuseres o que é vantajoso
para o povo, não haverá mais quem o faça? Se um patrício
(o que na opinião deles seria ainda mais odioso), se um Cláudio
dissesse: "Ou aceitai tudo, ou não apresentarei nenhum pro-
jeto", qual de vós, quirites, o suportaria? Não observareis nunca
os fatos ao invés de observardes seus autores? Estareis sempre
dispostos a ouvir o que diz aquele magistrado, ao passo que
nunca dareis atenção ao que diz um de nós? Mas, por Hércules! ,
esta linguagem não é a de um cidadão. E a proposta, que eles
se revoltam porque não aprovais, de que natureza é ela?
Totalmente idêntica a estas palavras, quirites: " Como cônsules,
diz o tribuno, proponho que não vos seja permitido nomear a
quem quiserdes". Acaso é outra a proposta daquele que exige
que um dos dois cônsules seja sempre plebeu, e não vos deixa
a possibilidade de eleger dois patrícios?
" Se hoje houvesse uma guerra como a etrusca, quando
Porsena se estabeleceu no Janículo, ou a recente guerra gaulesa,
quando toda a cidade se achava em mãos do inimigo, exceto
o Capitólio e a cidadela, e juntamente com Marco Fúrio e outro
patrício qualquer o grande Lúcio Séxtio se candidatasse ao
67
 TITO L!VIO
consulado, poderíeis admitir que Séxtio estivesse certo de ser
cônsul enquanto Camilo lutasse contra um possível fracasso?
Considerais a permissão de eleger cônsules dois plebeus, e não
dois patrícios, como possibilidade de participação nas honrarias?
Querer que um plebeu seja necessariamente chamado a ocupar
um dos dois postos, e permitir que os patrícios sejam excluídos
dos dois? Que vem a ser esta sociedade, esta igualdade?
"Será pouco conseguires participar de um direito que não
possuías até agora ou ao reclamar tua parte necessitas também
de apoderar-te de tudo? " Receio, diz ele, que se for permitido
nomear dois patrícios vós não nomeeis nenhum plebeu." t o
mesmo que dizer: "Como não estais dispostos a nomear volun-
tariamente homens indignos, eu vos obrigarei a nomear a quem
não quereis?" Que significa isso senão que o plebeu que con-
correr sozinho com dois patrícios não deverá esse benefício ao
povo e poderá dizer que foi eleito pela lei e não por vosso
sufrágio?
Continuação do discurso 4 1 . "O que procuram é um
de Ápio Cláudio Crasso. meio de extorquir as honrarias
e não de concorrer a elas. Dese-
jam obter os mais altos cargos sem ao menos vos dever o que
devem pelos cargos inferiores, preferindo conseguir as honra-
rias através das circunstâncias e não por seu merecimento. Há
um homem que não admite ser examinado e apreciado, e consi-
dera justo que os altos cargos lhe pertençam com exclusividade,
quando outros lutam por obtê-los. Um homem que despreza
vosso arbítrio e deseja tornar vossos sufrágios obrigatórios ao
invés de voluntários, escravos ao invés de livres. Omito os no-
mes de Licínio e Séxtio, cujos anos de poder ininterrupto podeis
contar como os dos reis no Capitólio. Qual o homem nesta cida-
de, por mais humilde que seja, que por intermédio dessa lei não
tenha mais facilidade de acesso ao consulado do que nós e nos-
sos filhos? Porque, mesmo se desejásseis eleger-nos, não pode-
ríeis fazê-lo, ao passo que seríeis obrigados a elegê-los mesmo
que não o quisésseis.
6&
HISTORIA DE ROMA
"Quanto à indignidade de tais eleições, já falei o bastante.
pois a dignidade concerne apenas aos homens. Mas o que
dizer dos atos religiosos e dos auspícios, cuja violação é desprezo
ou ultraje aos próprios deuses imortais? Através dos auspícios
foi fundada esta cidade, através dos auspícios se fazem a guerra
e a paz, se decidem os problemas civis e militares. Quem ignora
tudo isso? Afinal, de acordo com o costume dos antepassados.
quem possui o direito de consu ltar os auspícios? Os patrícios.
não? Pois bem, para nomear um magistrado plebeu não se
consultam os auspícios. De tal modo eles nos pertencem que
antes de serem tomados os auspícios o povo não pode eleger
magistrados patrícios. Nós mesmos, entretanto, depois de con-
sultar os auspícios, podemos proclamar um inter-rei sem neces-
sidade do voto do povo. Temos os auspícios para nosso uso
privado, ao passo que o povo não os possui sequer para suas
magistraturas. Com a nomeação de cônsules plebeus, aquele que
arrebata os auspícios aos patrícios, únicos a possuir o direito
de consultá-los, que ou tra coisa faz senão abolir os auspícios
nesta cidade?
" Podem zombar agora de nossas práticas religiosas. Que
importa que os frangos sagrados não comam, que saiam muito
lentamente de sua gaiola 13 ? Se um pássaro soltou um pio de
mau agouro? São coisas sem importância. Mas pelo fato de não
desprezarem essas coisas sem importância foi que nossos ante-
passados tornaram tão grande esta república. Agora, como se
não tivéssemos mais necessidade de estar em paz com os deuses.
profanamos todas as cerimônias. Tomemos, pois, entre a mul-
tidão, os pontífices, os áugures, os reis dos sacrifícios. Colo-
quemos na cabeça do primeiro que encontremos, contanto que
seja homem, o barrete do flãmine. Entreguemos os escudos,
os santuários, os deuses e o culto dos deuses a mãos profanas.
Não se consultem os auspícios nem para a apresentação das
leis, nem para a eleição dos magistrados. Possam os comícios
por centúrias e por cúrias reunir-se sem a aprovação do Senado.
E já que concedem graciosamente o dinheiro e as terras alheias ,
IJ . Eram os auspícios ex tripudiis, usados sobreiUdo em campanha .
69
 TITO UVJO
possam Séxtio e Licínio, como Rômulo e Tácio, reinar em Roma!
t tão fácil apoderar-se dos bens alheios! Não pensais que uma
dessas leis levará aos campos a devastação, expulsando os anti-
gos donos de suas propriedades? Que a outra destrói o respeito
aos compromissos, e com isso destrói a comunidade humana?
Por todos esses motivos, acho que deveis repelir essas propostas.
Como quer que decidirdes, que os deuses vos sejam propícios!"
Vitória da plebe. 42 . O discurso de Apio ape-
Nomeação do cônsul plebeu nas protelou a votação dos
Lúcio Séxtio. projetos-. Reeleitos tribunos
pela décima vez, Séxtio e Li-
cmto conseguiram a aprovação da lei sobre a nomeação de
decênviros encarregados das cerimônias sacras, uma parte es-
colhida entre os plebeus. Foram eleitos cinco patrícios e cinco
plebeus, o que parecia ser o primeiro passo para o caminho do
consulado.
. Satisfeita com essa vitória, a plebe concordou que os patrí-
ctos nomeassem tribunos militares, sem preocupar-se no mo-
mento com o consulado. Foram eleitos Aulo e Marco Cornélio,
pela segunda vez, Marco Gegânio, Públio Mânlio, Lúcio Vetúrio
e, pela sexta vez, Públio Valéria.
Com exceção do cerco de Velitras, de resultado certo em-
bora lento, a situação de Roma no exterior era tranqüila. Foi
quando a notícia súbita de uma guerra com os gauleses levou
os romanos a nomear pela quarta vez Marco Fúria ditador, 0
qual escolheu para comandante da cavalaria Tito Qüíncio Peno.
Conforme o testemunho de Cláudio, naquele ano houve lutas
com os gauleses perto do rio Ãnio. Foi então que se deu o
célebre combate numa ponte, quando Tito Mânlio, provocado
por um gaulês, num combate corpo a corpo matou-o à vista
dos dois exércitos e despojou-o de seu colar. Entretanto, muitos
outros autores me levam a crer que esse fato ocorreu dez anos
mais tarde e que, naquele ano, foi no território de Alba que
se travou a batalha com os gauleses, sendo ditador Marco
Fúria. A vitória não foi incerta nem difícil aos romanos, apesar
do grande terror causado pela lembrança do antigo fracasso
70
HISTORIA D E ROMA
com os gauleses. Milhares de bárbaros foram mortos no com-
bate e outros tantos na tomada do acampamento. Os demais
se dispersaram tentando alcançar a Apúlia e, impelidos pelo
temor e pelo pânico, se distanciaram tanto em sua debandada
que não puderam ser alcançados pelo inimigo. Com a aprovação
geral do Senado e da plebe foi decretado o triunfo do ditador.
Mal terminara o ditador essa guerra, quando uma sedição
ainda mais violenta o acolheu em Roma . Após grandes lutas,
ditador e senadores foram vencidos, e aprovadas as propostas
dos tribunos. Em seguida, apesar da oposição da nobreza. houve
eleições consulares em que Lúcio Séxtio foi nomeado o primeiro
cônsul plebeu. A luta, entretanto, não terminara. Os patrícios
declãraramque não ratificariam essa eleição e esperava-se uma
nova secessão da plebe e outras terríveis ameaças de guerra
civil quando, finalmente, graças ao ditador, um acordo apaziguou
a discórdia. A nobreza concedeu à plebe seu cônsul plebeu ,
e a plebe concedeu à nobreza o direito de eleger um pretor
único, patrício, que seria encarregado de exercer a justiça em
Roma.
Após tantos desentendimentos a paz voltou a reinar entre
as classes. O Senado decretou a celebração de grandes jogos
e acrescentou um dia aos três de costume, considerando que
em nenhuma outra circunstância se poderia dar graças mais
merecidas aos deuses imortais. Como os edis da plebe decli-
nassem do cargo, os jovens patrícios declararam que em home-
nagem aos deuses imortais eles teriam prazer em ser nomeados
edis. Receberam os aplausos do povo, e por meio de um
senadoconsulto o ditador foi conclamado a pedir ao povo a
criação dos edis patrícios. e ao Senado a aprovação de toda
as eleições daquele ano.
71
 RESUMO
L I V R O VIl
DO LIVRO VI DA HISTORJA DE ROMA DESDE SUA
FUNDAÇÃO . OF: TITO UVIO
Morte de Camilo. I . Esse ano se distinguirá pelo consu-
lado de " um homem novo" 1 e pela
O livro contém as vitórias sobre os volscos os é criação de duas novas magistraturas, a pretura t e a edilidade
.
Prenes I mos. s-ao acrescentadas quatro tribos · a. E t quos
I .
e os
T · . · s e atma, a curul 3, cargos exigidos pelos patrícios em compensação pelo
romentma, a Sabatma e a Amiense. Marco Ma~nlt' o I consulado cedido à plebe . A plebe deu merecidamente o consu-
C · ól' d , que sa vara
o apll to os gauleses, liberta as pessoas presas por d' .d lado a Lúcio Séxtio, por ter sido o autor da lei . Por exercerem
e, acusado de a~bicionar a realeza, é condenado e preci~~l·a;~ influência junto às tribos campestres, os patrícios nomearam
da roc?~ Ta~pé~a. Um senadoconsulto proíbe a todo membro pretor a Espúrio Fúrio Camilo, filho de Marco, e edis a Cneu
da fam tha Manha o uso do nome Marco C . L' f . , .
Sé . 'b . ato tc nto e Lucto Qüíncio Capitolino e Públio Cornélio Cipião, cidadãos de famí-
xtto, In unos da plebe, propõem que os c.o~ns u Ies possam ser
recruta dos entre a plebe e não só entre os pat .. lias patrícias. Como colega de Lúcio Séxtio foi nomeado o pa-
- o · . nctos, como até trício Lúcio Emílio Mamerco.
e~tao. ep~ts de mUJta luta e encarniçada oposição dos atrí-
ctos, o prOJeto é submetido a votação pelos mesmos I 'bp No início do ano, espalhou-se o boato de que os gau leses ,
q ue d uran 1e. cm~o
· • n unos
anos tmham sido os únicos magistrados e~ dispersos na Apúlia, se haviam reunido, e os hémicos se tinham
Roma. O pnmetro dos plebeus, Lúcio Séxtio é d ~ sublevado. Deliberadamente, protelava-se qualquer decisão, a
s 1p - · d , nomea o con- fim de que o cônsul plebeu não tivesse oportunidade de agir.
u . ropoe-se am a uma segunda lei proibindo
· . a quem quer que
seJa a posse de mats de quinhentas jeiras de terra . Todos silenciaram sobre esses fatos e permaneceram inativos,
como por ocasião do recesso dos tribunais públicos. Mas os
tribunos não puderam suportar em silêncio que a nobreza tives-
se recebido em troca de um cônsul plebeu três magistrados

1. Os romanos chamavam " homem novo" aquele cujos ante passa·

dos não haviam exercido qualquer magistratura curul.
2 . As runções de pretor eram muito importantes. Os pretores admi·
nistravam justiça e governavam a república na ausência dos cônsules.
Tinham direito à cadeira curul, dois lictores, muitos escrivães e "apar·
ritores ".
3 . Os edis cu ruis eram encarregados do policiamento geral da c i·
dade, presidiam os grandes jogos e as representações cênicas, providen·
ciavam o abastecimento da cidade c dos exércitos.
72
73
 TITO UVIO
patrícios, se ntados em cadeiras curuis e vestindo a toga pre-
texta , como verdadeiros cônsules, e além do mais um pretor,
colega dos cônsules, que administrava a justiça, nomeado sob
os mesmos auspícios. Por esse motivo, os senadores sentiram-se
constrangidos em ordenar a nomeação de patr.ícios como edis
I
curu is. No início ficou estabelecido que de dois em dois anos
haveria edis plebeus, e finalmente essa magistratura se tornou
comum a todos.
o consulado de Lúcio Genúcio e de Quinto Servílio, a
~usência de sedições e de guerra proporcionaram certa tranqüi-
ltdade, mas. para que o povo jamais estivesse isento de perigos
e ameaças, trrompeu uma terrível epidemia. Houve grande mor-
tandade, e entre os demais cidadãos conta-se que morreram um
censor, um edil curul e três tribunos da plebe. Essa epidemia
foi assinalada sobretudo pela morte de Marco Fúcio Camilo
muito lamentada apesar de sua- avançada idade. Ele fora real~
mente um varão ímpar em todas as situações, o primeiro na
paz e na guerra, antes de partir para o exílio. Durante seu
desterro engrandeceu-se ainda mais, fosse pela falta que fez
aos romanos que lhe imploravam auxCiio quando viram captu-
rada sua cidade, fosse pela felicidade de, ao retornar a sua
pátria, conseguir também salvá-la. Depois de ter gozado durante
vinte e cinco anos (tempo que ainda viveu) de uma glória que
não era superior a seus méritos, consideraram-no digno de ser
chamado, depois de Rômulo. s~ndo fundador de Roma.
Origem do teatro.
2 . Durante aquele ano e no seguinte,
A fábula atelana. sob o consulado de Caio Sulpfcio Pe-
tico e de Caio Licínio EstoJo, a epide-
mia continuou . Nenhum acontecimento digno de memória ocor-
reu, a não ser um lecristérnio que foi celebrado pela terceira vez
após a fundação da cidade, a fim de pedir paz aos deuses. Mas
nem os meios humanos, nem o auxílio divino conseguiam acalmar
a violência da peste.
Todos os espíritos foram dominados pela superstição, e
segundo a tradição resolveram instituir jogos cênicos, novidade
74
HISTóRIA DE ROMA
para aquele povo guerreiro (pois até então não ~e conhecia outro
espetáculo além do circo), como um dos me10s para aplacar
a cólera celeste. Foi um espetáculo sem grande valor, como
quase todas as coisas que se iniciam, e, além do mais: ~m
espetáculo estrangeiro. Sem palavras em versos e se~. mtmtca
para substituir as palavras, atores chamados da Etrún.a, dan-
çando ao ritmo da flauta, faziam à moda etrusca movtmentos
que não eram destituídos de graça 4 • Os jovens puseram-se logo
a imitá-los, improvisando entre si gracejos em versos rudes ,
que acompanhavam com gestos adequados às pal~vras. Uma
vez aceito esse gênero de espetáculo, ele se repettu com fre-
qüência e acabou incorporando-se aos costumes.
Como em língua etrusca o ator era chamado " ister", os
atores romanos receberam o nome de histriõe Já não decla-
mavam, como antes, versos improvisados semelhantes ~os fesc.e-
ninos sem forma e sem arte, mas representavam ~ rtt-
6
mada~. que eram acompanhadas pelas modulações da flauta,
e de movimentos cadenciados.
6
Alguns anos mais tarde, abandonando a sá tira , Lívio
ousou pela primeira vez tentar a composição com argumento.
Como todos os escritores da época, diz-se que era também ~
ator de suas peças e por ser chamado à cena inúmeras. vezes '
acabou perdendo a voz. Com a permissão do públtco, ele
colocou diante do flautista um jovem escravo para cantar em
4 Eram versos saturninos, isto é, formados de treze sllabas (~e m
contar as elididas) alternativamente longas e breves: de modo que pod1am
ser cscandidas como versos jâmbicos (breve segu1da ~~ longa) ou tr?"
caicos (longa seguida de breve). Possufam caráter sá11nco e, como diZ
Tilo Uvio, eram improvisados. .
5 . A sátira (satura) era um gênero ma1s complexo, composto de
canlo, música e dança.
6. Lívio Andróico, prisioneiro em Tarento em 272 a. ~ ·· ~scravo,
preceptor e depois liberto da famllia Uvia, apresentou sua pnme1ra peça
em 240. Escreveu tragédias (mais propriamente paráfrases de peças gre-
gas) e comédias. ..
7 . Quando o ator era chamado à cena o espetáculo sempre modifi-
cava. de improviso, a passagem que mais houves c agradado.
75
 T ITO I t V IO
seu fuga~ podendo desse modo representar com mais vigor
e ex~re~~ao, sem preocupar-se com a própria voz. Desde então
os h1str10:s passaram a dispor de um cantor, reservando a voz
para os d1álogos.
A_pa~tir do momento em que as representações adotaram
esse cnténo, o burlesco e os ditos libertinos foram abandonados
e o teatro to~ou-se aos poucos uma arte. Os jovens deixaram
a representaçao da~ peças par~ os histriões e voltaram ao antigo
costume de profenr graceJOS Improvisados mesclados com ver-
sos, e que mais tarde, com o nome de êxodos 8 , foram associados
s~bretudo às . fáb~las atelanas 8 • A juventude se apropriou desse
genero de d1vertJmento que havia herdado dos ascos e não
permitiu que os histriões o corrompessem. Ficou comprovado
que os atores das atelanas não eram excluídos da tribo nem
do serviço militar, por não serem considerados verdadeiros come-
diantes.
/ E~tre os modestos começos de outras instituições, julguei
conven~ente falar também sobre a origem das representações
dramáticas, com o objetivo de demonstrar como foram sen-
satos os princípios desses divertimentos, hoje tão insensatamente
dispendjosos que apenas reinos opulentos se podem permitir
o luxo de tê-los.
Ditadura de 3 . Instituídos no início como
Lúcio Mânlio Imperioso. expiação religiosa, esses jogos.
contudo, nem libertaram os es-
P_íritos de seus temores religiosos. nem os corpos de seus pade-
Cimentos. Ao contrário, em meio aos jogos cênicos o Tibre trans-
bordou , inundou o circo e interrompeu as representações, acon-
8 . Os. "êxodos' eram pequenas peças divertidas representadas após
uma tragédta.
. 9 . As atelan~s eram peças improvisadas de origem osca e prove-
~•entes d~ Ateia, ctdade da Campânia próxima a Nápoles. Os tipos eram
fLXos, vanando apenas o enredo ao sabor das improvisações. Dois escri-
tores ~a época de Sila. Nóvio e Lúcio Pompônio. escreveram atelanas
como exodos.
76
HISTOR I DF ROM
tecimento que infundiu imenso terror. como se os deuses mani -
festassem sua aversão e desprezo pelos meios utilizados para
aplacar-lhes a cólera. Por esse motivo. no consulado de Cneu
Genúcio e Lúcio Emílio Mamerco, eleitos pela segunda vez ,
como a busca de um meio de expiação atormentasse mais os
espíritos do que a doença ao corpo. lembraram-se finalmente.
diz-se que graças à recordação dos anciãos. de que outrora um
ditador ao cravar um prego fizera cessar uma epidemia. Movido
por essa superstição, o Senado fez nomear um ditador com a
finalidade de cravar o prego. Foi escolhido Lúcio Mânlio Impe-
rioso, que designou Lúcio Pinário comandante da cavalaria.
Há uma lei antiga escrita em caracteres e linguagem arcaica.
que ordena ao pretor máximo cravar o prego nos idos de
setembro. Outrora essa lei estivera afixada no lado direito do
templo do excelente e grande Júpiter, onde fica a capela de
Minerva. Diz-se que o prego indicava o número de anos, uma
vez que a escrita era rara naquela época . A lei foi consagrada
no santuário de Minerva porque os números são uma invenção
de Minerva. Os volsínios também designavam o número de
anos por meio de pregos cravados no templo de Nórcia 10 •
deusa etrusca, segundo afirmação de Cíncio 11 • autor dedicado
ao estudo de tais documentos.
De acordo com essa lei, o cônsul Horácio dedicou o
templo do excelente e grande Júpiter no ano que se seguiu
à expulsão dos reis. A realização dessa solenidade. que consistia
em cravar um prego, passou dos cônsules aos ditadores. por
serem estes revestidos de maior autoridade. Com o correr dos
tempos, esse costume foi interrompido mas naquela ocasião
acreditou-se ser necessária a nomeação de um ditador para res-
tabelecê-la .
10 . Deusa etrusco do destino.
11 . Cfncio Alimento, de origem plebéia, e um dos mais antigos
analistas de Roma.
77
 TITO UVIO
seu luga~ podendo desse modo representar com mais vigor
e ex~re~~ao, sem preocupar-se com a própria voz. Desde então
os h1stno~s passaram a dispor de um cantor. reservando a voz
para os d1álogos.
A. pa~tir do momento em que as representações adotaram
esse cnténo, o burlesco e os ditos libertinos foram abandonados
e o teatro to~ou-se aos poucos uma arte. Os jovens deixaram
a representaçao da~ peças par~ os histriões e voltaram ao antigo
costume de profenr graceJOS 1mprovisados mesclados com ver-
sos, e que mais tarde, com o nome de êxodos s, foram associados
s~bretudo às . fáb~las atelanas 9 • A juventude se apropriou desse
gener·o· de d1verttmento que havia herdado dos oscos e não
penmttu que os histriões o corrompessem. Ficou comprovado
que os atores das atelanas não eram excluídos da tribo nem
d? serviço militar, por não serem considerados verdadeiros come-
diantes.
E~tre os modestos começos de outras instituições, julguei
conven~ente falar também sobre a origem das representações
dramáticas, com o objetivo de demonstrar como foram sen-
s~tos os. princípios desses divertimentos, hoje tão insensatamente
dtspend1osos que apenas reinos opulentos se podem permitir
o luxo de tê-los.
Ditadura de 3 . Instituídos no início como
Lúcio Mânlio Imperioso. · - re lig10sa,
· templo do excelente e grande Júpiter no ano que se seguiu
exp1açao esses jogos.
, . contudo, nem libertaram os es-
p.m tos de seus temores religiosos. nem os corpos de seus pade-
Cimentos. Ao contrário, em meio aos jogos cênicos o Tibre trans-
bordou, inundou o circo e interrompeu as representações, acon-
8 . Os. "êxodos' eram pequenas peças divertidas representadas após
uma tragéd1a.
. 9 . As atelan~s eram peças improvisadas de origem osca e prove·
n.•entes d~ Ateia, c1dade da Campânia próxima a Nápoles. Os tipos eram
fiXoS, vanando apenas o enredo ao sabor das improvisações. Dois escri·
tores ~a época de Sila. Nóvio e Lúcio Pompônio. escreveram atelanas
como exodos.
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HI STôRI DF ROM
tecimento que infundiu imenso terror. como se os deuses mani -
festassem sua aversão e desprezo pelos meios utilizados para
aplacar-lhes a cólera. Por esse motivo. no consulado de Cneu
Genúcio e Lúcio Emílio Mamerco, eleitos pela segunda vez,
como a busca de um meio de expiação atormentasse mais os
espíritos do que a doença ao corpo, lembraram-se finalmente.
diz-se que graças à recordação dos anciãos. de que outrora um
ditador ao cravar um prego fizera cessar uma epidemia . Movido
por essa superstição, o Senado fez nomear um ditador com a
finalidade de cravar o prego. Foi escolhido Lúcio Mãnlio Impe-
rioso , que designou Lúcio Pinário comandante da cavalaria.
Há uma lei antiga escrita em caracteres e linguagem arcaica.
que ordena ao pretor máximo cravar o prego nos idos de
setembro. Outrora essa lei estivera afixada no lado direito do
templo do excelente e grande Júpiter, onde fica a capela de
Minerva. Diz-se que o prego indicava o número de anos , uma
vez que a escrita era rara naquela época. A lei foi consagrada
no santuário de Minerva porque os números são uma invenção
de Minerva. O s volsínios também designavam o número de
10
anos por meio de pregos cravados no templo de Nórcia ,
deusa etrusca, segundo afirmação de Cíncio 11 • autor dedicado
ao estudo de tais documentos.
De acordo com essa lei, o cônsul Horácio dedicou o
à expulsão dos reis. A realização dessa solenidade . que consistia
em cravar um prego, passou dos cônsules aos ditadores. por
serem estes revestidos de maior autoridade. Com o correr dos
tempos, esse costume foi interrompido, mas naquela ocasião
acreditou-se ser necessária a nomeação de um ditador para res-
tabelecê-la.
10 . Deusa e1rusca do destino.
11 . Cíncio Alimento, de origem plebéia, e um dos mais antigos
analistas de Roma.
77
 TITO I fVIO
Nomeado para resolver um problema religioso e não para
governar 12 a república, Lúcio Mânlio agitou a juventude ao
ordenar um rigoroso alistamento para combater os hérnicos.
Mas como todos os tribunos da plebe se insurgissem contra ele.
abdicou da ditadura, vencido quer pela força, quer pelo des-
crédito.
Citação de Lúcio MânUo 4. No ano seguinte, no con-
em juízo. sulado de Quinto Servílio Aha-
la e Lúcio Genúcio, o tribuno
da plebe Marco Pompônio citou Mânlio em juízo. Era odioso o
rigor que ele exercera durante o alistamento, punindo os solda-
dos com multas e com castigos corporais, ora açoitando, ora
mandando prender os que não respondiam à chamada de seu
nome. Mais odioso ainda era seu próprio caráter inflexível e
seu cognome de Imperioso, impróprio numa cidade livre, e obti-
do em virtude de sua crueldade ostensiva, não só contra os
estranhos como também contra seus parentes e seus próprios
descendentes.
Entre outros delitos, o tribuno o acusava de ter expulsado
seu filho adolescente, isento de qualquer culpa, de sua cidade,
de sua casa. de seus penates, privando-o do Fórum, da luz e
da companhia dos jovens de sua idade, para condená-lo a
trabal_hos servis, quase que ao cárcere e ao ergástulo, onde
esse JOvem. da mais nobre linhagem, filho de um ditador,
aprendia, por um suplício diário, que havia nascido de um
pai verdadeiramente "imperioso". E qual era seu crime? Falar
e expressar-se com dificuldade. Um pai que possuísse senti-
mentos humanos deveria corrigir esse defeito físico pela edu-
cação ou revelá-lo a todos através de castigos e humilhações?
Apesar de não falarem os animais, nunca deixam de alimentar
e acariciar seus filhotes, ainda que possuam algum defeito. Mas.
por Hércules. Lúcio Mânlio agravava o estado de seu filho e
. 1~ . _os di~adorcs l!ram nomeados para uma missão específica, de
~mportancta muttas vezes medíocre (presidir às eleições, a abertura dos
JOgos, etc.) c costumavam abdicar logo após tcrem cumprido a missão.
78
HISTORIA DF. ROMA
contribuía ainda mais para seu retardamento. O pouco vigor
natural que ainda restava ao jovem, ele procurava extinguir
com a vida selvagem e os costumes rudes em meio aos re-
banhos.
Amor filial de 5 . Essas acusações exacerbaram os âni-
Tito Mânlio. mos de todos os cidadãos contra Mânlio.
exceto o do próprio jovem. Aflito por ser
a causa do ódio e das acusações contra seu pai, tomou uma
resolução de homem primitivo e rude, sem dúvida nada exem-
plar para um cidadão, mas louvável pela demonstração de amor
filial, para que os deuses e os homens soubessem que ele dese-
java ajudar seu pai e não seus adversários.
Certa manhã, sem que ninguém soubesse, veio a Roma
com um punhal oculto em suas vestes, e, logo depois de atra-
vessar a porta da cidade, encaminhou-se diretamente para a
casa do tribuno da plebe Marco Pompônio. Disse ao porteiro
que precisava falar imediatamente com seu patrão, e que anun-
ciasse Tito Mãnlio, filho de Lúcio. Foi logo introduzido na
casa, pois esperava-se que, movido pelo ódio ao pai , trouxesse
alguma nova acusação ou conselho para o andamento do pro-
cesso. Após uma troca de saudações, declarou que desejava falar
ao tribuno sem a presença de testemunhas.
Depois que todos saíram, ele tirou o punhal e, de pé
sobre o leito, com a arma levantada, ameaçou de morte o
tribuno caso não jurasse, repetindo suas palavras, que jamais
reuniria a plebe para acusar seu pai. Ao ver brilhar a lâmina
diante de seus olhos, o tribuno ficou amedrontado. Além do
mais estava só, sem armas, e tinha a sua frente um jovem
robusto e. o que era mais temível , com uma brutal confiança
em suas forças. Repetiu o juramento que o jovem lhe ditou.
e mais tarde declarou que em virtude daquela violência havi n
desistido de seu intento.
Embora a plebe tivesse preferido pronunciar-se sobre um
acusado cruel e orgulhoso. não lhe desagradou o gesto do filho
em favor do pai. Considerava-o ainda mais louvável porque
o rigor extremo de um pai não havia destruído o amor de
79
 TITO UVIO
seu filho. Assim , a plebe não se contentou em renunciar ao
processo contra o pai, mas quis também recompensar o filho.
Como naquele ano, pela primeira vez, se havia decidido eleger
tribunos militares para as legiões 1:1 (pois antes, como atual-
mente, os chamados "rúfulos" eram nomeados pelos próprios
generais), Tito Mânlio, entre os seis tribunos eleitos, conseguiu
o segundo lugar sem qualquer mérito civil ou militar para con-
seguir os favores da plebe, uma vez que havia passado sua
juventude no campo, longe da sociedade dos homens .
Sacrifício de Marco Cúrcio. 6. Diz-se que naquele mes-
Derrota do cônsul plebeu. mo ano um terremoto ou
outra causa desconhecida
determinou o afundamento do solo no meio do Fórum, onde
se formou uma profunda cavidade. Apesar de cada cidadão
depositar grande quantidade de terra nesse abismo, não se con-
seguia preenchê-lo até que, por um aviso dos deuses, começou-se
a investigar "em que consistia a principal força do povo roma-
no ". Os vates declararam que "isso" era o que se deveria con-
sagrar naquele local, caso quisessem que a república romana
fosse eterna.
Foi então que Marco Cúrcio, jovem que se havia distin-
guido na guerra, recriminou os cidadãos que hesitavam, como
se o maior bem de Roma não consistisse na coragem e nas
armas. Depois que se fez silêncio, voltou-se para os templos
dos deuses imortais que dominavam o Fórum e, erguendo os
olhos para o Capitólio, estendeu várias vezes as mãos, ora para
o céu, ora para a cratera aberta na terra, e ofereceu-se em sacri-
fício aos deuses manes.
Montando seu cavalo ricamente ajaezado, precipitou-se no
abismo com todas as suas armas. A multidão de homens e
13 . Os tribunos militares, eleitos pelo povo, distinguiam-se pelo
nome de concitati dos que eram nomeados diretamente pelos cônsules.
Estes eram chamados de rujuli, derivado do nome de Rutflio Rufo, autor
do decreto que regulamentava as atribuições do cargo. Mais tarde foram
chamados de rutili e ruiu/i, nomes derivados do mesmo autor.
80
HISTóRIA DE ROMA
mulheres lançou-lhes frutos e oferendas expiatórias. O lago
Cúrcio recebeu essa designação em homenagem a ele, Marco
Cúrcio, e não ao antigo Cúrcio Métio. soldado de Tito Tácio.
Eu não teria poupado esforços, se houvesse outro caminho
ao pesquisador para encontrar a verdade. Mas foi preciso ater-
me à tradição, uma vez que a antiguidade do fato não permite
comprovar sua autenticidade. Além disso , a lenda mais recente
empresta maior importância ao nome do lago.
Após a expiação de tão grande prodígio, nesse mesmo ano
o Senado foi consultado sobre a questão dos hérnicos. enviando-
lhes inutilmente os feciais para pedir satisfações. Logo no
primeiro dia julgaram conveniente propor ao povo uma decla-
ração de guerra contra aquela nação, e o povo em assembléia
autorizou essa campanha.
O comando das operações coube por sorte ao cônsul Lúcio
Genúcio. A cidade se achava em expectativa porque era o
primeiro cônsul plebeu a comandar uma guerra sob seus aus-
pícios, e o resultado deveria justificar ou condenar a participação
do povo nas altas magistraturas.
Quis o destino que Genúcio, ao marchar precipitadamente
contra o inimigo, caísse numa emboscada. Surpreendidas e ate-
morizadas, as legiões se dispersaram, e o cônsul. cercado pelos
inimigos que o desconheciam. foi morto .
Quando essa notícia chegou a Roma, os patrícios não se
mostraram pesarosos com a calamidade pública mas satisfeitos
com o desastre da campanha do cônsul plebeu . Murmuravam
por toda parte desdenhosamente: "Ide, nomeai cônsules ple-
beus! Transmiti os auspícios a profanos!" Através de um plebis-
cito, fora possível despojar os patrícios das dignidades que lhes
pertenciam. Mas essa lei funesta teria va lor também para os
deuses imortais? Eles próprios tinham vingado sua divindade,
seus auspícios. Logo que haviam sido substituídos por um
homem que não possuía nem direito humano, nem permissão
divina , a perda do exército e de seu chefe viera ensinar que não
se devia perturbar o direito das famílias nas eleições.
Essas eram as exclamações que ressoavam na curta e no
Fórum. Ápio Cláudio. por ter combatido a lei. acusava agora,
81
 TITO LIVIO
com mais autoridade, o resultado de uma medida que havia
criticado. Com o consentimento dos patrícios, foi nomeado
ditador pelo cônsul Servílio, e anunciou o alistamento e o
recesso dos tribunais.
Guerra com os hémicos. 7. Antes da chegada do dita-
dor e das novas legiões ao país
dos hérnicos , o legado Caio Sulpício aproveitara uma boa oca-
sião para obter brilhante vitória. Como os hérnicos, após a
morte do cônsul, avançassem atrevidamente em direção ao acam-
pamento romano, com a firme decisão de o tomarem, os solda-
dos, exortados pelo legado e cheios de cólera e indignação,
irromperam do acampamento. Os hérnicos tiveram de renunciar
aos seus propósitos de acercar-se da trincheira, pois foram der-
rotados e obrigados a retirar-se em grande desordem.
Com a chegada do ditador, um novo exército veio reunir-se
ao antigo, duplicando as forças. Diante das tropas reunidas,
o ditador elogiou o legado e os soldados que haviam defendido
o acampamento, e, ao mesmo tempo que exaltava a coragem
dos que haviam merecido aqueles louvores, provocava nos de-
mais o desejo de rivalizar com seus companheiros.
O inimigo, por sua vez, preparou-se com igual ardor para
o combate. Lembrando-se de sua primeira vitória e ao mesmo
tempo consciente do aumento de forças dos romanos, procurou
também reforçar as suas. Todos os cidadãos hérnicos em idade
de prestar serviço militar foram convocados. Formaram-se oito
coortes de quatrocentos homens cada uma, um exército verda-
deiramente de escol. Decidiu-se que esses jovens, na flor da
idade, receberiam soldo em dobro, o que fez com que aumen-
tasse ainda mais suas esperanças e sua coragem. Foram dispen-
sados também de outros trabalhos militares e reservados apenas
para as fadigas do combate, a fim de que compreendessem que
deveriam sobrepujar seus companheiros na luta. Dispuseram-nos
no campo de batalha, fora das fileiras, para que se pudesse
melhor apreciar seu valor.
Uma planície de duas milhas separava o acampamento
romano do dos hérnicos. Nesse local , a uma distância quase
82
HISTóR IA DE ROMA
igual dos dois acampamentos, travou-se o combate. No início,
a vitória pareceu indecisa. Os cavaleiros romanos várias vezes
tentaram inutilmente desbaratar a linha inimiga, mas ao perce-
berem que o resultado não correspondia a seus esforços, con-
sultaram o ditador. Com sua permissão, desmontaram de seus
cavalos e precipitaram-se, com grande clamor, para a primeira
fileira, dando início a um novo combate. O inimigo não poderia
resistir-lhes se suas extraordinárias coortes. de força física e
moral semelhante à dos cavaleiros. não houvessem oposto re-
sistência.
Vitória dos romanos. 8 . Travou-se então combate entre
os mais valentes soldados dos dois
campos. Em relação ao número de mortos, as perdas sofridas
pelos dois adversários foram bem maiores do que se poderia
avaliar, uma vez que os demais soldados haviam como que
deposto a sorte da batalha nas mãos daqueles valentes jovens,
confiando seu destino à coragem de outros.
Em ambos os lados houve grande número de mortos e
maior ainda de feridos. Finalmente, os cavaleiros começaram a
incitar-se uns aos outros, interrogando-se sobre o que lhes res-
tava fazer. Se a cavalo não haviam conseguido repelir o inimigo,
a pé não o conseguiriam tampouco. Qual o terceiro combate
que ainda esperavam? De que servira terem-se precipitado cora-
josamente na primeira fileira para combater em lugar dos
outros?
Exaltando-se com essas palavras, os cavaleiros soltaram
novo grito de guerra e avançaram. Inicialmente, fizeram o
inimigo perder terreno, e obrigaram-no depois a retroceder e
debandar.
Não é fácil dizer o que decidiu a vitória entre forças tão
iguais, a menos que a eterna fortuna dos dois povos aumentasse
a coragem de um e enfraquecesse a do outro. Os romanos per-
seguiram os hérnicos em fuga até seu acampamento, mas não
puderam atacá-lo em virtude da hora avançada. Os sacrifícios,
realizados inúmeras vezes sem qualquer êxito, haviam impe-
83
 TITO UVIO
dido o ditador de dar o sinal de ataque antes do meio-dia , e
por esse motivo o combate se havia prolongado até à noite.
No dia seguinte, os romanos encontraram deserto o acam-
pamento dos hérnicos, que haviam fugido deixando apenas al-
guns feridos. Os habitantes de Sígnia atacaram e puseram em
debandada pelos campos a coluna de fugitivos , quando esta
passou junto a suas muralhas, com poucos soldados ao redor
de suas insígnias. Também para os romanos a vitória não foi
menos incruenta. Perderam a quarta parte do exército e inúme-
ros cavaleiros, o que também foi lamentável.
Guerra com os gauleses. 9 . No ano seguinte, os cônsu-
les Caio Sulpício e Ca io Lid-
nio Calvo marcharam com um exército contra os hérnicos. Não
encontrando o inimigo em seu território , tomaram de assalto Fe-
rentino , uma de suas cidades, e por esse motivo, ao regressarem,
os tiburtos lhes fecharam as portas. Após inúmeras reclamações
de ambas as partes, esse foi o pretexto que levou os feciais a
pedirem satisfações, e o povo a declarar guerra a Tíbur.
Consta que naquele ano houve um ditador, Tito Qüíncio
Peno, que teve como comandante da cavalaria Sérvio Cornélio
Maluginense. Licínio Macer escreveu que o cônsul Licínio
nomeou um ditador apenas para presidir as eleições, pois ao
perceber que seu colega, ao invés de ocupar-se com a guerra,
estava mais empenhado em apressar a realização das eleições
para manter-se no consu lado, quis frustrar aquela ambição digna
de censura. Mas Licínio Macer invalidou seu depoimento ao
pretender exaltar um membro de sua própria família . Como
não encontrei qualquer alusão ao fato nos mais antigos anais .
inclino-me a acreditar que o motivo da nomeação de um ditador
foi a guerra com os gauleses. O certo é que naquele ano os
gau leses acamparam na via Sal ária 14 , do outro lado da ponte
sobre o Ánio, no terceiro marco da cidade de Roma .
14 . A via Salária (estrada do sal) estendia-se de Roma ao pais
dos samnitas.
84
HISTóRIA DE ROMA
Em conseqüência da invasão gaulesa, o ditador decretou
o recesso dos tribunais e ordenou o alistamento de toda a juven-
tude. Partindo de Rom a com um grande exérci to. estabeleceu
acampamento na margem ci terior do rio Ánio.
Entre os dois acampamentos havia uma ponte que nenhum
dos dois exércitos se atrevia a destruir, para não dar mostras
de temor. Disputavam-na em freqüentes combates, mas como
havia um equilíbrio de forças, era difícil prever quem venc~ria .
Foi então que um gaulês de estatura gigantesca avançou sozmho
sobre a ponte e gritou com todas as forças: ''Que o mais valente
dos soldados de Roma venha lutar! Vamos! Que o resultado
de nosso duelo mostre qual dos dois povos vale mais na guerra I··
Vitória de Tito Minlio. I O. Por algum tempo reinou
profundo silêncio entre os mais
destacados membros da juventude romana . Todos temiam recusar
o combate, mas ao mesmo tempo nenhum deles queria ser o
primeiro a enfrentar o perigo. Foi então que Tito Mânlio, filho
de Lúcio, aquele que libertara seu pai das perseguições. de um
tribuno saiu de seu posto, dirigiu-se ao ditador e dtsse-lhe:
" Gener~l . sem tua permissão jamais combateria fora das f.ilei-
ras , mesmo que tivesse a vitória como certa. Mas se o per~lte~ ,
desejo mostrar a este bruto, que se exibe com tanta arr?~anct a
diante das fileiras inimigas, que descendo daquela fam tha que
precipitou o exército gaulês da rocha Tarpéia ". O ditador res-
pondeu-lhe: " Bravos por tua coragem e tua piedade para co~
teu pai e tua pátria, Tito Mânlio! Avante! Mostra. com o auxt-
lio dos deuses, que o nome de Roma é invencível ".
Os companheiros do jovem ajudaram-no a armar-se. Pegou
15
um escudo de infantaria e cingiu-se com uma espada hispânica •
a mais eficiente num combate corpo a corpo. Quando já s
achava equipado e armado , levaram-no à presença do gaulês
que não só manifestava uma alegria ruidosa como também (u~a
vez que esse pormenor pareceu aos antigos digno de memóna)
estirava a língua por escárnio.
15 . A espada his pâ nica era curta e laqrn.
85
 T ITO UVIO
Os companheiros voltaram a seu posto e os dois homens
armados permaneceram no meio da ponte, parecendo preparados
mais para um espetáculo do que para seguir a lei da guerra,
pois, a julgar pelas aparências, eram bastante desiguais em
força . Um distinguia-se pela corpu lência, pelas vestes coloridas
e pelas armas pintadas e cinzeladas em ouro. O outro tinha a
estatura média de um soldado, e suas armas, mais práticas do
que belas, tinham aparência modesta. Não can tava, não saltava,
nem agitava as armas com arrogância, mas seu ânimo va loroso,
excitado por uma cólera silenciosa, reservava todo o ardor
para o momento da luta .
Quando já se encontravam frente a frente entre os dois
exércitos, rodeados por muitos homens cujos corações palpi-
tavam entre a esperança e o temor, o gaulês, semelhante a uma
massa que ameaçava desabar, avançou o escudo com o braço
esquerdo e deu um vibrante mas inútil golpe de espada nas
armas do adversário, que também avançara. Com a espada
erguida e firme , o romano começou por bater com seu escudo
na parte inferior do escudo do inimigo. Mantendo seu corpo
muito próximo ao do gaulês para evitar um golpe, conseguiu
interpor-se entre o escudo e o corpo de seu adversário, cravar-
lhe duas vezes a espada no ventre e na virilha, e derrubá-lo.
O gigante caiu estendido no solo. Em seguida, sem praticar
qualquer afronta ao cadáver, despojou-o apenas de seu colar
e colocou-o ainda manchado de sangue no próprio pescoço.
O pavor e a admiração paralisaram os gauleses. Os romanos
avançaram alegres ao encontro de seu companheiro, e com
felicitações e aplausos conduziram-no à presença do ditador.
Em meio a canções ingênuas e chistes dos soldados ouviu-se
o cognome de Torquato, que se transmitiu mais tarde a seus
descendentes, tomando-se tftulo honorífico para a família de
Mânlio. O ditador presenteou-o com uma coroa de ouro e,
diante da assembléia dos soldados, celebrou aquela vitória
com grandes louvores.
86
HI STó RI A D E ROMA
Vitória dos romanos na li . Por Hércules, tão decisivo
guerra com os gauleses, foi esse combate para o desfe-
os tiburtos e os hérnicos. cho da guerra que, na noite
seguinte. o exército gaulês
abandonou precipitadamente o acampamento. retirando-se para
o território de Tíbur.
Depois de aliarem-se aos tiburtos, que os haviam auxiliado
com o fornecimento de víveres, os gauleses partiram para a
Campânia. Foi este o moti vo pelo qual , no ano seguinte, o
cônsul Caio Petélio Balbo, por ordem do povo, conduziu um
exército contra os tiburtos, uma vez que o comando das hosti-
lidades contra os hérnicos recaíra sobre seu colega Marco
Fábio Ambusto.
Os gauleses partiram da Campânia para socorrer seus
aliados, e, sem dúvida alguma, a conselho dos tiburtos, em-
preenderam tremendas devastações nos territórios de Labico.
Túsculo e Alba. Contra um inimigo como os tiburtos, o Estado
se contentara em ter um cônsul como general, mas a invasão
gaulesa obrigou-o a nomear um ditador. Foi escolhido Quinto
Servílio Ahala, que nomeou Tito Qüíncio comandante da cava-
laria. Por decisão do Senado, o ditador fez voto de celebrar
grandes jogos, caso os romanos saíssem vitoriosos na guerra .
Para manter os tiburtos ocupados em sua própria defesa ,
o ditador ordenou ao exército do cônsul que permanecesse onde
se achava. Convocou em seguida toda a juventude para prestar
juramento, e ninguém se recusou ao serv iço militar. .
Travou-se então um combate perto da porta Colma com
todas as tropas que haviam permanecido em Roma, à vista dos
pais, das esposas e dos filhos . Estes, mesmo quando os comba-
tentes estão longe da cidade, estimulam-nos à coragem, e naquela
ocasião, quando combatiam diante de seus olhos, excitavam
ainda mais seu amor próprio e sua dedicação por eles.
Depois de grandes perdas em ambos os lados, os gauleses
recuaram e dirigiram-se, em sua fuga, para Tíbur, que era uma
espécie de cidadela da guerra gaulesa. Mas, em sua debandada.
foram su rpreendidos perto de Tíbur pelo cônsul Petélio, que
os impeliu para dentro de suas portas juntamente com os tibur-
87
 TITO I.IVIO
tos que haviam saído para prestar-lhes socorro. Foram magní-
ficas as vitórias, tanto a do ditador quanto a do cônsul. O
cônsul Fábio, por sua vez, depois de alguns ligeiros combates.
destroçou completamente os hérnicos , numa única e memorável
batalha, na qual o inimigo o havia atacado com todas as suas
forças .
Depois de ter cumulado de louvores os dois cônsules diante
do Senado, chegando a atribuir-lhes uma parte de sua glória,
o ditador abdicou a ditadura . Petélio recebeu as honras de um
duplo triunfo, sobre os gauleses e sobre os tiburtos. Quanto a
Fábio, julgou-se suficiente conceder-lhe a ovação.
Os tiburtos zombaram do triunfo de Petélio. Onde havia
travado combate com eles? Apenas alguns habitantes, que
haviam saído da cidade para presenciar o terror e a fuga dos
gauleses, entraram na cidade ao verem que os romanos atacavam
e massacravam indistintamente todos os que encontravam. Era
esse o combate que parecera aos romanos digno do triunfo? Não
exagerassem o milagre de ter levado o alarme até as portas do
inimigo. Teriam oportunidade de presenciar maior confusão
diante de suas próprias muralhas.
Ataque dos tiburto . 12 . No ano seguinte, no
Guerra com os tarqüinien es consulado de Marco Popí-
e com os gauleses . nio Lenate e de Cneu Mân-
lio, no início e na calada
da noite , uma coluna inimiga partiu de Tíbur e chegou à cidade
de Roma . Bruscamente despertados , os romanos aterrorrizaram-
se com aquele repentino ataque e com o alarme noturno. Além
do mais, muitos ignoravam quem era o inimigo e donde provi-
nha . Contudo. o povo foi rapidamente convocado a pegar em
armas, sendo colocadas guarnições nas portas. e sentinelas nas
muralhas.
Quando os primeiros albores do dia permitiram distinguir
diante das muralhas um exército pouco numeroso, e reconhecer
que os inimigos eram apenas os tiburtos, os cônsules saíram
por duas portas da cidade e atacaram ao mesmo tempo as tropas
que já se preparavam para assaltar as muralhas. Verificou-se
88
IIISTORIA DF. ROMA
que eles haviam confiado mais nas ci rcunstâncias que em seu
próprio valor, pois mal conseguiram sustentar o primeiro choque
dos romanos. Todos reconheceram que a chegada dos tiburtos
fora oportuna para a cidade, porquanto a ameaça daquela súbita
guerra contribuíra para abafar uma luta prestes a eclodir entre
patrícios e plebeus.
Logo após houve nova invasão de tropas inimigas, mais
terrível para o campo do que para a cidade. Os tarqüinienses
invadiram e devastaram o território romano, sobretudo dos
lados da Etrúria. Após inúteis reclamações, os novos cônsules
Caio Fábio e Caio Fláucio, por delegação do povo, declararam-
lhes guerra. Coube a Fábio o comando dessa operação e a
Pláucio o comando da guerra contra os hérnicos.
Dia a dia eram mais freqüentes os rumores de guerra com
os gauleses. Mas em meio a tantos alarmes, Roma teve a satis-
fa ção de conceder aos latinos a paz que haviam solicitado.
De acordo com os termos de um velho tratado que há anos
não vinha sendo observado, chegaram da parte deles numerosas
tro pas . Com esse reforço aumentou o poderio de Roma, o que
a levou a suportar com melhor disposição a notícia de ~ue
os gauleses haviam chegado Jogo após a Preneste, e estabelectdo
acampamento nos arredores de Pedo . . _
Decidiu-se nomear Caio Sulpício ditador, e para essa eletçao
foi chamado o cônsul Caio Pláucio. O ditador indicou Marco
Valério para comandante da cavalaria, e à frente dos mais
valentes soldados, escolhidos nos dois exércitos consulares, os
dois chefes marcharam contra os gauleses.
Essa guerra foi um pouco mais lenta do que o desejariam
os dois povos. No início, somente os gauleses desejavam o com-
bate, mas logo depois os soldados romanos excederam os gau-
leses em ardor e no desejo de empunhar armas e travar a luta.
O ditador, porém, não estava disposto, quando nada a isso
obrigava, a con fiar na sorte e combater um i~imigo que,. com
0 passar do tempo , tornar-se-ia cada vez m~ts fraco, p~ts se
achava em território estrangeiro, sem abastectmento de vtveres
e sem sólidas fortificações. Considerava também que o físico
e o moral daquele povo, cuja força dependia do primeiro im-
89
 TITO l.fVIO
pulso, criam afetados com a protelação da luta. Assim pen-
ando, conduzia a guerra morosamente, e ameaçou com severo
castigo quem combatesse o inimigo sem sua ordem.
Descontentes com a proibição, os soldados murmuravam
em seus postos e guarnições contra a decisão do ditador e ata-
cavam, às vezes, os senadores em geral, por não terem confiado
aos cônsules o comando daquela guerra. Haviam escolhido um
magnífico general , um chefe inigualável , que pensava que a
vitória lhe cairia do céu sem que nada fizesse! Por fim, passaram
a falar abertamente, usando essas e outras palavras ainda mais
atrevidas: ou combateriam sem ordem do general. ou regressa-
riam em coluna a Roma.
Os centuriões não tardaram a unir-se aos soldados. )á não
se murmurava apenas em grupos isolados, mas, no próprio
quartel-general e no pretório, as vozes se confundiam. A multidão
já assumia o caráter de uma assembléia , e de todos os lados
ouviam- e gritos de que era necessário ir imediatamente ao
encontro do ditador. Séxtio Túlio fa laria em nome do exército
de maneira digna de eu valor.
Discurso de Séxtio Túlio. 13 . Pelo sétima vez, Tú lio
comandava a primeira compa-
nhia dos triários 16 • Não havia no exército homem mais célebre
por suas façanhas, pelo menos entre os que haviam servido na
infantaria. À frente de um grupo de soldados dirigiu-se ao tribu-
nal e diante do espanto de Sulpício ao ver aquela turba, princi-
palmenre ao vê-la chefiada por ele. Túlio. soldado cumpridor
de seus deveres. disse-lhe:
" Com tua permissão, ditador, o exército inteiro, persua-
dido de que o condenas como covarde e que para castigá-lo
com a desonra o manténs desarmado, pediu-me que defendesse
sua cau sa diante de ti . a verdade. mesmo que pudesses cen-
tó . Isto é, a prime ira centúria do primei ro manipulo dos triário
(soldados de terceira file ira) ou " pilani ", (soldados que e mpunhavam
da rdos ou " pila "), da primeira coorte. Ele era centurião primfpilo, o
pos to mais e levado a que poderi o che11ar um soldado rn o .
90
Hl TóRIA DF ROMA
surar-nos pelo abandono de nosso posto, por ter voltado as
costas ao inimigo, ou perdido covardemente nossas insígnias,
creio que poderíamos obter de ti , com justiça, a permissão de
reparar nosso erro demonstrando coragem , e apagar a lembrança
da desonra com uma nova vitória. As mesmas legiões que
foram derrotadas em Alia e que por temor desonraram a pátria,
partindo de Véios souberam novamente honrá-la com seu valor.
Mas nós, graças aos deuses, à tua fortuna e à do povo romano,
conservamos intactas a república e a nossa glória. Contudo,
mal ouso falar em glória, quando permanecemos, como mulhe-
res, escondidos dentro das trincheiras, insultados e ultrajados
de todas as maneiras pelo injmigo. E, o que é majs triste para
nós, tu, nosso general, consideras teu exército sem valor, sem
armas, sem braços, a ponto de perderes a confiança em nós,
como se te julgasses chefe de mancos e débeis.
"Realmente, a não ser esse o motivo, que outro poderia
levar um velho general, valoroso na guerra, a permanecer de
braços cruzados, como se costuma dizer, assim como tu agora
permaneces? Seja como for, na verdade pareces duvidar mais
de nosso valor do que nós do teu. Mas, se por acaso não se
trata de uma decisão tua e sim de uma decisão do Estado, se
alguma trama dos senadores e não a guerra gaulesa é que
nos mantém afastados da cidade e de nossos penates, rogo-te
que vejas no que digo não as palavras do soldado contra seu
general, mas da plebe contra o Senado. Pois quem poderá se
irritar se a plebe disser que tem seus desígnios como vós tendes
os vossos? Somos soldados e não vossos escravos, fomos envia-
dos à guerra e não ao exílio. Se alguém nos der o sinal, nos
conduzir ao campo de batalha, combateremos como é digno de
homens e de romanos. Mas se nossas armas não são necessárias,
estamos mais inclinados a permanecer na ociosidade em Roma
do que num acampamento. Que estas palavras sejam transmi-
tidas aos senadores. A ti, nosso general, te rogamos como sol-
dados teus que nos dês oportunidade de combater. Desejamos
vencer, mas vencer sob teu comando, conseguir-te insigne laurel.
contigo entrar triunfalmente em Roma, e acompanhando teu
91
 TITO I IVIO
ca rro subir ao templo do excelen te e grande Júpit er com aplau-
sos e aclamações".
Ao discurso de Túlio eguiram-se os rogos da multidão.
De todos os lados ouviram-se clamores para que o ditador
mandasse empunhar as armas e desse o sinal de ataque.
Estratégia de 14 . O ditador tinha consciência de que
Caio Sulpício. aq uela atitude, apesar de louvável, cons-
tituía um mau exemplo. Contudo, prome-
teu aos soldados fazer o que lhe pediam. Mas, em particular,
perguntou a Túlio o que significava aquela maneira de agir.
Túlio suplicou enca recidamente ao ditador que não pensasse
que ele havia menosprezado a disciplina militar, nem sua própria
au toridade nem a do general. Na qualidade de comandante,
ele não quisera omitir-se receoso de que a multidão exaltada ,
sempre disposta a escolher um chefe à sua semelhança, daq uela
vez também o fizesse. Ele jamais agiria contra a vontade do
general. Con tudo era necessário que o ditador mantivesse o
controle das tropas. Não se poderia impor maiores dilaçõe
a ânimos tão exaltados, e, se o general não lhes indicasse a
hora e o local do combate, eles próprios tomariam a iniciati va.
Durante essa conversa um gaulês arrebatou a lguns cavalos
que pastavam casualmente fora das trincheiras e dois soldados
romanos os retoma ram. Os gauleses atiraram-lhes pedras e do
posto avançado dos romanos ergueu-se imediatamente um cla-
mor. De ambos os lados acorreram soldados e ter-se-ia travado
um verdadeiro combate se os cen turiões não houvessem pronta-
mente interferido.
Esse incidente veio confirmar as palavras de Túlio ao
ditador. Como a situação não admitisse mais protelações, foi
anunci ada para o dia seguinte um a batalha campal.
Confiando mais no moral do que no preparo das tropas
para a luta que iria travar-se, o ditador começou a examinar
os arredores e a refletir sob re um meio de atemorizar o inimigo.
Sua inteligência sagaz inventou uma nova estratégia que, a
partir de en tão, muitos de nos os generais, generais estrangei ros
92
HISTóRIA DF. ROMA
e mesmo alguns de nossa época utilizaram . Mandou retirar as
albardas das mulas deixando-lhes apenas as duas gualdrapas ,
e fez montar nelas os arrieiros equipados com as armas dos
prisioneiros e dos doentes. No meio de mil homens assim arma-
dos introduziu cem cavaleiros, e ordenou-lhes que subissem,
à noite, aos montes que dominavam o acampamento e se ocul-
tassem nos bosques, sem se moverem, até que fosse dado o
sinal. Por sua vez, ao raiar do dia, começou a di spor suas
fileiras nas encostas dos montes, a fim de que o inimigo tomasse
posição de frente para esses montes.
Diante daqueles preparativos feitos para inspirar um vão
terror, que de certo modo foram mais úteis ao ditador do que
suas próprias tropas, os chefes gauleses a princípio pensaram
que os romanos não desceriam até a planície. Mas quando
subitamente os viram mover-se, ávidos também de combater,
lançaram-se ao ataque e a batalha se travou antes que os generais
tivessem dado o si nal.
15 . Os gau leses atacaram com
Derrota dos gauleses.
Novas guerras: maior violência a ala direita. Não
vitórias e fracassos. teria sido possível resistir-lhes se
o ditador não estivesse presente e
chamasse Séxtio Túlio pelo nome, perguntando-lhe em tom de
censura se era assi m que ele havia prometido que seus soldados
combateriam. Por que não mais clamavam exigindo armas? Por
que não mais ameaçavam travar combate sem ordem do gene-
ral? Ele, o próprio general, chamava-os agora em altos brados
para a luta, e achava-se com suas armas à frente das insígnias.
Qual daqueles homens que há pouco queriam arrastá-lo à luta,
tão temíveis no acampamento e tão tímidos no campo de bata-
lha, se atreveria a segui-lo naquele momento?
De tal modo todos reconheceram a veracidade daquelas
palavras que, estimulados pelo amor próprio e desprezando o
perigo, expuseram-se aos dardos do inimigo. Esse primeiro
ataque impetuoso perturbou os gauleses, e em meio a sua
confusão uma carga da cavalaria romana obrigou-os a recuar.
 TITO I I 10
Ao ver o exército gaulês em derrocada numa das alas, o
próprio ditador conduziu as insígnias para a ala esquerda,
onde estava reunido o grosso das tropas inimigas, e deu o sinal
convencionado aos que se achavam nos montes. Ao ouvirem
novo grito de guerra, os gau leses perceberam que novas tropas
atravessavam os montes e se dirigiam ao seu acampamento.
Receando ter o caminho cortado, abandonaram a luta e em
fuga desordenada regressaram ao acampamento. Saiu-lhes ao
encontro Marco Va lério, comandante da cava laria, que após
destroçar-lhes a ala direita cavalgava diante de suas trincheiras.
Debandaram, então, para os montes e bosques, onde foram
recebidos pela cavalaria de arrieiros . Mesmo depois de termi-
nado o combate , houve um terrível massacre daqueles que
o pavor força ra a refugiar-se nos bosques.
Depois de Marco Fúrio, nenhum outro general obteve mai s
legitimamente o triunfo sobre os gauleses do que Caio Sulpício.
Com os despojos dos gauleses, ele conseguiu grande quantidade
de ouro, que consagrou no Capitólio, encerrando-o em pedras de
can taria 17 •
esse mesmo ano, os cônsu les também combateram, mas
com resultados diferentes. Os hérnicos foram definitivamente
derrotados e subjugados por Caio Pláucio, mas seu colega Fábio
lutou contra os tarqüinienses sem precaução e sem planejamento.
ca lamidade não adveio propriamente do combate, mas da
imolação de trezentos e sete soldados romanos que foram captu-
rados pelo inimigo. O horror de tal su plício concorreu ainda
mais para a ignomínia do povo romano. A essa ca tástrofe acres-
centou-se a devastação do território romano pelos privernates
e depois pelos veliternos, numa incursão repentina.
Ainda nesse ano foram anexadas duas tribos, a Pontina e
a Publília, e celebraram-se os jogos votivos prometidos pelo
ditador Marco Fúrio 111 Finalmente, o tribuno da plebe Ca io
17 . Texlo obscuro. Talvez se tratasse de porões do templo ou do
próprio pedeslal da estátua de Júpiter.
18 . Tito Lívio não se referira antes :1 esse ditador.
94
Hl TôR IA DF ROMA
Petélio apresentou pela segunda vez ao povo, com a aprovação
do Senado, uma lei sobre a cabala de votos. Acreditava-se que
através dessa lei poder-se-ia reprimir sobretudo a ambição dos
homens novos, que costumavam angariar votos nos mercados
e nas feira s.
Triunfo sobre os 16 . Menos agradável aos patrícios foi
privernates. a lei que, no ano seguinte, no consu-
lado de Caio Márcio e Cneu Mãnlio ,
os tribunos da plebe Marco Duílio e Lúcio Menêmio apresen-
taram sobre juros a um por cento. A plebe, entretanto, recebeu-a
com entusiasmo.
Além das recentes guerras decididas no ano anterior, os
faliscos também foram considerados inimigos. Contra eles havia
duas queixas: sua juventude havia combatido ao lado dos
tarqüinienses e eles se haviam negado a entregar aos feciai s
romanos os soldados que, após a derrota , se refugiaram em
Falérios. O comando dessa operação coube a Cneu Mânlio.
Márcio marchou com seu exército contra o território priver-
nate que até então não sofrera qualquer dano em decorrência
de uma paz duradoura, e cumulou seus soldados com os despojos
do inimigo. Além dos bens pilhados, os soldados aumentaram
seus bens pessoais pois, em sua prodigal idade, o cônsul nada
reservou para o erá rio público.
Quando os privernates estavam bem-entrincheirados diante
de suas muralhas, Márcio convocou seus soldados para uma
assembléia e disse-lhes: " A partir deste momento entrego-vos,
como presa, o acampamento e a cidade do inimigo se me prome-
terdes portar-vos valorosamente na batalha e demonstrar tanta
disposição no combate quanto no saque".
Os soldados ex igiram o sinal de ataque em altos brados,
e exaltados com a certeza da vitória marcharam ardorosos para
a luta. Na primeira fil eira, Séx tio Túlio, de quem já fa lamos,
exclamou: "Vê, meu general, como teu exército cumpre sua
promessa''. Depondo o dardo, empunhou a espada e lançou-se
contra o inimigo. Todos os soldados das primeiras linhas o
acompanharam, e no primeiro embate força ram o inim igo a
95
 T ITO r rvro
recuar. Depois de pô-lo em fuga, perseguiram-no até a cidade,
e já estavam prestes a aproximar as escadas das muralhas quando
a cidade se rendeu . Celebrou-se o triunfo sobre os privernates.
O outro cônsul nada fez de memorável a não ser (fato
inédito) propor no acampamento em Sútrio, ao exército dividido
em tribos 19 , uma lei que estabelecia um imposto de um vigésimo
sobre o preço dos escravos que eram libertados 20 O Senado
ratificou essa lei que proporcionava rendas consideráveis ao
tesouro já exaurido.
Os tribunos da plebe, entretanto, mais preocupados com
as conseqüências desse exemplo do que com a própria lei,
estabeleceram pena de morte para quem , daí por diante, convo-
casse o povo fora da cidade. Se aquele procedimento fosse auto-
rizado, tudo se poderia obter dos soldados, presos ao cônsu l
pelo juramento, por mais pernicioso que pudesse ser para o
próprio povo.
No mesmo ano, Caio Licínio Estalo, de acordo com a lei
de sua autoria, foi acusado por Marco Pompílio Lenate e obri-
gado a pagar uma multa de dez mil asses pelo fato de possuir,
juntamente com seu filho a quem havia emancipado para burlar
a lei, mil jeiras de terra.
Guerras com os tiburtos, I 7 . Os dois novos côn-
os faliscos e os tarqüinienses, sules eleitos pela segunda
Vitória do ditador plebeu vez, Marco Fábio Ambus-
Caio Márcio Rútilo. to e Marco Popflio Lenate,
tiveram de enfrentar duas
guerras : uma contra os tiburtos , que Lenate conduziu facilmen-
te, repelindo o inimigo para sua cidade c devastando seu terri-
tório; e outra , em que os faliscos e os tarqüinie nses puseram
19 . Com efeito, o exérci to só se reunia nos comícios centuriatos e.
de maneira excepcional, pelo motivo que invocaram os tribunos.
20 . Essa lei visava a restringir as manumissões. O escravo ao re-
ceber a liberdade entrava na sociedade política de seu patrão. Temiam
os romanos que. ao prodigalizar-se as manumissões. decaísse a dignidade
de cidadão.
96
HISTORIA DE ROMA
em debandada o exército do segundo cônsul, logo no início da
batalha. Os soldados romanos ficaram atemorizados ao ver o
espetáculo insólito de sacerdotes do inimigo avançarem como
fúrias , agitando archotes e serpentes. Diante disso, de.svair~dos
e atônitos, refugiaram-se desordenadamente em suas tnnchetras.
Quando o cônsul, os legados e os tribunos começaram a
rir-se e a zombar de seu comportamento infantil ante falsos
prodígios, seu amor-próprio os fez subitamente muda: de atitude
e precipitar-se cegamente contra aqueles que os havtam afugen-
tado. Dissipado esse inútil aparato do inimigo, voltaram-se contra
os próprios soldados e forçaram todo o exérci to a recuar. Depois
de se apoderar do acampamento naquele mesmo dia e de reco-
lher grandes despojos, regressaram vencedores, trocando pilhé-
rias de caserna e zombando do artifício do inimigo e de seu
próprio temor.
Em seguida houve uma sublevação de toda a liga etrusca,
e sob o comando dos tarqüinienses e dos faliscos os inimigos
chegaram até as salinas. Diante dessa ameaça, foi pela primeira
vez nomeado um ditador plebeu, Caio Márcio Rútilo, que desig-
nou para comandante da cavalaria outro plebeu, Caio Pláucio.
Os patrícios consideraram uma indignidade que a própria dita-
dura estivesse ao alcance de todos, e envidaram todos os esforços
para im pedir que o ditador tomasse medidas e se preparasse para
aquela guerra . O povo, ao contrário, empenhou-se em aprovar
todas as propostas apresentadas pelo ditador.
Partindo da cidade e transportando seu exército em embar-
cações para as duas margens do Tibre , como exigia a marcha
do inimigo, conseguiu exterminar numerosos bandos que pilha-
vam os campos. Tomou de assalto o acampamento etrusco e ,
após ter capturado oito mil inimigos, massacrado e expulsado
os demais do território romano , celebrou o triunfo por uma
decisão do povo, sem a ratificação dos senadores.
Como os senadores não desejassem que as eleições consu·
lares fossem realizadas por um ditador ou por um cônsul plebeu,
e como o cônsul Fábio estivesse retido pela guerra, recorreram
a um interregno. Os inter-reis qu e se sucederam foram : Quinto
91
 TITO UVIO
Servílio Ahala, Marco Fábio, Cneu Mânlio, Caio Fábio, Caio
Sulpício, Lúcio Emflio, Quinto Servílio e Marco Fábio Ambusto.
Durante o segundo interregno, surgiu uma controvérsia
por causa da nomeação de dois cônsules patrícios. Como os
tribunos da plebe se opusessem, o inter-rei Fábio afirmou que
constava nas Doze Tábuas uma lei segundo a qual era consi-
derado de legítimo direito a última decisão tomada pelo povo.
Ora, as eleições haviam sido votadas pelo povo e, assim sendo,
a oposição dos tribunos serviu apenas para protelar as eleições.
Dois patrícios foram nomeados cônsules, Caio Sulpício Petico.
pela terceira vez, e Marco Valério Publícola, que no mesmo
dia tomaram posse de seus cargos.
Revolta da plebe contra 18 . Assim, quatrocentos anos
a nomeação de dois após a fundação de Roma, trin-
cônsules patrícios. ta e cinco anos após a retomada
da cidade aos gauleses e onze
após a conquista do consu lado pela plebe, dois cônsules patrí-
cios assumiram o poder depois de um interregno: Caio Sul-
pício Petico, pela terceira vez, e Marco Valério Publícola.
Numa luta que nada apresentou de memorável, naquele ano
a cidade de Empulo foi tomada aos tiburtos. Segundo alguns
historiadores, essa guerra foi travada sob os auspícios dos dois
cônsules. Segundo outros. o cônsul Sulpício foi quem devastou
o território dos tarqüinienses. enquanto Valério comandava as
legiões contra os tiburtos.
Luta maior tiveram os cônsu les de enfrentar em Roma
contra os tribunos e a plebe. Achavam os cônsules que não
se tratava apenas de uma questão de mérito, mas de um com-
promisso de honra para eles entregar a dois patrícios o consu-
lado que dos patrícios haviam recebido. Pois se o consulado já
se tivesse tornado uma magistratura plebéia. ou eles deveriam
cedê-lo integralmente, ou possuí-lo totalmente como o haviam
recebido de seus antepassados. Por sua vez, os plebeus mur-
muravam : para que viver? De que valia serem considerados
cidadãos, se todos juntos não podiam conservar o direito con-
quistado pelo valor de doi homens . Lúcio Séxtio e Caio Licínio?
qg
HISTORIA DE ROMA
Melhor seria tolerar os reis, os decênviros ou qualquer outro
poder mais funesto ainda do que suportar dois cônsules patrí-
cios, do que consentir que uma classe eternamente estabelecida
no poder - ao invés de alternadamente mandar e obedecer
- considerasse a plebe como uma classe nascida apenas para
a servidão.
Os tribunos incitavam a turba, mas no meio da massa
totalmente sublevada, mal se distinguiam os chefes. Mais de
uma vez a multidão inutilmente se reuniu no Campo de Marte,
e muitos dias de eleições foram perturbados por sedições. Final-
mente, vencidos pela perseverança dos cônsules, os plebeus sen-
tiram-se tão desesperados que, ao ouvirem os tribunos bradarem
que era o fim da liberdade e que teriam de abandonar não
só o Campo de Marte, mas também a própria cidade, cativa e
oprimida pelo reinado dos patrícios, eles tristemente os seguiram.
Abandonados por uma parte do povo, os cônsules prosse-
gui ram com todo o zelo as eleições, apesar do reduzido número
de eleitores. Foram nomeados dois patrícios para o consulado:
Marco Fábio Ambusto, pela terceira vez. e Tito Qüfncio. Em
alguns anais encontra-se o nome de Marco Popílio no lugar de
Tito Qüfncio.
Massacre dos tarqüinienses. t9 . Naquele ano houve duas
Declaração de guerra guerras realizadas com êxito.
aos cerites. Combateu-se contra os tibur-
tos até obrigá-los à rendição.
A cidade de Sassula lhes foi tomada. c todas as suas outras
cidadelas teriam tido a mesma sorte se a nação inteira. de-
pondo as armas. não se tivesse colocado sob a proteção do
cônsul. Roma triunfou sobre os tiburtos, ma o vencedol' mos-
trou-se clemente. Os tarqüinienses, porém, foram tratados com
tremenda crueldade. Depois do massacre de grande número de
soldados no campo de batalha. escolheram-se, entre os incontá-
veis prisioneiros. trezentos e cinqüenta e oito dos mais nobres
para enviá-los a Roma, e os demais foram trucidados. O povo
também não se mostrou mais clemente para com aqueles que
foram enviados a Roma . Açoitaram-nos no centro do Fórum ~
qq
 TITO UVIO
depois os decapitaram, em represália aos tarqüinienses, pelos
soldados romanos imolados no Fórum de Tarqüínias.
O desfecho dessa guerra levou os samnitas a solicitar a
amizade de Roma. O Senado respondeu favoravelmente a seus
legados, e por meio de um tratado considerou-os seus aliados.
A sorte da plebe romana não era a mesma em tempo de
paz que em tempo de guerra. Embora a redução dos juros a
um por cento tivesse aliviado o povo da usura, o montante
da dívida por si só esmagava os pobres, levando-os à escravidão.
Por esse motivo, nem a nomeação de dois cônsules patrícios,
nem a preocupação com as eleições ou qualquer outro interesse
público conseguia desviar a plebe de seus problemas particulares.
O consulado continuou a ser exercido pelos patrícios, sendo
nomeados Caio Sulpfcio Petico, pela quarta vez. e Marco Va-
léria Publfcola, pela segunda.
O Estado ocupava-se então com a guerra da Etrúria, pois
corria o boato de que os cerites, comovidos com a desgraça de
um povo irmão, haviam-se unido aos tarqüinienses. Mas legados
latinos chamaram a atenção dos romanos para os volscos, que,
segundo eles, haviam arregimentado e armado um exército, com
o qual já ameaçavam suas fronteiras e viriam, em seguida, de-
vastar o território de Roma.
O Senado julgou que não se deveria negligenciar qualquer
dessas duas ameaças e ordenou aos cônsules que organizassem
dois exércitos e sorteassem o comando. Entretanto, logo depois
as atenções voltaram-se principalmente para a guerra da Etrúria,
em virtude de uma carta do cônsul Sulpício, a quem coubera
o comando das operações contra os tarqüinienses. Soube-se
então que o campo próximo às salinas romanas havia sido devas-
tado, que uma parte dos despojos fora rtan sportada para o terri-
tório de Cere e que, sem dúvida alguma. a juventude daquele
povo se achava entre os saqueadores.
O Senado mandou chamar o cônsul Valéria, que havia
partido para combater os volscos e já se achava acampado
no território de Túscu lo, e ordenou-lhe que nomeasse um
ditador. Foi então nomeado Tito Mãnlio, filho de Lúcio, que
por sua vez designou Aulo Cornélio Cosso para comandante
100
HISTORIA DE ROMA
da cavalaria, contentando-se com um exército consular. De
acordo com a proposta do Senado e a vontade do povo, declarou
guerra aos cerites.
Trégua de cem anos 20 . Como se as palavras do ini-
com a cidade de Cere. migo tivessem maior importância
do que seus próprios atos , os ceri-
tes, que haviam provocado os romanos com pilhagens, sentiram-
se tomados de verdadeiro pavor por aquela guerra , conscientes
da inferioridade de suas forças para a luta. Arrependiam-se da
pilhagem e maldiziam os tarqüinienses que os haviam instigado
a praticar aquele ato hostil. Ninguém se armou, nem se preparou
para a guerra. Todos desejavam que o governo enviasse embai-
xadores a Roma para pedir desculpas pela falta cometida.
Os embaixadores apresentaram-se no Senado, que por sua
vez os encaminhou à assembléia do povo. Ali iniciaram seu
discurso invocando os deuses, cujos objetos sagrados haviam
conservado piedosamente durante a guerra gaulesa, para que
despertassem nos afortunados romanos o mesmo sentimento
de piedade que eles, cerites, haviam outrora experimentado
pelo povo romano em sua desgraça . Em seguida, voltando-se
para o templo de Vesta, recordaram a casta e piedosa hospita-
lidade que haviam dispensado aos flâmines e às vestais. Depois
de tão grandes favores , como acreditar que, subitamente e sem
motivo, tivessem eles se transformado em inimigos? Se tivessem
praticado algum ato de hostilidade, não o teriam feito delibe-
radamente, mas arrebatados por uma espécie de loucura. Com
suas ofensas recentes, poderiam perder as vantagens dos antigos
benefícios prestados a corações tão generosos. Como acreditar
que houvessem escolhido para inimigo o povo romano , tão
bem-sucedido e afortunado na guerra, depois de lhe haver ofe-
recido a amizade em momento de desgraça? Não se deveria
chamar de um ato deliberado o que não passara de um momento
de exaltação e de necessidade . Ao atravessar o território. de
Cere com seu exército os tarqüinienses, que somente hav1am
pedido passagem , induziram alguns camponeses a acompanhá-
IOI
 TITO uv1o
los na pilhagem de que agora se acusava toda a nação. Se os
romanos quisessem, eles lhes entregariam aqueles homens ou
então os castigariam, se fosse exigido um castigo. Mas a cidade
de Cere, santuário do povo romano, asilo de seus sacerdotes
?epositária dos objetos sagrados de Roma, deveria ser mantid~
~ntacta ~ imune ao flagelo da guerra, por ter dado hospitalidade
as vesta1s e conservado o culto dos deuses.
. . , ~ais sensível aos favores recebidos outrora do que às
InJUrias recentes, o povo preferiu esquecer o maleffcio e lem-
brar-se apenas do benefício. Concedeu paz à população de Cere
e uma trégua de cem anos foi mencionada no senadoconsulto.
. Contra ~s fa.liscos . se voltou toda a violência da guerra,
p~1s eles hav1am mcorndo na mesma falta. Mas o inimigo não
fot encontrado em parte alguma. Depois de percorrer e devastar-
lhe o território, as legiões regressaram a Roma, abstendo-se de
atacar as cidades.
O resto do ano foi empregado na reparação de muralhas
e torres, e também na consagração de um templo a Apolo.
Solução do problema 21 . No fim do ano o debate en-
das dívidas. tre patrícios e plebeus interrompeu
as eleições consulares. Os tribunos
recusavam-se a permitir a realização dos comícios, enquanto as
eleições não se efetuassem em conformidade com a lei Licfnia.
O ditador, por sua vez, mantinha-se intransigente, pois preferia
suprimir o consulado da república a dividi-lo entre patrícios e
plebeus. Com isso as eleições foram adiadas e o ditador termi-
nou seu mandato, sendo a república confiada a um inter-rei. Os
inter-reis encontraram uma plebe hostil aos patrícios, e por esse
motivo houve lutas e sedições até o décimo primeiro inter-rei.
Os tribunos invocaram a proteção da lei Lic(nia. A plebe
afligia-se com o problema das dívidas que se agravava cada vez
mais, e assuntos privados irrompiam nos debates públicos.
Cansados dessas querelas, os senadores ordenaram ao inter-
rei Lúcio Cornélio Cipião que cumprisse a lei Licínia nas
eleições consulares, a fim de restabelecer a concórdia. Públio
102
HISTORIA DE ROMA
Valéria Publícola teve então como colega o plebeu Caio Márcio
Rústilo.
Uma vez apaziguados os ânimos, os novos cônsules trata-
ram de aliviar o povo do pagamento de juros excessivos, o que
parecia ser o único obstáculo a uma união completa. Conside-
rando o pagamento de dívidas como assunto de interesse público,
nomearam cinco magistrados (qüinqüéviros), com a incumbência
de adiantar o dinheiro, e que por esse motivo foram chamados
de " banqueiros". Agindo com zelo e eqüidade, esses magistrados
mereceram que seus nomes ficassem consignados em todos os
anais. Foram eles: Caio Duílio, Públio Décio, Marco Papírio,
Quinto Publílio e Tito Emílio.
O assunto era difícil de ser tratado, muito delicado para
ambas as partes, pelo menos para uma delas. Os magistrados
conseguiram resolvê-lo com moderação, por meio de emprés-
timos, sem sacrificar o tesouto público. Muitas dívidas atrasadas
ou enredadas, mais por negligência do que pela falta de recursos
dos devedores, foram saldadas por meio de adiantamentos con-
cedidos pelo governo, que eram pagos nas bancas espalhadas
pelo Fórum, depois de tomadas todas as garantias para com o
dinheiro do povo, ou então após uma avatiação razoável dos
bens dos devedores. Desse modo, sem injustiças e sem queixas
das partes, foi liquidado um grande número de dívidas.
Em seguida, o boato de que os doze povos da Etrúria
conspiravam contra Roma levou à nomeação de um ditador.
Foi nomeado no acampamento - pois para Já havia sido envia-
do o senadoconsulto aos cônsules - Caio Júlio, que teve
como comandante da cavalaria Lúcio Emílio. No exterior, entre-
tanto, tudo estava tranqüilo.
Trégua com os faliscos 22. Em Roma, a tentativa do
e tarqüinienses. ditador para que fossem nomea-
Censura plebéia. dos dois cônsules patrícios levou
a república a um interregno. Os
dois inter-reis que se sucederam, Caio Sulpício e Marco Fábio,
conseguiram o que o ditador havia inutilmente tentado. Apazi-
103
I
TITO LfVIO
guada pelo benefício recente - solução do problema das dívi-
das - a plebe consentiu na nomeação de dois cônsules patrf-
ci~s. Foram eleitos o mesmo Caio Sulpício Petico, que ocupara
o mterregno em primeiro lugar, e Tito Qüíncio Peno. Certos
autores atribuem a Qüíncio o prenome de Ceso e outros de
Caio. Ambos partiram para a guerra, Qüíncio contra os fali~cos
e Sulpício contra os tarqüinienses, mas, não encontrando o ini-
migo mobilizado em parte alguma, deixaram de lado os homens
e fizeram guerra aos campos, incendiando-os e devastando-os.
Essa destruição, como um mal devorador que os enfraquecia
pouco a pouco, venceu a pertinácia dos dois povos. Pediram
trégua primeiro aos cônsules e depois, com a permissão destes,
ao Senado, e a obtiveram por quarenta anos.
Assim, li~res da preocupação de duas guerras ameaçadoras,
enquanto havta certa tranqüilidade no exército, decidiu-se fazer
o recenseamento, pois, com a regularização das dívidas muitos
bens haviam mudado de dono. ' Feitos todos os preparativos e tomadas todas as decisões, mar-
~uan_d?, porém, a eleição de censores foi anunciada, Caio
Márcto ~utllo, que fora o primeiro ditador plebeu, apresentou
sua candtdatura, perturbando a harmonia entre as duas classes.
Parecia ter escolhido mal a ocasião, pois havia então dois
cônsules patrícios dispostos a não aceitar suas pretensões. Con-
tudo, conseguiu seu objetivo à custa de perseverança, ajudado
também pelos tribunos , que utilizaram toda a sua força para
recuperar um direito que haviam perdido nas eleições consu-
lares. Por outro lado, aquele homem tinha bastante dignidade
para atingir as mais altas honrarias. Fora ele quem abrira
aos plebeus o caminho da ditadura, e com ele queriam compar-
tilhar da censura. Nas eleições, a divisão de votos não impediu
que Márcio fosse nomeado censor juntamente com Mânlio Cneu.
Nesse ano houve também um ditador, Marco Fábio, não
porque se temesse alguma guerra, mas para impedir o cumpri-
mento da lei Licínia nas eleições consulares. O comandante
da cavalaria, junto ao ditador, foi Quinto Servflio. Entretanto,
apesar da ditadura, os patrícios não foram mais fortes nas elei-
ções consulares do que haviam sido nas eleições censoriais.
104
HISTORIA DE ROMA
Guerra contra os gauleses. 23 . Marco Popílio Lenate foi
eleito cônsul pelos plebeus e
Lúcio Cornélio Cipião, pelos patrícios.
Quis a sorte que o cônsul plebeu se cobrisse de maior
glória. Quando foi recebida a notícia de que imenso exército
de gauleses acabava de acampar em território latino, Cipião
estava gravemente enfermo e o comando da guerra, a título
extraordinário, foi confiado a Popílio, que imediatamente arregi-
mentou um exército. Ordenou a todos os soldados que se reu-
nissem fora da porta Capena, perto do templo de Marte, e aos
questores que retirassem do Tesouro as insígnias levando-as para
o mesmo local.
Após ter organizado quatro legiões completas, deixou os
demais soldados com o pretor Públio Valério Publfcola, acon-
selhando o Senado a recrutar outro exército para servir de reser-
va à República, tendo em vista os incertos resultados da guerra.
chou contra o inimigo. Para conhecer melhor suas forças antes
do encontro decisivo, escolheu a colina mais próxima do acam-
pamento dos gauleses e começou a cavar uma trincheira.
Quando aquele povo ardoroso e de caráter belicoso viu
ao longe as insígnias romanas , organizou suas fileiras como
se fosse travar combate imediato. Mas quando percebeu que
os romanos , ao invés de descer à planície, se protegiam e se
fortificavam numa colina, supôs que estavam dominados pelo
terror. Atacou-os soltando seu grito de guerra , pois seriam
mais fáceis de vencer na medida em que estivessem mais ocupa-
dos em seu trabalho.
Os romanos não interromperam sua tarefa - eram os
triários que estavam encarregados das fortificações - mas os
lanceiros e os soldados da primeira linha, que protegiam os
triários com suas armas, sustentaram o ataque 11 • Além de
sua coragem, a posição privilegiada em que se encontravam
os ajudava, pois enquanto na planície os dardos e lanças caem
21 . Os hastati (lanceiros) e os principes eram sempre os mais jo-
vens combatentes do exército romano e lutavam nas duas primeiras filas.
105
 TITO LIVIO
geralmente deitados, inúteis, quando arremessados do alto cra-
vam-se todos, impelidos pelo seu próprio peso.
Crivados de dardos, que lhes trespassavam o corpo ou se
cravavam em seus escudos, tornando-os mais pesados, os gau-
leses, depois de terem subido a colina em marcha forçada para
o ataque, estacaram indecisos. Esse momento de hesitação fez
arrefecer seu ardor e aumentar o ardor do inimigo, que os
rechaçou. Caíram uns sobre os outros, de modo que esse desastre
foi maior que o próprio massacre. Os gauleses perderam mais
soldados esmagados pelos fugitivos do que trucidados pelas
armas romanas.
Vitória do cônsul plebeu 24 . Mas a vitória dos romanos
sobre os gauleses. ainda não estava garantida: ou-
tros obstáculos os esperavam na
planície.
. Dis~ndo, d~ grande contingente de tropas, os gauleses
ftcaram msenstvets às perdas sofridas. Daquela imensa multidão
surgiu novo exército para enfrentar o vencedor, do qual faziam
parte soldados que ainda não tinham entrado em combate. Os
romanos detiveram-se, desencorajados, pois estavam fatigados
para sustentar novo combate. Além do mais, ao marchar impru-
dentemente na primeira fila , o cônsul havia recebido um dardo
que se lhe cravara no ombro esquerdo, tendo de afastar-se um
momento do campo de batalha.
Diante dessas hesitações, a vitória já estava prestes a
escapar-lhes quando o cônsul, depois de pensar o ferimento.
retornou à primeira fila e bradou:
"Por que vos detivestes, soldados? Não é com latinos ou
sabinos que estais lutando, inimigos que depois de vencidos
se tomam nossos-aliados. Foi contra animais ferozes que desem-
bainhamos a espada. 'E preciso derramar-lhes todo o sangue ou
dar-lhes o nosso. Vós os repelistes do campo e os precipitastes
em desordem pelo vale e agora pisais sobre os corpos de nossos
inimigos. Pois bem, cobri a planície de cadáveres como fizestes
sobre o monte. Não espereis que eles fujam ao ver-vos imóveis.
Que avancem as insígnias! Ataquemos o inimigo!"
106
HISTORIA DE ROMA
Ao ouvirem essas exortações. os romanos se! lançaram de
novo ao combate e fizeram recuar os primeiros manfpulos dos
gauleses. Em seguida, formando cunhas, penetraram no meio
das fileiras inimigas. Derrotados, sem disciplina nem chefes.
os bárbaros voltaram sua impetuosidade contra os seus. Espa-
lhando-se pelos campos, levados na fuga para além do acampa-
mento, subiram a mais elevada das colinas, o monte Albano.
que domina como uma fortaleza uma cadeia de colinas de igual
altura. O cônsul perseguiu-os apenas até o acampamento. Seu
ferimento o incomodava e não queria colocar um exército fati-
gado pelo combate no sopé de elevações ocupadas pelo inimigo.
Permitiu que os soldados saqueassem o acampamento e regressou
a Roma com um exército vitorioso e enriquecido com os des-
pojos dos gauleses.
O ferimento do cônsul retardou o triunfo, e o mesmo
motivo obrigou o Senado a nomear um ditador para realizar
as eleições na ausência dos cônsules enfermos. Foi nomeado
ditador Lúcio Fúria Camilo, que escolheu Públio Cornélio Cipião
para comandante da cavalaria. Devolveu aos patrícios a antiga
posse do consulado e por esse motivo mereceu a profunda
gratidão da classe. Foi nomeado cônsul, proclamand0 como
colega Ápio Cláudio Crasso"·
Incursões de 25 . Antes da posse dos novos cônsules.
gregos e gauleses. Popflio recebeu as honras do triunfo
por sua vitória sobre os gauleses. com
grandes aplausos do povo. Os plebeus, em voz baixa, pergun-
tavam uns aos outros se alguém se arrependera de ter tido
um cônsul plebeu. Ao mesmo tempo atacavam o ditador que
havia obtido o consulado em recompensa de seu desprezo à lei
Licínia, e que entretanto se desonrara menos por esse atentado
22 . Isso deve significar que, na ocasião em que Lúcio Fúrio Ca·
miJo foi eleito, nenhum outro candidato obteve o número de votos ne·
cessário. Por isso ele proclamou Crasso. que havia sido eleito cônsul em
assembléia realizada posteriormente.
107
 TITO l.IVIO
público do que pela ambição que o havia levado a proclamar-se
cônsul a si próprio.
O ano se destacou por acontecimentos numerosos e diver-
sos. Os gauleses abandonaram os montes Albanos, porque não
podiam suportar os rigores do inverno, e vagavam pelos campos
e pela orla marítima devastando esses lugares. O mar estava
infestado de embarcações gregas, bem como as praias do litoral
de Ãncio, a região laurentina e a foz do Tibre. Em certa
ocasião os piratas do mar travaram luta contra os piratas da
terra e logo após se retiraram, os gauleses para seu acampamento
e os gregos para seus navios. sem saber se deviam considerar-se
vencidos ou vencedores.
Surgiu então uma ameaça bem maior para Roma. Os povos
latinos, reunidos no bosque sagrado de Ferentina, responderam
claramente aos romanos, quando estes lhes pediram soldados,
que não continuassem a pedir auxílio em caso de necessidade,
pois os latinos empunhariam armas apenas em defesa de sua
própria liberdade e não para aumentar o poder de outra nação.
Tendo de enfrentar duas guerras no exterior, o abandono
dos aliados preocupou ainda mais o Senado, que compreendeu
a necessidade de dominar pelo temor um povo incapaz de guar-
dar fidelidade. Ordenou então aos cônsules que fizessem o alis-
tamento de todas as forças da república. Roma deveria contar
com um exército de cidadãos, uma vez que o exército dos aliados
lhe falhara.
Arregimentando a juventude em toda parte, não só na
cidade mas também nos campos, dizem que foram organizadas
dez legiões, cada uma formada de quatro mil e duzentos infantes
e de trezentos cavaleiros. Hoje, em caso de invasão estrangeira,
não seria fácil recrutar um exército igual àquele, nem sequer
reunindo as forças do império romano que, apesar disso, o
universo mal pode conter, de tal modo crescemos apenas naquilo
que nos prejudica: riqueza e luxo.
Naquele ano. entre outros acontecimentos lamentáveis, um
dos cônsules, Ápio Cláudio, morreu em meio aos preparativos
de guerra e o poder foi confiado exclusivamente ao cônsu l
108
HISTóRIA OF ROMA
Camilo. Fosse por seus próprios méritos, que não deveriam
ser subordinados à autoridade ditatorial, fosse por seu nome,
que parecia de feliz augúrio numa luta contra os ga~leses 23 • os
senadores não julgaram conveniente nomear um dttador.
Deixando duas legiões diante de Roma e dividindo as
oito restantes com o pretor Lúcio Pinário, o cônsul, sem tirar
a sorte, encarregou-se da guerra contra os gauleses em memória
do valor de seu pai . Ordenou ao pretor que defendesse a orla
marítima e rechaçasse os gregos do litoral. Em seguida desceu
ao território do Pontino e, como não desejasse combater em
campo raso sem que nada a isso o obrigasse, escolheu um local
propício e estabeleceu seu acampamento. na certeza de que,
ao impedir as devastações de um inimigo que só sabia viver
de pilhagem, poderia domar esse inimigo.
Vitória dos romanos 26 . Enquanto o exército permane-
sobre os gauleses. cia inativo, apresentou-se no acam-
Expulsão dos gregos. pamento um gaulês notável por sua
estatura e suas armas. Batendo no
escudo com a lança, obteve silêncio, e por meio de um intér-
prete desafiou um romano a lutar com ele. Marco Valéri?,
jovem tribuno militar, não se julgando indigno da mesma glóna
de Tito Mânlio, depois de pedir permissão ao cônsul , avançou
com suas armas indo postar-se entre os dois acampamentos.
A intervenção dos deuses, porém, diminuiu o interesse da
luta entre os dois homens. Logo que o romano atacou , sobre
seu capacete pousou um corvo voltado para o inimigo. O tribuno
recebeu-o com alegria, como um augúrio enviado pelo céu, e
pediu ao deus ou à deusa que lhe enviara a mensagem que se
dignasse ser-lhe propício. E, coisa admirável, não só o páss~ro
continuou no mesmo lugar, como também atacava com o btco
e as garras o rosto e os olhos do inimigo. cada vez que reco-
meçava o combate.
23 . Alusão a Marco Fúrio Camilo. que expulsara os [!Ou leses após
a to mada de Roma.
109
 TITO UVIO
Aterrorizado com aquele prodígio, com os olhos feridos
e a mente perturbada, o gaulês foi degolado por Valéria. Só
então o corpo levantou vôo, desaparecendo no Oriente.
Até aquele momento os dois exércitos haviam permanecido
imóveis. Mas quando o tribuno começou a despojar o cadáver
do inimigo, os gauleses saíram de seus postos e os romanos
precipitaram-se em direção ao vencedor. Em torno do cadáver
do gaulês travou-se então terrível combate. Não só os manípulos
dos postos mais avançados, mas todas as legiões dos dois lados
se chocaram desordenadamente.
Ao ver seus soldados orgulhosos com a vitória do tribuno
e felizes pelo auxílio e proteção dos deuses, Camilo ordenou-
lhes que marchassem para a luta. Apontando-lhes o tribuno
carregado de despojos, disse-lhes: " Imitai este homem, soldados,
e abatei as tropas gaulesas em volta do cadáver de seu chefe".
Os deuses e os homens não falharam naquele combate. De
tal modo o desfecho da luta entre os dois soldados havia impres-
sionado os ânimos, que nenhuma dúvida subsistiu quanto à
derrota dos gauleses. A luta foi violenta apenas entre os primei-
ros combatentes, que ao avançarem haviam arrastado seus com-
panheiros. Os demais soldados gauleses debandaram antes de
serem atingidos pelos dardos. Dispersaram-se primeiro entre os
volscos e depois no território de Falemo, donde se dirigiram
para a Apúlia e para o mar inferior.
Convocando os soldados em assembléia, o cônsul elogiou
o tribuno e deu-lhe como prêmio dez bois e uma coroa de
ouro. Em seguida, ao receber ordem do Senado para comandar
a guerra marítima , reuniu suas tropas às do pretor.
A guerra desse lado parecia arrastar-se. Os gregos manti-
nham-se hesitantes e não se arriscavam a uma batalha campal.
Cumprindo ordem do Senado, Camilo nomeou Tito Mãnlio Tor-
quato ditador. para que presidisse as eleições. O ditador, por
sua vez, nomeou Auto Cornélio Casso comandante da cava laria
e realizou as eleições consulares. Com o aplauso do povo, pro-
clamou cônsul a seu rival em glória, Marco Valéria Corvo
(assim foi cognominado a partir de então), jovem de vinte e
três anos. que se achava ausente. Corvo teve como colega o
t 10
HI STóRIA D E RO MA
plebeu Marco Popílio Lenate , que ascendia ao consulado pela
quarta vez.
Camilo nada fez de memorável na campanha contra os
gregos. Estes não eram bons guerreiros em terra do mesmo
modo que os romanos não o eram no mar. Foram repelidos
finalmente de todos os litorais, e como lhes faltasse, entre outras
coisas necessárias, até a água, abandonaram a Itália. Não há
certeza em relação ao povo ou nação a que pertencia aquela
frota. Mas é bem provável que a tivessem enviado os tiranos
da Sicília, pois a Grécia ulterior, esgotada naquela época por
lutas internas, já temia o poderio da Macedônia.
Campanha contra 27. Licenciados os exércitos, rei-
os volscos. nava a paz no exterior e no inte-
Vit6ria dos romanos. rior graças à concórdia entre as
classes. Entretanto, como se essa
felicidade fosse excessiva, uma epidemia espalhou-se em Roma .
O Senado ordenou aos decênviros que consultassem os livros
sibilinos, e a conselho destes foi celebrado um lectistérnio. No
mesmo ano, os anciates levaram um exército a Sátrico e reedi-
ficaram a cidade destruída pelos latinos.
Foi concluído em Roma um tratado com emissários de
Cartago, que tinham vindo solicitar amizade e aliança.
A mesma tranqüilidade que reinava no interior e no ex-
terior permaneceu no consulado de Tito Mãnlio Torquato e
Caio Pláucio. Os juros que eram fixados em um por cento
foram reduzidos a meio por cento. Decret~u-se , também, que
as dívidas seriam pagas em quatro parcelas iguais : a primeira
no ato e as restantes no prazo de três anos.
Embora essas medidas ainda resultassem onerosas para
uma parte da plebe, a fé pública mereceu do Senado maior
consideração do que as dificuldades dos particulares. Entre-
tanto, o que mais aliviou o povo foi a supressão temporária
do tributo e do alistamento de tropas.
No terceiro ano após a reconstrução de Sátrico pelos vols-
cos, os romanos receberam do Lácio a notícia de que emissários
dos anciates percorriam as cidades latinas para sublevá-las. Mar-
1t t
 TITO UVIO
co Valéria Corvo foi nomeado cônsul pela segunda vez junta-
mente com Caio Petélio. Recebeu ordem de marchar contra
os volscos, para impedir que aumentasse o número de inimigos,
e avançou contra Sátrico à frente de um poderoso exército.
Os anciates e outros volscos, que vinham há muito tempo
preparando suas tropas para prevenir qualquer ataque dos
romanos, saíram-lhes imediatamente ao encontro, de modo que
não houve delonga no combate entre aqueles povos movidos
I um templo a }uno Moneta. Atendido em sua súplica. regressou
por velhos rancores.
Os volscos, povo mais predisposto à revolta do que à guerra,
foram vencidos. Debandaram, alcançando as muralhas de Sá-
trico, mas como não confiavam nas muralhas da cidade, ao
vê-las cercadas de tropas, prestes a serem escaladas e tomadas,
quatro mil soldados e uma multidão de habitantes renderam-se.
A cidadela foi arrasada e incendiada, poupando-se apenas o
templo de Mater Matuta. Todos os despojos foram entregues
aos soldados, com exceção dos quatro mil homens que se haviam
rendido. O cônsul os conduziu acorrentados diante de seu carro
triunfal e vendeu-os em seguida . angariando soma vultosa para
o tesouro.
Alguns historiadores afirmaram que aquela multidão de
cativos era constituída de escravos, o que me parece mais vero-
ssímil do que uma venda de soldados que se tinham rendido.
Guerra contra os auruncos. 28 . Seguiram-se os cônsules
Prodígio em Roma . Marco Fábio Dórsuo e Sér-
vio Sulpício Camerino. Hou-
ve uma guerra com os auruncos em decorrência de sucessi-
vas e inesperadas devastações, visto que os romanos receavam
que a atitude daquele povo fosse incentivada por toda a confe-
deração latina .
Agindo como se todo o Lácio já estivesse em armas , os
romanos nomearam Lúcio Fúrio ditador, o qual, por sua vez,
designou Cneu Mãnlio Capitolino comandante da cavalaria.
Depois de determinar o fechamento dos tribunais, como era
costume em caso de alerta, ordenou o alistamento, sem admitir
dispensas. Em seguida marchou com as legiões. o mais depressa
112
HISTO RIA f> F. ROMA
possível, contra os auruncos, que demonstraram ser mais saqu.ea-
dores do que guerreiros. Assim , a primeira batalha pôs térmmo
à guerra.
Como a guerra fora provocada pelos auruncos e eles não
haviam hesitado em aceitar o combate, o ditador achou neces-
sário fazer um apelo aos deuses e, durante a peleja, prometeu
em triunfo a Roma e abdicou a ditadura. O Senado decretou
a nomeação de duúnviros para construir um templo que corres-
pondesse à grandeza do povo romano 24 , destinando-lhe na :id~­
dela um terreno onde outrora se erguia a casa de Marco Manho
Capitolino.
Servindo-se do exército do ditador na guerra contra os
volscos, os cônsules atacaram de surpresa a cidade de Sora.
tomando-a ao inimigo.
Um ano após a promessa de Lúcio Fúrio, o templo de
Maneta foi consagrado, sendo cônsules Caio Márcio Rútilo. pela
terceira vez, e Tito Mãnlio Torquato, pela segunda. Logo após
a consagração, houve um prodígio semelhante ao ocorrido ou-
trora no monte Albano. Desabou uma chuva de pedra e fez-se
noite em pleno dia. Depois de consultados os livros sacros, como
0 povo estivesse possuído de escrúpulos religiosos, o Senado
resolveu nomear um ditador para celebrar as férias . Foi nomeado
Públio Valéria Publícola e designado comandante da cavalaria
Quinto Fábio Ambusto. Decidiu-se que não só as tribos mas
também os povos vizinhos realizariam rogações e afixou-se um
quadro indicando o dia em que cada um faria súplicas aos
deuses.
Diz-se que naquele ano o povo pronunciou algumas sen-
tenças cruéis contra usurários citados pelos edis. Houve,. tam-
bém , um interregno. cuja razão se desconhece. Após esse mter-
24 . Juno Maneta era uma antiga deusa que " aconselhava" ( mon~o! .
Seu templo tornara-se a casa da moeda e. com isso, seu nome adquan u
novo significado, o de " moeda". Talvez tenha si.do nessa oc_asi_ã o qu~ foram
cunhadas em Roma as pri meiras moedas que v1eram subshtu•r os lmgotes.
1 1)
 TITO LIVJO
regno - o que poderia justificar essa medida - dois patrícios
foram nomeados cônsules, Marco Valério Corvo, pela terceira
vez. e Aulo Cornélio Cosso.
Novos inimigos 29. A partir de agora falaremos de guer-]
dos romanos. ras mais importantes, não só pela força \
do inimigo como também pela duração
das operações, que eram realizadas em regiões afastadas de '
Roma .
Naquele ano Roma teve que se armar contra os samnitas,
povo de uma nação poderosa por sua riqueza e seu poderio
bélico. Depois da guerra contra os samnitas, cujo resultado pare-
ceu duvidoso, o inimigo a enfrentar foi Pirro e, depois de Pirro,
os cartagineses. Que empreendimentos grandiosos! Que terríveis
ameaças Roma teve de enfrentar antes que o império pudesse
atingir a grandeza que tanto lhe custa agora manter!
A causa da guerra entre samnitas e romanos , até então liga-
dos por laços de amizade e aliança, partiu do exterior e não de
algum problema entre as duas nações. Pelo fato de os samnitas
terem atacado os sidicinos sem justo motivo, apenas por serem
mais fortes, estes se viram na contingência de recorrer ao auxílio
de nação mais poderosa . Aliaram-se aos campânios que, entre-
tanto. representavam mai s um nome do que um auxílio para
seus aliados. Enfraquecidos pelo luxo em que viviam, foram
derrotados no território sidicino por homens enrijecidos pelo
manejo das armas, atraindo para si todo o peso da guerra. Os
sa mnita s abandonaram os sidicinos e atacaram a própria cidadela
de seus vizinhos. a Campânia. A vitória seria igualmente fácil,
mas os despojos e a glória maiores.
Depois de se apoderar dos montes Tifatos, que dominam
Cá pua, c guarnecê-los com um poderoso destacamento, des-
ceram em quadrado para a planície que se estende entre Cápua
e os montes Tifatos. Travou-se uma nova batalha campal e os
ca mpânios foram rechaçados até suas muralhas . Tendo perecido
o escol de sua juventude , os campânios, já sem esperanças,
viram-se constrangido a pedir auxíl io ao romuno ·.
114
HI STó RIA DE ROMA
Discurso dos embaixadores 30 . Introduzidos no Senado,
da Campânia. os embaixadores da Campâ-
nia falaram mais ou menos
nestes termos:
" Senadores, o povo campânio nos enviou em embaixada
a vossa presença para pedir-vos amizade perpétua e auxílio
na situação presente. Se tivéssemos solicitado essa amizade
quando vivíamos em prosperidade, tê-la-íamos conseguido mais
depressa, porém seus laços teriam sido mais frágeis. Pois, na-
quela época, pensando que tratávamos de igual para igual, tal-
vez fôssemos vossos amigos, como agora somos, mas muito
menos submissos e dependentes. Agora, conquistados por vossa
misericórdia e protegidos por vosso auxílio em difíceis circuns-
tâncias, queremos mostrar nossa gratidão pelo benefício rece-
bido, a fim de não parecermos ingratos e indignos de todo
socorro, divino e humano.
" Por Hércules, se antes de nós os samnitas foram vossos
amigos e aliados, acreditamos que isso não será motivo para
que negueis vossa amizade, mas para que os coloqueis, por sua
antiguidade, um grau a mais acima de nós. Contudo, vosso
tratado com os samnitas não determinou que não pudésseis con-
cluir qualquer outra aliança. Por outro lado, sempre conside-
rastes um motivo suficiente para angariar vossa amizade o
desejo demonstrado por aqueles que vos procuram de tornarem-
se vossos amigos. Nós, os campânios , embora nossa atual situa-
ção nos impeça de falar com altivez, não somos inferiores, pela
grandeza de nossa cidade e fertilidade de nossos campos, a
nenhuma nação. exceto a vossa, e creio que nossa amizade
trará uma boa contribuição a Roma . Em qualquer momento
que os équos e os volscos, eternos inimigos desta cidade,. vos
atacarem. nós estaremos em sua retaguarda , e tudo o que tiver-
des feito por nossa salvação, nós o faremos sempre por vosso
império e vossa glória. Uma vez dominados esses povos que
nos separam de vós, o que não deve tardar muito em virtude
de vosso valor e fortuna, vosso domínio se estenderá sem
interrupção até nós. Cruel e deplorável confissão esta que nos
115
 TITO uvro
obriga nossa desgraça! Chegamos a um ponto, senadores, em
que nós, os campânios, teremos de pertencer, daqui por diante,
ou a nossos amigos ou a nossos inimigos. Se nos protegerdes,
pertenceremos a vós. Se nos repelirdes, pertenceremos aos sam-
nitas. Tornai vossa decisão: Cápua e a Campânia inteira aumen-
tarão vosso poder ou o dos samnitas?
"t justo, romanos, abrir a todos o fácil acesso a vossa mise-
ricórdia e auxflio, mas principalmente àqueles que, ao conce-
der a outros o auxílio que imploravam, foram além de suas
forças e agora se encontram nas mesmas dificuldades. Se apa-
rentemente combatíamos pelos sidicinos, na verdade era em
nossa própria defesa que o fazíamos. Víamos um povo vizinho
atacado pela pirataria ímpia dos samnitas, e aquele incêndio
depois de ter abrasado os sidicinos prestes a nos atingir. Hoje,
quando os samnitas vêm nos atacar, não é em vingança do ul-
traje recebido, mas em regozijo por se lhes ter apresentado um
pretexto. Se a invasão tivesse por motivo a vingança e não a
satisfação de sua cobiça, acaso não lhes bastaria a destruição
de nossas legiões, primeiro no território sidicino e depois na
própria Campânia? Que espécie de cólera é essa que não pôde
saciar-se com o sangue derramado em duas batalhas? Acres-
cente-se a devastação dos campos, os despojos arrecadados,
homens e rebanhos, as granjas incendiadas e destruídas, tudo
arrasado a ferro e fogo. E tudo isso não foi suficiente para saciar
sua cólera? Sua cobiça é que precisa ser saciada! Ela é que
os impele a atacar Cápua. Querem destruir essa formosa cidade
ou apoderar-se dela.
" Ocupai-a vós, romanos, por vossa generosidade, e não
permitais que esses homens a dominem pelo crime. Não estou
me dirigindo a um povo que recusa sua participação em guerras
justas. Contudo, se mostrardes os recursos que pretendeis en-
viar-nos, acredito que nem tereis necessidade de travar com-
bate. Assim, bastar-nos-á a sombra de vossa proteção, romanos .
Daqui por diante, tudo o que tivermos, tudo o que formos,
consideraremos como vosso. Para vós cultivaremos as terras
116
HISTORIA DE ROMA
da Campânia, para vós será repovoada a cidade de Cápua. Nós
vos honraremos tanto quanto a nossos fundadores , nossos ante-
passados e nossos deuses imortais. Nenhuma de vossas colônias
vos será mais amiga e fiel.
" Dignai-vos, senadores, conceder aos campânios vossa in-
signe e invencível proteção. Dizei-lhes que podem esperar a
salvação de Cápua. Não imaginais a multidão de cidadãos de
todas as classes que nos acompanharam à nossa safdal Quantas
lágrimas foram derramadas e quantas súplicas dirigidas aos
deuses, quando os deixamos! Imaginais em que ansiedade se
encontram neste instante o senado e o povo campânio, nossas
esposas e nossos filhos? Estou certo de que a multidão perma-
nece às portas da cidade, olhando ao longe o caminho por onde
devemos regressar. Senadores, que resposta nos encarregareis
de dar a essa multidão ansiosa e angustiada? Uma palavra vossa
pode levar-lhes salvação, vitória, vida e liberdade. Mas se vos
recusardes . .. tremo ao pensar no que possa acontecer! Seremos
vossos aliados e vossos amigos ou teremos de perecer? Decidi! "
Decisão do Senado. 31 . Depois que os embaixadores se
retiraram. o Senado pôs-se a delibe-
rar. Para muitos. aquela cidade, a maior e mais rica da Itália .
com seus campos fértei s e próximos do mar, parecia destinada
a tornar-se o celeiro do povo romano na eventualidade de más
colheitas. Entretanto, a fidelidade aos aliados prevaleceu sobre
aquelas vantagens, e o cônsul respondeu em nome do Senado :
" Campânios, o Senado vos considera dignos de sua proteção.
Mas ao estabelecer amizade convosco. não deve violar as ami-
zades e as alianças mais antigas. Estamos ligados aos sam-
nitas por um tratado, e atacá-los seria ofender os deuses mais
do que os homens. Somos obrigados, por esse motivo, a vos
recusar o auxílio de nossas tropa~ . Contudo, enviaremos embai-
xadores aos nossos aliados e amigos, como permitem o direito
divino e o direito humano , para rogar-lhes que não vos façam
violência··.
117
 TITO UVJO
Ao ouvir essas palavras, o chefe da embaixada, de acordo
com as ordens recebidas em Cápua, respondeu: " Uma vez que
não quereis encarregar-vos da justa defesa de nossos interesses
contra a violência e a injustiça, defendereis pelo menos os
vossos. Pois o povo campânio, a cidade de Cápua, terras, tem-
plos dos deuses, em uma palavra, todas as coisas divinas e
humanas, nós as entregamos, senadores, às vossas ordens e às
do povo romano, e tudo o que sofrermos daqui por diante vosso
povo também sofrerá."
Ditas essas palavras, todos estenderam as mãos em direção
aos cônsules e prosternaram-se no vestíbulo da cúria, banhados
em lágrimas. Aquele exemplo da instabilidade dos destinos hu-
manos abalou os senadores. Uma nação poderosíssima e célebre
por seu luxo e seu orgulho, à qual outrora os vizinhos recorriam
para pedir auxílio, perdera a energia a ponto de entregar-se
com todos os seus bens ao domínio de outra nação.
Decidiu-se, então, por questão de lealdade, não trair um
povo que se entregava. Se os samnitas atacassem um território
ou uma cidade que passara a pertencer, por cessão, ao povo
romano, estariam infringindo as leis. Foram logo enviados em-
baixadores aos samnitas com o encargo de transmitir a esse povo
a súplica dos campânios, a resposta dada pelo Senado, que
permanecia fiel à amizade dos sanitas, e finalmente a cessão do
território campânio. Deviam pedir-lhes, em nome da aliança e
da amizade, que poupassem seus súditos e não entrassem como
inimigos em território pertencente ao povo romano. Se não
obtivessem resultados satisfatórios através de métodos pacíficos,
intimariam os samnitas, em nome do povo romano e do Senado,
a que respeitassem a cidade de Cápua e o território campânio.
Quando os embaixadores apresentaram a mensagem na
assembléia dos samnitas, receberam a resposta atrevida de que
continuariam a guerra. E, ao sair da cúria, seus magistrados,
diante dos legados romanos, chamaram os chefes das coortes
e ordenaram-lhes, em altos brados, que partissem imediatamente
para saquear o território campânio.
118
HISTúRIA DE ROMA
Fala do cônsul Valério 32 . Quando o Senado romano
a seus soldados. tomou conhecimento do resul-
tado da missão, relegou os de-
mais assuntos e enviou feciais para pedir reparação aos samnitas
ou, em caso de recusa, declarar-lhes solenemente a guerra. Os se-
nadores decretaram então que o caso fosse imediatamente subme-
tido à aprovação do povo e, por ordem deste, os cônsules parti·
ram de Roma com dois exércitos: Valéria, em direção à Cam-
pânia, e Cornélio, para o Sâmnio, acampando um no monte Gau-
ro, outro em Satícula.
Valéria foi o primeiro a defrontar-se com os samnitas, pois
estes haviam concluído que a guerra seria mais violenta daquele
lado. Além do mais, a cólera os estimulava contra os campânios,
que tanto se haviam apressado em prestar auxílio a outra nação
como em pedir socorro contra eles. Ao ver o acampamento
romano, todos os soldados exigiram de seu chefe o sinal de
combate. Afirmavam que ao proteger a Campânia os romanos
teriam a mesma sorte que os campânios haviam tido ao proteger
os sidicinos.
O cônsul Valéria experimentou o inimigo em ligeiras esca-
ramuças e depois de alguns dias deu o sinal de combate, exor-
tando seus soldados a que não temessem aquela nova guerra,
aquele novo inimigo. À medida que se afastassem de Roma,
iriam encontrar exércitos cada vez menos aguerridos. Não deve-
riam julgar o valor dos samnitas pelo fato de terem derrotado
os sidicinos e os campânios. Quaisquer que fossem os comba-
tentes, um deles teria de ser vencido. Os campânios, sem dúvida,
tinham sido derrotados não pela força de seus inimigos, mas
pelo seu luxo excessivo, pelo abandono de seus negócios, por
sua indolência. No espaço de tantos séculos, que importância
teriam essas duas vitórias dos samnitas se comparadas com as
façanhas do povo romano, que talvez já contasse maior número
de triunfos do que o número de anos decorridos desde a fun-
dação de sua cidade? Roma, que havia dominado pelas armas
sabinos, etruscos, latinos, hérnicos, équos, volscos e auruncos?
Roma , que depois de vencer os gauleses em tantos combates,
conseguiu repeli-los para o mar e para seus navios?
119
 TITO LfVIO
Ao marchar para a luta, cada soldado deveria confiar em
sua glória militar, em seu valor, e considerar também o homem
sob cujas ordens, sob cujos auspícios iria travar combate. Veri-
ficar se seu chefe era apenas um excelente orador, ousado nas
palavras, mas estranho aos assuntos militares, ou um homem
capaz de manejar as armas, de avançar à frente das insígnias e
enfrentar os maiores perigos. E acrescentou:
"Soldados, quero que imiteis meus atos e não minhas
palavras. Meu exemplo, e não apenas minhas ordens. Não foi
pela intriga, nem pelos habituais conchavos dos patrícios, que
consegui três consulados e toda a minha glória, mas pela des-
treza de meu braço. Houve uma época em que se podia dizer:
tu eras patrício, descendente dos libertadores da pátria, e tua
família exerceu o consulado no mesmo ano em que esta cidade
teve um cônsul. Hoje, entretanto, o consulado já não é privi-
légio de nascimento, mas de mérito, tanto para nós, patrícios,
quanto para vós, plebeus. Assim, soldados, esforçai-vos por obter
as honrarias supremas. Embora, pela vontade dos deuses, me
tenhais dado o cognome de Corvo, não esqueci o de Publícola,
tradicional em minha família. Na paz ou na guerra, como sim-
ples cidadão ou como homem público, no exercício das mais
elevadas magistraturas ou das mais humildes, tribuno ou cônsul,
em todos os meus consulados sempre amei o povo romano com
a mesma disposição e sempre o amarei. Agora, o mats tmpor-
tante é conseguirmos juntos, com o auxílio dos deuses, um
triunfo completo sobre os sanitas".
Vitória dos romanos 33 . Nunca houve um general tão
sobre os samnitas. popular entre os soldados e que
compartilhasse tanto de suas mais
humildes tarefas. Nos jogos militares, quando os soldados com-
petiam em agilidade e força, juntava-se a eles sempre com o
mesmo humor, nunca desprezando o adversário, fosse ele venci-
do ou vencedor. Agia com benevolência, levando em considera-
ção as circunstâncias, e ao fazer qualquer observação procurava
respeitar a liberdade alheia tanto quanto sua própria dignidade.
O que mais agradava ao povo era vê-lo exercer a magistratura
120
HISTORlA DE ROMA
com o mesmo espírito com que a pleiteara. Assim. pois, o exér-
cito inteiro, antes de sair do acampamento. aplaudiu com grande
entusiasmo as exortações de seu chefe.
Como nunca sucedera antes, os dois adversários travaram
combate com as mesmas esperanças, as mesmas forças e a
mesma confiança em si, porém sem menosprezar o valor do
inimigo. Os samnitas estavam exaltados com suas últimas faça·
nhas e a dupla vitória dos dias anteriores. Os romanos, com uma
glória de quatrocentos anos e vitórias sucessivas a partir do
ano de sua fundaç.ão. Entretanto, sentiam-se ambos inquietos
por terem de enfrentar um inimigo desconhecido. A batalha veio
mostrar bem o espírito que os animava: lutaram de tal modo
que durante muito tempo nenhum dos dois exércitos cedeu.
Pretendendo semear o pânico nas tropas que não conseguia
rechaçar pela força, o cônsul tentou desfazer as primeiras filei-
ras do inimigo por uma carga da cavalaria. Viu, porém, que
a manobra não produzia resultado, uma vez que os esquadrões,
encerrados em espaço exíguo, agitavam-se e giravam sobre si
mesmos sem conseguir abrir caminho. Dirigiu-se então para as
legiões, colocou-se a sua frente, desmontou do cavalo e disse:
"Soldados, esta questão deverá ser resolvida por nós, os da
infantaria. Adiante! À medida que me virdes avançar e abrir
caminho com a espada nas fileiras inimigas, fazei o mesmo e
derrubai todos os que encontrardes. Muito em breve vereis esta
planície, onde agora brilham tantas lanças, descoberta e varrida
pelo massacre".
Mal acabou de falar, o cônsul deu o sinal. Imediatamente
os cavaleiros separaram-se em direção às duas alas do inimigo,
abrindo passagem para as legiões invadirem o centro. O cônsul
foi o primeiro a avançar e, por sorte, derrubou a quantos se
lhe opuseram. Inflamados por esse espetáculo, os romanos
atacaram à direita, à esquerda e à frente, numa luta memorável.
Os sarnnitas continuavam resistindo, embora tivessem sofri-
do mais perdas do que o inimigo. O combate já se prolongava
há muito e o massacre era tremendo em torno das insígnias dos
samnitas. Estes, porém, não pensavam em debandar, empenha-
dos que estavam em só se deixar vencer pela morte.
121
 TITO LfVIO
Ao perceberem que as forças dos samnitas começavam a se
exaurir e que o dia já estava prestes a terminar, os romanos
arrojaram-se contra o inimigo, inflamados pelo ódio. Deu-se
então um recuo e a luta transformou-se em debandada. Os
samnitas foram desbaratados, e poucos teriam escapado, se a
noite não tivesse interrompido um combate que já se transfor-
mara em vitória.
Os romanos confessaram não ter jamais encontrado ini-
migo tão obstinado. E os samnitas, quando Lhes perguntavam
por que haviam fugido apesar de tão resistentes, respondiam
que os olhos dos romanos lhes pareceram lançar chamas, e sua
expressão de loucos, seus semblantes furiosos, os haviam ater-
rorizado. Esse pânico foi confirmado não só pelo desfecho do
combate, mas também pela retirada dos samnitas durante a noite.
No dia seguinte, os romanos se apoderaram do acampamento
abandonado pelo inimigo, para onde se dirigiu uma multidão
de campânios que felicitaram o vencedor.
Imprudência do cônsul Comélio. 34. Pouco faltou, entre-
Tática do cônsul Públio Décio. tanto, para que aquela
alegria se transformas-
se em catástrofe no Sâmnio. Tendo partido de Satícula, o
cônsul Cornélio conduziu imprudentemente seu exército por um
desfiladeiro que terminava num vale profundo, em torno do qual
o inimigo se havia estabelecido. E somente quando já era impos-
sível a retirada , percebeu o inimigo que o ameaçava das alturas.
Enquanto os samnitas esperavam que todo o exército des-
cesse até o fundo do vale, o tribuno militar PúbUo Décio avistou
no desfiladeiro uma colina elevada que dominava o acampa-
mento inimigo. Era de difícil acesso para soldados sobrecarre-
gados de bagagens, mas não oferecia dificuldade para tropas
ligeiras. Dirigiu-se então ao cônsul aterrorizado: "Aulo Corné-
lio, vês aquela eminência acima do inimigo? Aquela montanha,
que os samnitas tiveram a cegueira de descuidar, será a cidadela
de nossas esperanças e de nossa salvação se a ocuparmos ime-
diatamente. Dê-me somente os "príncipes" e os lanceiros de
uma legião. Quando tivermos atingido o cume, avança sem
122
HISTóRIA DE ROMA
temor e põe-te a salvo com o exército. Com o inimigo a nossos
pés e alvo de nossos golpes, nós o destruiremos se tentar qual-
quer movimento. Quanto a nós, a boa sorte do povo romano
ou nossa própria coragem nos tirará do aperto".
Elogiado pelo cônsul, Públio Décio avançou com seu desta-
camento, escondendo-se atrás das árvores, de modo que o
inimigo só os percebeu quando se aproximavam do alto da
colina. Surpresos e aterrorizados, os samnitas voltaram toda sua
atenção para o grupo que se estabelecia na colina, dando tempo
ao cônsul para levar o exército a um terreno mais favorável.
Movimentando as tropas ora para um lado, ora para outro,
os samnitas deixaram escapar duas boas oportunidades: já não
podiam perseguir o cônsul, a não ser através daquele mesmo
vale em que momentos antes os romanos estiveram expostos a
seus dardos, nem subir com suas tropas até a colina ocupada
por Décio. Contudo, a fúria contra aquele grupo de homens
que lhes arrebatara a oportunidade de um combate favorável e,
sobretudo, sua proximidade, excitavam-nos mais ainda. Ora
queriam cercar a colina para separar Décio do côn~ul, ora pe~­
savam em deixar-lhes caminho livre com o propóstto de atrat-
los ao vale e exterminá-los. A noite veio surpreendê-los nessa
indecisão.
A princípio Décio teve esperanças de que os samnitas esca-
lassem a colina para atacá-los, pois poderiam rechaçá-los facil-
mente de sua posição privilegiada. Depois começou a estranhar
que eles nem tentassem o ataque, nem cercassem os romanos
de fortificações e paliçadas, já que sua posição desfavorável
Lhes impedia o combate. Convocou, então, os centuriões e
disse-lhes:
" Que ignorância das coisas da guerra e que indolência!
Como puderam estes homens vencer os sidicinos e os campânios?
Ninguém pensa em trabalhar, pois já podíamos estar cercados
de trincheiras. Seríamos tão insensatos quanto eles se perma-
necêssemos aqui mais tempo do que o necessário. Vinde comigo.
Aproveitemos a claridade que ainda nos resta para fazer um
reconhecimento do local onde ficam as sentinelas e dos cami-
nhos que deveremos percorrer para sair daqui " .
123
 TITO I IVIO
. Vestido com uma túnica de soldado comum, Décio exa-
mmou tod~s as posições em companhia dos centuriões, que
us?v.a~ traJ:s de simples soldados de um manípulo, para que
o tmmtgo nao percebesse que os chefes estavam fazendo reco-
nhecimento .
Plano de Públio Décio. 35 . Em seguida destacou senti-
nelas e fez circu lar entre os sol-
dados uma ordem escrita para que, ao soar da trombeta na
segu~dAa ~igília, todos empunhassem as armas e se dirigissem
em st l~ncJO ao seu encontro. Mais tarde, quando os soldados,
cumpnndo a ordem, estavam reunidos no mais completo silên-
cio, Décio explicou-lhes:
" Soldados, é necessário que observeis este silêncio ao me
escutar, abstendo-vos de qua lquer manifestação. Depois que
expuser meu plano, aqueles que estiverem de acordo passarão
sem ruído à minha direita , e seguiremos a opinião da maioria.
Escutai-me agora.
" Não viemos como fugitivos para este local , agora cercado
pelo inimigo, nem aqui permaneceremos por covardia. O cupas-
tes esta posição por vossa coragem e com essa mesma coragem
teremos de sair. Vindo até aqui, sa lvaste um grande exército
do povo romano. Saindo daqui , vos salvareis a vós próprios.
Sois dignos de louvor porque pudestes socorrer um número
tão grande de soldados e, sendo tão poucos, não necessitais do
socorro de ninguém. Temos de enfrentar um inimigo que ontem
poderia ter destruído todo o nosso exército, mas não soube
aproveitar a oportunidade; que não compreendeu a importância
desta colina tão elevada até o momento em que a ocupamos;
que dispondo de milhares de homens não soube impedir-nos a
esca lada , apesar de sermos tão poucos; que, mesmo depois de
a ocuparmos, não soube cercar-nos de trincheiras quando ainda
lhe restavam muitas horas do dia . Esse inimigo estava desperto
e via claro quando conseguistes iludi-lo. Agora , quando dorme ,
é necessário que também o enganeis. Que digo eu? E absolu-
tamen te necessá rio.
124
Hl TóRIA DF ROMA
'' Chegamos a uma tal situação que não vos dou um con-
selho, indico-vos a única saída. Não temos tempo de discutir
agora se devemos ficar ou partir, quando a sorte só vos deixou
armas e coragem para manejá-las. Se temermos a espada, morre-
remos de fome e sede, o que seria ind igno de um soldado,
principalmente de um romano. Nossa única esperança de sal-
vação é abandonar este local, e teremos de fazê-lo de dia ou
de noite. A última alternativa me parece mais acertada. Se
esperarmos o raiar do dia , é provável que o inimigo nos cerque
com uma trincheira e um fosso contínuo, pois, como sabeis,
já estamos cercados por todos os lados. Se a noite é, de fato,
o momento mais propício para uma evasão, esta é certamente
a melhor hora da noite. Reunimo-nos no início da segunda
vigília, momento em que os mortais estão mergulhados no sono
mais profundo. Passando silenciosamente por entre seus corpos
adormecidos, podereis iludir esses imprudentes. Mas, se por
acaso eles despertarem , podereis amedrontá-los com vossos
gritos.
" Segui-me agora, como o fizestes até então, e eu prosse-
guirei com a mesma sorte que me trouxe aqui. Todos os que
julgarem este plano capaz de nos conduzir à salvação, passem
para a direita".
Massacre dos samnitas. 36 . Todos passaram para a di-
reita e seguiram Décio por entre
os corpos dos samnitas adormecidos. Já haviam atravessado a
metade do acampamento, quando um soldado, ao saltar sobre
o corpo de uma sentinela, bateu num escudo. O ruído despertou
o soldado, que sacudiu seu vizinho, e os dois, de pé, puseram-se
a gritar pelos companheiros, sem saber se se tratava de seus
concidadãos ou do inimigo. se era o destacamento que se evadia
ou o cônsul que se apoderava do acampamento.
A noite não tinha ainda terminado e os romanos já podiam
considerar-se em segurança , quando Décio dirigiu-se a eles:
" Bravos por vossa coragem, soldados romanos! Todos os sé-
culos exaltarão vossa marcha e vosso regresso da colina. Mas,
125
 TITO UVI O
para dar provas de todo o vosso valor, necessitais da luz do
dia. Seria indigno de vossa glória entrar no acampamento na
ca lada da noite. Esperemos tranqüilamente o despertar do dia " .
Os soldados obedeceram e, ao raiar do dia , Décio enviou
ao cônsul um mensageiro para anunciar que estavam prestes
a regressar, incólumes, aqueles homens que haviam exposto
sua vida a um perigo certo pela salvação dos demais. O acam-
pamento inteiro exultou com a notícia. Saindo-lhes ao encontro,
seus companheiros louvaram-nos, felicitaram-nos, chamando a
todos e a cada um em particular de salvadores. Em seguida,
glorificaram os deuses e renderam-lhes graças. O nome de Décio
foi elevado aos céus, recebendo ele no acampamento uma espécie
de triunfo: desfilou com seus soldados armados diante do
exército, atraindo para si todas as atenções e a plausos dos sol-
dados , que o comparavam ao cônsul.
Ao chegar ao pretório, o cônsul mandou tocar a corneta
e reuniu os soldados em assembléia. Começava a fazer o elogio
de Décio quando ele o interrompeu e pediu-lhe que dissolvesse
a assembléia e protelasse qualquer assunto, pois convinha apro-
veitar a ocasião que se lhes apresentava. O cônsul resolveu
então atacar os samnitas, ainda perturbados com o susto daquela
noite e dispersos, em grupos, ao redor da colina. Acreditava
Décio que alguns deles , envi ados em sua perseguição, vagavam
pelo desfiladeiro.
As legiões receberam ordem de empunhar armas e sa ir
do acampamento . Com a ajuda dos batedores, os soldados foram
conhecendo melhor o desfiladeiro e marcharam por um descam-
pado em direção ao inimigo.
Atacados de surpresa, os soldados samnitas não puderam
reu nir-se, nem pegar em armas, nem refugiar-se em suas trin-
cheiras, pois se achavam dispersos e desarmados na maioria.
Tomados de pânico, foram repelidos até o acampamento que,
logo depois, caiu em poder dos romanos, sem qualquer resis-
tência por parte das sentinelas.
O grito de guerra dos romanos percorreu a colina e fez
os demais soldados fugirem para longe de seus postos. Assim.
inúmeros samnitas foram vencidos sem ter sequer visto o inimigo.
126
HI STóR I A DE ROMA
Aqueles a quem o pânico levara a esconder-se nas trincheiras -
ce rca de trinta mil - foram massacrados e o acampamento
saqueado.
Terceira vitória dos romanos 37. Realizada aquela proe-
sobre os samnitas. za, o cônsul reuniu o exér-
cito e não só concluiu o
elogio que começara antes, mas também acrescentou outros
louvores a Décio pela nova faça nha . Além das honras militares,
premiou-o com uma coroa de ouro e cem bois, afora um outro
boi branco, de extraordiná ria beleza, com os chifres dourados.
Cada soldado de seu destacamento recebeu como recompensa
um boi e duas túnicas, e a partir de então todos passaram a
ganhar dupla ração de trigo.
Em seguida à homenagem prestada pelo cônsul, as legiões
ofereceram a Décio, com os aplausos e a aprovação de todos,
uma coroa obsidional de musgo 25 • Seu destacamento ofertou-
lhe, também, uma outra coroa, que representava idêntica home-
nagem. Ostentando essas insígnias, Décio sacrificou a Marte o
boi branco e distribuiu os outros cem aos soldados que o haviam
acompanhado na expedição. As legiões também ofereceram a
cada soldado do destacamento uma li bra de farinha e um sextário
de vinho. Todas essas homenagens foram prestadas em meio
à maior alegria, com as aclamações do exército, que traduziam
a aprovação de todos .
Travou-se um terceiro combate em Suéssula, onde o exér-
cito samnita , derrotado por Valéria , depois de convocar o escol
da juventude de seu país, resolvera tentar a sorte numa ú ltima
batalha. Mensageiros enviados de Suéssula chegaram aterrori-
zados a Cápua , e desta cidade partiram cava lei ros a galope,
para pedir socorro ao cônsul Valério. Este mobi lizou pronta-
mente o exército e avançou em marcha forçada, deixando as
bagagens no acampamento sob a vigilância de uma boa guar-
nição. Estabeleceu acampamento a pouca distância do inimigo,
25 . Era a coroa mais apreciada. Só a recebia o general que levan-
tasse o cerco a uma cidade ou libertasse um exército sitiado.
127
 TITO LfVIO
em um terreno pouco extenso, mas suficiente para uma tropa
que só levava cavalos de combate, sem bestas de carga nem
bagageiros.
Acreditando que o combate estava prestes a ser travado
os samnitas organizaram suas fileiras . Mas como ninguém lhe~
s~ísse ao encontro, avançaram insolentemente com suas insíg-
mas até o acampamento romano. Quando viram os soldados
nas trincheiras e se informaram, por meio de batedores envia-
dos em todas as _direções, da exigüidade do acampamento, con-
cluíram que o numero de tropas também deveria ser reduzido.
Todo o exército bradou então que deviam obstruir os fossos
destruir a paliçada e penetrar no acampamento.
Não tivessem os chefes contido o ímpeto dos soldados,
essa temeridade teria posto fim à guerra. Em vez disso, resol-
veram mandá-los colher trigo nos campos, enquanto o temor
mantinha o inimigo encerrado em seu acampamento, pois aquela
multidão havia consumido quase todas as provisões durante
sua permanência em Suéssula e enquanto esperava pelo com-
bate. Nesse fnterim, pensavam os samnitas, os romanos, inativos,
acabariam em extrema carência de recursos, pois, para mar-
char mais depressa, haviam levado apenas o trigo que podiam
carregar às costas 'juntamente com as armas.
Ao ver os inimigos dispersos pelos campos e seus postos
desguarnecidos, o cônsul dirigiu algumas palavras aos soldados
e atacou o acampamento, tomando-o ao primeiro grito e ao
primeiro assalto, massacrando maior número de inimigos nas
tendas do que nas portas e trincheiras. Mandou reunir as
insígnias capturadas em um único lugar e deixou duas legiões
montando guarda, com a proibição de tocar nesses despojos
antes de seu regresso. Partiu então em coluna ao encontro dos
samnitas.
A cavalaria que havia precedido o cônsul envolveu os
samnitas como em uma rede e fez grande massacre. Aterrori-
zados, os soldados não conseguiam entender o sinal dado: se
deveriam correr para o acampamento ou fugir para mais longe.
A debandada e o pânico foram de tal ordem que cerca de qua-
128
HISTóRIA DE ROMA
renta mil escudos, embora o número de mortos tivesse sido
menor, e cento e setenta insígnias, além das que haviam sido
recolhidas no acampamento, foram levados ao cônsul. O exér-
cito voltou depois ao acampamento inimigo, onde todos os
despojos foram distribuídos aos soldados.
Conspiração dos 38 . O resultado dessa campanha le-
soldados romanos. vou os faliscos a propor aliança ao
Senado, pois até então desfrutavam
apenas de uma trégua, e os latinos, a dirigir contra Peligno
as tropas que haviam arregimentado para lutar contra Roma. A
' notícia daquelas façanhas atravessou as fronteiras da Itália. Os
próprios cartagineses enviaram embaixadores a Roma para feli-
citá-la e oferecer-lhe uma coroa de ouro de vinte e cinco libras
para o santuário de Júpiter no Capitólio. Os dois cônsules rece-
beram o triunfo pela luta contra os samnitas, acompanhados por
Décio, notável por sua glória e pelas recompensas recebidas. Os
rudes cantos dos soldados celebraram tanto o nome dos dois
cônsules quanto o do tribuno.
Chegaram, em seguida, emissários dos campânios e dos
suessulanos, e a pedido deles foram enviadas tropas para esta-
belecer quartéis de inverno e repelir as incursões dos samnitas.
Cápua, porém, era cidade pouco favorável à disciplina ·militar.
Logo os soldados se deixaram seduzir por seus prazeres, esque-
cendo os deveres para com a pátria. Nos quartéis de inverno
tramaram um plano para arrebatar Cápua aos campânios, da
mesma forma pela qual estes a haviam arrebatado a seus antigos
habitantes. Era justo, diziam, que seguindo-lhes o exemplo
agissem contra eles. Por que razão o mais fértil território da
Itália e uma cidade digna desse território deveriam pertencer
aos campânios, povo que não sabia defender nem suas pessoas
nem seus bens, e não àquelas tropas vitoriosas que deram seu
suor e seu sangue para expulsar os samnitas? Era justo que seus
súditos usufruíssem da fertilidade e amenjdade daqueles luga-
res, enquanto eles, romanos, fatigados pela guerra, tinham de
lutar contra o solo insalubre e árido dos arredores de Roma ,
129
 TITO UVIO
ou sofrer, na própria Roma, o mal persistente dos juros sobre
as dívidas, que aumentavam dia a dia? 26
Esse plano, debatido em reuniões secretas, e que não havia
ainda transpirado, foi descoberto pelo novo cônsul Caio Márcio
Rútulo. A ele coubera por sorte o comando do exército na
Campânia, ficando em Roma seu colega Quinto Servflio.
Ao ser informado da trama pelos tribunos, Caio Márcio
Rútulo, homem prudente por sua idade e experiência (já fora
cônsul três vezes, ditador e censor), pensou que a melhor
maneira de frustrar a execução do plano seria deixar aos sol-
dados a esperança de poder realizá-lo em qualquer tempo. Di-
vulgou então a notícia de que no ano seguinte, durante o
inverno, os destacamentos acampariam na mesma região. A
conspiração se havia estendido de Cápua a todo o exército,
pois as tropas estavam espalhadas por todas as cidades da
Campânia. Dando um prazo maior para a relização desse pro-
jeto, o cônsu l conteve no momento a sedição.
Revolta dos soldados romanos. 39 . Nada tendo a temer
por parte dos samnitas, o
cônsul desaquartelou as tropas e resolveu expurgar o exército
dos soldados mais rebeldes. Despachou uns, sob o pretexto
de que havia expirado seu tempo de serviço, e outros por
estarem em idade avançada ou enfraquecidos. Alguns foram
licenciados - individualmente primeiro, e coortes inteiras de-
pois - sob pretexto de terem acampado longe de seus familia-
res e de seus negócios. Alegando também as necessidades do
exército, encaminhava-os para os mais diversos locais, desem-
baraçando-se da maior parte deles.
26 . Naquela época. as ricas cidades da Magna Grécia eram cobi·
çadas pelos povos da Itália. Anteriormente, os samnitas já se haviam
apoderado de Cápua e outros povos já haviam conquistado Nápoles,
Cumas e Pesto. Roma impediu que os samnitas tomassem novamente
Cápua, mas teve dificuldade em impedir que seus próprios soldados o
fizessem .
130
HISTóRIA DE ROMA
Em Roma, o outro cônsul e o pretor apresentavam dife-
rentes motivos para reter aqueles homens. No início, sem saber
que estavam em jogo, os soldados alegravam-se por rever seus
lares. Mas quando perceberam que os primeiros egressos não
voltavam às fileiras e que só eram licenciados os que haviam
servido na Campânia, sobretudo os instigadores da revolta,
a princípio ficaram surpresos e logo depois atemorizados. Teriam
sido descobertos seus planos? Em breve, diziam, iriam sofrer
interrogatórios, execuções individuais e secretas, enfim, a tirania
desenfreada e cruel dos cônsules e dos senadores. Eram esses
os problemas discutidos em reuniões secretas pelos soldados
que haviam permanecido no acampamento e viam os mentores
da conspiração serem alijados pela habilidade do cônsul.
Uma coorte que se encontrava perto de Anxur estabeleceu-
se em Láutula, num estreito desfiladeiro situado entre o mar
e a montanha, com o objetivo de acolher os soldados licen-
ciados pelo cônsul sob os mais variados pretextos, como já
dissemos. Aquela tropa já dispunha de numeroso contingente
e, para formar um verdadeiro exército, só lhe faltava um gene-
ral. Foi por esse motivo que, em desordem e praticando toda
sorte de pilhagens, chegou ao território albano e estabeleceu
um acampamento no sopé da colina de Alba Longa, cercando-o
de trincheiras. Depois desse trabalho, passou o resto do dia
debatendo a eleição de um general, visto que nenhum dos
presentes lhe inspirava suficiente confiança. Mas a quem pode-
riam mandar buscar em Roma? Quem, patrício ou plebeu,
consentiria de bom grado em expor-se a tão grande perigo ou
a chefiar, sem traí-lo, um exército que reagira insensatamente
a um ultraje recebido?
O debate prolongava-se ainda no dia seguinte quando
alguns saqueadores vieram dizer que em suas incursões no
território de Túsculo tinham visto Tito Qüíncio cultivando
a terra, esquecido da cidade e das honras. Esse homem era
de família patricia 27 e se cobrira de glória nos campos de
27 . Trata-se talvez de Tito Qüíncio Peno que , após ter sido co-
mandante da cavalaria em 367 e depois ditador, foi provavelmente um
dos dois cônsules patrfcios por volta do ano 355 e, com certeza. em 350.
131
 TITO LIVIO
batalha. Um ferimento no pé o deixara coxo e o obrigara a
viver no campo, longe das intrigas do Fórum.
Ao ouvir-lhe o nome, os soldados reconheceram nele o
homem de que necessitavam. Mandaram chamá-lo, fazendo votos
para que tudo saísse bem. Mas como não esperavam que ele
aceitasse voluntariamente, resolveram coagi-lo pela força e pelo
temor. No silêncio da noite, os emissários penetraram na casa
de Qüíncio e o encontraram mergulhado em sono profundo.
Arrastaram-no até o acampamento dizendo-lhe que não tinha
outra alternativa: ou aceitaria as honras do comando que lhe
ofereciam, ou morreria se resistisse e recusasse acompanhá-los.
Logo ao chegar, deram-lhe o thulo de general e revestiram-
no com as insígnias do cargo. Ordenaram a Qüíncio, ainda
assustado com aquele acontecimento inesperado, que os condu-
zisse a Roma e, em seguida, impelidos por seu próprio ardor,
os soldados levantaram as insígnias e marcharam desordenada-
mente até o oitavo marco da estrada que hoje se chama via
Ápia 28 • E teriam continuado sem se deter até a cidade, se não
tivessem sido avisados de que contra eles marchava um exército
chefiado por Marco Valério Corvo, nomeado ditador, e por
Lúcio Emflio Mamerco, seu comandante da cavalaria.
Discurso de Marco Valério Corvo. 40. Quando os rebel-
Resposta de Tito Qüíncio. des avistaram o exér-
cito e reconheceram
as armas e as insígnias, a recordação da pátria serenou os
ódios. Não tinham coragem de derramar o sangue de seus con-
cidadãos, pois até aquela data só haviam guerreado contra ini-
migos estrangeiros e suas maiores revoltas não tinham ido além
da secessão. Assim, de ambos os lados, chefes e soldados busca-
vam um meio de aproximação e entendimento.
Cansado de empunhar armas mesmo a favor da pátria,
Qüíncio estava longe de querer usá-.las contra ela. Corvo, que
amava a todos os seus concidadãos, sobretudo os soldados e.
28 . A via Ápia estendia-se de RQma a Cápua. e foi traçada em
312 por Ápio Cláudio.
132
HISTORIA DE ROMA
acima de todos, seu próprio exército, adiantou-se para falar .
Os rebeldes reconheceram-no e, com o mesmo respeito de seus
soldados, ouviram-no em silêncio:
"Ao sair de Roma, soldados, implorei aos deuses imortais,
os deuses da pátria que são os vossos e os meus. que me
concedessem não a vitória, mas a glória de restabelecer convosco
a concórdia. Sempre houve e haverá inúmeras oportunidades
para conseguir fama na guerra, mas agora o que espero con-
seguir é a paz. As promessas que , entre outras, fiz aos deuses
imortais, de vós depende que se realizem . Somente deveis re·
cordar-vos que não é no Sâmnio ou no país dos volscos que
tendes vosso acampamento, mas em território romano; que
estas colinas que avistais pertencem a vossa pátria; que meu
exército é formado de concidadãos vossos; que eu sou vosso
cônsul, sob cujas ordens derrotastes duas vezes as legiões
samnitas no ano passado e duas vezes tornastes de assalto seu
acampamento.
" Soldados, eu sou Marco Valério Corvo 29 • aquele cuja
nobreza só se manifestou por seus benefícios e não por ultrajes
contra vós. Sou aquele que jamais aconselhou contra vós qual-
quer lei despótica, qualquer senadoconsulto cruel. Em todos
os meus comandos sempre fui mais severo comigo mesmo do
que convosco. Na verdade, se a linhagem, o valor, a gran~eza
e as dignidades pudessem tornar um homem orgulhoso, mmha
origem, as provas que dei de minha coragem, a idade em que
cheguei ao consulado, pois fui cônsul aos vinte e quatro anos ,
poderiam ter-me tornado altivo não só para com a plebe mas
até mesmo para com os patrícios. Entretanto, quando cônsul,
alguma vez me vistes agir ou falar com maior dureza do qu_e
quando era tribuno? Da maneira como agi durante meus dots
outros consulados, assim agirei também nesta ditadura sobe-
rana.
29 . Marco Valério pertencia a uma família cujo sobrenome erb
Publícola (amigo do povo) . Por outro lado. fora cognominado Corvo
após 0 combate singular em que venceu um gaulês . ajudado por um corvo
que lhe pousara no capacete.
133
 TITO UVIO
"Não terei mais benevolência para com estes soldados
que são meus e da pátria do que para convosco que sois,
lamento dizê-lo, meus inimigos. Será necessário que empunheis
armas contra mim antes que eu o faça contra vós. Se tivermos
de lutar, de vosso lado partirá o sinal, de vosso lado partirá
o grito de guerra e começará o ataque. Tentai fazer o que
não ousaram vossos pais e antepassados, os que se retiraram
para o monte Sacro, os que depois acamparam no Aventino.
Esperai que as mães e as esposas, como no tempo de Coriolano,
venham de Roma a vosso encontro, de cabelos soltos. Naquela
época as legiões dos volscos, tendo um romano por chefe, se
detiveram. E vós, que pertenceis todos ao exército romano,
não deveis desistir desta guerra ímpia so !
Tito Qüíncio, como quer que estejas nessa posição, espon-
taneamente ou a contragosto, retira-te para as últimas fileiras
caso se trave combate. Mais glória conquistarás ao fugir, dando
as costas a teus concidadãos, do que combatendo contra a
pátria. Mas, para restabelecer a paz, será desejável e honroso
que agora permaneças na primeira fila e sirvas de intérprete
deste feliz acordo. Pedi e apresentai coisas justas. Todavia,
será preferível aceitar soluções mesmo injustas a combatermos
uns contra os outros numa guerra ímpia".
Com os olhos cheios de lágrimas Tito Qüfncio voltou-se
para os seus e disse:
"Soldados, se tendes necessidade de mim, também poderei
ser melhor chefe na paz do que na guerra. Não acabastes de
ouvir um volsco ou um samnita, mas um romano, vosso cônsul
e vosso general. Experimentastes em vosso proveito o que valem
seus auspícios. Não queirais experimentá-los contra vós.
" O Senado poderia ter enviado outros generais para com-
bater-vos com maior rigor. Mas foi a ele que recorreu para
vos inspirar maior confiança, para vos poupar ao máximo.
Ele, que fora vosso general, veria em vós seus antigos soldados.
Portanto, aqueles que poderiam vencer desejam a paz. E nós,
30. Parece desnecessário dizer que Marco Valério Corvo fala
ironicamente.
134
HISTORIA DE ROMA
0 que devemos desejar? Por que não re~unciar ao ódio e à
ambição, conselheiros enganosos, _e conf1ar ~os~~ pessoas e
nossos interesses a uma bondade tao reconhec1da .
Pacificação dos 41 . Como todos aprovassem clamo-
soldados rebeldes. rosamente, Tito Qüfncio avançou pa-
ra a primeira fileira e declarou que
os soldados estavam às ordens do ditador. Exortou-o a proteger a
causa daqueles infelizes cidadãos e a defendê-los com a mesma
lealdade que demonstrara na administração da república. Quanto
a ele, nada temia, pois confiava em sua própria inocência. Mas
implorava para os soldados o mesmo tratamento que. o Senado
dispensara à plebe uma vez, e às legiões duas vezes, 1sto é, que
não sofressem castigo por aquela revolta.
Depois de cumular Qüíncio de elogios e aconselhar os
rebeldes a que tivessem confiança, o ditador voltou a Roma
a galope. Com o assentimento do Senado propô_: ao povo, no
bosque sagrado de Petelino, que os soldados nao fossem cas-
tigados por aquela rebelião. Solicitou, também, o favor do
povo romano para que ninguém, por brincadeira ou não, lhes
censurasse aquela atitude.
Promulgou-se uma lei militar sagrada, que proibia apagar
nome de qualquer soldado inscrito, sem o seu consentimento.
0
A essa lei acrescentou-se um artigo que proibia também a qual-
quer cidadão que houvesse sido tr!b.uno milita~ .vir a ~cupar
0 posto inferior de chefe de centuna. Os sed1c1osos ftzeram
esse pedido visando a Públio Salônio, que ocupava: al~emada­
mente, ora 0 posto de tribuno militar, ora o de pnme1ro cen-
turião que hoje chamamos primípilo. Os soldados lhe eram
hostis ' porque sempre se opusera a seus planos revolucionários
e, para não participar deles , havia fu~ido de Láutula. ~sta
foi a única exigência a que o Senado nao aced~u, em .conside-
ração a Salônio. Mas como o próprio Salônto ped1sse a~s
senadores que dessem maior importância à paz e à ~on~órd1a
entre os cidadãos do que a sua própria honra, a le1 fo1 san-
cionada.
135
 TITO UVIO
Com o mesmo arrebatamento, as tropas solicitaram também
que fosse reduzido o soldo dos cavaleiros (três vezes maior
do que o dos infantes). porque se haviam oposto à rebelião.
Contro vérsias . 42 . Certos autores declaram que o tri-
buno da plebe Lúcio Genúcio apresentou
ao p~v? uma ~ei. contra a usura. Declaram, também, que outros
plebiSCitos pro1b1ram qualquer cidadão de ocupar o mesmo cargo
num prazo de dez anos, ou de exercer duas magistraturas no
m~sm~ ano. Acrescentam que foi pedida também a nomeação de
do1s consules plebeus. Assim, se foram feitas à plebe todas essas
concessões, devemos concluir que aquela revolta aliciara forças
bastante significativas.
. Segundo outros anais, Valério não chegou a ser nomeado
d1tador e foram ~s cô?sul~s que reprimiram a conspiração.
Por outro lado, nao tena s1do antes, mas depois de chegar a
Ro~a •. que a multidão de conjurados empunhara armas. Não
tena s1do Tito Oüíncio quem os soldados atacaram à noite em
sua casa de campo, dele se apoderando para nomeá-lo chefe
mas Caio Mânlio, em sua residência na cidade, quando entã~
ma~charam até o quarto marco e estabeleceram-se em local
fortificado. Não teriam sido, tampouco, os generais que propu-
s~ram a paz, mas os dois exércitos que, ao se defrontarem
d1spos~os ao ~o~bate, começaram a trocar saudações. A partir
de e~tao, as f1le1ras se confundiram e os soldados apertaram-se
as maos e abraçaram-se chorando. Ao verificar que as tropas
se recusavam a combater, os cônsules comunicaram ao Senado
o restabelecimento da paz.
Assim, pois, a não ser o fato de que houve uma revolta
e que esta foi reprimida, no mais os historiadores antigos di-
vergem.
O~ rumores sobre aquela revolta e a terrível guerra em-
pree~dlda contra os samnitas levaram alguns povos a romper
~ ~h.ança com Roma. Sem falar dos latinos, há muito tempo
tnf1é1s aos tratados, os privernates subitamente invadiram e
devastaram as colônias romanas de Norba e Sécia. suas vizinhas.
Jj6
RESUM O
DO LIVRO VIl DA HlSTORlA DE ROMA
DESDE SUA FUNDAÇÃO . DE TITO UVIO
Duas novas magistraturas são acrescentadas às antigas , a
pretura e a edilidade curul. O Estado é afligido por uma epi-
demia que toma digna de memória a morte de Fúrio Camilo.
Procurando um remédio e uma solução para seu caso nas prá-
ticas religiosas novas, criam-se pela primeira vez os jogos
cênicos. Lúcio Mânlio é acusado por Marco Pompônio, tribuno
da plebe, de crueldade por ocasião de um recrutamento de
tropas e por manter seu filho Tito Mânlio exilado no campo
sem motivo algum de queixa contra ele; mas o próprio jovem
entra no quarto do tribuno de espada em punho e força-o a jurar
solenemente que não seguirá com a acusação. Inúmeros objetos
preciosos são atirados num precipício em Roma ; Cúrcio, armado
e montado, atira-se também no sorvedouro, atulhando-o definiti-
vamente. O jovem Tito Mânlio, que defendera o pai contra a
perseguição do tribuno, avança para o gaulês que provocava um
dos soldados romanos ao combate singular, mata-o , arranca-lhe
o colar de ouro [torques] que passa a usar, ganhando por isso
a alcunha de Torquato [que usa colar]. Duas tribos são acres-
centadas às antigas: a Pomptina e a Publnia. Licínio Estolão
é condenado nos termos de sua própria .lei, por ter adquirido
mais de quinhentas jeiras de terra. Marco Valério, tribuno dos
soldados, mata um gaulês que o provocara ; um corvo pousou
sobre seu capacete e com o bico e as garras atacava o oponente.
Daí tirou seu cognome de Corvo, e, no ano seguinte, é nomeado
cônsul com a idade de vinte e três anos, como recompensa por
seu valor. Faz-se amizade com os cartagineses. Os amnitas
Jj7
 TITO LfVIO
movem guerra aos campanianos, que pedem socorro ao Senado;
não conseguindo obtê-lo, entregam sua cidade e território ao
povo romano. Tornados propriedade do Estado, resolve-se de-
fendê-los contra os samnitas. O cônsul Auto Cornélio é salvo
pelo tribuno dos soldados, Públio Décio Mus, após conduzir seu
exército em terreno desfavorável e pô-lo em perigo : ocupando
uma elevação acima do ponto onde estão os samnitas, dá ocasião
a que o cônsul escape para ocupar uma posição melhor. Ele
próprio, cercado pelos inimigos, escapa também. A guarnição
romana de Cápua conspira para apossar-se da cidade; o plano
é descoberto e os soldados desertam com receio do castigo, mas
o ditador Marco Valéria Corvo, que com sabedoria . consegue
restituí-los à razão, integra-os novamente à pátria.
O livro contém ainda as vitórias sobre os hérnicos, os gau-
leses, os tiburtinos. os privernates. os larqüínios. os samnitas e
os volscos.
138
L I V R O VIII
Vitória sobre os 1 . Já se achavam no exercício de seus
privemates. cargos os novos cônsules Caio Pláucio.
pela segunda vez, e Lúcio Emflio Ma-
merco, quando alguns habitantes de Sécia e de Norba vieram a
Roma para denunciar a rebelião dos privernates e queixar-se dos
atentados de que haviam sido vítimas. Os romanos também
foram informados de que um exército volsco, com os anciatos
à frente, estabelecera-se nos arredores de Sátrico.
Realizado o sorteio, o comando das duas guerras coube
a Pláucio. O cônsul dirigiu-se primeiro a Privemo, onde travou
combate imediato e venceu o inimigo sem muito esforço. A
cidade foi tomada aos privernates e depois devolvida, ficando
sob a guarda de importante destacamento romano. Dois terços
do seu território lhes foram arrebatados.
O exército vitorioso marchou em seguida em direção a
Sátrico, para lutar contra os anciates. Houve uma renhida
peleja . na qual ambos os exércitos sofreram grandes perda~.
A vitória ainda não se definira a favor de nenhum dos dots
exércitos quando sobreveio uma tempestade que separou os
combatentes. Após uma luta de resultado tiio incerto. os roma-
nos sem dar mostras de fadiga, prepararam-se para combater
no;amente no dia seguinte. Os volscos, porém, depois de faze-
rem um levantamento dos soldados que haviam perdido no
campo de batalha, não se sentiram com coragem para enfrentar
de novo a luta. Considerando-se vencidos, abandonaram seus
feridos e uma parte de suas bagagens, e debandaram à noite
para Ãncio. Os romanos encontraram grande quantidade de
armas en tre os corpos dos inimigos. sobretudo no acampamento.
 TITO UVIO
Declarando que se dedicava à Lua Mãe 1 , o cônsul em seguida
devastou o território inimigo até a orla marítima.
O outro cônsul, Emílio, havia penetrado em território sabé-
lico sem encontrar em parte alguma o acampamento e as legiões
samnitas. Já começara a devastar os campos a ferro e fogo, quan-
do se apresentaram emissários do Sâmnio com um pedido de paz.
Enviados pelo cônsul ao Senado, foi-lhes dada a palavra. Aban-
donando sua habitual altivez, os samnitas pediram aos romanos
paz e o direito de atacar os sidicinos. Consideravam justo seu
pedido, uma vez que haviam procurado a amizade do povo
romano quando estavam em franca prosperidade e não na adver-
sidade, como haviam feito os campânios. Pretendiam empunhar
armas contra os sidicinos, seus inimigos de sempre e jamais
amigos dos romanos. Esse povo não havia solicitado a amizade
de Roma durante a paz, como eles, samnitas, nem o seu auxílio
durante a guerra, como os campânios. Além do mais , não se
achava sob a proteção nem sob o domínio de Roma .
Tratado de paz com os samnitas. 2 . A petição dos samni-
tas foi submetida ao Se-
nado pelo pretor Tito Emílio, e os senadores votaram pela reno-
vação do tratado. O pretor respondeu aos samnitas que não
dependera dos romanos a curta duração de sua aliança. Contudo,
uma vez que estavam desgostosos de uma guerra que eles pró-
prios haviam provocado, nada se opunha ao reatamento da
amizade entre os dois povos. Em relação aos sidicinos, nada
impediria que o povo samnita exercesse seu livre direito de
paz e de guerra .
Concluído o tratado, os embaixadores voltaram ao Sâmnio
e o exército romano imediatamente retirou-se, depois de receber
um ano de soldo e três meses de víveres, condição imposta
pelo cônsul ao conceder uma trégua até o regresso dos legados.
Com as mesmas tropas que haviam lutado contra o exér-
cito romano, os samnitas marcharam contra os sidicinos, espe-
rando conquistar-lhes imediatamente a cidade. No início, os
sidicinos tentaram entregar-se aos romanos. Mas como o Senado
I . Deusa malconhecida . esposo de SaiUrno.
140
HISTORIA DE ROM A
repelisse aquela rendição tardia e motivado por uma extrema
necessidade, entregaram-se aos latinos, que já haviam esponta-
neamente empunhado armas. Os próprios campânios, que man-
tinham mais viva a lembrança do ultraje dos samnitas do que
o auxílio dos romanos, não permaneceram alheios àquela guerra.
Todos esses povos reunidos formaram um único e imenso exér-
cito, que sob o comando de um general latino invadiu o_ terri-
tório samnita, causando maiores danos ao fazer debastaçoes do
que em combates regulares. Embora super!ores em tod?s . ~s
encontros, os latinos abandonaram voluntanamente o pats tnt·
migo, para não serem obrigados a combater continuamente.
Esse fato deu tempo aos samnitas para enviar embaixadores
a Roma , os quais se apresentaram no Senado para queixarem-se
de estar sofrendo como aliados de Roma o que haviam sofrido
como seus inimigos. Suplicaram humildemente aos romanos
que se contentassem em ter-lhes arrebatado a vitória sobre. os
campânios e os sidicinos, e não permitissem que os sa~mtas
fossem vencidos pelos inimigos mais covardes. Se latmos e
campânios estavam sob o domínio do povo romano. Roma ~a­
deria afastá-los do território samnita, graças à sua soberama.
E se eles não reconhecessem essa soberania, poderia contê-los
ao menos pela força das armas.
A essas queixas os senadores deram uma resposta amb ígua.
Repugnava-lhes confessar que os latinos já não estavam sob
o domínio de Roma, e era de temer que ao interferir em seus
desígnios eles se indispusessem ainda mais. A posição dos
campânios era muito diferente , uma vez que estavam sob a
proteção de Roma não por um tratado, mas por submissão.
Assim, quisessem ou não, os campânios teriam de permanecer
tranqüilos. Mas no tratado com os latinos, nada havia que os
impedisse de guerrear contra qualquer nação.
Conspiração dos latinos 3 . Essa resposta, que deixava os
e campânios. samnitas inseguros quanto à ati-
tude que Roma iria assumir no
futuro assustou também os campânios e acabou por afastá-los.
Os ta;inos , por sua vez. tornaram-se mais ousados ainda, pois
14 1
 TITO UVIO
acreditavam que os romanos cederiam a todas as suas ex•gen-
cias. Assim , sob pretexto de preparativos de guerra contra os
samnitas realizavam freqüentes assembléias, onde os chefes deba-
tiam e tramavam uma guerra contra Roma. Os próprios campâ-
nios associavam-se a esses projetos belicosos contra seus liberta-
dores. Mas apesar da cautela em dissimular esses planos - pois
antes de provocar Roma desejavam desfazer-se dos samnitas, que
os atacariam pela retaguarda - alguns latinos, ligados a Roma
por laços privados de hospitalidade e parentesco, deixaram
transparecer indícios da conspiração.
Os cônsules receberam ordem de abdicar antes do término
de sua magistratura, para que mais rapidamente fossem nomea-
dos os novos cônsules que arcariam com o peso da guerra. Mas
um escrúpu lo religioso vedava aos magistrados, que não hou-
vessem completado seu mandato, o direito de presidir as elei-
ções, e por esse motivo recorreu-se a um interregno. Houve
dois inter-reis, Marco Valéria e Marco Fábio. Este último nomeou
cônsules Tito Mânlio Torquato, pela terceira vez, e Públio Décio
Mure.
Consta que naquele ano Alexandre, rei do Epiro, aportou
à Itália com sua frota, e sem dúvida alguma teria levado sua
expedição até Roma caso tivesse obtido êxito nas primeiras
investidas. Foi também a época das façanhas de Alexandre,
o Grande, filho de uma irmã daquele príncipe que, em outra
parte do mundo, por capricho do destino, perecera de uma
enfermidade ainda jovem e invicto na guerra.
Embora não duvidassem da traição de seus aliados e dos
povos latinos, os romanos agiram como se estivessem preocupa-
dos apenas com os samnitas e não com eles próprios, e convo-
caram a Roma dez chefes latinos para manifestar-Lhes seu
propósito. O Lácio possuía então dois pretores, Lúcio Ãnio,
de Sécia, e Lúcio Numísio, de Circéia. Ambos eram oriundos
de colônias romanas e haviam arrastado à guerra não só Sígnia
e Velitras mas os próprios volscos. Resolveu-se chamar espe-
cialmente esses dois homens.
Não tendo dúvidas quanto ao motivo da convocação, os
pretores reuniram a assembléia antes de se dirigirem a Roma,
142
HISTORIA DE ROMA
para comunicar que haviam sido convocados pelo Senado ro-
mano e ao mesmo tempo para submeter-lhe a resposta que
deveriam dar às perguntas que possivelmente lhes seriam feitas .
Discurso de Lúcio Ãnio 4 . Como as opiniões diver-
na assembléia dos latinos. gissem , Ãnio tomou a pala-
vra:
" Embora eu mesmo tenha submetido à discussão a res-
posta que deverei dar, julgo ser muito mais importante para
nossa situação atual o que devemos fazer do que o que devemos
dizer. Quando chegarmos a um acordo, será fácil adaptar as
palavras aos atos. Se hoje, à sombra de um tratado concluído
em igualdade de condições, podemos suportar a condição de
escravos, por que não havemos de trair os sidicinos e nos
submeter às ordens dos romanos e dos samnitas, respondendo
ao Senado romano que basta um sinal seu para depormos as
armas? Mas se o desejo de liberdade vos perturba, se existe
um tratado, se uma aliança significa igualdade de direitos, se
o fato de sermos consangüíneos dos romanos (o que outrora
nos envergonhava 2 ) é hoje motivo de glória, se o exército
aliado é tão importante para eles, pois duplica-lhes as forças
quando se reúne a elas, se os cônsules para empreender ou
terminar suas guerras não podem prescindir dele, por que não
somos iguais em tudo? Por que um dos cônsules não é esco-
lhido entre os latinos? Quando se compartilha do esforço deve-se
compartilhar também do poder. Não se trata realmente de uma
exigência absurda de nossa parte, desde que concordamos em
que Roma fosse a capital do Lácio. O que lhe dá a aparência
de exagero é nossa paciência inesgotável.
" Se algum dia esperastes o momento de participar do poder
e reconquistar a liberdade, eis que a ocasião se apresenta, graças
ao vosso valor e à bondade dos deuses. Experimentastes a pa-
ciência dos romanos ao negar-lhes nossos soldados. Quem teria
dúvidas de que eles se exaltariam quando rompemos um cos-
2 . Quando Roma era apenas um local de asilo.
143
 TITO UVIO
tume de mais de duzentos anos? Contudo, suportaram essa
afronta. Fizemos em nosso nome a guerra contra os pelignos.
Os romanos, que outrora não nos davam sequer o direito de
d.e~e~der nosso território, em nada interferiram. Tomamos os
s•d•cmos sob nossa proteção e os campânios abandonaram Roma
e aderiram a nós. Preparamos um exército para combater os
s~mnitas, seus aliados, e os romanos nem sequer saíram de sua
Cidade quando tomaram conhecimento desse fato. Donde lhes
vem agora tanta prudência, senão do conhecimento de nossa
superioridade em relação a eles? Pessoas idôneas informaram-me
de que o Senado romano deixou entrever claramente na resposta
dada às queixas dos samnitas contra nós que Roma não mais
pretendia manter o Lácio sob seu domínio. Entrai somente na
posse daquilo que eles tacitamente vos concedem. Se o temor
vos impede de falar, aqui me tendes. Não só em presença do
povo roman~ e dos senadores, mas até mesmo do próprio Júpi-
ter que. ha~1ta o Capitólio, prometo dizer-lhes que se desejam
nossa .f•dehdade aos tratos e alianças terão de permitir que um
dos consules e a metade dos senadores sejam escolhidos entre
nossos concidadãos".
Diante dessas palavras ousadas que aconselhavam e ao
mesmo tempo prometiam, todos aplaudiram em altos brados e
permitiram que Ãnio fizesse e dissesse tudo que lhe parecesse
conforme aos interesses da República latina e sua própria
consciência.
Discurso de Lúcio Ánio 5 . Ao chegarem a Roma, os
no Senado romano. embaixadores latinos foram re-
Resposta de Tito Mânlio. cebidos no Senado reunido no
Capitólio. O cônsul Tito Mân-
lio, com a autorização dos senadores, aconselhou-os a não decla-
rarem guerra aos samnitas, aliados de Roma. Assumindo uma ati-
tude de conquistador do Capitólio, e não de um simples legado
sob a salvaguarda do direito dos povos, Anio assim falou:
"Tito Mânlio, senadores. Já era tempo de não nos consi-
derardes como escravos. Podeis ver que o Lácio está em franco
144
HISTóRIA DE ROMA
progresso, tanto por seus homens quanto por suas armas, graças
à proteção dos deuses, as suas vitórias sobre os samnitas, a sua
aliança com os sidicinos e com os campânios, à recente adesão
dos volscos e também a vossas próprias colônias, que prefe-
riram o domínio latino ao romano. Mas já que não conseguis
refrear vossa insaciável ambição de reinar, embora pudéssemos
garantir a liberdade do Lácio pela força das armas, em atenção
aos nossos laços de sangue concordamos em propor-vos a paz
em condições iguais para os dois povos, uma vez que os deuses
imortais nos concederam a graça de tornar nossas forças também
iguais às vossas.
"t indispensável que um cônsul seja eleito em Roma e
outro no Lácio; que o Senado seja constituído, em partes iguais,
de cidadãos das duas nações; que formemos um só povo, uma
só república. Para que a sede do império seja a mesma, para
que o nome seja o mesmo para todos, uma vez que um de nós
terá de fazer uma concessão ao outro (que esta decisão nos seja
benéfica!), escolheremos esta cidade como pátria e nos chama-
remos a todos romanos".
Acontece que entre os romanos havia um homem de au-
dácia igual à de Anio: o cônsul Tito Mânlio. Não podendo
conter a cólera, declarou publicamente que se o Senado come-
tesse a loucura de aceitar leis ditadas por um homem de Sécia,
ele retornaria ao Senado cingindo sua espada e, se encontrasse
qualquer latino na cúria, matá-lo-ia com suas próprias mãos.
Virando-se em seguida para a estátua de Júpiter, exclamou:
"Ouve estas blasfêmias, ó Júpiter! Escutai vós também,
Direito Humano e Divino! Eis o que tu verás, ó Júpiter! Côn-
sules estrangeiros, um Senado estrangeiro em teu templo con-
sagrado após consulta aos augúrios e tu mesmo cativo e opri-
mido! Latinos, terá sido este o tratado que Tulo, rei de Roma,
consumou com os albanos, vossos ancestrais? Foi este o tratado
que Lúcio Tarqüínio fez em seguida convosco? Não vos lembrais
da batalha do lago Regilo? Esquecestes vossas antigas derrotas
e nossos antigos beneffcios para convosco?"
145
 TITO UVJO
Mobilização do exército romano 6. Ao discurso do côn-
contra os latinos. sul seguiram-se manifes-
tações de indignação dos
senadores. Diz-se que durante as reiteradas súplicas dos cônsu-
les que invocaram os deuses como testemunhas dos tratados,
Ânio pronunciou palavras depreciativas em relação à divindade
do Júpiter romano. O certo é que, dominado pela cólera, ao reti-
rar-se bruscamente do vestíbulo do templo escorregou na esca-
da, bateu com a cabeça em uma pedra do chão e feriu-se tão
gravemente que desmaiou. Como nem todos os historiadores
registraram sua morte, nada afirmo. Na mesma posição me colo-
co diante daquele espantoso trovão seguido de tempestade no
momento do apelo aos deuses contra a violação dos tratados.
Tudo pode ser verdade, mas também pura fantasia para repre-
sentar com maior ênfase a cólera dos deuses.
Enviado pelo Senado para despedir os embaixadores Tito
Mãnlio Torquato, ao ver Ãnio estendido no solo, exclam~u em
altas vozes para ser ouvido igualmente pelo povo e pelos sena-
dores: "Está tudo bem. Os deuses é que promoveram esta guerra
sagrada. Existe um poder celeste, que és tu, grande Júpiter! Não
foi em vão que neste templo te consagramos pai dos deuses e
dos homens. Por que tardais, quirites, por que tardais, sena-
dores, em empunhar armas sob o comando dos deuses? As
legiões latinas serão derrubadas como aconteceu ao seu embai-
xador que, como vedes, jaz agora por terra".
O povo aplaudiu as palavras do cônsul. Os ânimos estavam
tão exaltados que, não fora a diligência dos magistrados que
acompanhavam os embaixadores por ordem do cônsul, o direito
dos povos não teria sido suficiente para protegê-los contra a
cólera e a excitação da multidão.
O Senado também aprovou a guerra. A frente de dois
exércitos que acabavam de recrutar, os cônsules atravessaram
o território dos marsos e dos pelignos, reuniram-se ao exército
dos samnitas e estabeleceram acampamento em Cápua, onde já
se achavam concentrados os latinos e seus aliados. Diz-se que
enquanto dormiam os dois cônsules tiveram a mesma visão:
um homem de estatura e imponência sobre-humanas apareceu
146
HISTúRIA DE ROMA
e disse-lhes que um dos generais e um dos exércitos eram devidos
aos deuses manes e à mãe Terra. O exército cujo general tivesse
sacrificado aos manes as legiões inimigas e, em seguida, se sacri-
ficado a si próprio, daria a vitória a seu povo e a sua pátria.
Os cônsules comentaram entre si a respeito de sua visão
noturna e decidiram imolar vítimas para aplacar a cólera dos
deuses. Se as entranhas dessem os mesmos presságios que as
visões do sonho, um dos dois cônsules cumpri ria seu destino.
As respostas dos arúspices confirmaram os escrúpulos reli-
giosos que secretamente já dominavam o espírito dos cônsules.
Convocaram, então, os legados e tribunos e expuseram-lhes clara-
mente as ordens dos deuses. Para que a morte voluntária de um
cônsul não lançasse o exército em pânico durante o combate,
combinaram o seguinte: do lado em que o exército romano
começasse a ceder, o cônsul se sacrificaria pelo povo romano
e pelos quirites.
Em nenhuma outra guerra havia sido tão necessário o rigor
no comando. Tratou-se, em assembléia, de procurar um meio
de devolver à disciplina militar seu antigo prestígio. O que mais
preocupava a todos era o fato de terem de combater contra os
latinos, cuja língua, costumes, armas e sobretudo organização
militar eram absolutamente idênticos aos dos romanos. De sol-
dado a soldado, de centurião a centurião, de tribuno a tribuno,
eles se equivaliam. Como companheiros, muitas vezes haviam
estado juntos nas mesmas guarnições, e até nos mesmos maní-
pulos. Assim, para evitar equívocos entre os soldados, os côn-
sules proibiram terminantemente que atacassem o inimigo fora
das fileiras.
Execução do filho 7 . Por acaso, entre os chefes dos
de Tito Minlio. esquadrões da cavalaria enviados para
fazer reconhecimento em todas as di-
reções, achava-se Tito Mânlio, filho do cônsul. Avançando com
seus companheiros, foi postar-se junto ao acampamento inimigo,
à distância apenas de um lance de dardo do posto mais próximo.
Nesse local encontravam-se cavaleiros tusculanos, comandados
por Gemino Mécio, que se distinguia entre os seus por sua no-
147
 TITO UVIO
breza e seus feitos. Ao reconhecer os cavaleiros romanos e à
frente deles o filho do cônsul - pois todos se conheciam, prin-
cipalmente as pessoas ilustres - , exclamou:
" Romanos, pretendeis combater contra os latinos e seus
aliados apenas com um esq uadrão? Enquanto isso, que fazem
vossos cônsules e vossos dois exércitos consulares?" Mânlio
respondeu : " Virão quando a hora chegar, e com eles virá tam-
bém o próprio Júpiter, a mais forte e mais poderosa testemunha
dos tratados que violastes. Se no lago Regilo combatemos contra
vós até nos saciarmos, agora também procuraremos tornar o
combate bem desagradável para vós" . Ao ouvir essas palavras,
Gemino avançou seu cavalo, distanciando-se um pouco dos seus,
e bradou : " Enquanto não chega o dia em que vossos exércitos
farão o grande esforço de se moverem, não queres tu lutar contra
mim para que o desfecho da luta mostre desde já a superioridade
do cava leiro latino sobre o romano?"
O temperamento altivo do jovem romano inflamou-se. Fosse
por cólera, fosse por vergonha de recusar um combate, fosse
pela força incontrolável do destino, esqueceu a autoridade
paterna e as ordens dos cônsules e precipitou-se cegamente numa
Juta em que pouco importaria a vitória ou a derrota. Os demais
cavaleiros afasta ram-se como para assistir a um espetáculo, e
no espaço livre os dois adversários esporearam seus cavalos e
avançaram um contra o outro, de lança em riste. Mânlio golpeou
o capacete de seu inimigo, e Mécio feriu o pescoço do cavalo
de Mânlio. Deram meia-volta aos cavalos e Mãnlio avançou
para ser o primeiro a desferir o segundo golpe, cravando a
lança entre as orelhas do cavalo de seu adversário. Ao sentir-se
ferido, o animal empinou, sacudiu violentamente a cabeça e der-
rubou o cavaleiro. No momento em que este tentava levantar-se
da queda desastrosa apoiando-se na lança e no escudo, Mânlio
atravessou-lhe a garganta com a lança, que lhe varou as costelas
e foi pregá-lo ao solo. Recolheu em segu ida os despojos do
inimigo, voltou para junto dos seus e aos gritos de júbilo regres-
sou com o esquadrão ao acampamento. Dirigiu-se imediatamente
148
HISTORIA DE ROMA
à tenda de seu pai, ignorando o destino que o esperava, e sem
saber se merecia louvor ou castigo. " Meu pai" , disse ele, " a fim
de demonstrar a todos que na verdade sou teu filho, trago-te
os despojos de um cavaleiro que me desafiou e a quem matei".
Ao ouvir essas palavras, o cônsul imediatamente afastou-se
de seu filho e mandou tocar a cometa para reunir o exército.
Quando a assembléia era bastante numerosa, disse:
" Uma vez que tu, Tito Mânlio, sem respeitar o poder con-
sular e a autoridade paterna, combateste o inimigo fora das
fileiras, contrariando nossas ordens; uma vez que tomaste a
iniciativa de infringir a disciplina militar, graças à qual até hoje
subsistiu o Estado romano; uma vez que me forçaste a esquecer
ou a república ou a mim mesmo e aos meus, suportemos o
castigo de nosso delito, mas não permitamos que o Estado tenha
de pagar caro por nossas faltas. O exemplo que vamos dar é
muito penoso para nós, mas, no fu turo , será muito salutar para
a juventude. e verdade que minha natural ternura por meus
filhos e este exemplo de teu valor, ilud ido por uma vã imagem
de glória, me falam em teu favor. Mas como tua morte irá san-
cionar as ordens dos cônsu les, ao passo que tua impunidade iria
ab-rogá-las para sempre, creio que não te recusarás, se tens um
pouco de sangue, a restabelecer com teu suplício a disciplina
militar, destruída por tua cu lpa. Vai, lictor, amarra-o ao poste".
Todos ficaram consternados com uma ordem tão cruel. Cada
soldado supunha ter um machado suspenso sobre sua cabeça e,
por isso, mais por temor do que por falta de compaixão, todos
permaneceram imóveis. Contudo, passados a lguns momentos de
pesado silêncio, em que os homens ficaram paralisados pelo
espanto, ao verem o sangue correr daquele pescoço cortado,
todos se puseram a dar livre curso a suas lamentações e impre-
cações. Coberto com os despojos que arrebatara ao inimigo, e
com todo o aparato que permitia uma solenidade militar, o
corpo do jovem foi queimado em uma pira fora das trincheiras.
A sentença de Mânlio não foi terrível apenas para sua época,
mas constitui uma triste recordação para a posteridade.
149
 TITO LfVIO
Organização do 8 . A atrocidade dessa pumçao entre-
Exército romano. tanto tornou os soldados mais obedien-
tes. Não só as sentinelas de dia e de
noite, mas todos os serviços regulares do Exército estiveram
mais atentos e vigilantes. No último combate, quando se travou
a batalha campal, a severidade do cônsul também foi útil. Além
do mais, aquela batalha tinha todas as aparência~ de_uma guerra
civil~ pois não havia diferença entre latinos e romanos a não
ser quanto aos sentimentos.
Antigamente os romanos usavam escudos de metal, mas
depois que começaram a receber soldo passaram a usar escudos
de couro 3 • O exército, inicialmente formado em falanges seme-
lhantes às dos macedônios, passou em seguida a organizar-se
em manípulos •. Finalmente, foi dividido em várias compa-
nhias 5 , de sessenta soldados, dois centuriões e um vexilário
cada uma. A primeira linha era composta de lanceiros e, que
formavam quinze manípulos a pequeno intervalo uns dos outros.
Cada manípulo era constituído de vinte soldados armados à
ligeira e protegidos por escudo de couro. Chamavam-se "ligei-
ros" os que usavam apenas uma lança e dardos. O escol da
juventude, que entrava para o serviço militar ainda na adoles-
cência, compunha essa primeira linha de batalha. Seguiam-se-lhe
soldados de idade mais madura, os " príncipes", divididos em
igual número de manípulos, que usavam o escudo de couro e
distinguiam-se pela beleza de suas armas. Esses trinta manípulos
3. Era o scutum longo e oval que os sabinos já usavam no tempo
de Rômulo, e que substituiu o eclipeus, de metal, quando o exército
romano se tornou mais numeroso, por ser muito mais barato.
4 . O exército romano a princípio era formado de um monobloco
de seis fileiras. Sua divisão em manfpulos foi feita por Camilo, segundo
a tradição, para dar-lhe maior elasticidade nas manobras.
5 . Eram as centúrias que realmente se compunham de sessenta
homens. Todavia, parece que era o manípulo que possuía dois centuriõ:s
(um para cada centúria) e um vexilário.
6 . Os hastati (de hasta, lança) . Essa designação, bem como a de
principes, era antiga e não estava de acordo com a nova organização do
exército, uma vez que os lanceiros não usavam lança e os príncipes (os
que ocupam o primeiro lugar) ocupavam a segunda fileira.
150
HISTóRIA DE ROMA
constituíam um só batalhão e eram designados pelo nome de
"antepilanos" porque formavam ao pé das insígnias, à frente
dos outros quinze batalhões. Cada um desses batalhões era divi-
dido em três partes, uma das quais se chamava " primípila".
Possuía três insígnias e cada uma reunia cento e oitenta e seis
homens. A primeira insígnia era conduzida à frente dos triários,
veteranos de comprovada coragem; a segunda, à frente dos
rorários, menos fidedignos em virtude de sua idade e façanhas
pouco numerosas; finalmente a terceira, à frente dos acensos ,
soldados que inspiravam pouca confiança, razão pela qual eram
relegados para as últimas fileiras 7 .
Quando o exército estava organizado nessa ordem, os lan-
ceiros iniciavam o combate. Se por acaso não conseguiam desba-
ratar o inimigo, recuavam passo a passo e os príncipes abriam
as fileiras para recebê-los. Passavam então os príncipes para a
primeira fileira, seguidos pelos lanceiros. Os triários permane-
ciam junto às insígnias, com a perna esquerda à frente , o
escudo apoiado no ombro e a lança fincada no chão com a
ponta voltada para cima, dando a impressão de uma tropa
protegida por uma paliçada H. Se, por sua vez, os príncipes
não eram bem-sucedidos no combate recuavam também lenta-
mente até a linha dos triários. Daí ter-se difundido a expressão
"isso toca aos triários", usada como um provérbio nas situações
difíceis. Movimentavam-se então os triários, que abriam suas
fileiras para receber os príncipes e os lanceiros e tornavam a
fechá-las para impedir qualquer passagem. Formavam então
uma única massa compacta, que constituía a última esperança,
e precipitavam-se sobre o inimigo. Essa tática era terrível para
o adversário, que via surgir subitamente um novo e mais nume-
roso batalhão, quando já se supunha vitorioso.
7 . Os ascensi eram originariamente homens da classe mais pobre.
Eram, ao que parece, destinados a preencher os vazios e a reforçar o
exército conforme as necessidades.
8 . Daí o nome que eles também adotavam de pilani (soldados que
usavam dardos) e o nome de antepilani dado aos soldados das primeiras
rileiras e ao qual equivale talvez o termo antesignani, de certo modo
obscuro. uma vez que as insígnias ficavam também na linha dos triários.
151
 T ITO 1.1\' 10
Gertilmen te eram recrutadas quatro legiões, de ci nco mil
in f<m tes e trezentos cavaleiros cada uma. Igual contingente cos-
tumava ser recrutado entre os latinos. que naquela ocasião eram
inimigos dos romanos e haviam organizado suas fileira s na
mesma ordem. Os triários sabiam que teriam de enfrentar os
triários , os lanceiros que lutariam contra lanceiros, os príncipes
con tra os príncipes e até o centurião contra o centurião, a
menos que as fi leiras se confundissem.
Em ambos os exércitos havia, entre os primípilos. doi s
centuriões que se conheciam bem porque sempre haviam coman-
dado suas companhias lado a lado. O romano não tinha muita
força física , mas era corajoso e hábil no combate, e nquanto
o latino, além de ex traordinária força física, era o maior guer-
reiro de seu exército. Não confiando em suas forças, o romano
havia conseguido que o Senado lhe concedesse permissão para
escolher um subcenturião que o defendesse con tra o in imigo
que lhe estaria destinado. E foi este jovem que, ao enfrentar
na peleja o centurião latino, conseguiu vencê-lo. O combate foi
travado próxi mo ao sopé do monte Vesúv io, na estrada que leva
a Veseres.
Sacrifício do cônsul 9 . An tes de dispor o exército para
Públio Décio Mure. o combate, os cônsules romanos imo-
lara m uma vítima. Diz-se que o arús-
pice mostrou a Décio que a ponta do fígado do lado que lhe
dizia respeito estava rachada 9 • Afora isso, a vítima fora agra-
dável aos deuses e o sacrifício de Mânlio tivera êxito. " Se meu
colega fez um sacrifício agradável ao:. deust:s. dis e Décio.
então tudo vai bem ·· .
Dispostos na ordem que explicamos, os batalhões marcha-
ram para o combate. Mânlio comandava a ala direita e Décio
a esquerda. No início, as duas alas lutaram com igual ardor e
forças iguais. Muito em breve, porém , os lanceiros romanos
9 O fígado era a parte das entranhas que os arúspices examinavam
com maior cuidado. Era dividido em regiões correspondentes a um deus
ou a determinadas pessoas.
L52
Hl TO RIA DE ROMA
não puderam sustentar a investida dos latinos e recuaram até
a fileira dos príncipes. Em meio à confusão, o cônsul Décio
bradou a Marco Valéria: " Precisamos do auxílio dos deuses,
Marco Valéria ! Vamos, pontífice público do povo romano!
Dita-me as palavras que devo pronunciar ao sacrificar-me pelas
legiões".
O pontífice ordenou-lhe que vestisse a toga pretex ta, e
com a ca beça velada, a mão saindo debaixo da toga e levan-
tada até o queixo, os pés sobre um dardo estendido no chão,
dissesse: " Jano, Júpiter e Marte, pai dos romanos; Quirino,
Belona e Lares, divindades Novensiles, deu ses lndfgetes, deuses
que tendes em vossas mãos a sorte dos romanos e a de seus
inimigos, e vós, deuses Manes 10 , eu vos conjuro, eu vos suplico
respeitosamente, vos peço a graça e nela confio de que con-
cedais força e vitória ao povo romano dos quirites, e insinueis
nos inimigos do povo romano dos quirites o terror, o pânico
e a morte. Como declarei por minhas palavras, sacrifico-me pela
república, pelo exército, pelas legiões, pelos auxiliares do povo
romano dos quirites e ofereço juntamen te comigo as legiões e os
auxiliares do inimigo aos deuses Manes e à Terra".
Após pronunciar essas palavras, Décio enviou seus li ctores
a Mânlio para comunicar a seu colega que ele se havia sacrifi-
cado pelo exército. Cingindo sua toga à moda de Gábios, saltou
com todas as armas sobre seu cavalo e lançou-se no meio das
fileiras inimigas, à vista dos dois exércitos. Parecia um ente
sobre-humano, um enviado do céu para expiar a cólera dos
deuses , libertar seu povo de um flagelo c fazê-lo recair sobre
o inimigo. Assim, o terror e o pânico penetraram com ele nas
primeiras filei ras do exérci to latino e logo depois se propagaram
10 . Jano, Júpi ter e Marte são os três grandes deuses, os únicos
que possuíam rlâmincs em Roma. Quirino era o protetor por excelênci~
dos romanos ou qui rites. Belona era a deusa da guerra. Os Lares aq u1
são as divindades protetoras da cidade. As novas di vindades opunham:se
às divindades indígenas (indigetes}. A fórmula geral que se segue v1sa
a prevenir qualquer omissiío que pudesse ofender alguma divindade. Os
deuses Mancs eram os deuses infernais c por isso são invocados nova·
men te no final da fórmula . juntamente com a Terra.
153
 TITO uvro
a todo o exército. Ficou provado que por onde quer que passasse
seu cavalo, os inimigos se aterrorizavam como se atingidos por
um astro maldito. No momento em que caiu transpassado pelos
dardos , as coortes latinas, tomadas de pânico incontrolável,
debandaram, deixando o terreno inteiramente livre. Ao mesmo
tempo, libertados do temor religioso, os romanos recomeçaram
a luta como se tivesse sido dado o primeiro sinal de combate.
Os rorários corriam entre os antepilanos e aumentavam as
forças dos lanceiros e dos príncipes. Os triários, por sua vez,
apoiados sobre o joelho direito , aguardavam apenas o sinal
do cônsul para se levantarem .
Tática de Tito Mânlio. I O. Durante a batalha , como os
Derrota dos latinos. latinos levas:.em vantagem em al-
guns pontos por sua superiorida-
de numérica , o cônsul Mânlio, após ter tomado conhecimento
do fim de seu colega e de render-lhe, de acordo com as leis divi-
nas e humanas , justo tributo de lágrimas e de elogios por morte
tão memorável, pensou se já não teria chegado o momento de
dar o sinal para os triários se levantarem. Mas julgando que
seria melhor reservá·los para a decisão final , deu ordem aos
acensos para avançarem da retaguarda para a primeira linha.
Ao perceberem essa manobra, os latinos mandaram avançar
os triários, pensando que seus adversários haviam feito o mes-
mo. Depois de luta renhida, em que os inimigos esgotaram as
forças quebrando ou cegando suas lanças, fazendo os romanos
recuarem , quando já se julgavam donos da vitória e já haviam
chegado às últimas fileiras , o cônsul bradou aos triários: " Le-
vantai-vos contra homens fatigados, vós que até agora fostes
poupados. Lembrai-vos de vossa pátria, de vossos pais, de vossas
mulheres e filhos, lembrai-vos de vosso cônsul que morreu por
vossa vitória".
Os triários levantaram-se bem-dispostos e resplandecentes
com o brilho de suas armas. Eram um exército novo, surgido
de improviso, e cujas fileiras os antepilanos haviam engrossado.
Soltando seu grito de guerra, lançaram o tumulto nas primeiras
fileiras dos latinos, transpassa ndo-lhes o rosto com as lanças.
154
HISTORIA DE ROMA
Depois de massacrarem esses primeiros combatentes, principal
força do exército latino, avançaram quase incólumes entre os
manfpulos, como se estes estivessem desarmados, e penetrara~
no centro das tropas inimigas, onde fizeram tão grande carnt-
ficina que apenas lhes escapou a quarta parte. Os samnitas, dis-
postos em fileiras no sopé da montanha, contribuíram também
para difundir o pânico entre os latinos. Mas entre todos os
cidadãos e aliados, a principal glória nessa guerra coube aos
cônsules: um atraiu sobre si todas as ameaças e a cólera dos
deuses celestes e infernais; o outro exibiu no combate grande
coragem e habilidade. Todos os escritores romanos ou latinos
que transmitiram à posteridade a memória daquela batalha são
unânimes em afirmar que qualquer dos dois exércitos, sob o
comando de Tito Mânlio, teria certamente obtido a vitória.
Após a debandada, os latinos reuniram-se em Minturnas.
Seu acampamento foi tomado depois da luta e inúmeros sol-
dados que se achavam ainda com vida, principalmente campâ-
nios, foram aprisionados. O corpo de Décio não pôde ser encon-
trado naquele dia porque a noite impediu o prosseguimen!o
das buscas, mas no dia seguinte encontraram-no sob um montao
de cadáveres inimigos, crivado de dardos. Seu colega celebrou-
lhe funerais dignos de sua morte.
Devo explicar que um cônsul, um ditador ou um pretor,
quando dedica as legiões inimigas aos deuses, ~ão é obrigado
a sacrificar-se a si próprio, podendo escolher ltvremente qual-
quer outro cidadão, desde que per~ença a uma l~g!ã.o romana .
Se o homem escolhido morre, constdera-se o sacnftcto comple-
tamente consumado. Mas se ele sobrevive, sepulta-se então uma
estátua de sete ou mais pés de altura e sacrifica-se uma vítima
expiatória. O magistrado romano não pode, sem cometer sacri-
légio, pisar no local onde é enterrada a estátua. Se o chefe
quer sacrificar-se a si mesmo , como o fez Décio, e não morre ,
qualquer ato religioso, público ou particular, realizado por ele
será considerado impuro, seja o sacrifício de uma vítima, seja
outro qualquer. Aquele que se sacrifica tem o direito de con-
sagrar suas armas a Vulcano ou a outra divindade. O dardo
sobre o qual o cônsul pisou durante sua prece não deve cair
155
 TITO I.IVIO
nunca em poder do inimigo. Mas se tal acontecer oferece-se um
suovetaurílio em expiação a Marte.
Novo combate com os latinos.
I I . Embora haja desa·
Vitória do cônsul
parecido a lembrança de
Tito Mânlio Torquato. nossos costumes civ is c
. religiosos, pela preferên·
c1a outorgada aos costumes novos e estrangeiros em detrimento
das velhas instituições ancestrais, julguei que não me afastaria
d~ tema de minha obra ao mencionar essas tradições nos pró-
pnos termos em que nos foram transmitidas e enunciadas.
Segundo certos historiadores, os samnitas esperaram o des-
fecho da batalha e somente após terminada a luta é que vieram
em socorro dos romanos . Do mesmo modo, Lavínio também
perdera tempo em deliberações e só se decidira a enviar auxílio
aos latinos quando eles já estavam vencidos. As primeiras in·
sígnias e uma parte da tropa acabavam de franquear as muralhas
da cidade quando a notícia da derrota dos latinos fê-los retro-
ceder e voltar para sua cidade. O pretor Milônio teria decla-
rado, segundo dizem, que faria os romanos pagarem caro pelos
poucos passos que haviam dado.
Depois de se terem dispersado por vários caminhos os
latinos que sobreviveram ao combate reuniram-se num só bÍoco
e se refugiaram em Véscia. Em suas assembléias, o general
Numísio afirmava que o deus da guerra, realmente comum aos
dois povos, havia arrasado os dois exércitos com igual carnifi-
cina, de modo que os romanos haviam tido apenas uma vitória
nominal. No mais, estariam experimentando a mesma sorte dos
vencidos. Os pretórios dos dois cônsules estavam de luto um
pela execução de seu filho , o outro pelo sacrifício do prÓprio
cônsul. Todo o exército teria sido trucidado, lanceiros e prínci-
pes exterminados, as fileiras dizimadas na vanguarda e na reta-
guarda, e só no fim da batalha os triários haviam restabelecido
a situação. Sem dúvida os latinos também haviam sofrido inúme-
ras perdas, mas achavam-se mais próximos do Lácio ou do país
dos volscos para receber reforços do que os romanos de Roma .
Assim. se o povo julgasse convenien te . acrescentou ele. convo-
1'>6
III ST()R IA I)F ROMA
ca ria urgentemente a juventude das cidades latinas e volscas
c marcharia de novo com esse exército sobre Cápua. Os romanos.
que tudo poderiam esperar menos um combate naquela ocasião.
entrariam em pânico diante desse inesperado ataque.
Por todo o Lácio e por toda a confederação dos volscos
foram distribuídos falsos relatórios sobre a batalha. E como
os que não haviam assistido a ela estivessem mais inclinados
a crer no que se lhes dizia . organizou-se às pressas um exército
com elementos procedentes de todas as partes.
_ O cônsul Torquato marchou ao encontro desse exérci to
e o encontrou em Trifano. local situado entre Sinuessa e Min-
turnas. Sem tempo sequer para estabelecer acampamento, am·
bos os exércitos amontoaram suas bagagens e travaram combate
decisivo. O massacre foi de tal ordem que todos os latinos e,
a seguir, os campânios se renderam ao cônsul depois que ele
lhes devastou os territórios à frente de seu exército vitorioso.
Os latinos e os campânios perderam parte de seu território.
O território latino, que fora ampliado pelo de Privemo e pelo
de Falerno, outrora pertencente aos campânios até o rio Vul-
turno, foi distribuído à plebe romana . Cada cidadão recebeu
duas jeiras do território latino, completadas por três quartos de
jeira do território privernate. ou três jeiras do território de
Falerno, isto é, uma quarta parte a mais. em virtude de sua
distância.
Foram excluídos da punição infligida aos latinos os lauren-
tinos e os cavaleiros campânios, porque não haviam tomado
parte no levante. Decretou-se a renovação do tratado com o
laurentinos, que passou desde então a ser renovado anualmente.
dez dias após as férias latinas. Aos cavaleiros campânios foi
dado o direito de cidadania romana, e para conservar a memória
do fato afixou-se uma placa de bronze no templo de Castor
em Roma . Além disso, o povo campânio recebeu ordem de
pagar anualmente a cada cavaleiro (eram mil e seiscentos) a
ta xa de quatrocentos c cinqüenta dinheiros .
1'>7
 TITO UVIO
Nova derrota dos latjnos. 12 . Terminada a guer-
Ditadura de Quinto Públio Filo. ra, depois de recom-
Leis favoráveis à plebe. pensar ou punir cada
um conforme seus me-
recimentos, Tito Mânlio regressou a Roma . Consta que à sua
chegada somente os anciãos o foram receber. Os jovens, desde
então e durante toda a sua vida, mantiveram-se afastados dele
e o execraram 1 ' .
Os anciatos fizeram incursões no território de Ostia, de
Ardéia e Solônio. Como a saúde lhe impedisse o comando dessa
guerra , o cônsu l Mânlio nomeou ditador a Lúcio Papírio Crasso,
que na ocasião era pretor. Este, por sua vez, nomeou Lúcio
Papírio Cursor para comandante da cava laria. O ditador nada
fez de memorável na campanha contra os anciatos, embora
tivesse acampado durante alguns meses no território de Ãncio.
Após esse ano memorável pela vitória sobre tantos e tão
poderosos adversários, pela morte gloriosa de um cônsul e
pela cruel sentença com que outro ilustrou sua memória, suce-
deram os cônsules Tito Emílio Mamercino e Quinto Públio
Filo. Eles, porém, não tiveram oportunidade de se distinguir
em ações semelhantes, pois estavam mais empenhados em seus
interesses particulares ou nos de seu partido do que no governo
de sua pátria .
Encolerizados com a perda de parte de seu território, os
latinos sublevaram-se, mas foram derrotados nas planícies de
Feneto e despojados de seu acampamento. Enquanto Públio,
sob cujo mando e auspícios se deu o combate, recebia a sub-
missão dos povos latinos após o massacre de sua juventude,
Emílio conduzia o exército contra Pedo. Os pedanos eram
defendidos pelos tiburtos, pelos prenestinos e pelos veliternos.
e haviam recebido reforços também de Lanúvio e de Ãncio.
Os romanos venceram em todos os combates, mas a cidade de
Pedo e os acampa mentos dos povos aliados estabelecidos próxi-
mos à cidade permaneceram intactos.
l i . Por l'Ousa da ~"ccuç-iiu ú~ seu fi lho .
158
H ISTôRIA DE ROMA
Ao saber que havia sido decretado o triunfo de seu colega .
o cônsul subitamente regressou a Roma. antes do desfecho da
guerra , para solicitar também o triun fo sem ter ainda obtido
a vitória. Indignados com essa prova de ambição, os senadores
recusaram-lhe o triunfo antes da tomada ou rendição de Pedo.
A parti r de então, Emflio rompeu com o Senado e exerceu seu
consulado como se fora um tribuno sedicioso. Com efeito.
enquanto foi cônsul não cessou de acusar os patrícios perante
o povo, sem a menor oposição de seu colega que era homem
da plebe. O pretexto para suas acusações eram as terras do
Lácio e de Falerno, distribuídas parcimoniosamente à plebe.
E quando o Senado, desejoso de acabar com a autoridade desses
cônsules, ordenou a nomeação de um ditador para combater
os latinos sublevados. Emílio. que na ocasião detinha os fasces.
nomeou seu colega ditador. o qual elegeu Túnio Bruto para
comandante da cavalaria.
Essa ditadura foi popular pelos ataqu es aos patnc1os c
pela promulgação de três leis favoráveis à plebe e contrárias
à nobreza. A primeira submetia aos plebiscitos todos os cidadãos
romanos ; ~ segunda estabelecia que todas as leis apresentadas
aos comícios por centúrias deviam ser rat ificadas pelo Senado
antes do sufrágio ; a terceira determinava que um dos dois cen-
sores fosse escolhido entre os plebeus, quando já era permitido
que ambos fossem plebeus. Nesse ano Roma sofreu maiores
desastres provocados pelos cônsules e pelo ditador do que
vitórias e triunfos militares no exterior pela grandeza do impé-
rio. Era essa pelo menos a opi nião dos cnadorcs.
Submissão do Lácio. 13 . No ano seguinte, no consulado
Discurso de de Lúcio Fúrio Camilo e de Caio
lúcio Fúrio Camilo. Mênio. a fim de depreciar Emílio.
cônsu l no ano anterior. por ter aban-
donado a luta . o Senado declarou que se devia capt urar e
destruir Pedo pela forca das armas c dos homens. Coagidos n
ocupar-se dessa tarefa antes de qualquer outra. o novos cônsu-
les puseram-se em marchu .
15C)
 TITO UVIO
O Lácio se achava em tais condições que já não podia
suportar nem a guerra nem a paz. Faltavam recursos para a
guerra e o desgosto por ver arrebatada uma parte de seu terri-
tório o fazia desprezar a paz. Parecia-lhe conveniente adotar
urna posição intermediária, a de manter-se em suas cidades, para
não provocar os romanos e fornecer-lhes pretexto para uma
nova guerra. Se recebessem a notícia do cerco de alguma cidade,
então todos os povos acorreriam em socorro dos sitiados. Entre-
tanto, os habitantes de Pedo receberam auxílio apenas de alguns
povos. Os tiburtos e os prenestinos, cujo território era mais
próximo, chegaram até Pedo, mas os soldados de Arícia, de
Lanúvio e de Velitras, no momento em que se reuniam aos
volscos de Ãncio, foram surpreendidos por Mênio às marge ns
do rio Astura e dispersados.
Camilo travou combate diante de Pedo contra o poderoso
exército dos tiburtos. A luta foi mais renhida , porém o desfecho
igualmente vantajoso para os romanos . Os habitantes da cidade
irromperam bruscamente em meio ao combate, estabelecendo
certa confusão, mas Camilo rechaçou-os até suas muralhas en-
viando contra eles uma parte do exército. Aproveitando-se do
golpe que infligira a eles e a seus auxili ares. escalou as muralhas
e capturou a cidade.
Os cônsules sentiram-se encorajados a envidar maiores
esforços e passar da captura de uma única cidade à inteira
submissão do Lácio, percorrendo-o com seu exército vitorioso.
E não se detiveram antes de ter submetido todo o Lácio, tomando
suas cidades uma a uma , ou recebendo sua capitulação. Depois
de deixar guarnições nas cidades conquistadas, regressaram
a Roma para o triunfo que lhes foi outorgado por unanimidade.
Além do triunfo , o Senado lhes prestou outra homenagem -
rara naquela época - mandando erguer no Fórum estátuas
eqüestres em sua honra.
Antes que os cônsules realizassem eleições para o ano
seguinte, Camilo consultou o Senado sobre os povos latinos
nos seguintes termos:
" Senadores, graças à benevolência dos deuses e ao valor
dos soldados, tudo o que cumpria fazer pelas armas na guerra
160
HISTORIA DE ROMA
contra o Lácio já foi concluído. Os exércitos mamagos foram
derrotados em Pedo e às margens do Astura. Todas as cidades
latinas e a cidade de Ãncio, dos volscos, foram capturadas ou
renderam-se, e estão agora ocupadas por vossas guarnições.
Resta decidir, uma vez que suas freqüentes revoltas nos inquie-
tam, um meio de manter os latinos em perpétuo estado de paz
e tranqüilidade. Os deuses imortais vos outorgaram um tal
poder que puseram em vossas mãos a existência ou inexistência
futura do Lácio. Portanto, no que concerne aos latinos, depende
de vós a manutenção de uma paz definitiva , seja através de
castigo, seja através de perdão. Pretendeis tomar decisões cruéis
contra povos submetidos e vencidos? Podeis destruir todo o
Lácio, transformar em vasto deserto aquele país cujo excelente
exército vos serviu tantas vezes como aliado em grandes e nume-
rosas guerras. Quereis, a exemplo de nossos antepassados, au-
mentar o poder de Roma concedendo aos vencidos o direito
de cidadania? Tendes uma excelente ocasião para engrandecê-lo
cobrindo-vos de glória. Sem dúvida, o mais seguro império é
aquele que se obedece com alegria. Mas é preciso que decidais
rapidamente, qualquer que seja vosso propósito, pois numerosos
são os povos que se acham suspensos entre a esperança e o
temor. Libertai-vos quanto antes da preocupação que eles vos
causam e, enquanto a expectativa os paralisa, tornai-vos sen~~res
da situação ou por meio de castigos ou por meio de beneftcaos.
Nossa tarefa era submeter à vossa deliberação todos esses pro-
blemas. A vossa é decidir o que mais convém a vós e à repú-
blica".
Decisão do Senado romano 14 . Os principais senadores
sobre as cidades do Ucio. elogiaram a exposição feita
pelo cônsul, que abordou os
pontos mais importantes do problema. Declararam que. d~~ois
de examinar a situação de cada povo separadamente decadtrtam
de acordo com o mérito de cada um, visto que a causa de todos
os povos não era a mesma. Após inteirar-se da situação de cada
povo separadamente, o Senado pronunciou-se.
161
 TITO UVIO
Os lanuvinos receberam o direito de cidadania e a devo-
lução de seus objetos sagrados, com a condição de o templo
e o bosque de Juno Protetora se tornarem comuns aos municípios
de Lanúvio e ao povo romano. Os habitantes de Arícia, de
Nomento e de Pedo receberam o mesmo direito de cidadania
que os de Lanúvio. Os tusculanos conservaram a cidadania,
que já possuíam, e o povo ficou livre da acusação pelo crime
de revolta, que apenas recaiu sobre alguns chefes. Os veliternos,
antigos cidadãos romanos, foram punidos severamente por suas
sucessivas rebeliões. Suas muralhas foram derrubadas, seus
senadores afastados e compelidos a habitar do outro lado do
Tibre. Aquele que fosse surpreendido aquém do Tibre estaria
sujeito ao pagamento de uma multa de até mil asses e perma-
neceria sob a guarda da pessoa que o encontrasse até o paga-
mento da dívida. Novos colonos foram enviados para ocupar
as terras dos senadores. Sua inscrição entre os habitantes devol-
veria a Velitras o antigo aspecto de cidade populosa. Áncio
também recebeu novos colonos e os anciatos tiveram permjssão
para inscrever-se entre eles, caso o desejassem. As grandes
emba rcações foram afastadas do porto e o mar interditado aos
anciatos. Eles, porém, receberam o direito de cidadania. Os
tiburtos e prenestinos foram privados de uma parte de seu
território, não por causa da recente revolta - criminosa, sem
dúvida, mas em cumplicidade com todos os latinos - mas
por terem outrora, por aversão ao poder de Roma, associado
suas armas às do povo selvagem dos gau leses. Os demais povos
latinos foram proibidos de unir-se entre si pelo matrimônio,
de manter relações comerciais e de reunir-se em assembléias.
Os campânios, pela atitude tomada por seus cavaleiros, que
se haviam negado a acompanhar os latinos na revolta, e os
fundanos e formianos , que sempre haviam consentido e prote-
gido a passagem dos romanos por seus territórios, receberam
o direito de cidadania, mas sem direito ao voto. Os habitantes
de Cumas e de Suéssula tiveram os mesmos direitos e as mesmas
regalias dos de Cápua. Parte das naus dos anciatos foi levada
para os arsenais de Roma e parte foi incendiada. Os rostros
162
HISTóRIA DE ROMA
·crvi ram para ornamentar uma tribuna erguida no Fórum . Esse
local consagrado 12 passou a chamar-se Rastros.
Condenação da vestal Minúcia. 15. No consulado
Nomeação do primeiro pretor plebeu. de Caio Sulpício
Longo e de Públio
€1io Peto, quando a paz já estava consolidada pelo poderio
de Roma e pela gratidão por seus benefícios. eclodiu uma guerra
entre os sidicinos e os auruncos.
Os auruncos não se haviam manifestado desde que o
cônsul Tito Mânlio recebera sua renrução, motivo mais do que
justo para pedirem auxílio aos romanos. Mas antes que os
cônsules fizessem o exército sair de Roma (porque o Senado
dera ordem de defender os auruncos) receberam a notícia de
que eles haviam abandonado a cidade, amedrontados, refu-
giando-se com suas mulheres e filhos em Suessa, onde se haviam
fortificado, e que por isso agora se chama Aurunca.
As antigas muralhas da cidade tinham sido destruídas pelos
sidicinos. Irritados contra os cônsules cuja lentidão havia traído
os aliados, os senadores decretaram a nomeação de um ditador.
Foi nomeado Caio Cláudio Regilense, que escolheu Caio Cláu-
dio Hortator para comandante da cavalaria. Surgiu, porém, um
problema religioso em relação a esse ditador. Como os áugures
declarassem que sua nomeação parecia viciosa, o ditador e o
comandante da cavalaria abdicaram de seu cargo.
Naquele ano, a vestal Minúcia, que já se tornara suspeita
por seus trajes excessivamente mundanos, foi denunciada aos
pontífices pelo testemunho de um escravo. Os pontífices, por
um decreto, ordenaram-lhe que se abstivesse do exercício de
suas funções religiosas e permanecesse cercada por suas escra-
vas. Realizado o julgamento, a vestal foi enterrada viva perto
da porta Colina, à direila da rua pavimentada no Campo Cele-
rado, assim chamado, creio, por causa do crime da vestal. Nesse
12 . Em latim templum . Esse nome era dado a qualquer local con-
sagrado pelos áugures.
163
 TITO LfVJO
mesmo ano Quinto Públio Filo foi nomeado pretor, primeiro
plebeu eleito para esse cargo, apesar da oposição do cônsul
Sulpfcio, que se negava a reconhecer essa nomeação. O Senado,
que não conseguira excluir os plebeus das mais altas dignidades,
não se interessou muito no caso da pretura.
Campanha contra os sidicinos. 16 . No ano seguinte,
Triunfo de Marco Valério Corvo. o consulado de Lúcio
Papfrio Crasso e de Ce-
so Duílio distinguiu-se pela novidade, mais do que pela im-
portância, de uma guerra contra os ausões. Esse povo habitava
a cidade de Cales e havia unido suas armas às de seus vizinhos.
os sidicinos. Um único combate, pouco memorável, dispersou
os exércitos dos dois povos. A proximidade de suas cidades,
além de tornar a fuga mais fácil tornava-a também mais garan-
tida. Entretanto, o Senado não deixou de preocupar-se com essa
guerra porque os sidicinos já haviam inúmeras vezes empunha-
do armas por sua própria iniciativa, levado auxílio aos que o
faziam ou ocasionado a guerra. Por esse motivo, o Senado lan-
çou mão de todos os recursos para nomear cônsul pela quarta
vez Marco Valério Corvo, o maior general daquela época, e lhe
deu como colega Marco Atílio Régulo. Temendo os azares da
sorte, pediu-se aos cônsules que, sem realizar o sorteio, o co-
mando da campanha contra os sidicinos fosse confiado a Corvo.
Tendo recebido dos cônsules precedentes um exército vito-
rioso, Corvo marchou contra Cales, onde a guerra se originara.
Ao primeiro grito, ao primeiro assalto, conseguiu desbaratar
seus inimigos ainda amedrontados com a lembrança do combate
anterior e decidiu atacar as próprias muralhas. Tal era o ardor
dos soldados que queriam encostar imediatamente as escadas
nos muros , certos de que os transporiam. Corvo, porém, achava
a tarefa difícil, preferindo fazer seus soldados trabalharem a
expô-los ao perigo e levar a termo seu empreendimento. Mandou
então erguer terraplenos e parapeitos, e aproximar as torres das
muralhas. Mas uma oportunidade feliz o dispensou de usá-las.
Marco Fábio, prisioneiro romano, aproveitando-se da negli-
gência dos guardas num dia de festa , rompeu as cadeias e escor-
164
HISTORIA DE ROMA
regou até o local onde trabalhavam os romanos, servindo-se
de uma corda atada a uma ameia da muralha. Convenceu o
general a atacar os inimigos entorpecidos pelo vinho e pelas
iguarias. Os romanos tiveram tanta facilidade em capturar os
ausões e sua cidade quanto em dispersá-los na batalha campal.
Foram imensos os despojos tomados. O cônsul deixou uma
guarnição em Cales e reconduziu as legiões a Roma, onde des-
filou em triunfo, por decreto do Senado. Finalmente, para que
Atílio não ficasse prejudicado em sua glória, os dois cônsules
receberam ordem de marchar com o exército contra os sidi-
cinos.
Antes de partir, e em decorrência de um senadoconsulto,
nomearam Lúcio EmOio Mamercino ditador, para presidir às
eleições, o qual nomeou Quinto Públio Filo comandante da
cavalaria. Nas eleições presididas pelo ditador, foram eleitos
os cônsules Tito Vetúrio e Espúrio Postúmio.
Embora ainda não tivesse terminado completamente a
guerra com os sidicinos, os cônsules propuseram ao Senado o
envio de colonos para Cales, antecipando-se com esse benefício
aos desejos da plebe. Como um senadoconsulto tivesse determi-
nado que se inscrevessem dois mil e quinhentos colonos para essa
cidade, foram nomeados triúnviros, para conduzir os colonos e
dividir as terras, Ceso Duílio, Tito Qüíncio e Marco Fábio.
Rumores de guerra. 17 . Depois de receber dos ex-
Interregno de cinco anos. cônsules o comando do exérci-
to, os novos cônsules invadiram
o território inimigo e , devastando-o, chegaram até as muralhas
da cidade. Ali se achava reunido o imenso exército dos sidi-
cinos, que parecia disposto a uma luta decisiva, sua última
esperança. Além disso, corria a notícia de que o Sâmnio tam-
bém fora concitado a tomar parte na guerra. Por decisão do
Senado, os cônsules nomearam ditador Públio Cornélio Rufino
e comandante da cavalaria Marco Antônio. Sobrevieram porém
escrúpulos religiosos com respeito a essas nomeações, considera-
das viciosas, e eles abdicaram de seu cargo. Como irrompesse
uma epidemia, acreditou-se que todos os auspícios estavam con-
165
 TITO LfVIO
taminados pelo mesmo vício, e recorreu-se a um interregno. So-
mente o quinto inter-rei desse interregno, Marco Valéria Corvo,
é que nomeou cônsules a Auto Cornélio, pela segunda vez, e
Cneu Domício.
Reinava tranqüilidade quando o simples rumor de uma
guerra com os ga uleses pareceu bastante grave para se julgar
necessária a nomeação de um ditador . Foi nomeado Marco Pa-
pírio Crasso e, como comandante da cavalaria, Públio Valéria
Publícola. Mas enquanto esses magistrados faziam o recruta-
mento com maior cautela do que a normal em guerras contra
povos vizinhos, os observadores enviados trouxeram a notícia
de que tudo estava calmo no território gaulês.
Há mais de um ano suspeitava-se de projetos de sublevação
por parte dos samnitas, e por esse motivo o exército romano não
abandonou o território dos sidicinos. Mas a guerra de Alexandre
do Epiro atraiu os samnitas à Lucânia, e esses dois povos reuni-
ram seus exércitos travando combate contra o rei, quando este
desembarcava em Pesto. Vitorioso no combate, ~lexandre f~z
a paz com os romanos, sem que se possa garantir como tena
ele mantido esse compromisso se tivesse tido sempre o mesmo
[ êxito.
Nesse mesmo ano, realizou-se o recenseamento, no qual
foram incluídos os novos cidadãos, entre os quais as duas tribos
de Mécia e Escápcia. Essa inclusão foi feita pelos censores
Quinto Públio Filo e Espúrio Postúmio. Por uma lei proposta
pelo pretor Lúcio Papírio, os acerranos tornaram-se romanos.
Essa lei lhes dava a cidadania, mas sem direito de voto.
Esses foram os fatos ocorridos no interior e no exterior
durante aquele ano.
Envenenamento em Roma. I 8 . Funesto foi o ano que
se seguiu, quer pela inclemên-
cia do céu, quer pela perfídia dos homens, no consulado de
Marco Cláudio Marcelo e de Caio Valéria. O cognome de um
dos cônsules varia conforme os anais: ora encontro Flaco, ora
Potito. Pouco importa a verdade em relação a este ponto. Gos-
taria. pois nem todos os historiadores relatam esse fato, que
166
HISTôRIA DE ROMA
tivesse havido engano ao atribuir-se ao veneno a mortandade
daquele ano que se tornou célebre como um ano d ~mia.
Contudo, exporei os fatos tal como foram relatados, sem pôr
em dúvida a autoridade das testemunhas.
Como os principais cidadãos do Estado morriam da mesma
doença e quase todos com o mesmo sintoma, uma escrava
procurou Quinto Fábio Máximo, edil curul, e declarou-lhe que
revelaria a causa daquele flagelo público se lhe garantisse que
nada sofreria por sua denúncia. Fábio relatou imediatamente o
fato ao cônsul, os cônsules ao Senado, e esse órgão concordou
em garantir a impunidade da escrava. Ela revelou então que
a desolação da cidade se devia à perfídia das mulheres. As
matronas romanas é que preparavam os venenos e, se quisessem
segui-la, poderiam surpreendê-las no ato.
Acompanharam a delatora e foram encontrar algumas mu-
lheres cozinhando drogas . Acharam mesmo muitos venenos cui-
dadosamente escondidos, que foram levados ao Fórum. Cerca
de vinte matronas, em cujas casas haviam encontrado as drogas,
foram também conduzidas ao Fórum pelo viador. Como duas
entre elas, Cornélia e Sérgia , ambas de família patrícia, afir-
massem que se tratava de medicamentos saudáveis, a escrava,
afirmando o contrário, convi dou-as a tomá-los para provar que
mentira. Pediram então alguns momentos para decidir. O público
se afastou e elas confabularam com as outras acusadas, que
não se recusaram a beber as drogas. Assim, à vista dos presentes ,
depois de ingeri r o medicamento, todas pereceram vítimas de
seu próprio crime. Presas imediatamente, suas cúmplices denun-
ciaram grande número de matronas das quais cerca de cento
e setenta foram condenadas. Em Roma, até aquela data, nunca
tinha havido inquéritos por causa de envenenamento. O caso
foi considerado como um prodígio: tratava-se de mentes pertur-
badas e não de criminosas. Por isso, como os anais regi strassem
que outrora, por ocasião das secessões da plebe, o ditador
pregava um prego e as mentes dos homens perturbado~ pela
discórdia voltavam ao equilíbrio, decidiu-se nomear um d1tador
para realizar essa cerimônia. Nomeado ditador. Cneu Oüíncio
167
 TITO I IVIO
de ignou Lúcio Valéria para comandante da cavalaria . Ambos
abdicaram de sua magistratura após a realização da cerimônia.
Vitória dos romanos 19 . Lúcio Papírio Crasso, pela se-
contra os fundanos. gunda vez, e Lúcio Pláucio Venócio
foram eleitos cônsules. No início do
ano, embaixadores de dois povos volscos, os fabraternos e os
lucanos, vieram a Roma pedir que os colocassem sob sua prote-
ção. Se fossem protegidos contra o exército samnita, prometiam
fidelidade e obediência ao povo romano. O Senado enviou lega-
dos os samnitas para aconselhá-los a abster-se de violências con-
tra esses povos. A delegação obteve resultados, não porque os
samnitas desejassem a paz. mas porque ainda não estavam prepa-
rados para a guerra .
. No mesmo ano travou-se guerra contra os privernatos, que
unham como aliados os fundanos . O próprio general era um
fundano , Vitrúvio Vaco, célebre não só em seu país, mas também
em Roma, pois possuía uma casa no Palatino, no terreno que
depois se chamou Prados de Vaco, quando a casa foi derrubada
e o terreno confiscado.
Lúcio Papírio marchou contra esse adversário que levava
a devastação aos territórios de Sécia, Norba e Cora, e estabele-
ceu-se a pouca distância de seu acampamento. Diante de um
inimigo mais forte, Vitrúvio não teve nem bom senso e paciência
de permanecer em suas trincheiras, nem coragem suficiente para
combater longe de seu acampamento. Enfileirou seu exército
diante da porta do acampamento, de modo que os soldados
estavam mais interessados na possibilidade de fuga do que no
combate ou no inimigo. Assim, sem prudência e sem entusiasmo,
travou a _luta. Incontestavelmente foi vencido em breve espaço
de tempo, mas a curta distância e fácil acesso ao acampamento
permitiram-lhe preservar seus soldados de grande massacre, sem
maiores dificuldades. Raros foram os que tombaram na própria
peleja e muito poucos na confusão da debandada, quando a
multidão se precipitava no acampamento. Ao cair da noite, essa
tropa desorganizada refugiou-se em Priverno, atrás de suas
muralhas, abrigo mais seguro do que as trincheiras.
168
HISTORIA DE ROMA
De Privemo, o segundo cônsul, Pláucio, depois de devastar
indistintamente os territórios, carregado de despojos. marchou
com o exército para o território dos fundanos, e ao atravessar-
lhe as fronteiras os senadores fundanos saíram-lhe ao encontro.
Disseram que não tinham vindo suplicar por Vitrúvio e seus
partidários, mas pelo povo fundano que o próprio Vitrúvio
havia julgado isento de culpa naquela guerra, como muito bem
o demonstrara ao refugiar-se em Privemo e não em Fundos.
sua pátria. Portanto, era em Privemo que deveriam ser pro-
curados e perseguidos os inimigos do povo romano , que haviam
traído simultaneamente os fundanos e os romanos, desprezando
suas duas pátrias. Em Fundos reinava a paz e sentimentos de
gratidão aos romanos pelo direito de cidadania concedido aos
seus habitantes. Rogavam ao cônsul que livrasse um povo ino-
cente dos horrores da guerra. Suas terras, suas cidades, suas
próprias pessoas, mulheres e filhos estavam e permaneceriam
sob o poder do povo romano.
Depois de ter felicitado os fundanos , o cônsu l escreveu
a Roma dizendo que eles se conservavam fiéis, e marchou
contra Privemo. Segundo Cláudio, antes de partir o cônsul
aprisionou os chefes da conspiração e enviou como prisioneiros
a Roma cerca de trezentos e cinqüenta conspiradores. O Senado
porém não aceitou aquele ato de submissão, por pensar que o
povo fundano havia querido reparar sua falta às custas daqueles
pobres e humildes cidadãos .
Vitória sobre os privernates. 20 . Enquanto os dois exér-
Execução de Vitrúvio Vaco. citos consulares sitiavam Pri-
vemo, um dos cônsules foi
chamado a Roma para presidir as eleições. Nesse ano, pela pri-
meira vez, foram construídos cárceres no circo para guardar os
carros.
Os romanos ainda não se haviam livrado da preocupação
com a guerra contra os privernates quando se difundiu a terrível
notícia de uma invasão gaulesa, notícia que sempre alarmou o
Senado. Por isso os novos cônsules, Lúcio Emílio Mamercino
e Caio Pláucio. no mesmo dia ( 1.0 de julho) em que tomaram
169
 TITO UVIO
posse do cargo, receberam ordem de repartir entre si o comando.
Mamercino, a quem coubera a luta contra os gauleses, deveria
recrutar um exército, sem conceder qualquer dispensa. Diz-se
que foi alistada até mesmo a multidão de artesãos e trabalha-
dores sedentários, classe muito pouco apta para o serviço mi-
litar. Reuniu-se em Véios um grande exército que deveria mar-
char contra os gau leses. Esse exército porém não teve permissão
de ir mais longe, por recear-se que em sua marcha sobre Roma
o inimigo escapasse por outros caminhos.
Alguns dias mais tarde, depois de verificar-se que daquele
lado tudo se achava calmo, as força s destinadas à luta contra
os gauleses foram dirigidas contra Privemo. A partir desse
ponto há duas versões: para uns, a cidade foi tomada de assa lto
e Vitrúvio capturado pelos romanos ; para outros, os sitiados,
sem esperar o último ataque, conduzindo à frente um caduceu 13 ,
submeteram-se às ordens do cônsul e entregaram Vitrúvio.
Consultado sobre Vitrúvio e os privernates, o Senado or-
denou ao cônsul Pláucio que arrasasse as muralhas de Priverno,
estabelecesse uma forte guarnição na cidade e voltasse para
receber as honras do triunfo. Ordenou também que conservassem
Vitrúvio no cárcere até o regresso do cônsul e depois o açoi-
tassem e executassem. Sua casa, que se erguia no Palatino, seria
demolida e seus bens consagrados a Semo Sanco 14 • Com o
dinheiro obtido. mandar-se-iam fabricar globos de bronze que
seriam colocados no santuário de Sanco em frente do templo
de Quirino. Quanto ao Senado privernato tomou-se a seguinte
decisão: todos os senadores que haviam permanecido em Priver-
no após sua sublevação contra Roma deve riam habitar além
do Tibre. nas mesmas condições dos veliternos.
t 3 . Vara encimada de duas asas com duas serpentes entrelaçadas.
rormando um Arco na extremidade. Era atributo de Mercúrio, mensa-
geiro de Júpiter. c por isso também div indade protetora de arau to e
parlamentares.
14 . Divindade protetora dos juramentos, muitas vezes conrundida
com o deus Fídio. Possuía um santuário no Quirinal. onde se guarda vam
certos tratados.
170
HISTORIA DE ROMA
Após esses decretos e até o triunfo de Pl áucio, reinou
silêncio em relação aos privernates. Mas depois do triunfo e
da execução de Vitrúvio e seus cúmplices, o cônsul, julgando
que o suplfcio dos culpados havia saciado o desejo de vingança
e já era possível falar sobre os privernates, disse: " Uma vez
que os instigadores da sublevação receberam o castigo mere-
cido dos deuses imortais e de vós, senadores, que desejais que
se faça com a multidão de inocentes? Na verdade, embora meu
papel seja antes de pedir do que de dar conselhos, quando
vejo que os privemates são vizinhos dos sarnnitas, cuja paz
conosco é tão incerta no momento, desejaria que ficasse entre
eles e nós o mínimo de ódio possível".
Decisão do Senado romano 21 . A decisão em si já era \
em favor dos privemates. difícil, pois cada um, de acor- I
do com seu temperamento.
reagia aos conselhos com severidade ou indulgência. quando
um embaixador privernate tornou a resolução mais difícil ain-
da ao dar maior importância à condição em que havia nas-
cido do que à situação embaraçosa do momento. Como certo
senador que apoiava uma decisão severa lhe perguntasse que
castigo julgava que os privem ates mereciam, ele respondeu :
u Aquele que merecem os homens que se julgam dignos da liber-
dade ".
Ao ver que aquela resposta orgulhosa aumentava a hosti-
lidade dos senadores já predispostos a combater a causa dos
privernatos, o cônsul fez-lhe uma pergunta amável. a fim de
obter uma resposta mais branda : " Então? Se nós vos perdoás-
semos o castigo, que espécie de paz poderíamos esperar de vós?"
Ao que o outro respondeu : " Se no-la derdes honrosa. será
garantida e eterna; se desonrosa, não será duradoura ·•.
Alguns senadores bradaram que o privernato proferira uma
verdadeira ameaça e que suas palavras incitavam os povos
submetidos à sublevação. Mas a ala mais moderada do Senado
interpretou sua resposta num bom sentido. As palavras que
acabavam de ouvir, diziam eles, eram próprias de um homem
valoroso c livre. Como acreditar que algum povo. a lgum homem
17 1
 TITO LIVIO
enfim, quisesse permanecer numa condição desagradável por
mais tempo do que o necessário? A paz estaria garantida desde
o momento em que fosse aceita voluntariamente. Mas não se
deveria esperar fidelidade de um povo que se pretendia manter
na servidão. O cônsul procurava influenciar os espíritos nesse
sentido, dirigindo-se inúmeras vezes, em voz alta, aos ex-cônsu-
les, que l!ram os primeiros a votar, de modo a poder ser ouvido
por outras pessoas. Dizia que só eram dignos de se tornarem
romanos aqueles que punham sua liberdade acima de tudo.
Assim, os privernates tiveram ganho de causa no Senado. Além
disso, por decisão dos senadores, foi apresentada ao povo uma
proposta para que lhes fosse dado o direito de cidadania.
Nesse mesmo ano foram enviados a Anxur trezentos colo-
nos, que receberam duas jeiras de terra cada um.
Declaração de guerra 22 . No ano seguinte, no consu-
aos palepolitanos. lado de Públio Pláucio Próculo e
Públio Cornélio Escápula, nenhum
acontecimento digno de nota ocorreu no interior nem no ex-
terior. Foram enviados colonos a Fregelas, cujo território ha-
via pertencido primeiro aos segninos e depois aos volscos. Mar-
co Flávio distribuiu ao povo a carne das vítimas imoladas por
ocasião dos funerais de sua mãe. Houve quem dissesse que, sob
pretexto de homenagear sua mãe, ele pagava uma dívida ao povo
por tê-lo absolvido de uma acusação dos edis pelo crime de ter
desonrado uma matrona romana. Essa distribuição de carne feita
em gratidão por um antigo favor valeu-lhe um cargo. Nas pri-
meiras eleições para o tribunato da plebe, ele foi escolhido em
detrimento de outros candidatos, embora estivesse ausente.
Palépolis ficava a pouca distância do local onde hoje está
situada Nápoles, sendo essas duas cidades habitadas por um
mesmo povo originário de Cumas. Os cumanos são oriundos
de Cálcide na Eubéia. Com a frota que os trouxera de seu
país, eles se haviam tornado poderosos na costa marítima que
habitavam. Tendo desembarcado primeiro nas ilhas de Enária
e Pitecusa, ousaram em seguida estabelecer-se no continente.
172
HISTORIA DE ROMA
Esse povo, confiante em suas forças e na aliança com os
samnitas, infiéis aos romanos, ou na epidemia que, segundo se
dizia, acabara de irromper em Roma, praticou inúmeros atos
de hostilidade contra os romanos estabelecidos nos territórios
da Campãnia e de Falemo. Por isso, no consulado de Lúcio
Comélio Lêntulo e de Quinto Públio Filo, eleitos pela segunda
vez, os feciais foram enviados a Palépolis para tomar satisfações
por aquelas hostilidades. Como trouxessem uma resposta arro-
gante daquela nação grega, mais importante por sua língua do
que por seus feitos, o Senado propôs e o povo concordou que
se declarasse guerra aos palepolitanos.
Os cônsules repartiram o comando e a guerra com os
gregos coube a Públio. Cornélio, com o outro exército, enfrenta-
ria os samnitas caso eles se mobilizassem. E como corria o rumor
de que os últimos, aproveitando-se da sublevação dos campâ-
nios, estabeleceriam seu acampamento naquelas vizinhanças,
Comélio julgou mais conveniente estabelecer também seu acam-
pamento naquele local.
Ameaças dos samnitas. 23. Os dois cônsules informaram
o Senado sobre a pouca esperan-
ça que tinham de manter a paz com os samnitas. Públio anun-
ciara em Roma que dois mil soldados nolanos e quatro mil sam-
nitas, mais por imposição dos nolanos do que por vontade dos
gregos, haviam chegado a Palépolis. Por sua vez Comélio anun-
ciara que os magistrados haviam ordenado o recrutamento de
tropas. Todo o Sâmnio estava em armas, e era evidente que ten-
tava sublevar os povos vizinhos : privemates, fundanos e for-
mianos. Por esse motivo, resolveu-se enviar embaixadores aos
samnitas antes que a guerra começasse.
Os samnitas deram uma resposta insolente. Acusavam os
romanos de ultraje e procuravam justificar-se dos que se lhes
imputavam. Nada havia de oficial a respeito de conselhos ou
ajuda aos gregos. Tampouco tinham tentado atrair Fundos ou
Fórmias, pois de modo algum careciam de forças para fazer
a guerra. Além disso, não podiam dissimular que o Estado
samnita dificilmente suportava que Fregelas, por eles tomada aos
173
 TITO LfVIO
volscos e destruída, tivesse sido reedificada pelo povo romano
e se houvesse imposto ao território samnita uma colônia romana
a que os colonos chamavam de Fregelas. Eles empenhariam
todos os esforços para reparar esse ultraje, essa injúria, caso
não o fizessem seus responsáveis. Como o embaixador romano
propusesse que se chamassem aliados ou amigos comuns, para
decidir a questão, o samnita disse:
"Por que agirmos com tantos rodeios? Nossas dissensões,
romanos, não podem terminar nem por discursos de embai-
xadores, nem por mediação de árbitros. As planícies da Cam-
pânia, onde teremos de combater, as armas e Marte, deus da
guerra comum aos dois povos, decidirão. Estabeleçamos nossos
acampamentos frente a frente, entre Cápua e Suéssula, e deci-
damos quem governará a Itália, os samnitas ou os romanos".
Os embaixadores romanos responderam que iriam não
aonde o inimigo os convocasse, mas aonde os conduzissem seus
generais ( ... ) t5
Públio já havia tomado posição favorável entre Palépolis
e Nápoles, impedindo que esses inimigos, aliados entre si, pres-
tassem auxílio um ao outro, como costumavam fazer quando uma
das cidades era atacada. Aproximava-se, porém, o dia das elei-
ções e o afastamento de Púbtio, no momento em que estava
na iminência de atacar as muralhas inimigas e acalentava a
esperança de tomar em breve a cidade, não era conveniente aos
interesses do Estado. Houve então entendimento com os tribunos
para que eles propusessem ao povo que, após o término de
seu consulado, Quinto Públio Filo permanecesse à frente das
operações até o fim da guerra contra os gregos, com o título
de procônsul. Por sua vez, Lúcio Cornélio já havia penetrado
em território samnita e, como tampouco não era conveniente
detê-lo em sua marcha, foi-lhe enviada uma carta para que
nomeasse um ditador que presidisse as eleições. Ele nomeou
Marco Cláudio Marcelo, que escolheu Espúrio Postúmio para
comandante da cavalaria . O ditador entretanto não presidiu
15 . Considerlivel lacuna no texto.
174
HISTORIA DE ROMA
11 eleições, tendo havido um inquérito para apurar se a eleição
nu fora viciosa. Os áugures consultados declararam que parecia
viciosa a eleição daquele ditador. Os tribunos, com suas acusa-
t;oc , despertaram suspeitas e lançaram o descrédito sobre essa
declaração. Não era um " vício" fácil de conhecer, diziam eles,
uma vez que o cônsul se levantara e no silêncio da noite
nomeara o ditador. O cônsul a ninguém escrevera sobre o
ussunto, nem oficialmente nem em caráter privado. Não havia
um só mortal que afirmasse ter visto ou ouvido algo que pudesse
invalidar o auspício, e os áugures em Roma não podiam ter
odivinhado uma irregularidade ocorrida no acampamento do
cônsul. Quem não percebia que aos olhos dos áugures o que
parecia " vício" era ser o ditador um plebeu?
Apesar desses e de outros argumentos apresentados pelos
tribunos passou-se a um interregno. Por um ou outro motivo,
adiaram-se as eleições e somente o décimo quarto inter-rei, Lúcio
Em{lio, foi que nomeou cônsules Caio Petélio e Lúcio Papírio
Mugilano (ou Cursor, segundo alguns anais) .
Morte de Alexandre, 24 . Diz-se que nesse mesmo ano
rei do Epiro. foi fundada Alexandria, no Egito, e
assassinado Alexandre, rei do Epi-
ro, por um exilado tucano. A profecia de Júpiter de Dodona foi
assim confirmada pelo fato .
Quando os tarentinos chamaram Alexandre à Itália, o
oráculo o advertiu que tivesse cuidado com a água de Aquerúsia
e com a cidade de Pandósia, porque ali estaria o fim de seu
destino. Alexandre apressou-se em dirigir-se à Itália, a fim
de se afastar o mais possível de Pandósia , no Epiro. e do rio
Aqueronte, que corre da Molóssida através dos Pântanos Infer-
nais e se lança no golfo de Tesprócia. Mas (como em geral
acontece que, ao tentar escapar ao destino, nele as pessoas
se precipitam) depois de derrotar inúmeras vezes as legiões
brútias e lucanas, de tomar Heracléia, colônia de Tarento, aos
tucanos, Siponto, aos apúlios, Consência, aos brútios, Terina
e outras cidades da Messápia e da Lucânia, depois de ter enviado
175
 TITO LIVJO
ao Epiro trezentas famílias ilustres que contava entre seus reféns,
marchou para ocupar Pandósia, cidade que dominava a Lucânia
e o Brútio, e estabeleceu-se em três colinas pouco distantes uma
da outra, donde partiria para fazer incursões em todos os
pontos do território inimigo.
Em torno de Alexandre reuniam-se cerca de duzentos exi-
lados lucanos que ele considerava fiéis, mas cujo caráter volúvel,
como o de quase todos os habitantes do país, mudava de acordo
com a sorte. Chuvas contínuas, inundando toda a planície,
haviam interrompido as comunicações entre os três batalhões
do exército, impedindo-os de socorrer-se mutuamente. Dois ba-
talhões foram atacados de surpresa pelo inimigo e esmagados,
mas o rei não se encontrava em nenhum deles. Após esse mas-
sacre, todos se voltaram para cercar o próprio rei.
Os exilados lucanos enviaram então mensageiros a seus
compatriotas e negociaram seu regresso à pátria prometendo
entregar o rei vivo ou morto. Ele, porém, com uma tropa de
escol e num brilhante golpe de audácia, irrompeu no meio das
fileiras inimigas e matou o general Jucano num combate corpo
a corpo. Em seguida, reunindo seus soldados que se haviam
dispersado na fuga, chegou a um rio onde a recente ruína de
uma ponte que fora destruída pela violência das águas indicava
o caminho. A coluna avançava por um vau perigoso quando um
soldado, cansado de temores e lutas, increpando o nome abomi-
nável do rio, exclamou: "Com razão te chamam Aqueronte!"
Ao ouvir aquele nome, o rei imediatamente lembrou-se de
seu destino e estacou, na dúvida se o atravessava ou não. Sótimo,
seu servidor e um dos pajens reais, perguntou-lhe então por
que hesitava em momento tão perigoso e advertiu-o de que
os lucanos procuravam uma ocasião para lhe armar uma cilada.
Quando o rei se voltou e os viu aproximar-se em bando,
sacou da espada e esporeou o cavalo para o meio do rio. Já
conseguira sair do vau quando um dardo lançado à distância
por um exilado lucano o transpassou e derrubou . Com o dardo
ainda preso em seu corpo sem vida, foi arrastado até os postos
inimigos, onde o mutilaram horrivelmente. Os soldados corta-
176
HJSTORIA DE ROMA
tnm no ao meio , enviaram uma metade a Consência, ficando
l'Oillo outra metade para se divertirem. Atiravam-lhe de longe
durdos c pedras, quando uma mulher penetrou naquela mul-
t•duo cuja fúria ultrapassava os limites da cólera humana, e
p ·diu-lhes que parassem um pouco. Em prantos, declarou que
' ·u marido e seus filhos estavam prisioneiros do inimigo. Espe-
' nvo resgatá-los com o corpo do rei, embora mutilado. Com
i~>so terminou a mutilação, e o que restou daqueles membros
dilacerados foi enterrado 18 em Consência graças aos cuidados
daquela mulher. Os ossos foram enviados ao inimigo em Meta-
ponto. De lá foram transportados para o Epiro e entregues a
~> uo mulher Cleópatra e sua irmã Olímpia, uma das quais era
mãe e a outra irmã de Alexandre, o Grande 17 •
Sobre o triste fim de Alexandre do Epiro limito-me a essas
poucas palavras, uma vez que ele combateu na Itália, embora
eu destino o tenha impedido de guerrear contra os romanos .
Estratégia dos chefes palepolitanos 25 . No mesmo ano
Carilau e Nínfio. realizou-se em Roma
o quinto lectistérnio 18
após a fundação da cidade, para aplacar os mesmos deuses de
outrora. Em seguida os novos cônsules, depois de terem enviado
emissários, por ordem do povo. para declarar guerra aos samni·
16 . Sepultum , no texto. Entretanto, pelo que se segue . seria de
esperar "incinerado" ao invts de "enterrado".
I 7 . Alexandre. o Grande. era filho de Olfmpia e, por conseguinte,
sobrinho de Alexandre do Epiro. Mas era tambtm seu cunhado, uma
vez que este desposara sua sobrinha Cleópatra. irmã de Alexandre. o
Grande.
18 . De lectus (leito) e sternere (estender). Era uma cerimônia re-
ligiosa cujo objetivo era apaziguar a cólera dos deuses. Durante vários
dias oferecia-se um banquete às principais divindades. a expensas do
Estado. Em um de seus templos colocava-se uma mesa com os leitos ao
redor, cobertos de belos tapetes e de ricas almofadas. Sobre eles espar·
ziam-se nores e plantas aromáticas e colocavam-se as imagens dos deuses
convidados. As deusas eram colocadas apenas em tronos. Enquanto durava
a festa eram servidas magnffic.as refeições que os sacerdotes levavam
para suas casas no fim do dia.
177
 TITO LfVIO
tas, fizeram todos os preparativos com maior empenho ainda do
que na luta contra os gregos. Além disso, novos aliados com os
quais ninguém havia contado vieram aumentar as forças. Os
lucanos e os ápulos, nações que até aquele dia nenhum relacio-
namento haviam tido com o povo romano, colocaram-se sob a
proteção de Roma , prometendo armas e homens para a guerra,
e um tratado selou sua amizade. Na mesma ocasião, a guerra
nos favorecia no Sânio. Três cidades caíram em poder dos roma-
nos: Alifas, Califas e Rúfrio. O resto do território, à chegada
dos cônsules, foi devastado em todas as direções.
Enquanto essa guerra se iniciava de um modo tão propício,
a outra guerra, em que os gregos continuavam sitiados, chegava
ao fim. Com efeito, interceptadas suas comunicações e divididas
suas forças, o inimigo tinha de suportar dentro de suas muralhas
s~frimentos mais terríveis do que os que temiam do exterior:
prisioneiro, por assim dizer, de seus próprios defensores, tinha
de tolerar os ultrajes feitos a suas esposas e até mesmo a seus
filhos, enfim, todas as misérias de uma cidade conquistada.
Quando correu a notícia da chegada de novos socorros de
Tarento e do Sâmnio, os gregos julgaram que já havia dentro
de suas muralhas mais samnitas do que seria desejável. Espera-
vam porém que os jovens tarentinos, gregos como eles próprios,
os protegeriam tanto contra os nolanos e samnitas quanto contra
os romanos, seus inimigos. Finalmente, pareceu-lhes que o menor
dos males seria renderem-se aos romanos.
Carilau e Nínfio, principais homens da cidade, armaram
um plano de comum acordo e dividiram as tarefas para pô-lo
em prática : um deles deveria apresentar-se como desertor ao
general romano, enquanto o outro permaneceria na cidade a
fim de prepará-la para os objetivos de seu plano. Foi Carilau
quem se apresentou a Públio Filo e (fazendo votos para que
sua atitude fosse para o bem, o interesse e a felicidade dos
palepolitanos e do povo romano) disse-lhe que estava decidido
a entregar-lhe a cidadela. Dependeria da boa-fé dos romanos
que seu gesto fosse considerado de traição ou de devoção à
pátria. Para si mesmo em particular nada exigia , nada pedia.
178
HISTORIA DE ROMA
Mas para seu país pedia, mais do que exigia, que se sua empresa
Co se bem-sucedida o povo romano pensasse apenas na abne-
gação e no perigo que tiveram de enfrentar para readquirir
ua amizade, e não na loucura e imprudência que haviam afas-
wdo os palepolitanos de seu dever.
O general felicitou-o e deu-lhe três mil soldados para ocupar
n parte da cidade onde se haviam estabelecido os samnitas. Essa
tropa foi entregue ao comando de Lúcio Qüíncio, tribuno
militar.
Fim da campanha contra 26 . Ao mesmo tempo Nínfio
os palepolitanos. usava de toda sua astúcia jun-
to ao pretor dos samnitas. Se
lhe permitissem utilizar-se de uma frota, invadiria o território
de Roma e devastaria não só a orla marítima mas também os
arredores da própria cidade, uma vez que todo o exército roma-
no se achava em redor de Palépolis ou no Sâmnio. Mas para po-
der passar despercebido, teria de partir à noite e lançar os na-
vios imediatamente ao mar.
A fim de acelerar a partida, todos os jovens samnitas, exceto
a guarnição necessária à cidade, foram enviados ao litoral. En-
quanto Nínfio, em meio à escuridão, procurava ganhar tempo
dando propositalmente ordens e contra-ordens àquela multidão
de jovens que se embaraçavam uns aos outros, Carilau penetrou
na cidade com o auxílio de seus cúmplices, conforme o combi-
nado, dispôs os soldados romanos nos pontos mais elevados e
ordenou-lhes que soltassem o grito de guerra. Ao ouvi-lo, os
gregos já prevenidos por seus chefes mantiveram-se impassíveis
e os nolanos fugiram pelo lado oposto da cidade, tomando a
estrada que levava a Nota.
Embora no primeiro momento a fuga parecesse fácil aos
samnitas que se achavam fora da cidade, uma vez passado o
perigo consideraram-na vergonhosa. Sem armas, sem bagagens,
tendo deixado todos os seus pertences em poder do inimjgo,
alvo das zombarias não só dos estrangeiros mas também de
seus compatriotas, despojados e em estado de penúria, foi que
regressaram a seu país.
179
 TITO UVIO
Não desconheço a outra versão, segundo a qual a rendição
da cidade foi proeza dos samnitas. Contudo, optei pelo depoi-
mento de autores mais dignos de fé . Além disso, o tratado de
Nápoles (que estabeleceu essa cidade como a capital do Estado
grego) torna mais verossímil a idéia de que os gregos tenham
procurado espontaneamente a amizade dos romanos.
Foi concedido o triunfo a Públio, pela convicção geral
de que o inimigo procurara nossa proteção forçado pelo cerco.
Esse varão foi o primeiro a obter dua s vantagens si ngulares :
a prorrogação do mandato, que jamais fora concedida a alguém.
e o triunfo após o consu lado.
Estratagema dos 27 . Logo após, outra guerra eclodiu
jovens lucanos. contra os gregos do outro lado da I tá-
lia. Os tarentinos, que haviam manti-
do Palépolis na vã esperança de socorro, ao saberem que os
romanos se haviam apoderado da cidade, voltaram-se contra os
palepolitanos como se fossem eles os traídos e não os traidores.
Sua cólera e seu ódio aos romanos explodiram sobretudo quando
souberam que os lucanos e os apúlios (porque os tratadqs com
esses dois povos se rea lizaram no mesmo ano) haviam pedido a
aliança do povo romano. Pouco havia faltado para chegarem até
eles, diziam , e muito em breve ver-se-iam na contingência de ter
os romanos por inimigos ou senhores. Verdade era que a sorte
de seu país dependia da guerra com os sanitas. Este era o único
povo que ainda lhes resistia, mas que enfraquecera bastante
após a traição dos lucanos. Seria possível atrair os lucanos, le-
vando-os a abolir sua aliança com Roma , se soubessem usar de
astúcia e semear discórdias.
Esses arrazoados tiveram grande aceitação por parte de
alguns jovens lucanos, ansiosos por novidades, mais famosos
do que dignos de estima em seu país. Atraídos por dinheiro,
eles se açoitaram uns aos outros com varas e apresentaram-se
despidos na assembléia de seus concidadãos, bradando que, por
terem ousado penetrar no acampamento romano, os cônsules
.haviam mandado açoi tá-los e quase os decapitaram. O aspecto
disforme que apresentavam parecia realmente fruto da violência
180
Hl. TORIA DE ROMA
e não de um estratagema. Por isso a multidão sublevada exigia
aos gritos que os magistrados convocassem o Senado. Cercando
a assembléia, uns pediam a guerra contra Roma , enquanto outros
corriam aos campos para convocar seus habitantes às armas.
Mesmo os mais prudentes se deixaram arrastar no tumulto e
decidiram renovar a aliança com os samnitas, para o que envia-
ram-lhes embaixadores.
Como a decisão era repentina e sem causa aparente, tor-
nando-se por isso suspeita , os samnitas obrigaram os tucanos a
dar reféns e aceitar guarnições em suas praças fortes . Cegos
pela ira e pelo ódio, os lucanos nada lhes negaram. Logo depois
foi descoberta a fraude, quando os responsáveis pelas falsas
acusações emigraram para Tarento. Mas, tendo perdido a liber-
dade de dispor de si mesmos, só restava aos tucanos o inúti l
arrependimen to .
Supressão da 28 . Naquele ano a plebe roma-
escravidão por dívidas. na teve sua liberdade de certo
modo restabelecida , com a su-
pressão da escravidão por dívidas. Essa modificação no Di- ~
reito foi devida à infame paixão e à crueldade de um usurário
chamado Lúcio Papírio.
Caio Públio se havia entregado a Papírio como escravo
para resgatar as dívidas de seu pai. A idade e a beleza do
jovem, que deveriam ter provocado a piedade de Papírio, des-
pertaram nele uma paixão viciosa. Considerando a beleza do
jovem como um acréscimo de suas riquezas, tratou primeira-
mente de seduzi-lo com propostas obscenas. Como Públio
permanecesse surdo e desprezasse aquela indignidade, passou
a amedrontá-lo com ameaças, relembrando-lhe constantemente
sua atual condição. Finalmente, ao ver que ele pensava mais
em sua qualidade de homem livre do que em sua situação
presente, mandou que o desnudassem e trouxessem as varas.
Dilacerado pelos golpes, o jovem conseguiu escapar e correu
pelas ruas da cidade, bradando contra a infâmia e crueldade
do usurário. Uma grande multidão , comovida pela idade do
jovem e indignada com o ultraje, lembrando-se também de sua
181
 TITO LIVJO
própria condição e da de seus filhos, acorreu ao Fórum e de
lá partiu em coluna para a cúria. Forçados por aquele tumulto
imprevisto, os cônsules convocaram o Senado. A medida que
os senadores entravam, o povo se arrojava a seus pés, mos-
trando-lhes o dorso dilacerado do rapaz.
Naquele dia , em virtude da violência de um só homem,
desfez-se um dos mais fortes vínculos do crédito. Os cônsules
receberam ordem de propor ao povo que, no futuro, nenhum
cidadão ficasse sujeito à cadeia ou aos grilhões enquanto aguar-
dasse o castigo, a menos que tivesse cometido algum crime.
Os bens do devedor, e não seu corpo, responderiam pelas dívi-
das. Assim , libertaram-se todos os escravos por dívidas e toma-
ram-se providências para que, daí por diante, nenhum devedor
fosse preso. ! pelas desavenças que os levaram quase às mais extremas vio-
Guerra contra os vestinos. 29 . No mesmo ano, quan-
Vit6ria dos romanos. do a guerra com os samnitas,
a inesperada sublevação dos
tucanos e a cumplicidade dos tarentinos já eram suficientes para
preocupar os senadores, a nação dos vestinos aliou-se aos samni-
tas. Essa notícia foi muito mais assunto de vagas conversas pe-
las ruas da cidade do que matéria de debates públicos. Mas, no
ano seguinte, o cônsul Lúcio Fúrio Camilo, eleito pela segunda
vez , e Júnio Bruto Ceva reconheceram ser esse o assunto mais
importante e urgente para levar ao Senado.
Embora a matéria fosse nova, os senadores preocuparam-se
de tal modo que temiam igualmente enfrentá-la ou negligenciá-
la. Receavam que a impunidade dos vestinos lhes aumentasse a
audácia e a insolência. Por outro lado, ao puni-los com a guerra,
temiam infundir temor e cólera nos povos vizinhos, levando-os
a sublevarem-se. E todas essas nações eram tão fortes na guerra
quanto aos samn itas. Mársios, pelignos e marrucinos transformar-
se-iam todos em inimigos, caso os vestinos fossem atacados.
Prevaleceu contudo uma opinião que naquele momento poderia
parecer mais ousada do que prudente. Mas o desfecho provou
que a sorte ajuda os fortes.
182
Hl TOR IA DE ROMA
O Senado propô:. .: u povo autorizou a guerra contra os
vestinos. O comando (k::.::.a guerra coube por sorte a Bruto.
e o Sâmnio foi confiado a Camilo. A cada um desses países foi
enviado um exército, de modo que a preocupação em defender
suas fronteiras impediu o inimigo de reunir suas forças . Mas
quis o destino que um dos cônsules, Lúcio Fúrio, a quem cou-
bera a tarefa mais pesada, caísse gravemente enfermo e fosse
afastado do campo de batalha. Tendo recebido ordem para
nomear um ditador que prosseguisse a campanha, Lúcio Fúrio
escolheu o mais ilustre guerreiro daquela época, Lúcio Papírio
Cursor, que nomeou Quinto Fábio Máximo Ruliano para coman-
dante da cavalaria. Foi uma dupla famosa pelos feitos reali-
zados em sua magistratura e que se tornou mais célebre ainda
lências.
O segundo cônsul experimen tou , com êxito, roda a espécie
de estratégias na guerra contra os vestinos. Devastou os campos.
saqueou e incendiou as casas e as plantações do inimigo, obri-
gando-o a aceitar o combate, embora a contragosto. Em uma
única batalha conseguiu destruir completamente as tropas dos
vestinos, apesar das baixas sofridas em seu exército, de tal
modo que depois de fugirem para o acampamento, não con-
fiando mais em suas paliçadas e trincheiras, eles dispersaram-se
pelas cidades fortificadas cuja posição e muralhas podiam de-
fendê-los. O cônsul resolveu também tomar de assalto essas
cidades. Contando com o ardor dos soldados. irritados pelos
ferimentos - pois quase nenhum saíra ileso do combate - ,
capturou primeiro Cutina, escalando-a , e depois Cingília. Os
despojos das duas ci dades foram dados àqueles soldados que
nem portas. nem muralhas inimigas, haviam conseguido deter.
Vitória contra os samnitas. 30 . Com auspícios incertos.
Desavenças entre o exército partiu para o Sâm-
os chefes romanos. nio. Esse vício na cerimônia
incidiu não sobre a guerra.
que foi vitoriosa, mas sobre os próprios generais divididos por
ódios e animosidades. Advertido pelo encarregado dos frangos
18)
 TITO LIVIO
sagrados, o ditador Papírio partira para Roma a fim de retomar
os auspícios, tendo antes ordenado ao comandan te da cavalaria
que permanecesse em sua posição e não travasse, em sua ausên-
cia, combate algum com o inimigo. Entretanto, após a partida do
ditador, Quinto Fábio foi informado por seus batedores de que
o inimigo se mostrava negligente como se não houvesse um úni-
co romano no Sâmnio. Então, como um orgulhoso adolescente,
indignado porque tudo parecia depender do ditador, ou levado
pela ocasião de fazer algo notável, marchou com o exército, em
ordem de combate, contra Imbrínio (assim era chamado o lugar)
e atacou os samnitas. O êxito da batalha foi tal que nenhuma
falta foi cometida. Mesmo se o ditador estivesse presente, as
operações não teriam sido mais bem-conduzidas: o general não
faltou ao soldado, nem o soldado ao general. Também os cava-
leiros, por iniciativa de Lúcio Comínio, tribuno militar, depois
de tentarem inutilmente romper as fileiras inimigas em diversos
assaltos, retiraram a brida dos cavalos e, incitando-os com as
esporas, avançaram com tanto ímpeto que força alguma poderia
resistir-lhes. Em grande extensão, entre armas e homens, espa-
lharam a destruição e a morte. Seguindo o ímpeto dos cavalei-
ros, os infantes precipitaram-se com suas insígnias contra os
inimigos perturbados.
Diz-se que vinte mil inimigos foram mortos naquele dia.
Alguns autores pretendem que houve dois combates durante
a ausência do ditador, ambos igualmente vitoriosos. Os escri-
tores mais antigos mencionam apenas esta batalha e em certos
anais não há qualquer referência ao fato.
Em tão grande massacre o comandante da cavalaria havia
naturalmente capturado imensos despojos. Mandou amontoar
as armas inimigas e, atiçando-lhes fogo, queimou tudo, fosse
porque as oferecesse a alguma divindade, fosse porque quisesse
impedir, como acredita o historiador Fábio, que o ditador reco-
lhesse os frutos de sua glória, neles inscrevesse seu nome ou
levasse aqueles despojos em seu triunfo. Igualmente, a carta
sobre sua vitória, remetida ao Senado e não ao ditador, foi mais
uma prova de que de modo algum compartilhava com ele sua
glória. Verdade é que o ditador, ao receber a notícia daquela
184
HISTORIA DE ROMA
vitória, ao invés de alegrar-se como os demais, demonstraru
cólera e pesar. Encerrando bruscamente a sessão do Senado.
precipitou-se para fora da cúria, repetindo por toda a parte
por onde andava que mais do que as legiões samnitas a majestade
ditatorial e a disciplina militar seriam vencidas e destruídas pelo
comandante da cavalaria caso permanecesse impune seu desprezo
pela autoridade suprema. Ameaçador e encolerizado, partiu para
o acampamento, mas, embora caminhasse com a maior pressa,
não pôde evitar que a notícia de sua chegada o antecedesse.
Mensageiros de Roma tinham acorrido antes dele para anunciar
que o ditador se aproximava, ansioso por castigar, e que quase
não dizia duas palavras sem louvar o feito de Tito Mânlio.
Discurso de Quinto F'bio 31 . Convocando imediatamen-
a seus soldados. te uma assembléia. Fábio soli-
citou aos soldados que. com
a mesma coragem com a qual haviam lutado pela defesa da
república contra seus mais acirrados inimigos. o protegessem
a ele, Fábio, sob cujos comandos e auspícios haviam saído vito-
riosos, contra a implacável crueldade do ditador. Ele vinha lou-
co de inveja, irritado pelo valor e a felicidade de outrem, furio-
so porque em sua ausência a república fora bem-servida. Se
pudesse mudar a sorte, preferiria que a vitória estivesse com os
samnitas e não com os romanos. Repetia que sua autoridade fora
desprezada, como se o sentimento que o havia feito proibir a luta
não fosse o mesmo que o fazia queixar-se por terem combatido.
Por inveja então teria desejado entravar a coragem dos outros e
arrebatar as armas aos soldados, ansiosos pelo combate, para
que não se pudessem mover em sua ausência. Naquele momento
estava furioso e não suportava a idéia de que, sem Lúcio Papí-
rio os soldados não ficaram desarmados nem mancos, pois
Qu,into Fábio se havia julgado comandante da cavalaria e não
um simples acenso do ditador. Que teria feito o ditador, se por
um desses azares da guerra, comum aos dois adversários, ele
tivesse sofrido uma derrota? Se, ao ver o inimigo vencido e
bem-servida a república, de tal moclo---que esse general único
não poderia servi-la melhor , mesmo assim ameaçava com o su-
185
 TITO UVJO
plício o comandante da cavalaria? E não estava apenas irritado
contra o comandante da cavalaria, mas contra os tribunos mili-
tares, os centuriões e os soldados. Se pudesse, castigaria a todos,
mas como não podia, voltava-se contra um só. A inveja, como
o fogo , atingia os pontos mais altos. Assim, era contra o cabeça
da expedição, o chefe, que o ditador se levantava. Se o ditador
pudesse fazer desaparecer ao mesmo tempo o homem e sua gló-
ria, então dominaria, como vencedor, um exército de prisionei-
ros , e ousaria fazer contra os soldados tudo o que lhe fosse per-
mitido fazer contra o comandante da cavalaria. Deveriam assis-
ti-lo em sua causa para a liberdade de todos. Se o ditador visse
que o exército estava tão unido quanto o estivera no combate,
para garantir a vitória, e todos preocupados com a salvação de
um só homem, inclinar-se-ia a dar uma sentença mais clemente.
Enfim, ele entregava sua vida e seu destino à fidelidade e ao
valor dos soldados.
Acusações de Papírio Cursor 32 . Ergueu-se um clamor
a Quinto F'bio. em toda a assembléia, exor-
Defesa dos soldados. tando Fábio a ter confian-
ça, pois ninguém lhe faria
violências enquanto existissem as legiões romanas. Pouco de-
pois chegou o ditador, que mandou tocar a corneta para con-
vocar a assembléia. Quando se fez silêncio, o arauto citou em
juízo Quinto Fábio, comandante da cavalaria. Ele, que se en-
contrava muito distante do tribunal, apresentou-se. O ditador
tomou então a palavra:
"Quero saber de ti , Quinto Fábio, uma vez que a autori-
dade do ditador é suprema, e lhe obedecem os próprios cônsu-
les, investidos de poder real, e os pretores, nomeados sob os
mesmos auspícios que eles, quero saber, repito, se consideras
justo ou não que o comandante da cavalaria se submeta às suas
ordens. Pergunto-te ainda se, convencido como estava, ao partir,
de que compatíamos sob auspícios incertos, deveria eu ex-
por o Estado ao perigo, contrariando nossas cerimônias reli-
giosas, ou renovar os auspícios para não fazer nada sem ter
186
HJSTORIA DE ROMA
claramente os deuses a nosso favor. Finalmente, quero per-
guntar-te se, quando um escrúpulo religioso impedia o ditador
de agir, poderia o comandante da cavalaria considerar-se desli-
gado e livre desse compromisso. Mas, para que tantas perguntas?
Mesmo que eu tivesse partido sem dar ordens, terias obrigação
de interpretar minhas intenções para pautar tua conduta. Res-
ponda-me: eu não te havia proibido de realizar qualquer em-
preendimento em minha ausência? Não te proibi que travasses
combate com o inimigo? Entretanto, desprezando minha auto-
ridade, tu, apesar da insegurança dos auspícios, das dúvidas
que ocorreram em nossas cerimônias religiosas, contrariando o
costume militar, a disciplina dos nossos antepassados e a von-
tade dos deuses, ousaste travar combate com o inimigo. Res-
ponde apenas a estas perguntas que te fiz e guarda-te de falar
de outra coisa. Aproxima-te, lictor".
Não era fácil responder a cada uma dessas perguntas.
Assim, Fábio ora se queixava de ter em causa tão grave a
mesma pessoa como acusador e juiz, ora bradava que poderiam
arrebatar-lhe a vida, mas não a glória de seus feitos. Como,
além de justificar-se, ele também acusasse o ditador, Papírio,
encolerizado, ordenou que desnudassem o comandante da cava-
laria e trouxessem as varas e machados. Enquanto os lictores
lhe rasgavam as vestes, Fábio implorava a fidelidade dos sol-
dados, refugiando-se nas fileiras dos triários, que já começav~m
a causar tumulto. Um clamor propagou-se por toda a assembléta.
Ouviam-se ora súplicas, ora ameaças. Os soldados se achavam
por acaso mais próximos do tribunal, e por isso mesmo podiam
ser reconhecidos pelo general, suplicavam-lhe que poupasse o
comandante da cavalaria e não condenasse o exército junta-
mente com ele. As últimas fileiras, porém, e o grupo que
cercava Fábio, atacavam em voz alta o inclemente ditador, e
não estavam longe de uma revolta.
Ao redor do tribunal também havia inquietação. Os lega-
dos que cercavam a cadeira do ditador suplicavam-lhe que
transferisse o assunto para o dia seguinte, que aplacasse sua
cólera e desse tempo à reflexão. Ele já havia punido suficiente-
187
/
 TITO UVIO
mente a juventude de Fábio e o bscurecido sua vitória . Não
deveria chegar à medida extrema do suplício, nem cobrir de
ignomínia aquele jovem excepcional, seu ilustre pai e toda a
família Fábia. Diante do insucesso de suas súplicas e argu-
mentos, pediam ao ditador que observasse a assembléia já
encolerizada. Mostravam-lhe que não convinha nem a sua idade.
nem a sua prudência lançar fogo e lenha na revolta . Ninguém
acusaria Quinto Fábio por ter querido livrar-se do suplício .
mas o ditador, que se deixara cegar pela cólera, provocaria
contra si uma multidão hostil numa luta deplorável. Finalmente,
não deveria pensar que assim falavam por amizade a Fábio.
Estavam dispostos a jurar que não julgavam conveniente aos
interesses do Estado punir Quinto Fábio naquele momento .
Defesa de Quinto Fábio 33 . Essas manifestações e nco-
por seu pai. le rizaram ainda mais o ditador
que , ao invés de aca lmar-se e m
relação ao comandante da cavalaria, mandou os soldados reti-
rarem-se do tribunal. O arauto tentava em vão restabelecer o
si lêncio, mas o barulho e o tumulto impediam que se ouvisse a
voz do ditador e de seus apparitores, de modo que somente a
noite , como numa batalha, pôs fim àquele debate .
O comandante da cavalaria recebeu ordem de se apresentar
na manhã seguinte. Mas como todos lhe afirmassem que a ani-
mosidade de Papírio seria ainda mais veemente, visto que a
discussão o irritara e exacerbara, fugiu do acampamento e
dirigiu-se a Roma . A conselho de seu pai, Marco Fábio, que
já fora ditador e três vezes cônsul, convocou imediatamente
o Senado. No momento em que se queixava amargamente da
violência e da injustiça do ditador, ouviu-se de súbito o estrépito
dos lictores que, diante da cúria, afastavam a multidão. Era o
implacável ditador, que havia seguido Fábio com alguns solda-
dos da cavalaria ligeira, ao saber que ele havia abandonado o
acampamento. Reaberto o debate , Papírio ordenou a prisão
de Fá bio. Então, como aquele temperamento inflexível persis-
tisse em seu propósito, apesar dos rogos dos principais sena-
dores , Marco Fábio. o pai, assim falou:
188
JJJ STORIA DE ROMA
" Uma vez que nem a autoridade do Senado, nem minha
idade que pretendes condenar à solidão, nem a coragem e a
nobreza do comandante da cavalaria, nomeado por ti mesmo,
nem as súplicas, que tantas vezes satisfizeram o inimigo e apla-
caram a cólera dos deuses, têm valor junto a ti, dirigir-me-ei
aos tribunos da plebe e apelarei para o próprio povo. t ele
que te apresento como juiz, uma vez que tu não aceitas o julga-
mento do teu exército e o julgamento do Senado, pois ele
certamente é o único que tem maior poder e autoridade do
que a tua ditadura . Veremos se cederá a esse apelo ao qual
Tulo Hostílio, rei de Roma , cedeu ".
Da cúria passaram à assembléia do povo: o ditador, se-
guido de um pequeno número de pessoas, e o comandante da
cavalaria , rodeado pelos cidadãos mais distintos de Roma. Como
Fábio ocupasse a tribuna, Papírio ordenou-lhe que descesse e
se colocasse em posição inferior. O pai o acompanhou, dizendo
ao ditador: " Fazes bem em ordenar-nos de descer para um
lugar donde simples cidadãos podem falar".
No início houve mais altercações do que discursos, mas
finalmente o tumulto foi dominado pelo tom da voz do velho
Fábio que, indignado, vituperava contra a soberba e crueldade
de Papírio. Ele também havia sido ditador em Roma mas , de
sua parte, ninguém havia sofrido violências, fosse plebeu, cen-
1 turião ou soldado. Papírio queria a vitória e o triunfo sobre
um general romano como se os dois chefes fossem inimigos.
Que diferença entre a moderação dos antigos e a soberba e
\ crueldade dos novos! O ditador Qüíncio Cincinato, depois de
livrar do cerco o cônsul Lúcio Minúcia, para puni-lo contentara-
se em deixá-lo no exército na qualidade de legado ao invés de
cônsul. Quando Lúcio Fúrio travou um combate, que perdeu de
maneira desonrosa, desprezando a velhice e autoridade de Marco
Fúrio Camilo, este, na ocasião. controlou sua cólera e não
escreveu ao Senado ou ao povo contra seu colega. E ainda mais :
após seu regresso, quando o Senado o deixou livre para escolher
entre seus colegas, preferiu-o aos demais tribunos consulares,
associando-o ao seu comando. O próprio povo, que dispõe do
poder supremo . em sua indignação contra aqueles que por
 TITO UVIO
imprudência ou ignorância perderam exércitos, jamajs lhes im-
pôs pena mais grave do que o pagamento de uma multa. Até
então nenhum general sofrera pena de morte por fracasso na
guerra. Mas agora os generai s romanos se achavam ameaçados
com as varas e o machado, e praticava-se contra vencedores
dignos dos mais justos triunfos o que nem sequer se permitia
para com os vencidos. Que mai s poderia sofrer seu filho se
tivesse perdido o exército, se tivesse sido derrotado, posto em
fuga e despojado de seu a<.:ampamento? A cólera e a violência
desse homem poderiam ter excedido os açoites e a morte? Era
natural que por causa de Quinto Fábio a cidade estivesse en-
tregue à alegria, à celebração da vitória, às preces e ações de
graças. Mas como entender que aquele homem, para o qual
estavam abertos os templos dos deuses e para o qual fume-
gavam em meio aos sacrifícios os altares carregados de ornatos
e oferendas, fosse desnudado, dilacerado pelas varas em pre-
sença do povo romano, à vista do Capitólio, da cidadela, e
desses deuses que não invocara em vão nas batalhas? Com que
ânimo o exército, que havia sido vitorioso sob seu comando e
auspícios , suportaria tal espetáculo? Que luto no acampamento
romano e que alegria no do inimigo!"
Assim, discutindo, lamentando-se, conjurando os deuses
c os homens para que o ajudassem, abraçando seu filho e derra·
mando abundantes lágrimas, falou Marco Fábio.
Discurso de 34. Fábio tinha a seu favor o
Lúcio Papírio Cursor. poder do Senado, a simpatia do
povo, o apoio dos tribunos e a
lembrança do exército. Seu adversário invocava a autoridade
invencível do povo romano e a disciplina militar, a ordem do
ditador, respeitada sempre como uma ordem divina e a famosa
sentença de Mãnlio, que sacrificara o amor de seu filho ao inte-
resse público. Da mesma forma Lúcio Bruto, instaurador da
liberdade romana, havia agido outrora com seus dois filhos .
Hoje, pais amáveis, anciãos indulgentes diante do desprezo pela
autoridade alheia , perdoavam à juventude, como falta sem im-
190
HISTóRIA DE ROMA
portãncia, a destruição da disciplina miJjtar. Quanto a ele, Pa~
pírio. persistiria em seu propósito, e aquele que combatera con-
tra suas ordens, quando as cerimônias religiosas haviam sido
prejudicadas e os auspícios eram incertos, não conseguiria per-
dão do castigo justamente merecido. Não estava em suas mãos
fazer durar eternamente a majestade do poder. Mas Lúcio Pa-
pírio não consentiria no seu enfraquecimento. Desejava que o
poder tribunício, inviolável em si mesmo, não violasse com sua
intercessão uma autoridade a, e sobretudo que o povo não
o escolhesse para aniquilar, em sua pessoa, o ditador e os direi-
tos da ditadura. Se o fizesse, a posteridade não acusaria Lúcio
Papírio, mas os tribunos e o julgamento errôneo do povo. Essa
censura porém seria inútil, pois uma vez corrompida a disci-
plina mil' ar, o soldado não obedeceria mais ao centurião, nem
o centurião ao tribuno, nem o tribuno ao legado, nem o legado
ao cônsul, nem o comandante da cavalaria ao ditador. Ninguém
respeitaria nem os homens nem os deuses. Não se observariam
as ordens dos generais nem os próprios ~UJSpícios dos d~
Errantes, os soldados vagariam sem permissão em território ami-
go ou inimigo, esqueceriam seu juramento e tirariam licença
quando quisessem, segundo seus caprichos. Pouco numerosos
para proteger as insígnias, acabariam por abandoná-las. Não
mais se reuniriam quando convocados e combateriam indiferen-
temente de dia ou de noite, em boa ou má posição, por ordem
ou contra a ordem do general. Não seguiriam mais as insígnias
nem manter-se-iam em suas fileiras. Em suma, ao invés de uma
milícia solene e sagrada , haveria apenas um bando de salteado-
res agindo às cegas e ao acaso. "A essas acusações, tribunos da
plebe, tereis de responder por todos os séculos. Apresentai vos-
l
sas cabeças para re ponder pela indisciplina de Quinto Fábio". ,
Intervenção do povo. 35. Os tribunos ficaram atô-
Absolvição de Quinto Fábio. nitos e mais inquietos por
sua própria sorte do que
pela daquele que lhes implorava o apoio. quando foram libe-
rados desse enca rgo pelo povo romano que. unanimemente, to-
19 1
 TITO L!VIO
mou o partido de suplicar, de rogar ao ditador que suspen-
desse o castigo do comandante da cavalaria. Ao ver que o povo
se inclinava para as súplicas, os tribunos também começaram
a insistir junto ao ditador para que ele concedesse o perdão por
um erro muito humano, um erro justificável pela juventude de
Quinto Fábio, pois ele já fora suficientemente punido. Depois,
o próprio jovem e seu pai, Marco Fábio, abandonando sua ani-
mosidade, lançaram-se aos pés do ditador e procuraram com sú-
plicas abrandar sua cól~ra . Restabelecido o silêncio, o ditador
disse:
" Está bem, romanos. Venceu a disciplina militar, venceu
a majestade do poder, que correram o risco de desaparecer
depois deste dia. Quinto Fábio não foi absolvido do delito
de ter travado combate contra a ordem do general, mas, conde-
nado por esse crime, ele foi agraciado pelo povo romano, agra-
ciado pelo poder tribunício, que lhe prestaram apoio através
de súplicas e não de ajuda legal. Vive mais feliz, Quinto Fábio,
por essa unanimidade de teus concidadãos em defender-te do
que pela vitória com a qual exultavas há pouco. Vive, após ter
ousado praticar um delito que teu pai mesmo, se estivesse no
lugar de Lúcio Papírio, não te teria perdoado. Comigo poderás
reconciliar-te quando quiseres. Ao povo romano, a quem deves
a vida, poderás demonstrar melhor tua gratidão se no dia de
hoje tiveres aprendido a obedecer à autoridade legítima, tanto
na guerra como na paz".
O ditador declarou que não reteria por mais tempo o
comandante da cavalaria. Acompanhado pelos senadores em
regozijo e pelo povo mais alegre ainda, desceu da cúria cer-
cado por seus concidadãos que felicitavam ora o comandante da
cavalaria, ora o ditador. A autoridade militar parecia tão forti-
ficada pelo perigo que ameaçara Quinto Fábio como pelo deplo-
rável suplício do jovem Mânlio.
Por casualidade, naquele ano aconteceu que todas as vezes
que o ditador se separava do exército, os inimigos se mobili-
zavam no Sâmnio. Mas o legado Marco Valéria, que comandava
o acampamento, tinha diante dos olhos o exemplo de Quinto
192
HISTORIA DE ROMA
Fábio para fazê-lo temer, mais do que um ataque inimigo, a
violenta cólera do ditador. Assim, quando alguns forrageadores
foram surpreendidos e exterminados em uma emboscada, em
local desfavorável, a opinião geral foi que o legado teria podido
socorrê-los se não estivesse amedrontado por rigorosas ordens.
A cólera que o caso provocou contribuiu para afastar ainda
mais o ditador da simpatia dos soldados, já antes indispostos
com ele por ter sido implacável para com Quinto Fábio, e ter
recusado o perdão que haviam suplicado para concedê-lo depois
a pedido do povo romano.
Reação do exército. 36. Tendo nomeado Lúcio Pa-
T'tica de Lúcio Papírio. pírio Crasso para governar Ro-
ma e proibido ao comandante
da cavalaria Quinto Fábio de realizar qualquer tarefa pró-
pria de sua magistratura, o ditador regressou ao acampamento.
Sua chegada não trouxe satisfação aos soldados nem inspirou
temor aos inimigos. No dia seguinte, ou porque ignorassem a
chegada do ditador, ou porque lhes fosse indiferente sua pre·
sença ou ausência, marcharam para o campo em linha de ba-
talha.
A presença de Lúcio Papírio, daquele único varão, teve
tanta importância que se a boa vontade dos soldados tivesse
correspondido às disposições do general, aquele dia teria sido
indubitavelmente o último da guerra com os samnitas, de tal
modo soube ele aproveitar as condições do terreno, as tropas
de reserva, de tal modo as soube reforçar com todos os recursos
da arte militar. Os soldados, porém, não o ajudaram e, de
propósito, para rebaixar a glória de seu general, puseram
obstáculos à vitória. Os samnitas tiveram maior número de
mortos e os romanos, de feridos.
Sendo um general experimentado. Papírio compreendeu
qual era o empecilho à sua vitória: t~ria de moderar seu tempe-
ramento e suavizar seu rigor com um pouco de companheirismo.
Com esse propósito, acompanhado pelos legados, entrava em \
todas as tendas para visitar os soldados feridos, perguntando
193
 T ITO UVIO
a cada um como se sentia, recomendando-os aos legados, aos
tribunos e aos prefeitos. Essa maneira de agir, tão popular e
tão hábil, fez com que antes mesmo da convalescência dos
soldados o general lhes tivesse conquistado a simpatia, e nada
foi tão eficaz para a recuperação como o reconhecimento que
eles sentiam por tanto interesse.
Restabelecido o exército, o ditador travou combate sem
que ele ou os soldados duvidassem da vitória. Os samnitas foram
derrotados e desbaratados, e aquele foi o último dia em que
combateram com o ditador. O exército vitorioso percorreu em
seguida todo o território inimigo, na esperança de conquistar
despojos, mas não encontrou em parte alguma forças armadas,
quer ostensivamente, quer em emboscada. O entusiasmo dos
soldados era ainda maior porque o ditador lhes havia prometido
todos os despojos. E, além do ódio nacional contra o inimigo,
o interesse privado também existia. Subjugados por aquele
desastre, os samnitas pediram paz ao ditador. No pacto firmado
com os samnitas foi decidido que eles dariam um traje e um
ano de soldo a cada soldado romano. Quando receberam ordem
de apresentar-se no Senado, responderam que seguiriam o dita-
dor, único homem a cuja fé e probidade confiavam sua causa.
Assim, o exército abandonou o território dos samnitas.
Guerra com os samnitas e ápulos. 37. O ditador entrou em
Julgamento dos tusculanos. triunfo na cidade, pre-
tendendo abdicar ime-
diatamente da ditadura. Mas por ordem do Senado, antes de
sua abdicação, nomeou cônsules Caio Sulpício Longo, pela se-
gunda vez, e Quinto Emílio Cerretano.
Não se chegara a realizar um tratado de paz com os samni-
tas que, por não terem concordado com as condições impostas,
obtiveram de Roma apenas um ano de trégua. Eles, porém, não
foram fiéis à santidade do juramento, de tal modo a notícia da
abdicação de Papírio lhes despertou o ardor belicoso.
No consulado de Caio Sulpfcio e Quinto Emílio (Áulio,
segundo certos anais), além da sublevação dos samnitas. os rama-
194
HISTóRIA DE ROMA
nos se defrontaram com um novo tntmtgo: os ápulos. Contra
cada um desses povos foi enviado um exército, cabendo por
:.orte a Emílio a guerra com os samnitas e a Sulpfcio, a guerra
com os ápulos. Segundo alguns historiadores, não foi propria-
mente contra os ápulos que se fez a guerra, mas em defesa de
povos aliados dessa nação que sofriam a violência e os ultrajes
dos samnitas. Contudo, em face do estado em que se encontrava
o Sâmnio, naquela época apenas capaz de se defender, é pouco
provável que os samnitas tenham atacado os ápulos. Ao. contrá-
rio é mais verossímil que Roma tenha enfrentado os dots povos
00 'mesmo tempo. Entretanto, nada ocorreu digno de memória.
Os territórios ápulos e samnitas foram devastados, mas não se
deu o encontro com o inimigo em parte alguma.
Certa noite, Roma foi despertada por um alarme e todos
os cidadãos entraram em pânico: o Capitólio, a cidadela, as
muralhas e portas da cidade se encheram de homens armados.
Mas apesar do grito de apelo às armas e da inspeção de todos
os bairros, ao amanhecer o autor e a causa do alarme haviam
desaparecido.
No mesmo ano, por proposta de Flávio, realizou-se o julga-
mento dos tusculanos pelo povo. Marco Flávio, tribuno da
plebe, propôs ao povo a punição dos tusculanos, que haviam
prestado auxílio aos veliternos e privernates, e aconselhado
esses povos a declarar guerra aos romanos. Os habitantes de
Túsculo, com suas mulheres e filhos , vieram a Roma. Aquela
ltidão, com trajes de luto e aspecto de réus, perc~rreu_ as
Ii bos, prostrando-se de joelhos diante de todos os ctd~daos.
sim, foi a piedade que lhes valeu o . perdão. ~o casttgo ~
não a justiça de sua causa. Todas as tnbos rejettaram a let ,
exceto a de Pólia, cuja sentença foi que se açoitassem e deca-
pitassem os homens adultos e vendessem as mulheres e ~s
crianças, de acordo com a lei da guerra. Os tusculanos nao
esqueceram essa sentença. Seu ressentimento contra os que
votaram por um castigo tão atroz durou até a época de nossos
pais. E sabido que jamais um candidato da tribo Pólia obteve
voto da tribo Papfria.
195
 TITO LIVrO
Combate contra os samnitas. 38. No ano seguinte, no
Equilíbrio de forças. consulado de Quinto Fábio
e Lúcio Fúlvio, o ditador
Aulo Cornélio Arvina e o comandante da cavalaria Marco Fá-
bio Ambusto, temendo uma guerra mais grave contra o Sâmnio
(pois dizia-se que o inimigo havia contratado mercenários entre
a juventude dos povos vizinhos), fizeram o recrutamento com
a maior diligência e marcharam com um exército de escol con-
tra os samnitas. Acamparam em território inimigo, sem grandes
precauções, como se o adversário estivesse distante. Subitamen-
te, as legiões samnitas irromperam com tal impetuosidade que
chegaram a erguer suas paliçadas perto do acampamento roma-
no. Como a noite já se aproximasse, não puderam atacar as for-
tificações romanas, mas demonstraram claramente que o fariam
ao amanhecer.
Quando o ditador viu que a batalha seria travada mais
cedo do que esperava, temendo que sua posição desvantajosa
prejudicasse o valor dos soldados, deixou as fogueiras acesas
para iludir o inimigo e fez as legiões saírem em silêncio. Con-
tudo, os dois acampamentos estavam tão próximos que foi
impossível enganar o inimigo. A cavalaria samnita seguiu de
perto as legiões romanas, evitando contudo travar combate,
e a infantaria permaneceu no acampamento até o amanhecer.
Somente ao raiar do dia a cavalaria ousou atacar. Castigando
a retaguarda do exército romano e impelindo-o para as passa-
gens mais diffceis, obrigou-o a sustar a marcha.
Nesse ínterim, a infantaria havia seguido a cavalaria, e os
samnitas se preparavam com todas as suas forças para atacar
os romanos. Ao ver que não podia prosseguir sem grandes
perdas, o ditador mandou erguer o acampamento no próprio
local onde se encontravam. Mas a cavalaria inimiga havia cer-
cado o exército, de modo que era impossível procurar estacas
e iniciar o trabalho. Percebendo então que não tinha condições
nem de marchar, nem de acampar, o ditador dispôs as tropas
em ordem de batalha, mandando colocar as bagagens fora das
fileira s.
196
HISTORIA DE ROMA
Iguais em ardor e força, os inimigos tomaram posição. Con-
tribuíra para aumentar-lhes a coragem o fato de ignorarem que
os romanos haviam apenas abandonado uma posição desvanta-
josa e não fugido ao combate. Pensavam que tinham estado a
perseguir um adversário dominado pelo terror ante temíveis
soldados, que eram eles próprios. Essa idéia contribuiu para
manter por alguns momentos o equilíbrio das forças, pois há
muito tempo os samnitas tinham perdido o hábito de resistir ao
grito de guerra do exército romano. E, naquele dia, por Hér-
cules, desde a terceira até a oitava hora do dia , diz-se que o
combate se manteve tão equilibrado que o grito de guerra, uma
vez lançado no primeiro encontro, não mais se repetiu. As
insígnias não avançaram nem recuaram, e nenhum dos dois
exércitos repetiu o ataque. Os combatentes lutavam firmes em
suas posições, protegendo-se com seus escudos, quase sem
respirar e sem desviar os olhos do inimigo. Em ambos os
exércitos lutava-se com o mesmo denodo e a mesma constância,
de modo que somente o esgotamento ou a chegada da noite
poria fim ao combate.
Já começavam a faltar forças aos soldados, eficácia às
armas e decisão aos chefes, quando ds súbito a cavalaria samnita,
informada por um de seus esquadrões mais avançados de que
as bagagens dos romanos estavam longe do exército, sem guarda
nem proteção, lançou-se sobre elas, dominada por sua cobiça de
saqueadores. Quando um mensageiro atemorizado levou o fato
ao conhecimento do ditador. ele respondeu : " Deixemos que
eles se embarassem com esses despojos". Em seguida novos
mensageiros chegaram, bradando que os bens dos soldados
estavam sendo pilhados e carregados. O ditador mandou chamar
então o comandante da cavalaria e disse:
" Vês tu, Marco Fábio, que a cavalaria inimiga abandonou
o combate? Agora se acha embaraçada com as bagagens que
antes nos embaraçavam. Ataca esses homens que se acham
dispersos, como tod11 multidão que se entrega à pilhagem.
Raros encontrarás a cavalo, raros de armas na mão. Enquanto
carregam seus cavalos com os despojos, trucida esses soldados
desarmados e faze-os pagar com sa ngue esses despojos. Eu me
197
 TITO LlVIO
encarregarei do combate com as legiões de infantaria e a ti caberá
a honra de comandar a cavalaria!"
Vitória dos romanos. 39 . Atacando na mais perfeita or-
dem os inimigos dispersos e sobre-
carregados, a cavalaria romana realizou uma completa carni-
ficina . Surpreendidos, os samnitas não puderam combater nem
fugir. Foram trucidados em meio às bagagens que deixaram cair
e jaziam sob as patas dos cavalos que fugiam assustados. Com
a cavalaria do inimigo praticamente destruída, Marco Fábio fez
uma pequena manobra com seus esquadrões e atacou a infanta-
ria pela retaguarda. O novo grito de guerra aterrorizou os
samnitas.
Ao ver que os soldados das primeiras fileiras inimigas
começavam a olhar para trás, que as insígnias se confundiam
e todas as fileiras hesitavam, o ditador exortou os soldados,
chamando os tribunos e os príncipes pelo nome para reanimá-
los a recomeçar o combate. Soltando novo grito de guerra, avan-
çaram com as insígnias e, à medida que se aproximavam, iam
percebendo melhor a perturbação do inimigo. Os soldados das
primeiras filas já podiam avistar os cavaleiros, e Cornélio,
dirigindo-se aos manípulos, procurava mostrar-lhes com pala-
vras e gestos que já se distinguiam as insígnias e escudos da
cavalaria romana.
Ao ouvirem aquela notícia e ao verem os cavaleiros, os
infantes de repente esqueceram os ferimentos e as fadigas de
uma jornada quase inteira. Assim, ao receber o sinal de com-
bate, como uma tropa que acabasse de sair do acampamento.
precipitaram-se contra o inimigo. Os samnitas não puderam sus-
tentar mais tempo a ameaça da cavalaria e o ardor da infantaria:
uns foram mortos em seus postos, outros debandaram. Os que
ainda resistiam foram cercados e exterminados pela infantaria.
A cavalaria fez grande carnificina entre os fugitivos, entre os
quais foi abatido o próprio general.
Essa úJtima batalha destruiu as forças samnitas. Em todas
as suas assembléias murmuravam que não era de admirar que
198
HJSTORIA DE ROMA
numa guerra ímpia, empreendida com a violação de um tratado,
quando os deuses com justiça lhes eram mais hostis do que
os homens, nada lhes houvesse favorecido. Deveriam fazer gran-
des expiações e purificações por aquela guerra. O que impor-
tava era saber se para aquele sacrifício deveria apenas ser ofe-
recido o sangue de alguns culpados ou o sangue inocente de to-
dos os samnitas. Alguns cidadãos já ousavam pronunciar o nome
de certos homens que haviam instigado a guerra. Havia sobre-
tudo um nome que era mencionado por todos: Brútulo Pápio,
varão nobre e poderoso, reconhecido como o autor da ruptura
da última trégua.
Forçados a sentenciar, os pretores decretaram que Brútulo
Pápio fosse entregue aos romanos e, juntamente com ele, fossem
enviados a Roma todos os despojos e todos os prisioneiros
romanos. Os objetos reclamados pelos feciais seriam devolvidos
nos termos do tratado, de acordo com o direito divino e huma-
no. Conforme essa decisão, foram enviados feciais a Roma com
o cadáver de Brútulo Pápio, visto que ele próprio, por morte
voluntária, se havia subtraído à ignomínia e ao suplício. Deci-
diram entregar também seus bens junto com o cadáver. Entre-
tanto, exceto os prisioneiros e os objetos que se pôde identi-
ficar entre os despojos, nada foi aceito: tudo o mais foi devol-
vido. Por um senadoconsulto foi concedido o triunfo ao ditador.
Segundo alguns autores, essa guerra teria sido chefiada
pelos cônsules. Eles é que teriam triunfado sobre os samnitas.
Quanto a Fábio, também teria penetrado na Apúlia e capturado
grandes despojos.
Divergência entre os textos. 40 . Fato inconteste é ter si-
do Aulo ·Cornélio ditador na·
quele ano. Mas o que se discute é se ele foi nomeado para fazer
a guerra ou para presidir os Jogos Romanos em lugar do pretor
Lúcio Pláucio, que se achava gravemente enfermo, e dar sinal
de partida às quadrigas, e se, após ter-se desincumbido dessas
funções pouco memoráveis, ele teria abdicado da ditadura. Não
é fácil escolher entre um fato e outro, optar por esse ou aquele
199
 TITO LIVIO

historiador. Estou convencido de que os elogios fúnebres e as '

[alsas inscrições nos retratos dos antepassados alteraram as recor-
dações do passado, pois as famílias procuram através de fraude
e mentiras cobrir-se com a glória dos altos feitos e das magis
traturas. Essa é a origem da confusão quanto aos atos de cada
cidadão e quanto aos monumentos públicos do passado. Não há RESUMO
um só historiador dessa época em cujo testemunho se possa con-
fiar inteiramente. DO LIVRO Vlll DA HISTORIA DE ROMA
DESDE SUA FUNDAÇÃO, DE TITO UVrO

Defecção dos latinos e dos campanianos. Enviando em bai-

xadores ao Senado, impõem como condição para a paz que um
dos cônsules seja escolhido entre os latinos. Cumprida a missão,
seu pretor Ânio, descendo do Capitólio, cai e morre. O filho
de Tito Mânlio contraria a ordem do pai e luta com os latinos;
embora vencedor , é condenado à decapitação. Com os romanos
empenhados num combate penoso, Públio Décio, cônsul junta·
mente com Mãnlio, sacrifica-se pelo exército: lança-se a cavalo
no meio dos inimigos, é morto e assegura a vitória aos romanos .
Os latinos se submetem . Tito Mãnlio volta a Roma e nenhuma
pessoa jovem aparece diante dele . A vestal Minúcia é conde-
nada por incesto. Uma colônia é enviada para Cales depois
da vitória sobre os ausônios. Acontece o mesmo com Fregelas.
Númerosas matronas são pilhadas confeccionando venenos; mui-
tas, após ingerir essas drogas, expiram . ~ então que se faz
a primeira lei sobre os envenenamentos. Os privernates tomam
armas e são vencidos, mas recebem o direito de cidade. Os
napolitanos , derrotados pelas armas e pelo assédio, são forçados
à rendição. Quinto Públio, comandante do cerco, é o primeiro
a obter prorrogação de mandato e o triunfo como p rocônsul.
A plebe é liberada da servidão por dívidas graças à paixão de
um credor, Lúcio Papírio, que tenta violentar seu devedor Caio
Públio. O ditador Lúcio Papírio Cursor deixa o exército e
volta a Roma para retomar os auspícios, e o comandante da cava-
laria . Quinto Fábio . percebendo uma ocasião de vitória. combate

200 201
 TITO UVJO

com sucesso os samnitas, malgrado as ordens recebidas. Como

o ditador se mostrasse propenso a supliciá-lo. Fábio foge para
Roma, onde não obtém ganho de causa mas é agraciado pelas
súplicas do povo.
O livro contém ainda as vitórias obtidas contra os samnitas.
L I V R O IX

Discurso de Caio Pôncio I. o ano seguinte, celebrou-se

aos samnitas. a paz Caudina, que ficou famo-
sa pela derrota dos romanos no
consulado de Tito Vetúrio Calvino e de Espúrio Postúmio. Na-
quele ano os samnitas tinham como general Caio Pôncio, filho
de Herênio. Seu pai fora incontestavelmente o mais hábil dos
samnitas, e ele, seu melhor combatente e melhor general. Quando
os embaixadores enviados para dar sa tisfação aos romanos regres-
saram sem o tratado de paz , ele assim falou :
"Não penseis que essa embaixada tenha sido inútil. Ela
serviu para aplacar a cólera celeste, desencadeada contra nós
pela ruptura do tratado. Estou convencido de que, sejam quais
forem as divindades que desejaram nos reduzir à necessidade
de devolver o que nos reclamavam , de acordo com o tratado,
elas não ficaram satisfeitas com o orgulho dos romanos ao
desprezarem a reparação oferecida. Que mais poderíamos fazer,
para aplacar os deuses e acalmar os homens, além do que
fizemos? Devolvemos os bens que arrebatamos ao inimigo
como despojos, e que, por direito de guerra, pareciam per-
tencer-nos. Como não pudemos entregar vivos os responsáveis
pela guerra, entregamo-los depois que haviam cumprido seu
destino. Para que nada de impuro permanecesse entre nós ,
mandamos para Roma todos os seus bens. Que mais te devo
eu, romano? Que mais devo ao tratado e aos deuses , testemu-
nhas do tratado? A quem terei de tomar como juiz de tua
cólera e de minhas súplicas? Aceito qualquer um que se apre-
sente como tal , seja ele um povo, seja um simples particular.
Pois, se a fraqueza lutando contra a força nada pode esperar da
202
203
 TI TO I l V I()
justiça dos homens, apelarei ao menos para os deuses, vingadores
de tão intolerável orgulho, e os conjurarei a que volvam sua
cólera contra aqueles que não se satisfazem nem com a resti-
tuição de seus bens, nem com o acréscimo dos bens alheios ;
aqueles cuja crueldade não pode ser saciada com a morte dos
culpados, com a entrega de seus cadáveres, ou com o sacrifício
dos bens de seus proprietários ; aqueles que só poderíamos
aplacar dando-lhes nosso sangue a beber e nossas vísceras a
dilacerar.
Samnitas, a guerra é legítima quando necessana, as armas
são inocentes quando não há esperança senão nas armas. O
que mais importa nos negócios humanos é ter os deuses pro-
pícios ou adversos. Assim, considerai como certo que nas
guerras precedentes agistes mais contra os deuses do que contra
os homens , mas na que se acha iminente sereis guiados pelos
próprios deuses ".
I!
Cilada dos samnitas 2 . Após esses vat•cm1os tão fel i-
contra os romanos. zes quanto verdadeiros, Caio Pôn-
cio mobilizou o exército o mais
discretamente possível e estabeleceu o acampamento nos arredo-
res de Cáudio. Desse local enviou a Calácia, onde ouvira dizer
que os cônsules romanos já estavam acampados, dez soldados
disfarçados em pastores, com ordem de apascentar seus rebanhos
em lugares diferentes, mas não longe dos postos romanos. Quan-
do caísse em mãos dos saqueadores romanos, deveriam todos
dizer a mesma coisa: as legiões samnitas achavam-se na Apúlia
sitiando Lucéria com todas as suas tropas, e prestes a tomá-la
de assalto.
I Essa notícia, que fora difundida intencionalmente, já havia
chegado até os romanos . Os prisioneiros, entretanto, a tornaram
ainda mais digna de fé, porque todas as suas informações coin-
cidiam. Não havia dúvida de que os romanos levariam auxflio
aos lucerinos, bons e fiéis aliados. Ao mesmo tempo, seria de
temer que toda a Apúlia. diante da ameaca presente. aderisse
204
li
HI STóRIA OE ROMA
ao inimigo. Assim , apenas se deliberou quanto ao caminho
a seguir.
Dois caminhos levavam a Lucéria: um que seguia a costa
do mar Superior 1 , era plano e descoberto, mais seguro, porém
muito mais longo; o outro, mais curto, passava pelas Forcas
Caudinas. Esse local tem a seguinte disposição: há dois desfi-
ladeiros profundos, estreitos, cobertos de bosques, unidos por
uma cadeia de montanhas, e entre eles se estende uma planície
oculta pelos montes, coberta de vegetação e de água , através
da qual passa o caminho. Antes de se chegar a ele é necessário
penetrar no primeiro desfiladeiro. Pode-se, então, retroceder
para retomar o mesmo caminho ou . caso se prefira, avançar e
sair pelo outro desfiladeiro, aind a mais estreito c difícil.
Os romanos haviam descido à planície por uma dessas
passagens, atravessando um túnel cavado na rocha . Encaminha-
vam-se para o outro desfiladeiro, quando o encontraram barrado
por árvores abatidas e imensas pedras amontoadas , ocasião em
que perceberam a cilada do inimigo, e avistaram suas tropas
no ponto mais alto do desfiladeiro. Retrocederam imediatamente
tentando retomar o caminho por onde tinham vindo, mas
encontraram-no também fechado e guarnecido de tropas. Os
romanos estacaram, sem que nenhuma ordem fosse dada . O
pânico invadiu os espíritos e estranho torpor como que se apo-
derou de seus membros. Permaneceram muito tempo imóveis e
silenciosos, olhando-se uns aos outros, na esperança de encontrar
alguém mais capaz de decidir e aconselhar. Em seguida, ao
ver que estavam sendo armadas as tendas dos cônsules e que
alguns soldados já pegavam os instrumentos de trabalho para
iniciar a construção do acampamento, embora compreendessem
que seriam escarnecidos por tentarem fortificar-se quando tudo
estava perdido e todas as esperanças eliminadas, sem que alguém
insinuasse ou ordenasse, todos puseram-se a trabalhar nas forti-
ficações , a fim de não aumentar a desgraça por sua culpa. Er-
gueram o acampamento perto dos mananciais e cercaram-no de
I . O mar d r iárico.
205
 TITO I fVIO
trincheiras. Entretanto, eles próprios confessavam com dolorosa
ironia a inutilidade de seu trabalho e esforços, objeto de saber·
bas críticas do inimigo.
Acabrunhados, os cônsules nem pensavam em convocar
uma assembléia, pois não havia mais tempo para deliberações
nem socorros. Os legados e os tribunos reuniam-se espontanea-
mente, e os soldados, de olhos fixos no pretório, pediam um
auxílio que os próprios deuses imortais teriam dificu ldade em
prestar.
Desespero dos romanos. 3. A noite não os surpreen-
Conselhos de Herênio Pôncio deu em meio às delibera-
aos samnitas. ções, mas em meio às la-
mentações. Cada um reagia
conforme seu temperamento. Um dizia : " Avancemos apesar
de todos os obstáculos". Outro : "Escalemos estes mon tes, atra·
vessemos estes bosques, marchemos por onde quer que pos·
somos levar nossas armas. Basta que alcancemos este inimigo que
vimos derrotando há trinta anos. Qualquer terreno será favo-
rável e fácil para o romano combater contra o pérfido samnita " .
Outro: "Aonde e por onde marcharemos? Estamo-nos preparan-
do para arrancar estes montanhas de seus alicerces? Enquanto
nos dominarem estes montes, por onde pretendemos chegar ao
inimigo? Armados ou sem armas, bravos ou covardes, todos
igualmente estamos cercados e vencidos. O inimigo nem sequer
mostrará a espada para que tenhamos morte honrosa . Sem se
mexer, ele terminará a guerra" . Assim passaram a noite trocan-
do essas palavras. sem pensar em comer ou repousar .
Os sa mnitas, por sua vez, não sabiam como aproveitar-se
daquela situação tão favorável. Por isso julgaram conveniente
consultar por carta a Herênio Pôncio, pai de seu general. Esse
homem de idade avançada já se havia afastado de todos os
cargos não só militares como civis. Contudo, naquele corpo
debilitado, o esp íri to ainda se conservava lúcido. Ao ter conhe-
cimento de que o exército romano se achava cercado en tre os
dois desfiladeiros, respondeu ao emissário de seu filho que
era preciso deixar os romanos saírem intactos o mais cedo
206
HI STóRIA DF ROMA
possível. Esse conselho foi desprezado, mas o emissário voltou
para consultá-lo novamente. Declarou, então. que era preciso
trucidar os romanos até o último soldado.
Essas respostas tão contraditórias como as de um oráculo
ambíguo foram transmitidas ao exército. Mas embora seu próprio
filho fosse um dos primeiros a pensar que o espírito do pai
também fora atingido pela velhice de seu corpo debilitado, ven-
ceu a opinião dos demais que o obrigaram a mandar chamar
o ancião à presença do conselho. Diz-se que, sem protestar, o
ancião se fez conduzir de carro até o acampamento, e diante
da assembléia falou mais ou menos da mesma maneira. sem
alterar sua opinião, acrescentando apenas seus motivos. Seu
primeiro conselho, que acreditava ser o melhor, asseguraria
para sempre, através de tão grande benefício, a paz e a amizade
de uma nação poderosa. O segundo conselho afastaria a guerra
por muitas gerações, pois Roma levaria bastante tempo para
reparar suas forças após a perda desses dois exércitos. Não
havia uma terceira solução.
Seu filho e os outros chefes procuraram saber o que acon-
teceria se adotassem um meio termo, isto é, deixar os romanos
partirem incólumes depois de impor-lhes condições conforme
o direito da guerra sobre um povo vencido. "Essa decisão, res-
pondeu ele, é das tais que não fazem amigos nem suprimem
inimigos. Se deixais esses homens com vida depois de os terdes
humilhado com a desonra , a nação romana é tal que não ficará
tranqüila depois de uma derrota . Viverá sempre em seu cora-
ção a lembrança do ultraje que sofreram nestas circunstâncias.
E enquanlo não vos tiver cas tigado inúmeras vezes. ela não
ficará tranqüila".
Condições humilhantes 4 . Nenhum dos dois conselhos
impostas aos romanos foi aceito e Herênio abandonou
pelos samnitas. o acampamento, voltando para
sua casa. Os romanos, por sua
vez, faziam inúteis tentativas para escapar. fá começava a haver
carência de víveres quando. vencidos pela necessidade, enviaram
207
 TITO LIVJO
legados para pedir primeiro uma paz honrosa e, caso não o con·
seguissem, provocar o inimigo ao combate. Pôncio respondeu·
lhes que a guerra havia terminado, e, se mesmo vencidos e pri-
sioneiros não sabiam confessar sua sorte, ele os faria passar sob
o jugo, sem armas, apenas com a roupa que tinham no corpo.
As outras condições de paz seriam iguais para vencedores e ven-
cidos. Se abandonassem o território samnita e retirassem seus co-
lonos, romanos e samnitas viveriam independentes, cada um com
suas leis, de acordo com um tratado baseado na justiça. Sob
essas condições estaria disposto a tratar com os cônsules. Caso
não fossem todas aceitas, proibia aos legados que voltassem a
sua presença.
Quando os emissários transmitiram essas notícias, ergueram-
se subitamente profundos lamentos e grande tristeza se apoderou
dos romanos. A consternação não teria sido maior, ao que parece,
se lhes houvessem dado a notícia de que todos marchariam para
a morte. Depois de longo silêncio, como os cônsules não pudes-
sem pronunciar-se nem a favor de tratado tão humilhante, nem
contra um tratado tão necessário, Lúcio Lêntulo ', então consi·
derado o principal legado por seu valor e missões que havia
cumprido, disse:
"Cônsules, muitas vezes ouvi meu pai dizer que fora ele
o único dos senadores a não opinar a favor do resgate do
Capitólio das mãos dos gauleses com o ouro da cidade. Argu·
mentara que nem fossos nem paliçadas nos separavam de um
inimigo extremamente preguiçoso para o trabalho das fortifica-
ções, e que ainda era possível abrir caminho através de suas
fileiras. Corríamos grave perigo mas não havia certeza de sermos
destruídos. Ora, os romanos de então, do alto do Capitólio,
puderam precipitar-se sobre o inimigo, empunhando suas armas,
como muitas vezes fazem os sitiados contra seus sitiantes. Assim,
se tivéssemos um meio de sair ao encontro do inimigo, em
posição vantajosa ou desvantajosa, a mim não me faltaria o
caráter que herdei de meu pai para aconselhar que o fizéssemos.
2. Fora cônsul no ano 327 a. C.
208
HISTORIA DE ROMA
Na verdade, confesso que é glorioso morrer pela pátria, e estou
disposto a sacrificar-me pelo povo romano e suas legiões ou
a precipitar-me no meio dos inimigos. Mas vejo aqui a pátria
e todas as legiões romanas. Mesmo que estes soldados quisessem
precipitar-se espontaneamente numa morte certa, o que se sal-
varia com sua morte? Dir-se-á: "As casas de Roma, suas mura·
lhas e a multidão que a habita". Por Hércules, com a destruição
do exército tudo será abandonado e não conservado. Com efeito,
quem defenderá a cidade? Acaso a multidão sem armas e des-
preparada para a guerra? Sim, do mesmo modo que a defendeu
contra o ataque gaulês. Suplicarão eles um exército aos veienses
e um chefe como Camilo? Aqui se acham todas as nossas espe-
ranças e todas as nossas forças. Salvá-las é salvar a pátria.
Entregá-las à morte é abandonar e trair a pátria. "Mas, dir-se-á,
a rendição é vergonhosa e indigna". O amor à pátria é bastante
forte para que a salvemos com a nossa morte ou com a nossa
ignomínia, se necessário. Soframos, pois, esta humilhação por
maior que seja, e obedeçamos à necessidade que nem os pró-
prios deuses podem evitar. Vamos, cônsules, resgatai com o
preço de nossas armas a cidade que nossos antepassados resga-
taram a peso de ouro··.
Rendição dos romanos . 5 . Os cônsules partiram ao en·
contro de Pôncio, mas quando o
vencedor falou em tratado declararam que era impossível con-
cluí-lo sem a aprovação do povo, a intervenção dos feciais e de-
mais cerimônias religiosas. Assim, a paz Caudina não foi con-
cluída por um tratado, como geralmente se crê e como o pró-
prio Cláudio escreveu, mas sim por meio de fiança. Que neces-
sidade haveria de fiadores ou reféns num tratado que se reali-
zava na seguinte fórmula : " O povo que não se mantiver fiel às
condições ajustadas seja atingido pelos golpes de Júpiter como
o porco sob os golpes dos feciais "? Prestaram fiança os cônsu-
les, os legados, os questores, os tribunos militares, e os nomes
de todos esses fiadores foram conservados. Caso tivesse sido
concluído um tratado. só teriam constado os nomes dos dois
209
 TITO UVJO
feciais . E em virtude da dilação necessária à conclusão do tra-
tado, foram exigidos como reféns seiscentos cavaleiros, que pa-
gariam com a vida qualquer traição ao pacto. Fixou-se em segui-
da o momento em que deveriam ser entregues os reféns e o
exército desarmado passar sob o jugo.
As lamentações recomeçaram com a chegada dos cônsules
ao acampamento, de tal modo que os soldados mal podiam
conter o ímpeto de agredir os homens cuja imprudência os
levara àquele local, e cuja covardia iria fazê-los sair mais vergo-
nhosamente ainda do que haviam entrado. Eles não haviam
enviado nem guias nem exploradores ao local. Haviam-se preci-
pitado cegamente num fosso como animais.
Os soldados entreolhavam-se e contemplavam suas armas
que em breve teriam de entregar, seus braços que iriam ser
desarmados e seus corpos que ficariam à mercê do inimigo.
Punham-se a imaginar o jugo por que teriam de passar, as
zombarias do vencedor com sua insultante altivez diante de
homens desarmados desfilando entre suas tropas. Depois, aquela
deplorável marcha de soldados desonrados através das cidades
aliadas, para voltar a sua pátria e a suas famílias, onde tantas
vezes eles e seus antepassados haviam entrado triunfantes. Só
eles haviam sido vencidos sem ferimentos, sem empunhar armas
nem travar combate. Só eles não haviam sequer sacado a espada
nem lutado com o inimigo. Em vão a coragem lhes fora dada!
Enquanto assim murmuravam, chegou a hora fatal da
ignomínia que haveria de ser mais triste ainda do que tinham
esperado. Em primeiro lugar, receberam ordem de sair da trin-
cheira vestidos apenas com a túnica e sem armas. Os reféns,
à frente , foram entregues e levados como prisioneiros. Em se-
guida, foi a vez dos cônsules. Retiraram-lhes o manto e despe-
diram os lictores.
Ao presenciar aquele ato, os soldados, que há pouco os
execravam e queriam destruí-los, sentiram-se tão comovidos que,
esquecendo sua própria desgraça, afastaram os olhos daquela
degradação de sua majestade suprema, como de um espetáculo
ímpio.
210
HISTúRIA DE ROMA
Passagem dos romanos 6 . Quase seminus, os cônsu-
sob o jugo dos samnitas. les foram os primeiros a passar
Acolhida dos campânios. sob o jugo. Depois todos os che-
fes, desde os mais elevados pos-
tos até os mais baixos, foram expostos à ignomínia, e em segujda
todas as legiões, uma a uma. Dispostos em redor, de armas na
mão, os inimigos dirigiam-lhes insultos e remoques. Ameaça-
vam-nos mesmo com suas espadas e muitos dos nossos foram
feridos ou mortos por terem ofendido ao vencedor, revelando
em seu semblante a indignação que lhes causavam tantas ofensas.
Assim, inclinaram a cabeça sob o jugo e, o que de certo modo
era ainda mais cruel, aos olhos do inimigo. Ao atravessarem o
desfiladeiro, embora se sentissem como que saindo do inferno e
vendo a luz pela primeira vez, essa mesma luz, que lhes fazia
ver seu exército desonrado, lhes pareceu mais triste do que
qualquer morte. Por isso, conquanto pudessem chegar a Cápua
antes do anoitecer, como duvidassem da fidelidade de seus alia-
dos e a vergonha os detivesse, prostraram-se por terra à beira da
estrada não longe de Cápua.
Quando os campânios se inteiraram do ocorrido, sua natu-
ral altivez cedeu lugar a urna justa compaixão por seus aliados.
Na mesma hora enviaram generosamente aos cônsules as insíg-
nias de sua autoridade, aos lictores os fasces e aos soldados
armas, cavalos, roupas e víveres. Ao chegarem os romanos a
Cápua, saíram-lhes ao encontro o Senado, o povo, todos, enfim.
cumprindo legítimos deveres de hospitalidade pública e privada.
Mas nem o afável acolhimento de seus aliados, nem sua atitude
solidária conseguiam arrancar aos romanos uma só palavra ou
fazê-los levantar os olhos para fitar os amigos que os conso-
lavam. Maior do que a tristeza, um sentimento de pudor os
foFçava a afastar-se das conversas e da companhia dos homens.
No dia seguinte, quando partiram de Cápua, alguns jovens
da nobreza receberam o encargo de acompanhá-los até as fron-
teiras campânias. Ao regressarem, chamados à cúria 3 e inter-
3 . O termo, especifico do Senado de Roma. é aplicado aqui ao
Senado de Cápua.
21 I
 TITO UVIO
rogados pelos velhos senadores, relataram que os romanos lhes
haviam parecido ainda mais tristes e de ânimo abatido, e que
durante sua marcha haviam permanecido silenciosos e quase
mudos. Jazia por terra a famosa altivez romana. Juntamente com
as armas fora-lhes arrebatada também a coragem. Não corres-
pondiam às saudações recebidas, não respondiam a perguntas,
nem sequer abriam a boca. Pareciam tão apavorados como se
ainda pesasse em seu pescoço o jugo sob o qual haviam passado.
Os samnitas não haviam obtido uma vitória apenas estrondosa,
mas definitiva. Não fora a cidade de Roma que eles haviam
dominado como outrora fizeram os gauleses, mas o que poderia
ainda suscitar muitas guerras - o valor e a altivez dos romanos.
Discurso de Ofílio Calávio. 7 . Quando se faziam e ou-
Reação de Roma. viam tais afirmações e já se
começava a lamentar naque-
le Senado de fiéis aliados a extinção da fama de Roma, diz-se
que Ofílio CaJávio, filho de úvio, ilustre por sua origem e altos
feitos, e além disso venerável por sua idade avançada, declarou
que considerava os fatos de maneira totalmente diferente. Aquele
silêncio obstinado, aqueles olhos fixados no chão, aqueles ouvi-
dos surdos a qualquer consolo, aquela vergonha de encarar a luz
do dia, eram antes indícios de imenso ódio prestes a explodir
das profundezas de suas almas. Ou ele desconhecia o caráter
dos romanos ou muito em breve aquele silêncio faria os samnitas
soltar dolorosos gritos e gemidos. A lembrança da paz Caudina
seria mais funesta para os samnitas do que para os romanos.
Estes teriam sempre seu valor onde quer que se encontrassem,
enquanto que os samnitas não encontrariam em qualquer parte
as Forças Caudinas.
Roma já tomara conhecimento de seu vergonhoso desastre.
Primeiro correra o boato de que o exército estava sitiado.
Porém, mais triste ainda do que a notícia do perigo foi a
notícia da paz ignominiosa. Ao primeiro rumor de que o exér-
cito estava sitiado, iniciara-se o recrutamento de tropas. Mas
quando se teve conhecimento da rendição efetuada em condições
tão humilhantes, os preparativos de socorro foram abandonados
212
HISTóRIA DE ROMA
e, sem intervenção da autoridade pública e de comum acordo,
a cidade imediatamente se cobriu de luto. Fecharam-se as tendas
em redor do Fórum, e no próprio Fórum os negócios foram
suspensos antes mesmo de haver uma ordem nesse sentido. Os
cidadãos despojaram-se de seus laticlavos 4 e anéis de ouro, e
a desolação da cidade quase sobrepujava a do exército. Não
estavam apenas irritados contra os generais, contra os que
haviam aconselhado e garantido a paz, mas odiavam até mesmo
os soldados inocentes que se recusavam a receber na cidade e
em suas próprias casas.
A exaltação arrefeceu com a chegada do exército, digno
da compaixão mesmo dos mais irritados. Na verdade, não foi
como soldados que regressassem à pátria sãos e salvos contra
toda a expectativa, mas com o aspecto de desgraçados prisio-
neiros, que eles penetraram tarde da noite em Roma, correndo
a esconder-se em suas casas. Nem na manhã seguinte, nem nos
dias subseqüentes ousaram apresentar-se no Fórum ou em pú-
blico.
Ocultando-se em suas casas, os cônsules também não reali-
zaram nenhum ato de sua magistratura, exceto aquele que um
senadoconsulto lhes ordenava, a nomeação de um ditador para
realizar as eleições. Foi nomeado Quinto Fábio Ambusto e para
comandante da cavalaria Públio ~lio Peto. Todavia, como a
eleição desses homens fosse considerada viciosa, substituíram-
nos por Marco Emílio Papo, como ditador, e Lúcio Valério
Fisco, como comandante da cavalaria. Também estes não presi-
diram as eleições e, como o povo estava desgostoso com os
magistrados daquele ano, passou-se a um interregno. Foram
inter-reis Quinto Fábio Máximo e Marco Valério Corvo, que
nomeou cônsules Quinto Públio Filo, pela terceira vez, e Lúcio
Papírio Cursor, pela segunda vez, com o consentimento incon-
testável de todos os cidadãos, pois eram no momento os generais
mais ilustres.
4 . Espécie de banda purpúrea, com guarnições em forma de cabeça
de cravo, aplicada verticalmente na parte dianteira da túnica dos sena·
dores e cavaleiros.
2 13
 T ITO LIVIO
Discurso de Espúrio Postúmio 8 . Conforme decisão do
no Senado. Senado, os cônsules entra-
ram na posse de seus car-
gos no mesmo dia de sua nomeação 5 • Terminadas as cerimô-
nias e promulgados os senadoconsultos de rotina, a paz Cau-
dina foi posta em pauta. Portador dos fasces 6 naquele dia, Pú-
blio disse: "Tens a palavra, Espúrio Postúmio" .. Com a mesma
ex~ressão de tristeza que revelara ao passar sob o jugo, ele
asstm falou:
"Não ignoro, cônsules, que é para me humilhar e não para
me enaltecer que se me ordena de levantar-me e falar em pri-
meiro lugar, não como senador, mas como réu cu lpado de uma
guerra infeliz e de uma paz ignominiosa. Entretanto, como não
vos pronunciastes sobre nosso delito ou sobre nosso castigo,
quero abster-me de uma justificativa que não seria muito difícil
diante de homens que conhecem os azares e as necessidades
humanas, para expor-vos brevemente minha opinião sobre o
problema que pusestes na ordem do dia. Esta opinião demons-
trará se foi a mim que poupei ou a vossas legiões quando assumi
u_m co~promisso que, embora humilhante, me pareceu necessá-
n~ . SeJa como for, esse compromisso, assumido sem a aprova-
çao ?opovo romano, não o obriga de maneira alguma, e mesmo
constderando-se a promessa feita, nada devemos aos samnitas a
não ser nossas próprias pessoas. Sugiro que os feciais nos entre-
guem nus e algemados, pois desse modo libertaremos a cons-
ciên~ia do povo, se de algum modo a tivermos oprimido. 'f
prectso que nenhum fato divino ou humano o impeça de reco-
~eçar uma guerra justa e legítima. Enquanto isso, acho que os
consules devem recrutar um exército, equipá-lo e mobilizá-lo.
~as não se deve pisar em território inimigo antes de serem rea-
lizadas todas as formalidades necessárias para entregar nossas
pessoas.
5. Tratava-se de uma decisão excepcional, porque normalmente
entre o dia da eleição e o dia da posse do cargo discorriam seis meses.
6 . Isto é. o poder que era exercido em alternância pelos cônsules.
214
HISTORIA DE ROMA
"A vós, deuses imortais, peço-vos e suplico-vos: se não
permitistes que os cônsules Espúrio Postúmio e Tito Vetúrio
fizessem contra os samnitas uma guerra vitoriosa, pelo menos vos
baste ter-nos visto passar sob o jugo, sermos atados por uma
promessa infame, sermos entregues nus e algemados aos inimi-
gos, recaindo sobre nossa;; cabeças toda a cólera dos inimigos.
Permiti que os novos cônsules e as legiões romanas façam con-
tra os samnitas uma guerra tão afortunada como toda:; as que
foram feitas antes de nosso consulado" .
Essas palavras provocaram tanta admiração e tanta com-
paixão na assembléia que mal se podia crer fosse o mesmo Es-
púrio Postúmio o autor de uma paz tão vergonhosa. Deplorava-
se amargamente que um homem como aquele tivesse de sofrer
um suplfcio excepcional em mãos de um inimigo encolerizado
com a ruptura do tratado de paz. Mas embora cumulando-o de
louvores, todos concordavam com sua opinião, à exceção dos
tribunos da plebe Lúcio Lívio e Quinto Mélio, que fizeram
ligeira tentativa de oposição. Declararam que não se libertaria
o povo do compromisso religioso com a entrega dos cônsules,
a menos que, em relação aos samnitas, se restabelecesse total-
mente a situação anterior à paz de Cáudio. Não mereciam cas-
tigo por terem salvado o exército do povo romano ao presta-
rem-se como garantia de paz. Não podiam ser entregues ao ini-
migo nem expostos ao ultraje, em vista de seu caráter inviolável.
Réplica de Espúrio Postúmio. 9 . Postúmio porém repli·
cou: " Entregai-nos por en·
quanto. Somos simples cidadãos e podeis entregar-nos sem
atentado à religião. Depois entregareis também estes homens
sacrossantos, logo que terminarem seu mandato. Mas se quereis
ouvir-me, mandai antes açoitá-los com as varas nos comícios.
para que deste modo paguem o adiamento do castigo. Quanto ao
que dizem, isto é, que não se libertaria o povo do compromisso
religioso com a nossa entrega , acaso existe alguém tão igno-
rante do direito dos feciais para não compteender que essa lin-
guagem lhes é inspirada pelo temor de serem entregues e não
215
 TITO UVIO
por convicção do que dizem? Não nego, senadores, que as pro-
messas sejam tão sagradas quanto os tratados para todos aqueles
que respeitam igualmente as obrigações para com os deuses e a
palavra dada por um homem. Mas afirmo que, sem o consenti-
mento do povo, nada que comprometa o povo se pode fazer. Se.
com a mesma soberba com que os samnitas nos arrancaram
essa promessa, nos tivessem feito pronunciar a fórmula legítima
pela qual se rendem as cidades, diríeis vós, tribunos , que o povo
romano se havia rendido, que esta cidade, seus templos, seus
santuários, seu território e suas águas pertenciam aos samnitas?
Não falo em rendição, uma vez que é de promessa que se trata.
Que sucederia se tivéssemos prometido que o povo romano aban-
donaria esta cidade? Que a incendiaria? Que não haveria mais
magistrados, nem Senado, nem leis? Que teria de obedecer a
reis? " Não o permitam os deuses! ", diríeis. Mas a indignidade
das condições não destrói os vínculos da promessa. Se há um
ponto no qual o povo pode estar preso, ele o estará em todos.
Não importa, e isso talvez impressione a alguns, que se trate de
um cônsul, um ditador ou um pretor que tenha assumido o com-
promisso. Os próprios samnitas o compreenderam quando não
julgaram suficiente a garantia dos cônsules e forçaram os lega-
dos, os questores e os tribunos militares a assumir também o
compromisso.
"E agora ninguém me pergunte por que me comprometi
daquele modo, quando essa atitude excedia o <lireito de um côn-
sul e eu não podia prometer-lhes, em vosso nome, uma paz que
não dependia de meu arbítrio, quando não me autorizastes a
fazê-lo.
" Senadores, nada foi feito em Cáudio segundo os desígnios
humanos. Os deuses imortais privaram do uso da razão a vossos
generais e aos generais inimigos. Não tomamos precauções sufi-
cientes nessa guerra, e os inimigos inutilizaram torpemente uma
vitória tão mal-obtida. Confiados apenas nas dificuldades do
terreno que lhes permitiram a vitória, apressaram-se em arreba-
216
HISTóRIA DE ROMA
tar a todo o custo as armas aos soldados que nasceram para elas.
Se estivessem em gozo de suas faculdades mentais, ter-lhes-ia
sido tão difícil enviar embaixadores a Roma, enquanto manda-
vam buscar em seu país anciãos 7 para aconselhá-los? Fazer um
tratado de paz e de aliança com o Senado e o povo? Homens
sem bagagens fariam o percurso em três dias. Nesse ínterim, teria
havido uma trégua até que os legados trouxessem de Roma ou
uma vitória certa ou a paz. Então haveria um compromisso que
teríamos assumido por ordem do povo romano. Mas vós não o
teríeis aprovado e nós não nos teríamos comprometido. Os deu-
ses porém só permitiam um desenlace: os samnitas seriam jogue-
tes de uma espécie de sonho, demasiado belo para que suas
mentes pudessem captá-lo , isto é, que a mesma fatalidade que
detivera nosso exército encarregar-se-ia de entregá-lo; que uma
vitória vã poderia ser anulada por uma paz ainda mais vã ; que
de tudo restaria apenas uma promessa que só comprometia
aquele que a formulara .
" Senadores, realmente, que tratado foi concluído convosco
e com o povo romano? Quem vos pode citar em juízo ou quem
pode dizer-se enganado por vós? O inimigo? O cidadão? Ao
inimigo nada prometestes e a nenhum cidadão encarregastes de
prometer por vós. Nada tendes a ver conosco, a quem não outor-
gastes mandato algum, nem com os samnitas, aos quais nada
prometestes. Somos os responsáveis por nossa promessa aos sam-
nitas. Acusados , responderemos com o que nos pertence, o que
podemos oferecer: nosso corpo e nossa vida. Contra eles o ini-
migo poderá vingar-se, contra eles poderá aguçar suas espadas
e acender sua cólera . Quanto aos tribunos, deliberai se é possí-
vel entregá-los agora ou se é preciso um adiamento. Nós porém,
Tito Vetúrio e todos os demais implicados, levemos aos samnitas
nossas vidas sem valor a fim de expiar nossa promessa, e, por
nosso suplício, devolver a liberdade ao exército romano".
1. Referência a Herênio Pôncio, o velho chefe dos samnitas. que
havia se dirigido ao acampamento (cf. cap. 3)
217
 TITO I (VIO
Orgaoiz.ação de um exército IO. Essa ex posição e seu au·
de voluntários. tor comoveram os senadores
Entrega dos responsáveis e, entre todos os demais as-
aos samnitas. sistentes, os próprios tribu -
nos da plebe, de tal modo
que se declararam à disposição do Senado. Abdicaram imedia-
tamente de sua magistratura e foram entregues aos feciais que
os deveriam conduzir a Cáudio juntamente com os outros.
Após esse senadoconsulto, foi como se Roma resplande-
cesse com uma nova luz. O nome de Postúmio estava em todas
as bocas, louvores o elevavam aos céus e sua atitude era compa-
~ada à dedicação do cônsul Públio Décio e a outras façanhas
Ilustres. O Estado emergia de uma paz servil graças a seus con-
s~lhos e a sua atitude. Ele se oferecia espontaneamente aos suplí-
CIOS e à cólera do inimigo e entregava-se como vítima expiatória
pelo povo romano. Todas as atenções estavam voltadas para as
armas e a guerra: seria possível, algum dia, empunhar armas
contra os samnitas?
Na cidade, onde ferviam a cólera e o ódio, o recrutamento
de tropas realizou-se quase exclusivamente com voluntários. Para
as novas legiões alistaram-se os mesmos soldados, e o exército
marchou para Cáudio, com os feciais à frente. Ao chegarem à
porta da cidade eles mandaram despojar de suas vestes os res-
ponsáveis pela paz e atar-lhes as mãos atrás das costas. Como o
apparitor, por respeito à majestade de Postúmio, lhe deixasse
frouxo o laço, ele protestou : " Por que não apert as a correia
para que eu seja entregue como manda a lei?"
Ao chegarem à assembléia dos samnitas e ao tribunal de
Pôncio, o fecial Aulo Cornélio Arvina assim falou: " Uma vez
que estes homens, sem ordem do povo romano dos quirites,
prometeram que um tratado seria concluído, e por isso são cul-
p~do~ de um delito, eu vô-los entrego para que o povo romano
S~Ja liberado de um crime nefando". Enquanto o fecial pronun-
CJ~va essas palavras, Postümio, com toda a força, bateu-lhe com
o JOelho na perna e disse em voz alta que ele próprio era um
cidadão samnita e o fecial era um embaixador que acabava de
218
HISTORIA DE ROMA
sofrer um ato de violência contrário ao direito dos povos. Por-
tanto, a guerra que o romanos pretendiam declarar era mais
do que justa.
Recusa de Caio Pôncio. I 1. Pôncio então tomou a pala-
vra : " Não aceito a entrega des-
ses homens nem os samnitas tê-la-ão como válida. Se crês, Es-
púrio Postúmio, na existência dos deuses, por que não declaras a
ilegitimidade de tudo isso e não manténs o acordo feito? O que
deveis ao povo samnita são todos aqueles homens que ele subju-
gou, ou então a paz. Mas por que hei de dirigir-me a ti, que vens
com a lealdade que te é possível entregar-te prisioneiro ao ven-
e
cedor? ao povo romano que me dirijo. Se ele lamenta a pro-
messa feita nas Forcas Caudinas, que recoloque suas legiõe
no desfiladeiro onde as encurralamos. Nenhum engodo de parte
a parte. Seja anulado tudo o que antes foi decidido. Que os
romanos retomem suas armas e tenham tudo que tinham às vés-
peras do acordo. Então decidam a guerra e seus projetos cora-
josos Então repudiem sua promessa de paz! Nas mesmas con-
dições, nas mesmas posições que ocupávamos antes de se falar
em paz, façamos a guerra ao invés de acusarmos, nós a lealdade
dos romanos, e os romanos, a promessa de seus cônsules!
Tereis sempre um pretexto para não manter a palavra
quando sois vencidos? Entregastes reféns a Porsena e os rou-
bastes. Resgatastes a peso de ouro vossa cidade aos gauleses e,
no exato momento em que eles recebiam esse ouro, foram mas-
sacrados. Conosco fizestes uma promessa de paz para que resti-
tuíssemos vossas legiões prisioneiras. E agora não ratificais essa
promessa. Conseguis sempre dar aparência de direito à vossa
má-fé. O povo romano não aprova que suas legiões tenham
escapado graças a uma paz ignominiosa? Pois que não aprove
essa paz! Mas, neste caso, devolva ao vencedor as legiões prisio-
neiras, o que seria uma atitude digna da lealdade, dos tratados,
das cerimônias dos feciais. A vida de tantos cidadãos, que tu
pediste em troca do acordo, tu a conservarás, mas a paz que
exigi no acordo em troca desses prisioneiros, eu não a conser-
varei. t a isto, Auto Cornélio, é a isto, feciais, que chamais de
2 19
 TITO uvro
direito dos povos? Esses homens que pretendeis entregar-nos,
eu não os aceito, pois não acho que haja nisso uma atitude váli-
da. Não lhes impeço o regresso a sua cidade, mas partirão presos
à. p.romessa feita , sujeitos à cólera de todos os deuses, de cuja
dtvtndade parecem zombar. Fazei a guerra, uma vez que Espúrio
Postúmio bateu com o joelho na perna de vosso legado e fecial.
Os deuses acreditarão que Postúmio é um cidadão samnita e não
um cidadão romano, e que um samnita praticou violência contra
um legado romano, sendo portanto justo que nos declareis
guerra! Não vos envergonhais de exibir à luz do dia esta farsa
da religião? De fazer rodeios dignos de crianças para faltar com
a palavra dada, vós anciãos e consulares? Vai, lictor, desem-
baraça esses romanos de suas cadeias, e que eles possam ir aonde
quiserem".
Assim os responsáveis pela promessa de paz, depois de da-
rem satisfação pela sua dívida , regressaram incólumes de Cáudio
ao acampamento romano.
Estratagema dos samnitas 12 . Quando ao invés de uma
contra os fregelanos. paz orgulhosa os samnitas vi-
ram renascer uma guerra vio-
lentíssima, não só pensaram no que poderia suceder como chega-
ram a prevê-lo. Tarde demais e inutilmente reconheceram a pru-
dência dos dois conselhos do velho Pôncio. Desprezando-os, eles
haviam substituído uma vitória segura por uma paz duvidosa, e,
tendo perdido a ocasião de fazer o bem ou o mal, teriam agora
de combater contra aqueles mesmos homens dos quais poderiam
ter-se desembaraçado como inimigos ou transformado em amigos.
Embora nenhum combate tivesse ainda experimentado as
forças dos dois adversários, os sentimentos haviam mudado de-
pois da paz Caudina. Postúmio tomara-se mais célebre entre os
romanos, por se ter entregado, do que Pôncio en tre os samnitas,
por ter conseguido uma vitória incruenta. Os romanos já consi-
deravam a possibilidade de fazer a guerra tendo como certa a
vitória, ao passo que os samnitas consideravam-se vencidos a
partir do momento em que os romanos declararam guerra.
220
HISTóRIA DE ROMA
Nesse ínterim, os satricanos aderiram aos samnitas, e a colô-
nia de Fregelas, para onde os sarnnitas se dirigiram seguidos pe-
los satricanos, segundo consta, foi inesperadamen te ocupada du-
rante a noite. A partir daquele m01nento até o amanhecer, o te-
mor manteve os dois adversários inativos. O raiar do dia foi o
sinal de combate. Os fregelanos, que combatiam por seus altares
e seus lares, e eram auxiliados pelo resto da população civil, con-
seguiram sustentar o combate por algum tempo. Mas um estra-
tagema decidiu o combate. Um arauto proclamou que partiriam
incólumes todos os que depusessem as armas. Essa esperança
diminuiu o ardor do combate e por toda a parte os soldados
começaram a depor as armas. Alguns fregelanos mais obstina-
dos, com a espada na mão, abriram caminho pela porta oposta,
e sua audácia foi mais proveitosa do que o temor que tomara
os demais imprudentemente crédulos. Cercados de chamas, invo-
cando inutilmente os deuses e a fidelidade às promessas, foram
todos queimados pelos samnitas.
Os cônsules dividiram entre si o comando dos exércitos:
Papírio marchou contra Lucéria, na Apúlia, onde se achavam
presos os cavaleiros romanos entregues como reféns em Cáudio.
e Públio deteve-se no Sâmnio, para enfrentar as legiões caudia-
nas s. Esse plano desnorteou os samnitas, que nem ousavam diri-
gir-se a Lucéria, por receio de que o inimigo os atacasse pela
retaguarda, nem permanecer onde estavam, por receio de perde-
rem Lucéria se assim agissem. Pareceu-lhes melhor entregarem-se
à sorte e enfrenttar um combate com Públio. Organizaram então
suas fileiras para a luta.
Derrota dos samoitas. 13 . Julgando oportuno dirigir-se
Cerco de Lucéria. aos soldados antes de travar o com-
bate, o cônsul Públio mandou con-
vocar uma assembléia. Com grande presteza os soldados acudi-
ram ao pretório, mas como exigissem, aos gritos, o sinal de
combate, não foi possível ouvir uma só palavra do discurso do
general. Todos estavam exaltados pela recordação do ultraje
8 . Isto é, as tropas samnitas que combateram em Cáudio.
221
 TITO LfVIO
que haviam sofrido. Avançaram para o ataque impelindo os
porta-estandartes e, em sua impaciência por iniciar a luta, não
lançaram os dardos antes de sacar da espada. Como a um
sinal dado, abandonaram os dardos no chão e, com a espada
na mão, avançaram contra o inimigo.
A habilidade do general em organizar as fileiras e dispor
as reservas não teve a menor influência naquela ocasião. A có-
lera que arrebatava os soldados numa espécie de loucura tudo
decidiu. Os inimigos não só foram derrotados mas também, sem
ousar sequer entrar no acampamento retardando sua fuga, dis-
persaram-se e debandaram para a Apúlia. Conseguiram, entre-
tanto, chegar a Lucéria com o exército reunido. O s romanos
penetraram no acampamento inimigo com o mesmo ímpeto que
os levara a precipitar-se no meio de suas fileiras, onde derrama-
ram mais sangue no massacre do que no campo de batalha, e em
sua fúria inutilizaram a maior parte dos despojos.
O outro exército, comandado pelo cônsul Papírio, havia
chegada a Arpos 9 pela orla marítima, atravessando um país que
o acolheu bem, não por ter recebido algum benefício dos roma-
nos, mas por ódio aos samnitas e a suas injustiças.
Naquela época, os samnitas viviam em aldeias nas monta-
nhas e devastavam a planície e a orla marítima, pelo desprezo
que os montanheses geralmente nutrem pelos habitantes da planí-
cie, cujo caráter é mais suave e quase sempre se assemelha ao so-
lo que cult ivam. Se aquela região tivesse sido fiel aos samnitas,
o exército romano ou não teria podido chegar a Arpos ou então
aquele país, si tuado en tre Roma e Arpos , onde havia carência
de tudo, teria interceptado seus comboios. E quando chegaram
a Lucéria, sitiantes e sitiados sofreram as mesmas privações. To-
do o abastecimento dos romanos provinha de Arpos, mas em
quantidades muito pequenas. A infantaria estava encarregada da
vigilância e dos postos de trabalho, de modo que era a cavalaria
que ia buscar o trigo em Arpos e o trazia para o acampamento
em pequenos sacos. Muitas vezes os cavaleiros eram obrigados a
desfazer-se da carga para enfrentar um ataque do inimigo.
9 . Arpos está no coração da Apúlio, próximo à atual Foggia.
222
HISTORIA DE ROM
Os sitiados, porém, antes da chegada do outro cônsul com seu
exército vitorioso, recebia víveres e auxílio das montanhas sam-
nitas. A chegada de Públio reduziu muito todos esses recursos.
Deixando o cerco aos cuidados de seu colega, ele pervagava os
campos para interceptar os comboios do inimigo. Assim, não po-
dendo esperar que os sitiados suportassem por mais tempo a
escassez de víveres, os samnitas que acampavam perto de Lucéria
foram obrigados a reunir suas forças e enfrentar o combate con-
tra Papírio.
Intervenção dos tarentinos. 14 . Nesse ínterim.
Destruição do acampamento samnita. enquanto os dois ad-
versários se prepara-
vam para a luta, chegaram legados de Tarento com a missão de
convidar os samnitas e os romanos a cessarem a guerra. Os taren-
tinos combateriam contra aquele que se recusasse a depor as
armas e lutariam a favor de seu adversário.
Ao ouvir os embaixadores e fingindo-se abalado por suas
declarações, Papírio respondeu que discutiria o assunto com seu
colega. Mandou então chamar o outro cônsul, mas, ao invés de
discutir com ele um assunto já decidido, empregou todo o tempo
da suposta conferência em preparativos para o combate e deu
ordem para o ataque. . ~ . . .
Enquanto os cônsules se ocupavam das cenmomas dtvmas
e humanas que costumavam realizar antes de enfrentar a luta,
os legados tarentinos procuraram-nos na ex~ectativa d: ~ma res-
posta. Papírio ent,ã~ dec:arou-lhes: :·Tarent~n.os, o pulano .a~~n­
ciou que os ausptctos sao favoráveis. As vtllmas dos sacnftctos
nos deram excelentes presságios. Como vedes, contamos com a
vontade dos deuses para este combate".
Ordenou então o avanço das insígnias e a saída dos solda-
dos do acampamento, increpando contra a vaidade de uma na-
ção que, incapaz de governar-se a si mesma, ~git.ada por. discór-
dias e dissensões internas, julgava-se com o dtretto de dttar aos
outros a paz ou a guerra.
Os samnitas porém, que se haviam descuidado de preparar-
se para a guerra. fosse porque realmente desejavam a paz. fosse
223
 TITO LfVIO
porque tinham interesse em simulá-lo para conciliar a boa von-
tade dos tarentinos, ao verem de súbito os romanos preparados
para o combate, gritaram que estavam de acordo com as pro-
postas dos tarentinos. Não desceriam ao campo de batalha nem
sairiam de suas trincheiras para a luta. Prefeririam ser engana-
dos, sofreriam tudo que as circunstâncias impusessem, mas não
desprezariam a proposta de paz dos tarentinos. Os cônsules de-
clararam que aceitavam esse augúrio e rogavam aos deuses que
inspirassem ao inimigo a idéia de não defender sequer suas
trincheiras.
Distribuindo as tropas entre si, os cônsules avançaram até
as fortificações inimigas, atacando-as de todos os lados. Os sol-
dados obstruíam os fossos, arrancavam as paliçadas e lançavam
nas dentro do próprio fosso. Impelidos não só por sua natural
coragem, mas também pela cólera que dominava seus espíritos
feridos pela ignom1nia, eles invadiram o acampamento. Em unís-
sono, bradavam que não havia mais Forcas, nem Cáudio, nem
desfiladeiros impraticáveis, onde a astúcia triunfara orgulhosa-
mente da imprudência. Chegara a vez da coragem romana que
nem fossos nem paliçadas conseguiriam deter. Massacraram igual-
mente os que resistiam e os que tentavam escapar, homens arma-
dos ou sem armas, escravos, homens livres, adultos, crianças e
animais. Nenhum ser vivo teria sobrevivido se os cônsules não
tivessem dado o sinal de retirada e, com ordens e ameaças,
forçado os soldados, ávidos pelo massacre, a sa1rem do acampa-
mento inimigo.
Como os soldados se mostrassem irritados por lhes arreba-
tarem o prazer da vingança, os cônsules lhes dirigiram a palavra
para convencê-los de que eles próprios não haviam sentido nem
sentiriam menos ódio ao inimigo do que os soldados. Ao con-
trário, assim como haviam comandado a guerra, comandariam
insaciavelmente a punição do inimigo se a lembrança dos seis-
centos cavaleiros detidos em Lucéria como reféns não lhes tivesse
controlado o ardor, pois receavam que, perdida a esperança de
obter perdão e cego pelo ódio, o inimigo se voltasse contra
aqueles infelizes, ansioso por matar antes de morrer. Os solda-
dos aplaudiram essa atitude e até mesmo se alegraram por terem
224
HISTORIA DE ROMA
encontrado alguém que lhes controlasse a cólera. Concordaram
que era necessário tudo suportar para não pôr em perigo tantos
representantes da juventude romana.
Rendição dos samnitas. 15. Dissolvida a assembléia, hou-
ve uma reunião para decidir se
todas as tropas seriam enviadas para sitiar Lucéria ou se um dos
dois generais, à frente de seu exército, faria uma incursão no
território dos ápulos, cuja disposição havia parecido equívoca
até então. Partindo para percorrer a Apúlia, o cônsul Públio
numa única expedição subjugou diversos povos e recebeu a
outros como aliados, sob condição. Papírio, que havia ficado
para sitiar Lucéria, também obteve um resultado correspondente
as suas expectativas. Com efeito, como ordenara a vigilância de
todas as estradas por onde chegavam víveres ao Sâmnio, os sam·
nitas da guarnição de Lucéria. vencidos pela fome. enviaram le-
gados ao cônsul romano para que este levantasse o cerco em tro-
ca dos cavaleiros que eram a causa da guerra. Papfrio respondeu-
lhes que deveriam consultar Pôncio, filho de Herênio, sob cujas
ordens os romanos haviam passado sob o jugo, para saber qual
o castigo que mereciam sofrer os vencidos. Mas já que haviam
preferido deixar ao inimigo o cuidado dê fazer-lhes justiça a
fazê-la eles mesmos, ordenava-lhes que anunciassem aos habi-
tantes de Lucéria que deixassem no interior de suas muralhas
as armas, as bagagens, os animais de carga e toda a multidão
de homens inaptos para a guerra. Quanto aos soldados, apenas
com as suas vestes, passariam sob o jugo, para vingar a ignomí-
nia que haviam feito sofrer aos romanos, não sendo eles. por-
tanto, os primeiros a fazê-lo.
Nenhuma condição foi rejeitada e sete mil soldados passa-
ram sob o jugo. Foram capturados imensos despojos em Lucéria
e retomadas as insígnias e as armas perdidas em Cáudio. Final-
mente, o que superou todas as alegrias, foram libertados os seis-
centos cavaleiros que haviam sido entregues como penhor de paz
e que os samnitas haviam conservado presos em Lucéria.
Talvez o povo romano jamais tenha devido uma vitória
tão brilhante a uma brusca mudança da sorte, se é verdade.
225
 TITO LIVIO
como li em alguns anais, que Pôncio, filho de Herênio, general
dos samnitas, para expiar a ignomínia sofrida pelos cônsules,
passou sob o jugo com seus soldados. Não me parece estranho
que não se saiba ao certo se o general inimigo se rendeu e passou
sob o jugo. O que mais me admira é que haja dúvidas se todas
as vitórias em Cáudio e, depois, em Lucéria, foram conseguidas
pelo ditador Lúcio Cornélio, juntamente com o comandante da
cavalaria Lúcio Papírio Cursor. Não sei se foi ele quem , como
vingador exclusivo da humilhação sofrida por Roma , recebeu
as honras do triunfo, mais merecido talvez até aquela época, de-
pois do de Fúrio Camilo, ou se essa glória coube aos cônsules,
sobretud') a Papírio. A essa dúvida acrescenta-se outra: nas elei-
ções seguintes teria sido Papírio Cursor o cônsul que permane-
ceu no cargo, graças a sua vitória em Lucéria, reeleito pela ter-
ceira vez (juntamente com Quinto Áulio Cerretano, cônsul pela
segunda vez) , ou Lúcio Papírio Mugilano e, neste caso, teria
havido erro no sobrenome?
Massacre da guarnição samnita. 16. O certo é que a par-
Retrato de Papírio Cursor. tir desse momento foram
os cônsules que termina-
ram a guerra. Num único combate decisivo, ÁuJio pôs fim à
guerra com os frentanos , recebendo a rendição da cidade, onde
o exército derrotado se refugiara, e exigindo a entrega de reféns.
O outro cônsul não foi menos feliz na luta contra os satricanos
que, sendo cidadãos romanos, haviam-se aliado aos samnitas após
a derrota de cáudio, tendo acolhido uma guarnição samnita em
sua cidade.
Quando o exército chegou diante das muralhas de Sátrico,.
apresentaram-se legados para suplicar a paz. O cônsul porém
respondeu-lhes rudemente que só voltassem à sua presença após
terem massacrado ou entregado a guarnição samnita. Essas pala-
vras aterrorizaram mai s os colonos do que a aproximação do
exército romano. Os legados insistiram junto ao cônsu l, pergun-
tando-lhe como poderiam eles, tão poucos e tão fracos, apode-
rar-se de uma guarnição tão forte e bem-a rmada . O cônsul des-
pediu-os ordenando-lhes que consultassem aqueles que os haviam
226
HISTORIA DE ROMA
aconselhado a receber a guarnição em sua cidade. Depois de
conseguirem, com grande dificuldade, permissão para consultar
seu Senado 10 sobre a proposta do cônsul antes de dar-lhe uma
resposta, voltaram a Sátrico.
O Senado estava dividido em duas facções : os responsáveis
pelo abandono da aliança com o povo romano chefiavam uma ,
e os cidadãos fiéis constituíam a outra. Ambas, entretanto, riva-
lizavam-se no empenho de satisfazer o cônsul a fim de obter a
paz.
Como a guarnição samnita não estava preparada para sus-
tentar o cerco e dispunha-se a partir na noite seguinte , uma das
facções julgou suficiente informar ao cônsul a hora da noite e a
porta por onde o inimigo sairia. A outra, responsável pela
aliança com os samnitas, na mesma noite mandou abrir uma por-
ta para que o cônsul e seus soldados pudessem penetrar secreta-
mente na cidade. Graças a essa dupla traição, a guarnição samnita
foi inesperadamente atacada pelos romanos que se haviam escon-
dido nos bosques, à beira da estrada, enquanto da cidade repleta
de inimigos ouvia-se erguer um clamor. No espaço de uma hora.
os samnitas foram massacrados , os satricanos aprisionados e a
situação controlada pelo cônsul.
Dep01:1 de fazet um inquérito para averiguar quais os res-
ponsáveis pela sublevação, o cônsul mandou açoitar com as varas
e decapitar todos os culpados. Desarmou os habitantes e deixou
forte guarnição em Sátrico.
Em seguida, Papírio Cursor regressou a Roma para receber
o triunfo, segundo os historiadores que atribuem a esse general
a retomada de Lucéria e a subjugação dos samnitas. Foi ele. sem
dúvida, um guerreiro digno dos maiores louvores, por sua gran-
deza de alma e por seu extraordinário vigor físico . Tornou-se
famoso também pela agilidade que lhe granjeou o cognome de
Cursor. Diz-se que nenhum contemporâneo podia vencê-lo na
corrida, fosse pelo natural vigor de suas pernas fosse por treina-
mento. Ninguém comia ou bebia mais do que ele. Nenhum chefe
foi mais rigoroso na disciplina militar, tanto pa ra com o infante
lO . Naturalmente . o Senado dos satricano>.
227
 TITO uvro
quanto para com o cavaleiro, pois ele próprio era infatigável.
Um dia os cavaleiros ousaram pedir-lhe em recompensa por uma
vitória que os aliviasse um pouco de seus trabalhos. " Para que
não digais que não vos dispenso de nada, respondeu ele, dis-
penso-vos de passar a mão pela garupa de vossos cavalos quando
desmontardes". Exercia igualmente com extrema energia o co-
mando dos aliados e de seus concidadãos. O pretor de Preneste
hesitara, por medo, em mandar avançar seus soldados da reser-
va para a primeira linha . Passeando diante de sua tenda, Papfrio
mandou chamá-lo e ordenou ao lictor que preparasse o machado.
Ao ouvir essas palavras o pretor ficou imóvel . e Papfrio acres-
centou : " Vai , lictor, corta esta raiz que atrapalha os que andam " .
Depois de ter amedrontado o pretor com a menção do suplfcio
extremo, infligiu-lhe uma multa e mandou-o embora.
Naquela época, sem dúvida alguma a mais fecunda de to-
das em homens valorosos, não houve um só varão que oferecesse
mais sólido apoio ao Estado romano. Houve quem julgasse que,
como general, ele se teria equiparado a Alexandre. o Grande , se
este após subjugar a Ásia tivesse empunhado armas contra a
Europa.
Digressão sobre as possibilidades 17 . Pode-se observar
de Alexandre, o Grande, na Itália. que, desde o início
desta obra, procurei
não me afastar, além do necessário, da cronologia dos fatos ,
nem buscar variedade no relato através de digressões, com
o intuito de proporcionar uma espécie de agradável diverti-
mento ao leitor e repouso ao meu espírito. Contudo, ao men-
cionar tão grande rei e general, sinto-me levado a registrar aqui
as reflexões que mais de uma vez me ocuparam secretamente
o pensamento. Permiti-me, pois, anaüsar qual teria sido, para o
Estado romano, o resultado de uma guerra contra Alexandre.
O que me parece mais importante na guerra é o número
e a coragem dos soldados, o talento dos chefes e a sorte, pode-
rosa em todos os assuntos humanos , principalmente na guerra .
Para quem considera esses elementos separadamente e em con-
junto. o Império Roma no teria facilmente permanecido invicto
228
IIISTORIA DE ROMA
diante de Alexandre, do mesmo modo que diante de outros reis
e nações. Em primeiro lugar, começando pela comparação entre
os chefes, na verdade não nego que Alexandre tenha sido um
general extraordinário. Contudo, o que o torna mais ilustre é o
fato de ter sido o único e ter morrido jovem, na fase de cresci-
mento do seu país, sem ter experimentado os azares da sorte.
Para não mencionar outros reis e generais ilustres que fo-
ram grandes exemplos das vicissitudes humanas, refiro-me a Ciro,
tão celebrado pelos gregos. Que outra coisa o expôs à incons-
tância da sorte a não ser sua longa vida , como aconteceu recen-
temente ao grande Pompeu? Passarei em revista os generais ro-
manos, não todos os de todas as épocas, mas apenas aqueles que,
como cônsules ou ditadores, Alexandre teria de combater: Marco
Yalério Corvo, Caio Márcio Rútilo, Caio Sulpício, Tito Mânlio
Torquato, Quinto Públio Filo, Lúcio Papírio Cursor, Quinto
Fábio Máximo, os dois Décios, Lúcio Volúmnio, Mânio Cúrio.
Mais tarde teria igualmente encontrado grandes homens, caso
tivesse feito a guerra contra os cartagineses antes de fazê-la
contra os romanos, e tivesse vindo à Itália já mais idoso. Qual-
quer um desses homens possuía a mesma coragem e o mesmo
talento de Alexandre. Por outro lado, a disciplina militar, trans-
mitada de geração a geração desde a origem da cidade, havia
chegado a formar uma arte sujeita a princípios imutáveis. Assim
os reis haviam conduzido suas guerras, assim o fizeram os que
expulsaram os reis, os Júnios e os Valérios, do mesmo modo
que os que se lhes seguiram, os Fábios, os Qüíncios, os Corné-
lios. Assim o fez Fúrio Camilo, que esses jovens contra os quais
Alexandre teria de combater já haviam conhecido velho.
Os feitos de Alexandre como soldado não o tornaram me-
nos notável , mas teria ele fei to recuar em combate, se os tivesse
como adversários, Mânlio Torquato ou Valério Corvo, ilustres
como soldados antes de sê-lo como generais? Teria ele feito
recuar os Décios, que se sacrificaram lançando-se entre os ini-
migos? Teria ele feito recuar Papírio Cursor, com sua força
física e firmeza de espírito? Teria sido esse jovem superior em
sabedoria àquele famoso Senado - o Senado romano, para não
229
 TI T O UVIO
mencionar todos os seus membros, do qual nos deu uma idéia
exata o homem que o definiu como uma assembléia de reis?
Seria de temer que Alexandre se mostrasse mais hábil do
que qualquer um dos que acabo de nomear, para estabelecer
seus acampamentos, prover ao abastecimento das tropas, preca-
ver-se contra as emboscadas, escolher o momento do combate,
dirigir bem suas operações e garanti-las com suas tropas de re-
reserva? Ele teria dito que nada tinha a ver com Dario, q ue ar-
rastava at rás de si um exército de mulheres e eunucos, em meio
à púrpura e o ouro, sobrecarregado com o aparato de sua gran-
deza , assemelhando-se mais a uma presa do que a um inimigo,
e a quem Alexandre venceu sem derramar o sangue dos seus e
sem outro mé rito senão o de ter-se atrevido a desprezar, com
razão, aqu ela pretensiosa grandeza. Totalmente diversa da ín-
d ia, através da qual avançara à frente de um exército embriagado
e em permanente desordem, ter-lhe-ia parecido a Itália, quando
deparasse com os desfiladeiros da Apúlia, os montes lucanos e
os vestígios recentes do desastre de sua família , onde seu tio
Alexandre. rei do Epiro, acabara de morrer.
Paralelo entre Alexandre 18 . Falamos de um A lexandre
e os generais romanos. ainda não imerso na prosperi-
dade, na qual ninguém se con-
duziu pior que ele. Se o considerarmos pela disposição de
espíri to que assumiu em sua nova fortuna e pelo novo caráter,
por assim dizer, que lhe deram suas vitórias, ele teria chegado à
Itália muito mais semelhante a Dario do que a Alexandre, e
teria trazido um exército esquecido da Macedônia e degenerado
com a adoção dos costumes persas. Lamento recordar naquele
grande rei a soberba que o fez mudar de trajes, o desejo de ver
seus súditos se prosternarem para lhe render homenagem , a adu-
lação que teria sido insuportável para os macedônios vencidos
e com mais forte razão o eram para os macedô nios vencedores,
os espantosos suplícios que ordenava, o assassínio de seus ami-
gos em meio ao regozijo do vinho e dos banquetes, e a vaidade
de mentir sobre sua estirpe. Que teria acontecido se tivesse
aumentado cada vez mais seu amor ao vinho? Se o mesmo
230
HISTóRIA DE ROMA
tivesse acontecido com sua cólera selvagem c terrível (digo
apenas o que foi afirmado pelos historiadores)? Podemos acre-
ditar que tais vícios não viessem a prejudicar suas qualidades
de general?
O verdadeiro perigo - como costumam repetir os gregos
mais levianos, favoráveis à glória dos partos contra o renome
dos romanos - era, sem dúvida, q ue os romanos não pudessem
suportar a majestade do nome de Alexandre, do qual, creio eu,
nunca tinham ouvido falar! E que um homem, contra o qual
em Atenas, cidade conquistada pelas armas macedônicas, perto
de Tebas, cujas ruínas fumegantes ainda se podiam ver, alguém
se atrevera a falar livremente nas assembléias (como o provam os
discursos daquela época que se conservaram 11) , não encontrasse
entre tantos romanos ilustres uma voz livre que se levantasse
contra ele!
Qualquer que seja a opinião que se formule sobre a gran-
deza desse homem, não deixa de ser a grandeza de um único
indivíduo e o resultado de pouco mais de dez anos de prosperi-
dade. Os que exa ltam Alexandre por não ter enfrentado um só
combate sem que a fortuna o favorecesse, enquanto o povo ro-
mano, se nunca foi vencido na guerra, o foi em muitas batalhas,
não compreendem que comparam os feitos da vida de um único
indivíduo, e de um indivíduo jovem, com os de um povo que
já vinha lutando há quatrocentos anos. Se de um lado se pode
contar maior número de gerações do que de anos no outro,
admirar-nos-emas de que a sorte tenha variado mais em tão longo
espaço de tempo do que em treze anos apenas? Por que não
comparar, em relação à sorte, homem com homem e general com
general? Quantos generais romanos poderia nomear que jamais
sofreram revezes em seus combates?
Nos anais e nos fastos dos magistrados podem ser lidas as
páginas relativas a cônsu les e ditadores cujo valor e sorte o
povo romano não teve de lamentar uma só vez. E o que os torna
11 . Alusão aos discursos de Demóstenes (384 a. C. - 332 a. C.) .
em defesa do liberdade do Grécia.
23l
 TITO UVIO
mais adnúráveis do qu~ Alexandre, ou qualquer outro rei , é que
alguns exerceram a dttadura durante dez ou vinte dias e ne-
nhum exerceu o consulado durante mais de um ano. Os tribunos
da plebe entravavam o recrutamento de suas tropas, eles partiam
para a ~e~ra tard~a~ente e eram chamados com antecipação
para prestdtr as eletçoes. Na ocasião mesma em que envidavam
os maiores esforços, terminava o ano de seu mandato. Um cole-
ga, às vezes por imprudência, às vezes por corrupção, impedia
ou prejudicava seu trabalho. Outras vezes, sucediam a magis-
trados que haviam fracassado em seu mandato ou recebiam um
exército bisonho e indisciplinado. Os reis, ao contrário, além de
livres de qualquer impedimento, eram senhores da situação e do
momento. Faziam tudo conforme seus planos, ao invés de seguir
as ordens de outrem.
O invicto Alexandre teria guerreado contra generais invic-
tos e teria colhido na luta apenas o mesmo quinhão de sorte que
eles. Além disso, teria enfrentado muito maior perigo porque os
macedônios possuíam um só Alexandre, exposto a inúmeros
azares da guerra e até se oferecendo a eles, ao passo que os
romanos possuíam muitos generais semelhantes a Alexandre
por sua glória ou pela grandeza de seus feitos . Cada um deles
poderia, conforme seu destino, viver ou morrer sem perigo para
o Estado.
Comparação entre 19 . Resta comparar as tropas entre
as tropas romanas si, seja pelo número e qualidade dos
e as de Alexandre. soldados, seja pela multidão de seus
auxiliares.
~o recenseamento realizado no lustro daquela época foram
menciOnados duzentos e cinqüenta mil cidadãos. Assim, durante
o tempo que durou a sublevação dos aliados de nome latino os
rec~tamentos feitos quase exclusivamente em Roma permiti;am
o altstamento de dez legiões. Muitas vezes, durante esses anos
quatro ou cinco exércitos faziam a guerra na Etrúria, na úmbria'
contra os ~ovos inimigos gauleses, no Sâmnio e na Lucânia. Ale~
xandre tena encontrado como poderosos aliados dos romanos, ou
232
HISTORIA DE ROMA
como inimigos deles, mas enfraquecidos pela guerra, todo o Lá-
cio com os sabiDos, os volscos, os équos, toda a Campânia, uma
parte da úmbria e da Etrúria, os picentinos, os marsos, os pelig-
nos e os vestinos, mesmos os ápulos, acrescentando-se-lhes todo o
litoral grego no mar Inferior 12 , de Túrio a Nápoles e a Cumas,
e de lá até a altura de Ãncio e de Ostia, e o Sâmnio. Ele próprio
teria atravessado o mar com seus veteranos macedônios, em nú-
mero de trinta mil homens, quatro mil cavaleiros, sobretudo
tessálios, que constituíam toda a sua força. Se tivesse incorpo-
rado ao seu exército os persas, os indianos e outros povos, teria
arrastado consigo mais um fardo do que um auxílio. Acrescentai
que os romanos, em sua terra, possuíam recursos à mão, ao passo
que Alexandre, como ocorreu mais tarde a Aníbal, guerreando
em território estrangeiro, cedo veria seu exército envelhecer.
Como armas, os macedônios tinham escudos de metal e
sarissas, isto é, lanças. Os romanos possuíam escudo de couro,
que cobria melhor o corpo, e dardo, arma bem mais eficiente
do que a lança para o golpe e o arremesso. Nos dois exércitos o
soldado lutava a pé, conservando-se em fileiras. Mas a falange
macedônica permanecia imóvel e era composta de uma única
espécie de combatentes, ao passo que a legião romana, mais di-
versificada, compunha-se de várias partes que, conforme a ne-
cessidade, facilmente se subdividia ou reunia. Além disso, quem
poderia igualar o soldado romano nos trabalhos ou suportar me-
lhor a fadiga? Vencido numa única batalha, Alexandre teria sido
vencido na guerra. Mas que derrota teria abatido os romanos,
se nem a de Cáudio nem a de Canas os abateram? Embora Ale-
xandre pudesse conseguir vitórias no início, teria muitas vezes
exigido adversários como os persas, os indianos e a Ásia pou-
co belicosa. Reconheceria que, até então, havia guerreado con-
tra mulheres, como, segundo se relata, teria dito aquele outro
Alexandre, rei do Epiro, quando ao ser atingido por um golpe
mortal comparava o resultado das guerras feitas por esse jovem
na Ásia com o da que ele havia empreendido.
12 . O mar Tirreno.
23 3
 TITO U 10
Na verdade, quando me lembro de que durante vinte e
quatro anos 13, na primeira guerra púnica, combatemos no mar
contra os cartagineses, penso que a vida de Alexandre mal che-
garia para uma só guerra. E como o Estado cartaginês se achava
ligado ao Estado romano por antigos tratados, e um mesmo te-
mor poderia armar contra um inimigo comum as duas cidades
mais poderosas por suas armas e seus soldados, Alexandre tal-
vez tivesse sido esmagado numa guerra simultânea contra Carta-
go e Roma. Para falar a verdade, os romanos não tiveram encon-
tros com Alexandre e com as forças intactas da Macedônia.
Contudo, tiveram os macedônios como inimigos em suas lutas
contra Antíoco, Filipe e Perseu, sem sofrerem derrota nem se-
quer grave ameaça.
Deixando de lado qualquer ressentimento e silenciando so-
bre as guerras civis, nunca nos causou inquietação uma cavala-
ria ou infantaria inimiga, uma batalha em campo aberto nem
posição favorável ou igualmente vantajosa para ambas as partes.
Nosso soldado, sobrecarregado de armas, pode temer a cavalaria,
as flechas , os desfiladeiros impraticáveis e os lugares inacessí-
veis aos comboios. Ele, porém, repeliu e repelirá mil exércitos
mais bem-equipados do que o dos macedônios e o de Alexandre.
desde que perdure o amor por essa paz na qual vivemos e a
preocupação em manter a concórdia entre os cidadãos.
Trégua com os samnitas. 20 . Em seguida, Marco Fólio
Rendição da Apúlia. Flacina e Lúcio Pláucio Yenocc
foram nomeados cônsules. Nes-
se ano chegaram embaixadores de numerosos povos samnitas com
o encargo de renovar o tratado. Apesar de terem comovido o
Senado ao prostrar-se ao solo, foram enviados ao povo e suas
súplicas não tiveram a mesma eficácia. O tratado lhes foi nega-
do. Contudo, graças às súplicas com que durante muitos dias
fatigaram a cada cidadão em particular, conseguiram dois anos
de trégua. Da Apúlia também os teanenses e canusinos, cansa-
13 . De 264 a 241 a. C.; Alexandre morreu com 33 anos de idade.
234
H ISTóRIA DE ROMA
dos de serem saqueados, entregaram reféns ao cônsul Lúcio
Pláucio e vieram render-se.
No mesmo ano, pela primeira vez, foram nomeados prefei-
tos para que fossem a Cápua administrar justiça conforme as leis
redigidas pelo pretor Lúcio Fúria. Os próprios campânios haviam
feito a petição, considerando essas duas medidas como o único
remédio para as dissensões internas de que sofriam. Duas tribos
foram também anexadas a Roma : a Ofentina e a Falerna.
Uma vez iniciado o movimento na Apúlia, os teatos, tam-
bém povo da Apúlia, enviaram legados aos novos cônsules Caio
Júnio Bubulco e Quinto Emílio Bárbula para propor-lhes um
tratado, comprometendo-se a garantir a paz entre toda a Apúlia
e o povo romano. Com essa temerária promessa conseguiram o
tratado, não em igualdade de condições, mas colocando-se sob a
autoridade do povo romano.
Consumada a submissão da Apúlia - pois Júnio também
se havia apoderado da praça-forte de Forento - os romanos
marcharam contra os tucanos. Com a súbita chegada do cônsul
Emílio, Nérulo foi tomada de assalto. E quando se divulgou
entre os aliados a notícia de que a disciplina romana havia res-
tabelecido a ordem em Cápua, os anciatos, que também se quei-
xavam de não terem leis fixas nem magistrados, receberam do
Senado os próprios patronos da colônia para dar-lhes leis. Não
somente as armas, mas também o direito romano mostrava seu
valor.
Rompimento da trégua 21 . No fim daquele ano. os côn-
com os samnitas. sules Caio Júnio Bubulco e Quin-
to Emílio Bárbula passaram o co-
mando das legiões ao ditador Lúcio Emílio e não aos cônsules
Espúrio Náucio e Marco Popílio, por eles nomeados. A decisão
tomada pelo ditador, juntamente com Lúcio Fúlvio, seu coman-
dante da cavalaria, de atacar Satícula forneceu aos samnitas pre-
texto para recomeçar a guerra. Dupla ameaça pesava sobre os
romanos: de um lado os samnitas, que depois de organizar um
grande exército para libertar seus aliados do cerco estabelece-
ram-se próximo ao acampamento romano, e do outro lado os
235
 TITO UVIO
saticulanos, que abriram subitamente as portas da cidade e caí-
ram, com grande tumulto. sobre os postos avançados de seu
inimigo.
Depositando sua esperança no auxílio de outrem e não em
suas próprias forças, os dois exércitos forçaram os romanos a
travar imediatamente um combate regular. Mas, apesar de lutar
em duas frentes, o ditador manteve suas tropas em segurança.
Havia escolhido uma posição difícil de ser cercada e disposto as
tropas para combater nas duas frentes. Contudo, marchou com
maior ímpeto contra os sitiados que haviam irrompido da cidade
e, sem grande luta, repeliu-os para dentro de suas muralhas. Vol-
veu depois o exército inteiro contra os samnitas, encontrando ne-
les maior resistência. Entretanto, embora tardia, a vitória não foi
duvidosa nem incerta. Repelidos para seu acampamento, os sam-
nitas partiram à noite, em coluna silenciosa, depois de extinguir
suas fogueiras . Perdida a esperança de salvar Satícula, sitiaram
Plistica. aliada dos romanos. para vingar-se do inimigo.
Morte do comandante da 22 . Terminado o ano, a guerra
cavalaria romana e do continuou sob o comando do di-
general samnita. tador Quinto Fábio, e os novos
cônsules, como os precedentes,
permaneceram em Roma. Fábio partiu para Satícula com refor-
ços a fim de receber de Emílio o comando do exército.
Os samnitas não haviam permanecido diante de Plistica.
Tendo requisitado do seu país novos soldados, haviam estabele-
cido acampamento no mesmo local que antes haviam ocupado,
confiantes em seu grande número. Fustigando os romanos com
incessantes combates, tentavam impedir-lhes o cerco. O ditador
exercia maior vigilância sobre as muralhas do inimigo, pois jul-
gava que aquela guerra consistia apenas no ataque à cidade.
Mais tranqüilo em relação aos samnitas, contentou-se em dispor
guarnições de defesa para evitar um ataque ao seu acampamento.
A cavalaria samnita, porém, sem dar trégua aos romanos, aproxi-
mava-se cada vez mais audaciosamente da trincheira.
Quando o inimigo já se achava quase às portas do acampa-
mento, o comandante da cavalaria Quinto Áulio Cerretano, sem
236
HISTORIA DE ROMA
consultar o ditador , irrompeu estrepitosamente com todos os
seus esquadrões e repeliu o inimigo. Nesse tipo de combate, em
geral pouco violento, a fortuna de tal modo pôs à prova _seu
poder que determinou perdas consideráveis nos dois exércttos
e a morte de seus ilustres chefes.
O primeiro a cair foi o general samnita. Não suportando ver-
se batido e compelido a fugir depois de ter avançado tão auda-
ciosamente, conjurou e exortou seus cavaleiros a recomeçare_m ~
combate. Destacando-se entre seus comandados enquanto os tnct-
tava à Juta, foi visto pelo comandante da cavalaria romana que.
de lança em riste, precipitou sobre ele seu cavalo, derrubando-o
com um só golpe. Mas, como em geral acontece, a morte do ge-
neral ao invés de apavorar irritou mais ainda os soldados. Todos
os que o cercavam crivaram de dardos a Áulio. que se havia
lançado temerariamente no meio dos esquadrões inimigos. Con-
tudo, foi ao irmão do general samnita que eles deram a honra de
vingá-lo. Arrebatado pela dor e pela cólera, derrubou de seu
cavalo o comandante da cavalaria, já vencedor, e trucidou-o. Por
pouco seu cadáver não ficava em poder dos samnitas, pois havia
tombado em meio aos esquadrões inimigos. Os cavaleiros roma-
nos então saltaram em terra e os samnitas viram-se obrigados a
fazer o mesmo. E aqueles batalhões improvisados travaram em
volta dos cadáveres de seus generais um combate de infantaria.
onde a superioridade dos romanos era indiscutível . Os vencedo-
res recuperaram o cadáver de Áulio e o levaram para o acampa-
mento com uma alegria mesclada de tristeza.
Depois de ter perdido seu chefe e experimentado suas for-
ças nesse combate eqüestre, os samnitas abandonara~ ~atícula
por achar inutil defendê-la, e voltaram ao cerco de Ph~ttca . No
espaço de alguns dias, os romanos apoderaram-se de Sattcula por
capitulação e os samnitas tomaram Plistica de assalto.
Derrota dos samnitas. 23 . Em seguida foi mudado o pal-
co da guerra : do Sâmnio e da Apú-
Jia as legiões romanas foram levadas a Sora, que se havia alia~o
aos samnitas depois de massacrar os colonos romanos. No deseJO
237
 TITO UVIO
de vingar a morte de seus concidadãos e recuperar a colônia, o
exército romano para lá se dirigira em marcha forçada .
Observadores espalhados ao longo das estradas anuncia-
vam, uns após outros, que as legiões samnitas vinham em seu
encalço e já não se achavam distantes. Os romanos marcharam
então ao encontro do inimigo e em Láutula travou-se um com-
bate de duvidoso desfecho. Não foram as perdas, nem a retirada
de um dos adversários, mas a noite que separou os combaten-
tes, sem que eles soubessem se eram vencidos ou vencedores.
Alguns historiadores afirmam que os romanos levaram desvanta-
gem no combate e que nele pereceu o comandante da cavalaria
Quinto Áulio. Em seu lugar foi nomeado Caio Fábio, que chegou
de Roma com novo exército.
Informado pelos mensageiros que enviara de antemão ao
ditador quanto ao local em que deveria deter-se, o momento e o
ponto por onde atacaria o inimigo, postou-se em emboscada, de-
pois de ter tomado precauções para qualquer eventualidade.
O ditador, que durante alguns dias após o combate manti-
vera seus soldados nas trincheiras, como se fora ele o sitiado e
não o sitiante, mandou subitamen te dar o sinal de combate.
lulgando que seria mais eficiente para inflamar os ânimos de
homens corajosos não lhes dar qualquer esperança a não ser em
seu próprio valor, ocultou aos soldados a notícia da chegada do
comandante da cavalaria e do novo exército. E, como se não
houvesse outro recurso a não ser numa surtida, disse-lhes :
"Soldados, surpreendidos como estamos num espaço estrei-
to, temos apenas o caminho que abrirmos com a nossa vitória .
Nosso acampamento está bastante protegido por suas fortifica-
ções, mas também ameaçado pela fome . Pois. a nossa volta, todo
país de onde poderíamos esperar víveres nos traiu , e, mesmo
se os homens quisessem ajudar-nos, o terreno nos é desfavorável.
Não vos enganarei dizendo que deixamos aqui um acampamento
para onde podeis retirar-vos caso não obtenhais uma vitória
como a do outro dia . Cabe às armas garantir as fortificações
e não as fortificações às armas. Aqueles cujo desejo é prolongar
a guerra que conservem seu acampamento e a ele se recolham.
Quanto a nós . afastemos toda c qualquer preocupação que não
238
H ISTORIA DE ROMA
seja a de obter vitória. Marchai contra o inimigo! Depois que
vossa coluna tiver saído da trincheira , homens que receberam
ordens incendiarão o acampamento. Vossas perdas, soldados, se-
rão compensadas pelos despojos que ides arrebatar aos povos
sublevados".
Esse discurso do ditador, indicando que se achavam em
situação extrema, estimulou o ardor dos soldados que se puse-
ram em marcha contra o inimigo. O acampamento em chamas.
embora o ditador tivesse ordenado que só ateassem fogo nos pon-
tos mais próximos do exército, aumentou consideravelmente o
estímulo dos soldados. Assim , como se estivessem arrebatados
pela loucura, ao primeiro choque romperam as fileiras inimigas.
Por outro lado, ao ver de longe o incêndio do acampamento, que
era o sinal combinado, o comandante da cavalaria atacou a reta-
guarda inimiga. Envolvidos por todos os lados, os samnitas fugi-
ram em direções opostas, por onde lhes era possível. Mas imensa
multidão , aglomerada pelo medo em um só ponto e embaraçan-
do-se uns aos outros, foi massacrada entre os dois exércitos. O
acampamento inimigo foi tomado c saq ueado.
Carregados de despojos , o soldados foram reconduzidos
pelo ditador ao acampamento romano. Mais do que pela vitória,
eles se alegraram por encontrarem intato, contra sua expectativa,
tudo o que haviam deixado , à exceção da parte devastada pelo
incêndio.
Tomada de Sora. 24 . Em eguida regressaram a Sora.
Os novos cônsules Marco Petélio e Caio
Sulpício receberam do ditador Fábio um exército formado
em grande parte de veteranos que foram licenciados e substi-
tuídos por novas coortes. Devido à situação da cidade, de difí-
cil acesso, não se havia organizado ainda qualquer plano de
ataque e as possibilidades de vitória eram ou muito remotas ou
sujeitas a grandes riscos . Foi então que um desertor de Sora,
que saíra clandestinamente da cidade, chegou junto às sentine-
las romanas e pediu-lhes que o levassem imediatamente à pre-
sença dos cônsules. aos quais prometeu entregar a cidade. Ao
expl icar como conseguiria cumprir a promessa. em resposta à
219
 TITO LIVIO
pergunta dos cônsules, pareceu que não mentia. Convenceu os
cônsules a afastar o acampamento romano, que quase tocava as
muralhas, para uma distância de seis milhas da cidade. Com isso,
segundo ele, as sentinelas não ficariam tão atentas a sua guarda
de dia e de noite.
Na noite seguinte, depois de ter mandado dispor as coortes
bem próximas à cidade, em sítios cobertos de bosques, ele pró-
prio tomou dez soldados de escol e levou-os à cidadela, atraves-
sando precipícios e caminhos quase impraticáveis. Ali se acha-
vam acumuladas armas de arremesso em quantidade superior à
do número de seus homens. Além disso havia pedras, tanto as
que pavimentavam o solo, como acontece em terrenos escarpa-
dos, quanto as que os habitantes haviam amontoado para prote-
ger a fortaleza. Depois de instalar os romanos no local, o deser-
tor mostrou-lhes um atalho estreito e íngreme que subia da ci-
dade até a fortaleza e disse-lhes: " Três homens armados podem
facilmente barrar esta subida a qualquer multidão. Sois em nú-
mero de dez e, o que é mais, sois romanos e dos mais carojosos.
Tereis a favor o terreno e a noite, que tudo aumenta na imagina-
ção de pessoas amedrontadas pela insegurança que causa. Quanto
a mim, encarrego-me de instaurar o pânico, enquanto vós fica-
reis atentos à defesa da cidadela".
Desceu então correndo e espalhando o maior tumulto, aos
gritos de "Às armas!" e " Palavra de honra, cidadãos, a cidadela
foi capturada pelo inimigo! Defendei-vos!" Em sua corrida gri-
tava essas palavras às portas dos principais cidadãos, às pessoas
que ia encontrando e àqueles que em pânico saíam de suas casas.
Esse alarme dado por um só homem era transmitido por muitos
através de toda a cidade. Apavorados, os magistrados mandaram
revistar a cidadela. Ao saberem que ela estava ocupada por ho-
mens armados, cujo número foi exagerado, tiraram aos cidadãos
toda a esperança de recuperá-la. A idéia de fuga se apoderou de
todos. As portas foram quebradas por homens semi-acordados e,
na maioria, desarmados.
Atraído pelo clamor, um destacamento romano irrompeu
por uma das portas e massacrou os apavorados habitantes que
corriam pelas ruas. Sora já estava capturada quando os cônsules
240
HISTúRIA DE ROMA
chegaram pela manhã e receberam a rendição de todos os que
haviam escapado à matança da noite anterior e permanecido na
cidade. Desse número, duzentos e vinte e cinco, apontados una-
nimemente como autores da sedição e do abominável massacre
dos colonos, foram algemados e enviados a Roma. Os demais
permaneceram em Sora. incólumes, sob a vigilância de uma
guarnição romana. 0 3 que tinham sido levados para Roma foram
açoitados e decapitados no Fórum, para regozijo da plebe, a
quem interessava sobretudo a segurança dos numerosos cidadãos
que eram enviados para as colônias.
Destruição da Ausônia. 25 . Partindo de Sora, os cônsu-
les levaram a guerra até os cam-
pos e cidades dos ausões, pois em toda a parte reinava agita-
ção com a chegada dos samnitas e por ocasião da batalha de
Láutula. Conspirava-se em todas as cidades da Campânia e nem
Cápua ficou isenta de suspeita. Esses rumores chegaram até
Roma, e por esse motivo alguns dos principais cidadãos dessas
cidades foram interrogados. Além disso. aconteceu aos ausões o
mesmo que a Sora: as cidades de Ausônia, Minturnas e Véscia
foram traídas e entregues aos romanos. Doze jovens das princi-
pais famt1ias locais, que haviam planejado entregar suas cida-
des, apresentaram-se aos cônsules. Disseram que seus concida-
dãos, há muito interessados na chegada dos samnitas. mal se ha-
viam inteirado da batalha de Láutula consideraram os romanos
vencidos e remeteram tropas e armas aos samnitas. Desde a der-
rota dos samnitas, permaneciam num estado de paz duvidosa.
sem fechar suas portas aos romanos para não provocarem a
guerra, mas decididos a fechá-las se um exército se aproximasse.
Nesse estado de espírito, seria fácil aos •omanos atacá-los de
surpresa.
Levados por esses conselhos, os romanos transferiram seu
acampamento para mais perto e dispuseram soldados ao redor
das três cidades, parte munida de armas, com ordem de se ocul-
tar perto das muralhas, e parte em trajes civis, levando as espa-
das escondidas sob as vestes, com ordem de penetrar nessas
cidades ao raiar do dia, mal se abrissem as portas. Começaram
241
 TITO LIVIO
estes por trucidar os guardas e, em seguida, deram sinal aos sol-
dados armados para que saíssem de seu esconderijo. Assim as
portas foram ocupadas e as três fortalezas capturadas, na mesma
hora e pelo mesmo processo. Mas, como esse ataque ocorreu na
ausência dos generais, não houve limites ao massacre. Ausônia
foi destruída pelo crime de defecção - o que todavia não foi
confirmado - como se tivesse movido uma guerra de extermí-
nio contra os romanos .
Abertura de inquéritos em Roma 26 . No mesmo ano,
contra manobras políticas. Lucéria caiu em poder
Vitória do ditador Caio Mênio. dos samnitas, depois de
trair e entregar ao ini-
migo a guarnição romana . Contudo, os traidores não permanece-
ram muito tempo impunes. Havia um exército romano próximo
ao local que, no primeiro assalto, recuperou a cidade que ficava
situada na planície. Os habitantes de Lucéria e os samnitas foram
massacrados até o último homem. A cólera dos romanos foi de
tal ordem que, mesmo em Roma, quando o Senado foi consul-
tado sobre a remessa de colonos para Lucéria, muitos declara-
ram que a cidade deveria ser destruída. Além do ódio implacá-
vel provocado pelas duas sublevações, a grande distância tam-
bém levava os senadores a encarar com repugnância a idéia de
relegar seus concidadãos para tão longe de sua pátria, em meio
a povos tão hostis. Entretanto, venceu a proposta de enviar
colonos e dois mil e quinhentos cidadãos foram mandados para
Lucéria.
Ainda no mesmo ano, quando todos os povos se rebelavam
contra Roma, os principais cidadãos de Cápua também conspira-
vam em segredo. Informado a respeito, o Senado não desprezou
a denúncia: ordenou fossem realizadas sindicâncias e decidiu
nomear um ditador para executá-las. Foi nomeado Caio Mênio,
que por sua vez escolheu Marco Fólio comandante da cavalaria.
Essa magistratura inspirou tão grande temor que, fosse por me-
do, fosse por consciência de sua falta, os cabeças da conspiração,
Calávio, Ovio e Nóvio. não esperaram que o ditador os cha-
242
HISTORIA DE ROMA
masse à sua presença e . por morte sem dúvida voluntária , esca-
param ao julgamento.
Quando finalmente as sindicâncias terminaram na Campâ-
nia por falta de provas, elas continuaram em Roma . Dizia-se que
não fora apenas contra os conspiradores de Cápua que o Senado
ordenara as sindicâncias, mas contra todos aqueles que se ha-
viam unido para conspirar contra o Estado, pois consideravam-se
contrárias à república todas as coalizões feitas no sentido de
obter magistraturas. A sindicância atingia um número cada vez
maior de objetos e pessoas, sem que o ditador se opusesse ao
aumento ilimitado de seu poder de investigação. Os nobres eram
citados em juízo e quando apelavam para os tribunos nenhum se
apresentava para defender seu nome.
Foi então que os nobres (não apenas os acusados, mas toda
a nobreza) declararam que eles não eram culpados daquele cri-
me, e sim os " homens novos", pois a menos que houvesse fraude ,
o caminho das magistraturas lhes estava aberto. Na verdade, o
ditador e o comandante da cavalaria é que deviam ser conside-
rados réus desse crime, ao invés de serem inquisidores. Eles não
tardariam a compreendê-lo quando terminassem seu mandato.
Mais preocupado dessa vez com sua reputação do que com
seu cargo, Mênio compareceu à assembléia e assim falou :
"Quirites, conheceis tão bem como eu minha vida passada,
e a honra que me foi conferida é testemunho de minha inocên-
cia. Naquela ocasião o interesse da república não exigia, como
em tantas outras vezes, que a escolha de um ditador para con-
duzir estas investigações recaísse sobre os mais ilustres generais,
e sim sobre os cidadãos mais alheios às manobras eleitorais, que
agora quereis castigar. Mas acontece que certos nobres - por
motivos que vós mesmos apreciareis e sobre os quais não devo
pronunciar-me em virtude de minha magistratura - primeiro
lançaram mão de todos os meios ao seu alcance para desvirtuar
as próprias investigações. Em seguida, vendo a inutilidade de
todos os seus esforços para evitar o julgamento, recorreram aos
meios de defesa de seus adversários, apesar de patrícios : a ape-
lação e a assistência dos tribunos. Finalmente, repelidos desse
lado (tão certo é que para eles qualquer recurso era mais seguro
243
 TITO UVJO
do que tentar provar sua inocência) , voltaram-se contra nós e,
conquanto simples particulares, não se envergonharam de acusar
um ditador. Por isso, para que os deuses e os homens saibam
bem que enquanto esses indivíduos fazem o possível e o impos-
sível para não prestar contas de sua vida, eu enfrento suas
acusações, entrego-me como réu a meus inimigos e abdico da
ditadura .
"Cônsules, se o Senado vos encarregar dessa missão, eu vos
peço que exerçais primeiro vossas investigações a meu respeito
e a respeito de Marco Fólio, aqui presente, para que fique bem
claro que nossa inocência e não a majestade de nosso cargo nos
salva dessas acusações".
O ditador abdicou da ditadura, seguido imediatamente pelo
comandante da cavalaria Marco Fólio. Acusados perante os côn-
sules, a quem o Senado realmente confiara as investigações, fo-
ram brilhantemente absolvidos, malgrado os testemunhos dos
nobres. Do mesmo modo Públio Filo, que fora cumulado das
mais altas honrarias por inúmeros serviços prestados na paz e na
guerra, mas era malvisto pela nobreza, defendeu sua causa e foi
absolvido. Como sempre acontece, no início as investigações
prosseguiram graças aos nomes ilustres dos acusados. Mas, quan-
do passaram a incidir apenas sobre indivíduos menos importan-
tes, começaram a perder o interesse, até que foram suprimidas
pelas próprias coalizões e facções contra as quais haviam sido
criadas.
Derrota dos samnitas. 27. O rumor dessas dissensões e
ainda mais a expectativa de uma
defecção da Campânia, para a qual tinha havido uma conspira-
ção, desviou novamente os samnitas da Apúlia para Cáudio. Que-
riam estar perto caso alguma revolta lhes facultasse a ocasião
de arrebatar Cápua aos romanos. Os cônsules marcharam para
o local à frente de um poderoso exército, mas perderam algum
tempo na região dos desfiladeiros, onde eram muito difíceis os
caminhos que por ambos os lados levavam ao inimigo. Os samni-
tas atravessaram regiões descampadas , e por um pequeno desvio
fizeram o exército descer para a planície da Campânia. Ali, pela
244
HISTORJA DE ROMA
primeira vez, acamparam às vistas do inimigo. Em seguida, os
dois adversários travaram ligeiros combates, sendo mais freqüen-
tes os de cavalaria do que os de infantaria.
Os romanos não lamentavam o resultado desses combates
que faziam retardar o desfecho da guerra. Os generais samnitas.
ao contrário, viam suas forças não só debilitarem-se diariamente
com pequenas perdas como também declinarem com a lentidão
da guerra. Assim, avançaram em linha de batalha, distribuindo
a cavalaria por alas e com ordem de ficar mais atenta ao acam-
pamento na retaguarda, pois receavam mais um ataque desse
lado do que o próprio combate. A infantaria seria suficiente
para garantir a vanguarda .
Os cônsules tomaram posição, Sulpício na ala direita e Pe-
télio na esquerda. Ao perceber que os samnitas se haviam dis-
posto em um pequeno número de fileiras, ou para envolver o
inimigo, ou para evitar serem envolvidos, a ala direita apresen-
tou considerável frente de batalha. Quanto à ala esquerda, além
de suas fileiras compactas, recebeu novos reforços, pois o côn-
sul Petélio decidira subitamente colocar nas primeiras fileiras as
coortes de reserva que geralmente eram mantidas intactas para
as surpresas de uma luta prolongada. Assim, empregando a tota-
lidade de suas forças , conseguiu repelir o inimigo no primeiro
assalto.
Ao ver sua infantaria desbaratada, os samnitas ordenaram o
ataque da cavalaria. Quando esta já se achava entre as duas li-
nhas de combate, os cavaleiros romanos avançaram com seus ca-
valos confundindo insígnias, colunas de infantaria e esquadrões
de cavalaria, até forçar o recuo de todas as fileiras daquele lado.
Os soldados dessa ala foram encorajados não só com a pre-
sença de Petélio, mas também com a de Sulpício, cujas tropas
ainda não haviam entrado em ação, o qual fora atraído para
longe de seus soldados pelo primeiro grito de ataque da ala
esquerda. Depois de certificar-se da vitória , regressou à sua ala
com mil e duzentos homens, onde encontrou uma situação total-
mente diversa : os romanos sendo repelidos de suas posições e o
inimigo vencedor avançando contra adversários totalmente deso-
rientados. Tudo porém mudou subitamente com a chegada do
245
 TITO UVJO
cô~sul. A presença do general devolveu a coragem aos soldados,
po1s o reforço que acabava de chegar era muito mais importante
do que se poderia supor diante do reduzido número de seus
componentes, uma vez que era constituído de homens valoro-
sos. A vitória da outra ala, que lhes foi anunciada e cujos efeitos
logo perceberam, restabeleceu o combate. Em breve os romanos
eram vencedores em todas as frentes . Os samnitas abandonaram
a luta , sendo massacrados ou capturados, à exceção dos que se
refugiaram em Malevento, cidade hoje denominada Benevento.
Segundo se relata. cerca de trinta mil sanitas caíram mortos ou
prisioneiros.
Reconquista de Nota. 28 . Depois de alcançar es-
Fundação de novas colônias. sa notável vitória, os cônsu-
les imediatamente conduzi-
ram as legiões para atacar Boviano. Passaram o inverno nessa
cidade até que os novos cônsules Lúcio Papírio Cursor, no-
meado pela quinta vez, e Caio Júnio Bubulco, nomeado pela
segunda, passaram o comando do exército a Caio Petélio, que
fora designado ditador, e ao seu comandante da cavalaria
Marco Fólio. ' gravemente enfermo, por ordem do Senado nomeou Caio Sul-
Ao ter conhecimento da tomada da cidadela de Fregelas
pelos samnitas, o ditador abandonou Boviano e para lá se dirigiu .
Fregelas foi recuperada sem combate, pois os samnitas se haviam
r~tirado durante a noite. Deixando forte guarnição no local, o
d1tador regressou à Campânia. principalmente para reconquistar
Nola.
Pouco antes da chegada do ditador, uma multidão de samni-
tas e camponeses nolanos se haviam refugiado em suas mura-
lhas. Depois de examinar a situação da cidade o ditador mandou
incendiar todos os prédios situados nas imediações das mura-
.lhas, cujo número era considerável , a fim de deixar o local de-
simp7dido. Pouco depois, Nola foi capturada, seja pelo ditador
Petého, seja pelo cônsu l Caio Júnio , pois a vitória é atribuída
ora a um, ora a outro. Os que atribuem a glória da tomada de
Nola ao cônsul acrescentam que ele também capturou Atina e
Calácia. Segundo eles , Petélio foi nomeado ditador apenas para
246
HISTORIA DE ROMA
pregar o prego sagrado durante uma epidemia que se havia
declarado.
No mesmo ano, foram criadas as colônias de Suessa e de
Pôncias. Suessa havia pertencido aos auruncos. Os volscos ha-
viam habitado Pôncias, que era uma ilha próxima ao seu litoral.
Um senadoconsulto determinou também a fundação de uma
colônia em Interana Casina, mas a nomeação dos triúnviros e a
remessa de quatro mil colonos foi tarefa dos cônsules seguintes,
Marco Valéria e Públio Décio.
A censura de Ápio Cláudio. 29 . A guerra com os samni-
tas estava quase no fim. Con-
tudo, antes que os senadores romanos ficassem livres dessa
preocupação, ergueram-se rumores de guerra com os etruscos.
Depois das invasões gaulesas, não havia naquela época outra
nação cujas armas fossem mais temíveis, não só pela proximj-
dade de seu território, como também pelo número de seus ha-
bitantes.
Enquanto um dos cônsules prosseguia a guerra no Sâmnio,
o outro, Públio Décio, que permanecera em Roma por estar
pfcio Longo ditador, o qual escolheu Caio Júnio Bubulco para
comandante da cavalaria. Como exigia a gravidade da situação,
o ditador ordenou que toda a juventude prestasse juramento,
e com a maior diligência mandou preparar as armas e tudo o
mais que as circunstâncias exigiam. Mas, ao invés de vanglo-
riar-se com esses grandiosos preparativos e atacar imediatamente,
resolveu esperar que os etruscos atacassem. Estes, por sua vez,
prepararam-se também para o ataque, mas permaneceram na
defensiva . Assim , nenhum dos dois adversários saiu de suas
rron te i ras .
Naquele ano houve também a famosa censura de Ápio
Cláudio e de Caio Pláucio. O nome de Ápio tornou-se memo-
rável para a posteridade por ter construído uma estrada e cana-
lizado água para Roma. Essas obras ele as realizou sozinho,
pois seu colega não se atrevera a enfrentar a infamante e odiosa
revisão do Senado e abdicara de sua magistratu ra . Ápio. porém .
247
 TITO LfVIO
com a mesma pertinácia revelada por sua família desde a anti-
guidade, conservara-se sozinho na censura. Por autorização do
próprio Ápio, os Potícios, cujo clã possuía o privilégio de servir
como sacerdotes no Grande Altar de Hércules, entregaram as
cerimônias do culto a escravos públicos, a fim de se livrarem de
seu ministério. Conta-se que depois disso aconteceu um fato
extraordinário e muito a propósito para reprimir a audácia dos
inovadores em matéria de religião: os Potfcios, que naquela épo-
ca contavam doze famílias com cerca de trinta adultos, perece-
ram todos e o clã extinguiu-se. E não só o nome dos Potícios
desapareceu sob a cólera dos deuses que nada esquecem, mas
o próprio censor Ápio, alguns anos depois, foi privado da vista.
Novas concessões ao povo. 30. Logo no início do ano
Greve dos tocadores de flauta. seguinte, Caio Júnio Bu-
bulco, cônsul pela tercei-
ra vez, e Quinto Emílio Bárbula, pela segunda, queixaram-se
ao povo de que a ordem senatorial havia sido degradada por
uma revisão viciosa de sua lista, quando haviam sido preteridos
homens muito mais ilustres do que alguns dos escolhidos. Disse-
ram que não acatariam uma revisão feita sem discriminação
entre o bom e o mau e dirigida por capricho e paixão. Em segui-
da, convocaram o Senado pela lista que existia antes da censura
de Ápio Cláudio e Caio Pláucio.
Naquele ano, pela primeira vez, foram concedidos ao povo
daois poderes, ambos pertinentes à área militar. Um consistia em
nomear dezesseis tribunos militares para quatro legiões, quan-
do outrora, exceto em raros cargos cuja eleição era confiada ao
sufrágio do povo, essas nomeações representavam mais ou me.
nos um favor dos ditadores ou dos cônsules. Esse projeto de lei
foi proposto pelos tribunos da plebe Lúcio Atílio e Caio Már-
cio. O outro consistia em nomear decênviros navais que se encar-
regariam de armar e reparar a frota . O autor do plebiscito foi
o tribuno da plebe Marco Décio.
No mesmo ano aconteceu um fato de pouca importância e
que eu omitiria se na ocasião não tivesse interessado à religião.
Proibidos pelos censores de realizar seu banquete no templo de
248
HISTORIA DE ROMA
Júpiter, o que era uma tradição muito antiga entre eles, os toca-
dores de flauta receberam mal a proibição e partiram todos para
Tíbur, de modo que não havia em Roma quem tocasse durante
os sacrifícios. Assaltados por escrúpulos religiosos, os senadores
enviaram legados a Tíbur com a incumbência de trazer aqueles
homens de volta a Roma. Os tiburtinos ofereceram-se esponta-
neamente para ajudá-los e mandaram chamar à Cúria os tocado-
res de flauta, exortando-os a que regressassem a Roma . Como
não conseguissem convencê-los recorreram a um estratagema bem
de acordo com o caráter daqueles homens. Em um dia de festa,
sob o pretexto de abrilhantar o banquete com música, convida-
ram os flautistas, a cada um em particular. O vinho, tão apre-
ciado pelos homens dessa classe, foi-lhes servido generosamente.
Embriagados e entorpecidos, foram então lançados em carroças
e levados a Roma. Os flautistas só o perceberam quando, na
manhã seguinte, ainda sob o efeito da embriaguês, a luz do dia
os surpreendeu no Fórum, onde as carroças haviam sido aban-
donadas.
Tomada de Boviano e Cluviano. 31 . Os cônsules divi-
Emboscada dos samnitas. diram entre si o coman-
Vitória dos romanos. do. A sorte deu a Jú-
nio a chefia da campa-
nha contra os samnitas e a Emílio, a nova guerra contra a
Etrúria.
No Sâmnio, a guarnição romana de Cluviano, que os samni-
tas não puderam dominar pela força, foi bloqueada e teve de ren-
der-se pela fome . Apesar de sua capitulação, os soldados foram
cruelmente açoitados e trucidados. Indignado com aquela cruel-
dade, }únio decidiu não tomar qualquer medida antes do ataque
a Cluviano. E, no mesmo dia em que investiu contra suas mura-
lhas, capturou-a e massacrou todos os adultos. O exército vito-
rioso foi levado depois para Boviano. Era a capital dos samnitas
pentrinos e, sem contestação, a mais rica, e a que dispunha de
maior quantidade de armas e guerreiros. Os soldados romanos
não estavam tão encolerizados como em Cluviano, mas a espe-
rança de grandes despojos inflamou-lhes o ânimo. Apoderaram-
249
 TITO UVIO
se imediatamente da cidade, tratando porém o inimigo com me-
nos rigor. Quanto aos despojos, quase ultrapassaram tudo o que
já se havia arrebatado ao Sâmnio e foram generosamente distri-
buídos aos soldados.
Como os romanos haviam adquirido tal superioridade nas
armas que nenhum exército, nenhum acampamento, nenhuma ci-
dade podia mais resistir-lhes, todos os chefes do Sâmnio empe-
nharam-se em encontrar local para uma emboscada, onde o
exército romano fosse atraído pela facilidade da pilhagem, e pu-
desse ser surpreendido em desordem e cercado. Assim, alguns
camponeses desertores, vários prisioneiros, alguns dos quais ha-
viam caído por casualidade em poder dos romanos e outros se
haviam deixado apanhar de propósito, combinaram dizer ao
cônsul, o que de resto era verdade, que se achava uma enorme
quantidade de gado em um desfiladeiro sem saída, e o conven-
ceram a conduzir suas legiões sem bagagens ao local para se
apoderarem da presa. Um grande exército inimigo se achava
oculto ao longo do caminho. Quando viu os romanos penetra-
rem no desfiladeiro, soltou de repente seu grito de guerra e, com
grande tumulto, caiu sobre os soldados desprevenidos.
No primeiro momento a surpresa gerou confusão, enquanto
os soldados pegavam as armas e amontoavam no centro seus
pertences. Mas à medida que se desembaraçavam de suas ba-
gagens e empunhavam as armas, iam-se agrupando em redor de
suas insígnias e, conhecendo seus postos nos quadros da velha
disciplina militar, por si mesmos, sem ordem de ninguém, iam-se
organizando em linha de batalha. Correndo para onde o perigo
era maior, o cônsul saltou do cavalo e jurou por Júpiter, por
Marte e por todos os outros deuses , que viera àquele local não
para buscar glória pessoal, mas pela vontade de proporcionar
despojos aos soldados. Nada se lhe podia censurar a não ser a
excessiva preocupação em enriquecer seus soldados a expensas
do inimigo. Só a coragem deles poderia salvá-lo da desonra de
uma derrota. Bastava que todos procurassem avançar com igual
denodo contra o inimigo já vencido em batalha campal, despo-
jado de seus acampamentos, privado de suas cidades, e que
tentava sua última jogada no estratagema de uma emboscada,
250
HISTóRIA DE ROMA
confiante em sua posição e não em suas armas. Mas, que posi-
ção seria inexpugnável para o valor dos soldados romanos?
Recordava-lhes as cidadelas de Fregelas e de Sora, e todas
as posições desvantajosas em que haviam triunfado. Inflamados
por essas palavras, desprezando todas as dificuldades, os solda-
dos avançaram contra o inimigo que os dominava do alto. Foi
penosa a escalada das rampas escarpadas. Mas quando as pri-
meiras fileiras alcançaram o alto e o exército percebeu que pisava
em terreno plano, o terror instaurou-se imediatamente entre os
atacantes. Dispersos e desarmados, procuravam alcançar em sua
fuga as mesmas cavernas onde pouco antes se achavam escondi-
dos. Mas vítimas de sua própria astúcia , esbarravam com as
dificuldades do terreno para onde haviam querido atrair seu
inimigo. Poucos conseguiram escapar. Cerca de vinte mil homens
foram mortos, e os romanos vencedores correram para se apode-
rar dos rebanhos que o inimigo lhes havia oferecido.
Guerra com os etruscos. 32 . Enquanto esses fatos ocor-
Vitória dos romanos. riam no Sâmnio, todos os povos
da Etrúria, exceto os arretinos,
já haviam pegado em armas. Essa guerra começou por um
ataque a Sútrio, cidade aliada de Roma, que era uma espécie de
porta da Etrúria. O segundo cônsul , Emílio, acorreu com um
exército para livrar seus aliados do cerco. À chegada dos roma-
nos, os sutrinos levaram víveres em abundância ao seu acampa-
mento estabelecido em frente à cidade.
Os etruscos passaram o primeiro dia discutindo se era pre-
ferível precipitar ou arrastar a guerra. Mas como os generais
preferissem as decisões mais rápidas às mais seguras, ao ama-
nhecer do dja seguinte foi dado o sinal de combate, e o exér-
cito avançou em linha de batalha. Avisado da chegada do ini-
migo, o cônsul ordenou aos soldados que se alimentassem e, de-
pois de renovar as forças , empunhassem as armas. A ordem foi
obedecida. Quando o cônsul os viu armados e dispostos, fê-los
sair do acampamento e organizar as fileiras não longe do inimi-
go. Durante muito tempo os dois exércitos permaneceram aten-
tos. imóveis, aguardando que o adversário tomasse a iniciativa
251
 TITO LlVIO
de soltar o grito de guerra e iniciar o combate. O sol já come-
çava a baixar sem que nenhum dos dois inimigos houvesse lan-
çado um único dardo. Finalmente, para não se retirarem sem
nada ter feito , os etruscos soltaram o grito de guerra, fizeram
soar as trombetas e avançaram . Os romanos não esperaram mais
para aceitar o combate.
Os dois exércitos chocaram-se com impetuosidade, o inimi-
go sendo mais forte em número, os romanos em valor. Naquela
incerta batalha tombaram inúmeros soldados de an1bos os lados
e sempre os mais valorosos. A vitória não se inclinou para ne~
nhum dos dois exércitos até que a segunda fileira romana tomou
o lugar da primeira, e novos soldados substüuíram os que já se
mostravam fatigados. Os etruscos, que não possuíam tropas de
reserva para sustentar a linha de frente, tombaram todos diante
de suas insígnias ou em torno delas .
Jamais teria havido em qualquer batalha menor possibili-
dade de fuga e maior carnificina se a noite não tivesse coberto
com seu manto os obstinados etruscos, dispostos a lutar até
morrer, a ponto de os vencedores cessarem a luta antes dos ven-
cidos. Depois do pôr-do-sol, foi dado o sinal de retirada, e so-
mente à noite os dois adversários entraram em seus acampa-
mentos.
Naquele ano nada de memorável ocorreu em Sútrio, uma
vez que em uma só batalha havia sido destruída a primeira linha
do exército inimigo, restando somente as tropas de reserva , ape-
nas suficientes para proteger o acampamento. Os romanos, por
sua vez, tiveram tantos feridos que morreram mais soldados em
conseqüência de seus ferimentos do que durante a batalha .
Recusa de Ápio Cláudio 33 . Quinto Fábio, cônsul no
em deixar o cargo de censor ano seguinte, tendo como co-
após o término do mandato. lega Caio Márcio Rútilo, con-
tinuou a guerra em Sútrio.
Fábio trouxe reforços de Roma e os etruscos receberam um novo
exé r-cito de seu país.
Há muitos anos não havia desentendimentos entre magis-
lrados patrícios e tribunos quando. por uma espécie de fa tali-
252
HISTúRIA DE ROMA
dade, um membro daquela família que vivia em litígio com os
tribunos e a plebe deu origem à luta. Decorridos os dezoito
meses fixados pela lei Emília para a duração da censura, embora
seu colega Caio Pláucio tivesse abdicado de sua magistratura,
nenhum poder conseguiu forçar o censor Ápio Cláudio a seguir-
lhe o exemplo. Públio Semprônio, que naquela ocasião era tri-
buno da plebe, intentou uma ação contra o censor para obrigá-lo
a deixar o cargo no prazo legal, ação tão popular como justa e
que agradou tanto à massa quanto ao mais ilustre cidadão.
Quando uma vez mais relia a lei Emília, cumulando de louvo-
res seu autor, o ditador Mamerco Emílio, por ter reduzido para
dezoito meses o exercício da censura, que antes era qüinqüenal.
e cuja prolongada duração a convertia numa espécie de reinado,
ele acrescentou : " Dize-me então, Ápio Cláudio, o que terias
feito se tivesses sido também censor na época em que Caio Fúrio
e Marco Gegânio o foram".
Ápio respondeu que a interpelação do tribuno nada tinha
a ver com sua causa. Embora a lei Emília tivesse atingido esses
censores, sob cuja magistratura fora promulgada, visto que o
povo a havia votado após sua nomeação e o último voto cons-
tituía o direito e a lei, contudo, nem ele nem qualquer dos cida-
dãos que foram nomeados censores após a promulgação da lei
poderiam ser atingidos por ela.
Discurso do tribuno 34 . Como ninguém apoiasse a
Públio Semprônio contra cavilação de Ápio o tribuno dis-
Ápio Cláudio. se:
" Quirites, eis aí o descendente do famoso Ápio. que, no-
meado decênviro por um ano, nomeou-se a si próprio por mais
um, e no terceiro ano, sem se nomear e sem que ninguém o
nomeasse, como simples cidadão, conservou os fasces e o poder.
Só renunciou ao exercício de sua magistratura quando foi des-
truído por esse poder mal-adquirido, mal-exercido e malconser-
vado. t a mesma família, quirites, cuja violência e injustiça
vos obrigaram a desterrar-vos de vossa pátria e ocupar o monte
Sac ro, a mesma contra a qual procurastes o au xílio dos tribunos.
253
 TITO UVIO
Por sua causa vos estabelecestes com dois exércitos no Aven-
tino, pois foi ela que sempre combateu contra as leis sobre as
dívidas e contra as leis agrárias. Foi ela que suprimiu durante
algum tempo o direito de matrimônio entre patrícios e plebeus,
ela que barrou à plebe o caminho das magistraturas curuis.
Seu nome é muito mais funesto à vossa liberdade do que o dos
Tarqüínios.
"Como? Ápio Cláudio! Mais de cem anos decorreram após
a ditadura de Mamerco Emflio e, dentre tantos varões nobres e
enérgicos , nenhum deles leu a lei das Doze Tábuas? Nenhum
sabia que o último decreto do povo tinha força de lei? Na ver-
dade, todos o sabiam e por esse motivo se submeteram à lei
Emília e não à lei antiga sob a qual os censores haviam sido no-
meados, por ser a última decretada pelo povo e porque, quando
duas leis se contradizem, a antiga é sempre ab-rogada pela nova .
"Tu dizes, Ápio, que o povo não está sujeito à lei Emília?
Ou então que ele está, e apenas tu não estás sujeito a ela? A lei
Emília exerceu-se sobre Caio Fúrio e Marco Gegânio, censores
cuja violência demonstrou quanto dano essa magistratura pode
causar à república quando, irritados com o limite imposto à
duração de seu poder, privaram do direito de sufrágio a Ma-
merco Emílio, o homem mais importante de sua época, tanto na
paz quanto na guerra. Ela exerceu-se sobre todos os censores
que se seguiram, durante cem anos. Ela exerceu-se sobre Caio
Pláucio, teu colega, nomeado sob os mesmos auspícios e com os
mesmos direitos que tu . Ou pensarás, por acaso, que o povo
não o nomeou censor legitimamente, e que apenas tu és o homem
excepcional para o qual se deva reservar este privilégio singular?
" Sendo assim, como nomear um rei dos sacrifícios? Tendo
obtido o título de rei, ele se julgará legitimamente nomeado rei
de Roma. Quem pensas tu que se contentará com uma ditadura
de seis meses ou um interregno de cinco dias? A quem ousaría-
mos nomear ditador para pregar o prego sagrado ou para cele-
brar os jogos? Como deveis. tu e teus partidários, considerar
tolos e insensatos os homens que, tendo realizado os maiores
feitos, em menos de vinte dias abdicaram da ditadura ou que,
por um vício em sua eleição. abandonaram seu cargo!
254
HISTORIA DE ROMA
·· Por que relembrar fatos antjgos? Recentemente, há menos
de dez anos, o ditador Caio Mê nio. porque realizava inqué ritos
rigorosos demais para a segurança de certos personagens influen-
tes, ao ver-se acusado por seus inimigos de ter incorrido no
mesmo crime que inculcava aos adversários, quis enfrentar essa
acusação como cidadão privado e abdicou da ditadura. Não
exijo de ti tanta humildade. Não degeneres a soberba e o despo-
tismo de tua famflia . Não abandones teu cargo um dia, uma
hora que seja, antes do necessário, contanto que não uJtrapasses
a duração que lhe foi estabelecida. Seria demasiado exercer a
censura um mês ou uns dias além do que a lei estabelece. Mas
tu dizes: "Conservarei a censura três anos e seis meses além do
que permite a lei Emília, e a conservarei sozinho". Isto, na ver-
dade, já se assemelha à realeza. Pretendes substituir teu colega,
quando a religião não permite a substituição de um censor nem
mesmo em caso de morte?
"O censor religioso! Não ficaste contente em ter feito
passar das mãos dos mais nobres pontífices para as de escravos
nosso culto mais antigo, o único que foi criado pelo próprio
deus que, através dele, é venerado? Uma família mais antiga do
que Roma , uma família santificada pela hospitalidade dos deuses
imortais foi extinta no espaço de um ano graças a ti e à tua
censura, e meu espírito estremece à simples idéia de que teu
sacrilégio possa recair sobre toda a república. Roma foi tomada
durante o lustro em que, após a morte do censor Caio Júlio, Lú-
cio Papírio Cursor, para não abandonar seu cargo, nomeou como
colega Marco Cornélio Maluginense. E entretanto, Ápio, sua
ambição era bem mais moderada do que a tua! Lúcio Papírio
não exerceu a censura, nem sozinho nem por mais tempo além
do fixado pela lei . Mesmo assim, depois dele, ninguém mais lhe
seguiu o exemplo: todos os censores posteriores a ele abdicaram
de seu cargo após a morte de um colega. Mas a ti , nada te de-
tém, nem o término de teu mandato, nem o exemplo de teu
colega que se demitiu , nem a lei , nem o sentimento de honra . A
virtude, tu a substituis pelo orgulho. pela audácia, pelo desprezo
aos deuses e aos homens.
255
 TITO LIVIO
"Quanto a mim, Ápio Cláudio, considerando a majestade
e o respeito que merecem o cargo que exerceste, desejaria evitar
não só violências contra tua pessoa, como também ter de diri-
gir-te palavras tão severas. Mas fui forçado por tua obstinação
e orgulho a pronunciar estas palavras, e caso não obedeças à lei
Emflia ordenarei tua prisão. Nossos antepassados determinaram
que, se os dois candidatos não obtivessem o número de votos
exigidos pela lei nas eleições censoriais, dever-se-ia anular a
eleição sem proclamar eleito nenhum dos candidatos. Assim , não
permitirei que tu, que sozinho não poderias ter sido eleito cen-
sor, sozinho exerças a censura".
Depois dessas e de outras palavras, o tribuno ordenou a pri-
são do censor e seu confinamento no cárcere. Seis tribunos apro-
varam a ação de seu colega, mas três outros foram em auxílio de
Ápio, que apelara. E para maior desgosto de todas as classes.
ele exerceu sozi nho a censura.
Vitória dos romanos 35. Enquanto esses fatos ocorriam
contra os etruscos. em Roma, os etruscos já haviam si-
tiado Sútrio. Quando o cônsul Fábio
conduzia suas tropas pelo sopé das montanhas para prestar
socorro aos aliados e experimentar as fortificações inimigas, caso
se lhe oferecesse a ocasião, o exército inimigo, em ordem de
batalha, saiu-lhe ao encontro.
Diante da imensa multidão de soldados que a vasta planí-
cie lhe permitia descortinar, o cônsul desviou a coluna para as
encostas, de solo pedregoso, para compensar com uma vantajosa
posição o pequeno contingente de suas tropas, e enfrentou o ini-
migo. Desprezando tudo o mais e confiantes apenas em sua
superioridade numérica, os etruscos travaram o combate com
tanta precipitação e ardor que, abandonando os dardos para
lançar-se mais depressa a uma luta corpo a corpo, desembai-
nharam as espadas enquanto avançavam contra o inimigo. Os
romanos revidaram atirando-lhes ora dardos ora pedras, que o
próprio solo lhes fornecia em abundância. Os golpes que atin-
giam escudos e capacetes, mesmo quando não feriam os adver-
sários, estabeleciam confusão entre eles. Não lhes era fácil escalar
256
HISTORIA DE ROMA
a encosta para o combate corpo a corpo, nem possuíam mais os
dardos para combater à distância. Expostos aos golpes, inteira-
mente desprotegidos e sem poder avançar, alguns começaram
a debandar. Os lanceiros e prínci pes do exército romano. sol-
tando novo grito e de espada desembainhada, avançaram então
contra as fiteiras inimigas, desamparadas e vacilantes. Os etrus-
cos não puderam sustentar o ataque. Deram meia-volta e, em
fuga desordenada , demandaram o acampamento. Mas os cava-
leiros romanos atravessaram a planície e barraram o caminho
aos fugitivos, que foram obrigados a abandonar o acampamento
e refugiar-se nas montanhas. Quase sem armas e padecendo com
seus ferimentos, a coluna penetrou na floresta Cimínia .
Depois de massacrar muitos milhares de etruscos e apode-
rar-se de trinta e oito insígnias militares, os romanos capturaram
também o acampamento inimigo, onde fizeram grandes despo-
jos. Em seguida, começaram a pensar em perseguir o inimigo.
Vitória do cônsul 36 . A floresta Cimínia era então mai
Quinto Fábio impenetrável e ameaçadora do que o
contra os etruscos. eram até pouco tempo os bosques da
Germânia. Até então ninguém a havia
atravessado, nem sequer um mercador. A não ser o próprio
general, homem algum ousara ali penetrar, pois entre os ro-
manos ainda não se apagara a lembrança da derrota caudina.
Um dos presentes, irmão do cônsul (segundo uns Fábio
Ceso, segundo outros Caio Cláudio, seu irmão pelo lado mater-
no) declarou que iria reconhecer o terreno e logo voltaria trazen-
do informações precisas. Educado em Cere, em casa de estrangei-
ros, havia recebido uma formação etrusca e conhecia bem a lín-
gua desse povo. Alguns historiadores afirmam que naquela época
era costume ensinar aos jovens romanos as letras etruscas, como
hoje se ensinam as letras gregas. Mas é mais provável que esse
homem tivesse um motivo especial para usar um estratagema tão
audacioso e introduzir-se junto ao inimigo. Diz-se que levou em
sua companhia apenas um escravo que fora educado com ele e
que, por conseguinte, também conhecia a língua etrusca. Limi-
taram-se a colher informações J!erai sobre a natureza da região
2'57
 TITO UVIO
que mam penetrar e os nomes dos chefes daqueles povos, por
temor de que uma hesitação a respeito de assuntos tão importan-
tes viesse a denunciá-los nas conversas, levando-os à prisão. Par-
tiram disfarçados em pastores, munidos cada um de instrumentos
de camponeses, foices e duas azagaias. Mas nem o uso da língua
etrusca. nem suas vestes e instrumentos foram tão convincentes
quanto a improbabilidade de um estrangeiro penetrar na floresta
Cimfnia.
Diz-se que eles a atravessaram e atingiram o território dos
umbros camertos, onde o romano ousou confessar sua identi-
dade. Introduzido no Senado, falou em nome do cônsul sobre
a possibilidade de aUança e amizade. Recebido com amável hos-
pitalidade, foi incumbido de dizer aos romanos que, caso eles
penetrassem naquele território, não s6 o exército encontraria
víveres para trinta dias como também toda a juventude dos
umbros camertos estaria em armas pronta a obedecer.
Quando o cônsul recebeu essa notícia , despachou as baga-
gens na primeira vigília e mandou que as legiões as acompa-
nhassem, enquan to ele ficava com a cavalaria. Ao amanhecer
do dia seguinte, desfilou com seus cavaleiros diante dos postos
inimigos situados fora da selva. Depois de distrair por algum
tempo a atenção do inimigo, voltou ao acampamento e, saindo
pela outra porta, foi reunir-se a suas legiões antes do anoitecer.
Na madrugada seguinte, ocupou o topo do monte Cimínio e.
depois de contemplar os opulentos campos da Etrúria. mandou
os soldados descerem.
Já os soldados se haviam apoderado de ricos despojos .
quando foram subitamente a tacados por coortes de camponeses
e truscos. reunidas apressadamente pelos chefes da região. Mas
o inimigo atacou em tal desordem que, ao invés de recapturar
os despojos, esteve a ponto de ser capturado. Depois de destro-
çá-lo e pô-lo em fuga. depois de devasta r toda a região, os roma-
nos vencedores. ricos dos mais variados despojos . regressaram
ao acampamento. Haviam acabado de chegar cinco legados e
dois tribunos da plebe para transmitir a Fábio a ordem do Se-
nado de não atravessar a floresta Cimínia . Regozijaram-se por
258
HISTóRIA DE ROMA
terem chegado demasiado tarde para impedir aquela expedição
e voltaram a Roma como mensageiros da vitória.
37. A expedição do côn-
Nova vitória dos romanos sobre
sul ao invés de terminar
os etruscos e os umbros.
com a guerra contribuiu
Concessão de uma
trégua de trinta anos. para prolongá-la . A de-
vastação de toda a re-
gião situada nas proximidades do monte Cimínio pelos romanos
despertara a indignação não só dos povos da Etrúria mas também
dos umbros . seus vizinhos.
Um exército tão numeroso como jamais se vira avançou
em direção a Sútrio e estabeleceu acampamento fora da floresta .
Na impaciência de combater, logo que foi possível saiu para a
planície, organizou-se em linha de batalha e aguardou em sua
posição que os romanos também formassem suas fiteiras. Ao
perceber que eles recusavam o combate, aproximou-se de ~uas
trincheiras e viu que até mesmo os piquetes avançados se havtam
recolhido ao interior das paliçadas. Ergueu-se então um grande
clamor. exigindo que os chefes mandassem trazer do acampa-
mento a refeição do dia , pois eles permaneciam em seus postos
e, à noite, ou pelo menos ao alvorecer. atacariam o acampamento
inimigo.
A autoridade do general refreava a impaciência do exército
romano, que não era menor do que a de seu adversário. Por
volta da décima hora, o cônsul ordenou aos soldados que fizes-
sem sua refeição e se mantivessem armados para qualquer hora
do dia ou da noite em que lhes desse o sinal. Dirigiu algumas
palavras aos soldados, exaltando as guerras samnitas e rebaixan-
do os e truscos. Não se devia comparar, dizia ele. um inimigo ao
outro, uma multidão a outra. Além do mais, ele possuía uma
arma secreta que os soldados conheceriam no momento oportu-
no . Por enquanto convinha guardar silêncio.
Com essas palavras ambíguas. o gene ral dava a entender que
armava uma cilada aos etruscos, para encorajar os soldados ame-
drontados com a superioridade numé rica do inimigo. E como os
2'>9

TITO UVIO
etruscos se haviam estabelecido no local sem construir fortifi-
cações, a insinuação do cônsul tornava-se mais verossímil. De-
pois da refeição, os soldados se entregaram ao repouso. Por volta
da quarta vigília, foram despertados e, sem tumulto, pegaram
as armas. Distribuíram-se machadinhas aos serviçais do exército
para que derrubassem a paliçada para o lado de fora e obstruís-
sem a trincheira. O exército organizou-se em linha de batalha no
interior das fortificações, e coortes selecionadas foram colocadas
à saída das portas.
Pouco antes do amanhecer, no momento em que nas noites
de verão o sono é mais profundo, a um sinal dado, o exército
irrompeu do acampamento, passou pela paliçada destruída e
lançou-se sobre os inimigos que dormiam espalhados pelo cam-
po. Todos foram surpreendidos pelo massacre, uns imóveis,
outros semidespertos e ainda deitados, a maior parte tentando
pegar as armas. Alguns tiveram tempo de se armar, mas mesmo
esses, não tendo posição certa nem chefe para dar-lhes ordens,
foram dispersados, postos em fuga e perseguidos pelos romanos.
Corriam ora para o acampamento, ora para a floresta, sem dire-
ção definida. Finalmente a floresta lhes ofereceu refúgio mais
seguro, pois seu acampamento, estabelecido na planície, foi to-
mado no mesmo dia. O cônsul ordenou que lhe fossem entre-
gues todo o ouro e toda a prata encontrados, deixando os demais
despojos para os soldados. Naquele dia foram massacrados ou
capturados cerca de sessenta mil inimigos.
Segundo alguns autores, essa batalha tão célebre foi travada
além da floresta Cimínia, perto de Perúsia. Em Roma teria havi-
do verdadeiro alarme ao saber-se que o exército estava separado
de seu país por uma floresta tão perigosa, podendo ser esmagado
pelos etruscos e umbros sublevados em toda parte. Mas, onde
quer que tenham combatido, as armas romanas mostraram sua
superioridade. Foi então que chegaram embaixadores de Perúsia,
Cortona e Arrécio, naquela época as cidades mais importantes
da nação etrusca, para pedir paz e aliança aos romanos. Entre-
tanto, foi-lhes concedida apenas uma trégua de trinta anos.
260
HISTóRIA DE ROMA
Ditadura de 38 . Enquanto esses acontecimen-
Lúcio Papírio Cursor. tos ocorriam na Etrúria, o cônsul,
Caio Márcio Rútilo, tomava aos
samnitas a cidade de Alifas. Muitas outras praças fortes e aldeias
foram implacavelmente arrasadas pelos romanos ou se renderam
sem luta.
Nessa mesma época, a frota romana comandada por Públio
Cornélio, a quem o Senado confiara a orla marítima, partira em
direção à Campãnia e ancorara em Pompéia. Com a intenção
de saquear o território nucerino, a tripulação começou por de-
vastar os campos mais próJdmos, de onde poderiam voltar com
segurança a suas naus. Mas como sempre acontece, foram arras-
tados pelo prazer da pilhagem e avançaram demasiado, desper-
tando a atenção do inimigo. Enquanto os tripulantes da frota se
achavam espalhados pelos campos e poderiam ter sido facilmente
exterminados, ninguém lhes saiu ao encontro. Mas quando já se
retiravam despreocupados, os camponeses os alcançaram a pe-
quena distância de suas naus, despojaram-nos de suas presas e
mataram alguns dentre eles. Os que escaparam. tomados de pa-
vor, foram rechaçados para suas naus.
Ao terror que causou em Roma a notícia da expedição de
Quinto Fábio além da floresta Cimínia, correspondeu no Sâmnio
a alegria dos inimigos ao terem conhecimento de que o exército
romano fora interceptado e sitiado. Recordavam a cena da der-
rota nas Forcas Caudinas. Sempre ávido de se expandir, o povo
romano havia sido arrastado pela mesma temeridade para desfi-
ladeiros impraticáveis e agora deparava-se com os obstáculos do
terreno e com as armas do inimigo. A alegria dos samnitas já se
confundia com uma certa inveja, porque a sorte os havia privado
da honra dessa guerra contra Roma para dá-la aos etruscos.
Assim, com todas as suas armas e soldados acudiram para esma-
gar o cônsul Caio Márcio, com a intenção de alcançar logo depois
a Etrúria através dos territórios dos marsos e dos sabinos, se
Márcio não lhes desse possibilidade de combater. Mas o cônsul
lhes saiu ao encontro.
Os dois adversários lutaram com ferocidade, mas o resul-
tado da peleja foi duvidoso. Embora as perdas tenham sido gran-
261
 TITO LIVJO
des em ambos os lados, aquele combate teve um aspecto de der-
rota para os romanos, que perderam vários cavaleiros, tribunos
militares e um legado. O que mais impressionou porém foi o
próprio cônsul ter sido ferido . Como em geral acontece, os boa-
tos exageravam mais ainda esses fatos e um grande temor apos-
sou-se dos senadores, que decidiram então nomear um di tador.
Ninguém duvidava que seria eleito Papfrio Cursor, considerado
como o maior conhecedor da estratégia militar de sua época.
Mas, em meio a tantos obstáculos, não era possível fazer chegar
com segurança um mensageiro ao Sâmnio e não se tinha certeza
de que o cônsul Márcio ainda vivia. O outro cônsul, Fábio era
inimigo pessoal de Papírio, e por temer-se que essa inimi~ade
viesse a prejudicar o bem público, o Senado decidiu enviar-lhe
legados escolhidos dentre os ex-cônsules, capazes por sua própria
?utori~ade, e não apenas pelo caráter público de que estavam
mvest1dos, de levá-lo a esquecer, em favor da pátria, suas dife-
renças com Papírio.
Os legados entregaram a Fábio o senadoconsulto e dirigi-
ram-lhe algumas palavras de acordo com as instruções recebi-
das. De olhos baixos, sem responder, o cônsul se retirou deixan-
do-os na incerteza sobre o que iria fazer. Mas no silêncio da
noite, conforme o costume, nomeou Lúcio Papírio ditador.
Quando os legados o felicitaram por aquele belo triunfo sobre
seus sentimentos, ele manteve um silêncio obstinado e, sem con-
testá-los, sem mencionar o que havia feito, despediu-os, deixando
transparecer o sofrimento que sua grande alma procurava do-
minar.
Papírio nomeou Caio Júnio Bubulco comandante da cava-
laria. No momento em que apresentava a lei curiata referente a
seu comando, um funesto presságio o fez adiar o voto, pois a
primeira cúria a votar seria a Fáucia, circunstância que ocorrera
em duas ocasiões fatais : a tomada de Roma e a paz caudina.
Nos dois anos em que haviam acontecido esses fatos, fora ela
a primeira a apresentar seu voto. Macer Licínio considera tam-
bém essa cúria responsável por uma terceira catástrofe: a derrota
de Cremera.
262
HJSTORIA D E ROMA
Destruição do exército 39 . No dia seguinte, depois
etrusco no lago Vadimão. de consultar novamente os aus-
pícios, o ditador apresentou
sua lei. Em seguida, com as tropas que haviam sido recen-
temente recrutadas quando a expedição do exército ao outro
lado da floresta Cimínia espalhara o terror em Roma , dirigiu-se
a Lôngula. Depois de receber do cônsul Márcio seus antig~s .so~­
dados fez as tropas marcharem em ordem de batalha. Os JmmJ-
gos p~reciam dispostos a aceitar o combate, mas a noite os sur-
preendeu a todos em suas posições, sem que de nenh~m lado
surgisse o sinal de ataque. Durante algum tempo contmuaram
tranqüilamente acampados a curta distância um do out~o.' ~m
confiança em suas forças mas sem menosprezar as do mJmJgo.
... pois travou-se uma batalha com o exército umbro. Con-
tudo os inimigos não foram massacrados mas apenas postos em
debandada, visto que, depois de terem encetado acirrado com-
bate, não sustentaram a luta. Os etruscos, por sua vez, perto do
lago Vadimão, tendo reunido um exército de acordo com uma
" lei sagrada", cada soldado escolhendo seu adversário, combate-
ram com todas as forças e uma coragem maior do que nunca.
A luta foi tão renhida que de nenhum dos dois lados lançaram-
se dardos. O combate começou à espada e foi-se tornando tão
violento no decorrer da peleja que durante algum tempo a vitó-
ria parecia incerta, como se os romanos lutassem não c~n.tr~ os
etruscos, tantas vezes vencidos, mas contra um novo JOJmJgo.
Nos dois lados nenhum soldado pensava em debandar. Os que
se encontravam à frente das insígnias tombavam, mas, para que
não ficassem sem proteção, a segunda fileira tomava o lugar da
primeira. Recorreu-se até às últimas tropas de reserva.
O cansaço e o perigo chegavam ao auge quando os cava-
leiros romanos, desmontando de seus cavalos, colocaram-se na
primeira fileira da infantaria, saltando sobre armas e cadáveres.
Aparecendo em meio aos combatentes já fatigados , essa nova
tropa pôs em desordem as fileiras etruscas. Acompanhando o
ímpeto dos cavaleiros, o restante das tropas, embora esgotadas
pelo cansaço, romperam finalmente as linhas inimigas. Sua tena-
cidade começou a ser vencida e alguns manípulos recuaram e
26)
 TITO LIVIO
começaram a debandar. Naquele dia fora dado o primeirq golpe
no poderio etrusco, a que uma fortuna favorável proporcionara
abundantes riquezas. O que havia de mais sólido em suas forças
foi destruído na batalha, e com o mesmo ímpeto os romanos se
apoderaram do acampamento e o saquearam.
Duas importantes vitórias 40 . Pouco depois, com
sobre os samnitas e os etruscos. os mesmos perigos e o
mesmo resullado glorio-
so, houve uma guerra com os samnitas. Entre outros preparativos
de guerra, o inimigo fez seus soldados brilharem com o fulgor
de novas armas. Formaram dois exércitos cujos escudos eram
cinzelados uns em ouro, outros em prata. Os escudos eram lar-
gos na parte que cobria o peito e os ombros, tinham a mesma
largura na parte superior e terminavam em ponta para se toma-
rem mais manejáveis. Um tecido esponjoso cobria o peito do
soldado, e uma perneira protegia-lhe a perna esquerda. Os capa-
cetes eram encimadas por um penacho, para dar a impressão de
estatura mais elevada. Os soldados que usavam escudos dourados
trajavam túnicas multicolores e os de escudos prateados, túnicas
de linho branco. Estes ocuparam a ala direita e o outro. a
esquerda.
Os romanos já conheciam aquele aparato de armas vistosas.
Mas seus chefes lhes haviam ensinado que um soldado devia
ter aspecto ameaçador, confiar em sua espada e em sua coragem,
e não andar incrustado de ouro e prata. Aqueles objetos seriam
muito mais uma presa para o inimigo do que verdadeiras armas.
Brilhantes antes da luta, cedo estariam manchados com o sangue
dos ferimentos. A coragem era o melhor adorno do soldado. To-
dos aqueles enfeites acompanhariam a vitória, e a riqueza do
inimigo serviria de recompensa ao vencedor, por mais pobre que
fosse. Com essas palavras Cursor estimulou os soldados e con-
duziu-os à luta. Colocou-se ele próprio na ala direita e confiou a
esquerda ao comandante da cavalaria.
Desde o início do combate, a luta contra o inimigo foi
intensa, não sendo menor a disputa entre o ditador e o coman-
dante da cavalaria para ver de que lado se esboçaria a vitória.
264
HISTORIA DE ROMA
Na ala esquerda, Júnio foi o primeiro a rechaçar a ala direita
inimiga, cujos soldados se haviam consagrado aos deuses infer-
nais, conforme o costume samntta, e se destacavam pela brancura
de suas túnicas e armaduras. Repetindo que os imolava a Orca,
)únio ordenou· o •avanço das tropas, desbaratou-lhes as fi leiras
e decididamente fez recuar a linha de frente.
Quando o ditador o percebeu, exclamou : " Será pela ala
esquerda que a vitória vai começar? E a ala direita, a tropa do
ditador, em vez de levar vantagem na vitória não fará senão
arrastar-se atrás do impulso de outros?" Com essas palavras ins-
tigou os soldados, de modo que o infante não ficou devendo ~o
cavaleiro em coragem, nem o zelo dos legados ao dos generaiS.
Marco Valéria na ala direita e Públio Décio na esquerda, ambos
ex-cônsules, dirigindo-se aos cavaleiros dispostos nas duas alas ,
exortaram-nos a acompanhá-los na vitória e precipitaram-se con-
tra os flancos do exército inimigo.
Esse motivo de novo terror propagou-se das extremidades
até o corpo do exército inimigo e, para aumentá-lo ainda mais.
as legiões romanas soltaram novo grito de guerra e voltaram a
atacar. Os samnitas começaram então a debandar. O campo já
estava coberto de cadáveres e de belas armas destruídas. Ame-
drontados, a princípio os samnitas refugiaram-se no acampamen-
to, mas, em breve, não conseguiram sequer defendê-lo. Foi to-
mado, saqueado e, antes do anoitecer, incendiado.
Por um senadoconsulto o ditador desfilou em triunfo e
essa solenidade teve extraordinário brilho, sobretudo graças às
armas capturadas ao inimigo. Eram tão magníficas que os
escudos dourados foram repartidos entre os proprietários de ten-
das para decorar o Fórum. Diz-se que daí surgiu o costume de
os edis decorarem o Fórum por ocasião dos desfiles dos carros
sagrados. Os romanos utilizaram as brilhantes armas do inimigo
apenas para homenagear seus deuses. Mas os campâni~s, por
altivez e ódio aos samnitas, adornaram com elas os glad1adores,
cujo espetáculo os divertia em seus festins , e a quem deram o
nome de samnitas.
No mesmo ano, perto de Perúsia, cidade que havia rompi-
do a trégua. o cônsul Fábio obteve uma vitória fácil e decisiva
265
 TITO UVIO
sobre o que ainda restava do exército etrusco. A própria cidade
teria sido tomada, pois o vencedor chegou até suas muralhas, se
não tivessem saído legados para tratar de sua rendição. O côn-
sul deixou uma guarnição em Perúsia e mandou que o precedes-
sem, para se apresentarem ao Senado em Roma, os legados
incumbidos de pedir paz aos romanos. Depois disso, entrou em
triunfo na cidade, por aquela vitória que fora mais brilhante
ainda do que a do ditador. A honra da vitória alcançada sobre
os samnitas foi atribuída em grande parte aos legados Públio
Décio e Marco Valério, aos quais o povo, por grande maioria
de votos, elegeu nas eleições seguintes cônsul e pretor, respecti-
vamente.
Sublevação dos umbros. 41 . Por ter gloriosamente do-
Vitória dos romanos. minado a Etrúria, Fábio conti-
nuou no consulado e teve Décio
como colega. Valério, por sua vez, foi nomeado pretor pela
quarta vez.
Os cônsules dividiram o comando: a Etrúria coube a Décio
e o Sâmnio a Fábio. Este último marchou para Nucéria Alfater-
na , onde rejeitando o pedido de paz de seus habitantes, para cas-
tigá-los por terem-na recusado quando lhes fora oferecida, ata-
cou-os e forçou-os a renderem-se. Travou-se também uma bata-
lha contra os samnitas, quando o inimigo foi vencido sem grandes
esforços, e a memória desse combate não se teria conservado se
não tivesse sido aquela a primeira vez em que os marsos luta-
ram contra os romanos. Arrastados pela defecção dos marsos, os
pelígnios experimentaram a mesma sorte.
O outro cônsul, Décio, também foi feliz na guerra. Com
ameaça forçara os tarqüínios a fornecerem trigo ao exército e a
pedirem uma trégua de quarenta anos. Tomou de assalto algu-
mas fortalezas dos volsinienses, destruindo várias dentre elas
para que não lhes servissem de refúgio. Assim , levando a guerra
a diversos pontos da região, de tal modo se fez temer que toda
a nação etrusca solicitou um tratado ao cônsul. Mas nada conse-
guiram a não ser uma trégua de um ano. O soldo do exército
266
HISTóRIA DE ROMA
romano naquele ano foi pago pelo inimigo, que teve de dar tam-
bém duas túnicas a cada soldado: era o preço da trégua.
A tranqüilidade obtida em relação aos etruscos foi repenti-
namente perturbada pela defecção dos umbros, povo que não
sofrera os males da guerra, a não ser a passagem do exército por
seu território. Esses umbros haviam recrutado toda a sua juven-
tude e instigado à revolta grande parte dos etruscos. Seu exér-
cito era tão numeroso que eles se vangloriavam de poder deixar
Décio em sua retaguarda e partir para atacar Roma . Falavam de
si próprios com grande arrogância e dos romanos com desprezo.
Quando esses projetos foram relatados a Décio, ele aban-
donou a Etrúria, regressou em marcha forçada a Roma e estabe-
leceu-se no território pupiniense, atento aos rumores que surgiam
sobre o inimigo. Em Roma tampouco se menosprezava a guerra
com os umbros. Sua simples ameaça inspirou grande temor a
todos os homens que haviam sofrido a derrota infligida pelos
gauleses e sabiam quão desprotegida era a cidade que habitavam .
Por esse motivo, foram enviados legados ao cônsul Fábio para
ordenar-lhe que conduzisse imediatamente o exército para a úm-
bria, caso a guerra com os samnitas lhe permitisse uma trégua . O
cônsul obedeceu à ordem e dirigiu-se em marcha forçada a Me-
vânia, onde se achavam as tropas dos umbros.
A súbita chegada do cônsul, que eles supunham no Sâmnio,
longe da úmbria e ocupado com outra guerra, apavorou-os a tal
ponto que uns pensaram em refugiar-se em cidades fortificadas.
outros em desistir da guerra. Um único de seus cantões, que eles
próprios chamavam Materina, manteve os demais em prontidão
e compeliu-os a travar combate imediato.
Fábio estava construindo as trincheiras de seu acampamen-
to. quando os umbros atacaram. Ao vê-los precipitarem-se em
desordem sobre as fortificações , o cônsul tirou os soldados do
trabalho e organizou as fileiras, como permitiam a natureza do
lugar e a ocasião. Depois de exortá-los, elogiando com justiça
os títulos de glória que haviam conquistado contra os etruscos e
os samnitas, ordenou-lhes que terminassem com aquele insignifi-
cante resquício da guerra etrusca e se vingassem das palavras
ímpias com que o inimigo havia ameaçado atacar Roma .
267
 TITO UVIO
Os soldados ouviram essa exortação com tanto entusiasmo
que um grito irrompeu espontaneamente interrompendo as pala-
vras do general. Antes de receberem ordens, antes dos toques
habituais das trombetas e cornetas, precipitaram-se desordena-
damente contra o inimigo. E, coisa extraordinária! , parecia que
não lutavam contra homens, contra guerreiros armados. Come-
çaram por arrebatar as insígnias aos porta-estandartes inimigos
e depois arrastaram os próprios porta-estandartes até onde se
encontrava o cônsul. Do mesmo modo, arrastaram os soldados
das fileiras inimigas para as suas próprias fileiras . E, se em algu-
ma parte ofereciam resistência, era com o escudo e não com a
espada que resolviam a situação. Levantando o braço, golpea-
vam o inimigo com o centro do escudo e lançavam-no por terra.
Havia maior número de prisioneiros do que de mortos quando,
a um clamor uníssono, que percorreu todo o exército, foi dada
a ordem de cessar a luta. Assim, em meio ao próprio combate,
renderam-se os umbros que haviam provocado a guerra. Nos
dias subseqüentes, os outros povos umbros também capitularam.
Os ocriculanos receberam a promessa de uma aliança com Roma .
Vitória sobre os samnitas. 42. Vencedor de uma guerra
Reação dos hémicos. cuja direção havia sido confia-
da a outro homem, Fábio re-
conduziu o exército para a sua área de comando. Pelo êxito dessa
campanha, o Senado, a exemplo do povo que no ano anterior
o havia reeleito para o consulado, prorrogou-lhe o comando para
o ano seguinte, apesar da oposição de Ápio Cláudio, que nesse
ano foi nomeado cônsul juntamente com Lúcio Volúmnio. Certos
anais registram que Ápio havia pleiteado o consulado quando
ainda censor e que o tribuno da plebe Lúcio Fúria havia comba-
tido sua eleição enquanto não abdicasse da censura. Nomeado
cônsul, ao ver que seu colega obtivera por decreto o comando
da guerra contra um novo inimigo, os salentinos, permaneceu
em Roma para aumentar sua influência por meios pacíficos, uma
vez que a glória militar estava em mãos de outros cidadãos.
Volúmnio nada teve a reclamar do comando que lhe coube:
travou com êxito inúmeros combates e tomou ao inimigo várias
268
HISTóRIA OE ROMA
cidades. Distribuía prodigamente os despojos, e essa generosi-
dade, tão agradável por si mesma , era ainda, s~cundada p~r sua
afabilidade. Com isso tomara os soldados avtdos de pengos c
fadigas. . .
Perto da cidade de Alifas, o procônsul Oumto Fábto tra-
vou uma batalha campal contra o exército samnita. O desfecho
do combate não deixou dúvidas: os inimigos foram derrotados e
repelidos para seu acampamento, e não . teriam podido conser-
vá-lo se o dia não estivesse prestes a termmar. Contudo, o acam-
pamento foi cercado antes do anoitecer e permaneceu vi~iado
durante a noite para que ninguém pudesse escapar. No dta se-
guinte, mal o sol raiou, começou a rendição. .
Decidiu-se que todos os samnitas que ali se encontravam sa•-
riam apenas com a roupa do corpo e passariam sob o jugo. Os
aliados dos samnitas também não foram poupados: cerca de sete
mil homens foram vendidos em hasta pública. Os que se apre-
sentavam como cidadãos hérnicos eram postos de lado, sob severa
vigilância, e Fábio os enviou a todos ao Senado em Roma. Apó~
investigações para saber se eles haviam lutado a f~vor dos samm-
tas e contra os romanos por ordem de seus magtstrados ou v~­
luntariamente, foram confiados à guarda de diversos ~ovos lati-
nos. Os novos cônsules, Públio Cornélio Arvina e Oumto Már-
cio Trêmulo, que já haviam sido empossados, receberam orde~
de submeter aquele assunto à deliberação do Senado. Os hérm-
cos ficaram indignados com essa medida e reuniram u_~a assem-
bléia geral em Anágnia, no circo que cha~avam Mar~ttmo , oca-
sião em que todos os povos da nação hérmca , à exceçao de Até-
trio, Ferentino e Verulas, declararam guerra ao povo romano .
Dupla vitória dos romanos 43 . Depois da retirada
sobre os hérnicos e os samnitas. de Fábio, irromperam no-
vos movimentos também
no Sãmnio. As cidades de Calácia e Sora, onde foram deixada_s
guarnições romanas, caíram em poder dos inimigos. qu~. ~sev_•­
ciaram cruelmente os soldados prisioneiros. Em consequencta
desses fatos, Públio Cornélio foi enviado a~ local com um
exército. Mas como a guerr11 contrA os anagmno e os outros
 TITO UVIO
hérnicos já havia sido decidida , os novos inimigos foram desti-
nados a Márcio.
Ocupando primeiramente postçoes vantajosas, o mmugo
interceptou toda a comunicação entre os acampamentos dos côn-
sules, de tal modo que mensageiro algum poderia passar. Du-
rante alguns dias, os dois cônsules permaneceram sem qualquer
informação e em completa ignorância quanto às respectivas
situações. O alarme chegou a Roma e todos os jovens recebe-
ram ordem de prestar juramento, para que se pudesse dispor
de mais dois exércitos em caso de necessidade. Mas a guerra
contra os hérnicos não correspondeu nem ao terror que causara
na ocasião, nem à antiga glória daquela nação. Em parte alguma
o inimigo ousou praticar qualquer feito digno de registro. Per-
deram três acampamentos no espaço de poucos dias e, para con-
seguir uma trégua de trinta dias que lhes permitisse enviar em-
baixadores ao Senado em Roma, comprometeram-se a pagar dois
meses de soldo e a fornecer trigo ao exército, bem como a dar
uma túnica a cada soldado. O Senado os remeteu a Márcio, a
quem um senadoconsulto havia conferido autoridade para dis-
por da sorte daquele povo, e ele recebeu sua capitulação.
No Sãmnio, apesar da superioridade de suas forças, o outro
cônsul achava-se em posição mais desvantajosa. O inimigo havia
interceptado todos os caminhos e ocupado todos os atalhos para
impedir o transporte de provisões para seu exército, que diaria-
mente se colocava em ordem de batalha sem conseguir forçar o
inimigo a aceitar o combate. Via-se claramente que nem os sam-
nitas resistiriam a uma batalha campal, nem os romanos à prolon-
gação da guerra. Mas a chegada de Márcio, que depois de sub-
jugar os hérnicos se apressara em socorrer seu colega, não per-
mitiu que o inimigo retardasse por mais tempo a luta.
Considerando-se inferiores para combater sequer contra um
dos exércitos romanos, e compreendendo que não lhes restaria
a menor esperança caso permitissem a junção dos dois exércitos
consulares, os samnitas atacaram a coluna de Márcio que acabara
de chegar e ainda não se organizara para o combate. Rapida-
mente os romanos amontoaram as bagagens no centro c. tanto
270
HISTORIA DE ROMA
quanto o permitiam as circunstâncias, dispuseram-se em ordem
de batalha.
Primeiro, o clamor que chegava até o acampamento e, logo
em seguida, o pó que se levantava ao longe, deram o alarme ao
exército do outro cônsul. Imediatamente este mandou os solda-
dos empunharem as armas e organizarem-se em fi leiras. Em se-
guida atacou pelo flanco o exército inimigo, que se achava em-
penhado em outro combate, bradando aos soldados que seria o
cúmulo da desonra se suas tropas deixassem o outro exército
obter duas vitórias sem reivindicar para si mesmas a glória da
guerra que lhes pertencia. Pelo ponto onde havia atacado , mer-
?
gulhou nas fileiras inimigas e marchou direto para seu ~cam­
pamcnto. Encontrando-o sem defensores , tomou-o e mcend•o_u-o.
Quando as chamas foram avistadas pelos soldados de Márcto e
por seus adversários, estes começaram a debandar e':". t?das as
direções, mas eram trucidados aonde quer que se dmgtssem e
não conseguiam refúgio em parte alguma.
Depois de exterminar trinta mil inimigos, os cônsules já
haviam dado o sinal de retirada e reuniam suas tropas felici -
tando-se mutuamente quando, subitamente, apareceram ao longe
novas coortes inimigas, alistadas como reservas, que serviram
tão somente para recomeçar o massacre. Sem esperar a ordem
dos cônsules, sem receber o sinal de ataque, os vencedores pre-
cipitaram-se sobre elas, gritando que era preciso dar àqueles
recrutas samnitas uma rude lição. Os cônsules perdoaram o ardor
de suas legiões, compreendendo que jovens soldados. em meio
a veteranos desalentados pela derrota . não seriam capazes de
tentar resistir. Não se enganaram em seu julgamento: todas as
tropas samnitas, antigas e novas. debandaram em direção às mon-
tanhas vizinhas. O exército romano galgou também as monta-
nhas de modo que não havia mais local seguro para os vencidos.
'Repelidos dos picos que haviam ocupado, os soldados ini-
migos em uníssono suplicaram paz. Depois de exigir o forneci-
mento de trigo durante três meses e um ano de soldo para o
exército, bem como uma túnica para cada soldado. os romanos
mandaram que parlamentares samnita e dirigissem ao Senado
em Roma para pedir paz.
271
 TITO UVIO
Cornélio permaneceu no Sâmnio e Márcio, ao voltar a Roma ,
recebeu o triunfo por sua vitória sobre os hérnicos. Em sua
homenagem foi decretada a construção de uma estátua a ser
erguida no Fórum, diante do templo de Castor.
Aos três povos hérnicos, os aletrinos, os verulanos e os
ferentinos, foram devolvidas suas leis, que eles preferiram ao
ao direito de cidadania romana: o casamento entre eles, privilégio
de que foram os únicos a gozar entre os hérnicos. Aos agnani-
nos e aos outros povos que haviam lutado contra os romanos, foi
concedido o direito de cidadania, mas sem o de sufrágio, e tam-
bém o direito de reunir-se em assembléia e contrair matrimônio
entre si. Seus magistrados porém foram proibidos de exercer
outras funções além das cerimônias do culto.
No mesmo ano foram lançadas as fundações do templo da
Saúde pelo censor Caio Júnio Bubulco, que o havia prometido
quando cônsul durante a guerra contra os samnitas. O mesmo
magistrado, juntamente com seu colega Marco Valéria Máximo,
mandou construir estradas por todo o território romano a ex-
pensas do tesouro. Ainda no mesmo ano foi renovado, pela ter-
ceira vez, o tratado com os cartagineses, e os legados vindos
a Roma com esse propósito receberam generosos presentes.
Massacre dos samnitas. 44 . Nesse ano houve um dita-
Tomada de Boviano. dor, Públio Cornélio Cipião, que
teve como comandante da cavala-
ria Públio Décio Mure. Ambos foram nomeados para presidir as
eleições consulares, visto que nenhum dos dois cônsules pôde
afastar-se do campo de batalha. Os cônsules eleitos foram Lúcio
Postúmio e Tibério Minúcia. Pisão 14 refere-se a esses cônsules
como sucessores de Quinto Fábio e Públio Décio, suprimindo
desse modo dois anos de consulado: o de Cláudio e Volúmnio
e o de Cornélio e Márcio de que já falamos . Não sabemos se ele
os esqueceu ao redigir seus anais, ou se teria propositalmente
omitido esses dois consulados por duvidar de sua existência.
14 . O analista Lúcio Calpúrnio Písão Frugi. cônsul no ano 133 a . C.
272
HISTóRIA DE ROMA
No mesmo ano os samnitas fizeram incursões nas planícies
de Esteta, em território campânio. Por esse motivo os cônsules
foram enviados para o Sâmnio, tomando direções opostas. Postú-
mio para Tiferno e Minúcia para Boviano. O primeiro combate
ocorreu em Tiferno, sob o comando de Postúmio. Alguns histo-
riadores afirmam que, sem dúvida, os samnitas foram vencidos e
os romanos capturaram cerca de vinte mil homens. Outros afir-
mam que os dois exércitos se separaram sem que Marte se incli-
nasse para nenhum dos adversários. Simulando temor, Postúmio
teria marchado durante a noite e feito suas tropas galgarem a
montanha. O inimigo tê-lo-ia perseguido, estabelecendo-se em
local fortificado, a duas milhas de seu acampamento.
Para dar a impressão de que procurava apenas um acam-
pamento seguro e bem-abastecido (como de fato estava) , o côn-
sul fortificou-o com trincheiras e muniu-o de todas as coisas
úteis. Mas, na terceira vigília, deixando uma forte guarnição no
acampamento, conduziu as legiões, sem bagagens, pelo caminho
mais curto, até onde se encontrava seu colega , que estabelecera
acampamento diante de outros inimigos.
Instigado por Postúmio , Minúcia travou combate com os
samnitas. Durante grande parte do dia , a luta prosseguia sem que
se chegasse a um resultado decisivo quando Postúmio, com suas
legiões descansadas , caiu de improviso sobre as fatigadas tropas
do exército inimigo. Foram todas massacradas, pois a exaustão
e os ferimentos impediam a fuga dos soldados. Vinte e uma
insígnias foram capturadas. Em seguida marcharam para o acam-
pamento de Postúmio, onde os dois exércitos vitoriosos, enfren-
tando um inimigo já abalado pelos rumores que corriam, desba-
rataram-no e puseram-no em debandada. Foram capturados vinte
e seis insígnias militares, o general dos samnitas, Estácio Gélio.
inúmeros outros soldados e dois acampamentos. No dia seguinte
os romanos partiram para atacar a cidade de Boviano, que foi
também tomada em curto espaço de tempo.
A glória de tão grandes feitos foi coroada com o triunfo dos
cônsules. O cônsul Minúcia foi transportado gravemente ferido
ao seu acampamento onde, segundo alguns autores, veio a fale-
cer. Marco Fúlvio, nomeado cônsul em seu lugar e tendo assu-
273
 TITO LfVIO
mido o comando do exército de Minúcia, foi quem tomou
Boviano.
No mesmo ano foram retomadas aos samnitas as cidades de
Sora, Arpino e Cesênia. Uma grande estátua de Hércules foi
colocada no Capitólio e consagrada.
Aliança de paz com 45 . No consulado de Públio Sulpí-
os samnitas. cio Savério e de Públio Semprônio
Derrota dos équos. Sofo, os samnitas enviaram embai-
xadores a Roma para negociar a paz,
com a intenção de terminar a guerra ou de adiá-la. Apesar
do tom de súplica que adotaram, receberam a resposta de que,
se os samnitas não houvessem tantas vezes pedido paz quando já
se preparavam para a guerra, poderiam chegar a um acordo
depois de discutir as condições impostas pelas duas partes. En-
tretanto , como até aquele momento suas promessas haviam sido
vãs, os romanos teriam de ater-se aos fatos. Em breve o cônsul
Públio Semprônio partiria para o Sâmnio com seu exército e não
haveria de enganar-se quanto à disposição dos ânimos em rela-
ção à paz ou à guerra. Relataria ao Senado tudo o que obser-
vasse e, ao retornar do Sâmnio, os embaixadores poderiam acom-
panhá-lo.
Nesse ano, ao atravessar o Sâmnio, o exérci.to romano en-
controu em toda parte disposições pacíficas e grande empenho
da população em fornecer-lhe víveres. Por esse motivo, foi reno-
vado o antigo tratado com os samnitas.
Em seguida os romanos aprestaram armas contra os équos,
seus velhos inimigos, que durante anos haviam permanecido
tranqüilos , sob as aparências de uma paz enganosa. Enquanto os
hérnicos mantiveram sua independência, os équos, juntamente
com eles, não haviam cessado de enviar auxílio aos samnitas, mas
após a sujeição daqueles , quase toda a nação dos équos, sem
esconder a deliberação tomada publicamente, havia-se aliado aos
inimigos de Roma .
Concluído o tratado entre romanos e samnitas, quando os
feciais foram pedir satisfação aos équos, eles responderam que
tudo não passava de uma cilada para obrigá-los. pela ameaça
274
HISTORIA DE ROMA
de guerra, a tornarem-se romanos; que os hérnicos ao optarem
por suas leis, e não pelo direito de cidadania romana, quando se
lhes oferecera ocasião de escolha, haviam demonstrado quão ape-
tecível era aquele título. Os que não tinham podido escolher de
acordo com sua vontade. consideravam um castigo aquela cida-
dania forçada.
Por essas palavras ofensivas, declaradas publicamente nas
assembléias, o povo romano votou pela declaração de guerra aos
équos, e os dois cônsules partiram para essa nova campanha,
estabelecendo-se a quatro milhas do acampamento inimigo.
O exército dos équos, que há muitos anos não tomava a
iniciativa de uma guerra, estava agitado e parecia ter sido recru-
tado às pressas, sem chefes e sem disciplina. Uns achavam que
deveriam partir para a luta, outros, que deveriam defender o
acampamento. A maioria preocupava-se com as terras que iriam
ser devastadas, com a queda de suas cidades, onde haviam dei-
xado apenas pequenas guarnições. Entre inúmeras propostas
ouviu-se uma que, desprezando o bem comum, levava cada um
a defender seus interesses particulares. Consistia em fazer sair
os soldados do acampamento na primeira vigília, em várias dire-
ções, a fim de transportarem seus bens para as cidades e prote-
gê-los atrás de suas muralhas. Todos aprovaram essa proposta
com grandes aplausos.
Enquanto os équos se dispersavam pelos campos, ao ama-
nhecer os romanos organizaram suas fileiras e puseram-se em
marcha. Como ninguém lhes viesse ao encontro, diri~iram-se
rapidamente para o acampamento inimigo, e ao ver que não
havia sentinelas diante das portas nem soldado algum na trin-
cheira, que não se ouviam os ruídos normais de um acampa-
mento, detiveram-se preocupados com aquele silêncio insólito,
receando uma emboscada. Mas depois de atravessarem a tri'l-
cheira e encontrarem-na deserta , puseram-se a procurar as pe-
gadas do inimigo.
Como as pegadas estivessem voltadas para todas as direções
- o que era natural. uma vez que o inimigo se havia dispersado
- os romanos no início ficaram confusos. Logo porém foram
275
 TITO UVIO
informados por seus batedores sobre o expediente usado pelo
inimigo. Levando sucessivamente a guerra de uma cidade a
outra, em menos de cinqüenta dias os romanos capturaram
trinta e uma fortalezas, arrasando e incendiando a maior parte
delas, de tal modo que a raça dos équos foi praticamente ex-
terminada.
Celebrou-se o triunfo sobre os équos, e sua derrota serviu
de exemplo aos marrucinos, marsos, pelígnios e fretanos , que
enviaram embaixadores a Roma para pedir paz e amizade. Foi
concedida a esses povos a aliança que solicitavam.
Edilidade curul de 46 . No mesmo ano.
Cneu Flávio, filho de liberto. o escriva Cneu Flá-
Criação das quatro tribos urbanas. vio, filho de um liber-
to sem fortuna , mas
homem astuto e eloqüente, tornou-se edil curul. Segundo alguns
anais, Flávio, que servia de secretário aos edis, ao ver que seu
nome fora sufragado por todas as tribos para o cargo de edil, mas
recusado por causa de seu offcio de escriba, abandonou as tá-
buas e jurou que nunca mais voltaria a escrever. Macer Licínio
afirma que ele havia renunciado à profissão algum tempo antes.
baseando-se no fato de que Flávio já havia ocupado o tribunato
e dois triunviratos: o noturno e o das colônias. Em todo o caso,
não se discute a altivez com que lutou contra os nobres que o
desprezavam por sua origem humilde. Divulgou o direito civil,
que era guardado nos santuários dos pontífices, e mandou afixar
cartazes no Fórum com a enumeração dos fastos, a fim de que
todos pudessem saber os dias em que era permitido promover
ações judiciais. Consagrou o templo da Concórdia na praça de
Vulcano, o que provocou grande indignação por parte dos no-
bres. De comum acordo , o povo obrigou o sumo pontífice Cor-
nélio Barbato a ditar-lhe as fórmulas sagradas, embora este afir-
masse que, segundo o costume dos antepassados, somente um
cônsul ou um general podia consagrar um templo. Por esse mo-
tivo. o Senado fez o povo votar uma lei que proibia a quem
quer que fosse consagrar um templo ou altar sem permissão do
Senado ou da maioria dos tribunos da plebe.
276
HISTORIA DE ROMA
Gostaria de mencionar um fato que nada teve de memorá-
vel a não ser como um testemunho da independência da plebe
diante do orgulho dos nobres. Flávio foi visitar um colega enfer-
mo, e certos jovens da nobreza que lá se achavam combinaram
não se levantar à sua chegada. Ele então mandou trazer sua ca-
deira curul e daquele símbolo de sua dignidade contemplou seus
inimigos humilhados e confusos. Aliás, Flávio havia sido nomea-
do edil pela facção popular do Fórum, a quem a censura de
Ápio havia dado força. Fora ele o primeiro a desprezar o ~e­
nado, escolhendo filhos de libertos para senadores. Como ntn-
guém levass~ em co~ta essas nomea~es e Áfi.o se vis~e priva~o
da influêncsa que JUlgara consegusr na Cursa, ele mtroduzsu
elementos das mais baixas camadas da plebe em todas as tribos
e assim corrompeu o Fórum e o Campo de Marte. Os comícios
que elegeram Flávio tiveram um caráter tão indigno que a maior
parte dos nobres retiraram seus anéis de ouro e seus colares. A
partir desse momento o Estado ficou dividido em dois partidos~
o representado pelo povo não-corrompido, partidário de homens
honestos aos quais venerava, e o da facção do Fórum.
Essa situação permaneceu até que Quinto Fábio e Públio
Décio foram nomeados censores. Por amor à concórdia e tam-
bém para não deixar as eleições em mãos da ralé, Fábio separou
toda a turba forense e distribuiu-a em quatro tribos a que cha-
mou urbanas. Diz-se que essa decisão foi recebida com tanto
agrado que o cognome de Máximo, que Fábio não conseguira
em suas numerosas vitórias, foi-lhe dado pelo restabelecimento
da harmonia entre as classes. Diz-se também que o mesmo ho-
mem instituiu a festa eqüestre nos idos de julho.
277
 HISTóRIA DE ROMA

essa multidão atrapalhasse as eleições e reuniões do Campo

R E S UM O
DO LIVRO IX DA HISTóRIA DE ROMA
DESDE SUA FUNDAÇÃO, DE TITO LfVIO
de Marte, onde se impunha pelo número, o cenhor Quinto Fábio
ordenou-a em quatro tribos a que chamou tribos urbanas, o
que lhe valeu o cognome de Máximo.
No livro, fala-se em Alexandre, que viveu por essa época.
Após uma estimativa das forças do povo romano, conclui-se
que, se Alexandre passasse à Itália. não obteria a vitória que
tão facilmente alcançou sobre os povos do oriente, desde então
submetidos a seu império.

Os cônsules Tito Vetúrio e Espúrio Postúmio conduzem

seu exército, na região das Forcas Caudinas, a um desfiladeiro
de onde não conseguem escapar. Entram em entendimentos com
os samnitas e dão como reféns seiscentos cavaleiros romanos,
mas só podem retirar suas tropas depois de passar sob o jugo.
Esses mesmos homens - por proposta de Espúrio Postúmio,
que aconselhara ao Senado entregar os responsáveis por um
tratado tão adverso e libertar assim o Estado de sua palavra
- são entregues com dois tribunos da plebe e todas as garantias
do tratado aos samnitas, que se recusam a recebê-los. Pouco
depois, os samnitas são batidos por Papfrio Cursor e passados
sob o jugo; os seiscentos cavaleiros romanos entregues como
reféns são retomados e a vergonha da primeira humilhação é
lavada. Duas tribos são acrescentadas às antigas: a Ofentina
e a Falerna. Instalam-se as colônias de Suessa e Pôncias. O
censor Ápio Cláudio traz a Roma as águas da fonte Cláudia
e constrói a estrada pavimentada chamada via Ápia; inscreve
no número dos senadores alguns filhos de libertos, mas como
a ordem senatorial parecesse desonrada por esses membros
indignos, os cônsules do ano seguinte conservam o Senado tal
qual era antes dos últimos censores.
O livro contém ainda as vitórias sobre os ápulos, os
etruscos, os umbros, os marsos, os pelignos, os équos e os
samnitas, com quem o velho tratado foi restaurado.
O escriba Cneu Flávio, filho de liberto, é nomeado edil
curul graças à pressão do populacho faccioso do Fórum . Como
279
278
 LIVRO X

Expedição contra 1 . No consulado de Lúcio Genúcio e

salteadores na de Sérvio Cornélio houve relativa tran-
ú mbria . qüilidade, no que se refere a guerras
externas. Estabeleceram-se colônias em
Sora e em Alba 1 • Para Alba, em território dos équos, foram
enviados seis mil colonos. Sora fizera parte do território volsco,
mas os samnitas a tinham possuído; para lá enviaram-se quatro
mil pessoas. No mesmo ano, deu-se direito de cidadania aos
arpinates e aos trebulanos 2 . Os frusinates 3 foram condenados
a perder a terça parte de seu território, porque se constatou que
tinham instigado os hérnicos a revoltar-se; e os chefes da conju-
ração, após inquérito feito pelos cônsules em virtude de um
senadoconsulto, foram vergastados e decapitados.
Contudo, para que o ano não se passasse sem nenhuma
guerra, foi realizada pequena expedição à úmbria, de onde se
informava que homens armados, partindo de determinada caver-
na, vinham pilhar os campos. Penetrou-se na caverna com as
insígnias e nesse lugar escuro os soldados receberam muitos
ferimentos , causados principalmente por pedradas, até que, ten-
do sido encontrada a outra sa ída da gruta {era aberta nas duas
extremidades), amontoaram-se em ambas as aberturas montes
de madeira a que se pôs fogo . Assim, no interior da caverna.

I . Soro , fu ndada dez anos antes, guarda a saída do vale do Líris

que permite ir do planalto dos ma rsos à planície volsca. Alba - Alba
Fucéncia - , perto do lago Fúcino, está na entrada de um vale que leva
a Tibur (Tívoli) e a Roma.
2 . Arpino está ao none da Apúlia. Havia várias Trébula, urna das
quais na Campâ nia. na fron teira samnila.
i Frusine é uma cidade hérnica.

281
 TITO I IV IO
a fumaça e os gases causaram a morte de cerca de dois mil
homens . os quais. procurando fugir, acabaram se lançando nas
chamas.
Sob o consulado de Marco Lívio Dênter e de Marco Emílio,
recomeçou a guerra contra os équos. Tolerando com dificuldades
uma colônia implantada como cidadela em seu território, tentam
com o maior vigor tomá-la de assalto, mas são repelidos pelos
próprios colonos. Seu ataque, porém, causou em Roma tão gran-
de terror - porque era difícil acreditar que em situação de
tanta inferioridade os équos se insurgissem espontaneamente -
que em face do temido levante foi nomeado um ditador, Caio
fúlio Bubulco. O novo magistrado partiu com Marco Ticínio.
comandante da cavalaria, e no primeiro encontro derrotou os
équos. Sete dias depois, voltou em triunfo a Roma ; e o templo
da deusa Saúde 4 , que tinha prometido como cônsul e adjudi-
cado aos empreiteiros como censor, foi por ele consagrado como
ditador.
A esquadra grega do espartano 2 . No mesmo ano, uma
Cleõnimo invade a Itália. esquadra grega, comanda-
da pelo Jacedemônio Cleô-
nimo, tendo atracado na Itá lia, tomou a cidade de Túria, no
território dos salentinos 5 • Enviado contra o inimigo, o cônsul
Emílio não precisou mais que de uma batalha para pô-lo em
fuga para seus navios. Túria foi devolvida a seus antigos habi-
tantes e a paz voltou ao território salentino. Pelo que vejo em
alguns anais, foi o ditador Júnio Bubulco o enviado ao território
dos salentinos, e C leônimo, antes de ser obrigado a lutar com
os romanos, deixou a Itália.
4 . Abstração personaficada, como muitas outras divindades roma·
nas. Seu templo, no Quirinal, era considerado como datando da época
dos reis: deve tratar-se de uma reconstrução.
5. T úria ou Tu ri i. perto da antiga Síbaris, fica na Lucãnia e não
no território dos salentinos. Cleõnimo deve ter sido chamado por Tarento,
sempre ameaçada pelos lucanos.
282
Hl STO RlA DE ROMA
Contornando o promontório de Brindes e levado pelos ven-
tos para o meio do Adriático, como receasse, à esquerda, o
litoral desguarnecido de portos da Itália, à direita os ilírios,
os libúrnios e os ístrios, povos selvagens e mal-afamados em
grande parte por causa da prática da pirataria, penetrou pelo
golfo e chegou à costa vêneta. Desembarcou alguns homens para
fazer o reconhecimento do local , soube então que o litoral à
sua frente era apenas uma língua de terra e que, atravessando-a ,
encontraria lagunas formadas pelas marés; mais distante, divi-
savam-se campos abertos e além apareciam colinas, onde se
encontrava a foz de um rio bastante profundo - o Meduaco - ,
pela qual os esculcas tinham avistado navios sendo conduzidos
para um ancoradouro seguro. Cleônimo ordenou que para aquele
local se fizesse entrar a frota e se remontasse o rio. Mas os
navios mais pesados não encontraram ali profundidade sufi-
ciente. Passando para embarcações mais leves, grande quantidade
de soldados chegaram a territórios povoados. Três aldeias marí-
timas de paduanos ocupavam aquele litoral. Os gregos desem-
barcaram, deixando alguns homens para vigiar os barcos. toma-
ram as aldeias de assalto, queimaram as casas, levaram consigo
os homens e os rebanhos como butim e, na alegria do saque,
distanciaram-se demais de seus navios .
Chegando essa notícia a Pádua, onde a vizinhança dos
gauleses mantinha os habitantes sempre em armas, os jovens
guerreiros são divididos em dois corpos. Dirigiu-se um para a
região saqueada pelos inimigos dispersos na pilhagem; o outro,
evitando os predadores, tomou a rota do ancoradouro onde se
achavam as embarcações gregas , que ficava a catorze milhas da
cidade. O s barcos foram atacados, alguns guardas mortos, e os
marinheiros aterrorizados obrigados a navegar para a outra mar-
gem do rio.
Com igual êxito haviam os paduanos combatido em terra
contra os inimigos. Dispersos pelos campos, quando quiseram
regressar às suas naves, encontraram os vênetos barrando-lhes
a passagem. Os gregos são cercados e dizimados. Por prisioneiros
os vencedores souberam que a esquadra e o rei Cleônimo estavam
a três milhas de dis tânc ia . Então. deixando os prisioneiros sob
283
 TITO UVJO
guarda na aldeia mais próxima, os paduanos, uns em embar-
cações fluviais, bem-feitas, de fundo chato, próprias para águas
rasas, outros em naves tomadas aos gregos, todas cheias de ho-
mens armados, dirigem-se para a frota grega. Atacam de todos
os lados os navios imóveis, que temem aquelas paragens desco-
nhecidas mais que ao inimigo. Quando se apressam a fugir
para o mar, em vez de repelir o ataque, os perseguem até a
embocadura do rio, tomam e queimam alguns navios que, na
pressa, se lançam em baixios, e regressam vencedores.
Salvando apenas um quinto de seus navios e não tendo
abordado com êxito em nenhum ponto do mar Adriático, Cleô-
nimo se afastou. Os esporões dos navios e os despojos dos
lacônios foram pregados no velho templo de Juno; ainda existe
muita gente que os viu em Pádua. A lembrança desse combate
naval é celebrada, todo ano, em solene naumaquia que acontece
no centro da cidade.
Campanha contra os 3 . No mesmo ano, firmou-se em
équos e etruscos. Roma um pacto de aliança com os
vestinos 6, que pediam amizade. De-
pois espalharam-se notícias alarmantes. Segundo diziam, a Etrú-
ria estava em revolta devido às discórdias dos aretinos, que
tomaram armas contra a poderosíssima família dos Cílnios por
inveja de suas riquezas. Ao mesmo tempo os marsos defendiam
pela força seu território, no qual fora fundada a colônia de
Carséolos, com quatro mil homens 7 •
Por causa dessas sublevações nomeou-se ditador Marco
e
Valéria Paulo. o que prefiro acreditar e não que Quinto Fábio,
com sua idade e renome, tivesse sido posto sob as ordens de
6 . Os vesti nos ocupam a margem esquerda do A terno até o Adriá-
ti co.
1. Carséolos fica no vale que, de Alba Fucência, leva a Tíbur e a
Roma. Por uma contradição freqüente quando se trata de fundação de
colônias e que decorre sem dúvida do fato de que algumas delas não
conseguiram ser bem-sucedidas imediatamente, Tito Uvio anunciará de
novo sua criação quatro anos depois (cf. X, 13).
284
H JSTORIA DE ROMA
Valéria. Evitarei negar que o apelido de Máximo tenha sido a
causa do erro.
Partindo com um exército, o ditador dispersou os marsos
em um só combate. Em seguida, tendo-os repelido para as praças
fortes, tomou em poucos dias Miliônia, Plestina s e Fresília.
Depois de tirar aos marsos, para puni-los parte de seu território.
renovou com eles o pacto de aliança.
As atenções voltaram-se para a guerra contra os etruscos.
E como o ditador, a fim de consultar os auspícios 9 , tivesse se
dirigido a Roma, o comandante da cavalaria, que saíra para
forragear, foi emboscado pelo inimigo e perdeu vários estan-
dartes. Vergonhosamente desbaratado, fugiu com seus soldados
para o acampamento. Essa derrota não pode ser atribuída a
Fábio, não somente por causa de seus talentos militares, que lhe
valeram seu glorioso epíteto, mas também porque ele, lembran-
do-se da crueldade de Papírio, jamais se teria deixado levar a
combater sem ordem do ditador to.
Ardil dos etruscos. 4 . Essa derrota, anunciada em Roma,
provocou um temor desproporcional
ao acontecimento. Como se o exército já estivesse destruído,
suspendeu-se toda a atividade judiciária 1 1 , puseram-se guardas
nas portas, patrulhas noturnas pelas ruas, acumularam-se arma-
duras e lanças nas muralhas. Tendo feito todos os mobilizáveis
prestar juramento, o ditador, enviado ao exército, ali encontrou
tudo mais tranqüilo do que esperava e a ordem restaurada pelas
medidas do comandante da cavalaria: o acampamento, transfe-
rido para uma posição mais segura, as coortes que haviam per-
dido suas insígnias deixadas fora das paliçadas, sem barracas t!!,
8 . Miliônia fica entre Carséolos e Alba ; Plestina, na fronteira do
Piceno.
9 . Entre os romanos, presságio que se tirava em geral do vôo, do
canto dos pássaros ou do modo como comiam.
10 . Cf. VIII , 30-35.
11. Cf. VI, 2.
12. Como punição de sua covardia. O mesmo castigo foi im-
posto aos soldados romanos de Cláudio Marcelo no ano 209 a.C. (cf.
XXVII, 13).
285
 TITO UVIO
e os soldados ávidos de combater para mais depressa apagar a
vergonha da derrota. Por isso, prontamente fez suas tropas avan-
çarem para o território russelano 13 •
Os inimigos o seguem e, nutrindo embora, depois da vitória.
total confiança nas próprias forças, mesmo para um combate
em campo aberto, quiseram recorrer à cilada. que já haviam
experimentado com sucesso.
Não longe do acampamento romano havia casas semides-
truídas de uma aldeia incendiada durante a devastação das
terras. Soldados ali escondidos conduziam rebanhos, sob a vigi-
lância de um destacamento avançado. comandado pelo legado
Cneu Fúlvio. Como a isca não fizesse ninguém abandonar os
postos romanos, um dos pastores, que avançara até perto das
paliçadas, perguntou em altos gritos a outros, que hesitavam em
trocar seus rebanhos para além das ruínas, por que se demoram .
quando poderiam fazê-los atravesar sem perigo o acampamento
romano.
Alguns cerites 14 traduziram essas palavras ao legado e.
em todos os manípulos, foi grande a indignação dos soldados .
embora estes, sem ordens, não ousassem mover-se. Pediu àqueles
que conheciam bem a língua dos inimigos para observarem se
o modo de falar dos pastores lembrava mais o dos camponeses
ou o das pessoas da cidade. Eles responderam que a pronúncia.
o aspecto físico e a brancura da pele eram mais cuidados que
os dos pastores. " Vamos - disse o legado-, dizei aos inimigos
q ue revelem logo sua emboscada, armada em vão: os romanos
estão a par de tudo e não podem mais , de agora em diante. ser
surpreendidos pela astúcia nem vencidos pelas armas" .
Essas palavras foram ouvidas e transmitidas aos soldados
emboscados. De repe nte , o inimigo surgiu e m multidão de seu
esconderijo e, numa planície aberta, fez avançar seus estandartes.
O legado achou as tropas adversárias numerosas demais para
13 . Na Etrúria ocidental, onde se encontrava a cidade de Russelas
(Grosseto) .
14 . Antigos habitantes de Ccre, cidade etrusco (Cerveteri) .
286
HISTORIA DE ROMA
que seu destacamento pudesse resistir. Mandou à pressa pedir
socorro ao ditador, resistindo sozinho ao ataque enquanto o
aguardava.
Marco Valério vence 5 . Ao receber a mensagem, o
os etruscos e concilia ditador ordenou que os estan-
as dissenções de Arrécio. dartes avançassem e os soldados
os seguissem, armados. Mas os
legionários praticamente se adiantaram às suas ordens. Imedia-
tamente pegaram os estandartes e as armas e foi com dificuldade
que se impediu tom assem o passo de carga. A cólera provocada
pela derrota recente os incitava e ainda mais os gritos crescentes
vindos do combate que se desenrolava. Empurravam-se uns aos
outros e exortavam os da frente a irem mais depressa. Mas
quanto mais o d itador os via apressar-se, mais se esforçava para
reter a coluna e fazê-la marchar lentamente.
Os etruscos, ao contrário, chamados à luta desde o início,
participavam dela com todas as suas forças. Mensageiro após
mensageiro comunicava ao ditador que todas as tropas etruscas
estavam engajadas no combate e os romanos não podiam mais
resistir. O próprio ditador, de uma elevação, pe rcebeu a situação
crítica de seu destacamen to . Mas, convic to de que o legado
ainda podia sustentar a luta e não estando tão longe que não
pudesse socorrê-lo se necessário, esperou que o inimigo se can-
sasse o mais possível para atacar, com tropas descansadas, sol-
dados exaustos.
Entretanto, embora suas forças avançassem lentamente, o
espaço já não bastava, especialmente à cavalaria, para um ataque
impetuoso. Iam na primeira linha as insígnias das legiões, para
que o inimigo não temesse nenhuma manobra oculta ou inespe-
rada ; mas entre as filas de infantes deixavam-se intervalos sufi-
cientes para a passagem da cavalaria. Ao mesmo tempo que a
infantaria soltava seu brado de guerra, a cavalaria, lançada a
galope sem obstáculos, carregava sobre o inimigo. Os etruscos,
sem condições de resistir ao ataque d os cavaleiros, são tomados
de pânico súbito. O socorro quase não chegou a tempo ao desta-
camento romano já praticamente cercado, mas pelo menos lhe
287
 TITO LfVIO
deu tranqüilidade completa. As tropas descansadas se encarre-
garam do combate, que não foi longo nem indeciso.
Derrotados, os etruscos voltam ao acampamento. Os roma-
nos, que já faziam avançar sobre eles seus estandartes, retro-
cedem e se concentram na outra extremidade do campo. A
estreiteza das portas detém ali os fugitivos. Muitos escalam o
talude e a paliçada para ver se, daquele lugar mais alto, poderão
defender-se ou atravessar o entrincheiramento em algum ponto
e escapar. Aconteceu que em determinado local o talude, mal-
consolidado, desmoronou ao peso dos homens, tombando no
fosso. Os etruscos bradam que são os deuses que lhes abrem
o caminho da fuga e, na maioria sem armas, escapam pela pas-
sagem.
Na batalha foram vencidas, pela segunda vez, as forças
dos etruscos, os quais, depois de concordar em pagar o soldo
do exército por um ano e fornecer trigo por dois meses, rece-
beram do ditador permissão de enviar embaixadores a Roma
para tratar a paz. A paz foi negada, concedendo-se apenas uma
trégua de dois anos. O ditador entrou em Roma com as honras
do triunfo. Pelo testemunho de alguns escri tores, a Etrúria teria
sido pacificada pelo ditador sem nenhuma batalha memorável,
cabendo-lhe apenas acalmar as discórdias dos aretinos e recon-
ciliar com a plebe a família dos Cílnios. Marco Valério, depois
da ditadura , foi eleito cônsul. Alguns disseram que fora nomeado
sem ter apresentado sua candidatura, mais precisamente sem
estar presente, e que presidiu aqueles comícios um inter-rei.
Sobre um único ponto estão todos de acordo: exerceu o consu-
lado com Apuleio Pensa.
Os tribunos Quinto e Cneu Ogúlnio 6. Durante o con-
propõem uma lei permitindo aos sulado de Marco Va-
plebeus o acesso aos sacerdócios. léria e Quinto Apu-
leio, a situação no
exterior esteve bastante tranqüila. O insucesso na guerra e a
trégua concluída mantinham os etruscos calmos. Os samnitas,
subjugados por anos de derrotas , não pensavam ainda em romper
288
HISTóRIA DE OOMA
o recente tratado. Em Roma, a plebe estava sossegada, como
que diminuída pelas multidões enviadas às colônias.
Entretanto, para que a tranqüilidade não reinasse em todos
os pontos, foi lançada a discórdia entre os principais cidadãos,
patrícios e plebeus, pelos tribunos da plebe Quinto e Cneu
Ogúlnio. Tendo procurado sempre ocasiões para acusar patrícios
diante da plebe, depois de tentar tudo em vão iniciaram um
movimento para inflamar não o baixo povo, mas os próprios
chefes da plebe, os consulares e os triunfadores plebeus, aos
quais não faltavam todas as honrarias, exceto os sacerdócios,
ainda não acessíveis a todos.
Anunciaram então um projeto de lei decidindo - a in-
tenção era aumentar o número de sacerdotes, na época de quatro
áugures e quatro pontífices - acrescentar-lhes quatro pontífices
e cinco áugures 16, todos plebeus. Como o colégio dos áugures
pôde ter sido reduzido a quatro, senão pela morte de dois de
seus membros, não posso compreender, pois é fato estabelecido
para os áugures que seu número deve ser ímpar 18 , a fim de
que as três tribos antigas, os ramnenses , os ticienses e os lucários
tenham cada uma seu áugure. Sendo preciso mais, devem multi-
plicar igualmente entre si o número de sacerdotes, como acon-
teceu quando, acrescentando ci nco aos quatro antigos, atingiu-se
o número de nove, ou seja, três por tribo.
Mas, porque se queria elegê-los dentre a plebe, os patrícios
mal suportaram a proposta, como quando viram o consulado
tornar-se acessível a todos. Davam a entender que o fato referia-
se mais aos deuses do que a eles. Os deuses teriam pensado -
diziam - em não permitir que seus rituais sacros fossem profa-
nados; quanto a eles, desejavam apenas evitar dano ao Estado.
Porém, não foi muito obstinada a resistência, habituados como
estavam a ser vencidos em tal gênero de luta. E viam nos adver-
15 . O áugure não é um sacerdote. Qualquer um pode interpretar
os sinais celestes. Mas há um colégio de áugures oficiais.
16 . Tito Lívio se exprime com pouca clareza: o número seis não é
um número ímpar. Ele quer dizer que o número dos áugures deve ser
um múltiplo de três.
289
 TITO Lf 10
sários não homens que aspiravam ao que outrora nem ousavam
esperar, a altas dignidades, mas pessoas que enfim tinham con-
seguido tudo aquilo por que lutaram com esperança incerta :
numerosos consulados, censuras e triunfos .
Discurso de Décio Mure. 7 . Ainda assim houve disputa
pró e contra a lei, principalmen-
te, dizem, da parte de Ápio Cláudio e Públio Décio Mure. De-
pois de terem expendido, sobre os direitos dos patrícios e da
plebe, mais ou menos os mesmos argumentos que os apresen-
tados antigamente a favor ou contra a lei Licínia (quando os
plebeus reclamavam o consulado) Décio lembrou, dizem, a ima-
gem de seu pai, tal como o haviam visto muitos dos presentes
na assembléia, com a toga cingida segundo o rito gabiano, de
pé sobre um dardo, na atitude em que se sacrificou pelo povo
e pelas legiões romanas 17• Então o cônsul Públio Décio parecera
piedoso e puro aos deuses imortais, tal como Tito Mânlio, seu
colega, pareceria se houvesse se sacrificado; e o mesmo Públio
Décio não teria podido ser ritualmente escolhido para cumprir
as cerimônias públicas do povo romano? Havia perigo de que
hoje os deuses ouvissem menos as preces de Públio Décio Mure
do que as de Ápio Cláudio? Executava este com menos religio-
sidade as cerimônias privadas do culto, adorava os deuses menos
piedosamente do que ele? Quem lamentava os votos proferidos
por tantos cônsules e ditadores plebeus ao ir ao encontro do
exército e durante a guerra? Que considerem os generais da-
queles anos em que plebeus começaram, sob sua direção e seus
auspícios, a conduzir os negócios. Que considerem também os
triunfos: os plebeus já não tinham motivo de achar insuficiente
sua nobreza. Se surgisse alguma guerra súbita, o Senado e o
povo romano, tinha certeza, colocariam sua esperança nos ge-
nerais plebeus, tanto quanto nos generais patrícios.
"Sendo as coisas assim - disse Décio - , a que deus ou
a que homens pode parecer indigno que essas pessoas, que
17 . Cf. Tito Uvio. VIII , 9.
290
HISTORIA DE ROMA
honrastes com cadeiras curuis e a toga pretexta, com a túnica
de palmas, a toga bordada e a coroa dos triunfadores - a coroa
de louros - com a qual distinguistes as casas pregando em sua
fachada os despojos dos inimigos 1 , acrescentem às suas hon-
rarias as insígnias dos pontífices e dos áugures? t motivo de
espanto que o homem, paramentado com as vestes de Júpiter,
o grande e generoso, carregado num carro dourado através da
cidade e subindo o Capitólio, segure a taça com asas e o cajado
curvo e, com a cabeça coberta, sacrifique a vítima, ou faça
augúrios, na cidadela? Não poderão os olhos das pessoas que
lerem, sem emoção, embaixo do retrato de um homem, a refe-
rência a um consulado, a uma censura, a um triunfo , suportar
que ali também se acrescente a indicação de um augurato ou
de um ponti ficado? Na verdade - permitam-me os deuses esta
linguagem! - já somos, graças aos favores do povo romano,
capazes, espero, de honrar esses sacerdócios, pela estima de que
desfrutamos, tanto quanto eles nos honrarão, e de pedir no
interesse dos deuses, mais do que no nosso , para render-lhes
em caráter público o culto que lhes rendemos em caráter pri-
vado.
Fim do discurso 8 . Mas por que falei até aqui como se
de Décio Mure. o direito dos patrícios, em relação aos
sacerdócios, fosse total, como se já não
estivéssemos de posse de um sacerdócio dos mais importantes?
Vemos plebeus entre os decênviros encarregados das cerimônias
sacras, intérpretes dos oráculos da Sibila e dos destinos de nosso
povo, servindo também ao culto de Apolo e outras cerimônias.
Não se fez então nenhuma injúria aos patrícios quando , aos
duúnviros incumbidos das cerimônias sagradas, se acrescentaram,
em favor dos plebeus, certo número de sacerdotes ; da mesma
forma , hoje, um tribuno enérgico e ativo acrescenta cinco lugares
de áugures, quatro de pontífices, destinados a plebeus, não,
18 . Certos despojos dos inimigos eram pregados na fachada da casa
do general triunfador ou dos combatentes cuja bravura queria recom-
pensar.
29 1
 TITO LIVIO
111
Apio, para expulsar-vos de vossos lugares , mas para que
plebeus vos ajudem nos assuntos dos deuses, como, para os
assuntos dos homens, vos ajudem cada um por seu lado.
Não te envergonhes, Ápio, de ter a teu lado no sacerdócio
um homem que na censura, no consulado, poderias ter por
colega, do qual poderias ser, se ele fosse ditador, o comandante
da cavalaria, como poderia ser teu comandante da cavalaria, se
fosses ditador. Um sabino, um estrangeiro, que foi o tronco de
tua nobre família, é admirado em seu meio por esses famosos
patrícios antigos: não consideres com desprezo nossa admissão
no sacerdócio. Trazemos conosco muitos títulos, ou melhor,
exatamente todos os títulos de que vos orgulhais: Lúcio Séxtio,
primeiro plebeu a ser nomeado cônsul; Caio Licínio Estolão,
primeiro comandante da cavalaria; Caio Márcio Rútilo, primeiro
ditador e censor; Quinto Públio Filo, primeiro pretor. Sempre
se ouviram de vós as mesmas afirmações: em vossas mãos estão
os auspícios; só vós tendes uma família originada de um ancestral
conhecido, só vós, no interior c no exército, tendes o direito ao
comando e os auspícios. Entretanto estes foram, até aqui,
igualmente propícios entre os plebeus e entre os patrícios, como
o serão no futuro. Nunca ouvistes dizer que o patriciado foi
criado um dia com homens não caídos do céu, mas capazes de
indicar um pai legitimamente casado, isto é, muito simplesmente,
com homens livres? Ora, é um cônsul que posso indicar como
meu pai legitimamente casado e que meu filho poderá indicar
como seu avô. No fundo, quirites 20 não fazeis outra coisa
senão começar sempre por nos recusar o que obtemos; é so-
mente a luta que os patrícios procuram, sem se preocupar com
seu desfecho. Para mim, esta lei (possa ela ser boa, protegida
pelos deuses e favorável a vós e ao Estado ) deve ser votada
como a propões".
19. Os cinco novos lugares de áugures estavam reservados a ple-
beus ; os quatro outros podiam ser disputados apenas por patrícios. Mas
como o colégio se recrutava por cooptação, os plebeus nele iam ter,
de fato, quase sempre. a maioria.
20 . Nome dos cidadãos que residinm em Roma, por oposição aos
que andavam nos exércitos.
292
l-llSTORIA DE ROMA
Votação da lei. Nova lei Valéria sobre 9 . O povo clama-
apelação ao povo. Campanha contra va para que se con-
os équos e na úmbria. Criação das vocasse as tribos
tribos Aniense e Terentina. imediatamente e es-
tava claro que a lei
seria aprovada; aquele dia, entretanto, foi perdido para a vo-
tação, por causa de um impedimento tribunício. No dia seguinte,
como o medo desviasse os tribunos de sua oposição, ela foi
aprovada por grande maioria. São nomeados pontífices o defen-
sor do projeto de lei, Públio Décio Mure e Públio Seprônio Safo,
Caio Márcio Rútilo e Marco Uvio Dênter; e cinco áugures
igualmente plebeus, Caio Genúcio, Públio Elio Peto, Marco
Minúcia Feso, Caio Márcio e Tito Publílio. Assim foi elevado
a oito o número dos pontífices e a nove o dos áugures.
No mesmo ano, o cônsul Marco Valéria apresentou, para
apreciação do povo, uma lei comportando sanções mais sérias
do que as precedentes. Era a terceira proposta desde a expulsão
dos reis e sempre feita pela mesma famflia. O motivo pelo qual
era renovada com freqüência foi unicamente, acredito, o poder
de alguns homens que predominava sobre a liberdade da plebe.
Parece, entretanto, que só a lei Pórcia teve como objetivo defen-
der os cidadãos contra as sevícias, porque ela pune com pesado
castigo todo aquele que agredir ou matar um cidadão romano;
a lei Valéria, embora proibindo que se vergastasse ou se subme-
tesse à decapitação o cidadão que apelasse para o povo, acres-
centava somente que aquele que a infringisse " agiria mal".
Tendo em vista o sentimento muito forte que então se tinha
da honra, isso se mostrou, acredito, o motivo principal para
fazer que fosse observada; hoje, seria difícil levar a sério seme-
lhante ameaça.
O mesmo cônsul fez uma guerra memorável contra os équos
revoltados, os quais, a não ser por sua feroz coragem, nada
tinham da antiga fortuna . O outro cônsul, Apuleio, sitiou a
cidade de Neqüino, na úmbria. O local era escarpado e até
mesmo, de um lado, a pique - do lado onde atualmente está
Nárnia - , e não podia ser tomado nem de assalto. nem por
 TITO UVIO
linhas de bloqueio. Assim essa operação inacabada passou para
os novos cônsules, Marco Fúlvio Peto e Tito Mânlio Torquato.
Como Quinto Fábio fosse eleito para aquele ano, sem ser
candidato, por todas as centúrias, pediu ele mesmo, no dizer de
Mácer Licínio e de Tubero, que seu consulado fosse adiado por
um ano, para quando não houvesse mais guerra: para o presente
ano, disse, serei mais útil ao Estado numa magistratura urbana.
Sem esconder, assim, suas preferências, mas também sem apre-
sentar sua cand idatura, foi nomeado ed il curul com Lúcio
Papfrio Cursor. Não dou o fato como certo, porque Pisão,
analista mais antigo, conta que, naquele ano, os edis curuis
foram Cneu Domfcio Calvino, filho de Cneu, e Espúrio Carvílio
Máximo, filho de Quinto. Foi o sobrenome Máximo, acredito,
que causou o engano quanto aos edis e daí resultou essa história,
mistura de eleições de edis e de cônsules, inventada para explicar
o erro.
Também nesse ano foi completado o lustro pelos censores
Públio Semprônio Sofo e Públio Sulpício Savérrio, e acrescen-
taram-se duas novas tribos, a Aniense e a Terentina. Eis o que
acon teceu em Roma.
Tomada de Neqüino. Os etruscos tentam 10. Mas enquan-
levar os gauleses a marchar com eles to em Neqüino
contra Roma. Tratado com os picentinos. um cerco pouco
rigoroso fazia os
romanos perderem tempo, dois dos habitantes, cujas casas eram
encostadas nas muralhas, cavaram uma passagem subterrânea e
chegaram aos postos romanos por esse caminho disfarçado. De
lá, levados ao cônsul, afirmaram que introduziriam um desta-
camento armado no interior da fortificação. Não era conve-
niente, pensou-se, nem desprezar a oferta nem confiar nela sem
precaução. Com um dos sitiados - lendo o outro ficado como
refém - enviaram-se dois exploradores por aquele túnel. Tendo
sido feito um bom reconhecimento, trezentos homens armados,
conduzidos pelo desertor, entraram na cidade e, de noite,
tomaram a porta mais próxima. Derrubaram-na e por ali o
cônsul e o exército romano invadiram a cidade sem combate.
294
HISTóRIA DE ROMA
Assim Neqüino caiu sob o domínio do povo romano . Uma
colônia foi enviada para lá a fim de resistir aos úmbrios, sendo
chamada, por causa do nome do rio, de Nárnia. O exército
regressou a Roma carregando considerável butim.
No mesmo ano, os etruscos, a despeito da trégua, prepa-
ravam a guerra; mas enquanto se ocupavam com semelhante
empreendimento, numeroso exército gaulês, penetrando em seu
território, desviou-os um pouco do projeto. Em seguida, con-
tando com seu dinheiro, que lhes dava grande poder, os etruscos
esforçaram-se para transformar os gauleses inimigos em aliados,
para fazer, com aquele exército de reforço, a guerra aos romanos.
Os bárbaros não recusaram a aliança. Ajustou-se o preço. Combi-
nado e pago este, como tudo estava preparado para a guerra,
os etruscos disseram aos gauleses que os seguissem, mas eles
declararam que por aquela soma não se comprometiam a fazer
a guerra aos romanos; tudo o que receberam foi para não devas-
tar o território etrusco, nem hostilizar com as armas seus campo-
neses. Entretanto, fariam a campanha se os etruscos insistissem,
mas à condição de ser admitidos à partilha do território e de
ter afinal uma residência permanente. Foram inúmeras, a es-
se respeito, as reuniões dos povos da Etrúria, mas não che-
garam a uma conclusão, menos pelo receio de diminui r o terri-
tório que pelo de ter como vizinhos homens de uma nação tão
selvagem. Assim despachados, os gauleses levaram grande quan-
tia de dinheiro, ganha sem trabalho nem perigo. Em Roma, foi
alarmante a notícia de uma invasão gaulesa juntando-se à guerra
contra os etruscos: com isso, houve menos hesitação em concluir
um tratado com o povo picentino.
Morte do cônsul Tito Mânlio; é 11 . A província da Etrú-
substituído por Marco Valério. ria coube por sorte ao
Os tucanos pedem socorro cônsul Tito Mânlio. Mal
contra os samnitas. tinha entrado em terri-
tório inimigo quando, ar-
remetendo no meio dos cavaleiros, ao fazer a montaria desviar
em pleno galope, foi jogado por terra e por pouco não morreu
instantaneamente: três dias depois da queda, faleceu . Tomando
295
 TITO LIVIO
o acidente como presságio para a guerra, os etruscos disseram
que os deuses tinham asumido a guerra em seu lugar, e sua
coragem aumentou.
Em Roma, o pesar pela morte do cônsul, sobretudo em
circunstâncias tão difíceis, tornou a notícia funesta. Os sena-
dores só não ordenaram a nomeação de um ditador porque a
eleição de um cônsul substituto correspondendo à escolha das
personagens importantes os impediu disso. Foi Marco Valéria
o escolhido para cônsul pelo sufrágio de todas as centúrias, o
mesmo homem que o Senado tinha pensado em nomear ditador.
Ordenou-lhe então que se reunisse imediatamente às legiões da
Etrúria. Sua chegada acalmou tanto os etruscos que ninguém
ousava sair de seus entrincheiramentos e todos ficaram amedron-
tados como se estivessem sob cerco. E o novo cônsul, devastando
suas terras, queimando suas casas, embora aqui e ali não somente
fazendas, mas aldeias povoadas ardessem em chamas, não con-
segue atraí-los ao combate.
Enquanto a guerra se arrastava além das previsões, o rumor
de uma segunda, justamente temida por causa das derrotas so-
frid~s ~lternadamente pelos dois adversários, levantou-se, por
denuncia dos novos aliados, os picentinos. Os samnitas diziam
estavam cogitando de armar-se para revoltas; e tinh'am sid~
procurados por eles. Agradeceu-se aos picentinos e os senadores
transferiram a maior parte de suas preocupações da Etrúria para
os samnitas.
A carestia do trigo inquietou também os cidadãos e ter-se-ia
chegado à penúria extrema, como escreveram os que pretendem
que Fábio Máximo foi edil naquele ano, se a atividade desse
h~mem, .igual à que com freqüência demonstrara na guerra,
nao se tivesse patenteado então, no interior, durante a distri-
buição dos víveres, a reunião e o transporte do trigo.
Na mesma ocasião aconteceu - sem que saibamos a razão
- um interregno. Os inter-reis foram Ápio Cláudio e depois
Públio Sulpício. Este presidiu as eleições consulares e proclamou
cônsules Lúcio Cornélio Cipião e Cneu Fúlvio.
No começo do ano, parlamentares lucanos vieram queixar-
se aos novos cônsules de que os samnitas, não conseguindo, com
296
HISTóRIA DE ROMA
suas propostas, levar a Lucânia a uma aliança militar com eles.
tinham entrado como inimigos em seu território, que ora saquea-
vam e, com isso, os forçavam à guerra. O povo lucano, diziam,
cometeu muitos erros no passado; mas decidiu ser mais aceitável
suportar tudo do que faltar, de ora em diante, ao nome romano.
Pede ao Senado que receba a Lucânia sob sua proteção e afaste
dela as violências e os ultrajes dos samnitas. Os tucanos, embora
atraindo sobre si uma guerra contra os samnitas e vendo-se na
necessidade de ser fiéis aos romanos, estão prontos. entretanto,
a entregar-lhes reféns .
Cipião devasta a Etrúria 12. A deliberação do Se-
e o território falisco. nado foi curta: todos por
Cneu Fúlvio vence os samnitas. unanimidade são de pa-
recer que se faça aliança
com a Lucânia e se dirija uma reclamação aos samnitas. Res-
ponde-se favoravelmente aos lucanos e conclui-se um tratado
com eles; enviam-se os feciais 21 para intimar os samnitas a
deixar o território dos aliados de Roma e a retirar seu exército
das fronteiras da Lucânia. Encontram-se com enviados samnitas
incumbidos de comunicar-lhes que, se se apresentarem em uma
assembléia pública do Sâmnio, não sairão dali ilesos.
Diante dessa notícia, em Roma, foi votada pelo Senado e
ordenada pelo povo a guerra contra os samnitas. Os cônsules
distribuem entre si as províncias. A Etrúria coube a Cipião,
o Sâmnio a Fúlvio; e cada um deles partiu, em sentido oposto,
para a guerra de que estava encarregado. Cipião, que esperava
uma guerra lentamente conduzida e semelhante à campanha do
ano precedente, viu, em Volterra, os inimigos acorrerem contra
ele em coluna pronta para o combate. Lutou-se durante a maior
parte do dia, com fortes perdas de um lado e do outro; a noite
separou os adversários sem que se saiba a quem coube a vitória.
O dia seguinte mostrou o vencedor e o vencido: os etruscos, no
21 . Sacerdotes encarregados, em nome do povo romano, de fazer
declarações de guerra , concluir tratados de paz ou alianças, exigir repa-
rações. etc.
297
 TITO LfVIO
si lêncio da noite, haviam abandonado o campo. Os romanos ,
f~rmados para a batalha , quando viram que os inimigos, par-
tmdo, lhes cederam a vitória , apoderaram-se de seu acampa-
mento vazio de soldados, mas contendo enorme butim - era
um acampamento estável, abandonado precipitadamente. De lá
as tropas foram levadas para território falisco e, deixando os
comboios em Falérios sob pequena guarda, o exército, sem baga-
gens, marchou sobre o território inimigo para devastá-lo. Tudo
é ~rras~do a ferro e fogo; de todos os lados são trazidos despojos .
Nao fot apenas o solo que se deixou devastado ao inimigo: mes-
mo aos castelos fortes e às aldeias se ateou fogo; mas não se
atacaram as cidades de onde o medo tinha expulsado em massa
os etruscos.
O. cônsu l Cneu Fúlvio travou no Sâmnio, nas proximidades
de Bovtano, uma batalha célebre, onde a vitória não ficou inde-
cisa. Depois atacou Boviano e. logo após . tomou de assalto Aufi-
dena .
Ameaça de guerra com os etruscos 13 . No mesmo ano
e os samnitas. Quinto Fábio Máximo se fundou uma colô-
e Públio Décio Mure são nomeados nia em Carséolos, no
cônsules. território dos equíco-
. las. O cônsul Fúlvio
tnunfou d~s samnitas. Como se aproximava a eleição dos côn-
sules, surgtu o boato de que os etruscos e os samnitas estavam
organizando grandes exércitos; que em todas as assembléias os
chefes etruscos eram abertamente atacados por não terem leva-
do, sob quaisquer condições, os gauleses à guerra ; que se criti-
cavam os_ magistrados samnitas por terem oposto aos romanos
um exérctto preparado para enfrentar um adversário como os
lucanos : o resultado era, dizia-se em Roma, que os inimigos se
levantavam para a guerra com suas forças e as de seus aliados e
seria bem desigual a luta a manter.
O temor dessa guerra fez com que, apesar da cand idatura
ao ~onsul ~d~ de ho_mens ilustres, todos volvessem os olhos para
Qumto Fabto Máxtmo, o qual, a princípio, não era candidato
e chegou mesmo, ao ver a preferência popular tender para ele.
298
HI STORIA DE ROM A
a recusar. Por que vinham, dizia ele, quando já estava velho
e passara por todas as dificuldades, recebendo as recompensas
a elas devidas, perturbar seu repouso? Nem seu corpo, nem
seu espírito conservavam o antigo vigor; temia mesmo pela sorte
e que algum deus considerasse a sua excessiva e mais constante
do que o querem as coisas humanas. Como sua glória crescera
a partir de seus predecessores, outros homens surgiam para
alcançar a sua própria, o que via com júbilo; não faltavam, em
Roma, honrarias para esses homens de muito valor, nem falta-
vam homens de muito valor para essas honrarias.
Com tal modéstia aguçava os sentimentos legítimos da
multidão. Pensando apaziguá-los pelo respeito às leis, mandou
ler que estas exigiam um intervalo de dez anos entre dois consu-
lados do mesmo homem. O rumor quase impediu que se ouvisse
a leitura da lei e os tribunos da plebe declararam que aquilo
não seria empecilho: proporiam ao povo liberar Fábio das leis.
Ele persistia em recusar, perguntando de que serviria votar leis
que seriam derrubadas por aqueles mesmos que a tivessem feito
votar. Hoje em dia, dizia ele, manda-se nas leis em vez de ser-se
mandado por elas . O povo não deixava de apresentar-se e cada
centúria chamada ao recinto 22 indicava Fábio para cônsul. So-
mente então. vencido pela união de pensamentos de seus conci-
dadãos, disse : '' Que os deuses aprovem o que fazeis e o que
fareis , quirites! Mas, já que ides fazer comigo o que quereis ,
possa, quanto a meu colega, meu crédito encontrar guarida junto
a vós: é Públio Décio, com quem me entendi bem quando era
seu colega, e que é digno de vós , digno de seu pai, que vos
peço que nomeeis cônsul comigo". Essa recomendação pareceu
justa : todas as centúrias restante nomearam cônsu les Quinto
Fábio e Públio Décio.
Naquele ano , os edis acusaram muitos cidadãos, porque
possuíam mais terra do que a lei permitia ; quase nenhum se
justificou e isso indicava uma cobiça desmesurada.
22 . a vo tação por centúrias, faz ia m-se entrar todos os membros
d n centúria em um recinto: votavam. dnli saindo um n um .
 TITO LfVIO
Quinto Fábio Máximo vence 14 . Enquanto os novos côn-
os samnitas em Tiferno. su les, Quinto Fábio Máxi-
mo, cônsul pela quarta vez.
e Públio Décio Mure, cônsul pela terceira, tratavam entre si
de escolher por adversários os samnitas ou os etruscos, de
calcular forças suficientes para uma e outra província, e qual
das duas guerras cada qual era mais capaz de conduzir, embai-
xadores de Sútrio, de Népete e de Falérios, demonstrando que
os povos da Etrúria reuniam assembléias para pedir a paz, des-
viaram para o Sâmnio todo o peso da guerra. Uma vez partidos
os cônsules, a fim de mais facilmente aprovisionar víveres e
melhor esconder ao inimigo o lado de onde viria o ataque, con-
duzem, Fábio pelo território de Sara, Décio pelo de Sidicino,
suas legiões para o Sâmnio. Chegados a território inimigo, ambos,
dispersando suas tropas, avançam devastando . Seus batedores,
entretanto, vão sempre à frente dos pilhantes; assim não lhes
escapa que, perto de Tiferno, os inimi gos , postados nos fl ancos
de um va lão escondido, se preparam para. quando os romanos
ali entrarem, lhes cai r em cima.
Fábio, deixando de lado suas bagagens em local seguro
com pequena guarda , previne seus soldados de que o combate
está próximo e avança, formado em quadrado, para a embos-
cada inimiga de que falamos. Os samnitas, desistindo de atacar
de surpresa e vendo que o combate ia transformar-se numa luta
decisiva em campo aberto , preferiram também trava r um com-
bate regu lar. Descem para um terreno plano e en tregam-se à
sorte, com mais coragem que esperança . Mas, seja porque tives-
sem reunido , em todos os povos da Etrúria, tudo o que tinham
de mais sólido, seja porque essa batalha, onde tudo se decid ia,
lhes aumentava a coragem, causaram algum receio, mesmo na-
quela luta em cam po aberto.
Fábio, vendo que não se desalojava o inimigo em parte
alguma, determina a Máximo Fúlvio e a Marco Valé ria, tribunos
militares, com os quais tinha avançado na primeira linha, que
fossem procurar os cavaleiros e os exortassem - se se lem-
brassem de alguns casos em que as forças da cavalaria vieram
300
HISTóRIA DE ROMA
em socorro do Estado - a manter intacta, naquele dia, a glória
de sua ordem: no combate da infantaria, o inimigo, imóvel,
resiste · só resta esperança numa carga de cavalaria. Chamando
pelo ;orne esses jovens oficiais, ambos com igual benevolência,
Fábio os cumula alternadamente de elogios e de promessas.
Mas, persuadido de que se aquela medida não desse resultado,
sendo ineficaz a força, teria que recorrer à astúcia, ordena ao
legado Cipião que retire do combate os hastários ~a pri~eira
legião, leve-os por desvios encobertos aos morros mats próxtmos,
faça-os subir fora das vistas e surja de repente às costas do
inimigo.
Os cavaleiros, conduzidos pelos tribunos, d irigindo-se brus-
camente para a frente dos estandartes, não surpreenderam me-
nos os seus do que os inimigos. Mas, diante dos esquadrões
a galope, a linha samnita permaneceu inabalável. Em nenhuma
parte se conseguiu que recuasse ou se rompesse. Como sua ten-
tativa fosse vã, os cavaleiros recuaram para trás dos estandartes
e deixaram o combate. Com isso a coragem do inimigo aumentou
e a frente romana não teria podido sustentar uma luta tão longa ,
nem um ataque reforçado pela autoconfiança, se a segunda linha
não houvesse, por ordem do cônsul, substituído a primeira. As
novas forças detêm os samnitas, que já avançavam; e o opor~no
aparecimento das armas romanas vindas dos morros, os gntos
emitidos por essas tropas causaram entre os samnitas u.m te~ror
não totalmente fundado . Com efeito, não somente Fábto gntou
que seu colega Décio se aproximava, :orno os solda~os, cada
um por si, murmuraram que o outro consul estava ah,. ~ue as
legiões chegavam , fremindo de alegria, e esse erro ulll .aos
romanos enche de medo e afugenta os samnitas, que terotam
sobretudo ser esmagados, visto estarem exaustos, pelo segundo
exército romano, inteiro e intacto. Como se dispersaram na fuga,
0
massacre não foi proporcional à vitória. Três mil e quatro-
centos foram mortos, cerca de oitocentos e trinta aprisionados,
e tomados vinte e três estandartes.
30t
 TITO LIVIO
Décio, vencedor dos ápulos, vem 15. Os ápulos se jun-
juntar-se a Fábio e ambos devastam tariam aos samnitas
o Sâmnio. Lúcio Volúmnio nomeado antes desse combate
cônsul com Ápio Cláudio. se o cônsul Públio
Décio não tivesse ido
a Malavento, acampado em frente a eles, nem os tivesse obri-
ga~o a ~r~var batalha e os dispersado. Também aqui houve
mats fugtttvos do que baixas: dois mil apulianos foram mortos.
~eno~prezan do. o inimigo, Décio conduziu suas legiões para o
S~mn:o. Os dots exércitos consulares, percorrendo o país em
?treçoes opostas, devastaram tudo durante cinco meses. Décio
mstalou acampamento em quarenta e cinco lugares do Sâmnio
e o outro cônsul em oitenta e seis; e não ficaram apenas os
vestígios da paliçada e dos fossos dos acampamentos, mas lem-
branças bem mais evidentes, a devastação da área circunvizinha
e. a pilhagem da região. Fábio tomou também a cidade de
Ctmetra. Foram então aprisionados dois mil e quinhentos sol-
dados, e mortos na luta cerca de quatrocentos e trinta.
Em seguida Fábio regressou a Roma por motivo das eleições
e, ~pressou-se a resolver esse assunto. Como as primeiras cen-
tunas chamadas a votar indicavam todas Quinto Fábio para
cônsul, o candidato Ápio Cláudio, personagem consular homem
violento e intrigante, desejoso não só de ser distinguldo com
o ~onsu lado , mas também de ver os patrícios recuperarem os
d01s cargos, empregou suas forças e as da nobreza inteira para
se fazer nomear com Quinto Fáb io. Fábio, invocando quase as
mesmas razões que no passado, a princípio recusa o consulado.
A nobreza cerca sua cadeira; pede-lhe que tire o consulado da
abjeção plebéia, que restitua a majestade primitiva tanto ao
cargo como às famílias patrfcias. Feito silêncio Fábio acalmou
as paixões com palavras moderadas: teria, di~se ele, aceito o
voto em nome de dois patrícios, se visse ser indicado para cônsul
outro que não ele; mas, nas presentes circunstâncias, aceitar
votos em seu nome, além de ilegal, seria um deplorável exemplo
que não daria. Assim Lúcio Yolúmnio, plebeu, foi nomeado
cônsul com Ápio Cláudio; já tinham sido colegas num consu-
lado anterior. A nobreza censurou a Fábio não ter querido
302
HISTOR IA DE ROMA
Ápio Cláudio como colega, o qual, pela eloqüência e habilidade
nos assuntos civis. sem nenhuma dúvida levava vantagem so-
bre ele.
Décio expulsa o exército samnita 16. Terminadas as elei-
de seu próprio país. Perseguido, ções, os antigos cônsu-
se refugia na Etrúria e tenta les receberam ordem de
arrastá-la contra Roma. conduzir a guerra no
Sãmnio, sendo seus po-
deres prorrogados por seis meses 23 Eis porque também no ano
seguinte, no consulado de Lúcio Volúmnio e de Ápio Cláudio,
Públio Décio, que seu colega tinha deixado, como cônsul, no
Sâmnio, não cessou, como procônsul, de devastar as terras, até
o momento em que o exército samnita, que já não se arriscava
a combatê-lo em parte alguma, acabou por ser expulso de seu
próprio território. Os samnitas expulsos alcançaram a Etrúria;
e, pensando que o objetivo tantas vezes tentado em vão através
de embaixadas seria mais eficazmente obtido com aquele grande
exército, graças ao qual seus pedidos aos etruscos se associariam
ao terror, solicitaram uma reunião com os chefes da Etrúria.
Reunido o conselho, os samnitas mostram desde quantos anos
lutam , pela liberdade, contra os romanos: tentaram tudo, dizem
eles, para ver se podiam, só com suas forças, sustentar uma
guerra tão difícil ; recorreram também à ajuda de pequenas
nações vizinhas. Pediram a paz ao povo romano, quando não
podiam mais suportar a guerra; revoltaram-se porque a paz
pesa mais a escravos do que a guerra a homens livres. Não lhes
resta esperança senão na Etrúria; sabem que essa nação é a
mais rica da Itália em armas, em homens e em dinheiro; seus
vizinhos são os gauleses. criados nas armas, orgulhosos por
natureza, mas sob retudo adversários do povo romano que , con-
quistado por eles, resgatou-se a peso de ouro; e les se lembram
e com razão se gabam disso; basta um nada . se os etruscos
23 . Adota-se cada vez mais, em todas essas guerras, o costume de
prorrogar os podere dos e -cônsules. em vez de se limitar aos cônsules
e pretores do ano.
303
 TITO LtVIO
HISTORIA D E ROMA
tiverem a mesma coragem que outrora Porsena 24 e seus ante-
passados, para que se obrigue os romanos, expulsos de todo o ven der. Partamos para . Romúlea,
, on d e vos espera , sem mais
território aquém do Tibre, a lutar por sua salvação, não por
trabalho, um butim mar_or . oldados apressam seu general e
uma intolerável tirania sobre a Itália. Acaba de chegar um
Vendidos os despOJOS, os s bé . sem trabalhos, sem
~I
se dirigem p~ra omu ea. andartes se aproximam, os soldados,
exército samnita bem-equipado, provido de armas e de dinheiro, R Tam m aqur ,
disposto a segui-los imediatamente, mesmo que o levem a atacar
a própria Roma. máquinas, assrm que os est f se das muralhas, rapidamente
como nenhuma força os a astasb I tes A cidade é tomada
il e trezentos homens são mortos, ~eis
d chegam aos a uar . .
Públio Décio toma as cidades samnitas colocam esca as e .
de Murgância, Romúlea e Ferentino. 17 . Enquanto na e saqueada; cerca de dolslmd d apoderam de enorme buttm,
Etrúria os samni- 1. . . dos e os so a os se . .
m J aprrs1ona , . d" t ente como o pnme1ro.
tas faziam o elo- A b . dos a vender lme la am , d d
gio de si mesmos, a guerra romana os atormentava em casa. que se veem o nga . bora não lhes seja a o
De lá são levados para Ferentrno e,tem a animação. Mas aqui
De fato, Públio Décio, informado por batedores que o exército d
samnita tinha partido, convocou o conselho: "Por que - disse nenhum escanso, marcham. com ex remlhas foram defen d "d r as
houve mais trabalho e pengo:f as mturato por arte quanto pela
ele - vagarmos pelos campos, levando a guerra de aldeia a . . praça era orte an
com maior vigor; a . . os soldados habituados ao saque.
natureza; mas nada reststtu -~ . . "gos· ~ butim ficou para os
aldeia? Por que não atacamos cidades e fortificações? Nenhum
exército defende mais o Sâmnio; seus soldados abandonaram o Mataram-se cerca de três ml lntmt '
território e condenaram-se a si mesmos ao exílio".
soldados. a as é atribuída por alguns
Com a aprovação de todos, leva-os ao ataque a Murgância, A honra de ter assaltado e_ssasMpáxr _ç o· Murgância foi toma-
praça forte; e tão grande foi o ardor dos soldados, por amor d arte a (Fáb1o) lm · 'I
anais, em gran e p ' . t do Ferentino e Romu ea.
a seu general como pela esperança de um butim maior que o da por Décio, mas Fábio tertalóa _acaaos novos cônsules, alguns
conseguido na pilhagem dos campos, que num só dia tomaram Existem autores q
ue dão essa g rra 1
L, . Volúmnio· era a e e que
a cidade pela força das armas. Dois mil e cem combatentes não aos dois, mas a um deles, a ucl_o
A .
samnitas foram cercados e presos, além de conqu istado enorme tinham cabido as operações no Sammo.
butim. Para não estorvar a coluna com os despojos, não a tornar
O samnita Gélio Egnácio suble~a a
menos ágil , Décio convoca os soldados e diz-lhes: 18 . Enquanto esses
fatos se passam no
" Só esta vitória, só este butim vos contentarão? Quereis Etrúria. Ápio Cláudjo, malsucedado Sâmnio, sob a dire-
manter esperanças proporcionais a vossa coragem? Todas as em suas operações, é -:tcançado ção e os auspícios de
cidades dos samnitas, todas as fortunas deixadas nessas cidades por seu colega Volúmnao. quem quer que fosse,
são vossas, uma vez que as legiões samnitas, dispersadas por Etrúria, provocam grande guerra c~n-
numerosas populaçoe~, n~ _ d
-
tantos combates, finalmente as expulsastes de seu território. Ven- samnita Gélio Egnácro.
dei esse butim e atraí pelo ganho os mercadores a fim de que tra os romanos, por mstrgaçao edu~d"d a g~erra . os povos
Quase todos os to~can . h .
os tinham ecl I o '
acompanhem vossa coluna; logo vos proporcionarei mais o que "do contagiados e solicitava-
mais próximos_ da _u mbrra rtv•~~s srauleses. Toda essa multidão
se a peso de danhetro o aux lO g "ta Quando a brusca
ampamento samm · , .
se concentrava no ~c
24 . Porsena
apoderou de Roma.é um chefe etrusco que, muito provavelmente, se R o cônsul Lúcio Volummo,
sublevação foi anunctad~ e~ -~ma~ quinze mil aliados, partiu
304 com a segunda e a tercerra egroes

305
 TITO I.IVI O
para o Sâmnio. Decidiu-se que Ápio Cláudio iria o mais breve
po.ssí~el para a Etrúria. Duas legiões romanas o seguiram, a
pnmetra e a quarta, e doze mil aliados 25 ; acamparam não dis-
tante do inimigo.
Mas foi essa rápida chegada que conseguiu deter, pelo
medo ao nome romano, alguns povos etruscos que já pensavam
em pegar em armas, e não uma operação qualquer, bem hábil
ou bem-sucedida, ali conduzida por aquele cônsul. Muitos com-
bates foram travados em locais ou em horas desfavoráveis; as
esperanças do inimigo o tornavam a cada dia mais insistente e
já se estava perto de ver os soldados não confiando mais em
seu general, nem o general em seus soldados. Ápio enviou uma
carta a seu colega, chamando-o de Sâmnio: é o que encontro
em três livros de anais. Preocupa-me entretanto dar o fato como
certo, quando foi esse justamente um ponto discutido entre os
cônsules do povo romano, que já exerciam pela segunda vez
o mesmo cargo, negando Ápio ter enviado a carta e Volúmnio
afirmando que sim.
Volúmnio já tinha tomado três praças no Sâmnio, nas quais
tinham sido mortos cerca de três mil irumigos e feitos prisio-
neiros aproximadamente a metade desse número; tinha repri-
mido as sedições dos lucanos, instigadas por chefes plebeus sem
recursos, graças às disposições extremamente favoráveis dos
grandes, e enviado para lá como procônsul Quinto Fábio com
seu antigo exército. Deixa a Décio 26 o território inimigo para
que o saqueie; ele mesmo vai, com suas tropas , juntar-se a seu
colega na Etrúria.
À sua chegada, é recebido por todos com alegria. Somente
Ápio mostrou - em conseqüência, penso, da noção que tinha
de sua própria conduta - irritação, bem-justificada se nada
25 . Pela primeira vez, as legiões são designadas por um número
ordinal ; habitualmente, o exército consular compreendia duas legiões
co~ a cavalaria e .o corpo _de auxiliares. Além disso, também pela pri-
meira vez, se menc1ona o numero dos contingentes dos aliados.
26 . Décio, colega de Fábio no ano precedente, e que também teve
seu comando prorro11ado.
306
HISTóRIA DE ROMA
houvesse escrito, mas usando de dissimulação vil e ingrata se
precisava de socorro. Com efeito, mal se tinham cumprimentado,
Ápio, que fora ao encontro de Volúmnio, disse-lhe: " Vai tudo
bem, Lúcio Volúmnio? Como estão os negócios no Sâmnio?
Que motivo te levou a deixar tua província?" Volúmnio res-
ponde " que no Sâmnio a situação era favorável; que viera por
causa da carta de Ápio ; se ela for falsa e não se precisar dele
na Etrúria, vai imediatamente ordenar meia-volta a suas tropas" .
" Vai - respondeu-lhe Ápio - , e que ninguém te segure;
porque não é conveniente, quando talvez mal bastes para a
guerra de que estás encarregado, que te glorifiques de ter vindo
aqui trazer socorro a outros". " Queira Hércules 27 que o caso
termine bem - responde Volúmnio. - Mais vale um trabalho
inútil do que um acontecimento que teria tornado insuficiente
para a Etrúria um só exército consular".
O exército retém Volúmnio. 19. Os cônsules já se sepa-
Os inimigos são vencidos. ravam quando os legados e
os tribunos do exército de
Ápio os cercaram. Uns pedem a seu general que, no momento
em que se oferece espontaneamente o auxílio de um colega,
que deveria ter sido solicitado, não o despreze; mais numerosos
são os que se opõem à partida de Volúmnio; exortam-no a não
faltar ao Estado por causa desse lamentável mal-entendido com
um colega; se acontecer algum desastre - dizem - culpar-se-á
mais o que tiver abandonado o outro do que aquele que tiver
sido abandonado; chegou-se assim à situação de que, quanto
ao êxito ou ao insucesso na Etrúria, toda a honra ou toda a
desonra seria atribuída a Lúcio Volúmnio; n inguém perguntará
o que disse Ápio, mas qual foi a sorte do exército; Volúmnio
é despachado por Ápio, mas o Estado e o exército o retêm; que
ele considere apenas os sentimentos de seus soldados.
Em meio a tais opiniões e a tais apelos, os cônsules são
levados, quase a contragosto, à assembléia. Lá se pronunciaram
27. Hércules era considerado pelos antigos protetor e ddensor dos
males que a sorte podia reservar.
307
 TITO UVJO
discursos mais longos, mais ou menos no mesmo sentido em
que se tinha discutido em pequenos grupos. Volúmnio, cuja
causa era a melhor, não pareceu pior orador diante da notável
eloqüência de seu colega e Ápio djsse ironicamente que todos
lhe deviam agradecer por lhes ter dado, em vez de um cônsul
mudo, sem língua, um homem que chegava à eloqüência; que
em seu primeiro consulado, sobretudo nos primeiros meses,
Volúmnio não podia abrir a boca, ao passo que agora espargia
discursos ao povo. "Como preferiria - replicou Volúmnio -
ter-te ensinado a agir com decisão a ter aprendido contigo a
falar bem com propriedade!" Para terminar, propôs-se um acor-
do, de modo que se pudesse decidir qual dos dois era, não o
melhor orador - o Estado não precisava disso - mas o melhor
general. Havia duas províncias, a Etrúria e o Sâmnio; Ápio
podia escolher a que preferisse; com seu exército, conduziria a
luta, quer na Etrúria, quer no Sâmnio.
Então os soldados bradam que os dois cônsules deviam
fazer juntos a guerra aos etruscos. Notando sua concordância,
Volúmnio lhes disse:· "Já que, interpretando as intenções de
meu colega, me enganei, não me exporei a que as vossas perma-
neçam obscuras: quereis que fique ou que parta? Manifestai-o
com vossos gritos". Elevou-se então um brado tão grande que
fez os inimigos saírem de seu acampamento; pegando as armas,
desceram prontos para a batalha. Volúmnio mandou também
dar o sinal e tirar as insígnias de seu acampamento. Ápio hesi-
tou, dizem, vendo que, quer combatesse quer ficasse inativo,
a vitória seria atribuída a seu colega; depois, receando que suas
próprias legiões também acompanhassem Volúmnio, deu a suas
tropas o sinal que exigiam.
Dos dois lados, as forças se dispuseram muito mal. O ge-
neral dos samnitas, Gélio Egnácio, tinha ido forragear com
algumas coortes e era mais por sua própria iniciativa do que
por determinação ou ordens de alguém que seus soldados em-
preenderam o combate; quanto aos dois exércitos romanos, não
foram postos em linha de uma vez e faltou tempo para organizá-
las. Volúmnio inkia o combate antes que Ápio tenha chegado
diante do inimigo; foi portanto numa frente irregular que se
308
HISTORIA DE ROMA
lutou; e, como se a sorte quisesse mudar os adversários habi-
tuados uns com os outros, os etruscos marcharam contra Vo-
lúmnio e os samnitas, um pouco atrasados devido à ausência de
seu chefe, contra Ápio. No meio do combate, no momento
decisivo, dizem que Ápio, na primeira linha, levantando as
mãos para o céu de maneira a ser notado, rezou assim : " Belona,
se no dia de hoje nos dás a vitória, eu te dedicarei um templo".
Após essa prece, como se a deusa o estimulasse, igualou a
coragem de seu colega e de seu exército. Os generais cumprem
todas as tarefas do comando e os soldados de cada exército
fazem todos os esforços, com medo de que a vitória venha do
outro. Assim desbaratam e põem em fuga o inimigo, que com
dificuldade resistia à massa de uma tropa maior que a que ti-
nham costume de enfrentar. Pressionando-o diante de seu recuo,
perseguindo-o depois de dispersado, repeliram-no para seu acam-
pamento. Lá, a intervenção de Gélio e de coortes sabélicas fez
o combate recrudescer um pouco. Mas com essas forças também
logo dispersados, os vencedores já atacavam o acampamento;
e Volúmnio em pessoa, marchando com um estandarte para a
porta, Apio, repetindo o nome de Belona vitoriosa, infl~~ando
a coragem dos soldados. através de paliçadas e fossos, alt lrrom-
peram. O acampamento foi tomado e saqueado; enc.ontro~-se
grande butim, que foi deixado aos soldados. Sete. m1l e ~~~o­
centos inimigos foram mortos e dois mil cento e vmte, apriSio-
nados.
20. Enquanto os dois
Volúmnio vence uma coluna samnita
que acaba de pilhar a Campânia. cônsules e todas as
forças romanas se
ocupavam da guerra etrusca, no Sâmnio novos exércitos, pegando
em armas para devastar o território do Estado de Roma, pass~
pela região de Vécio à Campânia e às terras de Falerno e alt
obtêm imenso butim . Volúmnio voltava em longas etapas ao
Sâmnio (porque os poderes de Fábio e de Décio, que tinham
sido prorrogados, estavam expirando) ; rumores referentes ao
exército samnita e aos saques em território campaniano o levam,
309
 TITO LfVIO
para proteger esses aliados, a mudar de direção. Chegando ao
território de Cales, vê pessoalmente os vestígios recen tes do
flagelo e os habitantes de Cales lhe contam que o inimigo já
carrega tantos despojos que sua coluna tem dificuldade em de .
locar-se; também acrescentam que seus chefes dizem aberta·
mente que é preciso regressar imediatamente ao Sâmnio para
lá deixar os despojos e depois voltar em expedição. em vez de
expor um exército tão pesadamente sobrecarregado a uma bata-
lha. Embora aquiLo fosse verossímil, Volúmnio achou que era
preciso fazer um reconhecimento mais seguro: mandou cava-
leiros raptarem saqueadores errantes e dispersos pelos campos.
Interrogando-os, sabe deles que o inimigo está acampado à mar-
gem do Vu lturno, que dali partirá dentro de três dias, indo para
o Sãmnio.
Tendo conhecimento desses fatos. Volúmnio parte e se
instala a uma distância tal dos inimigos que estes não possam
saber de sua chegada em conseqüência da grande proximidade.
Ao mesmo tempo, se abandonarem seu acampamento , serão es-
magados. Um pouco antes de romper o dia, aproxima-se de seu
acampamento e e nvia homens que sabem a língua osca espiar
o que ali se faz. Misturados ao inimigos. o que era fácil na
confusão da noite, verificam que as insígnias, malguardadas, já
partiram, que agora são os despojos que saem com sua escolta,
coluna de pouca mobilidade e onde cada qual só se ocupa
consigo, sem coordenação entre pessoas nem comando bem-
definido. O momento pareceu muito apropriado a um ataque .
O dia já vinha chegando. Mandando dar o sinal, Volúmnio
ataca a coluna inimiga . Os samnitas, estorvados pelo butim,
são pouco numerosos em armas ; uns apressam o passo, tocando
suas presas à frente; outros param , indagando-se se é mais
seguro avançar ou voltar ao acampamento. Enquanto hesitam.
são esmagados. Os romanos já tinham atravessado o entrin-
cheiramento; o massacre e o tumulto reinavam no acampamento.
A coluna samnita, além da desordem provocada pelo ini-
migo, tinha sido perturbada também pela brusca revolta dos
prisioneiros: uns, tendo-se soltado a si mesmos , liberlavam os
310
HISTORIA DE ROMA
que ainda estavam acorrentados ; outros arrancavam as armas
presas nas bagagens dos soldados e provocavam um tumulto
mais terrível do que o próprio combate, porque estavam mistu-
rados com o exército inimigo. Realizaram em seguida uma faça-
nha memorável: como o general Estácio Minácio se aproximasse
das fileiras e as exortasse, eles o atacam; dispersando os cava-
leiros da escolta , cercam-no e arrastam-no prisioneiro em seu
cavalo na direção do cônsul romano . Esse tumulto fez voltar
a testa da coluna samnita e o combate, já perto do fim, reco-
meçou ; mas não pôde ser mantido por muito tempo . Houve
cerca de seis mil homens mortos, dois mil e quinhentos prisio-
neiros, entre os quais quatro tribunos militares. Foram tomados
trinta estandartes e o que foi mais agradável aos vencedores,
libertaram-se sete mil e quinhentos prisioneiros e recuperou-se
enorme butim que pertencia aos aliados. Os proprietários foram
convocados por um édito, que lhes marcou um dia para identi-
ficar e receber de volta seus bens. Os objetos cujo dono não
se apresentou foram deixados aos soldados; mas precisaram
vender esse butim, para que não tivessem o espírito em outra
parte que não nas armas.
Fundação das colônias de Minturas 2 t . A devastação do
e Sinuessa. Ameaça de guerra na território campaniano
Etrúria. tinha causado em Ro-
ma profunda conster-
nação. E por coincidência, durante esses dias , chegara da ~trúria
a notícia de que após a partida de Volúmnio os etruscos tmham
sido chamados às armas e Gélio Egnácio, general dos samnitas,
incitava os umbros à defecção, oferecendo aos gauleses quantias
enormes para seduzi-los. Essas notícias alarmaram o Senado,
que proclamou a suspensão dos negócios e o alista.mento de
homens de todas as condições. Não só os homens ltvres e os
mobilizáveis tiveram de prestar juramento, mas também se
criaram coortes de homens idosos e centúrias de libertos. Dis-
cutiam-se também os meios de defender a cidade, e o pretor
Públio Semprônio dirigia tudo aquilo. O Senado foi entretanto
311
 TITO UVIO
aliviado de parte de suas preocupações por uma carta do cônsul
Lúcio Volúmnio, informando que os saqueadores da Campânia
tinham sido massacrados ou dispersos. Por essa vitória , decre-
tam-se ações de graças em nome do cônsul e põe-se fim à sus-
pensão dos negócios, que tinha durado dezoito dias. As ações
de graças são celebradas com muita alegria.
Em seguida se começou a discutir sobre a defesa da região
devastada pelos samnitas. Decidiu-se fundar duas colônias nas
imediações dos territórios de Vécia e de Falerno, uma na embo-
cadura do Líris - recebeu o nome de Minturas - , a outra no
desfiladeiro de Vécia, contígua ao território de Falerno, onde
existiu, dizem, a cidade grega de Sinope, chamada em seguida
Sinuessa pelos colonos romanos. Os tribunos da plebe foram
encarregados de ordenar, por um plebiscito, ao pretor Públio
Semprônio que nomeasse triúnviros para conduzir aqueles colo-
nos. Mas não se encontravam facilmente pessoas que quisessem
inscrever-se: todos pensavam que eram enviados para montar
uma guarda perpétua, ou quase. numa região inimiga e não
para viver em suas terras.
O Senado foi desviado dessas preocupações pela guerra da
Etrúria, que se agravava, e pelas freqüentes cartas de Apio,
alertando para que não se descuidasse dos movimentos daquela
região . Quatro nações, dizia ele, estavam reunindo suas armas,
etruscos, samnitas, umbros e gauleses; já tinham instalado acam-
pamentos em duas direções, não podendo um só local comportar
tamanha multidão. Para isso, e tendo em vista as eleições (já se
aproximava o momento), o cônsul Volúmnio foi chamado a
Roma. Antes de convocar as centúrias para votar, conclamou
o povo a uma assembléia e lá explicou demoradamente a impor-
tância da guerra da Etrúria; já quando, disse ele, conduzia a
luta com seu colega, aquela guerra era de tal amplitude que
um só general e um só exército não seriam suficientes; e desde
então se tinham juntado, segundo diziam , os úmbrios e forte
exército gaulês. Generais encarregados de lutar contra quatro
povos, a título de cônsules, se elegiam naquele dia : os cidadãos
deviam lembrar-se disso. Quanto a ele, acrescentava Volúmnio,
se não estivesse convencido de que o povo romano, em união
312
HISTóRIA DE ROM A
de espfritos, ia nomear cônsul o homem que, sem nenhuma dúvi-
da , se considerava então como o melhor chefe. ele o teria
nomeado ditador imediatamente .
Quinto Fábio e Públio Décio são 22 . Ninguém duvida-
nomeados cônsules; Volúmnio, va que Quinto Fábio
procônsul; e Ápio Cláudio, pretor. fosse designado por
unanimidade; e foi
ele que as centúrias prerrogativas e todas as centúrias chamadas
a votar em primeiro lugar designaram como cônsul, com Lúcio
Volúmnio. Fábio fez o mesmo discurso de dois anos antes;
depois, vencido pela unanimidade dos eleitores, pediu como
colega Públio Décio. Seria, disse ele, o sustentáculo de sua
velhice; pela censura e pelos dois consulados que tinham desem-
penhado juntos, verificara que nada melhor do que o entendi-
mento entre colegas assegurava a proteção do Estado. A algum
outro que viesse partilhar com ele o poder, sua alma de velho
só com dificuldade poderia habituar-se; com um homem cujo
caráter conhecia, ele combinaria mais f acilmente.
O cônsul aprovou seu discurso tanto pelos merecidos elo-
gios concedidos a Públio Décio como por lembrar quantos males,
nascidos da discórdia, tinham ocorrido na conduta das operações
militares, fazendo notar que perigo extremo, ou pouco faltando
para isso, seu colega e ele tinham feito correr recentemente.
Décio e Fábio viviam como se tivessem um só coração, uma
só vontade; eram, além disso, homens nascidos para fazer cam-
panha, grandes por suas ações, inábeis nos combates de palavras
e nas maledicências; e essas eram características de cônsules;
os homens hábeis e astutos, versados no direito e na eloqüência,
como Apio Cláudio, deviam ser conservados à frente da cidade
e do fórum , nomeados pretores para distinguir a justiça.
Esses discursos ocuparam todo o dia. No dia seguinte,
seguindo a recomendação do cônsul, fizeram-se as eleições
consulares e pretorianas. Foram nomeados cônsules Quinto Fábio
e Públio Décio, e Apio Cláudio, pretor; todos estavam ausentes.
Lúcio Volúmnio , através de um senadoconsulto e um plebiscito.
foi prorrogado por um ano em seu comando.
313
 --------------------~---~-----
TITO l.fV IO
A patrícia Virgínia, mulher do 23. Naquele ano, houve
cônsul plebeu Volúmnio, institui muitos prodígios. Para
o culto do Pudor plebeu . afastar suas conseqüên-
cias, o Senado ordenou
dois dias de preces; o tesouro forneceu o vinho c o incenso:
grande número de homens e mulheres suplicaram aos deuses. O
que tornou essas preces dignas de nota foi, na capela do Pudor
patrício, situada no mercado dos bois, perto do templo redondo
de Hércul es, uma disputa que surgiu entre as matronas. Virgínia,
filha de Aula, patrícia casada com um plebeu, o cônsul Lúcio
Volúmnio, foi afastada pelas matronas, porque tinha feito um
casamento desigual , de sua cerimônia religiosa. Daí se originou
ligeira alteração que, em conseqüência da irascibilidade femi-
nin a, degenerou em luta violenta, glorificando-se Virgínia, com
justiça, por ter entrado no templo do Pudor patrício sendo
patrfcia e pudica, casada com um só homem a quem tinha sido
levada virgem , e por não ter que se arrepender de seu marido,
de seus cargos e de seus feitos 28 • Um ato que teve grande reper-
cussão juntou-se a essas ativas palavras: na rua Longa, onde
morava, tirou de uma parte da casa o espaço necessário a uma
pequena capela, ali ergueu um altar e, depois de se queixar
às matronas plebéias, que tinha convocado, do ultraje das patrí-
cias, disse-lhes: " Dedico este altar ao Pudor plebeu e exorto-vos
a rivali zar em pudor en tre as matronas, assim como os homens
da cidade rivalizam em coragem, e a esforçar-vos a fazer com
que se diga que este altar é honrado, se possível, mais santamente
do que o outro e por mulheres mais castas " . Esse altar foi
honrado segundo os mesmos ritos que o primeiro: nenhuma
mulher além das matronas de comprovado pudor, e não tendo
28 . Virgínia pretende não ter perdido seus direitos de patricia por
ter·se casado com um plebeu. Aliás, não temos muitas informações sobre
esse culto ou esses dois cultos do Pudor. t uma abstração personificada,
como tantas divindades romanas, e seu culto é reservado às mulheres
não somente pudicas mas que só foram casadas uma vez. Essa honra
concedida às mulheres casadas uma vez só corresponde a um sentimento
que se tornará cada vez mais forte à medida que os divórcios se tornarem
rreqüentes.
314
HISTôRIA DE ROMA
senão um só marido, teve o direito de ali sacrificar. Esse culto
foi depois prostituído por mulheres impuras - não somente
por matronas, mas por mulheres de toda classe - e acabou por
cair no esquecimento.
No mesmo ano, Cneu e Quinto Oguínio, edis curuis, conde-
naram alguns usurários. Seus bens foram confiscados e, com
o que reverteu ao tesouro, os edis curuis mandaram colocar por-
tas de bronze no Capitólio 29 , vasos de prata em número sufi-
ciente para guarnecer três mesas, na nave de Júpiter, uma estátua
de Júpiter com sua quadriga 30 no topo do templo e, perto da
figueira Rumina), imagens dos meninos fu ndadores de Roma
sob as tetas da loba; pavimentaram também, com pedras qua-
dradas, uma calçada, da porta Capena ao templo de Marte. Da
mesma forma , os edis da plebe, Lúcio ~lio Peta e Caio Fúlvio
Curvo, com o dinheiro também tirado das multas impostas aos
rendeiros das pastagens públicas condenados, deram jogos e
colocaram taças de ouro no templo de ercs.
A província da Etrúria é 24 . Depois Quinto Fábio,
atribuída de ofício a Fábio, pela quinta vez, e Públio
ape ar dos protestos de Décio. Décio, pela quarta , foram
empossados como cônsu-
les, após terem sido colegas em três consulados e uma censura:
e não eram menos célebres pela glória de seus fe itos, que era
imensa, como por seu bom entendimento. Se este não foi cons-
tante, sua in terrupção adveio, acred ito, mais de uma rivalidade
entre suas ordens do que entre eles. desejando os patrícios que
Fábio ti vesse a Etrúria como província a título extraordinário,
os plebeus insistindo com Déc io para que submetesse o caso
ao sorteio . Houve certamente alguma discussão sobre esse ponto
no Senado; e, quando Fábio levou a melhor naquela assembléia,
o assunto foi entregue ao povo.
29 . Até então só tinha havido portas de madeira.
30 . 1: sem dúvida o Júpiter conduzindo uma quadriga cujos CIIVll-
los galopam, e guiado pela Vitória. o qual é reproduzido em algumas
moedas.
315
 T ITO U V IO
Na assembléia, como é natural entre soldados, que se fiam
mais em suas ações do que em suas palavras, falou-se pouco.
Fábio disse que era escandaloso que outro colhesse os frutos
da árvore que ele havia plantado: era ele que tinha desbravado
a floresta Cimínia, aberto caminho, através daquelas ínvias
gargantas, ao ataque romano. Por que convocá-lo em sua idade,
se se queria que a guerra fosse conduzida por outro general?
Certo, acrescentam passando pouco a pouco às censuras, foi um
adversário que escolheu, não um associado a seu poder; e Décio
não quer mais o bom entendimento que maQtiveram em três
colégios. Enfim, não deseja nada mais do que ser enviado a uma
província, se o julgam digno disso; esteve à disposição do
Senado, estará às ordens do povo.
Públio Décio se queixava das injustiças do Senado. Tanto
quanto puderam, dizia, os patrícios se esforçaram por impedir
aos plebeus o acesso às grandes honrarias : depois que o valor,
exclusivamente, consegue que não o deixem sem reconhecimento,
em qualquer classe de homens em que se revele, procuram
como tornar vãos não só os sufrágios do povo, como também
os próprios julgamentos da sorte e fazê-los reverter em benefício
de alguns. Todos os cônsules, antes dele, receberam sua provín-
cia por sorteio; agora , é sem sorteio que o Senado dá uma
província a Fábio. Se é para homenageá-lo, ele bem mereceu
do próprio Décio e do Estado, para que Décio exalte sua glória,
desde que uma afronta para si mesmo não seja a condição do
brilho de Fábio. Ora, quem duvida de que, quando uma só
guerra é penosa e difícil , confiá-la, sem sorteio, a um dos dois
cônsules, seja o mesmo que julgar o outro supérfluo e inúti l?
Fábio se gloria de seus feitos na Etrúria; Públio Décio também
se quer glorificar deles; e talvez ele, Décio, possa apagar o fogo
que Fábio deixou abafado, mas que pode, como tantas vezes
acontece, dar origem a novo incêndio. Enfim, está pronto a ceder
a seu colega as honrarias e recompensas, por respeito a sua idade
e a sua grandeza; mas quando se apresentam perigos, combates,
não os cede espontaneamente e não os cederá; e, à falta de outro
resultado, conseguirá pelo menos que o que pertence ao povo
seja dado por ordem do povo, em vez de pelo favor dos sena-
316
HISTóRIA DE ROMA
dores. Pede a Júpiter, excelso e boníssimo, e aos imortais, para
lhe dar, pelo sorteio, oportunidades iguais às de seu colega, se
lhe querem dar o mesmo valor, a mesma so~~ na ~ireção da
guerra. ~ . por certo, equitativo e um exemploAuttl e é u_nportante
para o conceito do povo romano que seus consules seJam capa-
zes, tanto um como outro, de bem conduzir a guerra da Etrúria.
Fábio, sem dirigir outra fala ao povo romano além de ler
às tribos, antes que entrassem no recinto :u para o voto, a ca~ta
enviada da Etrúria pelo pretor Ápio Cláudio, deixou o conúcto.
E não foi menor a concordância do povo que a do Senado para
atribuir, sem sorteio, a província da Etrúria a Fábio.
Fábio chega, com novo exército, 25 . Correram então para
ao acampamento do pretor Apio, o cônsul quase todos os
que volta a Roma. mobilizáveis; cada um
por seu lado dava um
nome, tão grande era o desejo de servir sob as ord~n~ de tal
chefe. Cercado dessa multidão, Fábio diz: " Quatro mtl mfantes,
seiscentos cavaleiros, é tudo o que tenho a intenção de aHstar;
aqueles de vós que tiverem dado os nomes hoje ou amanhã,
eu os levarei comigo. Preocupo-me mais em trazer-vos de volta
todos ricos do que em fazer campanha com muitos soldados".
Partindo com esse exército fácil de manejar e que alimen-
tava mais confiança e esperança porque seu chefe não tinha
exigido tropas em número excessivo, Fábio se dirige para a
cidade de Aarna, de onde os inimigos não estavam longe, e para
0
acampamento do pretor Ápio. Algumas milhas antes de chegar
Já, soldados que, protegidos por uma patrulha, iam ao bosque,
0
encontram · vendo os lictores que marchavam à frente, sabendo
que esse cô~sul era Fábio, contentes, cheios de alegria, agrade-
cem a Deus e ao povo romano por lhes terem mandado seme-
lhante general. Em seguida, como cercassem ~ _cônsul e o sau-
dassem , Fábio lhes pergunta para onde se dmgem; e q~~ndo
lhe respondem que vão ao mato buscar lenha, ele retruca: _Oue
me dizeis, não tendes acampamento fortificado?" Eles exphcam
31 o cr. supra, nota 22 .
317
 TITO LfVIO
que era bem-fortificado por uma paliçada dupla e um fosso,
mas que entretanto estavam muito receosos. Então, Fábio lhes
diz: " Tendes bastante lenha; voltai e arrancai vossas paliçadas".
Eles voltam ao acampamento e lá se apressam a arrancar a pali-
çada, amedrontando os soldados que ficaram no acampamento
e o próprio Ápio; então, cada um por seu lado, põem-se a dizer
aos outros que agem por ordem do cônsul Fábio. No dia seguinte
levantaram acampamento e o pretor Ápio foi mandado de volta
a Roma . Depois, os romanos não tiveram acampamento fixo
em nenhuma parte. Fábio dizia que não era conveniente que
o exército estacionasse num lugar: as marchas e os deslocamentos
o tornavam mais móvel e mais eficiente. Mas faziam-se somente
as marchas que o inverno permitia. o qual ainda não tinha termi-
nado.
No começo da primavera, deixando a segunda legião em
Clúsio, antigamente chamada Camars, e confiando o comando
do acampamento ao propretor Lúcio Cipião, Fábio voltou a
Roma para lá discutir a respeito da guerra, seja por sua própria
iniciativa, porque tinha em vista uma guerra de maior amplitude
do que as notícias correntes o tinham levado a crer, seja chamado
por um senadoconsulto, porque as duas hipóteses são levantadas.
Foi o pretor Ápio Cláudio que, segundo alguns, fez com que
o chamassem, exagerando no Senado e perante o povo, como
o tinha feito continuamente com suas cartas, o que se tinha a
temer da guerra da Etrúria: um só general, um só exército não
seriam suficientes, dizia ele, contra quatro povos; corria-se o
perigo - quer se unam para se abater como um só homem ,
quer se separem para levar a guerra em direção oposta - de
que um só homem não pudesse fazer frente a tudo. Tinha
deixado lá, dizia, duas legiões romanas e só tinham chegado
cinco mil homens, infantes e cavaleiros, com Fábio. Era de
opinião portanto que o cônsul Públio Décio fosse o mais cedo
possível para a Etrúria juntar-se a seu colega; que se desse a
Lúcio Volúmnio a província do Sâmnio; ou, se o cônsul prefe-
risse ir para sua província, que Volúmnio fosse para a Etrúria
juntar-se ao outro cônsul com um exército consular normal.
3 18
HISTóRIA DE ROMA
Embora esse discurso do pretor abalasse muita gente, Públio
Décio foi de parecer, dizem, que em todos os pontos se deixasse
inteira liberdade a Quinto Fábio, até que este pudesse, sem
prejuízo para o Estado, vir pessoalmente a Roma ou enviasse
um de seus legados, de quem o Senado receberia informações
sobre a importância da guerra da Etrúria, a das tropas que eram
necessárias para conduzi-la e o número de generais necessário .
Fábio torna a partir para a Etrúria 26 . Em Roma, Fábio,
com seu coléga Décio. Uma legião no Senado como peran-
romana é destruída em Clúsio. te o povo, aonde foi le-
vado, discorreu em ter-
mos moderados, de maneira a não parecer exagerar nem minorar
a guerra com referência aos boatos que corriam sobre ela e,
levando consigo outro general, pareceu antes ceder ao terror
das pessoas do que evitar um perigo que ameaçasse a ele mesmo
ou ao Estado. Mas, diz ele, se lhe dessem alguém para ajudá-lo
nessa guerra e compartilhar seu comando, como podia esquecer
o cônsul Públio Décio, que já conhecia bem por tê-lo tido muitas
vezes como colega? Não havia outro que preferisse ver juntar-se
a ele; com Públio Décio, teria tropas suficientes, nunca inimigos
demais; mas, se seu colega preferisse outra coisa, pedia que pelo
menos lhe enviassem Lúcio Volúmnio.
O Senado. o povo e seu próprio colega deixaram que Fábio
decidisse sobre todas essas questões; e tendo Públio Décio se
mostrado pronto a partir seja para o Sâmnio, seja para a Etrúria,
a alegria e as felicitações foram tão grandes que já se prenun-
ciava a vitória e parecia se ter concedido aos cônsules o triunfo
e não o encargo de uma guerra.
Vejo em alguns autores que, assim que assumiram o cargo,
os cônsules Fábio e Décio partiram para a Etrúria, sem uma
palavra sobre o sorteio das províncias e os debates que já narrei.
Outros, ao contrário, não se contentaram em expor aqueles
debates entre os dois colegas; acrescentaram acusações de Ápio,
perante o povo, contra Fábio ausente e manifestações obstinadas
desse pretor contra o cônsul presente e uma nova luta entre os
dois colegas. desejando Décio que cada um conservasse a guarda
319
 TITO LIVIO
de sua província. Começa a haver acordo a partir do momento
em que os dois cônsules seguiram para a guerra.
Mas antes que chegassem à Etrúria, os gauleses senones
multidão imensa, vieram a Clúsio atacar a legião romana e se~
acampamen~o. ~ipião, que comandava esse acampamento, achan-
do que dev1a aJudar, pela vantagem da posição, seus soldados
pouco numerosos, mandou seu exército subir uma colina situada
entre a cidade e o acampamento. Entretanto, como acontece
nu~a súbita manobra, não precedeu sua marcha para essa ele-
vaçao de um reconhecimento suficiente, elevação essa que os
tn1m1gos tinham ocupado, galgando-a por outro lado. Assim
? .le~ião foi desbaratada por trás e cercada, pressionando-a o
Jmm•go por todos os lados. A legião foi destruída de maneira
q.ue não ficou um homem para dar notícia, dizem alguns histo-
n~dores; e os cônsules, que já não estavam longe de Clúsio,
nao souberam da derrota antes de terem diante dos olhos cava-
leiros gauleses carregando cabeças suspensas ao peitoral de seus
c~valos ou pregadas na ponta de suas lanças, demonstrando seu
tnunfo por um canto a seu modo.
Há escritores que dizem que esses adversários foram um-
bros, não gauleses; que não se sofreu derrota tão grande assim·
que a forrageadores cercados com o legado Lúcio Mânlio Tor~
quato o propretor Cipião veio do acampamento trazer socorro ·
que os umbros, vencedores, recomeçando o combate fora~
vencidos e que lhes foram tomados prisioneiros e butlm.
t mais verossímil que se tenha sofrido essa derrota às
mãos dos gauleses do que dos umbros, porque com freqüência
~m outras vezes, mas sobretudo naquele ano, o terror de uma
mvasão preocupou a cidade mais do que tudo. Assim, além das
quatro legiões com que os dois cônsules tinham partido para a
guerra, mil cavaleiros campanianos de escol enviados para essa
gu~rra e um exército de aliados e de homens de origem latina
ma1s numeroso do que o exército romano, dois outros exércitos
foram, não distante de Roma, colocados contra a Etrúria um
no território de Falisco, outro no do Vaticano. Cneu Fúl~io e
Lú~io Postúmio Megelo, ambos propretores, receberam ordem
de mstalar naqueles dois pontos acampamentos fixos.
320
HISTORIA DE ROMA
Fábio e Décio encontram o 27 . Os gauleses, ten·
exército coligado dos samnitas, do atravessado os Ape-
etruscos, gauleses e umbros perto ninos, encontraram o
de Santino. inimigo no território do
Sentino. Lá, a cerca de
quatro milhas distante deles, instalaram seu acampamento. Os
inimigos deliberaram em seguida e concordaram em não se
misturar todos num só acampamento e não descer ao combate
todos juntos: aos samnitas juntaram-se os gauleses; aos etruscos,
os úmbrios. Marcou-se o dia da batalha; os samnitas e os gauleses
foram encarregados de iniciá-la; durante a luta, os etruscos e os
umbros deviam atacar o acampamento romano.
Esses planos foram perturbados por três desertores de
Clúsio, os quais, à noite, às escondidas, passaram para o cônsul
Fábio e, após terem revelado o plano do inimigo, foram recam-
biados, com recompensas, para espionar qualquer nova decisão
e relatá-la imediatamente. Os cônsules escrevem a Fúlvio que
deixe o território Falisco, a Postúmio que deixe o do Vaticano,
que tragam seus exércitos a Clúsio e devastem com a maior
violência as terras inimigas.
A notícia dessa devastação obrigou os etruscos a partir do
Sentino para proteger seu país. Os cônsules procuraram então
pressionar o inimigo para o combate em sua ausência. Durante
dois dias o provocaram para a luta; durante dois dias nada se,
fez digno de nota: alguns homens tombaram de um e outro·
lado e os ânimos foram excitados mais para travar uma batalhlJ,
regular do que uma Juta geral e decisiva. No terceiro dia, enfim ,
todas as tropas desceram à planície.
Enquanto, formados para a batalha, os exércitos permane-
ciam imóveis, uma corça, que descia das montanhas fugindo
de um lobo, correu através dos campos entre os dois exércitos.
Em seguida, voltando-se os animais em sentido oposto, a corça
dirigiu sua corrida para os gauleses e o lobo, para os romanos.
Ao lobo, as fileiras deram passagem; a corça foi morta pelos
gauleses. Nas primeiras fileiras, um soldado romano diz então:
" A fuga e o massacre voltam-se para aquele lado, onde vedes
estirado o animal consagrado a Diana; de nosso lado, o lobo
321
..
TITO LlVIO
de Marte, vencedor, sem dano e sem ferimento, nos lembrou
nossa origem que remonta a Marte e ao nosso fundador 3!".
Na ala direita ficavam os gauleses, na ala esquerda os
samnitas. Contra os samnitas, Quinto Fábio colocou a primeira
e a terceira legiões, formando a ala direita; contra os gau leses,
para formar a ala esquerda, Décio dispôs a quinta e a sexta
legiões; a segunda e a quarta, com o procônsul Lúcio Volúmnio,
guerreavam no Sâmnio.
Ao primei ro choque, as forças se mostraram tão iguais
que, se os etruscos e os umbros tivessem estado presentes, ou
em linha, ou no acampamento, para qualquer lado que fossem
levados os romanos teriam de aceitar a derrota .
Trava-se batalha. A ala comandada por 28. Mas, embora
Décio foge diante dos gauleses e Marte e a sorte da
o cônsul se sacrifica pelo exército. guerra ainda fos-
sem comuns aos
dois partidos e não se tivesse decidjdo de que lado estaria a
vitória, o combate não era igual na ala direita e na ala esquerda.
Os romanos de Fábio se defendiam mais do que atacavam
e procurava-se prolongar a luta o mais possível , estando o
general persuadido de que os samnitas eram, como os gau leses.
impetuosos no primeiro impulso; que bastava então resistir-lhes:
que, prolonga ndo-se a luta, o ardor dos samnitas se enfraque-
ceria pouco a pouco; quanto aos gauleses, eram seus próprios
corpos inteiramente incapazes de suportar a fadiga e o calor,
que se derretiam em água : no começo dos comba tes, eram mais
que homens; no fim , menos que mulheres. Assim, guardava, para
o momento em que esses inimigos geralmente se deixavam vencer,
as forças de seus soldados tão intactas quanto possível.
Décio, mais fogoso por causa da idade e da violência de
suas pai xões, empregou todas as forças que tinha desde o começo
da Juta. Achando muito lento o combate da infantaria impele a
cavalaria ao ataque; ele mesmo. no meio do esquadrão mais
32 . Texto muito interessante para mostrar o respeito dos soldados
roma nos pelo lobo, a nimal consagrado a Marte, senão o próprio Marte.
322
HISTOR I A DE ROMA
corajoso, pede àquela juventude de elite que carregue sobre o
inimigo com ele; terão, diz, dupl a glória, se a ala esquerda, e
sua cavalaria, derem o toque da vitória. Por duas vezes fazem
a cavalaria gaulesa virar as costas; na segunda, levados longe
demais e travando a luta bem no meio dos esquadrões inimigos,
um combate de novo tipo os assusta. De pé em seus carros de
guerra e em carroças, o inimigo, armado, chega com grande
ruído de cavalos e de rodas e assusta os cavalos dos romanos
que não estavam habituados àquela algazarra. Assim, um medo
raiando pela loucura dispersa aquela cavalaria vitoriosa; cavalos
e homens, arremessando-se impetuosamente, caem por terra nessa
fuga irrefletida; atrapalham mesmo os porta-estandartes das
legiões e numerosos são os infantes das primei ras fi las esmagados
pelo ímpeto dos cavalos e dos carros arrastados através do exér-
cito. Por fim, as linhas gaulesas, seguindo o movimento desde
que viram seus inimigos assustado , não lhes deram tempo de
respirar e se recompor.
Décio perguntava em altos brados aos soldados para onde
fugiam, que esperança tinham na fuga ; erguia·se diante dos que
recuavam, chamava de volta os que se dispersavam; depois, como
nenhuma força fosse ca paz de segurar aq ueles homens tomados
de terror, evoca pelo nome seu pai Públio Décio: " Por que
retardaria mais o destino que é o de minha família? Foi dado
a nossa estirpe que fôssemos vítimas expiatórias para desviar
os perigos do Estado; vou imolar comigo as legiões inimigas à
Terra e aos deuses manes".
Tendo assim falado , ordenou ao pontífice Marco Lívio, ao
qual rinha proibido que c afa tasse dele, que lhe ditasse as
palavras pelas qua i se consagraria a si mesmo c às legiões
inim igas pelo exército do povo romano dos quirites. Depois ,
consagrado pelas mesmas preces c na mesma ati tude que seu
pai Públio Décio, quando, à margem du Veséris. durante a
guerra latina, se deixou sacrifica r a~; depois de ter acrescen tado
às preces solenes a afi rmação de que levava consigo o terror
e a fuga. a carnificina c o sangue. as cóleras dos deu c celestes
;; C'f. Tito I ivio. 111. <l.
 TITO LCVIO
HISTORIA DE ROMA
e infernais; de que ia Jan ar . -
dartes, às lanças e às a ç d rmprdecaç~e~ ~unestas aos estan- feitos da cavalaria que conduzissem, por um movimento envol-
rma uras os mrmrgo
mesmo local veria sua perdiçã d s e que aquele vente, suas tropas para os flancos dos samnitas, a fim de lançar
toca seu cavalo para o pontoo eema ~: gaul~s~s e dos samnitas, uma carga do lado oposto, dado o sinal, com a maior impetuo-
são mais compactas e oferece d qà as frl~a~as. dos gauleses sidade, ordenou aos seus que avançassem lentamente e abalassem
' n o-se s armas rmmrgas, é morto. o inimigo.
Vitória dos romanos. Vendo que este não resistia, que certamente estava fatigado ,
29 . Daí em diante, naquela batalha Fábio, reunindo todas as reservas que tinha guardado para esse
mal se Ad •
forças humanas Os romanos d po e reconhecer a ação das momento, impeliu suas legiões ao ataque e ao mesmo tempo deu
mente é motivo . de terror de;" per end~ seu chefe, o que geral- aos cavaleiros o sinal de carregar. Os samnitas não agüentaram
um combate inteiramente' nov~m~e na fuga e resolvem começar o choque e, ultrapassando o alinhamento dos gauleses e aban-
que cerca o cadáver do cô .I s gau eses, sobretudo o grupo donando seus aliados na batalha, foram pa ra seu acampamento
. . nsu como loucos -
•nutllmente arremessar dardos · ; , . ' nao cessam de em fuga desordenada; os gauleses, formando a " tartaruga" , cer-
nem em bater-se nem em f . ' guns, parahsados, não pensam rados, permaneciam imóveis. Então Fábio, tendo sabido da morte
a quem Décio deixou se uglr.r. Do outro lado, o pontffice Lívio de seu colega, ordenou ao corpo de cavalaria campaniana -
us rctores e deu 0 d d . '
lugar de pretor, grita que os rom - r em e assumrr o cerca de quinhentos cavaleiros - que deixasse a frente e, num
quites com os deuses em v· tud ;nos sao vencedores, estando movimento envolvente, atacasse a retaguarda das linhas gau-
leses e samnitas pertence~r , ; a morte do cônsul; que gau-
lesas; aos " príncipes" da terceira legião, que os acompanhassem
que Décio chama seu exércit~ erra-~ãe e aos deuses manes;
e, onde vissem as tropas inimigas desorganizadas pelo ímpeto dos
7
as fúrias e o terror invade t dque e ~o:-sagrou consigo ; que
cavaleiros, que as perseguissem e, aproveitando-se de seu pavor,
E . m u o no •nrm•go
m segu•da chegam em auxflio a . as massacrassem.
meçavam o combate Lúcio C . esses homens, que reco-
reforços tirados da r~serva po~r~;~~:C~pião ~ Ca io-~árcio, com Fábio, depois de prometer a Júpiter Vencedor um templo
dos por este em socorro de c Qumto FabiO, c envia- e os despojos do inimigo, dirigiu-se para o acampamento dos
sorte de Públio Décio d seu colega._ Lá, tem-se notícia da samnitas, onde se precipitava apavorada a multidão destes. Junto
Estado. Assim, como ·o:o a~~~::s exortaçao. a tudo arriscar pelo do próprio entrincheiramento - não podendo as partes dar
passagem a tamanha multidão - os samnitas que impediam a
os escudos imbricados a suga fre I se mantinham cercados, com
fácil, os legados deram ord n e, e o corpo-a-corpo não parecia entrada de seus compatriotas tentaram o combate. Géüo Egnácio,
o chão entre as duas linhase~ para que os dardos que juncavam comandante-chefe dos samnitas, ali tombou morto. Em seguida
a " tartaruga " inimiga. Penetr~~~~n rec.olhidos c lançados contra os samnitas foram empurrados para dentro de suas defesas; sem
n_os próprios corpos, desfazem a cu~~~t~~ nosd escudlos .e. al?uns grande combate, o acampamento foi tomado e os gauleses, envol-
tao bem que muitos. mesmo sem s ?e
. rma a os rmmrgos, vidos pela retaguarda , foram cercados.
Tais foram as alternâncias d er f~r•dos. caJ ram de terror. Nesse dia foram massacrados vinte e cinco mil inimigos e
Na ala direita Fábio c~ sorr~ ~a ~ a c~querda dos romanos. aprisionados oito mil. Mas essa vitória custou sangue: o exército
temporizado e d . ' d . mo OI dJto, lmha a princípio con- de Públio Décio perdeu sete mil , o de Fábio, mil e setecentos.
erxa o o combat
nem os gritos dos inimigos e a rr~slar-se. De pois, quando Depois de mandar buscar o cadáver de seu colega, Fábio amon-
de arremesso pareceram ter . nem seu f rmpelo · ne m suas .
a rmas toou os restos mortais dos inimigos e os queimou em homenagem
a mesma orça, lendo dito aos prc- a Júpiter Vencedor. O corpo do cônsul. sepultado sob montes
324
325
 TITO LrV JO
de g~uleses,. não pôde ser encontrado naquele dia : acharam-no
no dta segumte e transportaram-no em meio às lágrimas dos
soldados. Interrompendo todas as outras providências Fábio
celebrou o~ funerais de seu colega com todas as honras e' elogio
que merecta.
Outras vitórias na 30 . Também na Et rúria, naquel es
Etrúria e no Sâmnio. dias, o propretor Cneu Fúlvio con-
duziu as operações a contento. Além
da grande desgraça infligida ao inimigo pela devastação de suas
terra~, lá .se com~ateu de maneira brilhante: foram mortos ma is
de Ires mll perusmos e clusinos e tomados cerca de vinte e tan-
dar.tes. O ~xército samnita, fugindo através do te rritório dos
peiJgno~, fot cercado por estes: dos cinco mil homens que con-
tava, mil foram mortos.
. G~ande foi a glória dessa batalha em que se combateu no
terntóno de Sentino, mesmo pa ra quem se atém à verdade
~':"a~ alguns historiadores, com seus exageros, ultrapassam ~
ltmttes do que se pode crer, at ribuindo ao exército inimigo
lr:zentos e tr!n.ta mil infantes, quarenta e seis mil cavaleiros e
mil carros, at mclu fdos sem dúvida os úmbrios e os tosca nos
que, segundo eles, também tomaram parte na batalha. Para au~
~en_rar .também as forças romanas, juntam o procônsul Lúcio
olumn~o, como general, aos cônsules e seu exército às legiões
dos cônsules. Mas, segundo a maioria dos anais, a vitória per-
tence aos dois cônsules; durante esse tempo Volúmnio conduz
as operações no Sâmnio e, depois de repelir' o exército samnita
P~ ~a além do monte Tiferno 34 , sem se deixa r a temorizar pelas
dtftculd~des d~ ~erren?, derrota-o e o põe em fuga.
, ?umto Fab10, detxa ndo o exército de Décio de guarda à
Etruna, levou suas próprias legiões para Roma e ali triunfou
dos .gauleses, dos etruscos e dos sa mnitas. O s soldados segu iam
o. tn~nfador. ~eus c~n~os sem arte celebraram, tanto quanto a
Vttóna de Oumto Fabto, a morte magnífica de Públio Déc io,
34 · O monte T iferno. imed ia tamente ao sul de Boviano. fica no
centro do Sâmnio.
326
HI STO RIA DE ROMA
e lembraram a memória de seu pai, colocando-a, quanto ao:.
resultados públicos e privados de sua conduta, tão alto quanto
a glória do filho . Em relação ao butim, deram-se a cada soldado
oitenta e oito asses, mantos e túnicas, recompensas que, naquela
época, não eram absolutamente de desprezar para a tropa .
Novas vitórias na Etrúria e no 3 1 . Apesar das operações
Sâmnio. Prodígios. Construção assim conduzidas, ainda
de um templo de Vênus. não reinava a paz nem
entre os samnitas nem na
Etrúria; porque de um lado, por instigação dos perusinos, quan-
do o cônsul levou seu exército, houve revolta; por outro lado
os samnitas irromperam para saquear os territórios de Vécia e
de Fórmias, e ainda o de Esérnia e as terras ribeirinhas do Vul-
turno ss. Contra eles se enviou o pretor Ápio Cláudio com o
exército de Décio. Fábio, na Etrúria de novo revoltada, mas-
sacrou quatro mil e quinhentos perusinos, e aprisionou cerca
0 de mil setecentos e quarenta, que foram resgatados ao preço de
trezentos e dez asses cada um ; todo o resto do butim foi entregue
aos soldados. As legiões samnitas, perseguidas umas pelo pretor
Apio Cláudio, outras pelo procônsul Lúcio Volúmnio, reuniram-
se no território de EsteJa 30 • Lá tomam posição todas as legiões
samnitas e Ápio e Volúmnio também reúnem seus acampa-
mentos. Luta-se com o maior furor , de um lado sob o impulso
da cólera contra um adversário tantas vezes revoltado, do outro
empenhando-se numa última esperança. Foram massacrados de-
zesseis mil e trezentos samnitas e aprisionados dois mil e sete-
centos; no exército romano tombaram dois mil e setecentos
homens.
O ano foi feliz para a guerra, mas difícil em conseqüência
de uma epidemia e agitado po r prodígios. Com efeito, informou-
se que em muitos lugares havia chovido terra e que, no exército
35 . Vécia é importante ponto de passagem para ir da montanha à
foz do Uris; Fórmias fica do lado oeste dessa foz. Esérnia fica em pleno
Sâmnio, nas nascentes do Vulturno.
36 A noroeste da Campânia. perto da fronteira samnita.
327

TITO LIVIO
de Apio Cláudio, grande número de homens tinham sido atin-
gidos pelo raio. Por causa disso, consu ltaram-se os livros sibi-
linos. Naquele ano Quinto Fábio Gurges, filho do cônsul, mul-
tou algumas matronas que tinham sido acusadas perante o povo
e condenadas e, com o dinheiro da multa, mandou constru ir o
templo de Vênus que fica perto do Circo.
Tenho ainda o que contar das guerras samnitas, cuja nar-
rativa, ininterruptamente continuada, já nos levou a meu quarto
volume e ao quadragésimo ano de sua duração, desde o consu-
lado de Marco Valéria e de Auto Cornélio, os primeiros que
levaram as armas ao Sãmnio. E, para não lembrar agora tantos
anos de derrotas sofridas pelos dois povos e sofrimentos que
não conseguiram, entretanto, vencer corações empedernidos no
último ano de que falamos os samnitas, no território de Sen;ino,
nos Pelignos, em Tiferno, nas planícies de Esteta, com suas
legiões ou unidos a tropas estrangeiras, tinham sido dizimados
por quatro exércitos, quatro generais romanos; tinham perdido
o seu chefe mais famoso ; seus aliados etruscos, úmbrios e gau-
leses estavam na mesma situação que eles; nem suas forças,
nem forças estrangeiras lhes permitiam mais manter-se de pé:
tanta defesa, mesmo malsucedida, de sua liberdade estava longe
de cansá-los, de tal maneira preferiam ser vencidos a não tentar
a vitória. A que homem, pois, enfadaria, como escritor ou como
leitor, a extensão dessas guerras, que não cansaram os que as
fizeram ?
Os samnitas atacam o acampamento 32. Lúcio Postúmio
do cônsul Atílio no Simnio. Megelo e Marco Atí-
lio Régulo sucede-
ram a Quinto Fábio e Públio Décio como cônsules. Um decreto
deu a ambos a província do Sãmnio, diante do boato que corria
de que o inimigo tinha mobilizado três exércitos, um dos quais
voltava à Etrúria, o segundo à devastação da Campãnia e o
terceiro se preparava para a defesa do território.
Uma doença reteve Postúmio em Roma; Atílio partiu logo,
para esmagar os inimigos no Sãmnio - assim tinha decidido
328
HISTúRIA DE ROMA
0
Senado - antes que saíssem de lá para penetrar nas regiões
pacíficas e em terras dos aliados do povo. romano. Tendo se
aproximado os dois acampamentos, o comettmento que o ro~a­
no, tantas vezes vencedor, dificilmente teria ousado, os sammtas
ousaram tamanha é a temeridade que dá o extremo desespero:
atacara~ o acampamento romano e embora esse golpe de audácia
não fosse bem-sucedido, não foi inteiramente inútil. Havia ne·
voeiro muito espesso e que persistiu até uma hora avançada, o
qual tornou a claridade do dia inútil, impedindo não só de ver
ao longe, além das defesas, mas mesmo de ver as pessoas q_ue
se encontravam. Aproveitando-se, de certa forma, do nevoetro
como cobertura para sua expedição oculta, os samnitas, mal
rompido o dia e ainda encoberto pela bruma, chegam ao desta-
camento romano que vigiava negligentemente uma porta.
Tomados de improviso, seus homens não tiveram nem cora-
gem nem força suficiente para resistir. O ataque foi feito pela
retaguarda do acampamento, pela porta decumana: ~a mes~a
foi tomado 0 questório e ali morto 37 o questor Lucto Opím10
Pansa. Então, foi dado o alarme.
33 . O cônsul, acorda-
O cônsul Lúcio Postúmio junta-se
do pelo tumulto, orde·
a seu colega Marco Atilio Régulo.
na a duas coortes de
aliados, uma de tucanos, a outra de su~ssanos, que s: encon·
travam por perto, que protejam o pretóno 38; em segutda con·
37 A porta decumana fica numa das extremidades do Decumano
Máximo. que atravessa o acampamento, do lado o~ost? h port~ preto-
riana q~e fica de frente para o inimigo. O questóno, mtendênc•a e te-
sour~ do exército, fica nas proximidades dessa porta, na retaguarda do
acampamento. .
38 . o pretório fica no cruzamento do Decumano ~áJumo com: o
Cardo Máximo ou Via Principalia, que lhe era perpendicular. Mas, ao
contrário do Oecumano, o Cardo não divide o ac.a mpamento em ~uas
partes iguais· fica mais perto da parte decumana que da pretonana.
Assim pretÓrio não está longe do questório. Portanto, é natural que o
0
cônsul chame tropas aliadas; eram elas que, em geral, acampavam perto
da porta decumana.
329
 TITO LIVIO
duz os manípulos das legiões à via principal 39 • Logo depois de
armados, os soldados ocupam suas fileiras e reconhecem os ad-
versários mais pelos gritos que pela vista; não se pode calcular
seu número. A princípio recuam, incertos quanto a sua situação,
e deixam o inimigo penetrar até o meio do acampamento. Em
seguida, aos gritos do cônsul, que lhes perguntava se queriam
deixar-se expulsar de suas defesas para em seguida atacar o
próprio acampamento, soltam seu grito de guerra e a princípio,
num esforço comum, resistem, depois avançam e atacam os
inimigos. Estes, depois do choque, são tomados de terror seme-
lhante ao que os próprios romanos tinham inicialmente sentido
e lançados fora da porta e do entrincheiramento. Não ousando
continuar a persegui-los, porque a luz turva daquele dia os
fazia temer uma emboscada nas imediações, satisfeitos de ter
livrado o acampamento, retiram-se para suas fortificações, tendo
matado cerca de trezentos inimigos. Entre os romanos, inclusive
o posto avançado, as sentinelas e os soldados surpreendidos em
volta do questório, perderam-se cerca de setecentos e trinta
homens.
Os samnitas ficaram animados com esse golpe de audácia,
que não tinha dado mau resultado. Não só não deixavam os
romanos avançar seu acampamento como também não permitiam
que forrageasem em suas terras; era à retaguarda, no território
de Sora, que iam os forrageadores.
A notícia desse fato, mais alarmante ainda do que a reali-
dade, levada a Roma, obrigou o cônsul Lúcio Postúmio, recen-
temente restabelecido, a deixar a cidade. Antes de sair, entre-
tanto, depois de ordenar por um édito a seus soldados que se
reunissem em Sora, dedicou pessoalmente o templo da Vitória 40 ,
que, como edil curul, tinha mandado construir com o dinheiro
39 . As legiões acampam do lado da Via principal oposto àquele
onde se acham o questório c a porta decumana. A Via principal serve
aqui de praça de armas ou de baluarte: as legiões ali formam para con·
Ira-atacar.
40 . A Vitória já tinha uma estátua no fórum . O templo que Lúcio
Postúmio lhe consagrou fi cava no Palatino.
330
HISTóRIA DE ROMA
das multas. Partindo, então, com destino ao exército, foi de
Sora, no Sârnnio, para o acampamento d~ ~eu col_ega. D~ lá,
quando os samnitas, duvidando poder re:'stlr a d01s. exércttos,
se retiraram, os cônsules, separando-se, vao, em senudos opos-
tos, devastar os campos e atacar as cidades.
Postúmio toma Miliônia, depois 34 . Postúmio, depois de
entra em Feritro, abandonada tentar um ataque a Mi-
por seus habitantes. liônia por viva força,
vendo o pouco resultado
desse método, usou os trabalhos de sítio e, finalmente, ~~
víneas 41 encostadas às muralhas, tomou-a. Então, estando JS
conquistada a cidade, da quarta hora até a oitava, o~ quase,
em todos os quarteirões combateu-se com resultados mcertos;
finalmente os romanos se tornam senhores da praça. Os sam-
nitas perderam três mil e duzentos mortos e quatro mil e sete-
centos prisioneiros, além do resto do butim. .
De lá, as legiões foram levadas para Fentro, de ~nde os
habitantes com todos os bens que podiam carregar, satram de
noite, em' silêncio, por uma porta posterior. O cônsul, desde
sua chegada, tinha disposto e formado suas tropas para avançar
sobre as muralhas, como se fosse ter a mesma luta q~:_ e~
Miliônia; depois, observando que a cidade estava num stlencto
deserto, não vendo nem homens nem armas nas torres e nas
muralhas, apesar da vontade dos soldados de lançar-se sobre
essas defesas abandonadas, detém-nos, com medo de meter-se
sem precaução em alguma armadilha; ordena a dois esquadrões
de aliados latinos que façam um reconhecimento a cavalo à volta
das muralhas. .
Os cavaleiros observam, do mesmo lado, uma porta, depOIS
outra, vizinha, escancaradas e, nos caminhos que _delas partem,
vestígios da fuga noturna dos inimigos. Em segutda, cavalgam
41 . As vlneas são estruturas leves de madeira em forma de cara·
manchão, cobertas de ramarias e couros frescos e m_ontadas sobre ro~a~.
São empurradas uma após outra para o ponto deseJado da muralha 1m·
miga de maneira a constituir um caminho coberto.
331
 TITO UVIO
lentamente por essas portas, vêem, de um lugar seguro, que
se pode, por ruas estreitas, atravessar livremente a cidade, e
re~atam ao_ côn~ul que esta foi abandonada; a solidão que ali
rema o evtdencJa, assim como os vestlgios de fuga recente os
objetos que juncam o chão, abandonados durante a noite, ~qui
e ali, pelos fugitivos em sua agitação. Informado disso, o cônsul
l~va, p~r um desvio, sua coluna para o lado da cidade que
t1_n~a ~tdo abordado pelos cavaleiros. Detendo-se a pequena
d1stanc1a da porta, manda que cinco cavaleiros entrem: depois
de terem avançado um pouco, três ficarão naquele ponto e, se
tudo parecer seguro, os outros dois lhe trarão o resultado do
reconhecimento. Quando estes, de volta, contaram que, tendo
avançado até um ponto de onde viam à sua volta todos os
quarteirões, não tinham percebido, de um lado a outro, mais
que silêncio e solidão, o cônsul imediatamente conduziu para
a cidade coortes sem bagagens, ordenando aos soldados que
fortificassem seu acampamento.
Os soldados que entraram na cidade, tendo arrombado
algumas portas, encontraram pequeno número de pessoas invá-
lidas pela idade e doentes e, abandonados, os objetos difíceis
de carregar. Saquearam-nos e souberam dos prisioneiros que,
de comum acordo, algumas cidades vizinhas tinham decidido a
fuga de seus habitantes; seus concidadãos tinham partido na
véspera; acreditavam que, em outras cidades, os romanos en-
contrariam o mesmo abandono. A confiança em suas palavras
foi justificada: o cônsul apoderou-se de praças desertas.
Marchando sobre Lucéria,
35 . Para o outro cônsul, Mar-
Atmo trava com os
co Atllio, a guerra estava longe
samnitas batalha indecisa.
de ser assim tão fácil. Como
levasse suas legiões para Lu-
42
céria , que os samnitas atacavam (tinha sido informado disso),
42 . lucéria é uma cidade da Apúlia onde os romanos talvez de-
poi~ de terem sido chamados por ela, instalaram em 314 u'ma colônia
muuas vez~s atacada . e ~elomada (cf. Tito Llvio, IX, 26) e que se tomou
uma das c1dades mars Importantes da região e o ponto de partida das
expedições romanas.
332
HISTORIA DE ROMA
encontrou o inimigo na fronteira do território da cidade. ~
cólera igualou as forças; o combate foi variável e incerto, ma1s
lamentável, entretanto, em seu resultado, para os romanos do
que para os inimigos; eles, que não tinham o hábito de ser
vencidos, sentiram, ao suspender o combate, mais do que durante
a própria luta, como, de seu lado, havia mais feridos e m~rtos.
Assim desceu sobre o acampamento um terror que, se tivesse
se ap;derado dos soldados no combate,_ teria ~~terminado uma
derrota memorável. A noite foi então mtranquila, achando os
soldados que os samnitas iam imediatamente invadir o acampa-
mento ou que ao romper do dia seria preciso lutar com os
vencedores.
Com perdas menos graves, a coragem não era maior entre
os inimigos. Assim que o dia nasce, desejam retirar-se sem. com-
bate. Para isso, porém, só havia um caminho e este pass~va
em frente aos romanos; seguindo-o, os samnitas deram a Im-
pressão de marchar diretamente em ataque ao acampamento
romano. O cônsul ordena a seus soldados que peguem as armas
e que o acompanhem para fora do entrincheiramento; dá as
ordens necessárias aos legados, aos tribunos e aos comandantes
dos aliados. Todos afirmam que, pessoalmente, farão tudo, mas
que a coragem dos soldados está abatida: durante t~da a noite,
velaram entre os feridos e as lamentações dos monbundos; se
0 inimigo tivesse marchado contra o acampamento antes do
romper do dia, o medo teria sido tão grande que o~ soldados
abandonariam os estandartes; agora, a vergonha os 1mpede de
fugir, mas, por outro lado, já se consideram vencidos.
Sabendo disso, o cônsul acha que ele mesmo deve ir aos
soldados e falar-lhes; e, à medida que chega a cada _grupo,
censura-lhes a hesitação em pegar as armas: por que, d1z-lhes,
demorar e tergiversar? O inimigo virá ao acampamento se
eles não se anteciparem e terão de combater por suas barracas
se não quiserem combater por seu entrincheiramento. Par~ ~u~m
se arma e luta, a vitória é incerta; mas quem espera o tmmtgo
sem equipamento e sem armas tem de esperar a morte ou a
escravidão. Diante dessas apóstrofes, dessas censuras, os sol-
dados respondiam que estavam esgotados pela batalha da vés-
333
 TITO UVJO
pera; que já não tinham força nem sangue, que os inimigos
pareciam mais numerosos do que no dia anterior.
Entretanto, a coluna samn ita se aproximava; e como, sendo
menor a distância, se via melhor, os soldados afirmam que os
samnitas carregam estacas e que, sem nenhuma dúvida, pre-
tendem investir o acampamento. Então o cônsul se põe a gritar
que, certamente, é uma ignomínja aceitar semelhante ultraje,
semelhante vergonha, do mais covarde dos inimigos. "Vamos
nos deixar sitiar em nosso acampamento, para aqui morrer de
fome vergonhosamente, em vez de morrer pelas armas, se neces-
sário, e corajosamente?" Que os deuses, acrescenta, façam ter-
minar bem esta luta; que cada soldado faça o que julga digno
de si; quanto ao cônsul Marco Atflio, vai, mesmo só, se ninguém
o acompanhar, marchar contra os inimigos, e prefere tombar
no meio dos estandartes samnitas a ver o acampamento romano
sitiado.
Essas palavras do cônsul foram aprovadas pelos legados,
pelos tribunos e também por todos os esquadrões de cavalaria
e pelos centuriões mais graduados. Então, vencidos pela ver-
gonha, os soldados, sem entusiasmo, saem do acampamento;
numa coluna extensa e descontínua, tristes, quase vencidos,
avançam contra o inimigo, cuja esperança e coragem já não
são seguras. t por esse motivo que, assim que são avistados
os estandartes romanos, da primeira fila dos samnitas até sua
retaguarda se transmite a notícia de que, como temiam, os
romanos saíram de seu acampamento para lhes barrar a estrada;
de que, do lugar onde estão, não têm outro caminho, mesmo
para fugir; de que naquele lugar terão de morrer ou, depois de
abater os inimigos, passar por cima de seus cadáveres para fugir.
Vitória dos romanos 36. Empilham a bagagem no chão
num segundo encontro. e, uma vez armados, vão, cada
um em seu lugar, formar em linha
de batalha. Havia apenas estreito intervalo entre as duas linhas
e estas permaneciam imóveis, aguardando ambas que o inimigo
fosse o primeiro a soltar seu grito e a atacar. Nem uns nem
334
HISTôRIA DE ROMA
outros sentem vontade de combater e teriam partido em direções
opostas, sem golpes e sem ferimentos, se não receassem que
aquele que cedesse fosse perseguido pelo outro. O combate -
entre homens que não o querem e tergiversam- começa frouxa-
mente, com um grito pouco firme e cuja força não é igual em
toda parte; ninguém dá um passo.
Então o cônsul romano, para animar a ação, manda que
alguns esquadrões saiam das fileiras; a maior parte dos c~va­
leiros cai do cavalo e isso causa certa desordem com os sammtas
correndo de suas linhas para matar os que tinham caído e os
romanos, para proteger seus concidadãos. Isso animou um pouco
0 combate; mas os que correram do lado dos samnitas tin~am
sido um pouco mais enérgicos e numerosos e os cavaletros
romanos, em desordem , pisavam seus próprios reforços com
as patas de seus cavalós assustados. .
A fuga que começou aí fez toda a linha romana v1rar as
costas· e os samnitas já se lançavam sobre os fugitivos quando
o côn;ul, antecedendo-se à entrada do acampamento, ali colocou
um destacamento de cavaleiros, ordenando que todo aquele que
se dirigisse para o entrincheiramento, fosse romano ou samnita,
fosse tratado como inimigo e, fazendo ele mesmo essas ameaças
aos seus, deteve-os quando se dirigiam em desordem para o
acampamento. " Aonde vais, soldado? - disse ele.~ Aqui ~am­
bém encontrarás armas e soldados e, enquanto o consul v1ver,
não entrarás no acampamento a não ser como vencedor; escolhe
pois combater teus concidadãos ou teus inimigos, como prefe-
rires".
Enquanto o cônsul fala assim, cavalei ros, com suas lanças
ameaçadoras, o cercam e ordenam aos infantes que voltem ao
combate. Não foi só a coragem que ajudou o cônsul, houve
também sorte: os samnitas não se mostraram muito insistentes
e houve tempo de fazer com que os estandartes dessem m_ei~
volta e que o exército voltasse, do acampamento, contra o Ini-
migo. Então os soldados romanos se exortam uns aos outros
a voltar ao combate; os centuriões, arrancando os estandartes
dos que os empunhavam , levam-nos à frente e mostram aos seus
335
 TITO LIVJO
que os inimigos vêm em pequeno número, mal-organizados e
em desordem. Entretanto, o cônsul, levantando as mãos para
o cé_u._em voz _forte, de ma~e~a a ser ouvido, promete um templo
a Juptter Estator se as ftletras romanas se detiverem em sua
fuga ~· recomeçando a luta, vencerem e desbaratarem as legiões
sammtas.
Todos, de todos os lados, se esforçam para dar novo impulso
ao combate - chefes, soldados, forças de infantaria e de cava-
laria. Mesmo o poder divino pareceu dar atenção ao nome
romano, de tal maneira foi fácil fazer a ação pender em seu
favor, repelir os inimigos do acampamento e logo depois levá-los
de volta ao lugar onde o combate se tinha iniciado. Lá, encon-
trando o montão de bagagens que haviam jogado ao chão, deti-
veram-se, embaraçados; em seguida, para que não lhes roubem
seus pertences, cercam-nos com um círculo de soldados. Mas
então os infantes romanos os atacam de frente, os cavaleiros
os envolvem pela retaguarda; assim cercados. são massacrados
ou feitos prisioneiros.
O número de prisioneiros foi de sete mil e oitocentos
obrigados a passar todos, nus, pelo jugo; quanto aos mortos:
p~lo. que se conta, houve cerca de quatro mil e oitocentos. A
vttóna romana não foi muito mais a legre: quando o cônsu l fez
a_ conta das baixas sofridas naqueles dois dias, verificou que
ttnha perdido sete mil e oitocentos homens.
Enquanto isso se passava na Apúlia, os samnitas que, com
seu segundo exército, se tinham esforçado em tomar Interamna
colônia romana da via Latina, não ocuparam a cidade; mas:
tendo devastado o campo, quando traziam, além do butim _
~stura de homens e de rebanhos - colonos que tinham apri-
sronado, deram de encontro com o cônsul vencedor que voltava
de Lucéria; não só perdem seu butim, como eles próprios, longa
coluna atravancada e em desordem, são massacrados. Tendo 0
cônsul convocado, por um édito, os proprietários a Interamna
para que identificassem e recuperassem seus bens, deixando 1á
seu_ ~xército,. partiu para Roma tendo em vista as eleições.
Sohcrtou o tnunfo, mas essa honra lhe foi recusada, tanto por
336
HISTORIA DF ROMA
ter perdido muitos milhares de soldados como por ter feito os
prisioneiros passar sob o jugo sem que o tivessem aceito por
um pacto.
~xito de Postúmio na Etrúria. Volsínios, 37. O outro côn-
Perúsia e Arrécio obtêm trégua por sul, Postúmio, co-
quarenta anos. Postúmio triunfa. mo lhe faltassem
no Sâmnio os re-
cursos para a guerra, levando seu exército para a Etrúria, a prin-
cípio tinha ali devastado o território dos volsinienses 43 ; depois,
trava batalha com os habitantes de Volsínios, que tinham saído
para proteger seus campos, não longe de suas muralhas: dois
mil e oitocen tos etruscos foram mortos; a proximidade de sua
cidade salvou os outros. Em seguida, o exército foi conduzido
para o território de Russelas; lá não foram devastados apenas
os campos, tomou-se a cidade de assalto; foram aprisionados
mais de dois mil homens e menos de dois mil foram mortos em
torno das muralhas.
A paz assim obtida foi , entretanto, mais brilhante e mais
importante do que tinha sido a guerra na Etrúria, naquele ano:
três cidades bem-fortificadas, capitais da Etrúria, Volsínios, Pe-
rúsia e Arrécio, pediram a paz; e tendo combinado com o cônsul
que fornecesse à tropa vestuário e trigo, para que lhes fosse
permi tido enviar parlamentares a Roma, obtiveram uma trégua
de quarenta anos. Uma contribuição de guerra de quinhentos
mil asses pagos à vista foi imposta a cada uma dessas cidades.
O cônsul solicitou, por esses feitos, o triunfo ao Senado,
mais para seguir o costume do que na esperança de obtê-lo.
Como visse os senadores. uns porque tinha saído de Roma muito
tarde, outros porque tinha se deslocado, sem ordem do Senado,
do Sâmnio para a Etrúria, alguns como inimigos pessoais, alguns
como amigos de seu colega, e, para consolar este com um insu-
43 . Volsfnios. ao norte do monte Cimfnio. perto de um lago sobre
o qual corriam notfcias maravilhosas, como sobre as florestas de carva-
lhos vizinhos, é a capital da confederação etrusco e um de seus centros
religiosos.
337
 TITO I fVIO
cesso de que o outro cônsul partilharia, inclinados a recusar-lhe
o triunfo, declarou: "Pais conscritos, não lembrarei vossa majes-
tade ao ponto de esquecer que sou cônsul. Em virtude desses
mesmos direitos que me dão os poderes graças aos quais con-
duzi a guerra, tendo lutado com êxito, subjugado o Sâmnio e
a Etrúria, conquistado a vitória e a paz, eu triunfarei".
Dito isso, saiu do Senado. Surgiu uma discussão entre os
tribunos da plebe; uns afirmavam que fariam oposição, para
que Postúmio não desse o exemplo sem precedente desse triunfo;
outros, que apoiariam o triunfador contra seus colegas. O caso
foi debatido perante o povo; e o cônsul, citado, depois de ter
dito que os cônsules Marco Horácio, Lúcio Valério e, recente-
mente, Caio Márcio Rútilo, pai do atual censor, tinham triun-
fa do não por decisão do Senado, mas por voto do povo, acres-
centou que ele também teria submetido a questão ao povo se
não soubesse que escravos dos nobres, dos tribunos da plebe
impediriam o voto da lei : para ele, a vontade e o favor do
povo unânime tinham e teriam sempre o valor de qualquer
decisão. No dia seguinte, com o apoio de três tribunos da plebe
e contra a oposição de sete tribunos e do Senado inteiro, triunfou ,
com o povo festejando nesse dia 44 .
Ainda com relação a esse ano, os fatos relatados não con-
cordam. Segundo Cláudio 45 , Postúmio, depois de ter tomado
algumas cidades no Sâmnio, foi vencido e posto em fuga na
Apúlia e, ferido, rechaçado com alguns homens para Lucéria;
foi Atilio quem conduziu as operações na Etrúria e quem triun-
48 47
fou • Fábio escreve que os dois cônsules fizeram a guerra
44 . ~ o primeiro exemplo de um general romano recebendo o
triunfo por sua própria autoridade, sem decisão do Senado nem mesmo
do povo. O apoio de alguns tribunos é·lhe necessário para contrabalançar
a oposição de seus colegas.
45 . O analista Cláudio Quadrigário.
46. Segundo os Fastos triunfais, os dois cônsules receberam o triun-
fo, Postúmio pela vitória sobre os samnitas e os etruscos Atílio no dia
seguinte, pela vitória sobre os volsinienses e os samnitas: o qud mostra
que a narrativa de Fábio estava correta.
47 . O analista Fábio Pictor.
338
HISTóRIA DE ROMA
no Sâmnio e em Lucéria, que o exército foi levado para a Etrúria
_ mas por qual cônsul? Não o diz - , que em Lucéria houve
de parte a parte muitos mortos e que nessa batalha se fez o
voto de erguer um templo a Júpiter Estátor, como Rômulo o
havia feito antes : mas depois constituíra somente um .lugar
consagrado, isto é, uma localização religiosamente d~termmad~
para construir o templo. Naquele ano somente se veto a cons.•-
derar como um dever religioso que o Senado man~asse constru~r
0 santuário, achando-se o Senado duplamente obngado por d01s
votos idênticos.
38 . Depois daquele
Os samnitas organizam novo exército
ano, houve um côn-
e fazem seus principais membros
sul, Lúcio Papírio
prestarem juramento terrível.
Cursor, notável tan-
to pela glória de seu pai como pe~a sua, u~a gu_erra ~uito
importante e uma vitória tal que nmgu!n;t ate :~tao obtt:era
tão grande sobre os samnitas, exceto Lucto Papmo, o pat. do
cônsul. E, fazendo o mesmo esforço e os mesmos preparah~os
que então, os samnitas tinham preparado a guerra com a mator
riqueza possível de armamentos e recorrido ao poder dos deuses,
tomando de algum modo, graças a um certo rito antigo de
juramento seus soldados iniciados. As tropas foram recrutadas
em todo ~ Sâmnio, de acordo com nova lei que dizia que todo
mobilizável que não se juntasse ao exército conforme a or~em
dos generais, ou que o abandonasse sem sua o~de~, t.ena ~
cabeça consagrada a Júpiter. Em seguida o exérctto tntetro fot
concentrado em Aquilônia 48. Cerca de quarenta mil. soldados,
0 que havia de mais robusto no Sâmnio, ali se r~untram. .
Mais ou menos no meio do acampamento, fot estabel~ctdo
com greda e painéis um recinto coberto com tela~ de lmho;
media no máximo duzentos pés em todos os sentidos .. Nesse
lugar, de acordo com o que se tinha lido num velho ltvro de
48 . Num desfiladeiro por onde passará a via Apia e que leva do
Sâmnio li Apúlia.
339
 TITO LfVIO
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linh_o , fez-se _um sacrifício, sendo o sacerdote um tal Cvio
Pác1o, homem 1doso, que afirmava copiar essa cerimônia das
velhas práti~as samnitas observadas por seus avós, quando ti-
nham pla~eJado secretamente tomar Cápua dos etruscos.
. . Tenrunado o sacrifício, o general mandou chamar por um
of1c1al ~s homens mais conhecidos graças a sua famnia ou a
seus fe1tos, os quais foram introduzidos um a um. Havia lá
além do _apara_t~ de uma cerimônia destinada a penetrar a alm;
de emoçao re1Jg10sa, naquele recinto inteiramente coberto alta-
res em toda a volta, vítimas degoladas e, em torno, cent~riões
c~m a espada desem?ainhada. ~azia-se o recém-chegado apro-
Xtmar-s~ d? altar ma1s como víttma do que como participante
no sacn_ffc1o, e el~ se obrigava, por juramento, a calar-se sobre
o qu~ v1sse e ouv1sse naquele lugar. Depois era forçado a pro-
nun_crar uma fórmula, verdadeiramente assustadora, de impre-
caço:s con~r~ ~ua cabeça, sua família e sua raça, para 0 caso
de nao_ se dmgrr o combate no posto determinado pelos generais
~e f~g1r da batalha ou ainda, vendo alguém fugir, não 0 mata~
tmedtatamente.
De início, alguns, recusando-se a prestar 0 juramento
foram de~olados em volta dos altares; e em seguida, seus cadá~
veres, esttrados no meio dos corpos das vítimas, ensinaram os
outros ch?mad?s a não recusar. Uma vez os mais importantes
dos samnttas. ltgados por essa imprecação, o general designou
dez ~eles; dts.seram-lhes que cada um escolhesse um homem ,
e _asstm por dtante, até que se atingisse o número de dezesseis
mil. Sua legião foi chamada legião de linho por causa da
cobertura do recinto em que a nobreza tinha sido juramentada.
A seus membros foram dadas armaduras vistosas e capacetes
com penachos a fim de que se destacassem dos demais comba-
tentes. O resto do exército contava pouco mais de vinte mil
homens, que nem ~or seu aspecto, nem por sua reputação militar,
nem p~r se~ eqUipamento eram inferiores à legião de linho.
Esse ÍOJ .o numero de homens- o que havia de mais forte entre
os samnttas- que se reuniram em Aquilônia.
49 . Um livro de linho é um livro escrito em tecido de linho.
340
HISTóRIA DE ROMA
Os cônsules Carvílio e Papírio 39 . Os cônsules partiram
chegam um a Comínio e o de Roma, primeiramente
outro a AquJlônia. Discul'SO Espírio Carvflio, a quem
de Papírio a seus soldados. um decreto tinha dado as
antigas legiões que Marco
Atílio, cônsul no ano precedente, havia deixado no território
de Interamna. Partindo com eles para o Sãmnio, enquanto os
inimigos, às voltas com suas superstições, mantinham suas reu-
niões secretas, tomou-lhes pela força a praça de Amiterno. Foram
mortos cerca de dois mil e oitocentos homens e aprisionados
quatro mil duzentos e setenta. Papírio, depois de ter recrutado,
de acordo com um decreto, novo exército, tomou a cidade de
Durônia. Prendeu um pouco menos de homens do que seu
colega e matou um pouco mais. Quanto ao butim, foi rico nos
dois casos.
De lá, tendo percorrido todo o Sãmnio e depois de devastar
principalmente o território de Atina, os cônsules chegam, Car-
vílio a Comínio e Papírio a Aquilônia, onde estava o grosso das
forças samnitas. Durante algum tempo, sem ab~nd~nar .as armas,
não se combateu ativamente. Passava-se os dtas mqutetando o
inimigo que permanecia tranqüilo; se ele resistia, retirando-se,
mais ameaçando do que travando a batalha. Qualquer en~ntro
que se fizesse, mesmo pequeno, seu resultado . era com.uOJcad~
diariamente ao outro acampamento romano, dtstante vmte mt-
lhas· as idéias do colega ausente intervinham na conduta de
toda's as questões; e Carvílio estava mais atento a Aquil~n!a,
onde os fatos tomavam aspecto mais decisivo, do que a Comtnto,
que ele sitiava. .
Lúcio Papírio, agora bem pronto, de toda mane~ra, a com-
bater informa a seu colega que tem a intenção de travar batalha
no dia seguinte, se os auspícios o permitirem; é precis~, diz,
que ele ataque Comínio com todas as ~uas for?as, a ftm de
que nenhuma trégua permita aos sam~ttas envtar re~orços a
Aquilônia. O correio teve um dia para tr; volto~ _à notte, rela-
tando a aprovação do outro cônsul a essas dectsoes . .
Após ter enviado o correio, Papírio tinha. reuntdo ime-
diatamente uma assembléia de soldados: nela dtscorreu muito
341

TITO UVIO
sob~e. a _nature~ da guerra em geral, muito sobre o aparato atual
do m~go, mats vão do que eficaz; não eram, disse, os penachos
que fenam; os escudos pintados e dourados podiam ser atra-
vessa~os pelo pilo romano; e a alvura das túnicas que brilhavam
.. linh as mtmtgas,
nas · · · quan d o se lutasse com o ferro, seria ensan-
~entada. E_mbora cobertas de ouro e prata 50, no passado as
~as sammtas tinham sido massacradas por seu pai e esse luxo
tinha dado mais despojos razoáveis aos inimigos vencedores do
que armas aos próprios samnitas. Talvez estivesse reservado
aos ho~ens de seu nome e de sua família opor-se como generais
a?s ma10res esforços dos samnitas e de Já trazer despojos sufi-
cten5t;ment_e vali~sos para enfeitar até mesmo as praças públi-
cas · Os tmortats protegiam os romanos por causa dos tratados
tantas vezes solicitados e tantas vezes rompidos por seus inimi-
gos: ness: mo~e.nto (se se pode formar alguma conjectura sobre
as mtençoes dtvmas) nunca os deuses tinham sido mais hostis
a qualquer exército do que a este que, envilecido num sacrifício
ímpio de sangue humano misturado com o dos animais, e dupla-
mente condenado à cólera divina (porque temia de um lado os
deuses testemunhas dos tratados concluídos com Roma do outro
a.s im~recações do juramento prestado contra esses 'tratados) ,
tmha JUrado a contragosto, detestava seu juramento e temia ao
mesmo tempo os deuses, seus concidadãos e os inimigos.
Preparativos de batalha 40 . Depois que o cônsul expôs
em Aquilônia. esses últimos pormenores, conhe-
cidos pelas revelações dos deser-
tores, a seus soldados já naturalmente irritados, cheios de espe-
rança nos deuses tanto quanto nos homens, estes pedem a ba-
talha num grito unânime; lamentam que tenha sido adiada
para o dia seguinte, não gostam desse atraso de um dia e uma
5.0 . Os samnitas eram grandes rapinantes, suas cidades eram cheias
de butJm acumulado.
. 51 . Os escudos dourados tomados aos samnitas pelo ditador Papf·
no _Cursor, ? pai do cônsul, foram distribuídos ao Fórum para ornamen-
taçao nos d1as de festa.
342
HISTORIA DE ROMA
noite. No terceiro dia , já lhe tendo sido dada a resposta de seu
52
colega, Papírio se levanta em silêncio e manda o pulário
tomar os auspícios.
Não havia nenhuma classe de homens, no acampamento,
que não estivesse contagiada da vontade de combater. Tanto os
mais altamente colocados, como os mais inferiores, igualmente
o desejavam; o general observava o ardor dos sol~ad~s, o sol-
dado o do generaL Esse entusiasmo de todos atmgtu até os
que se ocupavam dos ausp!cios: embora os f~~ngos não co~es­
sem o pulário ousou mentir sobre os ausptctos e comumcou
ao ~ônsul que os frangos mostravam um apetite muito favo-
ráveL O cônsul, contente, anuncia publicamente que os aus-
pícios são excelentes, que os deuses aprovam essa luta e faz
arvorar o sinal do combate. Quando já saía para colocar-se em
forma um desertor lhe revela que vinte coortes samnitas -
elas c~ntavam cerca de quatrocentos homens - tinham partido
para Comínio. A fim de que seu colega não o ignore, envia-lhe
imediatamente um correio e ele próprio ordena que se ataque
mais depressa. Tinha designado corpos de reserva, com a loca-
lização de cada um e os comandantes dessas reservas. Põ; .à
frente da ala direita Lúcio Volúmnio, da ala esquerda Lucto
Cipião, dos cavaleiros outros legados, Caio Ced~cio e Tito
Trebônio. A Espúrio Náucio, ordena que mande tt~ar a c~rga
das mulas e levá-las por um desvio para uma elevaçao próx~ma
a fim de que apareçam lá durante a ação , levantando o máx1mo
de poeira possíveL .
Enquanto se ocupava dessas provtdencta~,. surgtu uma d_ts-
A • • •
cussão entre os pulários a respeito dos ausptctos daquele dt~;
cavaleiros romanos a ouviram e achando que o assunto nao
devia ser ignorado, contaram a Espúrio Papíri~, filho de um
irmão do cônsul, que se discutia sobre os auspíctos. E~se moço,
nascido antes das doutrinas que desprezam os deuses, mformou-
se para não levar ao cônsul um assunto que não estivesse bem
es~larecido, e contou-lhe o fato. O cônsul lhe responde: " No
52 . O pulário é o sacerdote que, antes de uma batalha, examina os
frangos sagrados e verifica em especial se comem bem.
343
 TITO LIVIO
que te diz respeito, louvo-te por tua virtude e tua diligência!
Mas aquele que toma os auspícios, se anuncia algo de falso ,
a.rca pessoalmente co~ essa impiedade; quanto a mim, o ape-
tite dos frangos anunc1ado ao povo romano e ao exército é um
excelente auspício". Em seguida ordenou aos centuriões que
colocassem os pulários na primeira fila. Os samnitas também
mandam avançar suas insígnias; atrás vêm suas fileiras atavia-
das e armadas de tal maneira que, mesmo para seus inimigos,
era um espetáculo magnífico.
Antes que se erguesse o grito de guerra e os adversários
corresem um para o outro, um dardo lançado ao acaso atingiu
um dos pulários, que caiu na primeira fila . Quando o fato foi
comunicado ao cônsul, este disse: "Os deuses tomam parte no
combate, o culpado é punido". Enquanto dizia essas palavras,
um corvo, à sua frente, grasnou forte. Alegre com esse augúrio,
o cônsul, afirmando que nunca os deuses tinham interferido
mais claramente nos assuntos humanos , mandou que a trombeta
desse o sinal e se soltasse o grito de ataque.
Vitória dos romanos. 41 . Trava-se então combate terrível ,
mas com sentimentos bem diferentes
nos dois lados: os romanos são levados à luta pela cólera, pela
e~perança, pelo entusiasmo, ávidos do sangue inimigo; os sam-
mtas, na maior parte, são obrigados pela necessidade e pelos
escrúpulos religiosos a resistir - a contragosto - de prefe-
rência a atacar. Não teriam, já acostumados desde alguns anos
a ser vencidos, resistido ao primeiro brado, ao primeiro choque
dos romanos, se outro temor mais forte, alojado em seu coração,
não os tivesse impedido de fugir . Ainda tinham diante dos olhos
todo o aparato do sacrifício oculto, os sacerdotes armados, os
homens e os animais abatidos em confusão, os altares regados
de sangue lícito e de sangue proibido, as sinistras imprecações
que tinham proferido e a fórmula violenta ditada para a mal-
dição de sua famOia e de sua raça: esses eram os elos que
impediam sua fuga e os mantinham em seu posto, mais com
medo de seu concidadão que do inimigo. Os romanos os atacam
nas duas alas, no centro, massacram esses soldados, transidos
344
HISTORIA DE ROMA
de estupor pelo receio dos deuses e dos homens: resistem mole-
mente, como homens cuja fuga só é retardada pelo medo.
A carnificina já tinha chegado quase aos estandartes quan-
do pelo flanco, apareceu uma poeira semelhante à que é levan-
tada pela marcha de grande tropa ; era Esp~r~o Náucio (alguns
dizem Otávio Mácio) com suas coortes aux1ltares. Levantavam
mais poeira do que o fariam tropas em número igual: vinha:n
montados em mulas, com os palafreneiros arrastando no chao
ramos folhudos!
Armas e insígnias aparecem na primeira fila, numa l~z ~ur-
va ; atrás , uma poeira mais alta e mais espessa parece md1.car
uma retaguarda de cavalaria. Isso enganou não só os sammtas
como também os romanos; e o cônsul confirmou o engano,
gritando na primeira fila, de maneira que sua voz chegasse até
os inimigos, que Comínio tinha sido tomada, que seu colega
estava chegando: seus soldados deviam esforçar-se par~ vencer
antes que a glória daquele dia coubesse ao outro exérc1to. ~ o
que ele gritava do alto de seu cavalo. Em se~uida ordena ~o~
tribunos e aos centuriões que abram o cammho à cavalana.
ele mesmo tinha dito previamente a Trebônio e a Cedício que,
quando 0 vissem levantar e agitar sua lança, deviam lançar seus
cavaleiros com todas as suas forças contra o inimigo. A um
sinal como acontece com as coisas preparadas antecipadamen.te,
tudo' se executa : abrem-se passagens entre as fileiras, o cavale~ro
voa , precipita-se, de arma em riste, contra o centro do _exé~c1to
inimigo e rompe suas linhas, por onde carrega. Volummo e
Cipião acossam e abatem os inimigos já abalados.
A partir daí, os deuses e os homens perdem s~u poder entre
os samnitas; as coortes de linho debandam ; os conJurado.s ~o~em
tanto como os que não juraram; todos temem apenas o m1m1go.
A infantaria que sobreviveu ao combate é rechaçada pa.ra seu
acampamento ou para Aquilônia ; a nobreza e os cavale.1ros se
refugiam em Boviano. O cavaleiro p~rsegue os ~a~ale1ros; o
infante, os infantes. As alas romanas d1vergem: a d1re1ta ~archa
sobre 0 acampamento dos samnitas; a esquerda, sobre ~ c1dade.
Volúmnio tomou o acampamento um pouco ma1s ced~;
Cipião encontra diante da cidade resistência um pouco mats
345
 HISTóRIA DE ROMA
TITO UVIO
a discussão sobre os auspícios não
forte, não que os vencidos tenham ali mais coragem, mas porque a essa força de alma que e mesmo no momento
muralhas detêm melhor um assaltante do que uma paliçada; o fez contra-ordenar o combate em~~er templos aos Imortais,
. . que costume era pro . . .
das muralhas, repelem o inimigo a pedradas. Cipião, achando d eclSIVO, em , . 0 d r se derrotasse as legiões mlmlgas,
que se a luta não fosse decidida no primeiro momento de medo prometeu a Juplter Vence o ' d . ho com mel antes de ele
dos samnitas, antes que se recuperassem, o ataque daquela oferecer-lhe um~ pequena taE ç a e Vl:essa agrad~u aos deuses
cidade fortificada seria muito longo, pergunta a seus soldados mesmo beber vmho puro. ssa pro
se aceitam tranqüilamente que seja a outra ala a tomar o acam- e os auspícios deram certo.
pamento e que eles, vencedores, sejam rechaçados das portas , . 43 O mesmo bom resultado foi
da cidade. Todos protestam e o próprio general é o primeiro, Carvílio toma ComtniO. colhido pelo outro cônsul .em Co-
levantando um escudo acima da cabeça, a marchar contra a . d d·a tendo levado todo o seu exércitO para
porta; outros o seguem, formando a " tartaruga", irrompem na mímo. Ao romper o I ' .d d com um cordão de tropas,
cidade e, desalojando os samnitas que estavam perto da porta, junto das muralhas, cercou a Cl a e ·o de alguma surtida, em
ocupam as muralhas. Como eram pouco numerosos. não ousaram colocando reservas s?li~as, :os~a~e~:~ ataque quando o correio
entrar no interior da cidade. frente às portas. Já la ard anunciar-lhe a chegada de
de seu colega: ~i~do a ~o a pre~:: o fez adiar o assalto, como
Tomada de Aquilônia. 42 . A princípio, o cônsul ignorava vinte coortes ~~urugas, n~o somaerte de suas forças, já formadas
esses fatos e ocupava-se em fazer também o obngou a retlroardp o legado Décio Bruto Ceva
voltar suas tropas ; porque o sol já baixava no poente e a proxi- a o ataque. r enou a .. d
e prontas par . . 1 ião dez coortes, auxiliares as
midade da noite tornava tudo perigoso e suspeito, mesmo aos que fosse, com .a pnmelra eg ' for o inimigo: onde quer
vencedores. Mas, avançando um pouco mais, vê à direita o alas e a cavala na ao enc~ntr~ -l~o ;:tarJá-lo e travar combate
acampamento tomado e percebe que à esquerda reina um clamor que o encontre, d~~e en ren a é • eciso é que aquele reforço
na cidade, mistura confusa de gritos de ataque e de pavor: era se a ocasião o eXlglr; ~ .qu~ pt~ a ele manda trazer escadas
justamente o momento em que se combatia perto da porta. não se aproxime de Coml~lo . uan centro 'às muralhas da cidade
Aproxima-se então a cavalo e vê que seus homens estão em
cima das muralhas; vendo que sua liberdade de decisão já
de todos os pontos, coloca-latd;::do
e marchar para as. portas, or t
a " tartaruga". Ao mesmo
se atacariam as muralhas
não é total e que a temeridade de alguns homens lhe fornece tempo se penetra na pelas po~t as :nquanto não viram inimigos
a oportunidade de realizar grande proeza, ordena que sejam por todos os lados. Se os samm ~s, coragem bastante para
chamadas as tropas que tinha mandado retirar e que avancem em cima de suas muralhas , tlvera~ade ao contrário, quando
sobre a cidade. Estas ali entraram do lado mais próximo e, impedir aos romanos o acesso ~ s~a Clde p;ojéteis, mas de perto,
quando a noite chegou , permaneceram tranqüilas. Durante a já não se combateu de longe, ~·~ ·culdade tinham subido do
noite, o inimigo abandonou a cidade. Foram mortos naquele dia quando os assaltantes, que com I I ado essa posição
em Aquilônia vinte mil, trezentos e quarenta samnitas e captu- chão para as muralhas , depois de !er su~er - combateram
dT ld de que maiS temiam
rados três mil oitocentos e setenta, com noventa e sete estan- desvantajosa - I !CU ~ 1 m inimigo inferior, então esses
dartes. facUmente no. mesmbo ~~ve ~o suas torres e muralhas, repe-
Diz a tradição que não houve general que parecesse mais mesmos sammtas, a an onan um momento a essa
fórum tentaram por '
alegre do que Papírio durante a batalha, seja por causa de seu lidos to dos para 0 ' I. • bate depois, largando as armas,
próprio tempera mento, seja por confiança na vitória. Foi graças altura , a sorte de um u tlmo com ,
347
346
 TITO LIVIO
em número de cerca de onze mil e quatrocentos, renderam-se ao
cônsul. Tinham sido mortos aproximadamente quatro mil oito-
centos e oitenta deles.
Foi assim que as coisas se passaram tanto em Comínio como
em Aquilônia; esperava-se entre essas duas cidades uma terceira
batalha, mas não se encontrou mais o corpo do exército inim igo:
como estava a sete mil passos de Comínio, foi chamado de volta
pelos seus e assim não participou de nenhum dos dois combates.
Às primeiras sombras da noite, quando tanto o acampa-
mento como Aquilônia estavam à vista desses samnitas, clamores
semelhantes, chamando-os dos dois lados, os detiveram; em se-
guida, na direção do acampamento, ao qual os romanos tinham
posto fogo, as chamas que se estendiam ao longe os impediram
de avançar. Deitando-se de qualquer modo espalhados naquele
mesmo local, armados, passaram a noite toda em inquietação,
aguardando e temendo o dia. Ao amanhecer, não sabendo para
que lado ir, puseram-se repentinamente em fuga, apavorados
por terem sido vistos pelos cavaleiros romanos; estes, que
perseguiam os samnitas que haviam saído à noite da praça,
tinham visto aquela numerosa tropa, que não estava protegida
nem por trincheiras nem por postos de vigilância. Já tinha sido
percebida também das muralhas de Aquilônia e já chegavam
coortes de legionários. Mas a infantaria não pôde alcançar esses
fugitivos e a cavalaria matou somente em sua retaguarda cerca
de duzentos e oitenta homens; em seu medo, abandonaram
muitas armas e dezoito estandartes; o resto da coluna chegou
intacta, tanto quanto se poderia dizer de uma tropa em tão
grande desordem, a Boviano.
AquUônja e Comínio 44 . A alegria de cada um dos exér-
são incendiadas. citos romanos foi aumentada pelo
êxito do outro. Cada cônsul, de
acordo com a opinião do outro, abandonou a seus soldados a
pilhagem da cidade que haviam tomado e, uma vez esvaziadas
as casas, mandou pôr-lhes fogo . Aqui lônia e Comfnio queimaram
no mesmo dia e os cônsules, enquanto suas legiões e eles mesmos
se felicitavam mutuamente. reuniram seus acampamentos. Diante
348
HISTóRIA DE ROMA
dos dois exércitos, Cervílio felicitou e recompensou os seus: cada
qual de acordo com seu mérito , e Papírio, cujas tropas tmham
travado múltiplos combates, em linha, em torno ?~ acam~a­
mento em torno da cidade inimiga, entregou a Espuno Náucto.
a EspÓrio Papírio, filho de seu irmão, a quatro centuriões e. a
um manípulo de hastários pulseiras e coroas de ouro: a _N_áu?to ,
por causa da maneira com que tinha assustad~ os mtllli~Os
como se estivesse trazendo uma forte coluna; ao JOvem Papíno,
por causa de sua atividade à frente da cavalaria, tanto . n~
batalha como na noite em que havia ameaçado a fuga dos _m•·
migos saídos às escondidas de Aquilônia. A todos os cavaletros
por sua memorável ação em muitos lugares, entrega penachos
e pulseiras de prata. .,
Em seguida , reuniu-se o conselho. Como Ja fosse a hora
de retirar do Sâmnio os dois exércitos, ou pelo menos um deles,
0 melhor partido pareceu o seguinte: quanto mais esti_vesse
abatido 0 poder samnita, mais era preciso mostrar te~actdade
e obstinação em prosseguir até o fim o resto das operaç~s, para
que se pudesse entregar aos cônsules ~eguin~es o S~mm_o. c~m­
pletamente subjugado. Como não havta mats exérctto tntmtgo
que parecesse capaz de travar batalha campal,. s~ rest~va u~
tipo de guerra, os ataques a cidades, cuja destrutçao podta enn-
quecer o butim do soldado e acabar com o inimigo, ~utando
por seus al tares e seus lares. Assim, depois de ter en~tado a~
Senado e ao povo romano uma carta sobre as operaçoes ~:ah­
zadas por eles, os cônsules, separando-se, levam suas ~eg10es :
Papírio ao ataque a Sepino e Carvílio. ao ataque a Véha .
45. A leitura da car-
Carvílio passa à Etrúria para
combater uma revolta dos etruscos ta dos cônsules foi
e dos faliscos. Papírio toma Sepino. ouvida com muita
alegria na cúria, em
seguida na assembléia do povo; em ações de graças que du:ara~
quatro dias, os particulares procu~ara~ c:lebr~r a alegr_ta pu-
blica. Para o povo romano, essa vttóna nao fot apenas tmpor-
tante: chegou muito a propósito porque justamente no momento
em que se trouxe a notícia de uma revolta dos etruscos. Che-
349
 TITO UVIO
gava-se a indagar como, se tivesse acontecido algum revés no
Sãmnio, se teria podido resistir à Etrúria caso esta, levantando
a cabeça em conseqüência da conjuração samn ita com os dois
cônsules e todas as forças de Roma dirigidas pa,ra o Sãmnio.
achasse que, estando o povo romano empenhado naquela luta .
era uma ocasião para se revoltar.
Embaixadas de povos aliados, levadas ao Senado pelo pretor
Marco Atílio, queixavam-se de ver seus campos queimados e
saqueados pelos vizinho etrusco, porque eles não queriam aban-
donar o povo romano e rogavam aos pais conscritos que os
protegessem das violências e dos ultrajes de seu s inimigos
comuns.
Foi respondido aos embaixadores que o Senado cuidaria
de que seus aliados não tivessem de arrepender-se de sua fide-
lidade; que os etruscos, dentro em pouco, teriam a mesma sorte
que os samnitas. Entretanto, ter-se-ia tido mais vagar em agir
no qu.e se referia à Etrúria, não fosse a notícia de que também
os fallscos, durante anos amigos do povo romano, tinham unido
suas armas às dos etruscos. A proximidade desse povo aguçou
as preocupações do Senado, de tal forma que decidiu enviar
os feciais reclamar os bens seqüestrados. Como houve recusa
em restitu~-los, por parecer do Senado e por ordem do povo
romano fot declarada a guerra aos faliscos e os cônsules rece-
beram ordem de tirar à sorte qual deles iria do Sãmnio para
a Etrúria com seu exército.
Carvílio já tinha tomado Vélia, Palumbido e Herculano aos
samnitas: Vélia em poucos dias, Palumbino no mesmo dia em
que tinha chegado ao pé de suas muralhas. Diante de Herculano
tin~a travado batalha campal com resultado indeciso e perdid~
mats gente do que o inimigo; depois, organizando um acampa-
mento, cerca o inimigo dentro de suas muralhas; a praça foi
atacada e conquistada. Nessas três cidades, tinham sido presos
ou mortos cerca de dez mil homens, ultrapassando o número de
prisioneiros bem pouco o dos mortos.
Os cônsules sortearam sua província e a Etrúria coube a
C~rvílio, de acordo com os desejos de seus soldados, que já
nao suportavam os rigores do frio no Sãmnio. Em Sepino, Pa-
)'iO
HISTORIA DE ROMA
pírio teve de enfrentar forças inimigas mais consideráveis. Tive-
ram de bater-se ora em linha, ora em marcha, ora em torno
da própria cidade. Não era um sítio, mas uma batalha em campo
aberto, porque os samnitas se serviam menos das muralhas para
defender-se do que as defendiam com suas armas e seus sol-
dados. Enfim, com esses combates, Papírio forçou os inimigos
a suportar um sítio em regra e por meio deste, no qual empreg~u
força e trabalhos, tomou a cidade. A cólera provocada pela rests-
tência tornou maior a carnificina, quando a cidade foi conquis-
tada: sete mil e quatrocentos homens foram mortos e aprisio-
nados menos de três mil. O butim, muito abundante, foi reu-
nido em algumas cidades e abandonado aos soldados.
Papírio celebra seu triunfo. 46 . As neves já tinham
Carvílio toma Troílio, depois coberto tudo e não se po-
vai também triunfar em Roma. dia permanecer fora das
casas; então o cônsul le-
vou seu exército do Sâmnio. Em sua chegada a Roma , todos
foram de acordo que lhe fosse concedido o triunfo. Celebrou-o
estando ainda em exercício ; e esse triunfo, dados os costumes
da época, foi notável. Cavaleiros e infantes, exibindo as insígnias
de suas recompensas, desfi laram a pé e a cavalo: muitas coroas
cívicas vaiares e murais ss at raíram os olhares; admiravam-se
os des~ojos dos samnitas, que eram comparados no brilho e
na beleza aos despojos trazidos pelo pai do cônsul e conhecidos
por terem com freqüência ornamentado os logradouros públicos.
Alguns prisioneiros notáveis, célebres por seus feitos ou p~los
de seus pais, marchavam entre seus guardas ; carroças traztam
lingotes de cobre - dois mi lhões e quinhentos e trinta mil - .
produto , diziam , da venda dos prisioneiros: dn prntn tomada
53 . A coroa é uma das principais recompensas militares. A coroa
cívica recompensa aquele que arrebatou ao inimigo um cidadão romano:
a coroa vaiar - é de louro, ornada com a figura de um pano de ~1~­
ralha - aquele que foi o primeiro a transpor um entrincheiramenl~ JOI·
migo ; n coroa mural - é também de louro, ~as .ornada com .a f1gura
de torres ameadas - f dada àquele que em pnme1ro lup:ar subm li mu-
ralha de uma cidade atacada.
35 1
 TITO UVIO
das cidades. mil oitocentos e trinta libras. Todo esse cobre e
toda essa prata foram guardados no tesouro ; aos soldados nada
se deu de butim. A indignação causada por esse fato aumentou .
na plebe, por se ter de pagar tributo pelo soldo das tropas ,
quando, se se abrisse mão da glória de entregar ao tesouro as
quantias tomadas ao inimigo, se teria podido, com o butim. dar
uma gratificação aos soldados e pagar o soldo.
O cônsul consagrou o templo de Quirino r. 4 • Não vejo em
nenhum autor antigo que esse templo tenha sido prometido por
ele durante a batalha que ganhou; e, com certeza, em tão pouco
tempo não se poderia tê-lo terminado ; foi uma promessa do
d itador, de Papírio pai, e seu filho , o cônsul, o inaugurou e
adornou ~om os despojos dos inimigos; havia tantos. que n ão
somente se ornamentou o templ o e o Fórum , como também
foram d istribuídos entre os soldados e as colônias vizinhas para
enfeitar os templos e os logradouros públicos. Depois desse
triunfo, o cônsul levou seu exército para passar o inverno no
território de Vécia , região que estava infestada de samnitas.
Entretanto, o cônsul Carvílio, tendo inicialmente planejado
atacar a cidade de Troílio, entrou em entendimento com quatro-
centos e setenta habitantes, os mais ricos, para permitir-lhes.
mediante grande quantia, sair de lá, e dei xou-os ir embora:
a multidão que tinha ficado e a própria praça foram tomadas
pela força . Em seguida tomou de assalto cinco fortes bem-situa-
dos em locais difíceis. Lá foram mortos dois mil e quatrocentos
e presos menos de dois mil. O s faliscos também pedem a paz
e Carvílio lhes concede uma trégua de um ano. mediante cem
mil lingotes de cobre e o pagamento à tropa de seu soldo relativo
ao ano em curso.
Feito isso, dei xou sua província para triunfar e se seu
triunfo sobre os samnitas foi menos brilhante que o de seu
colega, graças ao complemento forn ecido pela guerra da Etrúria.
54 . Qui ri no é um deus provavelmente sabino, divindade guerreira
do Quirinal, com quem se confundiu Rômulo divini1.ado. Seu templo
ficava no Quirinal.
3'52
HISTóRIA DE ROMA
acabou igual. Levou ao tesouro público trezentos e oitenta mil
lingotes de cobre; com o resto, sobre a parte de que dispunha,
pôs em concorrência a construção de um templo a Fors Fortuna,
perto do templo dessa deusa consagrada ao rei Sérvio Túlio e,
do butim, deu a cada soldado cento e dois asses e o dobro
aos centuriões e aos cavaleiros, recompensa que a avareza malé-
vola de seu colega tornou mais agradável aos que a receberam.
O favor de que gozava esse cônsul protegeu perante o povo seu
legado Lúcio Postúmio, que, acusado por Marco Escâncio, tribu-
no da plebe, tinha , ao que se contava, evitado por essa tendência
0 julgamento do povo; e a acusação contra ele teve de ser
repetida.
Recenseamento. Eleições 47 . Já tendo passado o ano,
consulares. Epidemia. novos tribunos da plebe entra-
ram em exercício; e esses mes-
mos, em decorrência de um vício em sua eleição, cinco dias
depois foram substituídos por outros. O lustro 55 foi cumprido
naquele ano pelos censores Públio Comélio Arvina e Caio Má~­
cio Rútilo; foram recenseadas duzentas e sessenta e duas m1l
trezentas e vinte e uma cabeças. Eram os vigésimos sextos cen-
sores desde a criação da censura e o vigésimo lustro. No mesmo
ano, pela primeira vez, os cidadãos que tinham recebido uma
coroa por suas proezas militares assistiram coroados aos Jogos
Romanos; e então pela primeira vez, seguindo um costume impor-
tado da Grécia, deram-se palmas aos vencedores. No mesmo
ano, os edis curuis que promoveram esses jogos mandaram,
com as multas impostas a alguns arrendatários das pastagens
públicas, pavimentar a estrada do templo de Marte a Bovila.
Lúcio Papírio presidiu as eleições consulares; pr~cla~~u
cônsules Quinto Fábio (filho de Máximo), Gurges e DéciO Junto
Bruto Ceva; o próprio Papírio tornou-se censor.
55 . O lustro é o sacriHcio de purificaçiio que encerr? ~ ~censea­
mento, que se faz de cinco em cinc~ anos; de onde o stgmflcado da
palavra portuguesa lustro, espaço de cmco anos.
353
 TITO UVIO

Todas as venturas daquele ano dificilmente consolaram de

u_m único flagelo, uma peste que assolou ao mesmo tempo a
ctdade e o campo. Esse desastre já se parecia com um prodígio
e. foram consultados os Livros Sibilinos para saber como dar
ftm ou que remédio os deuses indicavam para o mal. Verificou·
se nesses livros que era preciso chamar Esculápio de Epidauro RESUMO
a Roma; mas naquele ano, estando os cônsules ocupados com
a guerra, nada se fez a esse respeito, exceto um dia de preces DO LIVRO X DA HISTORIA DE ROMA
públicas a Esculápio.
DESDE SUA FUNDAÇÃO, DE TITO LfVIO

Colônias são enviadas a Sara, Alba e Carséoles. Os marsos

se submetem. O colégio dos áugures é aumentado para nove
membros, em lugar dos quatro de antes. O cônsul Marco Valéria
apresenta (pela terceira vez) uma lei de apelação ao povo ro-
mano. Acrescentam-se duas novas tribos: a Aniense e a Teren-
tina. 1! declarada guerra aos samnitas; são travados combates fa-
voráveis. Luta-se contra os etruscos, os umbros, os samnitas e
os gauleses, sob o comando de Públio Décio e Quinto Fábio; es-
tando o exército romano em grande perigo, Públio Décio, se-
guindo o exemplo de seu pai, sacrifica-se e assegura a vitória
aos seus. Papírio Cursor derrota um exército de samnitas que.
ligados por um juramento que lhes impunha combater encami-
çadamente, sai do acampamento em linha de batalha.
Faz-se o recenseamento , perfaz-se o lustro : são contados
272 .321 cidadãos.

354
355
 RESUMOS

DOS LIVROS XI A XX DA H ISTO RIA DE ROMA

DESDE SUA FUNDAÇÃO, DE TITO UVIO

L I V R O XI

O cônsul Fábio Gurges fracassa diante dos samnitas e o

Senado cogita de afastá-lo do exército. Seu pai, Fábio Máximo,
suplica que se poupe essa vergonha ao filho e consegue demover
os senadores; promete partir como lugar-tenente de Gurges e
cumpre a promessa. Auxiliado pelos conselhos e ações do pai,
o cônsul massacra os samnitas e triunfa. Caio Pôncio, general
dos samnitas, figura no triunfo e é a seguir decapitado. Pade-
cendo a cidade de uma epidemia, embaixadores são enviados
a Epidauro para trazer a estátua de Esculápio para Roma .
Trazem também uma serpente que se refugiara no navio e na
qual todos são concordes em ver a própria divindade. Como
essa serpente nadasse até a ilha Tiberina , no mesmo lugar
ergueu-se um templo a Esculápio. O consular Lúcio Postúmio
é condenado por ter utilizado soldados como mão-de-obra em
suas terras. Pela quarta vez renova-se o tratado com os samnitas.
que pediam a paz. O cônsul Cúrio Denta to. depois de massacrar
os samnitas, vencer os sabinos revoltados e receber sua sub-
missão, triunfa duas vezes durante a mesma magistratura . São
enviadas colônias a Castro, Sena e Hádria . Criação dos triún-
viros capitais. Recenseamento e cumprimento do lustro: contam-
se 272.000 cidadãos. A propósito das dívidas, a plebe, após
graves e demoradas sedições , retira-se para o Janículo. de onde

357
 TITO U 10
o ditador Qujnto Hortênsia a faz descer: este morre antes de
terminar seu mandato.
O livro contém ainda as operações contra os vulsinianos e
os tucanos. em defesa de Túrio.
L I V R O XII
Embaixadores romanos são mortos pelos gauleses senones
e a guerra é declarada. O pretor Lúcio Cecília, com suas legiões,
é massacrado pelos gauleses. Os tarentinos, depois de pilhar
uma frota romana e matar o duúnviro que a comandava, expul-
sam os embaixadores enviados pelo Senado a fim de prestar
queixas contra semelhantes ultrajes. Em virtude disso a guerra
é declarada. Defecção dos samnitas. Contra eles e os lucanos,
brutianos e etruscos, vários generais combatem com sucesso.
Pirro, rei do tpiro, vem em socorro dos Tarentinos. Uma legião
campaniana , com o prefeito Décio Vibélio, é enviada para de-
fender Régio, mas massacra seus habitantes e ocupa a cidade.
L I V R O XIII
O cônsul Valéria Levino combate Pirro sem grande êxito,
porquanto os soldados romanos se assustam com os elefantes.
Após o combate, Pirro, examinando os cadáveres dos romanos
tombados na batalha, nota que estão todos de frente para o
inimjgo. Pilha o país e avança em direção a Roma . Caio Fabrício
é enviado pelo Senado para tratar com o rei o resgate dos prisio-
neiros. Pirro tenta em vão fazê-lo desertar. Os prisioneiros são
devolvidos sem resgate. Cinéias, embaixador do rei no Senado.
solicita como condição de paz a recepção de Pirro em Roma .
Decide-se discutir a proposta quando os senadores afluírem em
maior número. Mas Ápio Cláudio, que devido à crescente ce-
358
HISTORIA DE ROMA
gueira se mantinha há muito tempo afastado dos conselhos pú-
blicos, comparece na Cúria e faz prevalecer a decisão de recusar
o pedido de Pirro. Cneu Domício, primeiro censor plebeu, cum-
pre o lustro: são contados 287.222 cidadãos. Pela segunda vez.
combate-se Pirro, com resultado duvidoso. Renova-se o tratado
com os cartagineses pela quarta vez. Um homem de Pirro
promete ao cônsul Fabrício envenenar o rei , mas é denunciado
e devolvido a seu amo.
O livro contém ainda as vitórias contra os lucanos. os
brutianos. os samnitas e os etruscos.
L I V R O XIV
Pirro na Sicília. Entre outros prodígios, o raio abate a
estátua de Júpiter no Capitólio, mas a cabeça é descoberta pelo
arúspices. Cúrio Dentato, recrutando tropas, manda pela pri-
meira vez vender os bens de quem não atende à conscrição.
Vence Pirro que voltara da Sicília para a Itália e o expulsa
do país. O censor Fabrício exclui do Senado o consular Públio
Cornélio Rufino por este possuir dez libras de prata lavrada.
O lustro é cumprido pelos censores : são contados 271.234 cida-
dãos. Conclui-se uma aliança com o rei Ptolomeu do Egito. A
vestal Sextília, condenada por incesto, é enterrada viva. São
enviadas colônias a Possidônia e Cosa. Uma frota cartaginesa
vem em socorro dos tarentinos, violando o tratado.
O livro contém ainda as vitórias contra os tucanos, os bru-
tianos e os samnitas. bem como a morte do rei Pirro.
L I V R O XV
Paz e liberdade aos tarentinos vencidos. A legião campa-
niana que ocupara Régio é cercada; os sitiados se rendem e são
decapitados. Embaixadores de Apolônia , maltratados por algu-
359
 TITO LfVIO
mas pessoas, recebem-nas como prisioneiros. Paz aos picentinos
vencidos. Colônias para Armínio, no Piceno, e Benevento, no
Sâmnio. Pela primeira vez o povo romano começa a se servir
de dinheiro. Submissão dos úmbrios e salentinos. O número
dos questores sobe para oito.
L I V R O XVI
Origem dos cartagineses e primórdios de sua cidade. Contra
eles e contra Hierão, rei de Siracusa, o Senado decide levar
socorro aos mamertinos, após longo debate entre partidários
e adversários da medida. Pela primeira vez um exército romano
cruza o mar, combatendo com êxito Hierão, que finalmente
pede a paz e a recebe. Os censores cumprem o lustro: contam-se
282.234 cidadãos. Pela primeira vez, Décio Júnio Bruto oferece
ao público um espetáculo de gladiadores, em homenagem a seu·
pai morto. Colônia para Eserina.
O livro contém ainda as vitórias contra os cartagineses e
os vulsinianos.
L I V RO XVII
O cônsul Cneu Cornélio é cercado por uma frota carta-
ginesa, e, após ser traiçoeiramente convidado para uma confe-
rência, cai prisioneiro do inimigo. O cônsul Caio Duílio bate
a frota cartaginesa, e, primeiro de todos os generais romanos,
celebra o triunfo por uma vitória naval. Por essa razão conservou
em caráter perpétuo a honra de ser antecedido por uma tocha,
ao som da flauta, quando se retirava após comer. Sucessos do
cônsul Lúcio Cornélio, na Sardenha e na Córsega, contra os
sardas, corsos e Hano, chefe dos cartagineses. O cônsul Atllio
Calatino, após conduzir levianamente o exército a um sítio onde
os cartagineses o cercam, consegue escapar graças à bravura e
360
HISTORIA DE ROMA
à atividade de Marco Calpúrnio, tribuno militar, que fazendo
uma surtida com trezentos soldados, atrai o inimigo. Aníbal,
general cartaginês, é crucificado por seus soldados após a derrota
da frota que comandava. O cônsul Atílio Régulo vence os carta-
gineses numa batalha naval e passa à África.
L I V R O XVIII
Atílio RéguJo, na África, mata uma serpente monstruosa,
causa a morte de inúmeros soldados. Derrota várias vezes os
cartagineses, e, como o Senado não lhe enviasse sucessor. q_ueixa-
se numa carta, entre outras razões que o levam a pedtr um
sucessor, de que sua pequena propriedade fora abandonada pelos
domésticos. Resolvendo o destino apresentar Régulo como exem-
plo de boa e má fortuna, os cartagineses fazem vir Xantipo.
general espartano, que derrota Régulo e o aprisiona. Os êxitos
de todos os comandantes romanos em terra e mar são compro-
metidos pelo naufrágio das frotas . Tibério Coruncãnio é o
primeiro dos plebeus a ser nomeado pontífice. Os censores
Públio Semprônio Safo e Mãnio Valéria Máximo excluem da
lista do Senado dezesseis nomes. Cumprem o lustro: são conta-
dos 297.797 cidadãos. Régulo, enviado pelos cartagineses ao
Senado a fim de tratar da paz - e, no caso de não obtê-la,
de combinar a troca de prisioneiros - . aconselha o Senado a
recusar uma e outra proposta, mesmo estando ligado por um
juramento que exigia seu retorno a Cartago. Fiel ao juramento,
regressa e é supliciado pelos cartagineses.
L I V R O XIX
Cecfiio Metelo, vencedor dos cartagineses, celebra um bri-
lhante triunfo onde figuram treze chefes inimigos e 120 elefan-
tes. O cônsul Cláudio Pulcro, partindo apesar dos auspícios.
361
 T ITO I IVIO HISTORIA DE ROMA

manda afogar os frangos sagrados que não queriam comer. Pela primeira vez os exércitos romanos cruzam o Pó; os gauleses
Oferece aos cartagineses, no mar, uma batalha desafortunada. ínsubros são batidos em diversos combates e apresentam sub-
Chamado pelo Senado a fim de nomear um ditador, apresenta missão. o cônsul Marco Cláudio Marcelo, após. matar. o chefe
Cláudio Glícia, homem de baixa extração que, forçado a abdi- dos gauleses ínsubros, Virdomar, colhe os despOJOS op1mos. Os
car da magistratura, assiste aos jogos trajando a toga pretexta. hístrios são submetidos. Os ilírios, sublevados, submetem-s~
Auto Atílio Calatino, primeiro ditador a conduzir um exército também. Os censores cumprem por três vezes o lustro: ~o p~l­
para fora da Itália. Troca de prisioneiros com os cartagineses. meiro, contam-se 270.713 cidadãos [ ... ] Os libertos sao ?lis-
São enviadas colônias a Fregenas e a Brindes, no território tados em quatro tribos, eles que outrora estavam rep~rtldos
salentino. Os censores cumprem o lustro: são contados 241.212 por todas: a Esquilina, a Palatina, a Su?~rrana ~ a Cohn~ .. o
cidadãos. Cláudia, irmã de Públio Cláudio - o qual, por des- censor Caio Flamínio constrói a via Flammta e o ctrco Flamm10.
prezar os auspícios, fora vencido - , ao voltar dos jogos vê-se Colônias para Placência e Cremona, no território tomado aos
pressionada pela multidão e exclama: "Quiçá meu irmão ainda ~a uleses.
vivesse e comandasse novamente uma frota!" ~ multada por
isso. Pela primeira vez são nomeados dois pretores. Cecília
Metelo, pontífice máximo , retém Auto Postúmio em Roma para
que cumpra seus deveres sagrados: embora cônsul, era ao mes-
mo tempo flâmine de Marte. Vários generais derrotam os carta-
gineses, e o cônsul Caio Lutácio coroa essa série de vitórias
batendo a frota cartaginesa nas ilhas Egates. Os cartagineses
solicitam a paz, que lhes é concedida. O templo de Vesta se
incendeia, mas Cecília Metelo, pontífice máximo, salva os objetos
sagrados das chamas. Duas novas tribos são acrescentadas: a
Velina e a Quirina.

L I V R O XX

Os faliscos se submetem cinco dias depois de se sublevar.

Colônia para Espoleta. Pela primeira vez um exército avança
contra os lígures. Os sardas e os corsos se revoltam e são subme-
tidos. A vestal Túcia é condenada por incesto. Declara-se guerra
aos ilírios por terem estes matado um embaixador; submetidos.
apresentam rendição. O número dos pretores sobe para quatro.
Gauleses transalpinos que haviam irrompido na Jtália são mas-
sacrados. Nessa guerra o povo romano, segundo Fábio, teve
oitocentos [mill homens em armas, entre romanos e latinos.

362 363
 L I V R O XXI

Importância da 1 . Ao encetar esta parte de mi-

segunda guerra púnica. nha obra, seja-me permitido dizer
o que a grande maioria dos histo-
riadores coloca ao começar suas obras: que passo a narrar a
mais memorável de todas as guerras jamais acontecidas, a que,
sob o comando de Aníbal, os cartagineses moveram ao povo
romano. Com efeito, nunca se vira tamanhos recursos entre dois
Estados, duas raças beligerantes; nem, no meio desses próprios
Estados, tanta energia e capacidade de resistência. E eles se
mediam já não ignorando sua potencialidade militar, mas após
tê-la posto à prova na primeira guerra púnica. Finalmente, houve
tanta flutuação na fortuna da guerra e no favor de Marte, deus
de duas caras, que o adversário aparentemente mais perto do
desastre foi o que acabou por vencer.
Durante a luta, os ódios superaram até mesmo as forças em
conflito, os romanos se indignando com o fato de vencidos se
insurgirem contra vencedores, e os cartagineses por considerarem
soberbas e cúpidas as condições a eles impostas 1 • Conta-se

I. Alusão à maneira pela qual os romanos agravaram as cláusulas

do tratado de paz, aproveitando-se da revolta dos mercenários de Cartago,
logo após a primeira guerra púnica. Os insurretos tinham-se tornado
senhores da Sardenha. Os romanos se declararam neutros. Mas houve
contrabandistas romanos que, reabastecendo os mercenários, foram afun-
dados pelos cartagineses ; mercenários que, expulsos pelos habitantes da
Sardenha, foram pedir socorro a Roma. Esta, com absoluta má-fé, afetou
considerar dirigidos contra ela os preparativos feitos pelos cartagineses
para reconquistar a ilha e, aproveitando-se do esgotamento de Cartago,
obrigou-a a abandonar-lhe a Sardenha, a pagar 1.200 talentos a mais do
que previa o primeiro tratado e se apropriou também da Córsega.

365
 TITO I fVIO
mesmo que Aníbal, então com cerca de nove anos, acariciando
qual criança seu pai Amilcar a fim de que o levasse para a
Espanha- no momento em que, terminada a guerra da África ,
preparava-se para conduzir até lá seu exército - , o pai o levou
até o altar onde sacrificava, fê-lo estender a mão sobre a vítima
e jurar que, tão logo o pudesse, seria inimigo do povo romano.
O que mais atormentava Amílcar, homem de extrema altivez,
era a perda da Sicília e da Sardenha. A seu ver, fora precipitada
a evacuação da Sicília; quanto à Sardenha, tinham-na empal-
mado deslealmente os romanos durante as sublevações da África.
chegando mesmo a impor um tributo suplementar aos cartagi-
neses.
Política de Amílcar, 2. Atormentado por semelhan-
depois de Asdrúbal tes cuidados, Amílcar agiu de
na África e na Espanha tal maneira para aumentar o im-
pério púnico (durante a guerra
da África que se seguiu imediatamente à paz com Roma, por
cinco anos, depois na Espanha, por nove anos) que bem se
percebia estar ele meditando uma guerra ainda maior que a
que agora movia. De fato, houvesse vivido por mais tempo e
seria com Amílcar no comando que os cartagineses levariam
contra a Itália as armas para cá trazidas por Aníbal.
A morte oportuna de Amílcar e a tenra idade de Aníbal
retardaram o início das hostilidades. No intervalo entre os co-
mandos de ambos os povos, durante oito anos, esteve nas mãos
de Asdrúbal , de início, ao que se diz, pelo amor que Amílcar
dedicava à sua florescente mocidade. A seguir Amílcar o esco-
lheu para genro sem dúvida levando em consideração outras
qualidades, qualidades de espírito. Finalmente, uma vez que
entrara para a família Barca, mais prestigiosa que todas junto
aos soldados e a plebe, tornou-se comandante-em-chefe, não,
por certo, pela vontade dos grandes. Asdrúbal, agindo mais
habilidosamente que pela força, conseguiu fortalecer o Estado
cartaginês renovando alianças com os régulos, aos quais se ligava
por laços de hospitalidade, e conciliando, pela amizade dos
grandes, novos povos. Ainda assim a paz não foi mais segura
366
HISTORIA DE ROMA
para ele: um bárbaro, irritado com Asdrúbal por ter este matado
seu amo, degolou-o em público. Preso pela escolta, o homem
conservou a mesma serenidade que mostraria se tivesse esca-
pado; até sob tortura a alegria prevaleceu contra a dor, e chegou
a rir. Com Asdrúbal, tão maravilhosamente hábil em aliciar
povos e ligá-los a seu império, o povo romano havia renovado:
a fronteira entre as duas potências ficara sendo o Ebro; os sagun-
tinos, instalados no meio de ambas, conservariam sua indepen-
dência 2 •
Chamado por Asdrúbal, o jovem 3. Para substituir Asdrú-
Aníbal vai reunir-se a ele bal, não havia dúvida de
na Espanha. que a escolha do exérci-
to, arrastando imediata-
mente o jovem Aníbal ao pretório e nomeando-o "imperador"
com aclamações unânimes, seria acompanhada do favor do
povo 3 . Asdrúbal, quando Aníbal ainda era imberbe, tinha-o
convidado por carta para vir junto de si, e ainda discutiu a
questão no Senado. Os partidários dos Barca esforçavam-se para
que o rapaz se afeiçoasse à vida militar e herdasse o poder
paterno; mas Hanão, chefe da facção oposta, declarou: "As-
drúbal parece estar pedindo uma coisa justa, mas sou de opinião
que não devemos atendê-lo". O espanto provocado por esse
parecer contraditório fez com que todos se voltasem para Hanão,
que prosseguiu: "A flor da idade, que o próprio Asdrúbal ofe-
receu ao gozo do pai de Aníbal , agora acha justo pedi-la ao
filho. Mas em nada nos convém formar nossa juventude, em
termos de instrução militar, segundo o molde de generais liber-
tinos. Acaso o filho de Amílcar, apercebendo-se tardiamente
dos desmesurados poderes, do brilho da realeza de seu pai, cujo
genro recebeu nossos exércitos de herança, não poderá reduzir-
2 . Roma, inquieta com o progresso dos cartagineses na Espanha,
pediu e obteve somente a promessa de que os púnicos não atravessariam
o Ebro com seu exército. Sagunto, ao sul do Ebro, tinha pouca impor-
tância.
3 . O texto da frase está muito alterado, talvez haja mesmo uma
lacuna.
367
 TITO UVIO
nos prontamente à escravidão? Cuido ser preciso deixar o rapaz
n~ pátria, submisso às leis e aos magistrados; seja educado para
v1ver com os mesmos direitos de todos. Não vá um dia essa
pequena chama transformar-se em gigantesco incêndio •!"
Retrato de Anfbal. 4. Alguns senadores, sem dúvida os
mais sábios, aprovaram o parecer de
Hanão; mas, como sempre acontece, os mais numerosos preva-
leceram sobre os mais doutos.
Enviado à Espanha, logo ao chegar Aníbal atraiu a atenção
geral do exército: era, pensavam os veteranos, Amílcar jovem
que voltava para eles. Percebiam nele a mesma vivacidade de
expressão, a mesma energia no olhar, na postura, nos traços.
Mas não tardou que Aníbal transformasse sua parecença com
o pai no menor dos motivos de admiração: jamais alguém se
mostrou tão apto a ações inteiramente opostas, a obedecer e a
comandar. Não era fácil decidir quem o amava mais, se o
general ou o exército. Para a ação corajosa e enérgica, não
havia outro chefe que Asdrúbal preferisse, nem comandante em
quem os soldados depositassem mais confiança e sob o qual
mais corajosamente se portassem. Tanto mostrava audácia para
enfrentar os perigos quanto sabedoria em meio a esses mesmos
perigos. Nenhum sofrimento conseguia debilitar-lhe o corpo ou
abater seu espírito. Ao comer e beber, considerava o limite de
suas necessidades, não o prazer; ao velar e dormir, não dis-
tinguia o dia e a noite: o tempo ocioso, passava-o a repousar,
sem exigir para tanto silêncio ou cama confortável; ao contrário,
muitas vezes o viram deitado no chão, entre as sentinelas, co-
berto por um simples saio de soldado. Em nada suas roupas
o distinguiam dos jovens da mesma idade: suas armas e cavalos
era o que todos admiravam. Entre os cavaleiros, como entre os
4 . Essa anedota e esse discurso não têm nenhum valor histórico.
Não somente segundo Polfbio e Cornélio Nepos, mas também segundo o
próprio Tito Lfvio (XXX, 35; 37). Anfbal tinha sido levado por seu pai
pelo menos lreze anos mais cedo e só vohou a Car1ago ao cabo de trinla
e cinco anos.
368
HISTORIA DE ROMA
infantes, era de longe o melhor, o primeiro para avançar para
o combate e o último a retirar-se.
Entretanto vícios enormes contrabalançavam essas virtudes
notáveis de Anfual : crueldade desumana, perfídia mais que púni-
ca; para ele não havia verdades, coisas sagradas, med~ dos
deuses, fé de juramento ou religião. Com essa natureza fe.sta ~e
qualidades e defeitos, serviu três anos sob Asdrúbal, sem J.amass
negligenciar o que se espera de um general que deseJa ser
grande.
Anfbal, nomeado general, S. Mas no dia em que
submete todo o país além do foi nomeado general de-
Ebro, com exceção de Sagunto. cidiu que não havia tem-
po a perder, não fosse
com hesitações vitimado pelo dest!no conforme sucedera a s~u
pai e depois a Asdrúbal. Como se lhe tivessem dado a Itáha
por província e a incumbência de mover guerra a Ron;t~· resol-
veu atacar os saguntinos. Ciente de que esse ataque ma , sem
dúvida alguma , pôr em movimento as armas romanas, fez de
início seu exército cruzar o território dos olcades (povo que,
além-Ebro, vivia numa zona pertencente aos cartagineses, mas
não sob sua influência). a fim de fingir que não atacara os
saguntinos por decisão própria, mas a tanto fora levad·o· pela
evolução dos acontecimentos, após debelar os povos v1zmhos
e fazer anexações. Cartéia, cidade opulenta e capital dos olcade~,
foi tomada e saqueada; amedrontadas, as praças menores acei-
taram a dominação cartaginesa, submetendo-se ao tributo. O
exército vitorioso, carregado de butim, dirigiu-se a Nova Car-
tago (Cartagena) para passar o inverno.
Aníbal, distribuindo com largueza os despojos e atualizand~
cuidadosamente os soldos, logrou captar as simpatias de concs-
dadãos e aliados. E já no início da primavera levava a guerra
aos vaceus s. Ermândica e Arbocala, cidades suas, fora~ toma-
das. Arbocala, graças ao valor e ao número dos hab1tantes,
5 . Os vaceus habilavam o vale médio do Douro.
369
 TITO LIVJO
defendeu-se por muito tempo; os fugitivos de Ermândica, jun-
tando-se aos olcades exilados (submetidos no verão precedente).
su?levaram os carpetanos 8 e atacaram Aníbal , que voltava do
pats dos vaceus, não longe do Tejo, lançando a desordem em sua
coluna vergada ao peso do butim. Aníbal evitou o combate e
ergueu_ acampamento na margem do rio; em seguida, quando
sobrevteram a calma e o silêncio entre os inimigos, vadeou 0
Tejo e dispôs suas defesas de modo a deixar caminho livre
aos adversários, para atacá-los durante a travessia. Ordenou
aos _cavaleiros que fendessem sobre a infantaria inimiga quando
a vtssem dentro da água; na margem, alinhou seus quarenta
elefantes.
Os carpetanos, engrossados com efetivos olcades e vaceus
chegavam a cem mil, exército virtualmente imbatível numa lut~
em campo raso. De modo _que, fiados no número e supondo -
pois acreditavam que o inimigo lhes cedera de medo - que só
o rio os separava da vitória final, lançaram o grito de guerra
e se precipitaram desordenadamente no rio, sem nenhuma voz
de comando. Mas da outra margem grande número de cavaleiros
também se lançou à água, travando-se então um combate desi-
gual, porquanto o infante, instável e receando a profundidade
do leito, podia ser derrubado até por um cavaleiro desarmado
e com os movimentos inteiramente livres. Muitos espanhóis
foram tragados pelo rio; outros, levados pela corrente até as
linhas inimigas, sucumbiam sob as patas dos elefantes. Os últi -
mos, cuidando ser mais seguro retornar para sua margem , reu-
niram-se depois de se atirar para todos os lados; mas sem lhes
dar tempo de recobrar a coragem, Aníbal entrou no rio com
o exército formado em quadrado e os pôs em fuga. Partiu em
seguida a devastar o território e em poucos dias recebia a sub-
missão dos carpetanos.
Desde então todos os países de além-Ebro, com exceção dos
saguntinos, ficou em mãos cartaginesas.
6 . Habitantes da região de Toledo.
370
HISTORIA DE ROMA
Os saguntinos pedem socorro 6. Com os saguntinos ain -
a Roma. Aníbal ataca Sagunto . da não havia guerra, mas
existia já uma razão para
ela: semearam-se discórdias entre eles e os vizinhos, sobretudo
os turdetanos. Como estes tivessem por sustentáculo justamente
o fomentador das discórdias e, visivelmente, se buscasse não
uma Juta legal, mas uma guerra, os saguntinos enviaram embai -
xadores a Roma solicitando socorro contra o flagelo iminente.
Eram então cônsules Públio CornéJ io Cipião e Tibério
Semprônio Longo. Introduzidos os embaixadores, consultaram
o Senado sobre a política a adotar, decidindo-se que partiriam
delegados para a Espanha a fim de examinar a situação dos
aliados. Se sua causa parecesse justa, Aníbal seria instado a
não tocar nos saguntinos, aliados do povo romano. Em seguida
os delegados iriam à África apresentar queixa. A delegação não
partira ainda quando chegou a inesperada notícia de que Sagunto
estava sob ataque. Novamente os senadores foram consultados.
Uns eram de aviso que se dessem a Espanha e a África como
províncias aos cônsules, os quais fariam a guerra em terra e
mar; outros pretendiam concentrar todas as operações na Espa-
nha, contra Aníbal. Mas houve quem sugerisse não se conduzir
leviana e precipitadamente um assunto tão grave, insinuando que
se deveria aguardar o retorno dos delegados da Espanha. Preva-
leceu essa opinião, aparentemente mais segura. Urgiram-se os
delegados Valéria Flaco e Quinto Bébio Tanfilo a rumar ime-
diatamente para Sagunto, onde se avistariam com Aníbal , e
de lá para Cartago se a guerra não cessasse. Nesse caso, o pró-
prio general deveria ser entregue em reparação do rompimento
do tratado.
Ataque a Sagunto. 7 . Enquanto os romanos aprestavam
Aníbal é ferido. tais medidas e deliberavam, Sagunto
era atacada com a maior violência .
A cidade, de lo nge a mais opulenta das que se erguem da outra
banda do Ebro, situa-se cerca de mil passos 7 do mar. Ao que
1 . Pouco menos de um quilô metro e meio.
371
 TITO UVIO
se dizia, seus habitantes eram originários da ilha de Zacinto,
mas misturados com rútulos de Ardéia. Seus recursos tinham
aumentado rapidamente, tanto em lucros do comércio marítimo
e da agricultura quanto no crescimento populacional. Acrescente-
se o sagrado respeito aos princípios graças ao qual a cidade
se mostrou leal aos aliados até sua própria perda.
Aníbal, penetrando no território e devastando os campos,
atacou a praça por três lados. Havia nas muralhas um ângulo
dando para um vale exposto. Decidiu instalar ali coberturas que
permitissem a aproximação de um aríete. Mas embora o terreno
plano fosse ideal para semelhante empreendimento, este não
pôde ser levado a cabo. Uma torre imensa dominava a posição,
e a muralha , naquele sítio precário, era mais sólida e mais alta
que em outros lugares. E a elite dos jovens resistia energicamente
naquele ponto vital. De início, arremessando projéteis, repeliram
o inimigo, sem deixar um único abrigo seguro aos que se em-
penhavam nos trabalhos de assédio ; depois, não se contentando
já com mostrar suas armas brilhantes sobre os muros e a torre,
ousaram fazer sortidas contra os postos e as obras de cerco.
Nesses combates desordenados, tombavam igualmente saguntinos
e cartagineses. Quando o próprio Aníbal, aproximando-se impru-
dentemente da muralha , caiu com a coxa trespassada por um
projétil, só conseguiu ver à sua volta fuga e confusão. Os lraba-
lhos foram abandonados .
Continua o ataque a Sagunto. 8. Nos dias que se seguiram
a praça foi mais assediada
que atacada, à espera do restabelecimento do general. Mas apesar
da trégua as obras e fortificações prosseguiram . De todos os
lados, ainda que certos sítios se prestassem muito mal aos traba-
lhos, avançavam coberturas e aríetes. O exército cartaginês regur-
gitava de homens: havia ali, ao que se crê, bem uns cento e
cinqüenta mil em armas. Já os sitiados, obrigados a correr para
todos os lados a fim de se defender, não eram suficientes. Os
aríetes começavam a bater as muralhas, fendidas em vários
pontos; uma delas, arruinada em certa extensão, deixava a
cidade a descoberto: três torres sucess ivas, mais os lances de
372
HISTóRIA DE ROMA
muralha que havia entre elas, abateram-se com horrível estrond~.
Vendo isso os cartagineses julgaram a praça tomada: por ah,
como se ~ muro protegesse igualmente os dois adversários,
engalfinharam-se.
A batalha não tinha nada da desordem comum aos ataques
a cidades: duas linhas regulares, como em campo raso, posta-
vam-se entre os escombros da muralha e as casas da cidade,
a pouca distância. De um lado a esperança, do outro o desespero,
excitavam os ânimos: os cartagineses não duvidavam que com
mais algum esforço a praça estaria em suas mãos; os sagunt~os,
vendo que sua pátria perdera a proteção das muralhas, cobnam-
na com seus próprios corpos, sem que ninguém se retire ~om
medo de que o inimigo se precipite sobre a cidade desprotegtda.
Quanto mais se combatia com empenho e em linhas cerra-
das, mais aumentava o número de feridos; nenhum projétil caía
inutilmente no chão, passando entre os corpos e armaduras dos
soldados. Os saguntinos possuíam uma arma de arremesso, a
falárica. com haste de abeto e cilíndrica no resto, salvo na
extremidade de onde se projetava uma ponta de ferro ; em volta
desta, quadrada como a do pilo, atavam estçpa embebida em
pez. O ferro. sozinho, tinha três pés 8 de comprimento, de modo
que podia atravessar a armadura e o corpo. Mas ainda que fosse
detido pelo escudo continuava assustador: inflamado antes do
arremesso , o próprio movimento fazia aumentar :1 chama e
obrigava o soldado a abandonar a arma c a expor- e despro-
tegido aos golpes cguinlc!>.
Aníbal nega-se a receber 9 . O combate continuava inde-
a embaixada romana . ciso. Os sagunti nos, resistindo
mais do que esperavam, sentiam
renascer a coragem, ao passo que os cartagineses já se julgavam
vencidos. Súbito, os sitiados lançam um grito, empurram os
inimigos para a brecha, onde se atrapalham e se embaraçam ,
c acabam por dispersá-los em direção ao acampamento.
8. erca de noventa centímetros (o pé romano correspondia o m.
0,296).
37)
 1 ITO UVIO
Anunciou-se então a chegada dos embaixadores romanos.
Aníbal mandou dizer-lhes, no mar, que não era seguro virem
para o meio de tanta gente armada e sem freio, e que ele próprio,
nas circunstâncias, não podia perder tempo com embaixadores.
Estava claro que, não sendo recebidos, os delegados partiriam
imediatamente para Cartago. Então Aníbal enviou mensageiros
aos chefes da facção dos Barca sugerindo que preparassem com
antecedência os espíritos de seus partidários a fim de que o
partido contrário não pudesse fazer nenhuma concessão ao povo
romano.
A embaixada romana vai a 10. Eis por que, embora re-
Cartago, onde Hanão propõe cebidos e ouvidos os em-
dar-lhe satisfações. baixadores em Cartago, sua
missão também se mostrou
inútil. Somente Hanão, contra a opinião do Senado, defendeu
a. causa do tratad_o em meio a profundo silêncio, graças à auto-
ndade que possUJa. Mas não logrou a aprovação dos senadores.
Conjurou-os, em nome dos deuses árbitros e testemunhas dos
tratados, a não suscitar uma guerra contra Roma em seguida
à guerra contra Sagunto. Advertira-os - disse - prevenira-os
para não enviarem ao exército a descendência de Amílcar: nem
9
os Manes , nem a família daquele homem permaneciam tran-
qüilos, e jamais, enquanto vivesse alguém do sangue e do nome
dos Barca, o tratado com Roma permaneceria calmamente em
vigor. " Um jovem ardendo de desejo de reinar e para isso
d~scorti_na~do um único caminho: semear guerra após guerra,
v1v~r c~ng1do de armas e legiões, eis quem - jogando, por
ass1m d1zer, lenha na fogueira - enviastes ao exército. Alimen-
tastes o incê ndio que ora vos devora . Vossas tropas assediam
Sag~nto, de onde um tratado as afasta: logo as legiões romanas
porao cerco. a Cartago, conduzidas por esses mesmos deuses gra-
ças a~s qua1s, na guerra precedente , os romanos vingaram a fé
romp1da . Acaso desconheceis o inim igo e a fortuna dos dois
9 . Almas dos antepassados : divindades infernais. invocadas pelos
romanos sobre os túmulos.
374
HISTORIA DE ROMA
povos? Embaixadores de um povo aliado, falando por aliados ,
vosso excelente general não os quis admitir em seu acampa-
mento; suprimiu, em relação a eles, o direito das gentes; no
entanto esses embaixadores, expulsos de onde sequer os dele-
gados inimigos não haviam sido excluídos, compareceram pe-
rante vós; apresentaram reclamações conformes ao tratado ; e,
para se absterem de nos causar mal , pedem apenas que lhes
entreguemos o autor da falta , o acusado do crime. Quanto mais
começam com calma e doçura , mais se encarnjçam no fim . Lem-
brai-vos das ilhas Egates, do monte trice 10, daquilo que pade-
cestes em terra e mar durante vinte e quatro anos 11 ! E não
era o rapazola de que falamos quem comandava então: era seu
pai Amílcar em pessoa, um segundo Marte no dizer daquela
gente. Não nos mantivemos, contrariamente ao combinado, longe
de Tarento, isto é, da Itália, tal como agora nos afastamos de
Sagunto. De sorte que os deuses venceram os homens, e, en-
quanto se discutia em altas vozes quem rompera o tratado ,
a sorte da guerra, juiz equitável, fazia pender a vitória para o
lado de quem tinha razão . t de Cartago que neste instante
Aníbal aproxima suas coberturas e suas torres ; são os muros
de Cartago que ele abala com o aríete; as ruínas de Sagunto
- oxalá fosse eu mau profeta! - recairão sobre nossas cabeças.
Teremos agora de sustentar, contra os romanos, a guerra ence-
tada contra os saguntinos.
Entregaremos então Aníbal aos romanos?- perguntar-se-á .
Be m sei que contra ele minha autoridade vale muito pouco.
devido ao ódio que sempre votei a seu pai. Contudo, tal como
me rejubi lei com a morte de Amílcar - pois, vivesse ele, já
teríamos a guerra com os romanos - , também odeio e detesto
Aníbal , fúria e centelha da guerra. E não quero apenas que
o entreguemos em expiação da ruptura do tratado: ainda que
10 . A grande vitória naval obtida pelo cônsul Caio Lutácio Cátulo
nas ilhas Egates em março de 241 a.C. e a rendição do monte ~rie~ na
Sicília, de onde Amilcar, que se tinha defendido durante anos, se retirou
com as honras da guerra, marcaram o fim da primeira guerra púniea .
11 Tempo que durou a primeira guerra púnica (264-241 a.C.).
375
 TITO LIVIO
ninguém o reclamasse, fora preciso bani-lo para os confins do
mar e das terras, relegá-lo a um lugar de onde nem seu nome
nem a fama de seus atos chegassem até nós; de onde já não
pudesse mais perturbar a tranqüilidade de nosso Estado.
Sugiro, pois, que enviemos imediatamente embaixadores
a Roma a fim de dar satisfação ao Senado. Outros partirão
a exigir de Aníbal que arraste o exército para longe de Sagunto
e se ponha à disposição dos romanos, nos termos do tratado.
Proponho ainda uma terceira embaixada, que devolverá aos
saguntinos os seus bens".
Os pedidos da embaixada são ll . Finda a arenga de Ha-
rejeitados. Parte de Sagunto não, ninguém julgou ne-
cai em poder de Aníbal. cessário responder-lhe, a
tal ponto a quase totali-
dade dos senadores pertencia a Aníbal, e o que é mais, recri-
minou-se Hanão por falar em termos mais hostis que Flaco
Yalério, o embaixador romano. A seguir, foi declarado aos emis-
sários de Roma que a guerra partira dos saguntinos, não de
Anfbal , e que o povo romano agiria injustamente se preferisse
a aliança dos agressores à amizade mais antiga dos cartagineses.
Enquanto os romanos perdiam tempo com embaixadas, Aní-
bal, julgando seus soldados fatigados por combates e trabalhos,
concedeu-lhes alguns dias de repouso, após dispor postos para
vigiar as coberturas e outras obras de assédio. Mas continuava
a inflamar-lhes o ardor tanto pela cólera - excitando-os contra
o inimigo - quanto pela esperança de recompensas. E quando,
diante de todo o exército, declarou que o butim da cidade, após
a tomada, pertenceria aos soldados, o ardor explodiu de tal
maneira que, fosse dado ali mesmo o sinal de ataque, nenhuma
força talvez os contivesse.
Embora os saguntinos tivessem tido algum repouso em
termos de combates - não sendo, por uns poucos dias, nem
sitiantes nem sitiados - . não cessaram de trabalhar dia e noite
na reconstrução da muralha , do lado em que a brecha punha
a descoberto sua praça. Então um ataque mais violento que os
anteriores sobreveio: já não sabiam bem em que ponto con-
376
HISTORIA DE ROMA
centrar primeiro, ou de preferência, suas reservas, pois ecoavam
por toda parte gritos desencontrados.
Aníbal, em pessoa, encorajava os seus no sítio em que os
cartagineses empurravam uma torre móvel que dominava em
altura todas as fortificações da cidade. A torre, aproximada da
muralha, desguarneceu-a de defensores, graças às catapultas e
batistas dispostas em todos os seus andares. Então Anfba~,
julgando a ocasião favorável, enviou cerca de quatrocentos afn-
canos com aliviões para minar a base do muro. Era trabalho
fácil , pois os blocos de pedra não tinham sido unidos _com
reboque, mas com barro, conforme o uso nas construções anttgas.
De modo que o muro desabou numa extensão maior do que
aquela que havia sido minada, e, pelas brechas, as colunas de
assaltantes penetraram na cidade. Lá dentro, apossaram-se de
uma posição elevada, onde instalaram catapultas e batistas para
contar com um forte no interior da própria cidade, rodeando
essa cidadela com um muro.
Também os saguntinos se azafamavam em erguer uma mu-
ralha interior em torno dos bairros ainda não tomados. De ambos
os lados, com máximo vigor, erguiam-se defesas e se combatia.
Entretanto, para proteger o centro da cidade, os saguntinos iam-
na tornando a cada dia menor. O demorado assédio, enquanto
isso, privava-os mais e mais das coisas necessárias e diminuía
a esperança no socorro de fora , pois os romanos estavam longe
e tudo em derredor pertencia aos cartagineses. Ainda assim os
ãnimos abalados se recobraram um pouco quando Aníbal partiu
bruscamente contra os oretanos e carpetanos, povos que, recean-
do as conscrições de Aníbal , aprisionaram seus recrutadores e
levaram o general a temer uma defecção; surpreendidos pela
rapidez de movimentos de Aníbal , depuseram as armas.
Tomada de parte da cidadela. 12. O ataque a Sagunto
O saguntino Alcão e o espanhol não foi afrouchado. Ma-
Alorco tentam obter a paz. arbal, filho de Himilcão
- a quem Aníbal encar-
regara do comando - conduzia tão vigorosamente as operações
que nem os seus concidadãos, nem os inimigos se aperceberam
377
 TITO UV IO
da ausência do general. Ofereceu alguns combates bem-sucedidos
e derrubou com o auxüio de três aríetes grande parte da mura-
lha. Aníbal, ao chegar, pôde ver o solo juncado de ruínas recen-
tes. Em seguida, o exército atacou a cidadela num combate
terrível, com fortes baixas de parte a parte; mas um setor da
cidadela foi tomado.
Dois homens tentaram então acalentar uma frágil espe-
rança de paz, o saguntino Alcão e o espanhol Alorco. Alcão,
supondo conseguir alguma coisa com suas súplicas, penetrou
à noite, despercebido dos saguntinos, no acampamento de Aní-
bal; mas quando se deu conta de que lágrimas nada lograriam
e que as condições oferecidas eram deploráveis, como que ema-
nadas de um vencedor irritado, transformou-se de parlamentar
em desertor e permaneceu com o inimigo, afirmando que a
morte era inevitável para quem fosse propor semelhantes con-
dições de paz aos saguntinos: teriam de passar os bens aos turde-
tanos e, após entregar todo o ouro e prata que possuíam, sair
da cidade com a roupa do corpo para ir morar onde os carta-
gineses o determinassem. Como Alcão insistisse que os sagun-
tinos não aceitariam a proposta, Alorco, dizendo que os cora-
ções são vencidos depois de vencido o resto, empenhou-se em
negociar aquela paz. Era então soldado de Aníbal, mas amigo
e hóspede oficial dos saguntinos. Entregando abertamente a
espada às sentinelas inimigas, atravessou as fortificações e foi
conduzido, conforme pedira, diante do pretor de Sagunto. Toda
espécie de gente afluiu então, mas foi afastada; e o Senado deu
audiência a Alorco, que se pronunciou nos seguintes termos:
Discurso de Alorco. 13 . " Se vosso concidadão, após pe-
dir paz a Aníbal, houvesse trazido
as condições propostas por este, teria me poupado a presente
iniciativa, pela qual venho a vós sem ser nem parlamentar de
Aníbal, nem desertor. Mas uma vez que Alcão, ou por vossa
falta ou pela dele, resolveu permanecer com o inimigo - por
falta dele, se simulou medo, pela vossa, se de fato tem algo a
temer quem vos vem contar a verdade - , decidi informar-vos
de que existem certas condições para a salvação e a paz, e o
378
HISTORIA DE ROMA
faço em nome dos antigos laços de hospitalidade que nos unem.
Basta isto para provar que o que vos digo é por vós, não ~or
outra causa qualquer: enquanto pudestes resistir pel~s pr?pnas
forças enquanto esperastes o socorro dos romanos Jamats vos
falei de paz. Mas agora que, da parte dos romanos , já nenhuma
esperança existe, e que vossas armas e muralhas não mais po.dem
defender-vos, trago-vos uma paz mais necessária que vantaJosa.
Há esperança de que ela se concretize se escutardes como ve~­
cidos aquilo que Aníbal vos propõe como vencedor; se consi-
derardes não o que vos é tirado - pois tudo pertence ao. ven-
cedor 1 2 - mas o que vos é deixado. Aníbal-vos toma a ctd~de
que, parcialmente destruída, já é praticamente ~ele; mas de~a
terras para vós, na intenção de vos fixar num sítio onde possats
erguer nova morada. Ordena que lhe seja entregue todo o ouro
e prata do tesouro e dos particulares; mas vossas pes.so~s, .de
vossas mulheres e filhos, ele as põe a coberto de vtolenctas
se desarmados e com duas mudas de roupa cada um , consen-
ti;des em evacuar Sagunto. Essas as condições impostas pelo
inimigo vencedor, as mesmas que, embora penosas e duras ,
vossa situação aconselha aceitar. Quanto a mim, não descar~o
a possibilidade de que Aníbal venha a fazer alguma concessao
depois que entregardes todo o poder a ele. ~as, para n?s atermos
unicamente às condições já propostas, mats vale acettá-las que
sucumbir, permitindo que sob vossos olhos esposas e filhos
sejam arrebatados, conforme o direito da guerra".
Aníbal toma Sagunto . 14 . A {l· m de ouvir, a multidão
se espalhara pouco a pouco em
volta do Senado, onde se achava uma assembléia do povo.
Súbito, os principais cidadãos, retirando-se sem esperar. uma
palavra decisiva trouxeram toda a prata, todo o ouro tirados
dos monumento~ e das casas para a praça; ali acenderam às
pressas uma fogueira e atiraram nela os objetos, lançando-se
eles próprios, em grande número, à v~rage~ das chamas. Seme-
lhante ato enchia a cidade de verdadetra cnse de loucura quan-
12 . Era de fato a regra na antigüidade.
 TITO LfVIO
do. Já embaixo, outro rumulto se fez ouvir para os lados da
cidadela. Uma torre, há muito fendida, desabara; uma coorte
cartaginesa. correndo sobre os destroços, avisou ao general que
a cidade inimiga se achava desguarnecida dos postos e guardas
habituais. E Aníbal , compreendendo que não devia hesitar num
momento daqueles, atacou a praça com todas as suas forças
tomando-a sem tardança e ordenando que fossem mortos todos
os habitantes adultos. Ordem cruel, mas que quase diríamos
necessária como o demonstrou o desenrolar dos acontecimentos:
de fato , como poupar homens que, encerrados com mulheres e
filhos em suas casas, faziam-nas desabar lançando-lhes fogo ou.
de armas na mão. resistiam até a morte?
Discussão sobre a data I 5 . Recolheu-se enorme butim .
da tomada de Sagunto. Embora a maior parte dos obje-
tos tivesse sido propositalmente
quebrada pelos proprietários e, durante o massacre, a cólera dos
vencedores dificilmente lhes permitisse distinguir a idade dos
vencidos (além disso, os prisioneiros foram adjudicados aos sol-
dados), o produto da venda dos objetos trouxe, é voz geral,
enorme soma ao tesouro. A Cartago, foram enviados grandes
quantidades de móveis e tecidos preciosos.
Sagunto foi tomada oito meses depois do início do ataque,
no dizer de alguns autores . Dali, informam eles, Aníbal partiu
para quartéis de inverno em Cartagena, e foi quatro meses
depois de sua partida desta cidade que chegou à Itália. Se assim
foi, não é possível que Públio Cornélio e Tibério Semprônio
tenham sido cônsules para, ao mesmo tempo, receber os embai-
xadores de Sagunto no começo das hostilidades e, ainda no
cargo, combater Aníbal , um nas margens do Ticino c ambos
em Trébia, algum tempo depois. Ou esses acontecimentos foram
sensivelmente mais aproximados uns dos outros ou o início do
ano que teve por cônsules Públio Cornélio e Tibério Semprônio
assistiu não ao começo do ataque, mas à tomada de Sagunto.
Com efeito, a batalha de Trébia não pode ser situada no ano
consular de Cneu Servílio e Caio Flamínio, pois este último
assumiu o cargo em Armínio após ter sido proclamado cônsul
180
HI ST ó RIA DE ROMA
por Tibério Semprônio, o qual, vindo a Roma em seg~ida à
batalha de Trébia para empossar os eleitos, volto~ depo1s das
eleições para os quartéis de inverno de seu exércitO.
Inquietação em Roma. 16. Quase ao mesmo tempo re-
gressaram os embaixadores manda-
dos a Cartago, informando que tudo naquela cidade se mostrava
hostil, e chegou a notícia da queda de Sagu~to. Fora~ profundos,
entre os senadores, os sentimentos de tnsteza e p1edade para
com aliados massacrados de modo tão indigno, a vergo~ha por
não lhes ter levado socorro, a cólera contra os cartag1~e_se~ e
0 receio pelo interesse supremo do Estado, como se o IOlmlgo
já estivesse às portas. Os espíritos, perturbados por tantas emo-
ções ao mesmo tempo, quase não se davam conta de sua ext~ema
agitação: com efeito, jamais inimigo mais ardente e behcoso
viera às mãos com os romanos, jamais o Estado se mostrara
mais inerme e despreparado para o combate. . .
Sardos, corsos, ístrios e ilírios, dizia-se, ma1s estimularam
que aguçaram as armas romanas; e co~tra os. ~auleses fora ~r~­
ciso antes improvisar defesas que abnr hostilidades: Já o '"~'­
migo cartaginês era veterano, habituado durante vmte e tres
anos a vencer rudes campanhas entre os povos da Espanha e
afeito ao comando de um general extremamente enérgico. Aca-
bava de expurgar uma cidade riquíssima e passava o Ebro;
trazia consigo uma multidão de povos espanhóis por ele suble-
vados e por certo sublevaria também as hordas gaule~as, sempre
prontas às armas. Contra o mundo inteiro é que se fana a guerra ,
na Itália c diante dos muro de Roma.
Preparativos de guerra: 17 . Já tinham sido desig-
o cônsul Semprônio é enviado nadas as duas províncias
à Sicília; Cornélio recebe consulares. E os dois côn-
como província a Espanha. sules foram convidados a
tirar a sorte. A Cornélio
coube a Espanha, a Semprônio a África e a Sicília. Nesse ano ,
decretou-se a mobilização de seis legiões, tantos aliados quantos
os cônsules julgassem necessá rio e a frota mais poderosa possível.
381
 TITO LIVJO
Recrutaram-se vinte e quatro mil infantes e mil e oitocentos
cavaleiros romanos; como aliados, quarenta mil infantes e quatro
mil e quatrocentos cavaleiros. O número de navios chegou a
duzentas e vinte qüinqüerremes e vinte barcos rápidos. Em
seguida o povo foi convocado a declarar guerra aos cartagineses.
Fizeram-se preces públicas e pediu-se aos deuses um feliz termo
para a guerra que o povo romano tivesse votado.
Assim ficaram divididas as tropas consulares: coube a Sem-
prônio duas legiões - cada qual com quatro mil infantes e
trezentos cavaleiros - ; dezesseis mil infantes e mil e oitocentos
cavaleiros aliados; e cento e sessenta navios grandes e doze
barcos rápidos. Com essas forças de terra e mar, Tibério Sem-
prônio foi enviado à SicOia, a fim de passar à Africa se o outro
cônsul conseguisse afastar da Itá lia os cartagineses. Cornélio
recebeu forças menores, uma vez que o pretor Lúcio Mânlio
for~ enviado à Gália com um vigoroso corpo de tropas. Os
maiOres cortes foram no número de navios: ficou com apenas
sessenta qüinqüerremes - porquanto não se acreditava que o
inimigo viesse por mar e disposto a encontros navais - , duas
legiões com a cavalaria habitual, mais catorze mil infantes e seis-
centos cavaleiros aliados. Duas legiões romanas e dez mil in-
fantes aliados, seiscentos cavaleiros romanos e mil aliados, foram
as forças da província da Gália empenhadas no mesmo afã,
a guerra púnica.
Roma declara guerra a Cartago . 18. Feitos esses prepara-
tivos, resolveu-se dispor
todos os negócios com regularidade, antes do início das hosti-
lidades. Foram enviados à África embaixadores de idade avan-
çada, Quinto Fábio 13, Marco Lívio, Lúcio Emílio, Caio Licínio
e Quinto Bébio, a fim de perguntar aos cartagineses se fora por
decisão de seu governo que Aníbal atacara Sagunto, bem como
se, como aparentava, os cartagineses reconheciam e aprovavam
aquela ação, tomada de acordo com o desejo público, de de-
13 . Não se trata de Quinto Fábio Máximo, o Contemporizador,
digno adversário de Aníbal.
382
HISTORIA DE ROMA
clarar-lhes guerra. Chegados a Cartago, os emb?ixadore~ foram
recebidos em audiência pelo Senado. Como Qumto Fábto colo-
casse unicamente a questão de que estava encarregado, um dos
cartagineses declarou: . . .
"Bem temerária, romanos, foi já vossa pnmetra embatxada,
pela qual pedíeis que vos entregássemos Aníbal, o qual supos-
tamente atacava Sagunto por decisão própria. Mas a de agora,
embora até aqui se tenha mostrado mais branda, é no fundo
ainda mais dura. A outra apenas acusava e reclamava Aníbal;
esta pretende arrancar de nós a confissão de uma fal~a, e, co~o
de réus confessos, exigir imediata reparação. Ora, cutdo eu, nao
é 0 caso de indagar se o ataque a Sagunto foi uma decisão
pública ou particular, mas se foi legítima o~ não. Cab.e-vos ave-
riguar de nosso concidadão - e, sendo JUSto, pum-lo - se
agiu conformemente à nossa vontade ou à. ~ele; convosco, s~ s~
pode discutir um ponto: o tratado permttta semelhante açao ·
Eis por que, uma vez que vos apraz distinguir entre ~ que. os
generais fazem por decisão pública e por vontade próprta, extste
entre nós um tratado, concluído pelo cônsul Caio Lutácio, no
qual, entre as precauções tomadas em favor dos aliados. de
ambos os partidos, nenhuma há que contemple os saguntmos
- que, aliás, ainda não eram vossos aliados. " Mas - direis - ,
no tratado firmado com Asdrúbal existe uma exceção em favor
dos saguntinos". A isso responderei apenas o que o~vi de v~s
próprios. Como o tratado que concluímos com o consul Cato
Lutácio não foi nem autorizado pelo Senado nem votado pelo
povo, vós o declaraste sem efeito, de sorte que um no~o d~­
cumento foi firmado por decisão pública. Se não vos constderats
ligados por um compromisso feito à revelia de vossa autoriz~ção
e vosso voto, também nós não podemos nos ater ao que Asdrubal
assinou sem que soubéssemos. Deixai, pois, de falar em Sagunto
e no Ebro e dizei abertamente o que guardais há muito tempo
no espírito!" .
Então o romano , fazendo uma dobra com a toga, dtsse:
" Aqui vos trazemos a guerra e a paz; escolhe i qual vos aprazl"
A essas palavras, gritaram-lhe com igual ferocidade que desse
o que quisesse. E o embaixador, desfazendo a dobra, declarou
383
 TITO UVJO
que dava a guerra. Todos responderam que a aceitavam e que
o mesmo ardor que punham na aceitação poriam também na
execução.
Os embaixadores romanos 19 . Essa maneira de colocar
tentam em vão atrair a questão e de declarar a guer-
as cidades espanholas ra pareceu mais conforme à
para a aliança com Roma. dignidade do povo romano que
disputar com palavras sobre o
valor dos tratados, antes e sobretudo depois da queda de Sa-
gunto; Pois, ~ disputar com palavras, em que o tratado de
Asdrubal pod1a ser comparado ao tratado primitivo de Lutácio
que fora modi.fi~ado? Ao de Lutácio, acrescentara-se expressa~
ment~ a cond1çao de que fosse ratificado pelo povo; ao de
Asd~bal, nenhuma condição semelhante fora imposta; enquanto
ele v1veu, tantos anos de silêncio de tal forma o consolidaram
que, mesmo após a morte do autor, nenhuma modificação foi
proposta. ~as a~d.a que nos ativéssemos ao tratado primitivo.
es~e garantia suf1c1entemente os saguntinos, excetuando-se os
aliados das duas nações; pois não se acrescentara nem "os alia-
dos atuais" nem "proibindo-se aliciar outros". Ora, uma vez
que se permitia tomar novos aliados, quem julgaria equitável
que um povo não pudesse ser acolhido como amigo, indepen-
d:ntemente de ~eus méritos, e, uma vez posto sob proteção,
nao ~asse socorndo? A única condição era que, em se tratando
de aliados dos cartagineses, não os induzíssemos à defecção nem
os aceitássemos se se separassem espontaneamente.
Deixando Cartago, os embaixadores romanos, conforme as
ordens de Roma , passaram à Espanha onde lhes incumbia atrair
as ~idades par.a ,a. aliança com Roma, em lugar da cartaginesa.
Estiveram de IniCIO entre os bargúsios e foram bem-recebidos.
porquanto essa gente mostrava-se farta da dominação púnica;
além-Ebro, despertaram em uma profusão de povos o desejo
de uma sorte diferente. Foi a seguir a vez dos volcianos, cuja
proposta, espalhando-se pela Espanha, afastou da aliança romana
todos os povos da região. Com efeito, um dos anciãos proferiu,
na assembléia, as seguintes palavras :
384
HISTORIA DE ROMA
"Que impudência, romanos, pedir-nos que prefiramos a
vossa à amizade púnical Os que o fizeram, tornando-se vossos
aliados, vós os abandonastes com mais crueldade do que a que
o inimigo cartaginês demonstrou ao hostilizá-los! Ide buscar
sócios, aconselho-vos, lá onde se ignore o desastre de Sagunto.
Aos povos de Espanha a ruína dessa cidade, lição sinistra mas
marcante, ensinará que pessoa alguma se deve fiar da boa-fé
e da aliança dos romanos."
Instados a deixar imediatamente o território dos volcianos,
os embaixadores desde então não mais obtiveram das assembléias
espanholas respostas mais benevolentes. Partiram, pois, para a
Gália, após percorrer em vão a Espanha.
Os embaixadores fracassam 20. Entre os povos desse país,
igualmente na Gália. presenciaram um espetáculo
novo e terrível. ! que, se-
gundo o costume do país, todos compareciam armados à assem-
bléia. Os embaixadores, exaltando a glória, o valor do povo
romano e a grandeza de seu império, solicitaram aos gauleses
que não facultassem ao cartaginês, que trazia a guerra contra
a Itália, a passagem por seus campos e cidades. E tamanhos
foram - é fama - os acessos de risos e murmurações que
mal puderam magistrad0s e anciãos acalmar os ânimos juvenis ...
a tal ponto pareceu ridículo e impudente esse pedido, esse con-
selho ministrado aos gauleses de impedir que a guerra chegasse
à Itália fazendo-a voltar-se contra eles próprios, expondo seu
território à pilhagem para poupar o dos outros! Acalmado por
fim o tumulto, os gauleses responderam que para eles não havia
nem méritos romanos nem ultrajes cartagineses capazes de levá-
los a empunhar armas por um ou outro partido; mais: ouviam
dizer que homens de sua raça eram expulsos pelos romanos
das terras e fronteiras da Itália, pagavam tributo, sofriam todas
as indignidades possíveis.
Quase as mesmas palavras foram trocadas em outras as-
sembléias da Gália: os embaixadores não ouviram sequer uma
frase verdadeiramente acolhedora e pacífica antes de chegar a
385
 TITO LIVIO
Marselha. Nesta cidade, os aliados marselheses, após cuidadosa
e fiel investigação, revelaram-lhes tudo: Aníbal propiciara ante-
cipadamente o favor dos gauleses; e mesmo em relação a ele
essas nações se indisporiam - tanto sua natureza era feroz e
indomável - se, de tempos em tempos, o ouro de que eram tão
ávidos não viesse conciliar-lhes os sentimentos dos chefes.
Depois de visitarem assim as populações espanholas, os
embaixadores voltaram para Roma , de onde há pouco os côn-
sules haviam partido para suas províncias. Encontraram a cidade
em pé-de-guerra pela notícia confirmada de que já os cartagineses
tinham vadeado o Ebro.
Aníbal dá licença a seus soldados 2 I. Aníbal, após a to-
espanhóis. Na primavera, envia mada de Sagunto, re-
tropas espanholas à África em tira-se para Cartagena
troca de reforços africanos. a fim de hibernar. Ali
soube o que se fizera e
decretara em Roma e Cartago, e que era não apenas o chefe, mas
a causa da guerra. Partilhado e vendido o resto do butim, cuidou
que não devia mais tergiversar. Convocou os soldados espanhóis
de seu exército e disse-lhes:
"Aliados, tão bem como eu percebeis que, depois de paci-
ficar todos os povos de Espanha, impõe-se finalizar esta cam-
panha e dar baixa às tropas ou levar a guerra a outros países.
Pois vossas nações só serão prósperas em bens - não só os
da paz, mas também os da vitória - se formos exigir de outras
o butim e a glória. Assim, uma vez que ficareis longe de casa
enquanto durar a campanha iminente e não se pode de forma
alguma dizer quando podereis rever vossas casas e tudo quanto
vos é caro, concedo uma licença a quem queira ir ver os seus.
Comparecei aqui, ordeno-vos, no começo da primavera, para
empreendermos juntos, com o auxílio dos deuses, uma guerra
que nos propiciará glória e despojos sem conta".
A permissão espontaneamente concedida de ir rever seus
lares agradou à maioria dos homens já saudosos e sabedores de
que a saudade aumentaria ainda mais em futuro. O repouso de
um inverno inteiro entre as fadigas experimentadas e as que
386
HISTORIA DF ROMA
logo deviam experimentar deu-lhes forças e coragem renovadas.
No início da primavera . reuniram-se segundo as ordens rece-
bidas. .
Aníbal , após recensear os auxiliares de todas as na~lona-
lidades, partiu para Cádis a fim de cumprir os votos fe1tos a
Hércules e outros que tencionava fazer , para o caso de os acon-
tecimentos se mostrarem favorávei s. A eguir, preocupado ~o
mesmo tempo com o alaque e a defesa - enquanto ele próp_n o
ganhasse por terra a Itália, vindo da Espanha e das Gáhas,
não fosse a África ficar desarmada e aberta aos romanos do
lado da Sicília - , decidiu guarnecê-la com tropas consistentes.
Em troca pediu reforços africanos, sobretudo em arremessadores
de dardos levemente armados, a fim de que os africanos na
Espanha e os espan hóis na África - deven~o uns e outros
ser os melhores soldados longe de casa - s1rvam como que
atados por essa mútua garantia. Enviou para a África treze
mil. oitocentos e cinqüenta infan tes armados com escudos pe-
quenos. mais oitocen tos e setenta fundibulários balear:s e du-
zentos cavaleiros de diferentes nações. Por ordem sua, ta1s tropas
deveriam ser repartidas entre a defesa de Cartago e de outros
sítios ao longo da África . Entrementes, tendo enviad_o .recru-
tadores às cidades africanas, ordena que os quatro m1l JOvens
de elite alistados vão para Cartago como seus defensores e
reféns .
Aníbal deixa na Espanha 22 . Não descorando também da
Espanha - tanto mais que sa-
seu irmão Asdrúbat
bia terem-na percorrido os em-
com um exército.
baixadores romanos na tentativa
de aliciar seus chefes - Aníbal adjudicou a seu irmão Asdrúbal.
homem empreendedor, essa província ora reforçada co~ t~_opas
oriundas sobretudo da Áfri ca: onze mil , oitocentos e cmquenta
in fantes a f ricanos, trezentos lígures e quinhentos baleares. A essa
infantaria auxiliar acrescentou, como cavaleiros. quatrocentos e
cinqüenta libi fe nícios (mestiços de cartagineses e afri~anos) ;
cerca de mil e oitocentos númidas c mouros. que hab1tam a
387

TITO UVIO
costa, e mai s uma pequena tropa de ilérgetas da Espanha (tre-
zentos cavaleiros). Fina lmente, para que nenhuma arma faltasse
às tropas de terra . vi nte e um elefa ntes. Deu também a Asd rúbal
uma frota para proteção da costa, uma vez que , tendo os roma-
nos vencido nesse tipo de guerra , era de crer que con tinuassem
recorr~ndo ao m~smo expediente: cinqüenta qüinqüer-remes, duas
quad_nrremes, cmco trirremes ; mas só estavam a prestadas e
prov1das de remadores trinta e duas qüinqüerremes e as cinco
trirremes.
De Cádis, Aníbal voltou a seus quartéis de inverno e m
Cartagena. Dali, ultrapassando O nussa , conduziu ao longo da
costa o exército para o Ebro. Conta-se que então, em sonhos.
a~a~eceu-lh~ um jovem de aspecto divino dizendo-se e n viado por
!uplt.er a f1m de conduzi-lo à Itália : devia Aníbal segui-lo sem
Jama1s apartar os olhos dele. Assombrado , o cartaginês de início
o acompanhou sem olhar em volta; depois , num assomo de
natural curiosidade para saber o que lhe fora interdito ver
atrás de si, não pôde refrear os olhos: percebeu en tão, às suas
costas, uma serpente de enorme grossura avançando a derrubar
galhos e árvores. seguida de um furacão fragoroso . 1ndagando
o q~e vinha a ser semelhante mon stro , semelhante prodígio ,
ouv1u que era a devastação da Itá lia; quanto a ele, continuasse
a avançar sem perguntar mais nada , de ixando os destinos en-
voltos no mistério.
Aníbal atravessa o Ebro, depois 23. Feliz com a aparição,
os Pireneus, onde deixa Hanão Aníbal dividiu as tropas
com 10.000 homens. em três colunas. Fê-las
. passa r o Ebro e enviou
ad1ante, para as te rras que o exército deveria cruzar, emissários
encarregados de aliciar os gauleses com presentes e observar
as. passagens dos Alpes. Noventa mil infantes e doze mi l cava-
le•r~s vadearam o Ebro sob suas ordens. Submeteu em seguida
os llé rge tas, os bargú sios, os ausetanos e a Jacetãnia situada
ao pé dos Pireneus, dando por chefe a toda essa regiã~ Hanão
encarregado de proteger as gargantas que unem as Espanhas à~
388
H I STOR I A DE ROMA
Gálias. Dez mil infantes, eis o que recebeu Ha não para gua rdar
a área, mais mil cavaleiros.
Quando o exército penetrou nos desfiladeiros dos Pireneus
e se confirmou entre os bárbaros o boato da guerra contra Roma,
três mil infantes carpetanos arrepiaram caminho, assustados
menos com a guerra - isso é sabido - que com a extensão
da rota e a passagem intrans ponível dos Alpes. Sendo perigoso
chamá-los de volta o u contê-los à fo rça, pois isso poderia irritar
os ânimos ferozes dos outros soldados, Aníbal deu baixa a mais
de sete mil homens aos quai s percebeu que a campanha pesava
igualmente, fin gindo assim ter dispensado de mo to próprio os
carpetanos.
Aníbal obtêm de chefes gauleses 24. Temendo que a tar-
dança e a inação per-
passagem livre por suas terras.
turbassem os espíritos,
passou com o restante das tropas os Pirene us e acampou nas
imed iações da praça de lliberros. O s gauleses sabiam que a
guerra estava sendo levada cont ra a Itália; mas, ante o rumor
de que além-Pireneus os espanhó is tinham sido submetidos pela
violência e forçados a acolher poderosas guarnições, o medo d a
servidão levou alguns povos a tomar armas e a se reunir em
Ru scino. A essa notícia Aníbal, que receava mais os atrasos
que a guerra, enviou parlamen tares aos régulos daqueles povos.
Desejava - mandou dizer-lhes - uma conversa pessoal; apro-
ximassem-se então os lliberros ou ele mesmo iria para Ruscino.
a fim de que a proximidade facilitasse o encontro. Em seu acam-
pamento os receberia com júbilo, assim como não hesitaria em
visitá-los em pessoa . À Gália pede hospitalidade, não leva hosti-
lidade; não arrancará da espada se os gauleses lhe facultarem
passagem para a Itália. Isso se conversou por intermédio dos
delegados; mas quando os régulos gauleses , após aproximar ime-
diatamente seu acampamento de I li berros, foram despreocupa-
dos avistar-se com o Cartaginês, cederam aos presentes ganhos
em profusão e, numa paz favoráve l, permitiram que o exército
cruzasse seu território diante de Ruscino.
389
 TITO l.t 10
Na GáJja cisalpina, os boios 25 . Entremences, à Itália
se revoham e sitiam Módena. não chegara notícia alguma,
O pretor Lúcio Mânlio afora a da passagem do Ebro
cai numa emboscada. realizada por Anfbal , anun-
ciada em Roma por emissá-
rios ~arselhe es. Eis que, como se já tivesse ele passado os Alpes,
os bo1os, após tentar aliciar os ínsubros, se decidiram pela de-
fecção, menos em virtude do antigo rancor contra o povo ro-
mano que pelo fato de recentemente, perto do Pó, terem sido
estabelecidas em território gaulês as colônias de Placência e
~remona, o que não podiam tolerar. Assim, tomando intempes-
tJvamente as armas e atirando-se contra esse mesmo território
espa lharam ali tamanho terror e tantas sublevações que nã~
apenas a massa de camponeses, mas os próprios triúnviros ro-
man?s chegados para atribuir as terras aos colonos, perderam a
confiança nos muros de Placência e buscaram refúgio em Móde-
na. Eram eles Caio Lutácio, Caio Servílio e Marco Ãnio. O
nome de Lutácio não se disputa; mas em lugar de Ãnio e Servílio
alguns autores fornecem Mãnio Acílio e Caio Herênio, outros
Públio Cornélio Asina e Caio Papírio Masão. Também não se
sabe ao certo se quem sofreu violências foram os embaixadores
enviados a pedir satisfação aos boios ou os triúnviros. então
ocupados em mensurar as terras.
Módena foi posta a cerco. Entretanto, os gauleses ignoravam
a arte do assédio e eram preguiçosos demais para levar a cabo
obras militares, de modo que permaneciam inativos diante dos
muros intactos. Súbito, fingiram querer discutir a paz. Os parla-
mentares dos sitiados, convidados pelos chefes gauleses a uma
entrevista, foram presos contra o direito das gentes e em vio-
lação do juramento prestado nas circunstâncias: caso não lhes
fossem devolvidos os reféns 14 • não libertariam os embaixadores.
A essa notícia e ante o perigo que corria Módena, junta-
mente com sua guarnição, o pretor Lúcio Mânlio, inflamado
de cólera, conduziu uma coluna em desordem rumo à cidade.
14 . Os reféns que liveram de entregar no fim de sua guerra prece-
denJe contra os romanos, na qual tinham sido vencidos.
390
HISTóRIA DE ROMA
Bosques cresciam então ao lado da estrada, sendo a maior ~ar~e
das terras inculta. Avançando nesse terreno sem es~ulcas, Manho
cai numa emboscada e só ao preço de enormes ba1xas consegue
chegar em terreno descoberto. Neste fortifica um acampamento
e como os gauleses não dessem mostra de tentar o ataque, os
s~ldados romanos retomam coragem embora saibam que cerca
de quinhentos companheiros tinham sido abatidos. A marcha é
retomada e 0 inimigo não se mostra enquanto o avanço se faz
por terreno aberto; mas quando a coluna penetra de novo no~
bosques, ataca a retaguarda lançando des:>rdem e medo pel
destacamento inteiro: setecentos homens sao mortos, tomam-se
seis estandartes. Só deixaram de assustar'. e os. rom~~o~ de t~mer •
quando finalmente foi vencido esse desf1lade1ro d1ftcll e e1vado
de obstáculos. A partir daí, protegendo facilmente sua coluna
em terreno descoberto, os romanos se dirigiram para Tanet~,
burgo vizjnho do Pó. Ali fortificações provisória_s,_ recursos trazi-
dos pelo rio e mesmo a ajuda dos gauleses de _Bnx1~ defenderam-
nos de um inimigo cujo número aumentava dta a d1a.
Públio Cornélio fica sabendo que 26. Quando a notícia
Aru'bal se prepara para atravessar dessa inesperada suble-
o Ródano. vação chegou a Roma
e o Senado soube que
à guerra púnica acrescentava-se uma guerra gaul_esa, or~en~u ao
pretor Caio Atflio, com uma legião romana e cmco m1l al~ad_os
recém-recrutados pelo cônsul, que levasse s~corro a_ Manho.
Sem combater _ com medo, o inimigo hav1a se retirado - ,
Atílio chegou a Taneto. ·-
Também Públio Cornélio, após recrutar uma nova leg1ao
em substituição à que partira com o pretor, saiu de Roma com
sessenta navios grandes; costeando a Etrúria e os montes_ de
lígures, depois os dos salúvios, alcançou Mars~l h a ~·. próx1mo
à primeira boca do Ródano - esse rio, com efe1to, diVIde-se em
várias bocas para se lançar no mar - , estab~leceu seu acam_pa-
mento sem saber muito ao certo se Aníbal Já cruzara os Ptre-
neus. 'Ao saber que ele se ocupava em atravessar o Ródano,
ignorando onde pudesse encontrá-lo e percebendo seus soldados
391
 TITO LfVIO
HISTôRIA DE ROMA
mal-repousados da agitada travessia enviou en uanto
trezentos cavaleiros de escol sob o' comand'o dq eslhperava, Os guias gauleses de Hanão informaram-no de que a cerca
J ·li e marse eses e
g~u eses auxt ares para reconhecerem o local e observar o de vinte e cinco milhas rio acima este, envolvendo uma ilhota,
mtgo sem se expor. ini- se dividia em dois braços, com o que aumentava a largura do
. Aníbal, que lo_grar~ a paz com outros povos graças ao inti- leito, mas diminuía a profundidade do vau. Ali havia uma pas-
:td_ament~ ou ao dmhetro, achava-se já no território dos volscos sagem e todos se apressaram em derrubar árvores para fabricar
çao po :rosa. Habitam eles as duas margens do Ródano .' jangadas e assim transpor cavalos, homens e carga. Os espanhóis,
!~~:~do nao poder ~ar~ntir contra os cartagineses as terra~ sem nenhum embaraço, juntando suas roupas e jogando-lhes por
cima os escudos de couro, deitaram-se sobre eles e cruzaram o
em m~~a~~ margem dtretta e na intenção de transformar o rio
a, ocuparam em pé-de-guerra a margem es uerda rio. O restante do exército atravessou em jangadas. No acampa-
para onde _lev_a~am quase todas as tropas de que dis ~nham' mento erguido perto da margem , as tropas, cansadas pela marcha
Os outros nbem~hos ~ mesmo os volscos que haviam fi~ado e~ noturna e por tantos trabalhos, só tiveram um dia para restaurar
casa, An~al os mduzJU por intermédio de presentes a reunir as forças : seu general queria estar atento em todos os pormenores
e construir b_arcos, tanto mais que desejavam ardentemente ver ao plano traçado por Aníbal. No dia seguinte os soldados reen-
cetaram a marcha e, por um sinal de fumaça previamente com-
aquele exército transpor o rio e livrar o mais cedo possível o
binado, anunciaram a Aníbal que haviam passado o rio e não
paf~ d~ tama~ha massa de homens, que lhe pesava. Foi possível se achavam longe. Imediatamente o Cartaginês, não tencionando
asstm JUntar Imensa quantidade de barcos e J·angadas fab . d
para as relaço- . . nca as desperdiçar a ocasião, dá sinal para atravessar o rio. Já a infan-
es entre vtzmhos. A seguir os guleses po . . taria tinha seus barcos prontos e equipados; a cavalaria os seus,
se puseram a f b . , r pnmetro,
. . a rtcar outras, abatendo árvores. Até os soldados maiores, enfileirados quase ao lado dos cavalos que cruzavam
tmpehdos pela abundância de madeira e pela facilidade d ' a nado; esses barcos, avançando a montante para quebrar o
trabalho, constr_uíram às pressas embarcações informes, se~ ímpeto da corrente, asseguravam às jangadas um vau mais
outra preocupaçao que a de fazê-las flutuar e transportar homens calmo. A maior parte dos cavalos ia a nado, seguros por correias
e bagagens.
fixadas ao alto das popas, à exceção dos que, selados e munidos
de rédeas para, logo ao desembarque, ficar à disposição dos
Hani o transpõe 0 Ródano
27 · Tudo estava bem- cavaleiros, haviam sido instalados nos barcos.
a montante para atacar
preparado para a traves-
pelas costas os volscos
sia do rio, mas 0 exér- Passagem do Ródano. 28 . Acorrem os gauleses para a
instalados na margem esquerda.
cit o se assustava ao ver margem, urlando e emitindo suas
. f a outra margem ocupada estranhas cantorias. Com os escudos sobre as cabeças e bran-
por m antes e cavaleiros inimigos. Para despistá-los Antíbal - dindo lanças, também não conseguiam sopitar o medo ante aque-
denou a H - flh d • or
. ,. anao, t o e Bomflcar, que partisse na primeira la profusão de embarcações que atulhavam o rio, os gritos
VIgília com parte das trop_as - sobretudo de espanhóis - para desencontrados de marinheiros e soldados, dos que se esforçavam
percorr~r, a montante do no, uma distância de um dia de marcha. para romper a corrente e dos que, chegados à outra margem,
A lseguir, logo que pudesse, cruzaria o Ródano, e disporia sua animavam os companheiros na travessia. E já sentiam suficiente
co una ~e sorte a poder atacar o inimigo por trás caso fosse medo pelo ruído que tinham diante de si quando, ainda mais
necessário . ' terrível, explodiu outro clamor às suas costas: Hanão acabava
de varar seu acampamento. Não tardou a aparecer em pessoa
392
393
 TITO UVIO
e um perigo duplo envolveu os gauleses: à frente, a massa de
ho~ens qu.e desembarcava, atrás o exército que os espicaçava
de ImprOVISO. Após tentar resistir em ambas as frentes, sem
sucesso, la.nçaram-se pelo ponto onde viam mais livre a passa-
gem, e, d~spers~ndo-se _à pressa, fugiram cada qual para seu
burgo. Ambal pode entao atravessar com a maior tranqüilidade
o r:stante das tropas , e, desdenhando daí por diante as suble-
vaçoes dos gauleses, ergueu acampamento.
. Par~ a travessi.a dos el~fantes creio que se recorreu a expe-
dJ~ntes d1versos; ex1stem, ahás, relatos variados sobre o episódio.
D1zem. u~s que, reunidos os animais na margem, o mais feroz
d:les, 1rntado co~ o condutor que escapara lançando-se à água,
pos-se a persegUI-lo a nado, arrastando atrás de si os demais·
os elefantes, malgrado o medo das águas profundas, ao per~
derem pé eram levados pela própria corrente para a outra mar-
gem. Mas. em geral se admite que foram transportados em jan-
gadas, p01s, sendo esse meio o mais seguro em circunstâncias
semelhantes, naquelas é de crer que tivesse sido adotado
Uma janga~a de duzentos pés de comprimento por c.inqüen-
ta de largura fo1 lançada ao rio, e, para que a água não a arras-
tasse , amarrada a montante por diversos cabos sólidos presos
à margem. Sobre a madeira espalhou-se uma camada de terra
para q~e os animais avançassem sem medo, como sobre o chão.
Outra Jangada de igual largura, mas com cem pés de compri-
mento e apta a atravessar o rio, foi amarrada à primeira. Então
?s elefa~tes, com as fêmeas à frente, foram tangidos para a
Jang~da 1móvel como um caminho; passando daí para a menor
contJgua, as amarras são desfeitas e alguns barcos leves a puxa~
para a outra margem. Desembarcados os primeiros animais,
b~scam-se outros, que atravessam da mesma maneira. As bestas
nao mostram inquietação, como se estivessem sobre uma espécie
de ponte ligada à terra ; mas, quando a segunda jangada é desa-
tada e se faz ao largo, começam a assustar-se, encostando-se umas
nas outras; as que se acham nas bordas procuram afastar-se da
água e ~or al~um tempo se agitam, até que se tranqüilizam sob
o própno efe1to do medo, vendo-se completamente cercadas de
água. Alguns animais se debateram até cair no rio, onde, man-
394
HISTóRIA DE ROMA
tidos à tona pelo próprio peso, sacodem seus condutores e, bus-
cando com pé prudente chão firme , ganharam a terra.
Combate de cavalaria 29 . Enquanto se atravessavam os
com os romanos. elefantes, Aníbal enviou rumo ao
acampamento romano quinhentos
cavaleiros númidas encarregados de espionar sua posição, efe-
tivos e planos. Esse esquadrão foi encontrado pelos trezentos
cavaleiros enviados, como se disse 15 , da embocadura do Róda-
no. Travou-se um combate mais terrível do que seria de esperar
do número de envolvidos: além de grande quantidade de feridos ,
houve uma carnificina praticamente igual de parte a parte, e
apenas a fuga e o pânico dos númidas deu a vitória aos romanos,
já extremamente cansados. Do lado do vencedor tombaram cerca
de cento e quarenta homens (nem todos romanos, alguns gau-
leses); do lado do vencido, mais de duzentos. O combate, início
e presságio da guerra, anunciou o êxito dos romanos para o
conjunto das operações, mas também muito sangue derramado
e uma luta duvidosa antes da vitória final.
A seguir os esquadrões voltaram para junto de seus gene-
rais. Mas Cipião foi incapaz de tomar um partido, salvo o de
aguardar os projetos e ações do inimigo antes de ele próprio
tentar alguma coisa. Aníbal, perguntando-se se prosseguiria a
marcha encetada para a Itália ou iria às mãos com aquele
exército romano- o primeiro que o enfrentava-, foi desviado
de uma batalha imediata pela chegada de embaixadores boios
e do régulo Magalo, os quais, prometendo que o guiariam e
partilhariam seus riscos, eram de opinião que não se iniciasse
ainda a guerra, não se concentrassem forças em parte alguma
antes da chegada à Itália. A massa de soldados temia bastante
o inimigo, pois não morrera a lembrança da primeira guerra
púnica; mas acima de tudo receava a rota extensa e os Alpes,
de fama aterradora principalmente para quem não os conhecia.
15 . c r. supro. capítulo 26.
395
 TITO LCVIO
Discurso de Aníbal 30 . Por isso Aníbal, tendo resolvido
a seus soldados. prosseguir para a Itália, reuniu seus
soldados e abalou os ânimos com sen-
timentos contrários, graças a reprimendas e exortações, pergunta
a si mesmo, diz, que terror súbito terá invadido corações sempre
intrépidos. Há muitos anos fazem campanhas como vencedores;
só deixaram a Espanha depois que todas as nações e terras
contidas entre dois mares caíram em mãos cartaginesas; em
seguida, indignados pelo pedido de entrega do homem que asse-
diava Sagunto, como compensação, passaram o Ebro dispostos
a destruir o nome romano e libertar o mundo. Ninguém achou
longo o caminho enquanto marchavam do ocidente para o
oriente; e agora que a maior parte da rota fora vencida, que
os desfiladeiros dos Pireneus, em meio a populações ferocíssimas,
foram superados, que o enorme Ródano acabava de ser cruzado
apesar dos milhares de gauleses a defendê-lo e da necessidade
de domar a violência de sua corrente, que já avistam os Alpes,
cuja vertente oposta faz parte da Itália, irão deter-se extenuados
ante as próprias portas do inimigo? Agindo assim, que pensam
sejam os Alpes a não ser montanhas altas? Basta imaginá-los
mais portentosos que a cadeia dos Pireneus, porque não existem
terras que toquem o céu e sejam intransponíveis ao gênero
humano. Na realidade, os Alpes são habitados, cultivados, pro-
duzem e nutrem seres vivos; possuem passagens praticáveis para
exércitos. Os embaixadores que vêem diante de si não precisam
de asas para passar os Alpes. Seus ancestrais sequer eram do
país: vindos do estrangeiro para habitar a Itália, em colunas
muitas vezes imensas, com mulheres e filhos à maneira de emi-
grantes, atravessaram sem perigo aqueles mesmos Alpes. Ora,
para o soldado em armas, que não carrega senão seus objetos
de guerra, que terreno pode ser impraticável ou intransponível?
Para tomar Sagunto, que perigos e penas não enfrentaram du-
rante oito meses? E ao marchar sobre Roma, capital do mundo,
um obstáculo lhes parecia suficientemente rude para retardar
a empresa? Os gauleses tomaram outrora o que o cartaginês
desespera de atacar! Em conseqüência, que cedam em resolução
396
HISTóR I A DE ROMA
e coragem a uma nação que venceram constantemente nos últi-
mos dias; ou esperem, como termo de sua marcha, a planície que
vai do Tibre aos muros de Roma.
Aníbal sobe o R6dano até a 31. Após encorajar os sol-
confluência do (sara, obtém o dados com essas exorta-
apoio dos al6brogos, depois ções, Aníbal ordena-lhes
se dirige para os Alpes. recobrar as forças e prepa-
rar-se para marchar. Ao
outro dia parte e, remontando o Ródano, ganha o interior da
Gália. Não que aquela fosse a rota mais direta para os Alpes :
mas julgava que, quanto mais se afastasse do mar, menos possi-
bilidade tinha de encontrar os romanos, com quem não tencio-
nava haver-se antes de pôr pé na Itália. Em quatro etapas chegou
à Ilha. Lá o fsara e o Ródano, descendo dos Alpes em sentido
oposto, juntam-se abraçando uma língua de terra; a essa planura
situada entre ambos deu-se o nome de Ilha. Perto habitam os
alóbrogos, nação que já na época não era inferior a nenhuma
nação gaulesa em recursos e reputação 18 • Achava-se então divi-
dida, com dois irmãos disputando o trono. O mais velho, de
início, tomara o poder - chamava-se Branco - ; mas o mais
novo, apoiado por uma liga de jovens com menos direitos e
mais força, tentava expulsá-lo. Como, de maneira bastante opor-
tuna, se solicitasse a decisão de Aníbal quanto àquela discórdia,
ele, tornado árbitro do trono, seguiu o parecer do Senado e dos
grandes, entregando o poder ao mais velho. Por esse serviço
obteve urna recompensa em víveres e objetos de toda sorte,
sobretudo roupas, que era preciso preparar desde já devido à
reputação de país gélido que tinham os Alpes.
Tendo, pois, apaziguado as dissensões dos alóbrogos, Aníbal
se pôs em marcha para os Alpes, não em linha reta , mas obli-
quando à esquerda; em seguida, infletiu a marcha do lado dos
tricastinos, de onde, pela orla do território dos vocôncios, dirigiu-
16 . Os alóbrogos ocupavam toda a região compreendida entre o
Ródano, os Alpes e o (sara.
397

TITO UVIO
se rumo aos tricórios, não encontrando em caminho nenhum
obstáculo antes de chegar ao Druença. Esse rio, que também
desce dos Alpes, é, de longe, o curso de água da Gália mais
difícil de atravessar. Embora role imensa quantidade de água.
não é navegável ; destituído de margens que o contenham. segue
ao mesmo tempo vários leitos diferentes, criando sem cessar
novos vaus e sorvedouros, o que torna a passagem incerta até
para quem avança caminhando. Ademais, arrastando montes de
seixos aglomerados, não oferece ao caminhante nenhum terreno
firme e seguro. Como, na ocasião, estivesse engrossado pelas
chuvas, ofereceu enormes problemas durante a travessia , mos-
trando-se os soldados inquietos, entre outras coisas, pelo próprio
medo e por clamores incompreensíveis.
Públio Comélio volta 32. O cônsul Públio Cornélio,
por mar a Gênova. cerca de três dias depois da par-
Aníbal chega aos Al pes. tida de Aníbal das margens do
Ródano , marchara em formação
de quadrado contra o acampamento cartaginês, decidjdo a dar
combate sem mais tardança. Mas ao notar as fortificações deser-
tas e que não seria fácil seguir no encalço do inimigo, que já
tomara grande dianteira, regressou ao mar e aos navios: com
estes, marcharia com maior segurança e facilidade ao encontro
de Aníbal quando ele descesse dos Alpes. Entretanto, para não
deixar a Espanha desprovida de ajuda romana - era sua pro-
víncia - , enviou contra Asdrúbal seu irmão Cneu Cipião com
a maior parte das tropas. Tencionava não apenas defender anti-
gos aliados e cooptar novos, mas correr Asdrúbal da Espanha.
Quanto a ele, seguido de tropas menos numerosas, voltou a
Gênova na intenção de utilizar o exército do Pó para proteger
a Itá lia.
Do Druença Aníbal, por uma rota quase sempre plana,
atingiu os Alpes. Os gauleses daquelas regiões lhe testemunharam
uma paz favorável. Então, embora a fama , que de ordinário
exagera as coisas incertas, já o fizesse prevê-lo, a visão próxima
398
HISTORIA D E ROMA
da altura das montanhas, das neves confundindo-se com o céu ,
das habitações informes encarapitadas nos rochedos , dos reba-
nhos transidos de frio, dos homens peludos e descuidados, de
todos os seres. animados e inanimados, enrijecidos pelo gelo,
bem como os demais aspectos do país, mais temível de ver que
de descrever, renovaram o terror.
Enquanto a coluna galgava as primeiras escarpas, surgiram,
postados nas alturas dominantes, os montanheses. Caso se achas-
sem nos desfiladeiros inacessíveis à vista, poderiam arremessar-
se prontamente ao ataque e provocar fuga e baixas enormes.
Aníbal deu alto. Mandou à frente alguns gauleses para examinar
o terreno e soube que por ali não havia passagem viável, resol-
vendo então erguer acampamento em meio aos picos inacessíveis.
no vale mais largo que pôde encontrar. Tendo sabido logo depois,
graças aos mesmos gauleses - muito pouco distanciados pela
tfngua e pelos costumes daqueles montanheses, aos quais se ha-
viam misturado - , que não guarneciam o desfiladeiro senão
durante o dia , voltando cada qual para sua casa à noite, avançou
até ao pé das elevações como se pretendesse força r a passagem
à luz do dia. Passando as horas fingi ndo uma manobra dife-
rente da que pretendia utilizar, e tendo os cartagineses fortifi-
cado um acampamento no mesmo sítio onde haviam feito alto,
Aníbal, ao perceber que os montanheses abandonaram as cristas
e que as sentinelas eram menos numerosas, fez acender mais
fogos do que o necessário para as tropas que ficavam, a fim ~e
criar uma ilusão. E deixando para trás as bagagens, a cavalana
e a maior parte da infantaria, ele próprio, com um destacamento
ligeiro formado dos homens mais corajosos. saiu rapidam~n.te _do
desfiladeiro e instalou-se nas mesmas alturas onde o 1mm•go
tinha aparecido.
Primeiro ataque dos montanheses. 33 . Ao romper da alba
o resto do exército le-
vantou acampamento e pôs-se em marcha. Já os montanheses,
a um sinal dado, saíam de seus tugúrios para o ponto de reu-
nião quando , de repente , perceberam parte dos inimigos que,
399
 TITO LIVIO
tendo ocupado as elevações, os ameaçavam de cima, enquanto
a outra atravessava o desfiladeiro. Os dois fatos, apresentando-se
ao mesmo tempo a seus olhos e espíritos, mantiveram-nos imó-
veis por algum tempo; em seguida , vendo a confusão reinante
no desfiladeiro, que a própria coluna criava com sua azáfama
e sobretudo a irritação dos cavalos, imaginaram que o meno~
acréscimo de terror trazido por eles bastaria a perder o inimigo;
e em meio a um caos de rochedos - habituados que estavam
tanto a terrenos impraticáveis como praticáveis - , desceram
desabaladamente. Nesse momento, verdadeiramente os inimigos
e as dificuldades do terreno atacavam ao mesmo tempo os carta-
gineses, com cada qual se esforçando para escapar em primeiro
lugar ao perigo e lutando mais entre si que contra os atacantes.
Eram os cavalos que mais punham em risco a coluna; os gritos
discordantes, amplificados pelos bosques e gratas, faziam-nos
agitar-se de terror ; quando por acaso eram espicaçados ou feri-
dos, enfureciam-se ao ponto de derribar numa vasta extensão
homens e bagagens de toda espécie. Por causa da pressa muitos
homens - de ambos os lados o desfiladeiro era escarpado e a
pique - caíram no fundo de precipícios hiantes. A muitos sol-
dados em armas sucedeu o mesmo, mas eram sobretudo as mulas
que, como um muro a desabar, rolavam com toda a sua carga.
Malgrado o horror do espetáculo, Aníbal permaneceu imó-
vel por algum tempo, sopeando os seus a fim de não aumentar
a desordem e a agitação. Depois, vendo que a coluna fora cor-
tada em duas e havia o risco, se o exército se visse despojado
de bagagem, de fazê-lo em vão cruzar com sucesso a passagem ,
acorreu de sua posição dominante e, embora dispersando de
golpe o inimigo, aumentou também o tumulto entre seus ho-
mens. Mas esse tumulto acalmou-se num instante, já que o cami-
nho ficara desimpedido pela fuga dos montanheses; e não ape-
nas sem dificuldade, mas quase em silêncio, todos os cartagineses
atravessaram sem demora. Pouco depois Aníbal apossou-se do
burgo principal da região e das cabanas em derredor. Com os
víveres e os rebanhos apresados, pôde alimentar seus homens
400
HISTORIA DE ROMA
durante três dias, período em que avançou bastante porque não
o perturbaram mais o inimigo amedrontado e o terreno.
Montanheses lançam 34 . As tropas alcançaram en-
Anibal numa emboscada. tão outro povo, numeroso para
uma população montanhosa. Ali
Aníbal quase foi cercado, não em aberta hostilidade, mas graças
ao emprego que o inimigo fez de seus próprios artifícios, a
astúcia e a emboscada. Os anciãos, chefes de burgos, foram em
embaixada até o comandante púnico e declararam que, instruí-
dos pelas calamidades alheias, exemplo útil, preferiam experi-
mentar a amizade que a força dos cartagineses; por isso exe-
cutariam suas ordens obedientemente; aceitasse deles víveres,
guias e reféns como penhor da promessa. Aníbal, julgando não
ser conveniente nem fiar-se prontamente deles nem repeli-los,
para assim não criar inimigos declarados, respondeu com ama-
bilidade e aceitou os reféns. Recolheu os víveres que haviam
depositado à beira do caminho e acompanhou seus guias, não
como se estivesse em território amigo, mas em coluna pronta
à resistência. Iam na vanguarda os elefantes e os cavaleiros,
atrás o próprio Anfbal com a elite da infantaria, sempre atento
a tudo.
Num determinado sítio onde o caminho, estreitando-se,
via-se de um lado dominado por uma crista, os bárbaros, irrom-
pendo por toda parte de seus esconderijos, atacaram a coluna de
frente, de trás, de perto e de longe, rolando-lhe por cima pedras
enormes. Na retaguarda, mais numerosos, pressionavam vigoro-
samente. Voltando-se contra eles, a infantaria deixou patente que
se a retaguarda não tivesse sido reforçada imenso fora o desastre
sofrido naquele passo. O exército correu então um perigo ex-
tremo, que quase levou à sua perda definitiva . Enquanto Anfbal
hesitava em fazer descer sua coluna para o passo - pois, sendo
ele próprio um apoio para os cavaleiros, não deixara aos infantes
por trás de si nenhum socorro - , os montanheses, acorrendo
do flanco e cortando a coluna pelo meio, estabeleceram-se no
caminho; e Aníbal passou uma noite sem cavaleiros e sem ba-
gagens.
401
 TITO uvro
Os cartagineses chegam ao cume 35. Ao outro dia, como
dos Alpes e começam a descer. os bárbaros se empe-
nhassem menos em ati-
rar-se no meio das tropas cartaginesas, estas se reuniram e fran-
quearam o passo com algumas perdas, mas deixando para trás
mais animais de carga que homens. Os montanheses, agora me-
nos numerosos e agindo mais como salteadores que como sol-
dados, lançavam-se em grupos ora sobre a vanguarda, ora sobre
a retaguarda, segundo as possibilidades do terreno ou quando
os inimigos adiantavam-se demais ou se atrasavam. Quanto aos
elefantes, se em caminhos estreitos e abruptos retardavam bas-
tante o avanço, daV'am segurança à coluna nos locais onde po-
diam marchar livremente, pois o inimigo, nunca os tendo vistos,
temia aproximar-se deles.
Depois de oito dias de marcha o exército alcançou a cumeei·
ra dos Alpes por caminhos o mais das vezes impérvios e após
desvios de rota provocados seja pela má-fé dos guias seja, quando
se desconfiava deles, pelo engano dos chefes, que recomendavam
ao acaso os desfiladeiros enquanto conjecturavam sobre a direção
a tomar. Acampou-se durante dois dias sobre a crista, onde os
soldados descansaram das fadigas e dos combates. Várias mulas,
que haviam escorregado dos rochedos, seguindo os passos da
coluna, regressaram ao acampamento. Já os soldados se mostra-
vam fartos de tantos males quando uma nevasca (as Plêiades
desciam para o Ocidente) veio aumentar-lhes o terror. Enquanto
o exército se arrastava penosamente pelos vastos espaços cober-
tos de neve (iniciara a marcha ao amanhecer, c abatimento c
desespero estampavam-se em todos os rostos), Aníbal, adian-
tando-se além das insígnias para um promontório de onde a
vista espraiava-se à distância, mandou que os soldados fizessem
alto - e mostrando-lhes a Itália e as planícies do Pó ao pé
dos Alpes, disse-lhes que franqueavam naquele momento não
só as muralhas da Itália, mas as de Roma também; doravante só
marchariam em terreno plano, até desceriam ; um combate, dois
no máximo, poriam em suas mãos, em seu poder, a cidadela, a
capital da Itália.
402
HISTORIA DE ROMA
O exército se pôs em movimento e o inimigo só se arriscou
a pequenos furtos ocasionais. Mas a descida foi mais difícil
que a subida, pois, do lado italiano, a vertente é mais curta,
porém mais íngreme. Quase todo o caminho, com efeito, era
inclinado, estreito, escorregadio, de modo que se multiplicavam
os passos em falso; perdendo pé, os homens não conseguiam
mais ater-se ao chão, caindo de envolta, uns sobre os outros,
soldados e animais de carga.
O exército chega a um rochedo a 36 . Atingiu-se então
pique que tenta em vão contornar. uma passagem rocho-
sa bem mais estreita
que até um soldado sem bagagem, agarrando-se às saliências
e reentrâncias, teria dificuldade em vencer. O sítio, naturalmente
íngreme antes , tomara-se um precipício com não menos de mil
pés de profundidade, em seguida a um deslizamento. Os cava-
leiros pararam como se o caminho tivesse chegado ao fim ;
Aníbal, que se espantava e perguntava a causa da demora , foi
informado de que havia à frente um rochedo impraticável. Aban-
donou a posição em que se encontrava para ir examinar o
obstáculo. Pareceu-lhe que não se devia hesitar em contorná-lo
por espaços desprovidos de caminhos e desconhecidos, por maior
que fosse o desvio. Mas a verdade é que não se pôde vencer
as dificuldades da rota. Com efeito, se sobre a neve antiga e
intacta havia uma camada de neve fresca , de espessura média,
o pé encontrava apoio ; mas depois que a passagem de tantos
homens e animais a derreteu, marchou-se sobre a camada de
gelo inferior, a)!ora posta a nu , por onde escorria a água da
neve que se fundia. Os homens se debatiam pavorosamente sobre
essa superfície escorreJZadia, que não recebia a marca dos pés
e os fazia deslizar rapidamente para a beira do precipício; mãos
e joelhos, empregados para se reerguer, escorregavam também;
em derredor não havia saliências ou raízes em que se agarrar,
de sorte que se rolava sobre o gelo liso e a neve fundida . As
mulas , de vez em quando, despedaçavam até mesmo a camada
inferior de gelo. ao marchar sobre ela ; quando escorregavam,
escoiceavam mais violentamente e a rompiam, de modo que a
403
 TITO LfVIO
maior parte delas, como que apanhadas numa armadilha, ficou
presa à neve endurecida e congelada até o fundo.
Abre-se um caminho no 37 . Finalmente, ap6s fa-
rochedo e chega-se à planície. tigar em vão animais e ho-
mens, ergueu-se acampa-
mento na crista, o que custou muito esforço, pois o local teve
de ser desimpedido de enorme quantidade de neve. A seguir,
os soldados se ocuparam do rochedo que permitia a única pas-
sagem possível. Para despedaçar a pedra, abateram e desbastaram
nas imedjações árvores gigantescas, fizeram com elas uma grande
fogueira, e, erguendo-se um vento favorável, atearam-lhe fogo;
depois, sobre a pedra incandescente, derramaram vinagre, o
que lhe quebrou a resistência. A rocha assim calcinada foi
aberta a golpes de ferro; a escarpa, amenizada, pôde dar pas-
sagem não apenas às mulas, mas também aos elefantes. Por
quatro dias ficou-se junto a esse rochedo, as mulas quase a
morrer de fome porquanto, naquelas culminâncias nuas, até as
ervas que poderiam brotar ficam cobertas pelas neves. As zonas
mais baixas apresentam vales, encostas expostas ao sol, regatos
perto de bosques, sítios mais dignos de serem habitados por
homens. Para lá se mandaram as mulas a pastar, e os homens,
cansados do trabalho, puderam repousar. Três dias depois a
planície era alcançada, por lugares onde a natureza, como o
caráter dos habitantes, era mais branda.
Discussão sobre o efetivo 38. Eis, descrita em
das tropas de Anibal e sobre linhas gerais, a manei-
o ponto por onde passou os Alpes. ra pela qual os car-
tagineses chegaram à
Itália, no curso do quinto mês após sua partida de Cartagena,
segundo alguns autores, e depois de quinze dias empregados
na travessia dos Alpes. Quanto aos efetivos de Aníbal , no mo-
mento em que pôs pé na Itália, divergem os autores. Os mais
exagerados dão cem mil infantes e vinte mil cavaleiros; os mais
moderados, vinte mil infantes e seis mil cavaleiros. Lúcio Cíncio
Alimento, que declarou ter sido prisioneiro de Aníbal. me pare-
404
HISTôRIA DE ROMA
ceria mais digno de credibilidade se não misturasse as cifras
acrescentando ao exército de Aníbal os gauleses e os lígures.
Compreendidos todos o Cartaginês, segundo ele, trouxe à Itália
oitenta mil infantes e dez mil cavaleiros (e é provável que esses
gauleses e lfgures se tenham juntado ao exército de Aníbal
quando este já se achava na Itália, opinião aliás compartilhada
por alguns autores). Por outro lado, ouviu do próprio Aníbal
que após a travessia do Ródano o Cartaginês perdera trinta e
seis mil homens e um número incalculável de cavalos e mulas.
Os taurinos, aparentados aos gauleses, foram o primeiro
povo com que deparou Aníbal ao descer para a Itália. Como tal
fato é conhecido de todos, causa-me espanto que se discuta o
ponto por onde ele cruzou os Alpes, que se creia comumente
ter passado pelos Alpes Peninos - donde o nome do maciço
alpino - , que Célio 17 afirma ter franqueado o maciço de
Cremona : essas duas passagens tê-lo-iam levado ao encontro
não dos taurinos, mas, pelo país dos montanheses salassos, dos
gauleses libos. De resto, não é verossímil que então esses cami-
nhos para a Gália estivessem abertos; em todo o caso, os que
conduzem rumo aos Alpes Peninos ter-lhe-iam sido barrados por
povos semjgermãnicos. Quanto ao nome dessas montanhas -
se por acaso al~uém o julgar intrigante - , sabem bem os sedu-
nos veragros, habitantes da cadeia, que não provém da passagem
de um "púnico", mas do personagem culturado no cimo mais
elevado, que os montanheses chamam Penino 18 •
Aníbal chega ao território dos 39. Fato auspicioso pa-
taurinos. À margem do Ticino, o ra o início das opera-
exército de Cipião aparece ções, os taurinos, nação
à sua frente. mais próxima do exér-
cito cartaginês, haviam
travado uma guerra contra os insúbrios 18 • Mas Aníbal não
podia, para ajudar um dos partidos, fazer seu exército pegar
17 . Célio Antípatro tinha escrito, no fim do século 11, uma história
da segunda guerra púnica, inspirada principalmente em Sileno.
18 . Com efeito, várias inscrições mencionam um Júpiter Penino.
19 . Os insúbrios habitavam. ao norte do Pó. a região de Milão.
405
 TITO LIVIO
em armas, pois este, refazendo-se, sentia mais do que nunca os
males contraídos outrora. O repouso depois das fadigas , a abun-
dância depois da penúria, os cuidados do corpo depois da lama
e da sujeira punham à prova, de maneiras diversas, os corpos
negligenciados e quase tornados ao estado selvagem. Para o
cônsul Públio Cornélio - o qual , chegando a Pisa de navio,
recebera de Mânlio e Atílio um exército de recrutas assustados
pelos vergonhosos fracassos recentes - , essa foi uma razão
para apressar-se em direção ao Pó e engalfinhar-se com um
inimigo ainda mal-refeito. Mas quando chegou a Placência já
Aníbal deixara seus abarracamentos e tomara a capital dos
taurinos, que não se haviam declarado espontaneamente seus
amigos. E teria cooptado não só pelo medo, mas pelo desejo
deles mesmos, os gauleses das vizinhanças do Pó se a súbita
chegada do cônsul não os fizesse procrastinar o momento da
defecção. Aníbal partiu do país dos taurinos na pressuposição
de que os gauleses, não sabendo que partido tomar, seguiriam
o general que se lhes apresentasse. Os dois exércitos estavam
na iminência de avistar-se, com os dois generais face a face:
estes, embora ainda não se conhecessem bem, já sentiam grande
admiração mútua. ~ que o nome de Aníbal , mesmo entre os
romanos, tornara-se célebre desde antes da tomada de Sagunto;
quanto a Cipião, julgava-o Aníbal um homem notável pelo sim-
ples fato de ter sido escolhido como seu opositor. De sorte que
teria aumentado a estima que nutriam um pelo outro, Cipião
em virtude de ter feito face ao Cartaginês na Gália, quando este
descera para a Itália, Aníbal pela ousada tentativa e realização
da passagem dos Alpes.
Cipião tomou a dianteira, cruzou o Pó e, estabelecendo
acampamento às margens do Ticino, encorajou seus soldados
com o seguinte discurso, antes de mandá-los para o combate:
Discurso de Comélio 40. "Soldados, caso fosse para a
a seus soldados. luta com o exército que tinha co-
migo na Gália, dispensar-me-ia fa-
lar-vos. Pois que necessidade haveria de exortar cavaleiros que
brilhantemente desbarataram a cavalaria do inimigo aos bordos
406
Hl TOR I A DF ROMA
do Ródano, ou as legiões com as quais, perseguindo na fuga
esse mesmo inimigo, pude obter, senão uma vitória, pelo menos
a certeza de que ele cedia terreno e recusava a luta? Hoje, no
entanto, aquele exército recrutado para a província da Espanha
faz campanha, sob meus auspícios, comandado por meu irmão
Cneu, lá onde o quiseram o Senado e o povo romano; e uma
vez que eu, a fim de terdes um cônsul para general contra Aníbal
e os cartagineses, apresentei-me de moto próprio na intenção de
oferecer esta batalha que tanto desejo, devo, como novo general,
dizer algumas palavras a meus novos soldados.
Para que não ignoreis nem a natureza da presente guerra,
nem vosso inimigo, ficai sabendo, soldados, que se trata de
homens a quem já vencestes em terra e mar numa primeira
guerra. Fizeste-os pagar tributo durante vinte anos e deles obti-
vestes, como despojos bélicos, a Sicília e a Sardenha. Portanto,
na batalha iminente, brotarão em vós e neles os sentimentos que
costumeiramente albergam vencidos e vencedores. Agora não
é a audácia , é a necessidade que os impele a combater; a menos
que, tendo recusado combate quando tinham intacto o exército,
encontrem razões para esperar, eles, que na passagem dos Alpes
perderam dois terços da infantaria e da cavalaria e ora têm mais
mortos que sobreviventes.
Mas, direis vós, se são pouco numerosos, mesmo assim são
fortes de corpo e alma, e sua solidez e força são tais que nada
se lhes pode resistir. Ao contrário! Trata-se de espectros, de
sombras fam.intas, enregeladas, enlameadas, esquálidas. e tro-
piadas entre pedras e rochedos. Têm, além do mais, as extremi-
dades paralisadas de frio, os músculos hirtos pela ação da neve,
os corpos enrijados pelo gelo, as armas embotadas e quebradas,
os cavalos estropiados e enfraquecidos. Eis aí os infantes, eis
aí os cavaleiros que ides combater. Frangalhos, isso sim é o
que temos pela frente, não um inimigo verdadeiro. Só temo que,
engajada a batalha os Alpes é que pareçam tê-lo esmagado.
Entretanto, talvez fosse conveniente ver, contra um general e
um povo avezados a infringir tratados, os próprios deuses travar
batalha em a intervenção humana, e decidi-la. Quanto a nós,
407
 TITO LIVIO
que depois dos deuses sofremos as violações, apenas daríamos
o golpe de mi sericórdia numa guerra de desfecho já prefixado.
Continuação do discurso 41 . "Não temo de modo algum
de Comélio. que alguém pense estar eu falan-
do com soberba a fim de exor-
tar-vos, experimentando, ao mesmo tempo, sentimentos mui di-
versos. Eu poderia estar na Espanha, em minha província, para
onde já partira com um exército; ter lá meu irmão a compartilhar
os perigos e a participar dos planos de campanha; enfrentar
Asdrúbal em lugar de Aníbal e, sem dúvida nenhuma, afrontar
uma guerra bem menos desgastante. Entretanto, vogando meus
navios ao longo da costa gaulesa, mal soube da chegada de nosso
inimigo atual desembarquei, enviei adiante a cavalaria e plantei
acampamento às margens do Ródano. Num combate eqüestre,
com apenas parte das tropas de que pude dispor, logrei dispersar
os adversários; não podendo esperar em tcq:a sua infantaria, que
como tropa em fuga fora levada precipitadamente, voltei aos
navios o mais rápido que o permitiu um tão considerável desvio
por terra e mar, e, quase aos pés dos Alpes, fiz face a esse
inimigo temível. Pareço acaso, no intuito de evitar batalha, ter
cafdo de improviso sobre ele, ou rastreado suas pegadas, ati-
çando-o a um combate decisivo ? Pretendo descobrir se, de re-
pente, a terra produziu no espaço de vinte anos cartagineses
diferentes de seus pais ou se se trata dos mesmos que caíram
nas ilhas Egates e de quem arrancastes dezoito dinheiros para
deixá-los partir do monte :erice; se Aníbal é de fato, em seus
empreendimentos, esse rival de Hércules que se gaba de ser ou
o escravo, o tributário do povo romano, condição que seu pai
lhe deixou por herança. Se o crime cometido contra Sagunto
o não desvairasse, consideraria decerto, senão a pátria vencida,
pelo menos sua estirpe e seu pai, bem como os tratados escritos
pela mão de Amílcar, o qual, por ordem de nosso cônsul, levou
suas tropas do monte ~rice; o qual, malgrado as penosas condi-
ções impostas aos cartagineses vencidos, que as lamentavam,
aceitou-as; o qual, abandonando a Sicília, concordou em pagar
tributo ao povo romano.
408
HISTóRIA DE ROMA
Eis por que, soldados, muito me lisonjearia que combatês-
seis não só com o ardor que de ordinário mostrais contra outros
inimigos, mas com uma indignação e uma cólera especiais,
conforme o faríeis se vísseis vossos escravos brandindo armas
contra vós. No monte ~rice, estava a nosso alcance fazer perecer
pelo pior dos suplícios, a fome, o inimigo cercado; estava a
nosso alcance passar para a África nossa frota vitoriosa e em
poucos dias destruir Cartago sem combate. Ouvimos as preces
deles, deixamo-los ir quando já os tínhamos nas mãos; fizemos
a paz com os vencidos, passamos a considerá-los nossos prote-
gidos quando a guerra na África os oprimia. Em paga dessas
concessões, ora vêm atacar nossa pátria encabeçados por um
jovem ensandecido! Prouvesse aos céus que aqui tivésseis de
combater apenas pela honra e não pela salvação de Roma!
Já não é pela posse da Sicília e da Sardenha, como outrora, que
empunhais as armas: é pela preservação da Itália! Mais: não
existe por trás de nós outro exército que, vencidos os que aqui
estamos, faça frente ao inimigo; não há outros Alpes para, en-
quanto Aníbal os atravessa, nos dar tempo de levantar novas
tropas. Aqui mesmo, soldados, cumpre deter o inimigo, como
se estivéssemos lutando diante das muralhas de Roma. Cada
um de vós pense proteger com as armas não a si próprio, mas
à esposa e aos filhinhos. Não baste, no entanto, esse cuidado de
família: recordai-vos de que hoje os olhares do Senado e do
povo romano estão fixos em nossos braços. A fortuna da Cidade
e do império romano depende inteiramente de nossa força e
de nossa coragem".
Tal foi o discurso do cônsul aos romanos.
Aruôal exibe a suas tropas 42 . Aníbal, supondo ser ne-
combates singulares cessário exortar os seus an-
entre prisioneiros gauleses. tes por atos que por pala-
vras, reuniu em círculo seu
exército para oferecer-lhe um espetáculo. No meio, colocou mon-
tanheses cativos, acorrentados, e, arremessando-lhes aos pés ar-
mas gaulesas, ordenou a um intérprete que perguntasse qual
deles estava disposto a travar combate singular, se fosse desacor-
409
 TITO UVIO
rentado, e, em caso de vitória, presenteado com armas e um
cavalo. Todos eles pediram um ferro e o combate, de modo
que se lançou a sorte para decidir, cada qual ansiando por ser
o escolhido. O sorteado, em meio a felicitações e exultando de
alegria, dançou o passo habitual dos gauleses e cingiu rapida-
mente as armas. Ao longo do combate, os sentimentos dos
homens - não só da mesma condição dos antagonistas, mas,
em geral, os espectadores - era tal que louvavam não apenas
a sorte dos vencedores, mas dos vencidos que morriam bem.
Discurso de Aníbal 43. Depois de mostrar aos soldados
a seus soldados. algumas duplas de combatentes, Aní-
bal dispensou-os ainda sob a impres-
são do acontecimento. A seguir, convocando a assembléia, falou-
lhes, ao que se diz, nestes termos:
"Se experimentais para com vossa própria sorte os senti-
mentos que acabastes de demonstrar em relação ao destino
alheio, então, soldados, podemos nos considerar vencedores:
pois o que presenciastes não foi somente um espetáculo, mas
como que uma imagem exata de vossa situação. Talvez mesmo
que vos oprimam cadeias mais fortes, necessidades mais premen-
tes que as de vossos prisioneiros. À direita e à esquerda, dois
mares vos isolam, a vós, que sequer um único navio tendes para
fugir; o Pó vos cerca - o Pó, maior e mais violento que o
Ródano; às costas erguem-se os Alpes que a duras penas atra-
vessastes quando vossas forças estavam ainda intactas. Aqui,
soldados, cumpre vencer ou morrer, aqui , onde pela primeira
vez ides defrontar o inimigo.
Contudo, a mesma fortuna que vos força a combater vos
promete, em caso de vitória, recompensas tais que nenhum ho-
mem ousa sequer pedir aos deuses quando ora. Certo, a Sicília
e a Sardenha, arrebatadas a nossos maiores, constituiriam já
importante recompensa se por nosso valor as recobrássemos; mas
todos os bens que os romanos, em seguida a tantos triunfos,
conquistaram, amealharam e agora possuem, todos serão vossos
e com eles os antigos donos. Diante de tal perspectiva, eia!,
tomemos as armas com a ajuda e o favor dos deuses! Há muito
410
HISTôRIA DE ROMA
tempo que, nas montanhas descalvadas da Lusitânia e da Celti-
béria, perseguindo rebanhos, não víeis nenhum prêmio a tantas
fadigas e perigos. Chegou o momento de empreender uma cam-
panha frutífera e compensadora, de ser bem pago pelas agruras,
porquanto mourejastes num caminho terrivelmente longo, fran-
queando montanhas e rios de nações hostis. Eis que a. fortu~a
põe um termo a vossas penas; finda a campanha. serets regta-
mente ressarcidos.
Nem acrediteis que a dificuldade desta guerra esteja em
proporção à sua nomeada; às vezes, desdenhar o inimigo torna
a luta mais sangrenta, ao passo que povos e reis afamados caem
por terra mal se lhes toque. Com efeito, pondo-se de parte o
brilho de seu nome, em que vos são superiores esses romanos?
Não falemos de vinte anos de campanhas que vindes realizando
- com que coragem, com que sucesso! - desde as colunas de
Hércules, desde o Oceano, desde os confins da terra. Atraves-
sando tantas populações ferozes da Espanha e da Gália, aqui
viestes ter vencedores. Estais para combater um bando de re-
crutas desordenado, já vencido e cercado pelos gauleses neste
mesmo verão. Não conhecem seu general, seu general não os
conhece. E eu, que praticamente nasci no pretório 20 de meu pai,
general ilustre, ou pelo menos lá fui educado; eu, que conquistei
a Espanha e a Gália; eu, vencedor dos povos alpinos e, o que
é mais, dos próprios Alpes, comparar-me-ia a esse general que
comanda há apenas seis meses e abandonou seu exército? Se
alguém escondesse os estandartes e lhe mostrasse neste momento
os cartagineses e os romanos , estou certo, ele não saberia dizer
de que exército era cônsul! Não dou pouca importância, solda-
dos, ao fato de não haver entre vós um só que não tenha presen-
ciado alguma ação brilhante que pratiquei, um só a quem, espec-
tador e testemunha de seu valor, eu não possa relembrar seus
títulos de glória, precisando data e lugar. ~ na companhia de
homens mil vezes louvados e recompensados por mim que eu,
vosso aluno antes de ser vosso chefe, me atiro ao combate contra
20 . O pretório é a barraca do comandante-em-chefe.
411
 TITO LIVIO
homens que não se conhecem entre si e se ignoram uns aos
outros.
Fim do discurso de Aníbal. 44. " Para onde quer que vol-
te os olhos, tudo se me afi-
gura estuante de ardor e fortaleza : infantes veteranos, cavaleiros
das mais nobres nações cavalgando com ou sem rédeas, vós,
aliados fiéis e corajosos, e vós, cartagineses, prontos a lutar pela
pátria com a cólera mais legítima. Nós trazemos a guerra e,
aprestados, descemos para a Itália - e no combate, tanto mais
superaremos o inimigo em audácia e valor quanto maiores são
a esperança e o empenho de quem agride do que de quem se
defende. Além disso, para inflamar e estimular nossos corações,
há o ressentimento, há a injustiça, há a indignidade. Para nos
atormentar, os romanos primeiro reclamaram a mim, o general ,
depois a todos vós, por terdes atacado Sagunto. Entregues a eles,
que torturas não padeceríamos! Essa nação cruel e soberba
tudo tem por seu, a tudo submete indiscriminadamente. Julga-se
no direito de determinar com quem devemos fazer a guerra e
a paz; circunscreve-nos, assinala montanhas e rios que não po-
demos ultrapassar. Ora, os limites que fixa, ela própria não
observa. "Não passeis o Ebrol Não toqueis nos saguntinosl" -
"Sagunto está no Ebro?" - "Não toqueis em nadai " Arrebatar
minhas antigas províncias da Sicília e da Sardenha não foi o
bastante. Agora a Espanha também? Partirei dali, tu passarás
à África. Já passaste, digo eu : dos dois cônsules deste ano,
Roma enviou um para a África, outro para a Espanha. Em
toda parte, só nos foi deixado o que defendemos pelas armas.
Eles podem ser medrosos e pusilânimes, combatentes que
têm para onde se voltar: se fugirem, seu solo, seu território
estão prontos a acolhê-los por caminhos seguros e tranqüilos.
Cabe a vós o papel de bravos, e, uma vez despojados da espe-
rança num meio termo entre a vitória e a morte, arrebatar a
vitória ou, hesitante a fortuna, procurar a morte antes na bata-
lha que na fuga . Repito: sereis vencedores se conservardes no
fundo da alma essa resolução. Para vencer, o desprezo da morte
constitui a arma mais eficaz dada aos homens pelos Imortais".
412
HISTôRIA DE ROMA
Cipião atravessa o Ticino. últimas 45. Depois de tais
promessas de Aníbal a seus soldados. exortações, de parte
a parte, inflamaram
a alma dos soldados, os romanos lançaram uma ponte sobre o
Ticino e ergueram ali um forte . Vendo o inimigo ~cupado, n~
obra, o Cartaginês enviou Maarbal com um esquadrao de ~umt­
das - quinhentos homens - para pilhar as terras dos ahados
do povo romano. Entretanto, ordenou que os gauleses fossem
poupados e seus chefes sondados para a defecção . Conclu~da . a
ponte, atravessaram-na os romanos e se instalaram no terntóno
dos {nsubros, a cinco mil passos de Victumulas. Como Anfbal
tivesse ali seu acampamento, chamou à pressa Maarbal e, perce-
bendo a iminência do embate, cuidou que não instara suficien-
temente seus soldados a um desempenho corajoso. Assim, diante
da assembléia convocada, proclamou as recompensas que com
certeza os aguardavam depois da batalha: da~-lhes-ia t~rras na
Itália, na África, na Espanha, onde bem qutsessem, livres. de
gravame para quem as recebesse e seus filhos; q.uem p.r efensse
dinheiro, tê-lo-ia; os aliados que desejassem a ctdadama carta-
ginesa contariam com ele; os que pretendessem voltar para casa
não precisariam trocar sua sorte pela de nenhum de seus compa-
triotas. Também aos escravos que haviam seguido seus senhores
prometeu a liberdade. E para que todos soubessem que pretendia
cumprir as promessas, agarrou um cordeiro com a mão esquerda,
uma pedra com a direita ; suplicando. caso faltasse à palavra,
a Júpiter e demais deuses que o imolassem como imolaria o
animal, partiu-lhe a cabeça com a pedra. Então os soldados,
como se os próprios deuses lhes tivessem garantido as esperanças,
reclamaram a uma só voz a batalha, supondo que apenas o
fato de não haverem ainda combatido os separava da recom-
pensa prometida.
Cipião é ferido. 46 . O entusiasmo não era tão grande en-
tre os romanos, pois aos receios naturais
tinham vindo juntar-se prodígios recentes. Um lobo penetrara
no acampamento e, após dilacerar o que viu pela frente , saíra
incólume ; um enxame de abelhas estabelecera-se na árvore que
413
 TITO UVIO
do~inava o pretório. Cumpridos os sacrifícios para anular o
efetto dos prodígios, Cipião, com a cavalaria e lanceiros sem
bagagem, saiu a observar de perto o acampamento inimigo, o
número e a qualidade de suas tropas. E topou com Aofbal
que também avançava com seus cavaleiros para reconhecer a~
imediações. No começo os grupos passaram despercebidos mas
logo a poeira levantada pela marcha de tantos homens e c;valos
assinalou a aproximação do inimigo. Ambas as colunas fizeram
alto, preparando-se para o combate. Cipião dispôs na vanguarda
os lanceiros e os cavaleiros gauleses; os romanos e as tropas
aguerridas dos aliados ficaram de reserva. Quanto a Aníbal ,
colocou no centro da linha os cavaleiros que utilizavam freios
e reforçou as alas com os númidas 21.
Lançado o grito de guerra, os lanceiros fugiram para as
reservas, postadas na segunda linha. Travou-se então um com-
bate indefinido .de cavalaria, que durou muito tempo. Depois,
como as montanas se assustassem com os infantes que se mistu-
ravam a eles, os cavaleiros começaram a saltar em terra e a
tombar. A luta se transformou então num verdadeiro combate
de infantaria até ? momento em qu~ os númidas das alas, graças
a um breve movtmento de envolvtmento, apareceram por trás
dos romanos. O medo que aqueles adversários lhes inspiravam
aumentou com o ferimento do cônsul e o perigo que este estava
correndo. Mas a pronta intervenção de seu filho , então apenas
um adolescente, salvou-o. A esse jovem caberia a glória de
encerrar a gu.err~, tendo recebido o epíte to de " Af ri cano" pol'
sua notável ~ttóna sobre Aníbal e os cartagineses. Entrementes,
a fuga dommava sobretudo os lanceiros, os primeiros que os
númidas haviam acossado. O resto do destacamento os cava-
leiros, cerrou fileiras protegendo o cônsul, que tinha~ recebido
no meio deles, não apenas com as armas, mas também com
os corpos, sem jamais perder a calma nem debandar em retirada
E assim reconduziram o chefe ao acampamento. A honra d~
salvar o cônsul, atribui-a Célio a um escravo lígure; de minha
21 · Os n.úmidas conduziam seus cavalos sem rédeas, com simples
cabresto ou ch•cole. Os outros devem ser cavaleiros espanhóis.
414
HISTORIA DE ROMA
parte, prefiro o que a tradição conservou e a maior parte dos
autores relata. a saber, que o responsável foi mesmo seu filho.
Os romanos se retiram 4 7 . Esse foi o primeiro combate
para Placência. contra Aníbal, e deixou incontes-
te que, pela cavalaria, o Carta-
ginês era o mais forte. Conseqüentemente, as planuras devastadas
entre o Pó e o sopé dos Alpes não convinham de forma alguma
à movimentação dos romanos. De sorte que, na noite seguinte.
recebendo ordem de juntar as bagagens em silêncio, os soldados
levantaram acampamento da margem do Ticino e marcharam
em direção ao Pó para que o cônsul pudesse, em boa ordem
e sem recear a perseguição do inimigo, fazer suas tropas cruza-
rem o rio pela ponte que ainda não havia sido cortada.
As tropas chegaram a Placência antes que Aníbal se certi-
ficasse de sua partida do Ticino. Ainda assim, cerca de seis-
centos retardatários que, em sua margem, demoravam a deslocar
a ponte, foram capturados.
Não pôde Aníbal atravessar a ponte porque esta, com a
extremidade deslocada, ruiu numa profusão de troncos que foram
arrastados pela correnteza.
Conta Célio que Magão, seguido da cavalaria e dos infantes
espanhóis, cruzou imediatamente o rio a nado e que Aníbal
mandou seus soldados atravessar por um vau a montante, após
enfileirar os elefantes para cortar o ímpeto da corrente. Os que
conhecem o Pó dificilmente acreditarão nisso, pois não é veros-
símil que os cavaleiros tenham triunfado da violência do rio
salvando ao mesmo tempo armas e montarias, e admitindo-se
mesmo que todos os espanhóis possam tê-1o franqueado sobre
odres inflados. Ademais, seria necessário um desvio de vários
dias de marcha para alcançar, no Pó, vaus praticáveis por um
exército sobrecarregado de bagagens. Prefiro a versão dos auto-
res que afirmam ter sido difícil, no prazo de dois dias, encontrar
um local onde lançar uma ponte de troncos por onde Magão,
com os cavaleiros e os espanhóis sem bagagem, foi enviado à
frente. Enquanto Aníbal se via retido perto do rio à espera de
embai adas gaulesas e fazia a infantaria esmagada pelo peso das
41~
 TITO LIVJO
bagagens cruzar o rio, Magão e os ginetes, após um dia de
marcha, aproximavam-se de Placência e do inimigo. Poucos dias
depois, o próprio Aníbal erguia um acampamento fortificado a
seis milhas de Placência; e ao amanhecer, desdobrando o exér-
cito em linha na frente do inimigo, oferecia-lhe batalha.
Dú io de Brindes entrega 48 . Na noite seguinte, dentro
Clastidio a Aníbal. do acampamento romano, um
massacre mais grave pelo tu-
multo provocado que por suas dimensões foi realizado pelos
auxiliares gauleses. Cerca de dois mil infantes e duzentos cava-
leiros chacinaram os guardas dos portões e debandaram para
Aníbal; e este, falando-lhes com doçura e prometendo-lhes pol-
pudas recompensas a fim de entusiasmá-los, pediu que corres-
sem às suas cidades a cooptar os compatriotas. Cipião, cuidando
que o morticínio prenunciava a defecção de todos os gauleses;
que estes, sofrendo o contágio do crime como se fora uma raiva
inoculada em seu sangue, não tardariam a empunhar armas,
partiu na quarta vigília da noite seguinte, embora ferido. E perto
do Trébia, em colinas pouco favoráveis à movimentação da
cavalaria, instalou acampamento. Mas enganou menos Aníbal
que no Ticino: este, lançando primeiramente os númidas, depois
a cavalaria inteira, teria no mínimo conturbado a retaguarda
romana se os númidas, ávidos de butim, não se desviassem da
rota para irromper no acampamento vazio. E enquanto vasculha-
vam por toda parte sem se sentir pagos pela demora, o tempo
passou e o inimigo escapou-lhes das mãos. E vendo os romanos,
que já haviam passado o Trébia, ocupados em delimitar seu
acampamento, só puderam matar alguns retardatários. separados
dos companheiros na margem de cá.
Cipião, mal suportando as dores do ferimento ao longo
do caminho e supondo que deveria esperar seu colega - sabia
que tinha sido chamado da Sicília - , escolheu, perto do rio,
o sítio que Jhe pareceu mais seguro para um acampamento fixo.
e o fortificou. Aníbal, estacionado não longe dali (embora orgu-
lhoso da vitória de sua cavalaria, sofria com a possibilidade da
fome cotidianamente. pois atravessava território inimigo sem
416
HISTóRIA DE ROMA
encontrar em parte alguma víveres preparados previamente),
enviou tropas ao burgo de Clastídio, onde os romanos haviam
amealhado grande quantidade de trigo. Já se preparavam para
dar o assalto quando se apresentou a esperança de rendição.
Por um preço bastante elevado- quatrocentos escudos de ouro
- Dásio de Brindes, comandante da guarnição, deixou-se cor-
romper e entregou Clastídio a Aníbal. Esse foi o celeiro dos
cartagineses durante sua estada no Trébia. A fim de lograr uma
reputação de clemência logo no início da campanha, o Cartaginês
poupou os prisioneiros da guarnição.
Operações marítimas na Sicllia. 49. A guerra se arras-
tava no Trébia. Mas, nas
imediações da Sicília e ilhas vizinhas da Itália, registraram-se
operações em terra e mar da parte do cônsul Semprônio e mes-
mo antes de sua chegada. Das vinte qüinqüerremes, com mil
homens de armas, enviadas pelos cartagineses para assolar a
costa italiana, nove se dirigiram para as Lípares, oito para a
ilha de Vulcano 22 e três foram atiradas pelas ondas em direção
ao estreito. Avistando-as, Hierão, rei de Siracusa 23 , mandou de
Messina doze belonaves. O rei, por acaso, achava-se naquela
cidade à espera do cônsul romano. Sem encontrar resistência,
capturaram as três qüinqüerremes e as levaram para o porto de
Messina. Arrancou-se dos prisioneiros que, além da frota de
vinte navios da qual faziam parte, enviada contra a Itália, outras
35 qüinqüerremes avançavam para a SicOia na tenção de pro-
piciar os antigos aliados. A tomada de Lilibéia era ~e.u p~imeiro
cuidado 24 . Mas sem dúvida, completaram os pnstonetros, a
mesma tempestade que os dispersara atirara também aquela frota
para as ilhas Egates.
22 . Lfpara e Tarmesso, duas das ilhas Li párias, a nordeste da SicOia.
23 . Hierão tinha quase 90 anos. Permaneceu sempre fiel aos roma·
nos, mesmo em suas maiores derrotas.
24 . Lilibéia é um porto no oeste da Sicma, o mais próximo de
Cartago.
417
 TITO L(VIO
O rei comunicou essas informações, tais quais as ouvira,
ao pretor Marco Emllio, por escrito, o qual tinha por província
a Sicília, insistindo em que Lilibéia fosse reforçada por uma
poderosa guarnição. De imediato os legados e tribunos enviados
pelo pretor para percorrer as cidades recomendaram aos seus
uma vigilância atenta. Sobretudo Lilibéia se agitava com os
preparativos de guerra. Foi publicado um édito ordenando aos
marinheiros aliados que mantivessem víveres para dez dias
armazenados nos navios e não se demorassem a embarcar quan-
do ouvissem o sinal. Observadores partiram para a costa a fim
de detectar com antecedência a chegada da frota inimiga. Assim,
embora os cartagineses houvessem intencionalmente retardado
seu avanço para surgir diante de Lilibéia ao amanhecer, sua
chegada não passou despercebida, uma vez que a Lua esplendeu
a noite toda e os navios navegavam sob a impulsão das velas.
Imediatamente foi dado o sinal dos observatórios; na praça,
gritou-se "às armas!"; os marinheiros subiram aos barcos; e
parte dos soldados guarneceu as muralhas e os portões, parte
embarcou. De seu lado, os cartagineses, vendo que não podiam
contar com a surpresa, mantiveram-se até o nascer do dia à
distância do porto, empregando o tempo a preparar as velas u
e a frota para o combate. Dia claro, recuaram para mar alto,
para deixar espaço aos navios inimigos e livre a saída do porto.
Não recusaram combate os romanos, fortalecidos pela lembrança
de tantos êxitos naquelas mesmas águas e pelo número e valor
de seus soldados.
Vitória naval dos romanos. 50. Chegados ao alto mar,
Encontro do rei Hierão quiseram os romanos tentar
e do cônsul SemprôniO. a abordagem e medir forças
com o adversário numa luta
de perto. O cartaginês, e!ludindo o combate, preferiu a manobra
à força, a luta de navios ao choque de homens e armas. eque,
25 . Nas batalhas navais, só se manobrava a remo.
418
HISTóRIA DE ROMA
apesar de bem-provida de marinheiros 28 , faltavam soldados à
frota cartaginesa; no caso de abordagem, o número de comba-
tentes estava longe de ser igual de parte a parte. Reconhecendo
esse fato, a consciência de sua superioridade aumentou a coragem
dos romanos, enquanto diminuía a -dos adversários. Logo de
início sete barcos cartagineses foram bloqueados e os demais se
puseram em fuga. Nos navios aprisionados encontraram-se 1.700
homens, entre soldados e marujos 27 , três deles nobres cartagi-
neses. A frota romana, intacta salvo por um navio perfurado mas
que ainda assim pôde ser arrastado, ganhou novamente o porto.
Pouco depois da batalha, de que os habitantes de Messina
até o momento não haviam sido informados, chegou o cônsul
Tibério Semprônio. À sua entrada no estreito o rei Hierão man-
dou-lhe ao encontro uma frota aparelhada e armada. Passando
da nau real para a capitânea romana, felicitou o cônsul por ter
chegado são e salvo com seu exército e navios, desejando-lhes
próspero sucesso na travessia para a Sicflia. Expôs-lhe então a
situação da ilha e as tentativas dos cartagineses, prometendo
que os mesmos sentimentos que na juventude, quando da pri-
meira guerra, nutrira em relação ao povo romano, conservaria
na velhice para auxiliar os aliados. Além do mais, forneceria
gratuitamente navios e roupas para as legiões do cônsul e os
marinheiros. Lilibéia e as cidades costeiras, completou ele, cor-
riam grande perigo, e havia quem temesse ali revoluções.
Considerando esse arrazoado, supôs o cônsul que não
devia hesitar em alcançar LiJjbéia com a frota. O rei e a
esquadra real foram com ele. No mar, souberam que se comba-
tera diante de Lilibéia e que os navios inimigos haviam sido
dispersados ou capturados.
26 . Exatamente " marinheiros aliados". Tito Lfvio usa a expressão
"socíi navales" porque os navios e suas tripulações eram pedidos a cidades
aliadas da costa. Mais tarde ela designou também os soldados embarcados.
27 . Ou seja, 243 homens por embarcação, portanto poucos solda-
dos. As qüinqüerremes romanas tinham, segundo Políbio (I, 26), cerca
de 300 homens de tripulação.
419
 TITO LIVIO
Depois de ocupar Malta, 51 . De Lilibéia, o cônsul
o cônsul Semprônio reúne-se passou para a ilha de Malta,
a seu colega no Trébia. dominada pelos cartagine·
ses, após dispensar o rei e
sua frota e deixar o pretor guardando as costas da Sicília. Mal·
chegado, foram-lhe entregues Amilcar, filho de Gíscon, coman·
dante da guarnição, com pouco menos de dois mil homens. A
praça e a própria ilha caíram em suas mãos. Dias depois, regres-
sou a Lilibéia, onde vendeu sob a coroa todos os prisioneiros
que ele e o pretor haviam feito, salvo homens de nobreza des·
tacada.
· Julgando a Sicília segura dos ataques partidos de Cartago,
o cônsul rurqou para as ilhas de Vulcano ante o rumor de que
uma frota cartaginesa estacionava lá. Entretanto, não foi encon-
trado nenhum inimigo nas imediações. Já haviam partido a
devastar a costa italiana e, após assolar o território de Vibo ts,
no momento aterrorizavam a própria Roma. Ao chegar à Sicília,
foi o cônsul informado desse desembarque em Vibo e recebeu
uma carta do Senado sobre a passagem de Aníbal para a Itália.
Instavam-no a levar imediato socorro a seu colega. Atormen·
tado por tantos cuidados ao mesmo tempo, embarcou pronta·
mente seus soldados para Arminio "· na rota do mar Superior;
encarregou o legado Sexto Pompônio, munido de 25 barcos lon-
gos, de proteger o território de Vibo e a costa italiana e com-
pletou a frota do pretor Marco Erru1io elevando-a para cin·
qüenta navios. Após dispor assim os negócios da Sicília, bor-
dejou com dez belonaves a costa da Itália e chegou a Armfnio.
Partindo dali para o Trébia30 com seu exército, foi juntar-se
ao colega.
Os romanos obtêm uma vitória. 52. Apenas o fato de os
dois cônsules e todas as
forças romanas disponíveis fazerem frente a Aníbal significava
à saciedade que aquelas tropas eram incapazes de defender o
28 . Na costa oeste do Brútio.
29 . Porto do mar Adriático ao norte da Ombria.
30 . Afluente do Pó um pouco acima de Placência.
420
HISTóRIA DE ROMA
império romano, para o qual não restava outra esperança. E um
dos cônsules, abatido por um combate de cavalaria, muito fe·
rido, preferia protelar as operações; já o outro, com o ardor
intacto e por isso mesmo mais ousado, não tolerava dilações.
O território entre o Trébia e o Pó era então habitado pelos
gauleses, os quais, nessa luta de dois povos poderosíssimos,
mostravam boa vontade ora para com um, ora para com
outro, visando sem dúvida à gratidão do vencedor. Os romanos
suportavam bem semelhante atitude dos gauleses, enquanto estes
nada intentassem contra eles; os cartagineses, ao contrário, não
a toleravam, repetindo que tinham vindo libertar os gauleses a
seu próprio pedido. Devido a essa irritação - e, ao mesmo
tempo, para alimentar seus soldados de butim - , ordenou a
dois mil infantes e mil cavaleiros, em sua maioria númidas mas
contando também com alguns gauleses, que pilhassem sistema·
ticamente todo o território até a margem do Pó. Necessitados
de ajuda, os gauleses, apesar de conservarem até então senti·
mentos duvidosos, afastaram-se forçosamente dos autores de
semelhante ultraje e penderam para o lado de seus futuros
vingadores. Enviaram embaixadores aos cônsules para solicitar
o auxOio dos romanos à sua terra, que agora sofria as conse-
qüências de sua inabalável fidelidade a Roma. Cornélio, para
entrar em ação, não achava nem motivo nem ocasião apropriada.
Suspeitava da nação gaulesa, por um lado devido às suas rumo-
rosas traições, por outro em virtude da recente perffdia dos boios,
ainda que as do passado tivessem caído no olvido. Semprônio
pensava, ao contrário, que, para preservar a fidelidade dos alia-
dos, o melhor liame seria defender os que por primeiro care·
cessem de ajuda. E como o colega hesitasse ainda, despachou
a cavalaria acompanhada de cerca de mil infantes e lanceiros
para guarnecer o território gaulês além-Trébia. Para os inimigos
dispersos ou sobrecarregados de burim esse inesperado ataque
romano foi causa de enorme pânico, pesadas perdas e uma fuga
que alcançou o próprio acampamento c os postos cartagioeses.
Repelidos dali pela massa de soldados que saía a combater, os
romanos logo retomaram o combate graças ao reforço dos seus.
42 1
 TITO LIVIO
A fortuna flutuou entre perseguidores e perseguidos; e, embora
no fim a luta se equilibrasse, maiores foram as perdas do ini-
migo que dos romanos, aliás reputados vencedores no incidente.
Apesar dos conselhos de 53 . Ninguém considerou es-
Cornéllo Cipião, Semprônio sa vitória maior e mais legi-
decide travar batalha. tima que o cônsul Semprô-
nio; exultava de contenta-
mento ao ver que o tornavam vencedor as mesmas tropas respon-
sáveis pela derrocada anterior de seu colega; que a coragem dos
soldados fora reanimada, renovada, e só mesmo Cipião desejava
procrastinar o embate. A ouvi-lo, Comélio, mais doente de alma
que de corpo, tremia à idéia da batalha e dos dardos que o
tinham ferido. Ora, não era bem pensar como um velho em
companhia de um enfermo. Com efeito, para que adiar, perder
tempo? Haveria acaso um terceiro cônsul, outro exército para
esperar? O acampamento cartaginês fincava-se em solo italiano,
quase à vista de Roma. Não atacavam as perdidas Sicília e Sar-
denha, nem a Espanha aquém-Ebro: tentavam, isso sim, expulsar
os romanos da terra ancestral na qual haviam nascido. "Como
- ajuntava Semprônio - gemeriam nossos pais, avezados a
combater em redor das muralhas de Cartago, se nos vissem a
nós, seus descendentes, dois cônsules com seus exércitos, a
tremer no centro da ItáHa, em nosso próprio acampamento,
enquanto todo o território compreendido entre os Alpes e os
Apeninos curva a cerviz diante de um cartaginês!" Isso susten-
tava ele ao pé do colega doente e no pretório, como em reunião
pública. Atiçava-o ao mesmo tempo a aproximação das eleições,
o receio de transmitir aquela guerra aos novos cônsules e a
oportunidade de cobrir-se sozinho de glória, já que seu colega
se achava impossibilitado. Não pôde, pois, dissimular mais: or-
denou aos soldados que se aprestassem para a batalha iminente.
Aníbal, que sabia muito bem o que convinha ao inimigo,
de forma alguma esperava ver os cônsules agindo sem reflexão
nem prudência. Mas, conhecedor do caráter de um deles, por
reputação e experiência, e supondo que se tornara ainda mais
ousado depois do êxito obtido sobre, seus forrageadores. não
422
HISTORIA DF. ROMA
desesperava de deparar com uma ocasião favorável ao combate.
E vigiava atentamente para não deixá-la escapar, enquanto o
soldado romano ainda não estava bem-treinado, o melhor dos
dois generais adversários jazia inútil, os gauleses se mostravam
cheios de ardor - eles, sabia-o bem, que iam fraquejando cada
vez mais à medida que se distanciavam de suas terras. Aguar-
dando, por essas e outras razões semelhantes, uma batalha pró-
xima, e disposto mesmo a provocá-la se os romanos a tanto se
esquivassem, alguns espiões gauleses - cujo emprego lhe con-
vinha melhor, pois aquela gente servia nos dois lados - vieram
confidenciar-lhe que os romanos se preparavam para o combate.
O Cartaginês, então, pôs-se a procurar nas imediações um sítio
favorável à emboscada.
Depois de colocar Magão de 54. Havia, entre os dois exér-
emboscada, Aníbal provoca citos, um riacho comprimido
os romanos para o combate. entre altas bordas crivadas
de arbustos e pauis, como
sucede aos terrenos incultos. Ali, até cavaleiros poderiam dissi-
mular-se, conforme o reconheceu Aníbal ao deitar os olhos no
local. "Este será teu posto - disse a seu irmão Magão. Escolhe
cem homens da infantaria, outros tantos da cavalaria, e vem
procurar-me na primeira vigília. Agora, toca a restaurar as for-
ças". E desfez o conselho de guerra. Magão se apresentou pon-
tualmente com seus homens de elite. "Já vejo- disse Aníbal-
que são soldados de valor. Entretanto, para serdes fortes também
pelo número, e não só pela coragem, escolha cada qual, em seu
esquadrão ou manipulo, dez companheiros equiparáveis a vó~.
Magão vos mostrará o sítio escolhido para a emboscada. Terets
pela frente um inimigo cego às artimanhas da guerra". Assim,
foi Magão despachado com mil cavaleiros e mil infantes.
Ao romper da alba, Aníbal ordenou aos númidas que
cruzassem o Trébia e cavalgassem diante dos postos inimigos,
lançando-lhes dardos a fim de provocá-los ao combate; uma vez
travada a luta, recuariam pouco a pouco, atraindo-os para o
outro lado do rio. Tal a missão imputada aos númidas. Os demais
423
 TITO LIVIO
generais de infantaria e cavalaria foram convidados a dar de
comer a seus homens e em seguida, armados, selados os cavalos,
a aguardar o sinal de ataque.
Semprônio, ante a tumultuada cavalgada dos númidas, co-
meçou por fazer sair do acampamento toda a sua cavalaria, da
qual tanto se orgulhava, depois seis mil infantes e por fim a
totalidade de suas tropas. Estava, conforme decisão tomada
antes, avidíssimo de combates. Era a época do solstício de
inverno, nevava naquelas regiões metidas entre os Alpes e os
Apeninos, mais frias ainda pela proximidade de rios e pântanos.
Com isso, homens e cavalos, atropelando-se sem ter-se alimen-
tado ou tomado qualquer providência para albergar-se, não
tinham nenhum calor interno - e à medida que avançavam
para a corrente de ar que emanava do rio, um frio cada vez
mais cortante soprava sobre eles. Quando, em perseguição aos
númidas fugitivos, viram-se metidos na água até o peito (a
chuva, durante a noite, engrossara a corrente - , todos, ao sair,
ficaram de tal maneira tolhidos de frio que mal podiam manejar
as armas, ao mesmo tempo que a fadiga e a fome, com o correr
do dia , faziam-nos desfalecer.
Começo da batalha do Trébia. 55. Entrementes os solda-
dos de Aníbal, tendo acen-
dido fogueiras na frente das tendas, recebiam, por manípulos,
óleo para friccionar o corpo e comida abundante. Informados
de que o inimigo cruzara o rio; bem-dispostos de corpo e alma,
empunharam as armas e avançaram para a batalha. Aníbal pôs
à frente das insígnias cerca de oito mil baleares, tropas ligeiras;
atrás deles , a infantaria pesada, o que tinha de mais forte e
sólido; em volta das alas, espalhou dez mil cavaleiros; e , ladean-
do as alas, elefantes.
O cônsul, vendo seus cavaleiros perseguirem desordenada-
mente o inimigo, chamou-os de volta e meteu-lhes no meio a
infantaria, pois percebera os númidas subitamente dispostos a
resistir. Havia ali dezoito mil romanos, vinte mil aliados de nome
latino e auxiliares cenomanos, único povo gaulês que conservara
424
HISTORIA DE ROMA
intacta sua fidelidade. Com tais tropas foi desfechado o ataque.
Os baleares carregaram; mas como as legiões resistissem com
mais firmeza do que o supusera Aníbal, este despachou à pressa
essas tropas ligeiras para as alas, o que de imediato confundiu
a cavalaria romana. Porquanto, mal conseguindo até ali sustar,
com seus quatro mil homens, o fmpeto de dez mil cavaleiros
inimigos - e além de tudo extremamente fatigados - , os es-
quadrões se viram literalmente esmagados sob uma chuva de
projéteis atirados pelos fundibulários baleares. Com isso os ele-
fantes, adiantando-se às alas, assustando sobretudo os cavalos
com seu aspecto e cheiro insólito, puseram-nos em debandada.
O combate das duas infantarias equilibrava-se mais pela coragem
que pelas forças: os cartagineses, pouco antes, tinham-se restau-
rado, levando para o campo de batalha suas energias frescas;
os romanos, ao contrário, em jejum, fatigados, membros enre-
gelados, mal podiam movimentar-se. Mas ainda assim teriam
feito pé firme, lançando mão unicamente da coragem, se só
tivessem pela frente a infantaria inimiga. Contudo os baleares,
ap6s repelir a cavalaria, alvejavam-nos agora de flanco; os ele-
fantes haviam se insinuado no centro da linha; e Magão, depois
que o imprevidente exército romano ultrapassou seu esconderijo,
apareceu-lhe às costas com seus númidas, provocando imenso
tumulto e pânico.
Em meio a tantos reveses a linha permaneceu por algum
tempo inquebrantável, contra a geral expectativa, diante da tro-
pelia dos elefantes. Os vélites, postados lá de propósito, lança-
vam-lhes dardos e faziam-nos voltar as costas; em seguida, per-
seguindo-os, feriam-nos por trás, sob a cauda, onde a pele é mais
fina e se deixa penetrar.
O exército romano vencido 56. Vendo-os agitados e pres-
retira-se para tes a atropelar seu próprio
Placência e Cremona. exército, Aníbal fê-los con-
duzir do centro para a extre-
midade, junto à ala esquerda, em face dos auxiliares gauleses.
Ali, provocaram fuga insofismável, novo motivo de pânico para
425
 TITO UVIO
os romanos. De modo que estes, formando o círculo 31 para com-
bater, arremeteram com cerca de dez mil homens - os demais
não puderam escapar - contra a linha africana, do lado onde
os reforçavam os auxiliares gauleses, e massacraram grande quan-
tidade de inimigos; mas, não podendo regressar ao acampamento,
nem descortinar por causa da chuva onde os seus precisavam
de socorro, rumaram diretamente para Placência. Em seguida,
os romanos tentaram furar o bloqueio por todos os lados. Os
que alcançaram o rio foram tragados pelo turbilhão, ou, hesi-
tando em atirar-se à água, surpreendidos pelo inimigo; os que,
pela fuga , se achavam dispersos pelos campos, seguiram as pe-
gadas da coluna em retirada e se puseram também no caminho
de Placência; a outros, o medo do inimigo cumulou da audácia
de lançar-se ao rio: atravessando-o, chegaram ao acampamento.
A chuva mesclada de neve e o rigor insuportável do frio deram
cabo de muitos homens, mulas e a quase totalidade dos elefantes.
Os cartagineses detiveram a perseguição à margem do Trébia
e retornaram ao acampamento transidos de frio, pelo que mal
se sentiam alegres com a vitória alcançada. Foi por isso que,
na noite seguinte, quando a guarda do acampamento e os rema-
nescentes do exército romano cruzaram o Trébia em jangadas,
o inimigo não se apercebeu deles, ou pelo ruído da chuva ou
pela fadiga e ferimentos. Como os cartagineses permanecessem
quietos , as tropas romanas, em coluna silenciosa, foram condu-
zidas pelo cônsul Cipião a Placência, e em seguida, vadeado
o Pó, a Cremona, a fim de não sobrecarregar uma única colônia
com quartéis de inverno de dois exércitos.
Aníbal toma Victumula. 57. Em Roma, tamanho foi o
terror provocado pela notícia da
derrota que se acreditou estar já o inimigo marchando em colu-
nas cerradas sobre a cidade, não havendo nem esperança nem
socorro para repeli-lo das portas e muralhas. Um cônsul vencido
no Ticino, outro chamado às pressas da Sicflia ; ambos, com
31 . Uma tropa romana cercada formava em cfrculo e não em qua-
drado.
426
HISTóRIA DE ROMA
seus exércitos consulares, inapelavelmente batidos : a que outros
chefes, a que outras legiões recorrer? Em meio ao pânjco, apa-
receu Semprônio, o qual, a custa de imensos perigos e cortando
através dos cavaleiros púnicos espalhados a pilhar, conseguira
passar com mais audácia que prudência e esperança de escapar-
lhes, ou de resistir se fosse apanhado. Depois de fazer o que
todos de momento majs desejavam, isto é, presidir as eleições
consulares, regressou aos quartéis de inverno. Foram nomeados
cônsules Cneu Servílio e Caio Flamínio (este pela segunda vez) .
Mas nem esses quartéis de inverno podiam considerar-se
seguros: os númidas erravam de cá para Já, e, onde não podiam
meter-se, insinuavam-se celtiberos e lusitanos. Comboios eram
interceptados de todos os lados, salvo os que vinham de barco
pelo Pó. Havia nas proximidades de Placência um mercado
fortificado por obras portentosas e munido de sólida guarnição.
Na esperança de deitar mão ao forte, Anibal se pôs em campo
com cavaleiros e tropas ligeiras; e, depositando no caráter se-
creto de seu empreendimento a maior esperança de êxito, atacou
à noite, sem contudo conseguir ludibriar as sentinelas. Tamanha
foi a grita repentina que a ouviram até em Placência. De modo
que, mal rompera o dia, o cônsul estava lá com sua cavalaria,
à espera das legiões que vinham atrás em formação de combate.
Antes que chegassem travou-se um combate de cavalaria no qual
Aníbal foi ferido , o que assustou o inimigo; o forte foi, assim,
bravamente defendido.
Depois de alguns dias de repouso, mal se curara da ferida
e já Aníbal corria a atacar Victumula. Esse local fora um mer-
cado romano durante a guerra contra os gauleses; ao depois,
fortificado , acolhera uma mistura de povos vizinhos. No mo-
mento o receio das pilhagens impelira para lá a maior parte dos
camponeses. Aquela massa confusa, inflamada pela noticia da
vigorosa defesa do vizinho posto de Placência, tomou as armas
e avançou contra Aníbal. Duas colunas, antes que dois exércitos
em linha de batalha, é que se encontraram no caminho; e como,
de um lado, existisse tão somente uma multidão em desordem,
de outro um chefe confiante em seus soldados e soldados con-
fiantes em seu chefe, uns poucos conseguiram dispersar nada
427
 TITO LtVIO
menos que 35 mil homens. Ao outro dia os habitantes, rendendo-
se, acolheram uma guarnição dentro dos muros; e quando, ins-
tados a depor as armas, já se dispunham a fazê-lo, foi dado
subitamente sinal aos vencedores para pilhar a cidade, como se
se tratasse de praça tomada de assalto. Nenhuma das calami-
dades que em circunstâncias tais os escritores julgam de bom
aviso relatar foi omitida - tamanho o excesso, tamanha a cruel-
dade e desumano orgulho assacados contra os infelizes vencidos!
Essas foram as expedições de Aníbal no curso do inverno.
Anibal tenta deslocar-se para 58. A seguir resolveu Aní-
a Etrúria, mas ~ detido nos bal dar repouso a seus co-
Apeninos por uma tempestade. mandados por algum tem-
po, enquanto perdurassem
os frios intoleráveis. Mas já aos primeiros indícios hesitantes da
primavera, deixando os quartéis de inverno, partia com seu
exército para a Etrúria, no intento de aliciar essa nação por bem
ou por mal, como sucedera a gauleses e lígures. Ao atravessar
os Apeninos, eis que se levanta tal tempestade que quase fez
esquecer os horrores dos Alpes. Chuva misturada de terríveis
golpes de vento açoitava o rosto dos soldados, que estacavam sem
saber se arremessavam as armas ou tentavam resistir ao tur-
bilhão, com o risco de desabar no chão. E como o vento os
impedisse de respirar, deram-lhe as costas e se assentaram por
um momento. Nesse instante um barulho tremendo ecoou nos
céus e os relâmpagos começaram a dardejar. Privados dos olhos
e dos ouvidos, todos se deixavam vencer pelo terror. Por fim ,
caindo a chuva em bátegas e crescendo a violência do vento,
pareceu-lhes imperioso acampar ali mesmo onde tinham feito
alto. Mas seus sofrimentos apenas começavam, pois era impos-
sível desdobrar ou armar fosse o que fosse; o que era levantado,
despedaçava-o o vento, levando tudo de roldão. E a água tangida
pelo vento, congelando-se nas cristas das montanhas, atirava tal
quantidade de granizo misturado à neve que, desistindo, os
homens se deitaram, antes sufocados que abrigados pelo que os
cobria. Sobreveio em seguida um frio tão intenso que quando,
nessa lamentável confusão de homens e animais, quiseram esti-
428
HISTóRIA DE ROMA
rar-se e levantar, sentiram-se por muito tempo incapazes de
fazê-lo, porquanto os músculos hirtos não conseguiam flexionar
os membros. Por fim, à custa de agitar-se puderam recuperar
os movimentos e o ânimo. Aqui e ali alguns acendiam fogueiras,
e os fracos procuravam a ajuda dos companheiros. Dois dias
ficaram ali, quais sitiados. Mas pereceram incontáveis homens
e cavalos, bem como sete dos elefantes que haviam sobrevivido
à batalha do Trébia.
Batalha indecisa 59 . Descendo os Apeninos, Aníbal
diante de Placência. aproou em direção de Placência e
ergueu acampamento a cerca de dez
milhas da cidade. No outro dia, opunha ao inimigo doze mil
infantes e cinco mil cavaleiros. O cônsul Semprônio, que voltara
de Roma, aceitou o combate. Três mil passos separavam naquele
dia os dois acampamentos. A luta foi travada com grande cora-
gem, mas fortuna diversa. Ao primeiro embate os romanos se
sustentaram tão bem que, não contentes de vencer a batalha,
perseguiram o adversário até seu acampamento, que acabaram
por atacar. Aníbal, instalando apenas uns poucos defensores nas
fortificações e portas, concentrou todas as outras tropas, em
linhas cerradas, no centro do acampamento, ordenando-lhes
aguardar atentamente o sinal de avançar. Era pela nona hora 3',
e o Romano, após fatigar em vão seus soldados e já desesperado
de tomar o acampamento, fez soar a retirada. Aníbal, ao per-
ceber-se disso e ver o inimigo deixar o combate, afastando-se
rumo a seu próprio acampamento, arremessou imediatamente
seus cavaleiros pela direita e pela esquerda; ele próprio, com
a elite da infantaria, arremeteu pela porta central. Poucos com-
bates se travariam mais furiosamente e com maiores baixas de
parte a parte se o dia houvesse permitido que se estendesse
por mais tempo. A noite veio pôr termo à luta, inflamada por
inaudita coragem. Assim, houve mais ardor no choque que no
massacre; e como a luta fora equilibrada, equilibradas se reve-
laram as perdas de ambos os lados. Os adversários não perderam,
32 . Entre 14 e 15 homens.
429
 TITO UVJO
cada qual, mais de seiscentos infantes, e metade menos de cava-
leiros. Entretanto, no que se refere aos romanos, o prejuízo foi
maior do que o demonstrado pelo número, pois morreram vários
membros da ordem eqüestre, cinco tribunos dos soldados e três
prefeitos dos aliados.
Em seguida à batalha, Aníbal retirou-se para o país dos
Iígures, Semprônio para Luca. Aquele, ao chegar, recebeu dos
lígures dois questores romanos, Caio Fúlvio e Caio Lucrécio,
apanhados numa emboscada, dois tribunos dos soldados e cinco
membros da ordem eqüestre, em sua maioria filhos de senadores.
Com isso, aquela gente queria provar a AnibaJ o caráter inaba-
lável da paz e da aliança existente entre eles.
Na Espanha, Cneu Cipião 60. Enquanto essas coisas se
derrota e aprisiona Hanão. passavam na Itália, Cneu Cor-
nélio Cipião, enviado à Es-
panha com uma frota e um exército, partia da embocadura do
Ródano e, após dobrar a cadeia dos Pireneus, chegava a Empó-
rios 33 • Desembarcou ali suas tropas e começou por submeter
os lacetanos, depois toda a costa até o Ebro - em parte reno-
vando velhas alianças, em parte estabelecendo novas - à domi-
nação romana. A reputação de clemência e justiça que por esse
modo adquiriu mostrou-se eficaz não apenas entre os povos
marftimos, como também do interior e das montanhas, nações
por natureza mais ferozes . Delas obteve assim a paz como a
aliança militar, podendo destarte recrutar entre eles sólidas coor-
tes auxiliares.
A província de Hano situava-se aquém-Ebro, onde Anfbal
o deixara de guarda. Imbuído da convicção de que não devia
esperar que tudo debandasse para Cipião e só assim marchar
contra ele, fez sair seu exército em linha de batalha após esta-
belecer acampamento à vista do inimigo. Também o Romano
decidiu que cumpria aceitar a luta, pois tinha a combater tanto
Hano quanto Asdrúbal, e era melhor fazê-lo separadamente. O
que se passou não foi uma grande batalha. Cairam seis mil ini-
33 . Colônia fócia ao sul de Porto Vendres.
430
HISTóRIA DE ROMA
migos, dois mil foram capturados, sem contar a guarmçao do
acampamento, que também foi tomado. O próprio general caiu
em mãos romanas juntamente com alguns chefes; e a praça de
Císsis s•, vizinha ao acampamento, foi invadida. Ali, o butim
consistiu de objetos pouco valiosos, mobiliário bárbaro e es-
cravos sem valor. Mas o acampamento enriqueceu o soldado:
havia Já não somente os bens do exército derrotado, como tam-
bém os da tropa que fazia a campanha da Itália. Com efeito,
a fim de não sobrecarregar seus homens, Anibal deixara do outro
lado dos Pireneus quase tudo o que possuía de precioso.
61. Sem aguardar a con-
Campanha contra Asdrúbal; os
ausetanos são subjugados. firmação da derrota , As-
drúbal passara o Ebro
com oito mil infantes e mil cavaleiros, como se tencionasse cair
sobre os romanos logo à chegada destes. Sabedor do desastre
de Cfssis e da perda do acampamento, mudou de direção e avan-
çou para o mar. Não longe de Tarragona, os soldados de marinha
e os marinheiros romanos erravam dispersos pelo campo. I! que,
como costuma acontecer, o êxito engendrava a negligência. Fen-
dendo de todos os lados com a cavalaria, Asdrúbal massacra
grande quantidade de inimigos, põe em fuga maior número ainda
e os obriga a refugiar-se nos navios. Mas, não ousando perma-
necer por mais tempo nas vizinhanças, com receio de ser sur-
preendido por Cipião, retirou-se para a outra banda do Ebro.
Cipião marchava a passo acelerado. Informado da chegada
de novos inimigos, puniu alguns capitães de navios e, deixando
uma guarnição insignificante em Tarragona, regressou a Empó-
rios com sua frota. Mal partira e Asdrúbal apareceu, forçando
à defecção os ilergetas s5, os quais haviam entregado reféns a
Cipião; e com a gente jovem daquele povo devastou o território
dos aliados fiéis aos romanos. Ao saber que Cipião deixara seus
34. Provavelmente na região de Tarragona.
35 . Os ilergetas ocupam a região ao norte do Ebro, a oeste dos
lacetanos.
431
 TITO LtVIO
quartéis de inverno, Asdrúbal novamente abandonou o território
aquém-Ebro. Desertada por aquele mesmo que a compelira à
defecção, a nação ilergeta vê-se invadida pelas tropas de Cipião,
que repele toda a população para dentro da cidade de Atanagro,
sua capital, a que põe cerco. Poucos dias depois, após exigir
mais reféns e impor-lhes pesada multa, recebe os sitiados sob
sua lei e suas ordens. DaH, avança contra os ausetanos, habi-
tantes das vizinhanças do Ebro e também eles aliados dos carta-
gineses. Enquanto assediava a cidade, os lacetanos vieram so-
correr seus vizinhos; mas, em plena noite, no momento em que
tentavam penetrar no burgo, Cipião os colheu numa emboscada.
Foram mortos doze mil homens; os demais, praticamente se
despojando das armas, dispersaram-se pelo campo em demanda
de suas casas. Aos sitiados só protegia o inverno, desfavorável
aos atacantes. O assédio se prolongou por trinta dias, durante
os quais quase nunca a neve apresentou menos de quatro pés
de espessura; de tal maneira cobria as víneas e as coberturas
que só quando o inimigo lançou repetidamente todas inflamadas
sobre elas puderam proteger os romanos. Finalmente seu chefe,
Amúsico, refugiou-se ao pé de Asdrúbal e os ausetanos concor-
daram em render-se mediante paga de vinte talentos de prata.
Imediatamente regressaram os romanos aos quartéis de inverno,
em Tarragona.
Prodigios e cerimônias 62. Em Roma e nas imediações,
expiatórias. produziram-se naquele ano inú-
meros prodígios; ou melhor, fo-
ram anunciados e cridos, como sucede a espíritos inclinados à
superstição. Assim, ao que se dizia, urna criança de seis meses,
nascida livre, gritara "Triunfo!" em pleno mercado de legumes;
no Fórum Boário, um boi subira pelas próprias pernas ao ter-
ceiro andar de um edifício, de onde, assustado pelo tumulto
provocado na casa, atirara-se para baixo. Algo parecido com
navios riscara o céu, quais relâmpagos; o templo da Esperança,
situado no mercado de legumes, fora atingido pelo raio; em
Lanúvio, uma vítima sacrificada se mexera, um corvo voara
para o templo de Juno e pousara sobre a própria almofada da
432
HJSTORIA DE ROMA
deusa. No território de Amiterno, avistaram-se em diversos locais
fantasmas de aparência humana, velados de branco, que não
falavam com ninguém. No Piceno, choveram pedras. Em Ceres,
tabuinhas de sorte encolheram-se por si mesmas. Na Gália, um
lobo arrebatou o gládio de uma sentinela e fugiu com ele. Em
relação a todos os prodígios anunciados ordenaram os decên-
viros que se consultassem os Livros, salvo quanto à chuva de
pedras no Piceno, que mereceu urna novena. Quase toda a cidade
se empenhou em afastar, mediante cerimônias, a ameaça dos
prodígios. Antes de mais nada purificou-se a cidade, com grandes
sacrifícios de vítimas aos deuses indicados. Em Lanúvio, Juno
recebeu urna oferenda de quarenta libras de ouro; no Aventino,
as matronas dedicaram à deusa uma estátua de bronze; em Ceres,
onde as tabuinhas 38 haviam encolhido, decretou-se um lectis-
térnio 37 e suplicações à Fortuna, no Algido; também em Roma
se prescreveu um lectistérnio à juventude, mais suplicações no
templo de Hércules, designado pelo nome, e em seguida a todo
o povo, em redor de todos os altares; imolaram-se cinco grandes
vítimas ao Gênio, e o pretor Caio Atílio Serrano recebeu ordem
de fazer votos para que o Estado romano permanecesse intacto
durante os próximos dez anos. Cumpridas assim as expiações
e os votos nos termos das prescrições contidas nos Livros Sibi-
linos, viram-se os espíritos em grande parte aliviados de seus
temores supersticiosos.
O cônsul Flamínio entra 63. Um dos cônsules designa-
em exercício em Arímino, dos, Flamínio, a quem tocara
onde recebe o exército de por sorteio as legiões acanto-
Semprônio. nadas em Placência, encami-
nhou ao cônsul Semprônio um
edito e uma carta solicitando que aquele exército erguesse acam-
pamento em Armínio nos idos de março. Lá mesmo, em sua
J6 . São tabuinhas com caracteres gravados.
J7 . Festa religiosa de expiação, celebrada apenas em circunstâncias
extraordinárias, na qual se ofereciam banquetes aos deuses, cujas ima-
gens eram colocadas nos leitos próprios para as refeições.
433
 HISTóRIA DE ROMA
TITO UVIO
Armfnio do que em Roma, tomar a toga pretexta 38 numa hospe-
província, tencionava ele assumir o cargo, lembrando-se de suas daria que junto a seus penates!
antigas disputas com os senadores, das que sustentara enquanto Foram todos de aviso que se deveria trazer Flanúnio de
tribuno da plebe e, já cônsul, das que tivera de travar para volta e forçá-te a cumprir pessoalmente seus deveres para com
assegurar-se do posto que queriam subtrair-lhe - por fim , da os deuses e os homens, antes de juntar-se a seu exército na
que empreendera para alcançar o triunfo. Ademais, era malvisto província. Na embaixada- pois fora decidido enviar a Flamínio
dos senadores em virtude da nova lei proposta por Quinto Cláu- embaixadores - estavam Quinto Terêncio e Marco Antístio,
dio, tribuno da plebe, e que só Caio Flamínio apoiara em pre- os quais não o abalaram mais que, quando de seu primeiro con-
juízo do Senado. Com efeito, rezava a lei que nenhum senador sulado, a carta do Senado. Poucos dias depois assumia Flamínio
ou filho de senador poderia dispor de um navio de mais de suas funções. E ao imolar um veado, este, já ferido, escapou
trezentas ânforas, tonelagem considerada suficiente para trans- das mãos dos sacrificadores e fugiu, salpicando de sangue os
portar a colheita de uma propriedade; afora isso, todo tráfico assistentes, sobretudo os que ignoravam o motivo do alarme e
parecia indigno de um senador. O caso, levado a bom termo correram para longe. Quase todos viram no fato um presságio
malgrado a violência dos debates, valera a Flamínio, advogado aterrorizante.
da lei, o ódio da nobreza, o favor da plebe e , em conseqüência , Pouco depois Flamínio, recebendo duas legiões de Sem-
um segundo consulado. Por todas essas razões, supunha ele que prônio, cônsul no ano anterior, e duas do pretor Caio Atílio,
os senadores o reteriam em Roma , inventando auspícios menti- levava seu exército para a Etrúria, tomando os estreitos caminhos
rosos, retardando as Férias latinas e empecendo seus deveres dos Apeninos.
de cônsul. De sorte que, alegando uma viagem como simples
particular, partiu em segredo para sua província .
Descoberto o plano, cresceu ainda mais a cólera dos sena-
dores contra Flamínio: já não era apenas a eles, alegavam, que
Caio Flamínio movia guerra, mas também aos Imortais. Cônsul
outrora sem auspícios favoráveis , no próprio campo de batalha
fizera ouvidos moucos a deuses e homens; agora, consciente do
desprezo que votava aos numes, fugia do Capitólio e da expres-
são solene de seus votos, para não ter de comparecer no templo
de Júpiter Bom e Grande no dia de assumir o cargo. Não queria
ver nem consultar o Senado, que só ele detestava; não queria
anunciar as Férias latinas nem sacrificar solenemente, na mon-
tanha, a Júpiter Lacial. Planejara, pois, partir sob bons auspícios
sem exprimir publicamente seus votos no Capitólio, coberto
pelo manto rubro e escoltado por seus litores. Não, fora como
simples ordenança, sem insígnias, sem litores, que viajara em
segredo, disfarçado qual exilado a deixar o solo pátrio. Então 38 . A toga pretexta, de faixa púrpura, era a insígnia dos magis-
era mais conforme à majestade de seu comando assumi-lo em trados.

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 RESUM O
DO LIVRO XXI DA HISTORIA DE ROMA
DESDE SUA FUNDAÇÃO, DE TITO LlVIO

O livro relata as origens da segunda guerra púnica e a

passagem de Aníbal, general dos cartagineses, para a outra banda
do Ebro, contrariando assim o tratado. Assediada por ele, Sa-
gunto, cidade aliada do povo romano, é tomada após sete meses
de cerco. Embaixadores partem para Cartago a fim de se queixar
desses ultrajes. Os cartagineses se recusam a dar-lhes satisfação
e a guerra é declarada.
Aníbal franqueia os Pireneus e chega, através das Gálias,
ao pé dos Alpes, após dispersar os volscos que tentavam barrar
seu avanço. Atravessa penosamente os Alpes depois de repelir
em sucessivos combates os montanheses empenhados em detê-lo.
Desce para a Itália e, no Ticino, bate os romanos num combate
de cavalaria. Ferido, Públio Comélio Cipião é amparado pelo
filho, que mais tarde receberia a alcunha de Africano. Pela se-
gunda vez o exército romano é vencido, em Trébia. Aníbal atra-
vessa os Apeninos, onde seus soldados padecem terrivelmente
com a violência das tempestades. Cneu Cornélio Cipião, na Es-
panha, combate com êxito os cartagineses e aprisiona seu chefe,
Magão.

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